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Vitória, 22 a 25 de julho de 2012
Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural
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A VIDA NO MANGUEZAL, ALTERNATIVA INTEGRADA À LAMA VIVA.
MANGROVE LIFE, MUD LIFE.
Grupo de Pesquisa: Agropecuária, Meio-Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.
Maviael Fonsêca de Castro (PPGExR/UFSM e IPA)
Vivien Diesel (PPGExR/UFSM)
José Marcos Froehlich (PPGExR/UFSM)
RESUMO
O homem rural das políticas públicas brasileiras foi percebido preponderantemente como
agente econômico e, quando diferenciado, foi por sua condição econômica (pequeno,
médio ou grande produtor).. Iniciativas recentes indicam que alguns setores reivindicam a
utilização de novos referenciais teóricos para representação do homem rural; no intuito de
considerar-se a dimensão sociocultural, com perspectivas de etnodesenvolvimento. O
presente trabalho inscreve-se no esforço maior de avaliar os desafios colocados às políticas
de desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais mediante uma
aproximação à realidade dos “povos do mangue” no litoral sul de Pernambuco, município
de Rio Formoso. Num primeiro momento apresenta-se uma breve revisão sobre os povos e
comunidades tradicionais. Após a breve revisão, realiza-se a aproximação à realidade dos
“povos do mangue” no litoral sul de Pernambuco, município de Rio Formoso para, então,
discutir questões relativas a aplicabilidade das políticas públicas.
Palavras-chaves: Povos-do-Mangue, pesca artesanal, modos de vida, reciprocidade,
Pernambuco.
ABSTRACT
The agricultural man of the Brazilian public politics traditionally was perceived as
economic agent and, when differentiated, was for its economic condition (small, average or
large producer). Recent initiatives indicate that some sectors demand the use of new
theoretical approaches for representation of the agricultural man; in intention to consider it
cultural dimension in developmental strategies. The present work is oriented to evaluate
the challenges placed to the politics of traditional peoples and communities sustainable
development by means of an approach to the reality of the “peoples of the mangrove” at
Rio Formoso city, in the south Pernambuco coast, Brazil. One brief revision on the
traditional peoples and communities are presented, reality of the “peoples of the
mangrove” is described and then, questions about the applicability of the sustainable
development public policies are proposed.
Key Words: People of the Mangroves, artisanal fisheries, livelihoods, reciprocity,
Pernambuco.
1. INTRODUÇÃO
O Brasil é um país que se destaca internacionalmente por sua extensão territorial e
riqueza de recursos naturais, condições essas que lhe assegurariam perspectivas
promissoras de desenvolvimento.
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Em busca do desenvolvimento, o Estado brasileiro vem mantendo uma postura
intervencionista através da formulação e implementação de políticas públicas –
relativamente adequadas às variantes conjunturas sociais, políticas e econômicas.
Uma observação retrospectiva sobre a intervenção do Estado brasileiro no meio rural
revela que as políticas públicas de desenvolvimento se intensificaram após a década de
1950 orientando-se a promover o crescimento econômico pela via da modernização
tecnológica dos processos de produção agrícola e agroindustrial e articulação com
demandas de exportação e do setor urbano- industrial (GONÇALVES NETO, 1997).
Apesar da adequação das políticas públicas para o desenvolvimento rural às variantes
conjunturas sociais, políticas e econômicas constata-se que essas utilizaram-se de um
estereótipo simplificado de homem rural. O homem rural das políticas públicas brasileiras
foi percebido preponderantemente como agente econômico e, quando diferenciado, foi por
sua condição econômica (pequeno, médio ou grande produtor) 1
ou, mais recentemente,
pela lógica de gestão da unidade produtiva (base da distinção da agricultura familiar e
empresarial)2.
Iniciativas recentes indicam que alguns setores reivindicam a utilização de novos
referenciais teóricos para representação do homem rural no âmbito da formulação de
políticas públicas. Trata-se da reivindicação de considerar-se a dimensão sociocultural e, a
partir disso, realizar uma releitura das realidades e dinâmicas sociais e econômicas rurais
com vistas a favorecer processos de etnodesenvolvimento.
Little (2002), por exemplo, argumenta da necessidade de avançar na construção de uma
“antropologia da territorialidade” uma vez que observa que coexistem, no Brasil, territórios
sociais cujos regimes de propriedade fundiária são baseados em leis consuetudinárias que,
todavia, não são reconhecidos legalmente pelo Estado. A utilização dessa perspectiva
permite perceber o homem rural como gerador de cultura própria e também a origem
cultural de conflitos sociais no campo – sobretudo aqueles relacionados a ação de um
agente externo que não respeita esses direitos consuetudinários sobre o acesso a terra e
outros recursos.3
Uma retrospectiva histórica evidencia que a magnitude dos conflitos territoriais
explica a busca de soluções legais pela demarcação das terras indígenas, de remanescentes
de quilombos e criação de reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentável
(LITTLE, 2002, CREADO et al., 2012). Compreende-se que além de constituírem
respostas aos conflitos resultantes da resistência dos afetados, muitos avanços políticos
observados recentemente no Brasil relacionam-se com normativas previstas em acordos
internacionais – os quais tem buscado assegurar a diversidade cultural.4 È nesse contexto
que, em 2007, apresenta-se um decreto lei preconizando a adequação das políticas públicas
1 Cabe acrescentar, com base em Neves (1987), a importância - para a atuação dos serviços de extensão rural - das
representações sociológicas do homem rural construídas pela teoria da modernização - baseadas no antagonismo
tradicional x moderno. 2 Referimo-nos aqui aos critérios de diferenciação de tipos sociais utilizados no relatório INCRA/FAO, de 1996, que
constituiu importante subsídio para discussão da condição da agricultura familiar no Brasil. 3 Relatório recente CPT mostra a indesejável atualidade e magnitude desse tipo de conflito no Brasil (CPT, 2011). 4Segundo Little (2002, p.21) “No nível internacional, nas últimas duas décadas, preocupação pelo respeito por parte dos
Estados-nação aos direitos diferenciados dos povos indígenas e/ou tradicionais cresceu de forma acelerada, notavelmente
em referência a questões fundiárias e territoriais. Um dos instrumentos mais importantes nesse campo é a Convenção 169
da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre “Povos indígenas e tribais em países independentes”, de 1989, que
estabelece no Artigo II, que os governos têm a responsabilidade de “proteger os direitos desses povos e garantir o
respeito à sua integridade”. Para uma identificação do conjunto de medidas referentes aos direitos dos povos e
comunidades tradicionais no Brasil ver Shiraishi Neto (2007).
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de desenvolvimento às especificidades socioculturais dos beneficiários quando esses são
“povos ou comunidades tradicionais” (Decreto Lei 6040 de 07/02/2007 que instituiu a
Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais)5.
Do exposto percebe-se a emergência de uma nova conjuntura, que se distingue por um
conjunto de políticas públicas para o desenvolvimento rural que – para sua operação –
requer uma revisão na forma como convencionalmente se percebe o homem rural. Tal
perspectiva se aplicaria às políticas orientadas aos “povos e comunidades tradicionais” e
sua aplicação cria novos desafios, pois embora a diversidade do Brasil seja
reconhecidamente grande, não se dispõe de marco referencial consensual para a realização
de releituras que considerem adequadamente a dimensão sociocultural e, portanto, não se
conhece sistematicamente a diversidade sociocultural rural brasileira. Vive-se, então, um
contexto caracterizado pela necessidade de redescobrir o homem rural e, sobretudo, avaliar
a viabilidade da aplicação das novas políticas orientadas ao “desenvolvimento sustentável
dos povos e comunidades tradicionais”.
O presente trabalho inscreve-se no esforço maior de avaliar os desafios colocados às
políticas de desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais mediante
uma aproximação à realidade dos “povos do mangue” no litoral sul de Pernambuco,
município de Rio Formoso. Num primeiro momento apresenta-se uma breve revisão sobre
os povos e comunidades tradicionais. Após a breve revisão, realiza-se a aproximação à
realidade dos “povos do mangue” no litoral sul de Pernambuco, município de Rio Formoso
para, então, discutir questões relativas a aplicabilidade das políticas públicas.
2 POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E POVOS DO MANGUE
2.1 Povos e comunidades tradicionais
Diversos autores reconhecem que certos termos são melhor compreendidos se for
considerado seu uso político. Sob essa perspectiva os termos “povos e comunidades
tradicionais” podem ser compreendidos considerando-se a dinâmica de reconhecimento
político da diversidade cultural no Brasil.
Considera-se que um primeiro passo no reconhecimento político da diversidade
étnica se fez com reconhecimento dos indígenas. A diversidade entre os povos indígenas
brasileiros é muito acentuada, não obstante foram agrupados legalmente sob uma categoria
genérica. Segundo Little (2002, p.13)
“Terras indígenas” é uma categoria jurídica que originalmente foi estabelecida pelo
Estado brasileiro para lidar com povos indígenas dentro do marco da tutela. De todos
os povos tradicionais, os povos indígenas foram os primeiros a obter o
reconhecimento de suas diferenças étnicas e territoriais, mesmo que tal
reconhecimento tenha sido efetivado por meio de processos que, em muitos casos,
5 O respeito e a valorização da diversidade cultural como principio básico de cidadania esta garantido pela constituição
brasileira de 1988, e reforçado por meio da EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 48, DE 10 DE AGOSTO DE 2005, que
acrescenta o § 3º ao art. 215 da Constituição Federal, instituindo o Plano Nacional de Cultura; de duração plurianual, que
visa ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: I - defesa e
valorização do patrimônio cultural brasileiro; II - produção, promoção e difusão de bens culturais; III - formação de
pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; IV - democratização do acesso aos bens de
cultura; E finalmente..., V - valorização da diversidade étnica e regional (NR).
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prejudicaram seus direitos. Durante os 57 anos de existência (1910-1967) do Serviço
de Proteção dos Índios (SPI), 54 áreas indígenas foram demarcadas, a maioria delas de
pequeno tamanho e dentro de uma política em que cada terra era “muito menos uma
reserva territorial do que uma reserva de mão-de-obra”.
Um segundo grupo foi reconhecido como culturalmente diferenciado por ocasião da
elaboração da Constituição Federal de 1988 e foi denominado de remanescentes de
quilombos.
Com o surgimento de uma consciência negra, como parte de um processo maior de
organização política a partir da década de 1980, os quilombos rapidamente passaram a
gozar de uma nova visibilidade política − que também se refletiu no crescente
interesse pelos antropólogos. À formação de associações regionais, tais como a
Associação de Moradores das Comunidades Rumo-Flexal no Maranhão (1985) e a
Associação de Comunidades de Remanescentes de Quilombos do Município do
Oriximiná no Pará (1990), e à realização de eventos regionais, tais como o I Encontro
de Comunidades Negras Rurais no Maranhão (1986) e o I Encontro de Raízes Negras
no Pará (1988), seguiram-se eventos de ordem nacional, como o II Seminário
Nacional Sobre Sítios Históricos e Monumentos Negros em Goiás (1992) e o I
Seminário Nacional de Comunidades Remanescentes de Quilombos (1994),
culminando com os festejos, em todo o país, em 1995, do 300° aniversário da morte de
Zumbi dos Palmares.
Em meio a esse processo, a categoria de “remanescentes das comunidades dos
quilombos” ganhou reconhecimento formal por parte do Estado na Constituição de
1988. (LITTLE, 2002, p.14).
A partir do reconhecimento desses direitos inicia-se, conforme relata Chagas
(2001), uma significativa discussão acadêmica e jurídica em torno da identificação dos
titulares desses direitos pois que as condições históricas dos grupos sociais que reivindicam
esses direitos muitas vezes não correspondem aos estereótipos que embasam os preceitos
legais.
A partir de meados dos anos 2000 o termo “povos tradicionais” passa a assumir
maior peso político. Conforme Little (2002, p.22-23) trata-se de um termo que teve uma
história de utilização muito diversa:
No contexto das fronteiras em expansão, o conceito surgiu para englobar um conjunto
de grupos sociais que defendem seus respectivos territórios frente à usurpação por
parte do Estado-nação e outros grupos sociais vinculados a este. Num contexto
ambientalista, o conceito surgiu a partir da necessidade dos preservacionistas em lidar
com todos os grupos sociais residentes ou usuários das unidades de conservação de
proteção integral, entendidos aqui como obstáculos para a implementação plena das
metas dessas unidades. Noutro contexto ambientalista, o conceito dos povos
tradicionais serviu como forma de aproximação entre socioambientalistas e os
distintos grupos que historicamente mostraram ter formas sustentáveis de exploração
dos recursos naturais, assim gerando formas de co-gestão de território. Finalmente, o
conceito surgiu no contexto dos debates sobre autonomia territorial, exemplificado
pela Convenção 169 da OIT, onde cumpriu uma função central nos debates nacionais
em torno do respeito aos direitos dos povos.
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Entende-se que os termos “povos e comunidades tradicionais” se consagrarão com
o Decreto Lei n.6040 - Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais. Esse se refere às comunidades tradicionais, definindo-lhe uma
série de atributos característicos:
As comunidades tradicionais são grupos culturalmente diferenciados e que se
reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que
ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução
cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações
e práticas gerados e transmitidos pela tradição (DECRETO Nº 6.040, DE 7 DE
FEVEREIRO DE 2007).
Creado et al (2012) apresentam informações que contribuem para o entendimento
dos termos adotados no Decreto Lei 6.040:
O então secretário de Desenvolvimento Sustentável do Ministério do Meio Ambiente
(SDS-MMA) Gilney Viana, afirmou que o processo de elaboração dessa política
pública teve como alguns de seus resultados: (1) uma diversidade sócio-cultural
pronunciada; e (2) uma amplitude territorial imprevista.
Diante dessa proliferação de identidades, optou-se por uma abertura relativa aos
processos de auto-identificação, reconhecidos em outras leis e dispositivos, como o
decreto 4.887 sobre os quilombolas e a Convenção 169 da Organização Internacional
do Trabalho (OIT). Uma abertura relativa, pois, como afirmou o secretário: (1) deveria
respeitar‚ um limite de razoabilidade, como a inserção mínima nas relações de
mercado e um tipo de relação com o território, baseada em certa estabilidade de
permanência; e (2) a definição das populações tradicionais não poderia ser ampla em
demasia para não criar uma clientela muito grande para o governo.
Por fim, os termos povos e comunidades tradicionais assumiram caráter abrangente,
passando a incluir também os indígenas e quilombolas (CREADO et al, 2012).6 Assim, a
denominação de “povos e comunidades tradicionais” abriga grupos muito diversos, como
adverte Little (2002, p.2):
De uma perspectiva etnográfica, por exemplo, as diferenças entre as sociedades
indígenas, os quilombos, os caboclos, os caiçaras e outros grupos ditos tradicionais –
além da heterogeneidade interna de cada uma dessas categorias – são tão grandes que
não parece viável tratá-los dentro de uma mesma classificação.
Mesmo reconhecendo essa diversidade, para Little (2002) utilizar o termo “povos
tradicionais” tem sentido na medida em que esses apresentam semelhança quanto aos
processos de territorialização:
Acredito que os três elementos analisados dentro do que foi chamado aqui a razão histórica −
regime de propriedade comum, sentido de pertencimento a um lugar específico e profundidade
histórica da ocupação guardada na memória coletiva − mostram semelhanças importantes
6 Conforme Santili (2004 apud Creado et al. 2012) “Trata-se de uma meta-categoria, na qual as de quilombolas e a de
índios vêm cada vez mais sendo inseridas” .
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quando vistos da ótica do Estado brasileiro e sua divisão entre terras privadas e terras públicas.
(LITTLE, 2002, p.22 )
Num contexto de grande diversidade, uma maior aproximação às características de um
grupo social determinado requer previa consideração de sua especificidade.
Denominações identitárias mais restritivas podem ser acessadas para esse fim.
2.2 História e especificidades das populações costeiras do litoral nordestino
Desde a colonização, o povoamento do território brasileiro se deu fortemente nas áreas
costeiras; a priori pelo próprio processo de desbravamento do continente, mas
posteriormente como estratégia efetiva de domínio e defesa territorial. Boa parte da
população costeira; possivelmente a maioria do ponto de vista de acumulação de capital
cultural, vincula-se às antigas vilas - formadas ainda no processo de colonização. Estas
foram compostas por índicos brasileiros, europeus e africanos. Dessa miscigenação,
algumas mais ou menos acentuadas, se formaram as tais vilas de pescadores, que no início
do século XX foram inseridas, ou organizadas, em colônias de pescadores, mais como uma
forma política e militar de controle e defesa do território, do que de fato como uma
tentativa de organização e/ou representação de categoria ou modo de vida.
No ano de 1919, o comandante da Marinha, Frederico Villar, fez uma viagem ao
longo da costa brasileira, começando por Belém do Pará, com a finalidade de fundar
colônias de pescadores, com função de defender a costa nacional e industrialização da
pesca e da exportação do peixe, as colônias nestes períodos são consideradas “viveiros
da marinha”. Até o fim de 1920 já estavam fundadas colônias em toda Costa, de cima
para baixo, sem a participação dos pescadores (FIGUEIREDO, LEITÃO, 2009, p. 2).
Surgiam assim as populações costeiras, conceituadas como:
Comunidades pesqueiras, cultura marítima, comunidades humanas marítimas, gentes
do mar, comunidades tradicionais de pesca, comunidades costeiras ou, simplesmente,
povos do mar, representam, no Brasil, um contingente populacional de
aproximadamente 800 mil pescadores e pescadoras, envolvendo 2 milhões de pessoas
que produzem cerca de 55% da produção pesqueira nacional. (CALLOU, 2010, p.45)
Nota-se uma certa diversidade nos modos de vida das populações costeiras, o que,
para Diegues (1983), está relacionado à forte ligação dessa(s) população(ões) com o
contexto econômico e produtivo regional. Além disso, muitas mudanças ocorreram com a
introdução da pesca empresarial - que seria uma categoria produtiva resultante do capital e
de seu movimento. A emergência da pesca empresarial fez surgir no Brasil – por exclusão-
uma camada ou categoria social: a dos pescadores artesanais, que foi decisiva para a
consolidação do território e da cultura nacional..
Para Callou (2010, p. 45):
Habitantes tradicionais das áreas costeiras, os pescadores artesanais – também
chamados de praieiros, jangadeiros, caiçaras e açorianos, a depender da região onde
habitam e de seus artefatos socioculturais e técnicos, são reconhecidos como
“trabalhadores que se dedicam à” captura de pescado e que exercem as funções de
membros de tripulações dos barcos pesqueiros, executando diversas tarefas de pesca
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de altura – no caso dos pescadores marítimos – ou tarefas específicas da pesca de água
doce e águas costeiras. (CALLOU, 2010, p.45)
Em Pernambuco os pescadores artesanais tem presença significativa:
A Pesca Artesanal representa a maior parcela da produção pesqueira do Estado de
Pernambuco, é caracterizada pelo trabalho familiar e comunitário, utilizando técnicas
e tecnologias tradicionais, quer a pé ou com uso de embarcações, como: jangadas,
canoas, baiteras e barcos motorizados de pequeno porte. As artes de pesca empregadas
nesta modalidade para captura do pescado incluem: coleta manual, vara de pesca,
linha e anzol, tarrafa, redes de cerco, de emalhe, de arrasto e armadilhas, com fins
comerciais e/ou de subsistência (LIRA, 2010, p.16).
Do exposto observa-se que se mantiveram comunidades na costa brasileira ao longo
de, pelo menos, quatro séculos potencializando que, ao longo do tempo, se constituísse
uma identidade socioambiental especifica, agregando conhecimentos (antigos e novos) de
pelo menos três etnias: indígena (genuinamente brasileira), europeia (sobretudo a
portuguesa, mas também a holandesa, espanhola e francesa) e africana. Diegues (1999)
avalia a evolução dos estudos sobre pescadores nas Ciências Sociais - que levou a
configuração de um campo específico a “Antropologia marítima” e, para ele,
Em trabalhos anteriores (Diegues 1983, 1995), diferenciamos sociedade dos
pescadores e sociedade camponesa, apesar de ambas estarem inseridas na pequena
produção mercantil. Nesses trabalhos, foi ressaltado o particularismo da gente do mar,
seu modo de vida específico marcado por práticas sociais e culturais diferenciadas das
camponesas. Essas práticas e modos de vida se constroem em relação a um meio tanto
física quanto socialmente instável e imprevisível. O mar, espaço de vida dos
pescadores marítimos, é marcado pela fluidez das águas e de seus recursos, pela
instabilidade contínua provocada por fatores meteorológicos e oceanográficos, pela
variação e migração das espécies, seus padrões de reprodução, migração, etc. A vida
no mar é também marcada não só por contingências naturais, mas por temores e
medos, acidentes e naufrágios, pela flutuação dos preços e pela extrema perecibilidade
do pescado que, uma vez capturado, deve ser vendido rapidamente, o que obriga o
pescador a acertos particulares de comercialização que, usualmente, lhe são
desfavoráveis. (DIEGUES, 1999, p. 371)
Esses grupos sociais seriam representados predominantemente como “pescadores
artesanais” identificando-se, entretanto, diferenciações conforme contextos em que vivem
mas enfrentam desafios semelhantes no que se refere aos processos de territorialização.
Para Little (2002, p. 18-19)7:
7Em outro momento Little (2002, p.9) expõe: “Entre as comunidades de ribeirinhos da Amazônia e os pescadores
artesanais do litoral, existem formas de apropriação articuladas em função de seus usos, significados e conhecimentos das
águas. No caso desses últimos, o usufruto coletivo de áreas determinadas estendia-se para além da terra para incluir
‘territórios marinhos’. Para esses grupos, a marcação é “um elemento fundamental à apropriação e ao usufruto do mar
pelos pescadores. (...) A familiaridade de cada grupo de pescadores com uma dessas áreas marítimas, cria territórios que
são incorporados à sua tradição. Na mesma medida em que é um recurso ou um espaço de subsistência, o território
encompassa também a noção de lugar mediante a qual os povos marítimos definem e delimitam o mar (...)”
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Os povos tradicionais dedicados à extração de recursos pesqueiros – os ribeirinhos e
os pescadores – confrontam outro conjunto de obstáculos para o reconhecimento
formal de suas áreas de ocupação e uso, uma vez que, em muitos casos, não são
´terras` que estão em questão, mas seções de um rio, de um lago ou do mar, gerando
assim ´terras aquáticas ou marinhas` que não contam com uma legislação adequada
que reconheça as particularidades dessa apropriação.
2.3 “Povos do mangue”
O Brasil possui uma das maiores extensões de manguezais do mundo. O litoral de
Pernambuco, apesar de ser curto, com cerca de 190 km de extensão, possui 14 importantes
zonas estuarinas - onde se produz mais de 60% do pescado estadual (LIRA, 2010) e se gera
alternativa de trabalho e renda para milhares de famílias, que encontram no manguezal e na
plataforma continental fontes importantes de proteína.
O mangue se revela como ambiente de acentuada importância ecológica. 8
Se mostra
muito dinâmico e rico biologicamente em função de sua complexa cadeia trófica e das
influências das marés salinas que conferem características peculiares para a vida nesse
ecossistema. Muitos trabalhos indicam que o mangue funciona como verdadeiro berçário,
pois várias espécies costeiras (peixes, crustáceos, moluscos, quelônios e até alguns
mamíferos marinhos) bem como alguns pássaros e pequenos mamíferos terrestres se
refugiam ali para a sua reprodução, encontrando alimento em abundância e proteção
contra predadores naturais.
Os relatos históricos permitem depreender que ocupação humana da área do mangue
foi paulatina. Os pescadores artesanais estavam ligados, a princípio, ao meio rural, mas as
cidades e metrópoles foram avançando sobre os ambientes costeiros - reprimindo, ou até
mesmo expulsando, as populações que ocupavam historicamente ambientes peculiares
como baias, enseadas e praias. Uma parcela dessa população refugiou-se em áreas de
acesso mais restrito, próximas a locais que ainda não haviam despertado o interesse
imobiliário, ou ainda dentro de reservas legais e de proteção ambiental, como as áreas de
manguezais, o que lhes permitiu manter seu modo de vida.
Conforme reconhece Souto (2007) no Brasil a captura do caranguejo (Ucides
cordatus) é uma das atividades mais antigas e, acrescentaríamos, características, dos
manguezais. Realizando levantamento etnoecológico em área de manguezal nas
proximidades de Santo Amaro (Bahia), o autor identificou que os pescadores apresentam
apurado conhecimento sobre interações tróficas nas cadeias alimentares e do ciclo de vida
do caranguejo planejando estratégias de captura a partir desses e de seu conhecimento
sobre características e preferências do mercado local. Embora a extração do caranguejo
seja uma das atividades mais características do manguezal, os modos de vida daqueles que
residem ali podem incluir atividades produtivas das mais diversas, como demonstram
Furtado et al. (2006) em estudos conduzidos no Pará.
8 “Manguezal”: ambiente presente nas zonas costeiras sob a influência das marés, nas regiões intertropicais, formando
uma unidade faunística e florística de muita importância ecológica e socioeconômica (VANNUCCI, 2002, apud
CARNEIRO et al. 2008, p.149). Segundo Canestri e Riuz (1973, apud DA NOBREGA ALVES e KIOHARU NISHIDA,
2002) os manguezais são identificados como uma unidade ecológica da qual dependem dois terços da população
pesqueira do mundo. Constituindo, consequentemente base de sustentação ecológica de uma vasta e diversificada biota, e
de grande importância econômica.
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Apesar de sua importância ecológica e social, no século XX grandes áreas do bioma
manguezal foram devastadas no litoral brasileiro, sobretudo no Nordeste. Aí a expansão
urbana das principais cidades, como: Recife, Salvador e São Luiz, se deu em áreas de
aterro de manguezais. Além disso, esse ambiente tem sido frequentemente tratado como
verdadeiro depósito de esgoto não tratado e lixo doméstico, industrial e hospitalar. Além
disso, houve uma quase total devastação de alguns manguezais nos estados do Rio Grande
do Norte e Ceará em consequência da expansão desgovernada da carcinocultura marinha
empresarial no final dos anos 1990. Esse processo condenou a população local que vivia
de atividades extrativistas no manguezal ao trabalho pesado e mal remunerado nas enormes
fazendas de camarão. No estado de Pernambuco, apesar haver algumas fazendas de
tamanho expressivo, a expansão da carcinocultura de deu de forma mais modesta e tardia,
talvez pelo fato do estado possuir controle ambiental mais rígido para investimentos
privados em áreas de domínio público por meio da ação conjunta da Agência Estadual de
Meio Ambiente (CPRH) e do IBAMA – que, além das duras normas restritivas, mantinha
uma máquina burocrática enferrujada e de difícil acesso nos anos 90 e início dos anos
2000.9 Dessa forma, o empresário capitalista investiu nos estados mais receptivos para a
atividade, como o Ceará e o Rio Grande do Norte, mas também na Bahia e Sergipe. Este
fato; tenha sido ele proposital ou não, acabou evitando a degradação do “modo de vida” de
várias comunidades em manguezais pernambucanos. Entretanto, os diversos estudos de
caso conduzidos em áreas de mangue revelam que nesses ambientes as mudanças sociais
tem sido aceleradas e que se dão no sentido de ameaça aos modos de vida tradicionais (
TEIXEIRA, 2008, RELATORIAS NACIONAIS...., 2008, SOUZA, 2009).
A partir dessas considerações cabe conduzir a proposta avaliação exploratória da
potencialidade das políticas públicas na promoção do desenvolvimento sustentável desses
povos e comunidades tradicionais.
3. METODOLOGIA
O estudo de campo foi conduzido na zona costeira de Pernambuco, que é estreita em se
comparando com outros estados da federação, correspondendo a uma faixa de 187 km de
extensão, mas que, no entanto comporta 44% da população do estado segundo dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e estatística- BGE (2010). Certamente essa concentração
urbana exerce uma pressão sobre o principal bioma encontrado nessa região que é o
manguezal. Apesar de sua estreita extensão litorânea, Pernambuco possui 14 importantes
estuários, dentre eles o estuário do Rio Formoso no litoral Sul.
Na Mata Sul de Pernambuco (entre as coordenadas 8º27’27.11’’S, 34°58’59.25’’O e
8°54’50.31’’S, 35°09’12.41’’O)10
, pode-se identificar cinco importantes áreas estuarinas, a
saber: estuário do rio Maracaípe, estuário do rio Sirinháem, complexo estuarino do Rio
Formoso, estuário do rio Mamucaba e estuário do rio Una e a existência de 16
comunidades que apresentam características de populações costeiras tradicionais: Porto de
9 Recentemente passou por uma renovação de quadro de recursos humanos e implantou novo sistema online para
informações e licenciamentos 10 Segundo dados publicados no Diagnóstico Socioeconômico da Pesca Artesanal do Litoral de Pernambuco (LIRA,
2010), considerando os municípios de Ipojuca, Sirinhaém, Rio Formoso, Tamandaré, Barreiros e São José da Coroa
Grande.
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Galinhas, Salinas, Maracaípe, Serrambri, Agrovila (de Sirinhaém), Barra de Sirinhaém,
Santo Amaro, Vila de Sirinhaém, Vila de Aver o Mar, Rio Formoso, Siqueira (comunidade
quilombola de Rio Formoso), Tamandaré, Barreiros, Várzea do Una, Abreu do Una e São
José da Coroa Grande. Três dessas comunidades encontram-se integradas no complexo do
mangue do Rio Formoso: comunidade quilombola de Rio Formoso e comunidade de Rio
Formoso e Vila de A-ver- o- Mar, (Figura 1).
Nesse estuário em particular, podemos destacar como atividade produtiva característica
a dos catadores de caranguejo. O trabalho se restringe, assim, ao estudo do caso de Rio
Formoso, localizado no litoral Sul e inserido nas APAS de Guadalupe (estadual) e Costa
dos Corais (federal).
Figura 1 – Complexo estuarino do rio Formoso (PE) com localização das comunidades.
Fonte: Esquema gráfico (CASTRO, 2005); foto (Google MAPS).
Do ponto de vida de operacionalização metodológica partiu-se do referencial de estudo
de modo de vida (CHAMBERS, CONWAY, 1992, SCOONES, 1998, 2009). Esta
abordagem foi escolhida por permitir uma primeira asproximação à diversidade social
local. Quando toma-se o modo de vida como ponto de partida para investigação, observa-
se o conjunto de capacidades e os bens (incluindo tanto os recursos materiais e sociais)
acessados para assegurar a subsistência familiar.11
A Figura 2 mostra um esquema gráfico
que sintetiza o referencial do estudo de modos de vida.
11 Chambers e Conway (1991, p.1) definiram o termo “modos de vida sustentáveis” da seguinte forma: A livelihood
comprises people, their capabilities and their means of living, including food, income and assets. Tangible assets are
resources and stores, and intangible assets are claims and access.
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Figura 2: Modo de vida rural sustentável: um quadro para análises
Fonte: Scoones (1998) modificado por Castro (2011).
No estudo dos modos de vida seguimos a opção pela observação participante,
realizando visitas periódicas ao local no período de outubro de 2011 a janeiros de 2012, e
uma travessia nas pricipais comunidades ao longo do manguezal em Rio Formoso. A
observação participante é uma das técnicas mais utilizadas pelos pesquisadores na
abordagem qualitativa e consiste na inserção do pesquisador no interior do grupo
observado, tornando-se parte dele, interagindo por um período com os sujeitos, buscando
partilhar o seu cotidiano para sentir e perceber o que significa estar naquele contexto.
Adicionalmente, realizou-se um levantamento mais sistematico da diversidade social
atraves da realização de uma travessia com realização de entrevistas abertas. O trajeto
percorrido na travessia está representado na Figura 3.
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Figura 3 - Complexo estuarino do rio Formoso (PE) com localização da cidade de Rio Formoso e o
trajeto da travessia nas comunidades da Rua da Lama, Rua do Pescador e Levada.
Foto: Google MAPS.
4. APROXIMAÇÃO AOS MODOS DE VIDA EM RIO FORMOSO
O levantamento dos modos de vida através de travessia e entrevistas abertas se
iniciou na ponte que corta o rio Formoso na PE 60, logo após o trevo de acesso a PE 073,
sob o arco de boas vindas da cidade onde se pode ler: “Bem vindo a Rio Formoso – cidade
dos manguezais”.
Do ponto de vista ecológico, esse é um local de inerente transição entre um
ambiente de água totalmente doce ao ambiente salobro (característico do mangue). Nesse
ponto a água é totalmente doce (0 ppt de salinidade) durantes a maré baixa, e salobra nas
grandes marés altas (preamar) - características dos períodos de lua cheia e nova. A partir
desse ponto – que será considerado como o marco zero – foi feita uma caminhada no
sentido a foz, atravessando localidades, bairros, ruas, vilarejos e povoados que se
formaram nas margens e dentro do manguezal na área urbana e rural do município de Rio
Formoso (percurso ilustrado na Figura 3). Em Rio Formoso, alguns povoados, vilas ou
ruas foram construídos dentro do mangue, com evidente desmatamento e aterro do mesmo,
e onde podemos ainda verificar a descarga direta do esgoto domiciliar no leito do rio. No
entanto, nas entrevistas, sobretudo com os moradores mais antigos de Rio Formoso,
verificou-se que as comunidades de pescadores originalmente formadas nas localidades da
Levada e Siqueira (comunidade quilombola), não “invadiram” o mangue para construção
de moradias; no entanto, os novatos que chegam “desesperados” com suas famílias
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acabam se alojando em casas da taipa12
construídas em pequenos aglomerados que se
instalam nas beiras do mangue. A maioria nem sabe andar no mangue, mas consegue
sobreviver aqui (depoimento de um morador da Levada, Rio Formoso,PE).
A primeira localidade encontrada nesse percurso é a Rua da Lama, onde segundo
dados da Secretaria Municipal de Ação Social, vivem cerca de 500 famílias. Verificamos
que parte dela localiza-se em áreas de desmatamento e aterro do manguezal; sem
saneamento ou pavimentação adequada. As casas foram construídas de forma irregular,
sem qualquer perspectiva de urbanização mais elaborada; muitas delas utilizam-se do barro
vermelho (casas de taipa), e estão muito próximas umas das outras. Não há sistema de
saneamento no local; as casas mais próximas ao rio canalizam seus efluentes diretamente
para o leito do rio, as que estão mais afastadas possuem fossas sépticas para os dejetos
sanitários e o esgoto doméstico corre por canais abertos nos becos que servem de ruas
entre as casas. A Rua da Lama é constantemente atingida por enchentes no período
chuvoso; e tem registro de alto índice de criminalidade, com ocorrências de tráfico de
drogas, furtos e homicídios. Não é uma comunidade que tem a interação direta com o
manguezal como base de “reprodução social” dos moradores; porém, muitos moradores
das margens do rio têm na atividade pesqueira uma fonte complementar de alimento; sendo
algumas famílias mais vinculadas e dependentes do manguezal para própria sobrevivência.
Após a Rua da Lama encontramos a Rua dos Pescadores; um aglomerado que se
estabeleceu recentemente (a menos de 15 anos) nas margens do manguezal. Assim como
na Rua da Lama, as casas foram construídas de forma irregular em terrenos de propriedade
da União. Também não há sistemas de saneamento básico. São cerca de 30 casas
(famílias), onde cada casa tem em média cinco crianças com menos de 12 anos. As
famílias vivem quase que exclusivamente da pesca de crustáceos, mais especificamente do
caranguejo e siri, já que são espécies de mais fácil captura. Poucos moradores possuem
embarcação, pois não sabem como a construir, nem tampouco dominam a arte de
confecção de redes e outros apetrechos de pesca.Mesmo sem acesso aos conhecimentos
tradicionais que possuem outras comunidades próximas na região, foi no mangue que essas
famílias encontraram um meio de sobrevivência; fonte de alimento, trabalho e renda. Os
depoimentos são ilustrativos: “Aqui tem muito caranguejo e siri, essa é a nossa valia”
afirmou o Sr. Antônio Soares, morador da Rua do Pescador que nasceu e cresceu na Rua
da Lama e por falta de oportunidade de trabalho, procurou – e encontrou – no mangue uma
fonte de vida: “Agente não é pescador; pescador, pescador mesmo agente não é, mas
desde menino que todo mundo aqui aprende logo a pegar caranguejo e siri; porque
quando a fome apertava mesmo, era pro mangue que a gente corria”.
Na Rua do Pescador se estabeleceu uma pequena cadeia produtiva comercial em
torno do extrativismo. O dono do bar do lugarejo se responsabiliza pela comercialização do
caranguejo e siri capturados pela comunidade. O ponto de venda do caranguejo e siri fica
as margens da rodovia PE-60, a céu aberto, onde uma amostra do produto fica exposta
amarrada em tripés de madeira. O produto é vendido vivo, amarrado na chamada “corda de
caranguejo”, que é formada por dez unidades - caranguejos e siris amarrados uns aos
12 A casa de Taipa é um processo milenar de construção. Os Portugueses trouxeram-na para o Brasil, quando só havia as
ocas dos índios, e a difundiram de norte a sul do país. Tornou-se assim uma das manifestações mais tradicionais de nossa
arquitetura, e teve seu período de excelência durante o ciclo do ouro em cidades como Ouro Preto, Congonhas e
Diamantina. Hoje [...] relegada como técnica primitiva, desprezada não só pelas elites mas até mesmo pelas camadas
populares, este tipo de construção ficou ligado à miséria e traz embutido um caráter de moradia provisória, um abrigo
passageiro contra a opressão da natureza (http://www.csaarquitetura.com.br/index3.htm).
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outros com “cordas” confeccionadas em fibra de bananeira. As cordas de caranguejo são
vendidas ao atravessador (dono do bar do lugarejo) ao valor de R$ 6,00, que revende a
mesma corda a menos de 200 metros dali, no “seu” ponto, nas margens da rodovia PE-060,
ao preço de R$ 10,00, R$ 12,00 ou até R$ 30,00 a corda. O sentimento de “abandono”
pelas políticas públicas aparece em falas como: “Aqui nós somos esquecidos, ninguém
lembra que estamos aqui, só chegam aqui na época de eleição. Era bom que tivesse aqui
uns cursos pra ensinar a gente a fazer rede e barco, mas nem isso chega aqui; o presidente
da colônia que podia tá ajudando a gente, agora virou vereador e não tem mais tempo pra
nada. Se a gente tivesse uns barquinhos, umas canoinhas, a gente podia pescar outras
coisas também e aproveitar mais a pescaria, porque a gente atravessa o mangue andando
e perde muito o tempo da maré” desabafou o Sr Antônio Soares.
Como se sabe, cada curso de maré dura seis horas; assim ocorrem quatro marés por
dia, duas marés enchentes e duas vazantes. A pesca do caranguejo é realizada com a maré
baixa, período em que a lama do mangue fica exposta entre as três horas finais da maré
vazante e três horas iniciais da maré enchente. Assim, um pequeno canal do mangue que
chega até a rua do Pescador é o meio de acesso ao mangue, seja a pé ou em pequenas
embarcações (canoas) na maré alta. Nessa época do ano (outubro e novembro), apesar de
ter muito caranguejo, ele não está bom de ser capturado, segundo informações do Sr
Antônio; pois ele está “de leite”, ou seja, com a carne leitosa. Essa é uma característica que
o caranguejo apresenta em sua época de reprodução, quando se diz que o caranguejo está
de andada, visto que ele passa a ser expor mais fora da toca, certamente em busca de pares
para a fecundação.
Saindo da Rua do Pescador, encontra-se o Sr Caetano, o dono do bar que estava em
seu ponto de comercialização de caranguejo. O mesmo confirmou as informações dadas
pelo Sr Antônio e completou que contrata um adolescente que fica no ponto vendendo as
cordas de caranguejo, e que paga pelo serviço R$ 2,00 por cada corda comercializada.
Segundo ele há boa procura pelo produto todos os dias, e em qualquer época do ano;
porém é nos fins de semana e feriados que a demanda se sobressai. “Muitos fregueses
querem comprar tudo, mas ai a gente perde os outros fregueses que sempre param aqui,
tem que agradar todo mundo né?” falou o comerciante. No verão, quando o movimento é
maior, o comerciante oferece degustação – “A gente sabe que não pode fazer isso na beira
da estrada, mas a gente deixa bem guardado, e oferece ao freguês quando ele insiste em
saber se o bicho tá bom mesmo”. É importante comentar que Rio Formoso fica em um
ponto estratégico para esse tipo de mercado, visto que a cidade se localiza no meio de dois
grandes polos de turismo praieiro da região, a 27 km Sul ficam as praias de Tamandaré e
Carneiros, de forma que todo fluxo que vem de Recife passa por esse ponto; e a 40 km
Norte fica o acesso a Porto de Galinhas, de maneira que todos que vêm de Maceió de do
interior do Estado passam por esse ponto.
Seguindo a travessia, encontra-se a Rua do Hospital, onde fica o Hospital da cidade
(às margens do rio Formoso, e do mangue). Nessa localidade já encontramos um grupo de
moradores que tem um modo de vida mais estritamente ligado à dinâmica do mangue;
muitos deles dominam as técnicas de construção e manutenção de pequenas embarcações,
confecções de redes e outros apetrechos, e conhecem- de fato- o mundo do mangue.
Muitos são pescadores profissionais, com o registro geral de pescador do Ministério da
Pesca e Aquicultura; e muitos vivem no, e do mangue, explorando adicionalmente o
turismo fluvial com os barcos adaptados para passeios e transporte de moradores e turistas
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para as praias da região. Nessa localidade o mangue é mais denso e o rio já apresenta uma
melhor condição de navegabilidade para embarcações de maior porte. Aqui funcionava o
porto da cidade, ainda no período colonial, sendo escoado pelo rio Formoso (antes
Iobuguaçu) grande quantidade de madeira (Pau Brasil). Atualmente, apesar da
precariedade da infra-estrutura de apoio, é nessa localidade o principal ponto de embarque
de turistas.
Por fim encontra-se Levada, onde se encontra a maior concentração de pescadores,
e de outras categorias profissionais que tem no mangue seu principal meio de vida. De
acordo com o Sr Joelington, morador de Levada, hoje boa parte dos moradores da
localidade que vivem do mangue são barqueiros durante o verão, ou seja, pescadores que
param as atividades de exploração do pescado e se dedicam exclusivamente as atividades
de turismo, oferecendo passeios e transporte fluvial; e alguns são apenas barqueiros. No
entanto, nem todos conseguiram barcos com infra-estrutura adequada para esse tipo de
serviço, e a capitania dos portos passou a fiscalizar a atividade com mais rigor em função
da dimensão que ela tomou na região nos últimos 10 anos. Só na Levada são 94
embarcações registradas na capitania dos portos; e são cerca de 250 barqueiros registrados
no município segundo informações do morador, que também é barqueiro. Logo se percebe
que a atividade de barqueiro atrai com mais facilidade o interesse dos jovens da
comunidade. O Joelington logo se antecipou em esclarecer que não é pescador; ”sou
barqueiro, trabalho com turismo ecológico”, afirmou com orgulho.
5. CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO COM O MANGUE COMO BASE DE
SUBSISTENCIA E IDENTIDADE
A percorrida de terreno e visita às comunidades realizadas na foz do Rio Formoso
aponta para a diversidade de estratégias de sobrevivência acessadas pelas famílias que ali
residem. Revela-se uma diversidade de “ocupações”, que se mostram condicionadas às
capacidades, recursos e aos contextos sociais onde os grupos se encontram.
As populações que se organizaram de forma coletiva às margens das praias, estuários e
manguezais no Brasil, e que tiram desse meio ambiente o seu sustento e adaptam sua
estratégia de vida à ele são, talvez pela maioria das pessoas e suas instituições,
denominadas convencionalmente de pescadores; ou ainda, pra ser mais específico, de
pescadores artesanais. Mas pode haver uma outra designação local em função da atividade
especifica exercida no âmbito da pesca artesanal, onde encontramos: os barqueiros,
lagosteiros, marisqueiras, catadores (de caranguejo, siri, sururu, marisco, mexilhão, unha-
de-velho, aratu, guaiamum, ostra, tatuí, etc.), pescadores do mar de fora, pescadores do
mar de dentro, pescadores estuarinos, dentre outras modalidades. Apesar da grande
maioria da população dessas comunidades estar inserida em uma dessas denominações em
função de sua principal atividade produtiva corresponder ao extrativismo na pesca, há
também àqueles que praticam outras atividades produtivas/econômicas não extrativistas,
mas voltadas ao mundo das marés, como é o caso por exemplo, dos (as) artesãos, catadores
de coco-de-praia - típicos do litoral Norte de Pernambuco, os construtores artesanais de
pequenas e médias embarcações de pesca e recreação, donos de bares e pequenos
restaurantes locais, vendedores ambulantes de artigos de praia, rezadeiras, parteiras,
ambientalistas, líderes comunitários e religiosos, capoeiristas, pintores e desenhistas, e
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guias de turismo ecológico; além de outras atividades como pedreiros, marceneiros,
agentes de saúde, professores, instrutores e condutores. Todas essas categorias de
trabalhadores foram identificadas em visitas realizadas entre outubro de 2011 e janeiros de
2012 em comunidades do litoral Sul e Norte de Pernambuco.
Além da diversidade de ocupações, o caso estudado no litoral sul de Pernambuco
evidencia, sobretudo, que a diluição das fronteiras entre o rural e urbano pela facilidade de
comunicação e como a presença urbana no rural (com o turismo, por exemplo) torna a
pluriatividade um fato. Num quadro de diversificação das estratégias econômicas das
famílias se insere o extrativismo dos recursos do mangue. Ou seja, no conjunto das
estratégias de sobrevivência, ganha destaque o extrativismo de recursos naturais tanto
como base econômica de sustentação da família, quanto para geração de renda
complementar.
Tanto dados histórico-demográficos, as observações de campo quanto as condições de
infra-estrutura e os depoimentos de entrevistados revelam que uma parte da população
local recorreu recentemente ao mangue para buscar sua subsistência por falta de
alternativa, reforçando as representações de Josué de Castro do mangue como espaço de
vida para os excluídos. Deste grupo fazem parte famílias que recorrem ocasionalmente ou
sistematicamente ao mangue, mas que detém limitado conhecimento técnico e de meios na
exploração desse ambiente. Essa realidade contrasta com aquela de comunidades que se
organizaram há mais tempo de forma coletiva às margens das praias, estuários e
manguezais e que tiram desse meio ambiente o seu sustento e adaptam sua estratégia de
vida à ele. Nesses casos o mangue exerce um poder na vida dessas pessoas, assumindo um
papel que vai além de um meio de sobrevivência. Na visão da população mais tradicional
do manguezal do rio Formoso, como na Levada, o mangue é a casa, e a cidade o quintal.
Há um sentimento de pertencimento e resignação: “eu preciso de pouco pra ser feliz”. Um
“pouco” que na verdade é “tanto” que não há meios matemáticos ou estatísticos de avaliar
sua grandeza, ao não ser sentindo-a de perto. Com isso entende-se o que significa a
lógica de ajuda mútua ou de solidariedade do sistema de reciprocidade descrita por Eric
Sabourin (SABOURIN, 2009), em que esse processo “não visa a produção de valores de
uso ou de bens comuns a compartilhar, e sim a criação de ser, de vínculo social.13
De qualquer modo, mais do que uma dicotomia entre situações extremas, parece
predominar um “continuum” ao longo do estuário do Rio Formoso onde a diferenciação
das estratégias das famílias – e a forma de vinculação com o mangue- se faz segundo os
ambientes, que são variados quanto a recursos de flora e fauna (em qualidade e quantidade)
13 Outro aspecto a destacar quanto ao modo de vida refere-se a importância das relações de reciprocidade para essas
populações. Fazendo uma comparação com as características das comunidades camponesas descritas por Eric Sabourin
(2009) no sertão nordestino, podemos traçar um paralelo que descreva as comunidades tradicionais extrativistas na costa
de Pernambuco. O autor onde o mesmo destaca três características dos camponeses sertanejos: o parentesco, a localidade
e a reciprocidade; além da hospitalidade como uma das primeiras formas universais da reciprocidade. Nesse grupo
também se pode perceber as seis características da agricultura camponesa moderna descrita por Sabourin (2009) com
base em Ploeg (2006, 2008, apud SABOURIN, 2009): -A autonomia relativa ligada a uma dependência parcial, por um
lado, de mercados diversificados e, por outro, de recursos naturais escassos; esta situação de tensão obriga o camponês a
buscar uma eficiência técnica, enquanto deve preservar a qualidade de recursos naturais limitados; -A prioridade aos
recursos em trabalho (familiar) sobre os recursos em capital e, assim, à intensificação do trabalho; -A unidade orgânica
entre os recursos sociais e materiais: a produção e seu uso são governados por regras oriundas do patrimônio cultural e
por relações primordiais de gênero, parentesco e reciprocidade; -O caráter central do trabalho familiar e interfamiliar
(comunitário), tanto em termos de investimentos quanto de inovações adaptadas às realidades sociais; -A relação de
autonomia parcial perante mercados e, em particular, o mercado capitalista -A criação de valor agregado e de empregos
produtivos que diferenciem a unidade de produção camponesa da empresa agrícola capitalista.
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de forma que o que vai ser explorado por cada comunidade e família depende de sua
localização, acesso aos recursos (institucionalidade como direitos de propriedade e acesso,
por exemplo), bem como da disponibilidade de meios (embarcações, por exemplo) e
“conhecimentos técnicos” (de exploração de recursos). Tais observações indicam a
pertinência das abordagens de “modo de vida” para o entendimento da diversidade de
condições e estratégias encontradas no local.
De qualquer modo o mangue mostra-se como fonte de recursos tanto para assegurar
alimentação de familias em condição de pobreza quanto para manutenção do modo de vida
de populações tradicionais. Se observar-se a questao da sustentabilidade revela-se, numa
primeira análise, a permanente ameaça externa à base de recursos naturais da qual depende
essa população. Ao reconhecerem a importância do manguezal, essa população tem
reivindicado e protestado frente às autoridades locais e a sociedade em geral pela
preservação desses ambientes, bem como pelo direito de exploração prioritária e
sustentável de seus recursos naturais. Nesse contexto podemos citar o movimento dos
pescadores de Rio Formoso entre o período de 2001 a 2005, no litoral Sul, frente ao
Ministério Público e ao poder legislativo local pela adequação do sistema de saneamento
na cidade de Rio Formoso; sistema esse que não comportava o fluxo da rede municipal, o
que invariavelmente resultava em grandes descargas de matéria orgânica não tratada no
estuário, causando impactos ambientais de grandes proporções. A população que vive em
função do manguezal então passou a reivindicar uma intervenção mais forte do poder
público através dos meios legais convencionais (Ministério Público) e Câmara de
Vereadores e de manifestações pacíficas, como passeatas e barqueadas, mas também
adotando ações mais radicais, como o fechamento parcial da rodovia PE-60 em
decorrência da inoperância do poder público com relação às reinvindicações apresentadas.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa esteve motivada pela intenção de realizar uma avaliação exploratória da
potencialidade das políticas públicas de desenvolvimento sustentável de povos e
comunidades tradicionais, pois a revisão bibliográfica indicou que vem sendo enfrentadas
dificuldades de identificar quem são os beneficiários (legítimos) dos novos direitos.
Adams (2000) analisando o caso dos caiçaras, por exemplo, coloca que, em geral, os
estereótipos apresentam as comunidades tradicionais como dependentes de um número
limitado de recursos extrativistas, tradicionais, isoladas, auto-suficientes, primitivas e
dotadas de um referencial cosmológico muito particular e que estas características
dificilmente são encontradas nos grupos estudados empiricamente.
O grupo que tratamos nesse texto foi aquele especificamente indexado ao ambiente
manguezal no estuário do Rio Formoso, em Pernambuco, seja na sua vida cotidiana,
produtiva e/ou afetiva. Um grupo bastante expressivo no litoral nordestino do Brasil, onde
se encontram uma das maiores extensões de manguezal do mundo.
O fato mais evidente nos levantamentos empíricos realizados nessa pesquisa é que os
grupos que utilizam o mangue são diversos e mantém graus diferenciados de vinculação e
dependência com ele. A utilização de critérios restritivos na identificação do grupo
potencialmente beneficiário das políticas públicas orientadas ao desenvolvimento
sustentável dos povos e comunidades tradicionais, nesse caso, possivelmente excluiria do
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acesso aos recursos um número considerável de famílias que se instalaram recentemente na
região e que não compartilha do saber acumulado sobre sua exploração, mas que tem forte
dependência econômica do mangue.
Por outro lado, poderiam ser considerados beneficiários os grupos que tem ocupação
histórica estável desse território e compartilha do saber acumulado sobre sua exploração.
Entretanto, esses grupos podem não se auto-identificar como “povos do mangue” uma vez
que, como observado, muitos tem reagido criativamente ao contexto econômico passando a
desenvolver novas atividades e “identidades”. Assim, embora se reconheça a propensão a
formação de identidade coletiva14 – como povo do mangue-, ela está constantemente
ameaçada seja pelo avanço de ocupações não tradicionais (que acompanham turismo –
introduzindo modos de vidas diferenciados) seja pelo risco de comprometimento da base
de recursos naturais que sustenta as populações estabelecidas.
As tentativas historicamente implementadas para tornar essa população em um
grupo economicamente viável são diversas: modernização da frota pesqueira, aquisição de
tecnologias, investimentos em infra-estrutura de armazenamento e comercialização de
pescado, cursos profissionalizantes em diversas áreas de conhecimentos, etc.. Essa riqueza
de investidas e possibilidades se traduz em dois cenários possíveis: por um lado temos uma
ampliação de possibilidades de fontes de recursos e financiamentos, ações e estratégias
com o objetivo de melhoria geral das condições de vida dessa população; mas por outro
lado, esses “agentes de desenvolvimento” ao atuarem de forma isolada, sem integração,
remetem ao enfraquecimento de representatividade desse grupo, ou desse modo de vida,
que ora é considerado como uma comunidade tradicional através do Ministério do
Desenvolvimento Social (MDS), ora é enquadrado como categoria trabalhista pelo
Ministério do Trabalho e pelo Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA)15
, ou ainda se
desintegra ao ser incluído como agricultor familiar pelo Ministério do Desenvolvimento
Agrário (MDA)16
. Entretanto, nesses diferentes casos exemplificados perde-se a dimensão
sócio-cultural do homem num contexto em que as autoridades brasileiras, e a sociedade em
geral, continuam menosprezando tanto o ecossistema, quanto as pessoas que vivem dele, e
nele. Nesse contexto parece adequado considerar a singularidade e dinâmica dos processos
de etnogênese enquanto balizadores da compreensão das realidades de desenvolvimento
com valorização cultural no caso das comunidades e povos tradicionais.
14 Portanto a visão de identidades socioambientais, sobretudo de identidade que adotamos aqui se refere ao contexto em
que o perfil cultural das populações é construído, com base no uso de territórios e recursos naturais como condição
basilar para a reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica do grupo – como citado no texto do decreto de
lei sobre as Comunidades Tradicionais. Porém, não esquecendo que o conceito de identidade vai além de uma
representação de grupo em função de aspectos culturais e/ou tradicionais. Segundo Cohen-Scali e Guichard (2008): A
estrutura de identidade é o meio pelo qual as funções e os valores que definem a identidade são organizados. É o "filtro"
através do qual cada um recebe, mantém, manipula, avalia suas experiências de vida diferentes: Este filtro permite a
todos encontrar um sentido à sua existência. Estas estruturas aparecem sucessivamente. Eles formam uma seqüência de
desenvolvimento - a partir de uma identidade forclose a uma identidade accomplie através de uma moratória – traduzindo
formas mais complexas e diferenciadas para organizar os elementos de identidade. (COHEN-SCALI E GUICHARD,
2008, p.7, tradução livre) 15 A atividade produtiva pesqueira foi regulamentada no Brasil, nas últimas cinco décadas, pelo Decreto-lei n.221/1967
(Código de Pesca) e pela Lei de Pesca n.11.959/2009. 16 LEI Nº 11.326, DE 24 DE JULHO DE 2006. Art. 3o, § 2o, IV.
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AGRADECIMENTOS:
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuaria (Embrapa)
Instituto Agronomico de Pernambuco (IPA)
Centre de Coopération Internationale en Recherche Agronomique pour le Développement
(CIRAD)