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Jacqueline de Romilly

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Page 1: Sofocles

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Temas da Cultura Clássica I

Tema II: Os modelos trágicos

Sobre as tragédias de Sófocles

Excertos da obra de Jacqueline de Romilly, A Tragédia Grega, Lisboa, Edições 70,

1999, pp. 73-100 (com adaptações)

“Na história de Atenas, Sófocles pertence à geração do apogeu. […] Conheceu o

império ateniense. Viu serem feitas as construções da Acrópole. Sem dúvida assistiu,

mais para o fim da sua vida, aos dissabores da guerra do Peloponeso. Mas o seu amor

pela pátria não foi abalado: Édipo em Colono, que é a sua última peça e que só foi

representada depois da sua morte, contém o mais belo dos cantos à glória de Atenas –

de uma Atenas onde é bom viver e cuja frota continuava gloriosa.

Ele mesmo também foi feliz. […]

Isto prova que podemos viver felizes mas escrever tragédias e até mesmo inventar um

mundo destinado a tornar-se o mundo trágico por excelência.

O trágico próprio de Sófocles está mais próximo de nós do que o de Ésquilo. E, num

sentido, o desenvolvimento político que ele conheceu e experimentou não é estranho a

esta diferença: com efeito, este desenvolvimento supõe uma maior confiança no

homem. Ésquilo conhecera a ameaça de um desastre: Sófocles conhece uma grandeza

solidamente apoiada e que é apenas necessário administrar bem. Coloca, por isso, o

homem no centro de tudo e enche as suas tragédias com deveres opostos, com

discussões sobre comportamentos. Acredita na importância do homem e na sua

grandeza. […]

Do mesmo modo que não há nenhuma peça de Ésquilo conservada onde não se

encontre, mesmo no centro e comandando tudo, o problema da justiça divina, também

não há entre as peças de Sófocles conservadas uma onde não seja apresentado, com toda

a sua força, um problema de ordem ética, encarnado nas personagens.

Seria, então, possível examinar deste ponto de vista as sete peças conservadas deste

autor […]. No entanto, duas destas sete tragédias são menos convincentes: são as que

Sófocles consagrou a Édipo: como nelas a relação com os deuses está acima do conflito

entre os homens, serão ambas examinadas a respeito dessa relação.

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Entre as outras, as duas mais convincentes são a Antígona e a Electra. A Antígona

merece ser considerada em primeiro lugar […].

Antígona, contra a ordem promulgada em Tebas, sepultou o seu irmão Polinices, que

fora morto na luta fratricida que o opunha a Eteócles; ela deve pagar com a vida esta

iniciativa. Este é o dado inicial. E já podemos revelar, mesmo ao nível dos factos,

algumas particularidades de pormenor que parecem invenções de Sófocles: na peça,

Antígona age só, sem a ajuda da irmã Ismena; e aquele que a persegue é Creonte, o

novo rei, e não o filho de Eteócles. Temos, portanto, de um lado um acto solitário, do

outro uma repressão baseada na autoridade. Daí nasce uma série de oposições que

comanda toda a peça. […]

O próprio facto de ter iniciado a peça com uma conversa entre as duas irmãs, de ter

mesmo imaginado estas duas irmãs, Antígona e Ismena, tão diferentes – uma devotada

ao morto, corajosa, desafiando tudo, a outra receosa e preocupada em não realizar nada

que seja impossível – constituía um achado para quem queria pôr em relevo o heroísmo

de Antígona. Antígona faz aquilo que Ismena não tem coragem de fazer; fá-lo sem

hesitar e fá-lo sabendo porquê. Ismena, contudo, não está em desacordo com Antígona a

não ser na possibilidade de agir como esta quer; por isso ela diz, ao defender-se: “Eu

não faço nada que não seja honroso, mas sou incapaz de actuar contra o poder da

cidade.” Ela serve, portanto, para mostrar, por contraste, a coragem de Antígona, sem

que haja entre elas algum conflito de princípio. Esse conflito está reservado à cena com

Creonte.[…]

Os princípios deste são conhecidos desde o momento em que ele aparece, pois as

personagens de Sófocles têm necessidade de se explicar, de dizer quais são as suas

regras de conduta. […] Ora os princípios de Creonte giram todos em volta da cidade e

da dedicação que ela exige: é precisamente por isso que proibiu que se sepultasse

Polinices, que tinha atacado esta cidade. Quanto aos princípios que animam Antígona,

são completamente outros. As únicas leis que ela conhece são os grandes princípios

morais que têm os deuses como garante e à ordem de Creonte opõe a ordem de Zeus: “E

eu entendi que os teus éditos não tinham tal poder, que um mortal pudesse sobrelevar os

preceitos, não escritos, mas imutáveis, dos deuses! Porque esses não são de agora, nem

de ontem, mas vigoraram sempre e ninguém sabe quando surgiram. Por causa das tuas

leis não queria eu ser castigada perante os deuses, por ter temido a decisão de um

homem.”

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Diz-se que o conflito entre Antígona e Creonte representa o dos deveres familiares

contra a razão de Estado. É e não é verdade. Porque Creonte, que é autoritário e

orgulhoso, não age pelo bem do Estado, acabará por reconhecê-lo. E Antígona combina

na sua decisão uma parte do sentido familiar com uma parte de simples humanidade e

muito de religião. Mas todos estes pares de deveres, família e Estado, humanidade ou

autoridade, religião ou respeito pelas leis, foram os conflitos que Sófocles, nalgumas

cenas, apresentou vivos, diante de nós.”

Outras peças de Sófocles, como Electra, Ájax, As Traquínias e Filoctetes põem em

destaque antíteses entre comportamentos, normas éticas e valores.

“Só há duas peças em que tais conflitos não aparecem: são as que Sófocles consagrou a

Édipo. E, no entanto, encontramos nelas as oposições entre o herói que não quer ceder e

aqueles que, em redor dele, queriam vergá-lo. No Rei Édipo, Édipo é tão obstinado

como o Creonte da Antígona. Como ele, opõe-se violentamente à voz do adivinho e à

dos seus. […] Como ele, acusa sem razão. […]

A série de confrontos que opõem os heróis às outras personagens não tem por única

função dar aos seus sentimentos um contorno mais claro e mais rigoroso: tem também

por efeito isolar progressivamente estes heróis de qualquer ajuda e de qualquer suporte

humanos. […] O sofrimento que nasce desta solidão representa ao mesmo tempo a

condição e a consequência da coragem heróica. […] Mas a este trágico da solidão entre

os homens, Sófocles acrescenta um outro que não releva já da relação com os outros,

mas da relação que os heróis têm com os deuses.

Com efeito, os deuses nunca estão ausentes das tragédias de Sófocles. Diferentes dos

deuses de Ésquilo, não têm uma carga tão pesada sobre as emoções. Também não são

imediatamente sensíveis. Os seus desígnios também não são constantemente

comentados, nem, sobretudo, postos em relação com a ideia de justiça de um modo tão

obstinado. Mas mesmo o seu afastamento é o sinal da diferença radical que os separa do

homem.

De facto, Sófocles teve o sentimento profundo da majestade divina. No seu teatro, os

deuses revelam-se como que à parte, de fora: escapam ao mesmo tempo à imperfeição e

ao tempo. […] É mesmo surpreendente ver com que insistência Sófocles sublinha esta

negação do tempo e da mudança no mundo dos deuses. […] O coro do Rei Édipo

exclama, por exemplo: “Que me assista o destino e eu conserve / a inestimável pureza

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em todos / os meus actos e palavras. Suas leis residem / nas alturas; lá no éter / celestial

foram geradas, tendo apenas o Olimpo / como pai, nem a mortal / natureza dos homens /

as gerou, nem jamais / o esquecimento as faz dormir. / Grande é a divindade que as

possui, não envelhece.” […]

Com efeito, a piedade grega é fortemente alimentada pelo sentimento deste contraste

intenso entre o mundo dos deuses e o dos homens. Os deuses representam a luz, a

perenidade, a serenidade. O homem, pelo contrário, está votado à instabilidade; vive o

dia a dia; é efémero. De facto, por várias vezes seguidas, Sófocles emprega esta palavra

para designar os homens. Tudo é incerto e frágil entre os homens. A sua vida é feita de

alternâncias, tudo passa, tudo muda, e Sófocles evoca esta ideia com imagens

eloquentes, que traem o seu próprio sentimento. […] Ora a estas imagens fazem eco

inúmeras observações, semeadas aqui e ali nas tragédias, […] como no coro do Rei

Édipo, aos olhos do qual a sorte do herói ilustra, justamente, esta fragilidade humana.

No momento em que se descobre a verdade, ele começa o seu canto proclamando: “Ó

gerações dos mortais, / como a vossa vida ao nada / se me iguala! / Que homem, sim,

que homem, / da ventura mais possui / que a aparência de a ter, / e, uma vez tida, a

certeza de cair no ocaso?”

Até mesmo os sentimentos dos heróis sofrem oscilações […], ainda que, por natureza,

tenham tendência para não mudar. Édipo, Electra, Antígona, tal como Ájax, recusam-se

a deixar-se vergar, a transigir com o seu ideal. A sua obstinação funde-se no seu desejo

de absoluto. Mas se eles são senhores das suas escolhas, não o são da sorte, cujas

consequências são eles os primeiros a sofrer. Estas consequências são, efectivamente, a

marca da condição humana a que só os deuses escapam.

Há, portanto, uma distância profunda, no teatro de Sófocles, entre estas alternâncias da

sorte e o longínquo domínio dos deuses e ela explica que o homem não possa penetrar

no mistério da vontade divina e que nem mesmo tente fazê-lo. Neste teatro não nos

interrogamos, como em Ésquilo, sobre as vias da justiça divina: os deuses já não estão

suficientemente próximos; interrogamo-nos, de preferência, sobre o sentido dos seus

oráculos. Temos apenas isto. E isto mesmo é muito pouco, porque é escusado estar

atento, procurar compreender, interrogar e comparar, pois os oráculos dos deuses

raramente podem ser claros para os homens. Em quase todas as peças de Sófocles, há

vários que se combinam. Eles entreabrem uma porta – apenas o suficiente para fazer

sentir que há um mundo no além e um destino que se dispõe – mas não o suficiente para

que saibamos qual. […] Imprecisos, obscuros, muitas vezes enganadores, os oráculos

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deixam, portanto, lugar para a esperança e para o terror. E podemos dizer mesmo mais:

porque eles parecem tão bem calculados para enganar que sugerem que a divindade tem

prazer em troçar do homem. […]

Este jogo entre homens e deuses, marcado por oráculos próprios para semear o erro, é,

sabemo-lo, a ideia mestra do Rei Édipo. Mas seria errado pensar que ela só aparecia aí.

De facto, toda a dramaturgia de Sófocles repousa na ideia de que o homem é o joguete

daquilo a que poderíamos chamar a ironia da sorte. Do ponto de vista técnico, Sófocles

introduziu na acção trágica a surpresa e a peripécia: isso foi evidente na própria história

do género; mas estas surpresas e estas peripécias assumem também, no domínio das

ideias, um profundo significado: mostram o acontecimento prestes a troçar do homem.

Muitas vezes, o homem precipita-se para a sua queda pelo próprio esforço que faz para

lhe escapar. […] E mesmo quando as coisas não chegam a esse ponto, há, sem dúvida

nenhuma, uma ironia da sorte no facto de um homem imaginar que pode triunfar no

preciso momento em que se vai consumar a sua perdição. Do ponto de vista dramático,

o contraste aviva a surpresa; do ponto de vista do pensamento, faz realçar de forma

trágica a cegueira e a ignorância daqueles que se enganam assim. […] O próprio ritmo

do teatro de Sófocles, com os seus contrastes tão fortemente marcados, simboliza então

uma certa ideia da fraqueza do homem e da ironia da sorte. […]

O Rei Édipo, por exemplo, põe em cena a sorte de um homem e de uma família que

acreditam ter frustrado os oráculos e a ironia trágica regula toda a sua estrutura. […] A

peça permanece como um exemplo tipo de que nos servimos para mostrar como toda a

acção humana se pode voltar contra aquele que é o seu autor. E é em grande parte por

causa do Rei Édipo que nunca deixámos de falar do papel do destino ou da fatalidade no

teatro grego. No entanto, precisamente porque o tipo de trágico expresso por esta peça

se revestiu de uma tal importância, importa ver um pouco mais de perto aquilo que

significava para Sófocles. […]

Para dizer a verdade, podemos notar que, no Rei Édipo, nunca ninguém se interroga

sobre a razão daquilo que sucede a Édipo e do que lhe devia acontecer. Sófocles não

procura, de modo algum, explicar a severidade da sorte destinada a Édipo remontando a

uma falta original que Laio teria cometido: esta ideia não tem aqui lugar. Ele nem

mesmo chega a explicá-la por uma falta cometida pelo próprio Édipo e é em vão que os

comentadores se têm aplicado a procurar no herói um defeito que explicasse tudo. Aos

olhos de Sófocles, não há nada a explicar: não há explicação, mas também não há

problema, muito simplesmente as coisas são assim.

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De facto, quando falavam de destino, os Gregos designavam sobretudo a realidade, na

medida em que ela escapa ao homem. Ésquilo tinha tentado encontrar-lhe um sentido,

em nome de uma justiça assaz misteriosa; Sófocles contenta-se em mostrar a impotência

do homem, que não a pode influenciar à sua vontade. E dizendo que ela é prevista de

antemão, ele não faz mais do que traduzir a experiência dessa impotência em termos

mais fortes. De facto, todos os comentários feitos ao longo da peça sobre a sorte de

Édipo consistem em ver nela uma ilustração célebre da instabilidade que pesa sobre os

homens em geral; ninguém põe em causa uma vontade particular, ninguém procura uma

causa para lá dos efeitos. O destino é visto apenas na perspectiva da ignorância humana

e designa menos uma causa do que a recusa de buscar uma.

Assim se explica que a soberania do destino não possa ser acompanhada por nenhuma

revolta. Pelo contrário, a fraqueza do homem dá lugar, em Sófocles a uma dupla

confiança, no homem e nos deuses. Não sendo o destino uma condenação deliberada, o

homem não retira daí a ideia de que nada pode fazer. O que lhe acontece constitui uma

prova, mas ainda lhe resta definir o seu valor através da forma como reage a esta prova.

Ele pode, na adversidade, escolher uma via mais nobre. […] E se não resta nada a

esperar, há ainda uma profunda dignidade em subtrair-se ao mundo. […] Mesmo o

desespero dos heróis, em Sófocles, mantém uma nobreza altiva que lhes permite triunfar

enquanto são abatidos.

Mas esta fé no homem só é possível porque as ironias da sorte não implicam, de forma

alguma, que os deuses sejam cruéis, ou mesmo indiferentes. Sófocles não conclui de

tantas infelicidades e reviravoltas que é preciso revoltar-se e protestar. A sua conclusão

é, pelo contrário, que nunca nos saberemos mostrar suficientemente respeitosos para

com os deuses, nem suficientemente piedosos. Até mesmo a forma como os oráculos

acabam por se realizar, convida os homens a inclinarem-se diante da soberania divina.

Os homens não têm que compreender, mas que adorar. Aqueles que atribuem as culpas

aos adivinhos – como Édipo – e aqueles que duvidam dos oráculos – como Jocasta –

pagam cedo esta irreverência com algum revés estrondoso. Aliás, o coro evita associar-

se a tais dúvidas. Sófocles notou-o no Rei Édipo, mostrando que o coro está chocado e

inquieto. […] E a peça termina com uma nova consulta ao oráculo, na qual Édipo

afirma a sua fé e coloca o pouco que lhe resta de confiança e de esperança.

Sófocles, sabemo-lo, foi piedoso. […] E todas as reviravoltas que atravessam a vida

humana fazem-no evocar com mais nostalgia o brilho da vida feliz que os deuses levam

no seu mundo.

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Este aspecto do pensamento de Sófocles explica que o seu teatro possa conciliar uma

acuidade dramática tão grande com uma espécie de serenidade calorosa e confiante.

Não há teatro em que encontremos tantos inocentes humilhados e destruídos. Não há

teatro em que se exprimam tantos sofrimentos, físicos e morais. E, no entanto, é um

teatro que faz admirar o homem e amar a vida. Admiramos o homem na figura dos

heróis que levam tão longe a sua coragem; amamos a vida em que cada um se esforça

por agir da melhor forma. E estes dois sentimentos são ainda reforçados pelos cantos do

coro. Estes são grandes, livres e exaltam a beleza. […] Esta combinação de uma

filosofia tão sombria com uma fé tão viva no homem e na vida distingue para sempre o

teatro de Sófocles de todas as outras obras modernas, que se inspiraram nele,

endurecendo-o, e que por esta razão nunca alcançaram o mesmo brilho.”

(Documento elaborado por Mafalda Ferin Cunha)