tecnologia, independência nacional e relações...
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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN∕ 1808-8716 Toledo, Carlotto. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt19):1-20
Tecnologia, independência nacional e relaçõesinternacionais
GT19 – Ciência, tecnologia e sociedade e relações internacionais: umdiálogo possível?
Demétrio Gaspari Cirne de ToledoMaria Caramez Carlotto
Resumo: As relações entre tecnologia, independência nacional e relações internacionais, outroraelementos centrais das análises de escolas como o estruturalismo cepalino e as teorias dadependência, em tempos recentes têm recebido pouca atenção de pesquisadores dos campos deestudo da ciência e tecnologia e relações internacionais. As transformações da tecnologia e do sistemainternacional nas últimas décadas explicam em parte esse desinteresse passado, e mais ainda seurenovado interesse atual. O dilema tecnológico clássico entre make or buy pareceu a alguns, no augeda euforia da globalização neoliberal e na sequência da derrocada das tentativas de desenvolvimentoautônomo nacional nas décadas de 1980 e 1990, haver encontrado resolução definitiva no polo dosegundo termo, buy, tornando dispensáveis os esforços nacionais pela autonomia tecnológica comoforma de reduzir a dependência dos países periféricos em relação ao monopólio tecnológico dospaíses centrais. A história das últimas quatro décadas, no entanto, não só não assistiu à ampliação doacesso às tecnologias proprietárias dos países centrais por meio de transações de mercado – buy –,como viu o aprofundamento do monopólio tecnológico daqueles países, recolocando a necessidade dedesenvolvimento tecnológico autônomo – make – para os países periféricos, tarefa tão ou mais urgenteagora quanto antes. Com vistas a retomar o diálogo entre estudos da ciência, tecnologia e sociedade eRI, não apenas possível, mas necessário e urgente, este artigo mobiliza formulações clássicas sobredesenvolvimento e dependência e estabelece um quadro conceitual para analisar as relações entretecnologia, independência nacional e relações internacionais. Em seguida, apresenta uma breve análisedas tentativas brasileiras de desenvolvimento tecnológico autônomo nos governos de Costa e Silva(1967-1969), Médici (1969-1974) e Geisel 1974-1979), investigando as relações entre política tecnológicae política externa. Por fim, elencamos problemas de pesquisa relativos às relações entre tecnologia,independência nacional e relações internacionais que combina as análises da família das teorias dadependência e do desenvolvimento tardio ao ferramental da sociologia e da economia da tecnologia eà história da política externa brasileira, temática com potencial de abrir nova fronteira de pesquisasobre as conexões entre CTI e RI.
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1. Independência e tecnologia nacional
A construção da independência política e econômica nacional passa
necessariamente pela afirmação da independência tecnológica nacional. Sem
independência tecnológica, todo ensaio de independência é forçosamente parcial e
efêmero, resultando, ao fim, na recolocação do país em sua condição de
dependência, não raro em posição quase idêntica à que se encontrava no começo
da tentativa de se tornar independente tecnologicamente. Não há independência
política e econômica sem independência tecnológica, e vice-versa.
Quando falamos em tecnologia, não nos referimos a qualquer forma de
conhecimento, tampouco a qualquer forma de tecnologia, mas ao conhecimento e à
tecnologia na forma que assumiram no capitalismo mundial, a partir da virada do
século XVIII para o século XIX, época da grande divergência que colocou primeiro
algumas partes da Europa ocidental e depois os EUA, na posição de nações
hegemônicas do capitalismo histórico. Em seu sentido antropológico, o
conhecimento é incomensurável entre culturas, sociedades e civilizações. Não se
trata, portanto, de estabelecer hierarquias, transformando diferenças – ou seja,
diferentes formas de conhecimento – em desigualdades – isto é, conhecimentos
superiores e inferiores. Estamos interessados nas formas historicamente definidas
que o conhecimento assumiu no capitalismo, e sobretudo a partir da primeira
revolução industrial e em seus desdobramentos nas sucessivas ondas de progresso
técnico, e no papel absolutamente central na transformação das diferenças gerais
entre culturas, sociedades e civilizações em desigualdades específicas no sistema
capitalista mundial desempenhada por uma forma particular de conhecimento: o
conhecimento produtivamente aplicável. Nesse sentido, a noção de conhecimento
produtivamente aplicável especifica o sentido em que empregamos o termo
tecnologia – como dimensão central dos processos de produção e reprodução do
capital – e o contexto – o capitalismo histórico como estrutura mundial de
diferenciação entre centro e periferia.
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A definição de conhecimento produtivamente aplicável pressupõe sua aplicabilidade
nos processos de produção e reprodução ampliada do capital e sua inserção em
mercados crescentemente globais, logo, uma concorrência cujo espaço é o
capitalismo mundial. Não basta que o conhecimento seja útil e confiável (useful and
reliable), é preciso que ele seja capaz de participar com proveito dos processos de
acumulação capitalista. Logo, nem todo conhecimento útil e confiável é
produtivamente aplicável no sentido que aqui utilizamos essa noção. A aplicabilidade
do conhecimento aos processos de produção, portanto, demanda uma especificação
adicional de nossa definição: é preciso que o conhecimento esteja próximo à
fronteira tecnológica em dado momento da história dos processos de produção
capitalista. Conhecimentos obsoletos, ainda que úteis e confiáveis, não se prestam a
romper com o monopólio e a dependência tecnológica da periferia em relação ao
centro do capitalismo, antes reforçam esses traços, por exemplo, no modo como
empresas multinacionais transferem integralmente, por meio de transações
intrafirma, parques produtivos obsoletos do centro para a periferia, estendendo,
assim, o ciclo de vida daquelas formas de conhecimento produtivamente aplicável e
sua capacidade de gerar lucros, tudo isso sem jamais ameaçar seu monopólio do
conhecimento produtivamente aplicável.
A estrutura centro-periferia do capitalismo mundial é consequência direta da
desigualdade de acesso ao conhecimento produtivamente aplicável: a posição e o
papel de uma nação na divisão internacional do trabalho estão diretamente
relacionadas às distâncias relativas de cada país em relação à fronteira tecnológica
de determinado período. Um dos aspectos fundamentais da divisão internacional do
trabalho em sua dimensão tecnológica, que definirá todas as outras dimensões, é
que o avanço de uma nação em direção à fronteira tecnológica não se dá de modo
linear e contínuo, mas de modo descontínuo: os subparadigmas tecnoeconômicos
(Perez 2009) estão separados um dos outros por descontinuidades não-triviais. Não
é possível transitar do domínio de um subparadigma tecnoeconômico para outro de
modo incremental e cumulativo. Além disso, a descontinuidade entre subparadigmas
tecnoeconômicos cresce em direção à fronteira tecnológica: quanto mais próximo da
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fronteira tecnológica estiver um subparadigma, maior a descontinuidade em relação
aos demais. Essas descontinuidades não são intrínsecas ao conhecimento; elas são
politicamente construídas.
A dependência tecnológica é politicamente construída a partir de fora e a partir de
dentro do país. De fora, pelas nações mais poderosas e tecnologicamente
avançadas do capitalismo histórico por meio de suas instituições de poder e
acumulação de capital (empresas multinacionais, setor financeiro, instituições de
ciência e tecnologia, acordos internacionais de regulação da propriedade
intelectual). As nações centrais do capitalismo detêm o monopólio do conhecimento
produtivamente aplicável; é por meio da produção e reprodução no tempo e no
espaço desse monopólio que as nações centrais consolidam suas posições na
divisão internacional do trabalho no capitalismo mundial. De dentro, pela submissão
dos interesses mais amplos do povo brasileiro aos interesses particulares de uma
classe dominante (que também é uma raça dominante) material e ideologicamente
vinculada ao capital estrangeiro cujo traço fundamental é o recurso à
superexploração do trabalho. Também no âmbito interno, a dominação de classe e
de raça envolve o monopólio do conhecimento de modo geral e do conhecimento
produtivamente aplicável especificamente; é pela exclusão de uma classe/raça do
acesso ao conhecimento, que a divisão nacional do trabalho se produz e reproduz
ao longo do tempo.
Encontramos os fundamentos da superexploração do trabalho no país na estrutura
de longa duração que é a forma de inserção do Brasil no capitalismo mundial a partir
do século XVI: vasta natureza a ser conquistada e explorada por meio do trabalho
de seres humanos escravizados. Desde então, e ainda hoje, a superexploração do
trabalho no Brasil é de base racial e racista, uma vez que classe e raça no Brasil,
andam de mãos dadas.
O papel desempenhado pelas colônias americanas no processo de acumulação de
capital em escala mundial a partir do século XVI tornou não apenas desnecessário o
emprego intensivo de tecnologia na transformação da natureza pelo ser humano,
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mas também, e sobretudo, perigoso aos interesses da classe/raça dominante, cujo
poder político e material se baseava integralmente na exploração de mão de obra
escravizada e no comércio escravagista.
A escravidão como forma de superexploração do trabalho prolonga seus efeitos no
Brasil por meio do racismo estrutural, que coloca à disposição de uma classe, que
também é raça, os corpos de outra classe, que também é raça, para serem
superexplorados. Nesse contexto de superexploração do trabalho de uma
classe/raça por outra classe/raça, a dependência tecnológica representa a
convergência dos interesses internos – a superexploração de uma classe/raça por
outra – com os interesses externos – a perpetuação do papel periférico do Brasil no
sistema capitalista mundial – não muito mais do que um arrabalde de onde se pode
extrair recursos naturais e despejar produtos próximos da obsolescência, mas que
ainda podem gerar lucros em terras que nada produzem de sequer parecido.
A centralidade da raça nas relações de classe no Brasil, cujas formas gerais de
relacionamento se constituíram pela escravidão, colocaram o país em uma trajetória
de desenvolvimento baseado no uso intensivo da mão de obra. Isso não faz da
experiência brasileira um caso excepcional, pelo contrário: as nações da América
Latina e Caribe, África e Ásia compartilham o mesmo traço, comum a toda a periferia
do capitalismo. A persistência dessa trajetória ao longo de dois séculos por toda a
periferia do capitalismo foi, é e será viabilizada pela dependência tecnológica desta
em relação aos países do capitalismo central tecnologicamente dependentes.
Escapar a essa situação – feito raro, mas já empreendido com sucesso por algumas
poucas nações, entre elas Japão e União Soviética – passa necessariamente pela
busca da independência tecnológica
A independência tecnológica traz, em si, o potencial de reduzir a dependência
externa e abalar fortemente a estrutura de dominação classe-racial que vigora no
Brasil caso sua trajetória de desenvolvimento estiver voltada a solucionar os
problemas de superexploração do trabalho no país. Essa é uma façanha que não se
logra por acidente ou de modo não intencional; ela só se realiza por meio da decisão
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consciente de buscar a independência tecnológica com esse sentido social
específico.
A reversão de dependência tecnológica, portanto, é uma etapa central e inescapável
do processo maior de independência política e econômica, e de afirmação do país,
de fato, como uma “nação”. Independência tecnológica não significa desconexão
dos sistemas globais de tecnologia, mas não-subordinação aos países que detêm o
monopólio do conhecimento produtivamente aplicável no sistema capitalista mundial.
2. Tentativas (breves e incompletas, mas não vãs) de independência
tecnológica no Brasil
Em seus breves e incompletos ensaios de independência tecnológica (portanto, de
independência política e econômica), o Brasil se defrontou com a tecnologia
enquanto fator de poder e riqueza - de um país sobre outro, de uma classe/raça
sobre outra. Os momentos em que o país buscou colocar em prática uma política
tecnológica soberana (PTS) quase sempre foram momentos em que se procurou
formular e executar uma política externa soberana (PES). Não se trata de
coincidência: independência tecnológica nacional e independência política e
econômica nacional são faces da mesma moeda. Vou mais longe: sem política
externa independente, não há política tecnológica independente e vice-versa.
Identificar, sem mais, as tentativas de independência tecnológica à história da
construção das instituições e políticas públicas de ciência, tecnologia e inovação nos
levaria a falsas conclusões, ou seja, a atribuição de intenções independentistas onde
só há reforço da dependência e a indistinção dos impulsos fundamentais que
orientaram umas e outras iniciativas. De fato, uma dimensão central da nossa
análise consiste em reconhecer que nem toda iniciativa de desenvolvimento
tecnológico e científico equivale a uma tentativa de independência tecnológica, o
que implica diferenciar as hoje chamadas Políticas de Ciência, Tecnologia e
Inovação da Política Tecnológica Soberana.
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O país tem oscilado entre dois vetores cujos efeitos um sobre o outro têm variado
imensamente ao longo do tempo. Esses vetores são o desenvolvimento tecnológico
com vistas a reforçar o status quo e, portanto, a inserção dependente do Brasil
enquanto nação periférica no sistema capitalista mundial. Incluem-se entre estas as
instituições e políticas públicas de tecnologia e ciência voltadas a aprofundar a
extroversão da produção agrária e de recursos minerais do país: a modernização
(conservadora) da produção agrária e da extração mineral que reproduz, em escala
industrial e segundo as técnicas mais modernas do capitalismo, a inserção
dependente do Brasil.
A avaliação dessas iniciativas está longe de ser fácil: o desenvolvimento tecnológico
e científico, ainda quando resultem em um primeiro momento no reforço da inserção
subordinada da nação na economia capitalista mundial, nem por isso deixam de
incorporar um potencial de desdobramentos futuros que podem contribuir
efetivamente para a independência tecnológica: consequência imprevista, mas em
algum grau desejável. Tudo dependerá do modo como a nação irá mobilizar os
elementos gerados por essa modernização conservadora, se de modo a
potencializar seus vetores que nos levam em direção à independência tecnológica
ou a reforçar o estado das coisas.
2.1. A Política Externa Independente de Jânio/Jango (1961-1964)
O problema do desenvolvimento tecnológico começa a se fazer presente na
dimensão discursiva da Política Externa Brasileira (PEB) durante a chamada Política
Externa Independente (PEI), de Jânio/Jango, mas não chega a alçar voos mais
ambiciosos como os que se veriam nos anos 1970 e na primeira década dos anos
2000. A preocupação com a tecnologia aparece na PEI como fator subordinado ao
tema mais geral do desenvolvimento econômico, em que as questões comerciais, o
papel das multinacionais nas economias internas dos países subdesenvolvidos e os
entraves colocados ao desenvolvimento pelos países ricos tinham maior
proeminência. No tocante às relações entre política externa e desenvolvimento
econômico e tecnológico, também se aplica a avaliação de Vizentini sobre a PEI:
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“seu fracasso deve ser relativizado (...) [a PEI] revelou-se muito mais precoce do que
equivocada, pois muitos de seus postulados foram retomados pela própria
diplomacia dos militares ao final da primeira metade dos anos 1970 com o chamado
‘pragmatismo responsável’” (Vizentini, 2008: 31).
Os anos de 1961-1964, portanto, são, pelo menos no que diz respeito à política
externa e à política de desenvolvimento econômico e tecnológico, um período de
maturação dos esforços por autonomia que vinham sendo desenvolvidos desde o
princípio da década de 1950 no segundo governo Vargas, esforços aos quais o
governo Kubitschek viria a dar impulso adicional. As continuidades e traços em
comum da PEB ao longo do período, conforme apontou Vizentini (2008: 14), e como
se pode depreender do processo de construção institucional e das políticas públicas
de desenvolvimento tecnológico apresentados acima, preponderaram. O projeto de
soberania na política externa e na política tecnológica foi colocado em compasso de
espera entre 1964, mas seria retomado com força pelos governos militares a partir
de 1967.
2.2. A Diplomacia da Prosperidade de Costa e Silva (1967-1969)
A diplomacia da prosperidade (1967-1969), portanto, no governo Costa e Silva,
representou, segundo Vizentini, “uma ruptura profunda com o governo anterior (...)
como política externa voltada para a autonomia e o desenvolvimento, assemelhava-
se muito à PEI” (2008: 45). A importância atribuída ao desenvolvimento tecnológico
na dimensão discursiva foi acompanhada por um importante conjunto de ações
diplomáticas voltadas a dar materialidade à política externa autonomista. A
diplomacia da prosperidade configurou o que seria o projeto de desenvolvimento
tecnológico mais ambicioso e sensível nos governos seguintes: o avanço do
programa nuclear brasileiro e sua dualização para a energia nuclear de uso civil,
sempre sob a liderança da Marinha do Brasil. Foram celebrados cinco acordos de
cooperação na área nuclear, com Israel e Argentina em 1967, com Espanha e Índia
em 1969 e o mais relevante de todos, a assinatura com a República Federal da
Alemanha do Acordo de Cooperação em ciência e tecnologia em 1969, que abriria
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caminho para a cooperação na área nuclear. Ainda no campo da diplomacia nuclear,
a recusa do Brasil em assinar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear em 1968 – por
“injusto e discriminatório” - dá a exata medida das pretensões de autonomia e da
ambição de autonomia tecnológica que começavam a se desenhar naqueles anos e
que seria aprofundado na década seguinte pelos governos Médici e Geisel – note-se
que, um ano antes, o Brasil foi signatário do Tratado de Tlatelolco para a Proscrição
de Armas Nucleares na América Latina e Caribe.
No plano doméstico, a política tecnológica é igualmente ambiciosa e efetiva. Quinze
dias antes de Costa e Silva assumir o poder, foi aprovado o decreto-lei de criação da
Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA). Nesse ano o CNPq
elaboraria o primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e
daria início ao Plano Quinquenal 1968-1972. O Plano Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico havia sido proposto no Plano Estratégico de
Desenvolvimento 1968-1970 e representou a primeira política sistemática para a
área de CTI no Brasil. O Plano Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico tinha como prioridades a formação de recursos humanos em nível de
graduação e pós-graduação e a ampliação da infraestrutura de pesquisa do país.
Além disso, elegeu as áreas prioritárias para investimentos em CTI no Brasil:
“agricultura, astronomia, biologia, ciências sociais, física, geologia, matemática,
química e tecnologia, além de um item específico para o estudo da região
amazônica” (Centro de Memória CNPq). O ano de 1967 viu ainda a criação da
Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), a aprovação das Diretrizes da Política
Nacional de Energia Nuclear, o contrato inicial estabelecido pela Comissão Nacional
de Energia Nuclear (CNEN) para a construção de uma usina nuclear em Angra dos
Reis e iniciativas na área aeroespacial com o desenvolvimento e prototipagem do
foguete Sonda II (Centro de Memória CNPq).
Em 1968, o governo, por meio do CNPq, colocaria em prática uma política de
retenção de pesquisadores no país para tentar reverter a fuga de cérebros em razão
do fechamento político crescente promovido pela ditadura. Também foram criadas
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três universidades federais: do Piauí (UFP), de São Carlos (UFSCAR) e de Sergipe
(UFS), estado em que, neste mesmo ano, teve início a produção pioneira de
petróleo marítimo no Brasil. Na área aeroespacial, tiveram início projetos de
desenvolvimento de propelentes sólidos para foguetes, satélites e realizou-se o
primeiro voo oficial do Bandeirante, primeiro avião comercial da Embraer, que seria
fundada no ano seguinte (Centro de Memória CNPq).
Entre as principais iniciativas do ano de 1969, seguramente a mais importante,
ambiciosa e plena de consequências, inclusive porque ainda hoje um grande
sucesso, foi a criação da Embraer. Outra iniciativa importante e ainda hoje existente
foi a criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(FNDCT) “com a finalidade de dar apoio financeiro aos programas e projetos
prioritários de desenvolvimento científico e tecnológico, notadamente para
implantação do Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico! (Decreto-
lei 719, 31 de julho de 1969). Além disso, deve-se chamar a atenção para a grande
quantidade de universidades estaduais e federais criadas no período e que se
prolongariam nos anos do governo Médici.
A licitação internacional para construção de usinas nucleares no ano de 1971 seria
vencida pela empresa estadunidense Westinghouse, indicando a possibilidade muito
concreta de aprofundamento da cooperação nuclear do Brasil com os EUA e a
marginalização e mesmo exclusão dos demais países em busca de cooperação na
área nuclear com o Brasil. As dificuldades referentes à transferência de tecnologia
nuclear para o Brasil nos acordos com os EUA, bem como nova estratégia
internacional do Brasil, calcada em uma política externa cujo objetivo declarado era
diversificar o espectro de relações internacionais do Brasil em um contexto de crise
energética e econômica global, manteve a Alemanha no jogo. Em 1975, Brasil e RFA
assinariam o Acordo de Cooperação Nuclear Brasil-Alemanha, que seria seguido em
1976 pelo Acordo Comercial Brasil-Alemanha para a realização de empréstimos e
contratos para a construção das usinas de Angra I e Angra II, significando a
anulação da licitação que havia sido ganha pela Westinghouse em 1972. As
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pressões estadunidenses, muito naturalmente, foram enormes no sentido de
inviabilizar o acordo nuclear Brasil-Alemanha, com investidas contra Brasil e
Alemanha. Aparentemente, a transferência da tecnologia crítica de enriquecimento
de urânio da Alemanha para o Brasil teria sido impedida pelos EUA, obrigando o
Brasil a acelerar seus vários projetos de desenvolvimento de desenvolvimento de
tecnologias de enriquecimento de urânio (no começo da década de 1980 o projeto
da Marinha do Brasil se consolidaria como trajetória tecnológica mais promissora,
levando finalmente ao domínio da tecnologia em meados da década de 1980).
Durante o governo de Costa e Silva, a distância entre intenção – conforme se
vislumbra na diplomacia da prosperidade, marcada por um projeto de autonomia e
desenvolvimento nacional – e gesto – as ações de política externa e doméstica
voltadas para a consecução dos objetivos de desenvolvimento nacional com forte
ênfase na dimensão tecnológica – foi sensivelmente reduzida em comparação com o
período da PEI. No que diz respeito às conexões entre política externa e política
tecnológica, viu-se no governo Costa e Silva uma grande convergência entre uma e
outra, bem como entre a dimensão discursiva e a ação concreta. O período também
foi rico em iniciativas que, a rigor, ficam a meio caminho do discurso e da ação, mas
nem por isso foram menos importantes, como o estabelecimento das bases legais e
orçamentárias que sustentariam as iniciativas dos governos Médici e Geisel na
década seguinte, tanto em relação à política externa como em relação à política
tecnológica.
2.3. A Diplomacia do Interesse Nacional de Emílio G. Médici (1969-1974)
Após o recuo do projeto de desenvolvimento e autonomia tecnológica nacional
representado pela política externa de Castelo Branco, as políticas externas e
tecnológicas dos governos Costa e Silva, Médici e Geisel retomaram o projeto que
se manifesta na PEI e passaram efetivamente do discurso à ação. De fato, no que
diz respeito às conexões entre política tecnológica e política externa, no interior de
um projeto mais geral de desenvolvimento e autonomia tecnológica nacional, os
governos Costa e Silva, Médici e Geisel representaram o ponto culminante na
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história brasileira, com a criação de instituições e iniciativas em funcionamento até
os dias de hoje. Algumas dessas iniciativas, depois de sua interrupção no final da
década de 1980 e interdição nas duas décadas seguintes, foram retomadas nos
governos Lula e Dilma, em especial o programa nuclear brasileiro, mas sofreram
outra descontinuidade com o golpe de 2016.
Não se deve pensar que a diplomacia da prosperidade de Costa e Silva (1967-
1969), a diplomacia do interesse nacional de Emílio G. Médici (1969-1974) e o
pragmatismo responsável e ecumênico de Ernesto Geisel (1974-1979) foram
rigorosamente iguais no alcance de suas ações pela busca pela autonomia
tecnológica no marco de um projeto de desenvolvimento nacional. As três políticas
complementarem-se sequencialmente, com a primeira lançando as bases - em
especial no que diz respeito ao estabelecimento de acordos bilaterais para
transferência e desenvolvimento tecnológico - do que viria a ser efetivamente
implementado pela segunda e pela terceira. Com efeito, o problema da dependência
tecnológica assumiria importância crescente, e mesmo centralidade, ao longo do
período que vai de 1967 a 1979, culminando no governo de Geisel (1974-1979) e
sofrendo significativa reversão nos anos 1980 e 1990. O alinhamento e
convergência entre os dois campos de políticas só seria retomado novamente nos
governos Lula um quarto de século depois.
Em sua diplomacia do interesse nacional, o governo Médici aprofundaria os traços
desenvolvimentistas e autonomistas presentes na diplomacia da prosperidade de
Costa e Silva, ainda que abandonando os elementos terceiro-mundistas presentes
na PEB anterior (Vizentini, 2008: 47). As continuidades, contudo, prevaleceram
sobre as mudanças, e a diplomacia do interesse nacional, de par com um
alinhamento formal aos EUA, deu seguimento a uma série de aspectos altamente
autonomistas e desenvolvimentistas que vinham se configurando desde o governo
de Costa e Silva. Vizentini chama a atenção, entre outros aspectos, para a
manutenção da recusa a assinar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear posição que
começava a se tornar um dos pontos doutrinários da política externa brasileira, só
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sendo revertido na década de 1990. O autor também destaca a grande ênfase no
desenvolvimento tecnológico, que passava pela atração de investimentos e
tecnologias externas e construção de uma indústria armamentista no país (Vizentini,
2008: 47-48). Para tanto, a diplomacia do interesse nacional lançaria mão de
estratégias de barganha pragmática ao se aproximar de potências capitalistas
médias (em especial as duas grandes derrotadas na II Guerra Mundial, a Alemanha
Ocidental e o Japão), além da distensão com a América Latina e a aproximação com
países árabes no contexto do primeiro choque do petróleo em 1973, bem como a
retomada das relações com países do campo socialista (Vizentini, 2008: 48-49).
Entre as mais importantes iniciativas da política externa do governo Médici
relacionadas à autonomia e ao desenvolvimento tecnológico estão aquelas voltadas
à questão energética: o estabelecimento de acordo de cooperação técnica e
científica com o Japão, inclusive na área nuclear (Vizentini, 2008: 57), e a criação da
Braspetro (Petrobrás Internacional S. A.), braço internacional da Petrobrás voltado à
exploração de petróleo e gás no exterior.
Durante esse período, o Brasil assinaria, ainda, o acordo com os Estados Unidos
para construção de uma usina nuclear em Angra dos Reis pela empresa
estadunidense Westinghouse. Assinado em 1972, o acordo seria rompido e
substituído em 1975, no governo de Geisel, pelo Acordo de Cooperação Nuclear
Brasil-Alemanha para a construção de duas usinas nucleares em Angra. O
rompimento do acordo com os EUA em prol do acordo com a RFA iria gerar
crescentes fricções entre Brasil e EUA na segunda metade da década de 1970, que
viriam a pressionar o Brasil para romper o acordo com a Alemanha (Vizentini, 2008:
59).
No que se refere à política de desenvolvimento tecnológico e científico no âmbito
doméstico, entre as principais iniciativas do governo Médici estão a criação do
Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) em 1970 e, no ano seguinte, a
criação Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Igualmente importante
seria a aprovação pelo Congresso da Lei 5.470 que autoriza a Comissão Nacional
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de Energia Nuclear a criar a Companhia Brasileira de Tecnologia Nuclear (CBTN),
responsável pela construção e operação das usinas nucleares brasileiras.
O ano de 1972 seria marcado pelo lançamento do I Plano Nacional de
Desenvolvimento, que daria grande ênfase à implantação de infraestrutura e
investimentos em desenvolvimento tecnológico, industrial e científico para sustentar
o crescimento da economia brasileira nos anos seguintes. O ano de 1972 viu
também a criação do chamado Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia e a
assinatura de um acordo para troca de urânio in natura do Brasil por urânio
enriquecido pelos EUA, sem previsão de qualquer espécie de transferência de
tecnologia.
Em 1973, seria lançado o I Plano Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico e teria início o desenvolvimento de álcool combustível na UNICAMP,
bem como o prosseguimento de pesquisas para o desenvolvimento de tecnologia de
enriquecimento de urânio. Mas, provavelmente, o evento mais importante naquele
ano de 1973,no que diz respeito ao desenvolvimento tecnológico e econômico
nacional, bem como ao padrão de inserção da economia brasileira na economia
mundial pelas próximas décadas, tenha sido a criação da Embrapa, instituição
central do agronegócio brasileiro dado seu papel no desenvolvimento e transferência
de tecnologia para o setor – caso que também se enquadra naquela categoria de
iniciativas de desenvolvimento tecnológico que reforçam o padrão histórico de
inserção subordinada do Brasil na economia global.
2.4. Pragmatismo Responsável e Ecumênico (1974-1979)
O governo de Ernesto Geisel (1974-1979) é o ponto máximo das tentativas de
desenvolvimento econômico e tecnológico autônomos, ao qual se segue abrupta
interrupção e declínio acelerado. No plano doméstico, o milagre econômico
começava a perder força e, no plano internacional, a crise do petróleo de 1973
mergulhava a economia global em uma crise da qual os países centrais só
começariam a sair nos primeiros anos da década seguinte, às custas de uma piora
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da crise nos países periféricos e ao encerramento definitivo do ciclo
desenvolvimentista (Tavares, 1985). Segundo Vizentini, apesar da situação nacional
e do contexto internacional, o governo Geisel, “longe de adotar uma estratégia
defensiva, preparou um aprofundamento do processo de industrialização por
substituição de importações, com vistas a tornar o país autossuficiente em insumos
básicos e, se possível, em energia” (Vizentini, 2008: 50).
O II PND, lançado em 1974, daria corpo a essa estratégia. A busca pela autonomia
econômica e tecnológica ganharia intenso impulso em uma série de iniciativas, como
a construção de hidrelétricas, o desenvolvimento de novos polos petroquímicos, o
Proálcool e o início da construção de usinas nucleares (além de dobrar as apostas
no desenvolvimento de tecnologias de enriquecimento de urânio, naquele momento
ainda não dominadas pelo Brasil).
A política externa do pragmatismo responsável e ecumênico do governo Geisel daria
prosseguimento à estratégia de redução da dependência tecnológica do país em
relação aos EUA ao aproximar-se de outras potências capitalistas, além do diálogo
diplomático com países do campo socialista, com destaque para a China, e com
países árabes produtores de petróleo. Além disso, o governo retomou certas
inclinações terceiro mundistas, patentes nas novas relações diplomáticas com
nações africanas recém-independentes e na distensão com países da América
Latina.
No que concerne às relações entre política externa e política tecnológica do período
militar, o aspecto mais importante foi o já mencionado afastamento do Brasil dos
EUA na área nuclear e sua aproximação com a Alemanha. O movimento duplo de
afastamento em relação aos EUA e aproximação da Alemanha vinha sendo
executado desde o governo Costa e Silva e seria aprofundado nos governos Médici
e Geisel.
O exame das políticas externas dos governos militares e sua relação com o
desenvolvimento tecnológico apresenta grande continuidade ao longo dos governos
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Costa e Silva, Médici e Geisel. Em relação à PEI, que incorporou fortemente a
preocupação com o desenvolvimento econômico e tecnológico nacional em sua
dimensão discursiva, mas que não teve capacidade de implementar políticas
externas com ações efetivas voltadas para o desenvolvimento tecnológico – situação
agravada pela pouca atenção que, no plano interno, a política tecnológica e
científica receberia naquele período – as políticas externas e domésticas voltadas ao
desenvolvimento tecnológico dos governos Costa e Silva, Médici e Geisel
transformaram mais claramente o discurso em ações. Se, por um lado, é evidente
que entre a PEI e as políticas externas dos governos militares, no que diz respeito à
sua preocupação com o papel da tecnologia na soberania nacional, a passagem do
discurso à ação representa diferença qualitativa importante, contudo, não se pode
deixar de apontar alguma continuidade, ainda que tênue, com respeito ao
amadurecimento da reflexão sobre a autonomia tecnológica entre os dois conjuntos
de políticas externas.
No plano da política de desenvolvimento tecnológico, as principais iniciativas do
governo Geisel serão, além do II PND, a consolidação do Sistema Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico no ano de 1974; o II Plano Básico de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico, a criação do Programa Nacional do Álcool
(PROALCOOL), a transformação da Empresa Digital Brasileira (DIGIBRÁS) na
Cobra S.A., em 1974; o ano de 1975 veria a assinatura do já citado Acordo de
Cooperação no Campo dos Usos Pacíficos da Energia Nuclear entre Brasil e
Alemanha e do Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, que especifica as áreas e
tecnologias que seriam objeto de cooperação e transferência, que envolveriam a
mineração e beneficiamento de urânio, produção de reatores nucleares,
enriquecimento de urânio e sua transformação em combustível nuclear (como todo
processo de transferência tecnológica, este também ficaria muito aquém das
promessas tratadas nos acordos); em 1976, foi instituído o PRONUCLEAR, política
de formação de recursos humanos na área nuclear.
3. Conclusão: independência tecnológica e nação
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A independência tecnológica é uma das etapas fundamentais da independência
política e econômica de uma nação. Não há que ignorar esse aspecto da construção
da soberania nacional sob o risco de mistificar os meios de transformar e emancipar
o povo brasileiro na atual quadra do capitalismo histórico. O romantismo
conservador de propostas de desconexão do país do sistema capitalismo mundial
deve ser prontamente denunciado, por apontar como saída a invenção no futuro de
um passado que nunca existiu, o que serve apenas aos interesses de manutenção
da posição de subordinação da nação aos países do capitalismo central e da
dominação de uma classe/raça sobre outra. A conexão não-subordinada, por sua
vez, pode, quando muito, atualizar as ilusões de inserção mundial da nação em um
sistema internacional não-competitivo e convergente para o bem comum – coisa que
não existe, nunca existiu e é pouco provável que venha algum dia a existir. Devemos
também excluir a possibilidade teórica de uma conexão subordinante do Brasil como
potência hegemônica a ditar os destinos do sistema internacional e do capitalismo
mundial por pelo menos dois motivos: sua baixíssima probabilidade de ocorrência e
sua não-desejabilidade ético-histórica, pois isso nos colocaria na lamentável
condição de exploradores de outros povos e nações, posição que corrompe
irreversivelmente o espírito de uma nação do mesmo modo que a barbárie da
escravidão corrompeu e corrompe até hoje as sociedades que se fundaram sobre
ela.
As três possibilidades acima: desconexão, conexão subordinada e conexão
subordinante – atribuem importância muito diversa ao papel da dependência
tecnológica na produção e reprodução da dependência política e econômica da
nação. No caso da desconexão, a “independência” passaria por ignorar ou mesmo
reverter o protagonismo da dimensão tecnológica e científica na melhoria do bem-
estar das pessoas e nações ao longo de toda a história humana. Quanto à conexão
subordinada, trata-se não de uma possibilidade ou elucubração a respeito de um
futuro incerto, mas da realidade histórica mesma de nossa inserção no sistema
capitalista mundial nos últimos séculos. Já discuti a centralidade da dependência
tecnológica na manutenção desse estado de coisas e os meios pelos quais os
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países do capitalismo central criam monopólios do conhecimento produtivamente
aplicável como forma de perenizar a divisão internacional do trabalho que diferencia,
de um lado, produtores e beneficiários e, de outro, consumidores e explorados por
aquele monopólio.
A tarefa histórica de construção da independência tecnológica como caminho para a
independência política e econômica passa, portanto, pela quebra do monopólio do
conhecimento produtivamente aplicável detido pelos países do capitalismo central.
Essa quebra, no entanto, não será aceita passivamente pelos detentores do
monopólio; na verdade, jamais foi aceita pelos detentores do monopólio: destruir a
Petrobrás, interromper o programa nuclear brasileiro e o arranjo industrial que lhe dá
sustentação, explodir foguete em sua plataforma de lançamento e promover golpes
de Estado é o caminho mais fácil de atingir o objetivo central de manter o monopólio
em sua atual estrutura societária fundada na divisão internacional do trabalho. O
Brasil deverá, portanto, redobrar seus esforços de desenvolvimento tecnológico
independente e preparar-se para se defender das agressões neocolonialistas; o
desenvolvimento de capacidades de defesa de agressões externas é em si um dos
eixos que deverá guiar o desenvolvimento tecnológico em direção à independência
do país.
Não bastará, no entanto, forçarmos nossa participação na estrutura monopolista que
detém o controle do conhecimento produtivamente aplicável por meio da conexão
subordinante - conexão na forma de sócio minoritário da estrutura monopolista
dominada pelos países do capitalismo central que subordina a periferia. Não
queremos a duvidosa honraria de ganhar um título familiar do clube das neo-
europas, mas sim contribuir para criar as condições de desestruturação geral do
sistema capitalista mundial e sua substituição por um sistema livre dos monopólios –
não apenas o monopólio do conhecimento produtivamente aplicável e da guerra,
mas também dos monopólios à vida decente e digna e ao bem-estar. Trata-se da
inserção soberana não-subordinante.
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A inserção soberana não-subordinada precisa ela também ser construída
politicamente. Ela nascerá da decisão coletiva consciente por parte do povo da
nação de reverter a dependência e a subordinação que são o traço fundamental de
toda a nossa história nacional e pré-nacional. Formar o consenso que nos levará à
inserção não subordinada não será tarefa fácil, uma vez que não podemos contar
com as elites econômicas nacionais, cuja posição depende de modo inescapável da
subordinação da nação aos interesses das nações do capitalismo central.
Do ponto de vista das relações externas da nação, a história do século XX já
mostrou que não se pode construir a independência nacional isoladamente, muito
menos com base na imposição da dependência a outras nações. Construir a aliança
do sul global em torno do objetivo comum de reverter a dependência dessas nações
em relação ao norte global será fundamental se não quisermos reeditar os
momentos históricos em que os projetos de independência dos povos reverteram em
nacionalismo chauvinistas e reafirmação da situação de dependência e
subordinação da periferia ao capitalismo central. A luta anticolonialista, as
conferências de Bandung e a Tricontinental, o pan-africanismo, o terceiro mundismo
e o movimento dos não alinhados, bem como o ensaio incompleto e precocemente
interrompido da revolução latino-americana dos últimos quinze anos, fornecem, a
partir de uma perspectiva antihegemônica, valiosas lições sobre o caminho a seguir
– e, por que não, os caminhos a serem evitados.
Já é tempo de completarmos nossa independência. Dois séculos de ensaio são mais
do que suficientes.
Referências
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VIZENTINI, P. F. Relações internacionais do Brasil: de Vargas a Lula. Editora
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TAVARES, Maria da Conceição. A retomada da hegemonia norte-americana. Revista
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