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Roteiro e Arte
ANDERSON WILLIAM
— EPISÓDIO 3 —
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06 Ninguém Está Ouvindo Você Gritar
— SÁB 18h46min – Asa Sul (Bairro de Brasília – DF) —
Eu vivo em um mundo de expectativas e decepções.
Sinceramente, acho bastante idiota o conceito de que tudo o que ocorre comigo e com aqueles
ao meu redor possui um significado profundo para ter acontecido. Que tal ocorrido nasceu da
vontade de algo/alguém/alguma coisa, e não de uma gama de probabilidades matemáticas, onde
uma única possibilidade dentre incontáveis outras foi escolhida ao acaso, sem o auxílio de divindades
ou maldições. Uma famosa obra do destino.
Se uma pessoa decide sair sozinha durante a madrugada com o celular em mãos, são grandes
as chances dela ser assaltada e sofrer algum tipo de violência, ou até coisa pior. Não porque Deus
decidiu que deveria acontecer, tampouco foi uma interferência do Diabo. Ocorreu porque tal pessoa
falhou em enxergar o óbvio, ou por ter sido inocente demais para imaginar que nada de mal poderia
acontecer com ela.
O mundo não é justo, todos deveriam ter consciência disso. Na verdade, o certo seria existir
uma matéria exclusiva no colégio para ensinar justamente isso. Mostrar que não devemos acreditar
em contos de fadas, lindos romances ou super-heróis. Deveria haver um professor impiedoso para
nos fazer regurgitar toda a merda nojenta que a humanidade nos força a engolir durante o nosso
processo de desenvolvimento mental.
As pessoas não são inteiramente boas, a sociedade não é justa, e a terra, com toda certeza, não
é um lugar caridoso com pessoas ingênuas.
Quando ando pelas ruas, tudo que enxergo são sorrisos falsos e feições cansadas. Seres que se
matam de tanto trabalhar para no fim do mês ganhar uma mixaria que outros recebem em poucas
horas, sem precisarem derramar uma gota de suor sequer. A nossa cultura é injusta, e torno a afirmar
que isso não é escolha de Jeová ou qualquer outra divindade que escolhemos venerar. Toda essa
injustiça brotou e germinou dos incontáveis anos de catástrofes, crueldades, guerras, escravidão e
corrupção. Uma grande bola de neve que nunca parou, e nunca vai parar de crescer.
Mas essa é apenas a minha opinião pessoal. Palavras de alguém que nunca possuiu muita fé
nas pessoas e na queda desse grande paradigma. Pensando bem, acho que chegamos ao fundo do
poço devido exatamente a ‘diferença de opiniões’. Se todos nós pensássemos da mesma maneira e
víssemos o mundo com os mesmos olhos, não seríamos a espécie ignorante que somos hoje. A
igualdade traria prosperidade e evolução, pois faríamos de tudo para corrigir os erros que
encontrássemos pela frente. Sempre hesitaríamos antes de enganar, iludir e machucar os outros,
afinal, saberíamos que ao fazê-los, estaríamos mentindo, ludibriando e ferindo a nós mesmos.
Termos ‘livre arbítrio’ é um grande erro. E, diferente do tópico anterior, isso com certeza é
culpa de Buda, Alá, ou seja lá quem for a existência por trás dessa farsa defeituosa neste planeta
decrépito que conhecemos como ‘vida’.
Opiniões variadas geram conflitos de ideais, por exemplo: uma pessoa gasta anos da sua vida
estudando, reunindo argumentos, aperfeiçoando seus pensamentos a respeito de um determinado
assunto, para no fim acabar sendo contrariada por alguém que pensa o completo oposto. Uma
criatura que gastou poucos minutos do seu dia digitando num fórum qualquer enquanto bebia
cerveja e assistia o futebol. Nesse instante, nasce uma guerra de pensamentos, criando uma
gigantesca corrente de brigas e discussões. Pode ser por conta de simples gosto musical ou assuntos
delicados como religião e sexualidade.
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Se existe alguém que pensa diferente, a sua opinião não passa de merda podre.
Chega a ser lamentável a maneira como uma simples divergência de ideais gera batalhas
sangrentas envolvendo países inteiros, destruindo vidas que não tinham nada a ver com o assunto.
Ah... Se eu fosse Deus, simplesmente apagaria a palavra ‘vida’ e todo seu significado. Não
apenas as dos humanos, mas também as dos animais e das plantas. Afinal, a falta de um telencéfalo
altamente desenvolvido e polegar opositor não é justificativa para livrá-los do termo que
conhecemos como ‘pecado’.
A lógica é simples. Animais chacinam e devoram cruelmente outras formas de vida sem
hesitarem. Plantas sugam os nutrientes da terra, água e, consequentemente, vida. Muitas delas,
inconscientemente, destroem o ambiente em que vivem, impedindo que qualquer outro ser tenha
a oportunidade de sentir o calor do Sol. Parasitas que pecam apenas por existir.
Hump. Pensando bem, acho que apagaria toda a ‘existência’ por completo. Transformaria todos
os planetas, todas as estrelas e toda a escuridão em uma infinita tela branca, pura, imaculada, sem
um traço de sujeira sequer. Apenas assim estaria negando completamente a existência do
desespero, sofrimento, aflição... Não haveriam mais lágrimas, solidão ou pensamentos estúpidos
como esses que estou tendo agora.
Fala sério, a ‘antiga eu’ estaria pouco se fudendo para o que anda acontecendo com o mundo.
Mas tenho notado que com o passar do tempo venho mudando, tornando-me mais humana, menos
vazia. E, sinceramente, não estou gostando nada disso.
Bem, na verdade não ligo para a crueldade e complexidade da sociedade em si, tampouco para
o que a minha vida idiota ainda tem para oferecer. A única coisa que me importa nesse exato
momento é o bem-estar de uma única existência dentre os zilhões de seres vivos que povoam essa
grande bola flutuante, e tal fato me deixa frustrada. Pensar no bem de alguém é estressante demais,
exaustivo demais. As vezes gostaria de poder vestir novamente a casca do meu ‘eu’ frio, solitário,
mas a convivência com Alice tirou essa habilidade de mim. No momento, sou alguém incapaz de
ignorar por completo essa realidade cheia de doenças e fragilidades. Tenho inconscientemente
procurado um futuro feliz e ilusório, assim como nos contos de fadas que tanto luto para não
acreditar.
Fuaa... Estou começando a viver uma vida de mentira apenas por que ‘pensar’ é cansativo
demais.
O som do portão automático sendo aberto me trouxe de volta à realidade. Após quase uma
hora de viagem, havia chegado ao condomínio onde moro. O clima dentro do carro estava muito
pesado, fato que constatei após notar que a motorista sequer havia ligado o aparelho de som no
volume máximo como geralmente faz. Diferente de qualquer outra ocasião, esse silêncio anormal
me incomodava, e eu não fazia ideia de como poderia quebrá-lo, ou que palavras usar para aliviar o
peso do pesadelo que havíamos testemunhado.
Hoje vimos uma mulher ser assassinada à sangue frio. Quer dizer, Marta ainda respirava quando
foi levada pela SAMU, mas, sinceramente, não alimento esperanças de que ela sobreviva a esta noite.
A única com quem me preocupo no momento é Alice, e em como ela lidará com todo esse
sofrimento, afinal, uma pessoa extremamente frágil e perceptiva como ela tem grandes chances de
quebrar após um evento tão trágico.
Aah... Sou mesmo uma humana de merda por pensar dessa maneira. Ao invés daqueles que
tanto critiquei por viverem vidas ilusórias, eu que deveria ser apagada da existência. Uma aberração
no meio de tantos sentimentais.
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Após estacionar o carro, caminhamos pelos longos corredores vazios até o elevador. O silêncio
me sufocava, mas o que eu deveria fazer para concertar isso? Como poderia mudar o clima? Não
sabia responder... Diferente das pessoas normais, não tenho nenhuma experiência em consolar
alguém.
Os olhos da minha chefe estavam vazios. Ela não havia chorado nenhuma vez sequer após o
crime de mais cedo, tentando parecer forte. Quando fomos chamadas para depor sobre o ocorrido,
eu não me importaria de contar tudo que sabia. Que éramos investigadoras, e estávamos procurando
por Marta. No entanto, Alice, ainda em estado de choque, usando apenas duas palavras, me
convenceu a fazer o contrário.
“Não conte.”
Sem sequer questionar a decisão dela, acabei não oferecendo qualquer informação que
pudesse auxiliar a polícia na busca pelo agressor. Na verdade, menti tão bem que ninguém ali teve a
audácia de contrariar minhas palavras. Minha voz soou naturalmente, minha pulsação sequer
disparou.
Mentir sempre foi fácil, como respirar.
Durante a minha infância, quando eu me machucava, nunca dizia que o ferimento doía. Sempre
após ter os meus sentimentos magoados, rapidamente tratava de vestir um sorriso falso. Para mim,
dar trabalho e preocupar os outros era mais cansativo do que superar as minhas próprias fraquezas,
por isso, tentava ao máximo não ser um estorvo, uma pedra no sapato. Desde pequena procurei ser
um fantasma, e, enquanto crescia, realmente consegui me tornar um. Atualmente, eu sou uma
existência irreconhecível, um ser que não é relevante na vida das outras pessoas, um inseto do qual
ninguém sentirá falta caso desapareça, alguém que nunca chegará nem perto de tocar as páginas da
história... Nenhum Tiradentes, Einstein, Hitler... Todos esses mártires que ganharam a memória da
sociedade graças às suas conquistas e atrocidades.
Sou apenas um fragmento de sujeira no meio de tantas pérolas.
A porta do apartamento foi aberta e a luz da cozinha acessa, nossas bolsas jogadas de qualquer
maneira sobre a mesa da pequena sala de estar. Alice sentou sobre o sofá e ligou a televisão, mas
não parecia estar com vontade de assistir. E eu, já cansada de todos esses pensamentos inúteis,
resolvi fugir da realidade.
— Vou tomar um banho.
Como resposta, obtive apenas um sorriso cansado e uma ação provocativa. Em outras ocasiões,
o simples fato dela ter jogado os dois pés sobre a minha mesa de centro acarretaria numa discussão
sem precedentes, mas dessa vez não a repreendi. Isso seria pena? Desde quando sou capaz de sentir
pena? Quando comecei a me importar tanto com os sentimentos dela?
Ah, que se dane tudo isso. Estou cansada de procurar respostas para algo que não consigo
entender. O que preciso agora é de um longo banho quente, longe de toda essa situação, de toda
essa súbita consciência de que respiro e existo. Por apenas meia hora, quero desaparecer da face da
Terra.
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FICHA TÉCNICA
Roteiro │ ANDERSON WILLIAM
Ilustrações │ ANDERSON WILLIAM
Revisão │ RENATA ALENCAR
Upload │ NOVELAND
@NoveLandOficial
Facebook.com/novelandBR
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CONFIRA OUTRO DOS NOSSOS TÍTULOS
Um Anjo desce à Terra e desafia a humanidade a
um jogo. Neste jogo, as emoções negativas da
humanidade tomam forma, e apenas algumas pessoas
com poderes especiais, chamadas de "jogadores",
podem detê-las. Sem um objetivo claro num mundo à
beira do Apocalipse, uma dupla se ergue para desafiar
todas as possibilidades e dar um fim ao jogo.
Autor(a): Diogo Lima
Ilustração: Aline Nyoh
Gêneros: Ação, Fantasia, Seinen