sujeito em lacan
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
CARLA REGINA FRANOIA
A CINCIA DO SUJEITO NA TEORIA LACANIANA
CURITIBA
2005
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
CARLA REGINA FRANOIA
A CINCIA DO SUJEITO NA TEORIA LACANIANA
Trabalho apresentado ao curso de ps-graduaodo Departamento de Filosofia da UFPR comopr-requisito para obteno do ttulo de Mestreem Filosofia.Orientador: Prof. Dr. Luiz Damon SantosMoutinho.
CURITIBA
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Para os meus dois grandes amores
Victria e Valentina
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AGRADECIMENTOS
Agradeo a urea Junglos e Fabiola Paterno,secretrias do Programa de Ps-Graduao
do Departamento de Filosofia, pela ateno dispensada as necessidades oriundas de umadissertao de Mestrado;
Agradeo ao Professor Dr. Joel de Souza, ao Professor Dr. Paulo Vieira Neto e ao
Professor Dr. Pedro Costa Rego pelo incentivo que me deram ao transformar uma idia em
uma dissertao;
Agradeo a Professora Dra. Maria Isabel Limongi e ao Professor Dr. Francisco Verardi
Boccapelas observaes que foram muito importante na banca de qualificao;
Agradeo aos amigos que fiz neste tempo em que estive nesse departamento;
Agradeo as minhas amigas Ana Mello e Dulce Gaio e, principalmente, ao meu grande
amigo ureo Jr. por estarem presentes em minha vida nos momentos importantes tanto de
alegria quanto de tristeza;
Agradeo a toda minha famlia principalmente meu Pai, meu irmo Harry Jr, minha
cunhada Helosa, minha irm Alessandra e minhas tias Dora e Cinirapor, sempre queprecisei, estavam comigo me ajudando e, por serem como so;
e, principalmente
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Agradeo de todo meu corao ao Professor Dr. Luiz Damon Santos Moutinhopor ter
orientado este trabalho, por confiar em mim, pela sua gentileza, pacincia e, sobretudo,
por ter me ensinado a amar a palavra escrita.
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SUMRIO
Introduo.......................................................................................................................pg. 8
Primeira Parte
PRIMEIRA TEORIA DO IMAGINRIO E A GNESE DO EU NA
OBRA LACANIANA
1. Introduo.................................................................................................................pg. 14
2. A Gnese do Eu........................................................................................................pg. 19
3. O Desejo...................................................................................................................pg. 33
4. Concluso.................................................................................................................pg. 41
Segunda Parte
O SIMBLICO OU A IMPLANTAO DA LINGUAGEM NA LEITURA
LACANIANA DA PSICANLISE FREUDIANA
1. Introduo.................................................................................................................pg. 452. Uma Breve Passagem por Lvi-Strauss....................................................................pg 50
3. Fala e Histria: Intersubjetividade em Lacan...........................................................pg. 53
4. O Simblico como Possibilidade para o Inconsciente Lacaniano............................pg. 63
5. Concluso.................................................................................................................pg. 68
Terceira Parte
O Significante e a Teoria do Sujeito do Inconsciente na Psicanlise Lacaniana
1. Introduo................................................................................................................pg. 72
2. O Significante..........................................................................................................pg. 75
3. Metfora e Metonmia..............................................................................................pg. 92
4. O Sujeito...................................................................................................................pg. 98
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5.Concluso................................................................................................................pg. 104
Concluso Geral..........................................................................................................pg. 105
Referncias Bibliogrficas..........................................................................................pg. 109
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Quietos! Minha verdade fala
(Nietzsche)
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INTRODUO
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A psicanlise lacaniana apresenta um marco fundamental em sua histria. Foi aps
o Seminrio XIque Lacan promoveu o perodo considerado mais propriamente lacaniano
na construo de sua teoria. Isto quer dizer que nos perodos anteriores ocorreu uma vasta
apropriao por parte de Lacan de outros ramos de saber que influenciaram muito a sua
produo terica, como atestado pelas muitas referncias encontradas em sua obra
referncias cuja fonte nem mesmo citada. Mas, no isto que importa para o nosso
trabalho. Importa buscar na teoria lacaniana, nos seus primrdios, a especificao do que
foi o perodo do imaginrio e do simblico, sem apelar ao Seminrio XI, como muito
comum acontecer entre os leitores de Lacan. preciso buscar um desenvolvimento que
de uma certa forma se faz cronolgico da obra de Lacan e formalizar qual era a inteno
deste psiquiatra de formao clssica ao tentar construir uma teoria que escapava
completamente aos moldes de sua formao. Esta forma de pesquisa nos permite construiros conceitos fundamentais para o presente trabalho historicamente e no de modo
retrospectivo promovendo uma viso desta teoria no a partir do momento em que ela j
est enraizada num solo seguro, mas, ao contrrio, procurar encontrar neste
desenvolvimento qual a inteno de Lacan em cada um desses momentos privilegiados por
este trabalho. Do imaginrio ao simblico, trata-se de saber quais foram as idias que
deram o contorno a uma obra to comentada, aclamada e intolervel nos ltimos anos.
A Frana dos anos 50 viveu uma grande agitao intelectual pelo aparecimento de
um autor que, com seu ensino revolucionrio e estilo singular, produziu uma teoria nova
sobre o homem. A teoria lacaniana nasceu nos anos 30 com sua tese de doutoramento, tese
que, de um lado, se apresentava como uma obra tpica da psiquiatria e, de outro, era j uma
tese original que abriria caminho, anos mais tarde, para o surgimento da psicanlise
lacaniana. Jacques Lacan, durante as dcadas de 30 e 40, foi um terico disposto a
promover uma obra original sobre a subjetividade humana buscando influncias na
filosofia, na psicologia e na psicanlise que pudessem ser o esteio para seu programa.
Para tanto, durante esses quase 20 anos, Lacan buscou formalizar uma teoria sustentada a
partir de conceitos que pudessem responder sobre o homem e seu surgimento, a saber,
sobre como possvel pensar uma subjetividade e como se d esse aparecimento. Neste
projeto, nasceu a primeira teoria do imaginrio como uma tentativa de produzir uma cincia
que tem como objeto as noes de imago e de identificao, que apareciam ento como os
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meios de constituio e possibilidade de surgimento do sujeito humano. Nasce ento a
noo do eu na teoria lacaniana. A imago, neste contexto, a expresso do meio social; ela
externa ao sujeito e caracterizada por ser o outro, ou melhor, um semelhante que permite
a identificao e surgimento do eu.
Esse o ponto de partida para o que vai se transformar numa psicanlise na dcada
de 50, para o comeo de um novo ensino sob o signo de um retorno a Freud, em detrimento
da cincia psicolgica dos primeiros anos. A partir de 53, haver uma renovao terica do
projeto lacaniano. A psicanlise j no se apresenta mais como uma possvel influncia,
entre outras, para a constituio de uma teoria sobre a subjetividade, mas ela a prpria
questo de Lacan. As influncias do perodo anterior no foram abandonadas, elas seguiram
juntas neste novo projeto, no entanto, adequadamente organizadas para poderem compor
esse novo quadro. Essa transformao foi possvel pelo aparecimento da racionalidadeestruturalista, ou da nova antropologia lvi-straussinana, que deu o aparato necessrio para
que nosso autor pudesse sair de um momento inicial para um outro momento e permitiu
que, a partir de novas vertentes epistemolgicas, sua teoria pudesse ganhar fora e ganhar
espao dentro da intelectualidade francesa.
No perodo do imaginrio, Lacan recusa noes que foram fundamentais para a
teoria freudiana como, por exemplo, a noo de inconsciente. Ele pretendia ento menos
um levantamento da obra de Freud e mais constituir uma teoria que pudesse receber a
caracterstica de cincia concreta. Com o advento do estruturalismo, surge um novo
perodo, o do simblico, que permitiu um novo acento na noo de inconsciente, j no
mais rechaado, mas, a partir de sua reorganizao, operante sobre o homem e sua
subjetividade. a palavra falada e seu deciframento que nesse novo contexto vai marcar o
surgimento da psicanlise francesa. A transio do meio social para a linguagem foi
permeada pela lingstica de Saussure, outra importante vertente que influenciou a obra de
Lacan. Essas nuanas no projeto lacaniano devem ser compreendidas como um
desenvolvimento terico que d o contorno s teses lacanianas, pois, ao concluir um
momento, o outro no abandonado, mas ocorre um encaminhamento dos seus conceitos
para um outro rearranjo terico, sempre em vista de se compreender o estatuto do sujeito.
Se, no perodo do imaginrio, o sujeito, ao se identificar ao outro, passa a se reconhecer
como um eu, esse modo da gnese do sujeito imaginrio ganha um novo estatuto com o
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simblico. Uma tal gnese no pertence mais ao projeto de uma psicologia; ao contrrio,
com o surgimento do simblico que passa a dar respaldo ao imaginrio, uma nova
compreenso do sujeito que aparece, diferente at do que Freud falava sobre a instncia
psquica do inconsciente. Assim, o simblico passa, depois de um determinado tempo, a ter
um novo estatuto: o significante. Este marca a teoria lacaniana at o seu final. O
significante ser na obra de Lacan o carro chefe que dar conta da questo sobre o sujeito e
o inconsciente.
Este trabalho tem como inteno traar a gnese terica de alguns conceitos
fundamentais no desenvolvimento da obra de Lacan do incio at os anos 50. Para isso,
preciso questionar o que permitiu e o que precisou ser revisto e organizado para que tanto o
simblico quanto o significante fizessem sua entrada na obra de Lacan a partir do contexto
inicial do imaginrio; preciso pontuar o que aconteceu com o perodo do imaginrio quetornou necessria a entrada do simblico, como tema privilegiado, e a partir deste, a entrada
do significante. sabido que a teoria lacaniana comporta dificuldades incontornveis: em
certos momentos, Lacan elege conceitos que logo so descartados sem maiores explicaes,
como o caso da noo de intersubjetividade no incio da dcada de 50; ou ainda, sob o
pretexto de reorganizar a teoria freudiana, faz brotar da obra de Freud noes que ali no
existiam. No se trata aqui de apontar se houve ou no um desvio da leitura lacaniana da
obra freudiana, ou de questionar se a apropriao que Lacan fez da lingstica fiel ao que
prope Saussure, mas de levantar as questes forjadas por Lacan para promover um retorno
a Freud e se apropriar da lingstica. Trata-se de compreender esse retorno tomado tal como
Lacan indica, ao p da letra: um retorno que significa uma reviravolta. Pois era preciso
contornar a instncia psquica sede das representaes inconscientes, como um lugar
pulsional, e fazer surgir a partir do contexto cultural em que se encontrava Lacan uma
teoria sobre o sujeito entendido como resultado e expresso da linguagem. Assim, surge a
psicanlise lacaniana como uma releitura, a princpio crtica, da obra vienense pelo vis de
novas influncias.
Para tanto, nosso trabalho recebeu o seguinte contorno. A primeira parte ser uma
anlise do que foi o imaginrio no perodo do seu surgimento, o que significa estar
identificado a uma imago e da surgir um eu. Faremos uma anlise do texto lacaniano O
estdio do espelho como formador da funo do eu , de 1949 e de como se deu o seu
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surgimento. A segunda parte ser uma anlise daquilo que Lacan formulou como o
simblico e de como a partir disto a linguagem passa a ter um estatuto to importante
dentro da sua obra, visando tanto a clnica quanto a teoria. Buscaremos desenvolver este
tpico baseado no texto-chave Funo e campo da fala e da linguagem em psicanlise de
1953, tambm conhecido como Discurso de Roma. A ultima parte ser dedicada a
estabelecer o que se pretendeu com o novo estatuto do significante e como a partir da se
fundamentou as noes de sujeito e de inconsciente. O texto escolhido para ser o suporte
deste momento foiA instncia da letra no inconsciente ou a razo desde Freud, de 1957.
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PRIMEIRA PARTE
PRIMEIRA TEORIA DO IMAGINRIO E A GNESE DO EU
NA
OBRA LACANIANA
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1. INTRODUO
Aparece, na obra de Jacques Lacan, trs momentos importantes no perodo do
imaginrio. O primeiro deles ocorre em 1938, quando Lacan, a convite de Wallon, escreve
um texto sobre a famlia para a Encyclopdie franaise no tomo VIII consagrado vida
mental. Este artigo leva o nome Os complexos familiares na formao do indivduo
tambm conhecido como A famlia. Este artigo uma referncia importante na teoria do
imaginrio, pois nele que aparece, pela primeira vez, o estdio do espelho como tentativa
de dar conta de questes que ficaram sem resposta ao final da sua teste de doutoramento de
1932, a saber, agnese do eu e o papel do meiosocial1. E, tambm, apresenta uma tentativa
de Lacan de reorganizar a teoria freudiana quando, ao contrrio de Freud, que coloca o
Complexo de dipo como central na sua obra, no complexo de intruso que Lacanorganiza o momento fecundo da constituio do sujeito, do outro e do objeto. De fato, esse
artigo pode ser considerado como a primeira tentativa para a formalizao de uma
psicologia que Lacan procurava instituir e que destitua qualquer explicao sobre o sujeito
humano a partir de fatores biolgicos e atribua importncia a sua relao social dentro do
funcionamento da famlia. Esta posio sustentada por Lacan no artigo sobre a famlia foi
apoiada por necessidades tericas impostas pelas questes que exigiam ser pensadas e que
ficaram em aberto desde 32 e, tambm, corroborada pela influncia exercida de Politzer
na leitura lacaniana da psicanlise2. Desta maneira, em 38, Lacan sustenta a seguinte
1 J. Lacan apropria-se do meio social para tentar formalizar uma cincia do sujeito como efeito e dependentedesse meio social. Desta forma, o que aconteceu foi um afastamento de J. Lacan dos dois ramos que atendiama psiquiatria: da tradio psiquitrica fenomenolgica de Jaspers, que visava compreenso docomportamento humano, e que tomava o sujeito como uma subjetividade absoluta, e tambm da tradioorganogentica da psiquiatria, que tinha como paradigma a demncia paraltica. A doena psiquitricaentendida segundo os moldes da organognese compreendia o corpo como o portador de um determinadodesvio e, por conseguinte, o mental era afetado, sendo este entendido como mero epifenmeno. A explicaoda doena mental se enquadrava num padro funcional mecnico-biolgico. Todavia, a tese de doutoramentode Lacan no finalizou os dois temas indispensveis no que se refere sua explicao da loucura: a estrutura
reacionalque diz respeito gnesedo eu; e a dependnciadosujeito, que remete ao papel do meiosocial.Desta forma, o texto sobre a famlia o momento em que Lacan promove uma possvel organizao do ficouem aberto na tese de doutoramento.2 Politzer, em sua obra Crticas dos fundamentos de psicologia, fazia elogios ao mtodo psicanaltico por ser aexpresso de uma psicologia concreta que dava sentido aos movimentos de um paciente em tratamento.Assim, em Die Traumdeutung, conforme leitura de Politzer, Freud revela que o sonho tem um sentido queprecisa ser desvelado a partir de uma interpretao que o sonhador encontra no relato de seu sonho. Noentanto, para Potitzer, a teoria metapsicolgica freudiana comporta uma noo realista do inconsciente isto, um inconsciente que se traduz por contedo latente (o submundo psquico) e o contedo manifesto comoefeito de superfcie dos fenmenos psicolgicos que est em desarmonia com a tentativa de produzir uma
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hiptese: a famlia responsvel pela humanizao de um sujeito, que, aps seu
nascimento, deixa de lado seu referencial natural e, imediatamente, est imerso em um
universo cultural que transmitido por esta instituio3 da qual faz parte.
Entre todos os grupos humanos, a famlia desempenha um papel
primordial na transmisso da cultura (...) prevalece na educao
precoce, na represso dos instintos e na aquisio da linguagem
(...) rege os processos fundamentais dos desenvolvimentos
psquicos (...)4.
No texto sobre a famlia, Lacan tentou articular conceitos forjados da psicanlise na
construo terica da dimenso social refletida na dimenso psquica, assim como: a
influncia dos complexos e das imagos na constituio do sujeito, do outro e do mundo.
Ento, o meio social familiar fornecia a base de sustentao para a formao do sujeito apartir da falha da natureza humana, e, desse lugar, o que se impunha era uma teoria do
imaginrio e, a partir da, a possibilidade do surgimento do eu. Tudo ocorre nos primrdios
da teoria lacaniana sobre a famlia como uma tentativa de explicao que parte do meio
social, passa pelo complexo que por sua vez permite o surgimento das imagos e, a partir
destas, constituio efetiva do sujeito.
Complexos, imagos, sentimentos e crenas sero estudados em
sua relao com a famlia e em sua funo do desenvolvimento
psquico que organizam desde a criana na famlia at o adulto
que a reproduz.5
O segundo momento ocorre oito anos aps esse artigo, no CongressodeBonneval
organizado por Henry Ey para tratar do tema da psicognese. Nesta ocasio, Lacan prope
psicologia cientfica para dar conta dos fenmenos psquicos. Segundo Politzer (...) bem verdade,portanto, que a psicanlise apresenta uma dualidade essencial. Ela anuncia, pelos problemas que se coloca ea maneira pela qual orienta suas investigaes, a psicologia concreta, mas ela desmente, a seguir, pelo
carter abstrato das noes que emprega, ou cria, e os esquemas dos quais se serve. E pode-se dizer, semparadoxo que Freud to surpreendente abstrato em suas teorias quanto concreto em suas descobertas.Essa chave de leitura da obra freudiana ser aquela que Lacan vai utilizar no perodo do imaginrio. Perodoeste compreendido como uma tentativa de reformulao dos conceitos psicanalticos para que ento umapsicologia concreta pudesse ser realizada.3 Lacan afirma que: Coordenados pelo mtodo sociolgico, esses dados [da etnografia, da histria, do direitoe da estatstica social] estabelecem que a famlia uma instituio. (Lacan, Os Complexos Familiares inOutros Escritos, pg. 30: 2003).4 Os Complexos Familiares inOutros Escritos, pg 30.5 Os Complexos Familiares inOutros Escritos, pg 36.
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uma formalizao radical do problema da causalidade psquica e, para explicar sua
compreenso da loucura, traz baila novamente o assunto da gnese do eu. Lacan faz uma
explanao sobre a loucura6 e a sua relao com a constituio humana, revelando que essa
uma possibilidade do sujeito humano e no uma doena que apresenta um dficit
neuronal. O projeto de constituir uma nova cincia psicolgica suficientemente concreta,
isto , individual, para dar respaldo compreenso de um sujeito psicolgico tem suas
diretrizes reveladas nesta apresentao de Lacan, quando este defende a idia de uma
psicognese em detrimento de uma organognese suposta pela psiquiatria vigente. Aps
criticar a concepo organo-dinmica de Henri Ey por este no estar de acordo com uma
idia que abarque uma compreenso da loucura pelo vis da psicognese, mas compreende
a loucura como uma defasagem fsica, Lacan passa a pronunciar um discurso sobre o que
at esse momento seu projeto terico conseguiu alcanar. A saber, que a loucura umfenmeno de conhecimento e vivida no registro do sentido (...) o fenmeno da loucura no
separvel do problema da significao para o ser em geral, isto , da linguagem para o
homem7. Lacan tira a loucura do estatuto de doena e a coloca num patamar de sentido e
linguagem. E, para falar sobre a loucura, Lacan apresenta o caso em que trabalhou na sua
tese de doutoramento, o Caso Aime8 que permitiu a ele mostrar que todo vivido do sujeito
expresso do meio social humano.
A primeira vez que Lacan trabalhou com o Caso Aime foi num momento anterior a
sua entrada no perodo do imaginrio e de uma certa forma causou a sua realizao. Vale
lembrar que nesta poca a empresa a que se dedicava Lacan resultou em sua tese de
doutoramento e essa tese girava em torno da formalizao da psicoseparanica e da
tentativa de Lacan mostrar que a psicose no apresenta um prejuzo na capacidade de
sntese como acreditava a psiquiatria clssica, colocando a doena mental num patamar
de dficit -, mas que constri a sua maneira uma sntese, isto , uma personalidade9.
6
Formulao sobre a causalidade psquica, in Escritos.7 Formulao sobre a causalidade psquica, in Escritos pg 166.8 Da psicose paranica em suas relaes com a personalidade, tese de doutoramento de 1932.9 A tese tambm levantava questionamentos crticos referentes doena mental no mbito da psiquiatriacomo uma maneira de romper com a organognese emprolde umapsicognese. Para justificar, de um lado, ainterpretao paranica da realidade e, de outro, uma nova teoria psicolgica que compreenda uma explicaoda mesma, Lacan utiliza-se deste caso clnico denominado de Aime ou a parania de autopunio. Comisso, foi possvel levantar alguns elementos da vida da paciente para poder confirmar que os eventosdeterminantes que possibilitaram a exploso de sua doena tocavam num conflito central de sua personalidade diagnosticada por Lacan como sendo uma personalidade paranica com finalidade de autopunio e com
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Este caso clnico, trabalhado na tese de doutoramento e tambm em 46, deu
condies a Lacan de articular o que estava construindo teoricamente no que concerne
explicao da gnese do eu e da loucura, podendo, desta forma, criar um solo para elucidar
as questes tericas de 32 e formalizar sua crtica maneira pela qual a psiquiatria clssica
via a questo da loucura ou da doena mental. Foi a partir da loucura que Lacan percebeu
que seria necessrio levantar no apenas uma explicao referente ao que acontece com o
homem para que este adoea, mas, tambm e principalmente, como se constitui uma
personalidade, como se d a constituio de um sujeito ou como o homem pode dizer eu.
Por fim terceiro momento , no ano de 49, no CongressoInternacional de
Psicanlise em Zurique, Lacan dedica todo um artigo - O estdio do espelho como
formador da funo do eu tal como nos revelada na experincia psicanaltica - para
tratar do que resultou, durante todo este perodo do imaginrio, do assunto da gnese do eu,tambm conhecido como sua primeira teoria do estdio do espelho10. Pode-se afirmar que a
fase do imaginrio a tentativa de Lacan de formalizar uma teoria sobre a constituio do
manifestaes de sentimento de culpa que envolveu todo o caso. Esse foi o primeiro lao de Lacan com apsicanlise. Por esta dar condies de se fazer uma anlise determinista da compreenso destes fenmenos,Lacan percebeu, no caso Aime, que a doena apontava para um determinado sentido pessoal, que ela tinhaum carter intencional e tambm, que todos os eventos eram regidos por uma lei. Desta forma, Lacan deu umsentido ao delrio da paciente ao mesmo tempo em que tentou justificar sua psicognese: trata-se de umafixaonarcsica de tal modo que todo o comportamento da paciente compe um ciclo de comportamentosque envolvem um desejo que precisou de satisfao numa situao social. Grosso modo, aps ter sidointernada e abandonada por todos os familiares, vinte dias depois da exploso do delrio, cessou o distrbio deAime. Lacan afirma que, aps ter extravasado toda a energia psquica do seu delrio, as exigncias delirantesde Aime passaram a no mais existir. Isto , ao ser punida depois de ter sido presa e internada e serdesamparada pela famlia, ocorreu a suspenso do delrio, a doena acabou, evidenciando que o seu intuito,ou o ataque homicida cometido contra a atriz, na realidade dos fatos psquicos, fora dirigido para si mesma;Lacan, chegando a essa verificao, pde diagnosticar a psicose da paciente como uma parania deautopunio.
Lacan levanta ento a questo de uma causa primeira da psicose, uma causa que pudesse justificar aformao da personalidade mrbida de um sujeito, ou, at mesmo, da constituio humana normal. Afinal, erapreciso uma justificativa psicolgica que fosse o alicerce do edifcio conceitual da constituio humana, euma das respostas encontradas nesse momento foi a formalizao psicanaltica defixao do desenvolvimentoda libido. Essa noo freudiana foi importada e relacionada no caso Aime como sendo o dispositivo quepermitiu a interpretao da paciente de autopunio. Isto , um determinado ponto de fixao do seu
desenvolvimento psquico que foi deslocado para o seu meiosocial, ou melhor, um evento ocorrido com talpaciente e que se fixou em sua psique foi transferido, ou investido pela sua libido, em sua relaofamiliar.Esses conceitos forjados da psicanlise permitiram a Lacan incrementar a sua construo terica de umacincia da personalidade dentro de um patamar psiquitrico e, portanto, seu envolvimento com a psicanliseaconteceu apenas de forma circunstancial. Lacan era um psiquiatra querendo inovar a teoria psiquitricareferente formalizao da doena mental e, para isso, queria menos levantar os fatos da vida de pacientes emais constituir uma cincia da personalidade a partir de uma psicologia concreta que fosse o solo frtil parasubsidiar a constituio de um sujeito compatvel com uma teoria da psicose.10 Este termo foi retirado da obra de Wallon, As origens do carter da criana, de 1934, que descreve asreaes de crianas com 8, 9 meses em frente ao espelho.
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sujeito humano e, para tanto, compromete-se com uma teoria antropolgica da constituio
humana, assim como tambm flerta com alguns conceitos da psicanlise freudiana que
puderam corroborar seu projeto, enquanto que outros conceitos freudianos foram
totalmente descartados e at certo ponto sofreram uma crtica feroz por parte de Lacan11.
Cada momento desta etapa da obra de Lacan, de 38 a 49, ora a crtica, ora a relativizao da
obra freudiana, apresenta-se com sua particularidade, cada um deles traz consigo a tentativa
de um psiquiatra de formao tradicional de definir um objeto para uma psicologia nova e
descrever uma teoria sobre o sujeito fundamentada em uma determinao social que
possibilite a criao de uma instncia psicolgica. Durante o perodo do imaginrio, o
projeto a que se dedicar Lacan ser o de tentar reformular o conceito de narcisismo, ou
como possvel o surgimento do eu no homem e como se d sua relao com o meio
social. Ou melhor, o empreendimento a que se dedicar Lacan sair de um patamarpsiquitrico em direo constituio da psicologia que ir ser respaldada por uma
antropognese que culminar numa formalizao do eu pelo vis da experincia que dele
nos d a psicanlise12.
Depois do trmino deste perodo e por causa dele, ocorre uma transformao de
grande importncia no projeto de Lacan: este vai tornar-se ento um psicanalista e clamar
por um retorno obra freudiana, o que parece implicar, o abandono do seu projeto inicial.
Da surge a questo de saber: o que do perodo do imaginrio, que foi marcado por uma
teoria psicolgica que desse conta do papel do meio social, levou Lacan a filiar-se
doutrina vienense sustentada por uma teoria do simblico? Isto , o que permitiu a Lacan, a
partir de sua tentativa de formalizar uma psicologia da gnese do eu a partir do meio social,
tornar-se um dos tericos da obra freudiana relida ento, na dcada de 50, a partir do prisma
da linguagem?
Para responder a essas questes, preciso voltar ao perodo do imaginrio e
compreender suas articulaes internas e tentar encontrar quais foram os motivos que
permitiram que simblico fizesse sua entrada na obra lacaniana.
11 Como por exemplo: a noo, inerte e impensvel, de inconsciente (Causalidade Psquica in Escritos, pg183).12 Estdio do Espelho in Escritos, pg 96.
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2. A GNESE DO EU
Na tese de doutoramento de Lacan (1932), o meio humano aparecia como meio social
humano13 e os indivduos eram o modo de expresso desse meio vivido. Esse carter social
era a condio necessria para cobrir a falha humana: a prematurao psicofisiolgica.
Devido a esta falha, Lacan introduziu, em 1938, o conceito de complexo (contra a noo de
instinto)e de imago para dar respaldo vida subjetiva entremeada por essa condio social.
A instituio familiar como condutora de cultura tira o homem de um patamar unicamente
biolgico para inseri-lo em um contexto social, que em funo do dficit do instinto no
sujeito humano devido a prematurao psicofisiolgica torna possvel substituir os
determinantes biolgicos pelos culturais, permitindo ao meio social condicionarsobremaneira a ordem psicolgica. Mas, daqui surge uma questo: de que modo essa
situao social familiar pode dar conta da gnese do eu? a partir da noo de complexo e
imago que Lacan ir responder a esta questo.
O projeto lacaniano tem como objetivo a formalizao de uma nova cincia
psicolgica que possa responder sobre o homem enquanto ser psicolgico e cultural e A
famlia uma tentativa de colocar em ao esse empreendimento terico que envolve uma
determinada situao social e uma dinmica de identificao aos personagens do drama
familiar. Esta situao externa atrelada a uma vivncia psquica o modo pelo qual Lacan
define o complexo. Um conjunto de reaes, tanto fsicas quanto emocionais, que reproduz
uma determinada realidade; esta reproduo ocorre de duas maneiras: primeiro, na sua
forma, o surgimento de um complexo reflete um momento especfico do desenvolvimento
psquico e segundo, na sua atividade, uma realidade que foi inscrita poder ser repetida
sempre que um evento exigir uma manifestao psquica ou uma resposta do sujeito a esse
evento. o complexo que organiza o desenvolvimento psquico e seu novo surgimento
ocorre sempre em reorganizao ao que ficou de outros conflitos vividos na realidade. Isto
quer dizer que um novo acontecimento sempre ocorre na retomada de vivncias anteriores.
Sendo assim, por ser esse o modo de organizao de um complexo de inscrever uma
13 Lacan toma de emprstimo essa idia de Von Uexkll, um bilogo que atribua o desenvolvimento doscomportamentos relao com o meio social.
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vivncia e de ressurgir como fundo para a possibilidade de compreenso de um novo vivido
, possvel pens-lo como um momento intermedirio entre o social e o psquico e,
portanto, dependente da cultura local, da famlia, que constitui as relaes sociais de um
sujeito.
Contudo, essa formalizao que Lacan d para o conceito de complexo marca uma
recusa da noo de complexo em Freud14 e uma reordenao de tal noo se d a partir de
uma psicologia que atribui s relaes sociais a possibilidade de uma vida psquica. Lacan,
entretanto, precisa eleger uma noo que d conta do fenmeno psicolgico na relao do
sujeito com o complexo, produzido pela realidade familiar. Essa noo designada pelo
nome de imago e um processo psicolgico que um sujeito vive atravs do complexo, uma
imagem submetida subjetividade. A imago pode ser descrita como uma imagem unida aos
afetos que se manifestam no complexo e, a partir da posio subjetiva em que o sujeito seidentifica, passa a interpretar a realidade em que est inserido. A imago responde por uma
instncia psicolgica e o inconsciente s pode ser considerado na obra de Lacan neste
momento como falta de conscincia, um conceito meramente descritivo e no como um
lugar de representaes ou o campo psquico que causa o sujeito humano. Pois este o
lugar que a instituio familiar atravs dos complexos que impem as imagos vem
ocupar, estabelecendo desse modo, entre as geraes, uma continuidade psquica cuja
causalidade de ordem mental15.
Os complexos que organizam a subjetividade so estes: o complexo do desmame, o
de intruso e o de dipo. Com o estatuto que Lacan deu a noo de complexo e
conseqentemente a noo de imago, foi possvel formalizar uma constituio do eu dentro
de um enquadramento psicolgico to caro ao projeto lacaniano. E o complexo de
14O complexo foi definido por seu inventor, Freud, como um evento inconsciente, intrapsquico, constitudopor fantasias que partiam de uma fonte constitucional ou endgena. Os complexos de dipo e de Castraonas suas manifestaes no so dirigidos pela conscincia, mas atravs das pulses, noes designadas porFreud com uma fonte endgena. No momento em que Lacan se encontrava, sua leitura do conceito de pulso
(Trieb) se fazia de acordo com a traduo inglesa da obra de Freud, a saber, como instinto, remetendo estanoo a um biologismo que Lacan recusava, visto que seu percurso at aqui era formalizar uma teoria querevelasse a questo da constituio do sujeito pelo social em detrimento da natureza. A obra sobre a famliatem este intuito: trazer para cultura aquilo que em Freud, segundo Lacan, era biolgico.Lacan repudiarmais uma vez (como fizera na Tese) o substancialismo da metapsicologia freudiana em nome de umaconcepo relativista dos fatos psquicos, como ressalta no privilgio que conceder noo decomplexo. (ARANTES, Paulo; in SAFATLE, Vladimir. Um limite tenso, J. Lacan entre a filosofia e apsicanlise. So Paulo : Editora Unesp, 2003. Pg. 45).
15 Os Complexos Familiares in Outros Escritos, pg 31.
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intruso o complexo central da teoria do eu, pois nele que o imaginrio se mostra em seu
apogeu: a gnese do eu a partir de uma imagem que se converte em um momento fecundo
da constituio do sujeito humano culminando numa relao negativa com o outro. Por
isso, possvel afirmar que, diferentemente de Freud, Lacan organiza a constituio do
sujeito a partir do complexo de intruso.
O complexo de intruso, que se passa na relao entre irmos, tem como ponto
central a identificao afetiva como precondio ao cime pelo reconhecimento da
presena do outro semelhante. Neste momento, o cime no compreendido como
rivalidade vital, como disputa pelo alimento materno, ele a consequncia de uma
identificaomental. O outro, o irmo, o rival tomado como objeto ocupa um lugar que
outrora era seu: o lugar ao peito materno. Esse outro ser alvo da agressividade do
desmamado que, por isso mesmo, identificou-se e confundiu-se com ele. A imago do outro,que a princpio aliena, o modelo para a constituio de seu prprio eu, como afirma
Lacan: o eu se constitui ao mesmo tempo em que o outro no drama do cime 16. E, em 49,
Lacan retoma essa identificao: ele fala ento do estdio do espelho, pelo vis da
psicologiacomparada17cotejando uma possvel relao do filhote do homem com o filhote
do chimpanz18 onde h um momento em que o filhote do chimpanz sobrepuja o filhote de
humano no que se refere inteligncia. No obstante, ao perceber refletida sua imagem em
um espelho, h pouco interesse da parte do filhote de macaco e, ainda, aps algum tempo,
segue-se um desinteresse total pelo evento. O mesmo no acontece com o filhote humano.
Para este, ao ver refletida sua imagem, surge umasucesso de movimentos que ele passa a
experimentar com seu meio, acompanhado de um grande interesse por essa imagem que o
captura. Essa ao por parte do beb, de xtase ao ver uma imagem, uma tentativa de
conciliar uma vivncia internaperceptiva que est relacionada a uma sensao de jbilo a
partir da visualizao da imagem de um corpo em movimentao. Aps os seis meses, o
beb, sem ter ainda o domnio de seu corpo, v uma imagem refletida no espelho e
tomado de umjbilo e xtase capaz, a tal ponto, de antecipar, nesse beb, afixao de um
detalhe dessa imagem. A comparao do filhote do homem com o filhote do macaco, Lacan
16 Os Complexos Familiares in Outros Escritos, pg 34.17 O estdio do espelho como formador da funo do eu tal como nos revelada na experinciapsicanaltica in Escritos 1998, pg. 96.18 Esse exemplo que Lacan traz da psicologia comparada foi tirado dos experimentos de Khler (Ainteligncia dos macacos superiores) sobre a imagem especular dos chimpanzs.
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a faz para justificar que a reao de ambos se difere no que diz respeito constituio de
um eu. A sensao de jbilo seguido de um grande interesse por uma imagem refletida na
qual o sujeito capturado concorre para o momento inaugural da formao do eu e,
tambm, funciona para revelar o papel imaginrio da gnese da subjetividade humana.
Esse acontecimento, afirma Lacan, revelador tanto de um dinamismolibidinal quanto de
uma estrutura ontolgica do mundo humano relacionado por ele ao conhecimento
paranico19. A estrutura ontolgica do mundo humano, ou melhor, o momento em que
nasce o eu e o mundo pela apreenso de uma imagem vinda de fora, o que respalda as
compreenses das manifestaes nas crenas delirantes no fenmeno paranico, ou ainda,
este o solo que permite o acontecimento do fenmeno paranico. A crena delirante nas
formaes alucinatrias da psicose semelhante criana quando atribui uma verdade s
imagens que formam seu mundo e seu eu em um mesmo golpe nesse perodo.Foi esse momento fundamental da constituio do eu momento em que a criana
capturada por uma imagem que lhe externa e a aliena que Lacan buscou articular com o
seu modo de compreender a loucura apresentado no congresso em que foi convidado a falar
da psicognese. E para tanto, em 46, Lacan entrou num debate com Henri Ey sobre a
doena mental a partir da sua compreenso do que a loucura e como esta pode ser
relacionada com o eu na sua constituio. Lacan apresenta a crena como um evento que
no pode ser separado do fenmeno da alucinao e do delrio. Concorda com Henri Ey
quando este afirma essa hiptese, mas o critica quando este atribui um erro de percepo
crena delirante e, assim procedendo, dissolve tal fenmeno em um juzo. Por mais
tradicional que seja a abordagem de Ey, ao situarnas dobras do crebro a crena delirante
e afirm-la como um fenmeno de dficit, Lacan o condena por tomar este caminho errado
na formalizao de uma concepo da loucura. Pois, para Lacan o erro sim um dficit de
sentido, mas a crena no tem relao com defasagem orgnica alguma, pois ela no um
erro, desconhecimento. Um louco louco pelo fato de no reconhecer os fenmenos que
experimenta e tem relao, seja qual for automatismo, alucinao, interpretao, intuio
, como produes suas. Estes so fenmenos que devem ser desvelados e tal desvelamento
possvel pela linguagem, pois na linguagem se justificam e se denunciam as atitudes do
19 Estdio do Espelho in Escritos, pg 97.
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ser20. Para se compreender qual a estrutura deste desconhecimento que caracteriza a
loucura e qual a relao dessa situao com a gnese do eu , que faz o louco no
reconhecer que as suas manifestaes delirantes so causadas por ele mesmo devido a um
sentido que deu a seu mundo em um determinado momento do seu desenvolvimento
psicolgico, Lacan traz o caso que deu respaldo a sua tese de doutoramento: o caso Aime.
Com a apresentao do caso Aime, Lacan buscou argumentar sobre o evento do
desconhecimento na loucura como sendo um fenmeno observvel desde o princpio e
acrescenta logo em seguida: Seguramente, pode-se dizer que o louco se acredita diferente
de quem ...21 como Aime que se acreditava vtima de um compl para lhe tirarem o
filho, ento, foi preciso acabar com as ameaas que estava recebendo de uma atriz francesa,
Hughette Duflos, e para tanto atacou tal atriz na entrada de um teatro; sentidos estes dados
pela paciente para os eventos da sua vida que compunham a estrutura do seu delrio. Lacanento apresenta que o sujeito desconhece que sua loucura uma construo de sentido que
ele faz do mundo, e este mesmo desconhecimento que est na base da loucura o mesmo
que o homem vive na sua constituio como homem, como um eu: se um homem que se
acredita rei louco, no menos o um rei que se acredita rei22. O sujeito normal, ou
melhor, aquele que no encerrado num asilo, que no se diagnostica como louco, possui
no cerne do seu ser o fenmeno que caracterstico de uma manifestao da loucura: o
desconhecimento.
At aqui o que se viu foi a relao entre desconhecimento que est na base da
loucura e o sentido que o sujeito d aos eventos de sua vida; e, para deslindar tal condio a
respeito da loucura e sua convergncia com a realidade prpria do homem, Lacan fala sobre
conceito de identificao. A loucura no se d num acidente que ocorre por um mau
funcionamento fsico, mas a partir das identificaes em que o homem engaja
simultaneamente sua verdade e seu ser23. Em outras palavras, o que Lacan traz luz que
aquilo que qualifica a loucura num desconhecimento de si mesmo est na origem do
homem e aplica-se ao desenvolvimento dialtico do ser humano24. O processo
identificatrio o momento fecundo do desenvolvimento humano, pois a partir dele que o
20 Causalidade Psquica in Escritos, pg 168.21 Idem, pg 171.22 Idem.23 Idem, pg 177.24 Idem, pg 173.
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infans passa para a possvel realizao em si da condio humana. Lacan concludente
nesse momento da sua obra ao dizer que a loucura a:
(...) virtualidade permanente de uma falha aberta em sua essncia... fiel
companheira [da liberdade], e acompanha seus movimentos como uma
sombra... e o ser do homem no apenas no pode ser compreendido sem a
loucura, como no seria o ser do homem se no trouxesse em si a loucura
como limite da sua liberdade 25.
A explicao que Lacan desenvolve sobre o fenmeno da loucura e sua relao com
a constituio do eude um sujeito se passa, ao que parece, da seguinte maneira: a crena
que est na raiz de um fenmeno da loucura outra coisa que no erro de juzo, ela
desconhecimento. O sujeito delirante aquele que cr no seu delrio, pois ele realmente v,
ouve e vive todos os eventos desses fenmenos no reconhece que tais eventos socriaes suas. Mas, h, no entanto, uma antinomia que envolve o desconhecimento. O
desconhecimento supe um reconhecimento. louco o sujeito que se acredita rei quando
pobre, entretanto, louco tambm o rei que se acredita rei. A loucura um fenmeno que
evidencia o desconhecimento que o mesmo pelo qual o eu vem a se constituir. Por isso, o
rei que se cr rei no diferente do louco pobre que se cr rei, ambos esto no corao da
dialtica do ser26. O fato que caracteriza a loucura o desconhecimento - se aplica aos
momentos em que ocorre o desenvolvimento dialtico do ser humano: na alienao
constitutiva do eu que se define a partir de um outro. O desconhecimento no prprio do
fenmeno que caracteriza a crena na loucura, mas ao eu em geral. A maneira como o
homem denomina-se como eu resultado de identificaes e alienaes a uma imagem
vinda de fora do sujeito que faz com que acredite que esta imagem ele . Sendo assim, a
loucura no um acidente que ocorre por um mau funcionamento de aparelhos e rgos
que constituem um organismo dbil, ela da mesma forma que o eu : resultado das
identificaes que um sujeito realiza. Assim Lacan apresenta o estdio do espelho como
uma tentativa de descrever o poder de constituio desse modo imaginrio e, para tanto, faz
um percurso que pretende reencontrar de onde vm tais identificaes e apreender a
25 Idem pg 177.26 Idem, pg 171.
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modalidade de forma e de ao que fixa as determinaes desse drama (...) identificvel
com o conceito de imago27. Nas palavras de Simanke:
Se a loucura imanente realidade humana, porque esta
identificao imediata, primria, que est na sua origem, um momento
logicamente necessrio na edificao do sujeito e, portanto, os alicerces
da subjetividade esto enraizados num solo tipicamente paranico de
identificaes perfeitamente constitutivas, das quais o estdio do espelho
busca fornecer o modelo 28.
A explicao que Lacan oferece que a loucura um modo de expresso de uma
certa forma exagerada do que acontece, enquanto vivncia quando o homem passa a se
reconhecer como um eu. Pois, a criana desamparada por depender de outros para existir,
para se alimentar tomada de jbilo por causa de uma imagem que a capta e, ento, essacriana se agarra quela imagem como sendo ela mesma. o que Lacan chama de
identificao: a transformao produzida no sujeito quando ele assume uma imagem29.
Eis o que se est querendo reafirmar: a noo de identificao permite compreender o
estdio do espelho como o momento em que a criana faz a assuno de uma imagem para
si. A identificao a uma imagem vem ficar no lugar do que antes era ocupado por uma
verdadeira privao. O eu aparece, em sua forma primeira, para tomar o lugar da
incapacidade de sobrevivncia de que provido o corpo humano quando beb. Nas
palavras de Lacan:
A assuno jubilatria de sua imagem especular por esse ser ainda
mergulhado na impotncia motora e na dependncia da
amamentao que o filhote do homem nesse estgio de infans
parecer-nos- pois manifestar, numa situao exemplar, a matriz
simblica em que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes
de se objetivar na dialtica da identificao com o outro e que a
linguagem lhe restitua, no universal, sua funo de sujeito30.
27 Idem, pg 179 (Grifos nossos).28Metapsicologia lacaniana, os anos de formao. 2002. Pg 239.29 Estdio do Expelho in Escritos, pg 97.30 Idem.
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Essa azfama jubilatria demonstra o quanto a captao da imagem o momento
inaugural da constituio do eu de um sujeito. O sujeito passa a existir, enquanto sujeito, a
partir de uma forma que lhe vem de fora e por isso possvel dizer que o eu um outro31.
Lacan postula: desde antes de sua determinao social..., a partir da forma que lhe
externa e assumida pelo eu, o sujeito se assenta numa linha de fico32. De uma
condio negativa, a captao imaginria funda-se como um efeito compensatrio, e disto
forma primeira do eu para sempre irredutvel para o sujeito humano33. Essa forma
antecipada em que o sujeito se engendra e que lhe vinda de fora, faz o eu humano crer
(semelhante ao fenmeno da crena delirante) pela identificao que a imagem ele. A
partir deste episdio, de encantamento por perceber-se no outro como sendo si mesmo,
constitui-se uma unidade corporal que at ento no se podia supor na criana. A Gestalt
para usar o mesmo termo que Lacan medida que percebida como uma forma limitadapelos aspectos da exterioridade oferta ao sujeito uma:
(...) forma total do seu corpo(...) uma forma que mais constituinte
que constituda(...) ela lhe parece num relevo de estatura que a
congela e numa simetria que a inverte, em oposio turbulncia
de movimentos com que ele experimenta anim-la. Assim essa
Gestalt, cuja pregnncia deve ser considerada ligada espcie(...)
simboliza, por esses dois aspectos de seu surgimento, a
permanncia mental do [eu] ao mesmo tempo em que prefigura
sua destinao alienante...34
A Gestalt crava no sujeito, a partir dos movimentos revelados pelo xtase vivido, a forma
de uma totalidade para um corpo e ao mesmo tempo destaca a condio de prematurao
da espcie humana. No pouco o que Lacan est anunciando aqui. Trata-se de descrever
que uma Gestalt tem sobre um organismo a capacidade de constituio e, alm disso, a de
reforar a premissa do imaginrio.
Lacan afirma que a histria de um sujeito desenvolve-se numa srie de
identificaes ideais e que o eu que o sujeito constitui para si resultado de uma imagem
31 A Agressividade em psicanlise in Escritos, 1948. Pg 120.32 Estdio do Espelho in Escritos, pg 98.33 Idem.34 Idem.
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com a qual identificou-se. Diferente de Freud, que acreditava que o eu est identificado ao
sistema percepto-consciente organizado pelo princpio de realidade ou caracterizado por
aquele que realiza asntese, foipor um mtodo fenomenolgico35 que Lacan construiu sua
teoria do eu, pelo caminho do conhecimento paranico, que o levou a um parentesco com a
noo de transitivismo que se expressa a princpio como matriz da Urbild do Eu36, a fase
mais arcaica do eu, mas que nunca se elimina da vida do homem por completo. Atravs dos
estudos de Charlotte Bhler que percebeu o transitivismo atravs de brincadeiras entre
crianas, pde-se concluir que h uma verdadeira captao pela imagem do outro37. Ao
colocar duas crianas juntas, que esto no primeiro ano de vida, observa-se que ambas esto
identificadas uma a outra, pois, quando uma cai, as duas sentem o tombo e choram, uma
bate na outra e sente o seu prprio golpe. Estes fenmenos descritos pela autora, que vai do
cime at as primeiras manifestaes de simpatia, aparecem no espelho lacaniano, namedida que o sujeito se identifica, em seu sentimento de si, com a imagem do outro, e que
a imagem do outro vem cativar nele esse sentimento38, o sentimento de si. Esse fenmeno
de si mesmo misturado ao outro, e que no se sabe mais quem um quem o outro, o
primeiro efeito da imago: o acontecimento da alienao, a imagem do outro atravs do
desejo e do desconhecimento. no outro que o sujeito se identifica e at se experimenta
no princpio39.
O estdio do espelho, evento que ocorre no complexo de intruso, fala desta fase
arcaica do desenvolvimento humano, quando da assuno triunfante da criana da sua
imagem no espelho imagem do semelhante levando-a a uma ao identificatria
acompanhada de mmicas e gestos frente a tal novidade que a capta. Esse o modo
imaginrio que tem como efeito a constituio humana, so as relaesimaginrias de uma
determinadafasedodesenvolvimento humano. Esse evento imaginrio vivido pelo homem
deve ser compreendido em conseqncia da prematuridade do seu nascimento, a
incompletude e atraso do desenvolvimento da neuraxe nos primeiros meses de vida.
35 Causalidade Psquica in Escritos, pg 18136 Idem.37 Idem, pg 182.38 Idem.39 Idem.
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Na sua teoria da gnese do eu, Lacan se fundamenta na defasagem da natureza
humana: a prematurao especfica do nascimento do homem40 e ressalta on de
servido imaginria41que aparece no espelho.A falta no real, de um corpo desprovido de
autonomia, permite a dominncia da Gestalt. Portanto, como diz Lacan: o estdio do
espelho um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficincia para a
antecipao42. Ora, o sujeito dotado de uma insuficincia precipita-se a partir de uma
imagem externa a ele, em que engendra o domnio do seu corpo, ou, de uma miragem que
expressa a maturao da sua potncia43 . Falar em unificao corporal a partir de uma
forma externa o mesmo que falar em antecipao na constituio do sujeito humano.
O estado de dependncia e de impotncia motora, vivido pela criana devido a
prematurao especfica do seu nascimento, estabelece o imaginrio como um modo
compensatrio e, dessa negatividade, ocorre a antecipao da forma total de um corpo,assim como o prprio nascimento do eu e do outro. Esse evento do Innenweltpara o
Umwelt pode ser representado pelo modelo de uma dialtica temporal44 que abarca
toda a histria da constituio do homem. Essa dialtica realiza o contorno da hiptese
levantada por Lacan a partir de observaes clnicas a respeito da fantasia do corpo
fragmentado que construda no futuro e projetada no passado . Essa fantasia ocorre aps a
constituio da unidade do corpo a partir de uma imago, ela no anterior ao evento do
espelho, mas lanada no momento anteriora este evento, retrospectivamente. O futuro que
se projeta no passado, ou um passado atualizado pelo futuro. importante destacar que essa
fantasia do corpo fragmentado no uma manifestao da defasagem humana, mas
constituda retroativamente quando se atribui uma forma ao corpo por uma imago
especular, e a construo dessa forma que se adere ao corpo no suplanta a fragmentao
imaginria.
Entretanto, com tudo que se viu a respeito da gnese do eu a partir da imagem do
outro possvel compreender que h uma identificao entre sujeito e determinao
imaginria e desta identificao o que resulta, como afirma Lacan, o impensvel de um
40 Estdio do Espelho in Escritos, pg 100.41 Idem, pg 103.42 Idem, pg 100.43 Idem, pg 98.44 Idem, pg 100
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sujeito absoluto45, o que torna esta perspectiva imaginria insatisfatria46. Aparece,
portanto, uma primeira falha nesta compreenso de sujeito que faz Lacan lanar mo de um
mtodo dereduo simblica47, ou melhor, de uma composio outra que est para alm
da ordem imaginria, pois devido ao fato da constituio do sujeito estar baseada apenas
em dados subjetivos torna-se ineficaz para a tcnica da psicanlise que tem como mira, a
partir da linguagem, a cura do sintoma do paciente. Ora, Lacan tenta ampliar na teoria da
psicanlise que foi a teoria eleita para compor o seu projeto de uma psicologia concreta
a importncia da relao entre tcnica e teoria, j que, por uma exigncia clnica, o mtodo
de reduo simblica, a linguagem, vem para determinar essa tal conseqncia do meio
externo na formao dos eventos psquicos. Lacan anuncia:
... a nos fundamentarmos apenas nesses dados subjetivos, e por
menos que os emancipssemos da condio de experincia que nosfaz deduzi-los de uma tcnica de linguagem, nossas tentativas
ficariam expostas recriminao de se projetarem no impensvel
de um sujeito absoluto48.
A importncia da dimenso simblica nesse momento se d tambm em decorrncia
de uma outra noo que est na pena de Lacan desde o texto sobre a famlia. Essa noo a
da agressividade. Para Lacan, o complexo de intruso apontado como o complexo central
na constituio do sujeito e que tem como tema central o encontro rival vivido pelo sujeito
na relao com o outro. o carter de transitivismo que governa o comportamento da
criana na presena do outro. Situao que se simboliza no Tu ests outroda querela
transitivista, da forma original da comunicao agressiva49. Com esse evento surge, alm
do eu e do outro, o objeto socializado ou desejado. Pois, se um do par rival deseja um
objeto, o outro que est imaginariamente identificado, alienado a esse primeiro, desejar
tambm o objeto que este deseja, assim, o desejo do sujeito o desejo do outro. Ou melhor,
um sujeito identificado a outro sujeito desejante tornar-se-, tambm, um sujeito desejante
45 Estdio do Espelho in Escritos, pg 101.46 Simanke aponta que para no redundar nesse sujeito absoluto, que poderia colocar em risco todo o projetoepistemolgico Lacan lana mo da linguagem como sendo uma ordem externa dimenso imaginria,podendo,com isso, tentar compor uma cincia rigorosa e objetiva (Metapsicologia lacaniana, os anos deformao. So Paulo : Discurso Editorial; Curitiba : Editora UFPR, 2002, pg. 329).47 Estdio do Espelho in Escritos, pg 101.48 Idem.49 A coisa freudiana ou o Sentido do Retorno a Freud. In Escritos pg 430.
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independente do objeto desejado, pois a relao a se faz no pela questo do objeto, mas
pela identificao ao sujeito enquanto ser desejante50.
A estrutura especular, entretanto, ternria, pois envolve o eu, o objeto e o outro
para quem dirigida a agressividade. A agressividade aponta, desta forma, para a
identificao primria pela qual o sujeito se apodera da imagem do outro como sendo ele
mesmo. Por isso, o eu um outro e, portanto, a agressividade uma fora ambivalente que
afeta o prprio sujeito. O sujeito se fixa a uma imagem que o capta, pois nela que
encontra o seu eu ideal, ao mesmo tempo em que a odeia, visto que esta imagem a de um
outro o reconhecimento no desconhecimento apontado anteriormente na questo da
loucura. A agressividade ocorre em conseqncia do processo da constituio humana,
necessariamente alienante, pois o sujeito aliena-se para se constituir e reparar sua
inadequao vital.A agressividade conseqncia da identificao narcsica, vivida no nvel da
subjetividade e no uma conseqncia do meio social, e, portanto, manifesta-se na
experincia da psicanlise que subjetiva por sua prpria constituio51, isto , na
clnica da psicanlise. Lacan diz em 1948 que quer transformar a agressividade em um
conceito preciso lembrar que Lacan, neste perodo, quer construir uma cincia tomando
a psicanlise como teoria eleita para subsidiar seu projeto. Resta-me a tarefa de provar
perante os senhores se possvel formar dela [a agressividade] um conceito tal que ela
possa aspirar a um uso cientfico(...)52. Isso acontece quando Lacan faz uma leitura
antropolgica do homem, influenciado tanto pelo seminrio de Kojve quanto pela obra
politzeriana adere ao mtodo teraputico ao mesmo tempo em que abole a
metapsicologia. Lacan precisa, com isso, reformular os conceitos que do a teoria freudiana
seu carter substancialista apropriando-se de um modelo relativista para conferir
cientificidade psicologia que fundamentava com tal reformulao. Ao substituir a
metapsicologia por uma antropologia a constituio do eu se d pela meio social , Lacan
constri uma subjetividade mediada pelo outro e constri uma realidade. Lacan nega da
obra de Freud seu fundo biolgico que rege os movimentos da teoria das pulses, do desejo
e do inconsciente e, com seu projeto de relativizar a realidade psquica, confere a essas
50 Voltaremos a esse assunto quando da apresentao da influncia kojviana na produo lacaniana.51 Agressividade em psicanlise in Escritos, pg 105.52 Idem, pg 104
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noes seu fundo relativista. A vida psquica mediada pelo outro que a expresso do
meio social. E, com o conceito de agressividade, Lacan d uma soluo para a noo de
destrutividade apontada por Freud pelo vis da pulso de morte. A agressividade surge
como uma inteno entrelaada, quando o sujeito se identifica a uma imagem que constitui
sua unidade corporal. Esse acontecimento permite afirmar a imanncia da agressividade na
constituio humana e tambm geratriz de uma subjetividade para o sujeito. Sendo assim,
Lacan instituiu sua noo de agressividade em detrimento da noo de pulso de morte de
Freud, tema central da metapsicologia. Esta forma de compreender a agressividade como
imanente ao sujeito humano deve ser trabalhada em anlise como um objeto privilegiado
que possibilita ao analisando a projeo sobre o analista das suas identificaes primeiras
que, sendo assim, permitir caso o analista comparea como sujeito e interlocutor dessa
situao subjetiva a resoluo da neurose do paciente. Comparecer como sujeito significadizer que o analista no deve atuar na anlise como um eu (moi) ou como objeto de
identificao, para que no acontea nesta relao uma repetio que outrora fora vivido
pelo analisando e desta forma despertaria uma tal tenso agressiva que no permitiria a
implantao da transferncia. Esse modo que Lacan est ofertando teoricamente tcnica
da psicanlise j um primeiro esboo para a reformulao da noo de inconsciente. Isto
, devido necessidade que est se apresentando por causa do modo como se est
compreendendo o sujeito ou melhor, na tentativa de romper com a idia de constituir um
sujeito apenas nos moldes da subjetividade h que se empreender uma determinao
simblica para subverter a posio unicamente imaginria. Portanto, o simblico se
apresenta como condio para a relao analtica, como motor na elaborao da relao
analtica, isto , o que permite, a partir das intervenes do analista que est na posio de
receptculo das imagos primordiais projetadas do analisando, o tratamento analtico
acontecer. Essa relao ser trabalhada por Lacan a partir da dcada de 50, mais
precisamente noDiscurso de Roma que traz consigo uma reelaborao, pelo vis da noo
de estrutura, do tratamento analtico.
Antes de concluir a teoria central do perodo do imaginrio preciso mostrar qual
foi a influncia que Lacan teve e que permitiu sua formalizao antropolgica do sujeito e,
tambm, apontar como foi que nosso autor construiu a noo de desejo. Essa influncia
teve tanto importncia na teoria da gnese do eu pois o modo de constituio pela relao
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de um sujeito ao outro excluindo qualquer possibilidade de constituio a partir da
negatividade da natureza biolgica foi adequado a partir desta experincia filosfica
quanto fornece o meio de se compreender o desejo como sendo desejo de desejo, excluindo
qualquer relao a um objeto. Essa influncia foi o seminrio de Alexandre Kojve.
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3. O DESEJO
A influncia da filosofia hegeliana na obra de Lacan marcada pela viso de
Alexandre Kojve que promoveu uma interpretao da Fenomenologia do Esprito (Hegel,
1807) em um sentido antropolgico e marxista colocando o esquema formal hegeliano
dentro de um plano dramtico e concreto. Segundo Roudinesco, ele (...) privilegia uma
dialtica da prxis em detrimento de uma dialtica das conscincias53, e compreende a
luta por reconhecimento a partir da luta de classes. Ao reintroduzir a filosofia dialtica
hegeliana na Frana da dcada de 30, Kojve apresentou uma filosofia diferente daquela
vigente da poca, a filosofia analtica kantiana, e anunciou um modo outro de apresentar a
relao sujeito e objeto, explicando um esquema que manifesta a existncia de outrasconscincias e, por conta disto, a rivalidade inerente da noo de sujeito relacionado a outro
sujeito. Isto demonstra que o modo kojviano de traduzir a dialtica do Senhor e do
Escravo se d a partir da rivalidade resultante desta relao entre esses sujeitos e uma sada
dessa condio possvel atravs da luta por reconhecimento (...) o ensino kojviano (...)
no restitui a verdade integral do texto hegeliano, mas traz-lhe um esclarecimento
original54 .
Em 1919, ao ser obrigado a deixar seu pas, Kojve, um moscovita, termina seus
estudos de filosofia na Universidade de Heidelberg, na Alemanha. Parte, no ano de 1928,
Paris e, a convite de seu amigo Alexandre Koyr, em 1933, ministra um seminrio na
Escola Prtica de Estudos Superiores sobre a Fenomenologia doEsprito. Desde ento,
noes como saber absoluto, reconhecimento, desejo, satisfao, negatividade, dialtica
passam a fazer parte do repertrio dos ouvintes deste curso que teve durao de seis anos.
Entre outros, Lacan compe a pliade que se deixa seduzir por este modo de ensino que
transformou a inteligncia francesa da poca. das aulas de Kojve (...) a prevalncia
atribuda por Lacan ao sujeito desejante, gerador de reconhecimento e batalhador do
desejo do outro55. A influncia da concepo kojviana de antropognese aparece no
53 ROUDINESCO, Elisabeth.A histria da psicanlise na Frana: a batalha dos cem anos, vol 2. Rio deJaneiro : Jorge Zahar, 1988. Pg. 157.54 Idem, pg. 156.55 Idem.
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projeto lacaniano quando da necessidade de constituir no s a ordem social como
determinante de uma subjetividade, mas, tambm, de determinar, do ponto de vista do
sujeito, uma teoria sobre o seu surgimento, isto , a gnese do eu. Assim nasce o estdio do
espelho a partir de:
(...)um processo dialtico de supresso/incorporao do desejo
do outro, desse outro que o social reduzido sua expresso
mnima e que fornece aquela que, para Lacan, ser, da em diante,
a substncia por excelncia da subjetividade: o sujeito lacaniano
ser, at o fim, um sujeito do e sujeitado ao desejo56
A maneira como Kojve interpreta o desejo Begierde , como a revelao de um
vazio em um sujeito que se constitui em uma relao negativa com o outro, tomada por
Lacan ao mesmo tempo em que o desejo Wunsch em Freud, que o utiliza para designara moo inconsciente na busca de satisfao. A partir dessa dupla referncia, o que Lacan
faz a transformao do desejo consciente em Kojve retomando a Begierde para
redefinir o desejo freudiano, que envolve o inconsciente como a instncia onde repousam as
marcas mnmicas das vivncias infantis de satisfao e que se realiza a partir das
manifestaes do inconsciente tais como: sonhos, lapsos, sintomas e atos falhos. Ao
apropriar-se tanto do desejo em Kojve como em Freud, Lacan converge essas noes
numa nica definio de desejo dsir como no mais referido a um objeto ou a uma
forma de satisfao, mas na relao de um sujeito desejante enquanto espera ser
reconhecido pelo desejo de um outro sujeito: ... que o desejo do homem encontra seu
sentido no desejo do outro, no tanto que o outro detenha as chaves do objeto desejado,
mas porque seu primeiro objeto ser reconhecido pelo outro. 57
E, segundo Roudinesco:
Lacan se serve do discurso hegeliano-kojeviano para restituir um
sentido adequado viso freudiana. Assim, opera uma juno
entre a Begierde, ou desejo fundado no reconhecimento ou no
56 SIMANKE, Richard Theisen.Metapsicologia lacaniana, os anos de formao. So Paulo : DiscursoEditorial; Curitiba : Editora UFPR, 2002. Pg. 428.
57 Lacan,Discurso de Roma, in Escritos. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1998, pg. 269.
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desejo do desejo do outro, e o Wunsch, de natureza inconsciente e
ligado aos signos58.
Essa realizao lacaniana ser a base para se compreender a intersubjetividade em anlise.
A diferena entre o homem e o animal que o primeiro consciente de si, enquanto
o segundo unicamente sentimento de si, afirma Kojve. O que isto quer dizer? Como
compreender a ontologia kojviana a partir da noo de desejo antropognico? Kojve
afirma que o eu (humano) o eu de um ou do desejo59 e, para se compreender essa
afirmao, ser preciso deslindar algumas noes que fazem parte da reorganizao dada
pelo autor na dialtica do Senhor e do Escravo para que, a partir disto, seja possvel
verificar como Lacan utilizou-se de noes desta filosofia concreta que foram to caras a
sua formalizao de sujeito desejante. Para tanto, analisaremos, en passant, o texto de
abertura da obra de Kojve, que foi para Lacan um esquema fundamental para a suaconstituio do sujeito, a complementaridade para o estdio do espelho que se refere s
identificaes imaginrias por onde o sujeito se aliena e se forma devido a sua ausncia de
determinao natural.
Quando o homem contempla um objeto, neste momento quem se revela o objeto.
No conhecimento, o objeto absorve o homem que est alienado no objeto que contempla
e se revela como objeto. Esse homem volta a si somente a partir de um desejo que o
constitui e o revela a si mesmo, como aos outros tambm. O ser do homem que no ato de
conhecer se perde no objeto que contempla, atravs de seu prprio desejo, um desejo
humano, corta esta relao com o objeto e volta para si mesmo, para que desse desejo possa
tornar-se conscincia-de-si. A satisfao do desejo, que contempla um objeto, ocorre por
meio de uma ao negadora que destri este objeto e o contedo deste assimilado pelo
vazio do eu. Isto , no simplesmente uma aniquilao a ao do desejo sobre o objeto,
mas, tambm, a criao de uma realidade outra. a passagem de uma realidade objetiva
para uma outra realidade, s que desta vez subjetiva (...) o Eu do desejo um vazio que s
recebe um contedo positivo real pela ao negadora que satisfaz o desejo ao destruir,
transformar e assimilar o no-Eu desejado60. Esse objeto devorado serve a preservao da
58A histria da psicanlise na Frana: a batalha dos cem anos, vol 2. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1988.Pg. 164.59 KOJVE, Alexandre.Introduo leitura de Hegel. Rio de Janeiro : ed. EDUERJ, 2002. Pg 12.60 Idem.
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vida, tornando o Eu do desejo um Eu-natural, pois tem a mesma natureza do objeto que
assimilou e, sendo assim, esse Eu-coisa revela-se apenas como sentimento de si, ainda no
como conscincia-de-si. O exemplo que Kojve nos traz de desejo a fome e de objeto, o
alimento.
preciso, para que o Eu seja conscincia-de-si, diferenciando-se do desejo animal,
que o Eu dirija seu desejo, no mais para um objeto natural, mas para um outro desejo que
esteja num momento anterior ao da satisfao e que no esteja assimilado a nenhum objeto,
pois at aqui a nica realidade apresentada a realidade biolgica e se faz necessrio, para
entender o desejo antropognico, diferenciar o homem dos outros seres. Kojve afirma que
preciso um outro desejo enquanto vazio, como presena de uma ausncia de uma
realidade61, um desejo sem identidade. Esse outro desejo ser tambm assimilado pela
ao negadora do primeiro desejo para que este possa constituir-se em seu ser como desejo,como ao, como negatividade-negadora, como devir. O desejo precisa voltar-se para um
outro desejo em si mesmo, um outro desejo como um vazio irreal, e, a partir dessa
condio, dessa ao negadora e assimiladora, tornar-se desejo. Kojve est descrevendo o
surgimento da conscincia-de-si (da qual o homem portador) a partir do sentimento-de-si
(que caracteriza o animal) e, portanto, para essa situao vir a realizar-se, necessrio que
o homem esteja inserido em um meio social, em uma pluralidade de desejos, o que
caracteriza a realidade humana como uma realidadesocial. A realidade humana uma
realidade que comporta desejos que buscam outros desejos para serem desejados enquanto
desejos. No entanto, possvel humanizar um desejo, quando este se volta para um objeto
natural e este mesmo objeto real desejado por um outro desejo humano; quando o objeto
mediatizado.
A realidade humana, diferente da realidade animal, s se cria
pela ao que satisfaz tais desejos: a histria humana a histria
dos desejos desejados62
O desejo que visa objetos reais um desejo que pretende preservar a prpria vida,
este o desejo animal. No humano, esse desejo deve ser superado, arriscando sua prpria
existncia, sua vida animal, em funo da humanidade de seu desejo que se humaniza no
61 Idem, pg. 12.62 Idem, pg. 13.
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encontro com outro desejo63. Portanto, falar do nascimento da conscincia-de-si falar,
necessariamente, de risco de vida. O desejo sempre desejo de um valor. Para se
compreender esse valor, preciso substituir o lugar ocupado por esse desejo que desejado
por um outro desejo com a seguinte proposta: o valor que atribuo ao meu desejo deve ser o
valor desejado por outro desejo. O sujeito deve serreconhecido como um valor, um valor
autnomo. O desejo humano, de onde surge a realidade social humana, a conscincia que
o sujeito tem de si, um desejo que visa reconhecimento do valor que atribui ao seu prprio
desejo. Assim, preciso dois desejos confrontando-se, arriscando a prpria vida para
impor-se ao outro como valor supremo64, fazendo emergir a situao social antropognica
por excelncia: uma luta de morte para que se possa ser reconhecido como um valor, o
valor de um desejo. A realidade humana se constitui como uma realidade que deve ser
reconhecida e para esta luta por reconhecimento e reconhecimento de um valor oscombatentes no podem estar no mesmo lugar: um deve ter medo do outro, deve ceder,
deve arriscar a prpria vida em nome da satisfao de seu desejo de reconhecimento 65.
Um dever satisfazer o desejo do outro e reconhec-lo como Senhor e deixar-se reconhecer
como escravo. Um estar na posio de dominao (Senhor) e, o outro, em uma posio de
sujeio (Escravo); duas posies distintas e contrrias.
(...) a realidade humana revelada nada mais que a histria
universal, essa histria tem de ser a histria da interao de
dominao e sujeio: a realidade histrica a dialtica do
Senhor e do Escravo.66
Para ser realidade humana, deve ser reconhecida por outro. Dois extremos opostos
onde num ponto h uma entidadereconhecida e noutro ponto h uma entidade-que
reconhece67. Surge aqui um novo impasse,pois o reconhecimento que o Escravo oferece
ao Senhor apenas suposto. O Escravo no tem por parte do Senhor o reconhecimento da
sua dignidade humana, no podendo assim o Senhor usufruir o reconhecimento vindo do
escravo. O Senhor necessita de um desejo que esteja em vias de humanizao para o
reconhecer e, como para o Escravo esta possibilidade est barrada, primeira vista, ele
63 a partir desta determinao de desejo que Lacan apropria-se para formalizar sua prpria noo.64 KOJVE, Alexandre.Introduo leitura de Hegel. Rio de Janeiro: ed. EDUERJ, 2002,pg 14.65 Idem, pg. 15.66 Idem.67 Hegel, apudKojve.
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apenas cumpre a tarefa de providenciar os objetos para o consumo do Senhor, que por sua
vez no conseguiu negar o dado natural, mesmo tendo colocado sua vida em risco. O
Senhor apenas consome os objetos objetos estes que no tem valor humano algum, pois
no esto mediatizados por um outro desejo do trabalho do Escravo que na sua posio
abriu mo de todos os frutos de seu trabalho, no entanto, negando o mundo natural. Desta
forma, o Escravo no se contenta com essa sua posio, e como ele quem tem a
capacidade de criar o novo a partir do trabalho, supera dialeticamente essa relao de
servido produzindo a diferena ao fazer esta histria acontecer formando-se e educando-se
por meio do seu trabalho. Quando o Escravo deseja uma autonomia, que supostamente
encontra-se na figura do senhor, passa tambm a desejar os produtos consumidos pelo
Senhor, que at ento estavam no patamar do natural, e que agora passa a ser cultural e
podem satisfazer o desejo do Escravo que at esse momento estava recalcado. Nesteencontro blico por reconhecimento, uma volta atrs quando o Escravo negou o dado
natural, essa atitude abriu as portas para a possibilidade de seu projeto de humanizao,
sendo que, no incio, se a histria humana era a histria dos desejos que se desejam
mutuamente, torna-se, no futuro, a histria dos desejos adiados e realizados quando da
transformao de um mundo natural para um mundo histrico humanizado.
Isso dito, pode-se ver como Lacan reproduz, sua maneira a teoria kojviana. O que
em Kojve se apresenta como surgimento da conscincia de si numa situao social que
envolve um encontro blico por reconhecimento, , para Lacan, esse primeiro momento em
que a criana se apreende numa relao com o outro, ou o transitivismo a no distino de
si a outrem que permitiu evidenciar a rivalidade inerente desse encontro negativo no
complexo de intruso momento do espelho lacaniano que aponta a possibilidade da
constituio humana. A filosofia concreta de Kojve respaldou a Lacan um modo de
humanizao do ser pelo vis da realidade social que demanda o abandono da natureza no
homem, pois um lugar sem possibilidade de um vir-a-ser. uma teoria respaldada numa
ordem de determinao antropolgica que Kojve oferta constituio de um sujeito pelo
modo imaginrio de Lacan.
O desejo causa da superao da natureza, quando se produz a histria por uma
ao negadora do objeto natural assimilado por Lacan que confere a esta noo um
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lugar privilegiado no seu corpus terico, tornando o ser um sujeito desejante constitudo a
partir do desejo do outro. Segundo Simanke:
O que est em jogo para Lacan o reconhecimento ou
desconhecimento desse assujeitamento do sujeito aos seus outros
imaginrios, que o constituram e o determinaram (...) O que se
revela ao sujeito, ao cabo desse processo, que o seu desejo ,
inapelavelmente, o desejo de outro. Se esse desejo o impulsiona
ao, em nome de outro que ele age, ou seja, ainda na posio
de Escravo que ele se encontra68.
Ainda segundo Simanke, Kojve permitiu a Lacan contornar a metapsicologia
freudiana em termos de tornar consciente o que est inconsciente a partir das interpretaes
do analista. No se trata de passar de um patamar inconsciente, mergulhado naobscuridade, para o patamar consciente, sede da clareza, atravs de sabe-se l que
misterioso elevador69. Lacan transforma nesta relao subjetiva da assuno do desejo
a experincia da psicanlise num processo que d ao sujeito a condio de desconhecere
reconhecera questo de seu desejo e do outro. Essa mudana de perspectiva realizada por
Lacan inclui um outro modo de se compreender a clnica analtica, pois a passagem que ele
estabelece no a de tornar consciente o inconsciente, mas a passagem para a fala, e uma
fala que precisa de um ouvinte. Nossa via a experincia intersubjetiva em que o desejo
se faz reconhecer70. E, mais uma vez, a necessidade de se empreender uma teoria sobre a
questo da linguagem em sua relao com a clnica psicanaltica se apresenta na teoria
lacaniana.
Importante notar que por mais que a obra lacaniana tenha sido influenciada
sobremaneira pela obra de Kojve h, tambm, diferenas entre os autores produzindo um
impasse na teoria do imaginrio. Pois, na obra de Kojve h uma relao de identidade na
natureza e de diferena na histria, visto que essa (a histria) acontece pela ao negadora
(que define o fenmeno humano) dessa natureza, pela ao que humaniza o ser e o mundo
em que vive, produzindo a diferena e no mais um princpio de positividade (como na
68 SIMANKE, Richard Theisen.Metapsicologia lacaniana, os anos de formao. So Paulo: DiscursoEditorial; Curitiba : Editora UFPR, 2002. Pg 42569 Lacan, Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, pg 146.70 Discurso de Roma, in Escritos, pg 281.
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natureza). O que na teoria do imaginrio no acontece pelo fato de haver a uma relao de
identidade do sujeito com o outro na determinao imaginria; teoria essa que vai na
contramo do que prope o processo de humanizao pela diferena da ao negadora.
Esse conflito entre a teoria lacaniana e a teoria de Kojve tambm ressaltado por
Simanke: (...) a ao, a diferena, a negatividade-negadora dificilmente poderiam
harmonizar-se com uma teoria centrada na identidade e na passividade de reflexo
especular71. ele que vai impor mais fortemente a influncia lvi-straussiana, pois essa
vai apontar a Lacan uma sada pelo registro do simblico, visto que este se institui pelo
signo da diferena. Sendo assim, o simblico far sua entrada na obra lacaniana como um
quarto termo alm do eu, do outro e do objeto , como uma determinao externa
subjetividade do sujeito para resolver o impasse do imaginrio no que se refere ao sujeito
absoluto e a clnica que se fundamenta a partir da fala , direcionando Lacan a uma novainfluncia que permitir um enquadramento da psicanlise nos parmetros cientificistas do
estruturalismo.
71 SIMANKE, Richard Theisen.Metapsicologia lacaniana, os anos de formao. So Paulo : DiscursoEditorial; Curitiba : Editora UFPR, 2002. Pg 426.
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4. CONCLUSO
Na tese de doutoramento, Lacan colocava-se a questo de saber como uma
personalidade torna-se mrbida; para isso era preciso encontrar uma causa primeira, uma
anomalia que justificasse a morbidez no homem. Entretanto, antes de se descobrir como
que uma personalidade torna-se mrbida, era preciso descobrir como uma personalidade
normal se constitui. Em outras palavras, era preciso responder uma das questes deixada
em aberto pela tese: como algum se constitui como um eu. Ento, a partir da condio de
prematurao do sujeito, da falha humana, da carncia fsica do homem, o imaginrio vinha
baila isto , os complexos que presentificavam as imagos , e desse lugar, do
imaginrio, vinha a possibilidade da constituio do eu e da unificao corporal, do outro edos objetos, constituio que traz em si, por retroao, o surgimento da fantasia de um
corpo fragmentado como o princpio da condio humana.
O que foi visto at aqui nos permite dizer que a psicanlise, assim como suas
noes, eram apenas convidadas a dar algum respaldo que subsidiasse o empreendimento
lacaniano vigente na poca. Lacan era ento um crtico das noes metapsicolgicas de
Freud, incluindo a, a noo de inconsciente, que at esse momento s era possvel definir
como um mero fenmeno descritivo, a saber, aquilo que no est passvel de conscincia.
Compreendida desse modo, ela era substituda, no texto A famlia, pela noo de imago e,
desta, surgia uma esfera psicolgica que, por conseguinte, tornava possvel a reformulao
do narcisismo freudiano.
Para Lacan a noo de sujeito no perodo da primeira teoria do imaginrio era de um
sujeito que se constitua a partir do meio social, tomado como uma imago, um outro, um
semelhante que a princpio o aliena para depois, de identificado a essa imago, o sujeito diz
eu sou isso que vejo. Desta relao identificatria a agressividade a tenso conflitiva
interna ao sujeito72e o eu resultado de seu vivido imaginrio. Ao redundar num sujeito
absolutamente imaginrio, por ter sido posto de lado qualquer possibilidade da constituio
a partir do real do corpo, Lacan lana mo de um outro registro para coordenar o projeto
que estava tentando formular da realidade humana. Esse registro passa a ser o do simblico.
72 Agressividade em Psicanlise in Escritos, pg 116.
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Se o sujeito e o objeto constituem-se num mesmo golpe a realidade humana , portanto,
constituda e no dada desde sempre, permitindo pensar que se tomado o sujeito apenas
neste patamar imaginrio isto revela a constituio unicamente imaginria do sujeito, isto ,
seu Umwelt. Para escapar desta teoria centrada unicamente da percepo interpretativa da
realidade de um sujeito, Lacan que j est influenciado por uma viso antropolgica do
sujeito passa a operar com o simblico para que este possa atribuir a realidade humana, e a
clnica analtica que por excelncia uma troca de palavras entre analista e analisando o
smbolo tomado como a palavra, isto , como diz Lvi-Strauss, a linguagem como um dos
sistemas de troca simblica, tambm a aliana e os bens uma determinao simblica
constituinte do meio cultural anterior a apreenso imaginria. Desta forma, Lacan atribui a
realidade uma visada simblica em detrimento de uma unicamente imaginria. O simblico
toma seu lugar na obra lacaniana como o modo de se ter a realidade universal, enquantoque o imaginrio, a realidade individual constituda pelas determinaes simblicas.
Contudo, possvel verificar que a tentativa lacaniana de constituir uma cincia da
subjetividade que visava escapar a determinao realista dos fenmenos humanos,
influenciado por Politzer, terminou por colocar Lacan a promulgar um retorno a obra
freudiana visando j no mais um modo de subverso explcita desta obra, mas uma
reestruturao teoria dos conceitos freudianos em nome de um comprometimento pontual
ao que prope Freud. O que nos faz afirmar que esse retorno s pde ser operado a partir do
momento em que o projeto lacaniano encontrou meios de ser executado pelo vis de um
modo diferenciado que permitiu os acertos necessrios para se pensar a psicanlise como
uma teoria que escapa tanto as idias biolgicas quanto as instncias psquicas
constantemente presentes em Freud.
Esse percurso levou Lacan a encontrar-se de outra forma com a psicanlise vienense
que, doravante, atravs da influncia da antropologia estruturalista de Lvi-Strauss e da
lingstica de Saussure, ser o solo de onde surgir a nova doutrina psicanaltica lacaniana.
Desta forma, nos termos de negatividade, desejo, reconhecimento, alienao e
desconhecimento, o sujeito se constitui no campo lacaniano em seus primrdios como
um eu imaginrio, mas, com a entrada do simblico a partir da leitura de Levi-Strauss e da
lingstica estrutural, o sujeito ser um eu (je) que se define como sujeito inconsciente que
se mostra na e pela linguagem oposto a um eu (moi) imaginrio. E, para isso, a perspectiva
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de Kojve foi apesar de tudo, mais apta para ser assimilada ao sujeito desvanecente que
Lacan vai propor em seus anos estruturalistas73 .
dessa passagem que vamos nos ocupar no prximo captulo.
73 Idem, pg 429.
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SEGUNDA PARTE
O SIMBLICO
OU
A IMPLANTAO DA LINGUAGEM NA LEITURA LACANIANA DA
PSICANLISE FREUDIANA
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1. INTRODUO
A dcada de 50 marca o incio de um novo projeto que surge no cenrio cultural
francs: um retorno a Freud. Jacques Lacan prope que preciso entender qual foi a
questo forjada pelo inventor da psicanlise a partir da descoberta da noo de
inconsciente. Descentralizando a verdade homem da conscincia, tal qual prega a filosofia
moderna, e, afirmando que este um lugar de en