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SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL E ACESSIBILIDADE: AS CONDIÇÕES DO TRANSPORTE COLETIVO EM SOBRADINHO I, BRASÍLIA1
Raquel Carvalho de Arruda [email protected]
Geógrafa pela Universidade de Brasília
RESUMO: Esse trabalho procura entender as relações entre o transporte coletivo e o processo de segregação socioespacial em Sobradinho I.,em relação a sua acessibilidade ao Plano Piloto, com a hipótese de que o transporte coletivo reforça a segregação socioespacial para a população dependente do coletivo e diminui as possibilidades de apropriação da cidade na sua totalidade. O Plano Piloto é uma área principal que concentra os equipamentos urbanos, os empregos e as áreas de lazer. Assim, a população de Sobradinho necessita deslocar-se para o Plano Piloto. A acessibilidade ao centro para a parcela dependente do transporte coletivo de Sobradinho I é dificultada, e isso reforça o processo de segregação socioespacial impossibilitando cada vez mais a apropriação da cidade enquanto conjunto. PALAVRAS-CHAVES: Transporte coletivo; segregação socioespacial; acessibilidade.
INTRODUÇÃO
O trabalho procura entender as relações entre o transporte coletivo e o processo de
segregação socioespacial em Sobradinho I, em relação à sua acessibilidade ao Plano Piloto
de Brasília, considerando como hipótese que o transporte coletivo reforça a segregação
socioespacial para a população dependente deste, e diminui as possibilidades de
apropriação da cidade em sua totalidade.
A pesquisa torna-se relevante pela reflexão acerca da situação do transporte
coletivo, que tem como expressão maior o ônibus, uma vez que a condição atual desse
transporte apresenta-se de maneira insatisfatória para a maioria da população,
principalmente para aquela que não tem acesso ao transporte privado.
O transporte coletivo se coloca como instrumento de estruturação do espaço urbano.
Ocorre um processo de segregação socioespacial em relação à acessibilidade da população
de baixa renda residente em Sobradinho I com relação ao Plano Piloto. O Plano Piloto é a
área central da cidade de Brasília que concentra os equipamentos urbanos, os empregos e
as áreas de lazer. A população de Sobradinho, ao contrário, necessita deslocar-se para o
Plano Piloto tanto para trabalho e alguns serviços, quanto para lazer.
O objetivo desse trabalho é verificar como o transporte coletivo reforça a segregação
da população de baixa renda em Sobradinho I, em relação a sua acessibilidade e
segregação ao Plano Piloto de Brasília.
A metodologia da pesquisa para a verificação da hipótese seguiu as seguintes
etapas: revisão bibliográfica sobre o tema; coleta de dados secundários (SEDUH/2000;
IBGE, 2000); comparação da concentração de equipamentos urbanos de segurança pública,
1 Eixo Temático: Geografia Urbana
educação, saúde e cultura entre Sobradinho e o Plano Piloto evidenciando a necessidade
do deslocamento entre Sobradinho e Plano Piloto (SEDUH, 2000); estabelecimento de
classes de renda de acordo com a localização residencial da população de Sobradinho I
(IBGE, 2000) e; pesquisa exploratória por meio de aplicação de questionário para
averiguação da acessibilidade dos moradores de Sobradinho I aos equipamentos urbanos
localizados no Centro de Brasília (Plano Piloto), relacionando a acessibilidade à segregação
socioespacial.
BRASÍLIA: TRANSPORTE, ACESSIBILIDADE E SEGREGAÇÃO
O transporte urbano viabiliza as atividades culturais, sociais, políticas e econômicas
de uma sociedade e, dessa maneira, proporciona a reprodução do espaço pelo homem.
Dentro do universo do transporte urbano, destaca-se o transporte coletivo que representa
vários interesses e, por isso, vários agentes (empresários, Estado) disputam seu controle.
Por isso, o transporte coletivo apresenta dois entendimentos: coletivo - serviço regido pelos
interesses do mercado; público - o serviço segue as “regras sociais definidas pela
sociedade” (VASCONCELLOS, 2000, p. 147).
Cabe ressaltar, então, os elementos que envolvem a função do transporte coletivo:
mobilidade e acessibilidade. A mobilidade relaciona-se diretamente à estruturação urbana
da cidade e ao meio de transporte que se utiliza. A mobilidade e a acessibilidade
apresentam forte relação com os meios de transporte juntamente ao uso do solo que muitas
vezes é conseqüência de políticas e planejamento que atendem aos interesses dos agentes
hegemônicos. Conclui-se assim que “em sentido mais amplo, a acessibilidade é entendida
como equiparação das oportunidades de acesso ao que a vida oferece” (FERNANDES,
2003, p. 11).
Diante desta abordagem, Brasília nasce com a proposta de articular o centro entre o
Sudeste com o Norte e o Nordeste, para proporcionar o desenvolvimento regional do Brasil.
E vai muito além no instante em que a criação de uma nova capital no país materializava o
sonho de progresso aspirado por toda a nação. Tal progresso envolvia uma concepção
urbanístico-rodoviária que privilegiava abertamente o automóvel2.
Já o transporte coletivo não ocupava tanta preocupação no plano do urbanista
quanto a forma individual de deslocamento:
quanto ao serviço de transporte público de passageiros, acho conveniente estabelecer desde já o seguinte critério: proibir lotações nos moldes usados no Rio, onde são indispensáveis, dadas as condições anormais da cidade. Em Brasília, cidade planejada para o tráfego normal, não se justificam.
2 “Fixada assim a rede geral do tráfego automóvel, estabeleceram-se, tanto nos setores centrais como nos
residenciais, tramas autônomas para o trânsito local dos pedestres a fim de garantir-lhes o uso livre do chão, sem contudo levar tal separação a extremos sistemáticos e antinaturais pois não se deve esquecer que o automóvel, hoje em dia, deixou de ser o inimigo inconciliável do homem, domesticou-se, já faz, por assim dizer, parte da família” (COSTA apud HENRY et al., 2003, p. 497 - 498)
Salvos pequenos lotações, de modelo único, camioneta [...] cinza, com caráter de táxi coletivo. O modelo de ônibus deverá ser prefixado e uniforme, a fim de garantir a desejável compostura urbana. Deve ser de tamanho médio [...] cinza e branco, com cor ou cores correspondentes ao itinerário no indicador da respectiva linha. (COSTA apud HENRY et al., 2003, p. 500)
Nota-se grande preocupação com critérios ligados à forma, ao passo que os
aspectos de operacionalização do transporte coletivo não recebem tanta atenção como
afirma HENRY et al. (2003, p. 500): “o detalhismo da proposta, que mal esconde o caráter
impensado da função de transporte coletivo, atenta ainda menos ao seu modo operacional,
uma vez negadas as realidades das outras cidades brasileiras”.
A construção da nova capital iniciou-se e, ao passar de certo tempo os “candangos”3
decidiram fixar-se em Brasília, possibilidade essa não prevista no plano de Lúcio Costa. A
partir daí, o poder público constituiu localidades segregadas socioespacialmente durante o
processo de formação do território de Brasília, que proporcionaram a continuação da utopia
de Brasília enquanto cidade modelo (FERREIRA et al., 2005). Dessa forma, as primeiras
cidades-satélites, muito afastadas do Plano Piloto, receberam a parcela de população
migrante e de baixa renda.
O transporte coletivo em Brasília cresceu junto à cidade com base nas frotas de
ônibus fornecidas entre os setores público e privado, sendo o último em ritmo exponencial
(HENRY et al., 2003). Os primeiros transportadores absorvidos pela Companhia
Urbanizadora da Nova Capital do Brasil - NOVACAP eram pequenos proprietários de
empresas de caminhões e ônibus, bem como autônomos. Os primeiros dez anos são
marcados por um transporte coletivo com poucos investimentos públicos voltados somente
para o atendimento das necessidades do Plano Piloto e dos assentamentos próximos a ele.
Diante de poucos operadores privados, a empresa pública de Brasília4 (TCB) ofertou quase
que monopolisticamente os serviços de transporte coletivo (HENRY et al., 2003). Porém,
após gradativo repasse de serviços a empresas menores, somado a perda de um processo
judicial trabalhista, a TCB em 1998 sofre liquidação de seus bens e fali. Assim, a oferta do
transporte coletivo em Brasília atualmente se dá pelo duopólio privado entre duas mega-
empresas privadas que se firmaram ao longo do desenvolvimento de Brasília com a
absorção de empresas menores. Elas fazem parte de fortes grupos econômicos nacionais
(HENRY et al., 2003).
O quadro hoje aponta para um percentual de cerca de 85% da população de baixa
renda com residência fora do Plano Piloto ao passo que 70% dos empregos e escolas
concentram-se nele (Anuário Estatístico apud HENRY et al., 2003).
3 Este termo refere-se aos migrantes que vieram para Brasília trabalhar em sua construção.
4 “A empresa pública operadora do transporte coletivo por ônibus surgiu em 1961 como parte da concepção do
Distrito Federal, cuja idéia dominante era que ao Estado caberia realizar todas as atividades necessárias para garantir o funcionamento da nova capital nacional” (AFFONSO et al, 2003, p. 505).
REGIÃO ADMINISTRATIVA DE SOBRADINHO I: O TRANSPORTE COLETIVO E A SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL
O poder público criou a „cidade satélite‟ de Sobradinho em 1960 para receber parte
da população envolvida na construção da nova capital. A população deslocada do Plano
Piloto para residir em Sobradinho era originária da Vila Amauri, do Bananal e das ocupações
próximas à Vila Planalto, inundadas pelas águas do Lago Paranoá. Nesta época, a cidade
foi administrada por uma sub-prefeitura e, em 1964 com a criação da Lei nº 4.545, ela
recebeu a denominação de Região Administrativa V (GDF, 2005), como podemos visualizar
na Figura 1, abaixo.
R.A V - SOBRADINHO
N
Projeto Cartográfico por: Rafael de Castro Catão Raquel C. de Arruda
Fonte: SEDUH/DF
10 0 10 Quilômetros
R.A V - Sobradinho
Demais R.As
Mancha Urbana de Brasília
Lagos e Represas
Legenda
Figura 1 – Mapa de localização
Fonte: SEDUH, 2000. Elaborado por Rafael Catão e Raquel Arruda
O Programa de Assentamento de População de Baixa Renda trouxe alterações ao
projeto inicial de Sobradinho. O governo criou Sobradinho II5 para receber pessoas oriundas
de ocupações precárias como a do Ribeirão Sobradinho e a do Lixão, no final da década de
1980 (SEDUH, 2006). Vários parcelamentos irregulares ou condomínios de classe média
principalmente, formaram-se na década de 1990 (PENNA apud FERREIRA et al., 2005),
conferindo a R.A V (Figura 2) a maior concentração desse tipo de habitação em Brasília
com grande variação de renda entre elas (Figura 3). Entre os parcelamentos irregulares de
baixa renda em Sobradinho, a Vila DNOCS apresenta uma população com baixíssima renda
além de se localizar em uma área com pouca infra-estrutura (Figuras 2 e 3) e, devido a
essas características, o poder público pretende classificar a Vila DNOCS em uma Zona
5 “Em 27 de janeiro de 2004 com a Lei nº 3.314 Sobradinho II foi desmembrado de Sobradinho e transformado
na Região Administrativa XXVI, sendo que os limites das duas Regiões ainda não estão definidos, uma vez que se encontram em fase de estudo” (CODEPLAN, 2006, p. 6). Itapoã vive a mesma situação de Sobradinho II: localiza-se na poligonal de Sobradinho, apesar de ter se desmembrado dele com a Lei nº 3.527 em 3 de janeiro de 2005 quando virou a RA XXVIII que não possui ainda limites definidos (http://www.itapoa.df.gov.br).
Específica de Interesse Social (ZEIS) que “mesmo não atendendo as premissas das leis
urbanísticas existentes, preconizam formas e meios de ocupação capazes de estabelecer e
fornecer qualidade de vida e salubridade para assentamentos dotados de condições
desumanas” (TERRACAP, 2007, p. 9). A classificação da vila como ZEIS viabilizará um
Plano de Ocupação para a área com o atendimento das principais reivindicações dos
moradores locais: infra-estrutura, segurança e propriedade dos lotes (TERRACAP, 2007).
Figura 2 – Caracterização das localidades da Região Administrativa V – Sobradinho
Fonte: SEDUH, 2000. Elaborado por Rafael Catão e Raquel Arruda
Renda média mensal por chefe de famíl ia
- setor censitário do
IBGE - 2000
S.M
S.M
S.M
0 - 5
5, 1 - 7
7, 1 - 10
10, 1 - 15
15, 1 - 27, 98
Salários Mínimos - S.M
Legenda
Classes de Renda
S.M
S.M
S.M
S.M
S.M
R.A V - Sobradinho
ZEIS - DNOCS
Parcelamentos Irregulares
Sobradinho II
Sobradinho I
Demais R.As
Fonte: IBGE - Censo 2000
QuilômetrosN
Projeto Cartográfico por: Rafael de Castro Catão Raquel C. de Arruda
R.A V - SOBRADINHO - RENDA
#
Sobradinho I
#
Sobradinho II
#
ZEIS - DNOCS
Parcelametos Irregulares
#
1 0 1 2
Figura 3 – Mapa de renda da Região Administrativa V – Sobradinho
Fonte: IBGE, 2000. Elaborado por Rafael Catão e Raquel Arruda.
N
Projeto Cartográfico por: Rafael de Castro Catão Raquel C. de Arruda
CLASSES DE RENDA - SOBRADINHO I
Classes de Renda
0 - 5
5 - 7
7 - 9
9 - 11
11 - 17.12
Quadras
Legenda
Salários Mínimos - S.M
S.M
S.M
S.M
S.M
S.M
Fonte: IBGE - Censo 2000
Quilômetros0.6 0 0.6 1.2
Renda média mensal por chefe de família - setor censitário do IBGE - 2000
Q 1
Q 3
Q 5
Q 7
Q 9
Q 10
Q 8
Q 6
Q 4
Q 2
Q Central
Q 12
Q 11
Q 13
Q 15Q 17
Q 16
Q 14
Q 18
Figura 4 – Mapa de renda de Sobradinho I
Fonte: IBGE, 2000. Elaborado por Rafael Catão e Raquel Arruda.
Denomino para este trabalho Sobradinho I como a localidade correspondente à área
mais antiga da Região Administrativa V. Essa localidade apresenta variações (de renda e de
modo de transporte) que permitem a verificação das relações entre o transporte coletivo e o
processo de segregação socioespacial entre Sobradinho I e o Plano Piloto. Sobradinho I é
composto por 19 quadras: quadras residenciais de 1 à 18, mais a quadra central de
comércio e serviços. As quadras pares apresentam moradores com maior nível de renda
enquanto as ímpares, os de menor renda (figura 4). Há forte concentração de
equipamentos urbanos nas quadras centrais (figura 5), o que aponta para um processo de
especulação imobiliária e elevação dos preços nesta área, que vem a ser a principal da
cidade.
Todavia, o mais importante a se destacar é que mesmo com o aumento de
equipamentos urbanos a partir de 1980 nas regiões administrativas periféricas mais
consolidadas (FERREIRA et al., 2005, p. 75) ainda é expressivo o desequilíbrio na alocação
de equipamentos urbanos entre Sobradinho e o Plano Piloto (figuras 5 e 6). Percebe-se
uma grande diferença na concentração de equipamentos educacionais (colégios,
faculdades, cursinhos) que gera um volumoso deslocamento entre a periferia e o centro.
Equipamentos de Educação
Segurança Pública
Legenda
$ Teatro
$ Ginásio
$ Estádio
Clube
$ Biblioteca
Equipamentos Culturais
# Escolas
× Hospital Regional
× Centro de Saude
Equipamentos de Saúde
% Polícia Militar
% Bombeiro
% Polícia Cívil
N
Projeto Cartográfico por: Rafael de Castro Catão Raquel C. de Arruda
EQUIPAMENTOS URBANOS - SOBRADINHO I
Fonte: SEDUH
Quilômetros
%%
$
$$ $
$
$$
$
$
#
#
#
#
#
#
#
#
#
#
#
#
#
#
#
#
#
#
#
# #
#
#
#
#
#
##
#
#
#
#
#
#
#
#
#
#
×
×
×
%%
Q 1
Q 3
Q 5
Q 7
Q 9
Q 10
Q 8
Q 6
Q 4
Q 2
Q Central
Q 12
Q 11
Q 13
Q 15Q 17
Q 16
Q 14
Q 18
Área Especial para as In
dústria
0.4 0 0.4 0.8
$
Figura 5 – Equipamentos urbanos em Sobradinho I
Fonte: SEDUH, 2000. Elaborado por Rafael Catão e Raquel Arruda.
Figura 6 – Equipamentos urbanos no Plano Piloto
Fonte: SEDUH, 2000. Elaborado por Rafael Catão e Raquel Arruda.
Há desequilíbrio também na alocação dos equipamentos de saúde (hospitais e
postos de saúde) e de lazer (figuras 5 e 6). Enquanto o Plano Piloto concentra uma
„infinidade‟ de hospitais particulares e públicos, Sobradinho I possui um hospital público e
pouquíssimas opções de clínicas particulares.
Quanto ao lazer, Sobradinho I conta com um pequeno cinema recém inaugurado,
além de um teatro que pouco apresenta espetáculos ao passo que no Plano Piloto há muita
diversidade de cinemas e teatros. Os empregos apresentam também grande concentração
no Plano Piloto cerca de 70%.
Constata-se, então, uma grande dependência de Sobradinho I em relação ao Plano
Piloto uma vez que nesse centro localizam-se as principais atividades citadinas: trabalho,
educação, serviços e lazer. O acesso ao centro torna-se viável pelos meios de transporte
motorizados, pois “[à] medida que a extensão territorial desse espaço se amplia e parte dos
equipamentos coletivos ainda permanece centralizada, faz-se necessário o deslocamento
por meio de transporte motorizado” (PEREIRA, 2006, p. 61), no caso, Sobradinho I com uma
distância de 25 quilômetros do Plano Piloto. As formas motorizadas de transporte
predominantes são o automóvel e o transporte coletivo (ônibus), o primeiro utilizado na sua
maioria pela população de alta renda e o segundo pela população de baixa renda
(VASCONCELLOS, 2000). Essa divisão com relação ao uso do transporte motorizado gera
distintas acessibilidades com conseqüências diretas na forma de apropriação da cidade,
“[portanto], a melhor comparação de acessibilidade é aquela entre ônibus e o automóvel”
(VASCONCELLOS, 2000, p. 28).
O transporte coletivo de Sobradinho I é feito pelas concessionárias Viplan, Viva
Brasília e São José, que oferecem o transporte coletivo na localidade. A Viplan tem a
concessão da linha de Sobradinho I desde a criação da localidade urbana, já a Viva Brasília
e a São José começaram a atuar no final da década de 1980. Apesar do tempo de
prestação de serviços a essa localidade, a qualidade de atendimento à população não se
alterou: superlotação, concentração da oferta de ônibus nas horas de pico, alta velocidade
na condução do veículo, funcionários mal treinados e pouco habilitados para o atendimento
ao público, veículos desconfortáveis e muito antigos, além, é claro, de altas tarifas. Essa
caracterização denota a forte presença do mercado na orientação do fornecimento do
transporte coletivo paralelamente à presença tímida do poder público na regulação do
serviço. Simultaneamente a essa realidade, os automóveis apresentam crescimento
vertiginoso da sua frota que ao contrário do coletivo, soma flexibilidade, segurança, conforto
e praticidade, além de uma constante ampliação e abertura de pistas, viadutos e
estacionamentos acompanhados da inexistência de regulação de seu uso. Assim, há um
grande incentivo ao uso do automóvel tanto pela baixa qualidade de serviço do transporte
coletivo quanto pelas facilidades produzidas no sistema de circulação da cidade pelo
Estado.
Desse modo, presencia-se o “avanço político e crescimento da importância do
mercado sobre a gestão pública”, na medida em que ocorrem distintas acessibilidades que
intensificam “processos de segregação espacial e desigualdade social no acesso e consumo
das oportunidades urbanas” (ZIONI, 2005, p. 500).
Com vistas ao entendimento das relações entre a segregação socioespacial e a
apropriação da cidade na sua totalidade, é que se aplicou um questionário para averiguação
da acessibilidade dos moradores de Sobradinho I aos equipamentos urbanos localizados no
Centro (Plano Piloto) por meio do transporte coletivo. Ao todo, foram aplicados 35
questionários, distribuídos conforme Tabela 1 à pessoas que se encontravam em paradas
de ônibus no sentido Sobradinho I -Plano Piloto:
Tabela 1 - Número e locais dos questionários aplicados
QUADRA
QUESTIONÁRIOS
APLICADOS
Q. 1 8
Q. 3 8
Q. 5 4
Q. 7 8
Q. 10 4
Q. 11 3
Fonte: Pesquisa de Campo
As perguntas envolveram os principais motivos de viagem: trabalho, educação,
saúde e lazer. O questionário seguiu a seguinte estrutura:
1. Trabalho: local/modo de transporte - por que o coletivo ou o automóvel?
2. Educação: local/modo de transporte – por que o coletivo ou o automóvel?
3. Saúde: local/modo de transporte - por que o coletivo ou o automóvel?
4. Lazer:
4.a.cinema: local/modo de transporte - por que o coletivo ou o automóvel?
4.b.clube: local/modo de transporte - por que o coletivo ou o automóvel?
4.c.teatro: local/modo de transporte - por que o coletivo ou o automóvel?
Considerando-se os principais deslocamentos e atividades6, obteve-se o como resultado no
Gráfico 1, na próxima pagina.
O gráfico mostra o predomínio do automóvel e do transporte coletivo nos
deslocamentos, o que confirma a dependência ao transporte motorizado para a transposição
das grandes distâncias a serem percorridas para se alcançar os destinos desejados. Nota-
se a grande concentração de atividades desenvolvidas no Plano Piloto em comparação
aquelas em Sobradinho I. Tal situação evidencia a dependência de Sobradinho I com
relação aos empregos e aos equipamentos urbanos de educação, saúde e lazer do Plano
Piloto.
Ao se considerar como destino o Plano Piloto, as atividades trabalho, saúde e
cinema são realizadas em maior porcentagem por meio do transporte coletivo, enquanto
atividades de lazer referentes ao teatro e ao clube se realizam predominantemente pelo
modo motorizado individual. Questionou-se os entrevistados quanto à razão no uso dos
6 Todos os valores referentes à educação são de estudantes universitários.
modos motorizados nas atividades principais e, chegou-se ao seguinte resultado, seguindo
as tabelas de 3 a 7 nas próximas páginas.
Destinos, Atividades e Modos
0
10
20
30
40
50
60
70
Colet ivo Aut omovél Carona Clandest ino Colet ivo Carona Aut omovél à pé
Plano Pilot o Plano Pilot o Plano Pilot o Plano Pilot o Sobradinho Sobradinho Sobradinho Sobradinho
% Trabalho
% Est udo
% Saúde
% Cinema
% Clube
% Teat ro
Gráfico 1 – Destinos, atividades e modos de transportes
Fonte: Pesquisa de Campo
Tabela 2 – Deslocamento por meio de ônibus por motivo de Trabalho
Por que utilizo esse modo de transporte para trabalhar no Plano Piloto?
Única opção Custo menor
81% 19%
Fonte: Pesquisa de Campo
Tabela 3 – Deslocamento por meio de ônibus por motivo de Educação
Por que utilizo esse modo de transporte para estudar no Plano Piloto?
Razões %
Não tem carro 33,3
Menor custo 55,6
Outros 11,1
Total 100
Fonte: Pesquisa de Campo
Tabela 4 – Deslocamento por meio de ônibus por motivo de saúde
Por que utilizo esse modo de transporte para freqüentar o hospital no Plano Piloto?
Coletivo
Respostas Porcentagem
Não tem carro/ Única opção 50
Próximo à parada 18,75
Mais Barato vir de ônibus 6,25
Sub-Total 75
Automóvel
Mais fácil, horário flexível 6,25
Praticidade 6,25
Emergência 12,5
Sub-total 25
Total 100
Fonte: Pesquisa de Campo
Tabela 5 – Deslocamento por meio de ônibus por motivo de Lazer – Cinema
Fonte: Pesquisa de Campo
Tabela 6 – Deslocamento por meio de ônibus por motivo de Lazer – Clube
Por que utilizo esse modo de transporte para freqüentar o clube no Plano Piloto?
Respostas Porcentagem
Coletivo - 0
Automóvel/Carona
Mais cômodo 11,11
Não tem ônibus direto para os clubes do Plano Piloto 77,78
Não possui carro 11,11
Total 100
Fonte: Pesquisa de Campo
Por que utilizo esse modo de transporte para freqüentar o cinema no Plano Piloto?
Coletivo
Respostas Porcentagem
Não tem carro 34,78
Mais barato 8,70
Ônibus para na porta 4,35
Maior diversidade no Plano Piloto 4,35
Sobradinho não tem opção 4,35
Sub-total 56,52
Automóvel/Carona
Mais rápido, Prático e confortável 21,74
Ônibus com pouca freqüência ou não tem ônibus a noite 17,39
Porque tenho carona 4,35
Sub-total 43,48
Total 100
Tabela 7 – Deslocamento por meio de ônibus por motivo de Lazer – Teatro
Por que utilizo esse modo de transporte para freqüentar o teatro no Plano Piloto?
Respostas Porcentagem
Coletivo Não tem carro 28,57
Automóvel/Carona
Mais rápido e aproveita melhor o tempo 14,29
Alguns não são acessíveis via ônibus 28,57
Teatro não funciona em Sobradinho 28,57
Total 100
Fonte: Pesquisa de Campo
Há uma maior freqüência de justificativas para o uso do coletivo como “não tenho
carro” ou “única opção” que contraria a possibilidade de „escolha‟ pela qualidade do
transporte coletivo e demonstra o uso desse modo de transporte como única alternativa
(Tabelas 2 a 7). As respostas indicam baixa atratividade ao modo coletivo como reflexo de
uma baixa qualidade do serviço. Caso esses indivíduos apresentem outras opções de
transporte, possivelmente abandonarão o coletivo. Outro ponto a se destacar é a presença
constante de carona para a efetivação das atividades como maneira de suprir às
deficiências do coletivo (Tabelas 5 a 7 e Gráfico 1).
Uma das respostas que ressaltam aspectos positivos no uso do transporte coletivo
com maior freqüência é “custo menor”, porém, nenhuma delas aponta uma preferência ao
coletivo pela sua qualidade ou oferta, mas sim pelo gasto. A proximidade das paradas ao
destino desejado das pessoas também apresentou destaque, o que ocorreu no caso dos
hospitais e dos cinemas. Essa proximidade representa redução drástica das distâncias a
serem percorridas até o destino final que facilita a acessibilidade ao local desejado. Esse
aspecto aponta a articulação entre a organização do sistema de circulação e a localização
das atividades como um conjunto de fatores que possibilitam a acessibilidade dos indivíduos
à cidade.
Quanto às respostas sobre a acessibilidade a cinemas e teatros (Tabelas 5 e 7), as
respostas foram: “maior diversidade no Plano Piloto”, “Sobradinho não tem opção” e, “teatro
não funciona em Sobradinho” indicando alta carência de Sobradinho I na área de lazer.
Essa carência gera o deslocamento ao Plano Piloto com forte restrição ao acesso a esses
equipamentos por parte da população dependente do coletivo uma vez que aqueles que não
tiverem acesso ao carro ou à carona poderão não realizar tal atividade: 17,9% dos
entrevistados declararam não utilizar o ônibus para ir ao cinema porque o “ônibus possui
baixa freqüência ou não passa à noite” e, 28,57% para freqüentar o teatro porque “alguns
não são acessíveis via ônibus” (Tabelas 5 e 7).
O acesso aos clubes, que se situam no Plano Piloto, é ainda mais restritivo para o
usuário do transporte coletivo: “Não tem ônibus direto para os clubes do Plano Piloto”
(Tabela 6). A declaração dos entrevistados evidencia que a ausência do modo coletivo
impede a concretização da atividade de lazer no clube, só viabilizada por meio do automóvel
(Tabela 6). Não houve declaração sobre a ausência de transporte coletivo para o exercício
do trabalho, ou seja, há disponibilidade de transporte para esta atividade. O mesmo não
acontece para as atividades de lazer, educação e saúde. Isto é, o indivíduo é tolerado no
Plano Piloto enquanto trabalhador, mas não como cidadão que desfruta de uma estrutura
que ele também contribui na construção.
A pesquisa permite constatar que existe uma grande dependência da população de
Sobradinho I aos equipamentos do Plano Piloto. As respostas confirmam a necessidade do
deslocamento por transporte motorizado com predominância em dois modos: automóvel ou
transporte coletivo. Fica clara a insatisfação das pessoas com relação ao transporte coletivo
devido às respostas recorrentes de “não tenho carro” ou ser este a “única opção”. Percebe-
se ainda a quantidade de atividades viabilizadas pela carona que ocorre pelo modo
motorizado individual como possível „manobra‟ para driblar às restrições impostas pelo
coletivo que não oferece condições de acessibilidade à cidade na sua totalidade. Torna-se
claro, por meio das respostas, que há diferenciações na apropriação da cidade de acordo
com o modo de transporte utilizado.
Dessa maneira, percebe-se o reforço da segregação socioespacial para a população
dependente do transporte coletivo na medida em que a apropriação da cidade é parcial.
Mesmo para aqueles que se utilizam da carona como estratégia de apropriação, esta se faz
de maneira precária e deficitária, uma vez que a carona não oferece autonomia ao indivíduo
quanto à hora e local para aonde prefere se dirigir, dependendo sempre do outro para se
deslocar. Nesse caso então, o papel do transporte coletivo que é o de articular, acaba por
restringir o acesso da população, na medida em que não oferece condições de acesso à
cidade e às oportunidades que ela possui.
Quem tem carro apresenta sua acessibilidade garantida ao Plano Piloto ao contrário
daqueles que dependem do coletivo, já que possuem restrições de destinos determinados
pelo itinerário das empresas e não de acordo com suas necessidades cotidianas, como no
caso do teatro e do clube e até do cinema nos horários noturnos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O transporte público que deveria atender aos interesses sociais se orienta pelos
anseios do mercado e se configura, assim, como transporte coletivo privatizado, um
instrumento, que dentro da lógica capitalista de produção do espaço urbano contribui para o
reforço das desigualdades socioespaciais: de facilitador do acesso, o transporte passa a ser
o de controlador do acesso à cidade, reforçando a seletividade do espaço urbano na medida
em que limita uma plena apropriação da cidade. Ao contrário, isto não ocorre com o
indivíduo de maior renda que possui sua mobilidade garantida pelo acesso ao transporte
motorizado individual.
Como Brasília nasceu de uma concepção urbanístico-rodoviária que privilegiava
abertamente o automóvel visto como mais um componente da família (COSTA apud HENRY
et al., 2003), o transporte coletivo sempre ocupou segundo plano no planejamento da
cidade. Ao passo que as localidades urbanas eram criadas a longas distâncias do Plano
Piloto criou-se grande dependência do transporte motorizado. De um lado, o automóvel, de
outro o transporte coletivo. A lógica do mercado foi pouco a pouco sendo absorvida pelo
transporte coletivo. Essa absorção aconteceu com a conivência do poder público que deu às
empresas privadas bastante autonomia na prestação do serviço. O transporte individual
permanece como centro das atenções no transporte urbano de Brasília haja vista as
constantes ampliações das vias de circulação e o descaso na regulamentação do coletivo
pelo poder público, além dos poucos investimentos para sua manutenção com vistas à
melhoria no atendimento ao público.
Verificou-se que a população residente em Sobradinho I desloca-se para o Plano
Piloto principalmente pelos modos motorizados: automóvel e coletivo. Com o automóvel, as
pessoas realizam uma quantidade mais diversificada de atividades, ao contrário do que
ocorre com o uso do transporte coletivo e, principalmente, no que tange às atividades
relacionadas ao lazer, como cinema, clube e teatro. Esta restrição ocorre tanto pela falta da
prestação do serviço nos horários noturnos quanto pela indisponibilidade de linhas para
alguns percursos, o que leva parte da população a depender de carona como estratégia de
superação das ausências e deficiências do serviço prestado pelo ônibus.
Aclara-se assim, a existência de relação entre o transporte coletivo e o processo de
segregação socioespacial em Sobradinho I e, que poderia ser minimizada através de
planejamento com compromisso entre os atores públicos e privados, uma vez que posta em
prática, a função do transporte pode romper o círculo vicioso de pobreza da população de
baixa renda, possibilitando a mudança de um quadro de péssima qualidade de vida
expressa na negação de uma melhor educação, saúde, lazer e emprego.
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