teoria fisicalista

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Sofia Gabriela Assis de Morais Miguens Uma Teoria Fisicalista do Conteúdo e da Consciência D. Dennett e os debates da filosofia da mente 2001 Faculdade de Letras da Universidade do Porto

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Sofia Gabriela Assis de Morais Miguens

Uma Teoria Fisicalista do Contedo e da ConscinciaD. Dennett e os debates da filosofia da mente

2001 Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Sofia Gabriela Assis de Morais Miguens

Uma Teoria Fisicalista do Contedo e da ConscinciaD. Dennett e os debates da filosofia da mente

2001 Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Dissertao de Doutoramento em Filosofia apresentada Faculdade de Letras da Universidade do Porto

AGRADECIMENTOS

Ao Professor Doutor Fernando Gil, o Orientador deste trabalho, pelo exemplo que para mim representa.

Professora Doutora Maria Jos Cantista, Co-Orientadora deste trabalho, por todo o apoio que sempre me deu em todos os aspectos da vida profissional e pela sua amizade.

Ao Gabinete de Filosofia Moderna e Contempornea da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, coordenado pela Professora Doutora Maria Jos Cantista, no mbito do qual foi possvel uma primeira deslocao New York University em Novembro/Dezembro de 1999. Fundao Luso Americana para o Desenvolvimento e Fundao Calouste Gulbenkian, que apoiaram a minha estadia como visiting scholar na New York University no Semestre de Outono de 2000, estadia que me ofereceu entre outras coisas a oportunidade de assistir aos cursos de Filosofia da Mente e de Metafsica dos Professores Ned Block e Derek Parfit.

Ao Dr. Joo Alberto Pinto da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e ao Professor Doutor Antnio Machuco da Universidade Lusfona pela leitura e comentrios que foram fazendo de vrias verses do texto.

Aos alunos da cadeira de Filosofia do Conhecimento da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, no mbito da qual tive a possibilidade desde 1996 at 2000 de ensinar Filosofia da Mente.

Ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, pelas condies propiciadas para a elaborao deste trabalho.

Ao Professor Doutor Agostinho Frias do Instituto de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto pelas sugestes informticas.

A Dra. Alexandra Abranches do Instituto de Letras e Cincias Humanas da Universidade do Minho, ao Dr. Patrick Bernaudeau da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e a Pascal Engel da Universidade de Paris I V - Sorbonne pelas sugestes lingusticas.

Aos meus pais e famlia.

Ao Joo, noutro departamento que no o acima referido.

E finalmente minha Av, Maria Alberta de Morais Miguens, que sempre me incentivou em tudo o que quis fazer. sua memria que dedico esta Tese.

We must think of mind as a phenomenon to which the human case not necessarily central, even though our minds are at the center of our world. The fundamental idea behind the objective impulse is that the world is not our world. Thomas Nagel, The View From Nowhere

INDICE

Siglas utilizadas Citaes e tradues INTRODUO Apresentao geral do trabalho. A filosofia da mente. Cincia cognitiva como filosofia redescoberta. Ser a psicologia (mais) importante para a filosofia (do que as outras cincias)? Estrutura especfica do trabalho. PRIMEIRA PARTE: As Origens CAPTULO 1 - Dennett e a teoria da mente em 1965. O primeiro esboo da Teoria dos Sistemas Intencionais: princpios orientadores de Content and Consciousness .. 1.1 A partir de Ryle e Wittgenstein, Quine e Putnam 1.1.1 Breve referncia a E. Anscombe, C. Taylor e a alguns visionrios na cincia e na engenharia 1.2 O problema do contedo em Content and Consciousness: incios de uma teoria teleolgica do significado 1.2.1 A partir de fora e de cima. A referncia segundo Quine. Existncia e Identidade. 'Referencial' e 'no-referencial' segundo Dennett. O holismo e a fuso experimental das frases mentalistas nos seus contextos 1.2.2 A partir de dentro e de baixo. Informao e Teleologia. Armazenamento inteligente de informao e comportamento. O contedo e o funcionamento de estruturas apropriadas. Evoluo no crebro 1.2.3 A estrutura do comportamento. O comportamento dirigido a fins {goal directed behavior) e a adscrio do contedo. Princpios da teleossemntica. Mente e linguagem 1.2.4 Os nveis pessoal e sub-pessoal de descrio e explicao: como tratar o nvel pessoal. A dor como exemplo 1.3 O problema da conscincia em Content and Consciousness: incios de uma teoria deflacionria da conscincia 1.3.1 O funcionalismo segundo Putnam. A certeza introspectiva de um ponto de vista funcionalista 1.3.2 Os sentidos do 'apercebimento' {awareness). Apercebimento e controlo (apercebimento-2), apercebimento e expresso verbal (apercebimento-1)

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1.3.3 Imagens, qualia, preenchimentos e cores. Percepes de ausncia ou ausncia de percepo 1.4 A Inteno: pensar e agir voluntariamente 1.4.1 O nvel pessoal e a teoria da aco: as razes na aco. A inteno segundo Anscombe e a sua adaptao psicologia filosfica de Dennett 1.5 A linguagem, o entendimento e o nvel pessoal. O que fica estabelecido em Content and Consciousness SEGUNDA PARTE: O Modelo CAPTULO 2 - A posteridade do funcionalismo de Putnam: diferendos acerca da natureza da psicologia 2.1 Dos anos 70 aos anos 90: A teoria teleolgica do contedo, as suas implicaes e os seus opositores - Brainstorms (1978), The Intentional Stance (1987), Brainchildren (1998) 2.1.1 Linhas de anlise da teoria do contedo: a formulao da Teoria dos Sistemas Intencionais (TSI), a oposio Teoria dos Sistemas Intencionais (especialmente da Teoria Representacional da Mente), os princpios behavioristas da TSI e a sua ligao ao evolucionismo e a uma teoria geral do design 2.1.1.1 Jerry Fodor, a Teoria Representacional da Mente e a Hiptese da Linguagem do Pensamento 2.1.1.2 Instrumentalismo? - De Intentional Systems a Real Patterns. A TSI e as trs estratgias (Estratgia Fsica, Estratgia do Design e Estratgia Intencional) 2.1.1.3 Princpios gerais 2.1.1.4 Intentional Systems 2.1.1.5 A suposio de racionalidade, o crente perfeitamente racional e o design da racionalidade. Das virtudes do behaviorismo skinneriano TSI 2.1.1.6 O valor de sobrevivncia das crenas verdadeiras e a predominncia do normal. A tenso entre racionalidade e incorrigibilidade. Racionalidade, holismo, indeterminao: as crenas nucleares e as outras crenas. Crenas e opinies 2.1.1.7 A oscilao entre instrumentalismo e realismo: o realismo enfraquecido, os verdadeiros crentes e os padres reais 2.1.1.7.1 True Believers 2.1.1.7.2 The Intentional Stance e a explorao dos problemas delimitados em True Believers 2.1.1.7.3 Aquilo em que uma r acredita: Evolution, Error and Intentionality, a biologia evolucionista e a indeterminao quiniana 2.1.1.7.4 Dennett e o Quarto Chins ou quando outros filsofos atacam a separao entre contedo e conscincia 2.1.1.8 Real Patterns 2.2 A individuao do contedo e a explicao psicolgica. Contra o interpretativismo da TSI: R. Millikan, F. Dretske, J. Fodor 2.2.1 Funcionalismo e teleofuncionalismo: a reintroduo das funes

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biolgicas na teoria da mente. Realismo acerca de representaes. A TSI e o teleofuncionalismo. Problemas do extemalismo 2 2 2 Beyond Belief, mundos nocionais e proposies como medidas provisrias 2.2.3 Explicao psicolgica e individuao do contedo de acordo com outras posies externalistas 2.2.3.1 A biopsicologia de R. Millikan 2.2.3.2 Informao e explicao do comportamento segundo F. Dretske 2.2.3.3 J Fodor: a teoria nmico-informacional e o atomismo 2.2.3.4 Sentencialismo, eliminativismo ou interpretao? 2.3 Dennett e o design: o foco das tenses internas da TSI 2.3.1 O scilao entre design real e design como interpretao 2.3.2 Darwin's Dangerou s Idea (1995): a ideia de Darwin e o evolucionismo generalizado. Realidade e relatividade do design, de novo CAPTULO 3 - Pensamentos conhecendo outros pensamentos: Dennett e os debates em teoria da conscincia dos anos 70 aos anos 90 (de Brainstorms a Brainchildren, passando por Consciousness Explained) 3.1 A conscincia como problema dos anos 90. A posio heterodoxa e deflacionria de D. Dennett. O s qu alia aniquilados, o Teatro Cartesiano desmontado, os zombies declarados inconcebveis. Teorias emprico-especulativas da conscincia. Um outro prisma: o problema metafsico da conscincia fenomenal e da sua irredutibilidade 3.1.1 Alguns marcos da investigao emprico-especulativa

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3.1.2 Q u/n/ng Qualia3.1.3 Um outro prisma: metafsica e fundamentalidade da conscincia 3.2 Modelos de conscincia e natureza das experincias: Brainstorms (1978) 3.2.1 Experincia, memria, apresentao, expresso: os sonhos 3.2.2 Imagens mentais 3.2.3 A dor: sentir-se sere simulao 3.3 Modelos de conscincia e natureza das experincias: Consciou sness Explained (1991) e o close-up do observador 3 3 1 De novo a partir de fora e de cima: Shakey, SHRDLU e a

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heterofenomenologia '' 3.3.2 O Modelo dos Esboos Mltiplos 317 3.3.3 O tempo e a conscincia. Temporalizao 319 3.3.4 De novo a partir de dentro e de baixo. A evoluo da conscincia do ponto de vista da terceira pessoa e evitando considerar a representao do que quer que seja. Fronteiras, razes, sensincia e futuro. Evoluo no crebro. Mquinas Virtuais instaladas 332 3.3.5 A iluso do utilizador da Mquina Virtual joyceana 343 3 3.5 1 Ainda assim um interior: querer-dizer, pandemnio e actos de fala 3.3.5.2 O Eu 3.3.6 A ltima palavra (filosfica) quanto ao Teatro Cartesiano 3.3.6.1 Mostrar ou dizer 3.3.6.2 Querer-dizer, reportar e exprimir 3.3.6.3 Quebrar a barreira da testemunha: uma interpretao da viso 346 353 356 357 359

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cega 3.3.6.4 Ver saber? 3.3.6.5 A cor, de novo (e uns certos gostos e desgostos ligados aos qualia) 3.3.6.6 Mary e os zombies. O Quarto Chins. O morcego 3.3.7 Cincia cognitiva ou teoria filosfica da conscincia? O choque de intuies quanto fundamentalidade da conscincia: Dennett versus Searle, Nagel, Chalmers e Jackson. O concebvel e o inconcebvel CAPTULO 4 - As Pessoas e as suas Aces: a filosofia da mente e os fundamentos da filosofia moral 4.1 Pessoa e aco como conceitos normativos: a filosofia moral e a teoria cognitiva. Naturalismo gradualista e compatibilismo 4.2 A fragmentao do problema da vontade livre e as formas que o problema da vontade livre no tem: vontade numnica, indeterminismo fsico, capacidades mentais no mecncias 4.3 A liberdade num mundo determinista: aleatoriedade, controlo, espao de manobra [elbow room) e descrio intencional 4.3.1 A rigidez, o espao de manobra e o controlo. Condies da aco: determinismo fsico, determinao do design, limitaes cognitivas. A impossibilidade fsica da vontade pura e a sua substituio pela prudncia 4.4 Da teoria do controlo ao auto-controlo meta-reflexivo e avaliao forte 4.4.1 Deliberao, deciso, oportunidade. Previsibilidade e imprevisibilidade. A deliberao e a deciso: vantagens da insensibilidade e da arbitrariedade. Deliberao e possibilidade epistmica 4.4.2 Razes e self. O eu e as suas fices. Real, virtual. Indeterminao. Auto-exortao 4.4.3 Do eu pessoalidade 4.4.4 'Quererei eu realmente ser aquilo que sou?' Os meta-probiemas difceis do controlo, a avaliao forte e a sorte moral 4.4.5 Sorte moral ou responsabilidade. A prudncia e o design do deliberador. 4.5 Manual de primeiros socorros morais e tica da virtude 4.6 Problemas de fundo CAPTULO 5 - Questes aplicadas da TSI. Tipos de mentes: mentes animais, artificiais e humanas 5.1 A horizontalidade de perspectiva da TSI sobre o mental: o natural e o artificial. Cincia cognitiva, engenharia invertida e/ou sntese. Crebros, programas, robs: da base para o topo e do topo para a base. A IA e as experincia de pensamento reais. Os tipos de mentes e a tipologia (a partir de dentro e de baixo) das criaturas cognitivas 5.2 Questes aplicadas da TSI: as mentes animais e o problema da interpretao, o problema do enquadramento [frame problem) na IA e a incorporao das mentes ... 5.2.1 Mentes animais: etologia cognitiva 5.2.2 Mentes artificiais: O problema do enquadramento na IA 5.2.3 A incorporao das mentes: perturbaes do funcionalismo

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TERCEIRA PARTE: Os Problemas CAPTULO 6 - Fisicalismo, Contedo e Conscincia: ontologia 6.1 Primeiro e fundamental ponto crtico para a avaliao da TSI: o fisicalismo e a irredutibilidade da intencionalidade 6.2 A natureza e o seu interior I. Ser a TSI necessariamente fisicalista? O realismo moderado, a teoria evolucionista da cognio e o estatuto dos interfaces. A (in)justificao do fisicalismo 6.2.1 J. Haugeland e a teoria do entendimento (ou como reconciliar a Estratgia Intencional com a Intencionalidade Intrnseca de J. Searle) 6.2.2 Ps-antropologismo: B. Cantwell Smith e a origem dos objectos 6.3 A natureza e o seu interior II. Racionalidade: a impossibilidade de irracionalidade e a racionalidade mnima 6.4 A natureza e o seu interior III. Conscincia fenomenal ou iluso do utilizador de uma Mquina Virtual. Epifenomenismo CONCLUSO - Vale a pena fazer filosofia da mente? Um retorno s origens Contexto histrico-sociolgico da filosofia da mente e da cincia cognitiva. A tradio filosfica. Vale ou no vale a pena? - A nossa natureza mental. BIBLIOGRAFIA ndice Onomstico ndice Temtico da filosofia da mente

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Siglas Utilizadas

TSI - Teoria dos Sistemas Intencionais

MEM - Modelos dos Esboos Mltiplos

SI - Sistema Intencional El - Estratgia Intencional ED - Estratgia do Design EF - Estratgia Fsica TRM - Teoria Representacional da Mente

RM - Representao Mental C&C - Content and Consciousness

BS - Brainstorms

ER - Elbow Room

IS - The Intentional Stance

CE - Consciousness Explained

DDI - Darwin's Dangerous Idea

KM - Kinds of Minds

BC - Brainchildren

Nota: Optou-se por considerar que formas como SI e RM valem para o singular e para o plural.

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Citaes e tradues

Optou-se por traduzir todas as citaes que aparecem no corpo do trabalho. As tradues so feitas directamente a partir da verso original dos textos. As citaes que aparecem em nota so feitas na lngua original. So por vezes mantidos termos e frases curtas na lngua original no corpo do texto devido sua particular expressividade. Grande parte da terminologia da cincia cognitiva no est definitivamente fixada em portugus. Frequentemente recorreu-se ao uso habitual de termos em reas como a Inteligncia Artificial e a Psicologia de modo a estabelecer tradues. Assim, por exemplo, embeddedness traduzido por embebimento, frame problem por problema do enquadramento, top-down e bottom-up como do topo para a base e da base para o topo. Os termos self, input e output so utilizados na sua forma inglesa. Decidiu-se no traduzir o termo design, que corrente nessa forma por exemplo em reas artsticas. No entanto, traduziu-se o termo designed por desenhado e por vezes por projectado. Traduziu-se o termo awareness, que frequentemente considerado como sinnimo de conscincia e que um termo chave para estabelecer distines entre contedo e conscincia, por apercebimento. Em geral traduziu-se a palavra token por espcime, a palavra type por tipo e a palavra kind por gnero. Os termos input e output, a priori e a posteriori so considerados como termos tericos comuns e portanto no so escritos em itlico. O mesmo acontece com o termo design no mbito da expresso 'Estratgia do Design'.

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INTRODUO

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Apresentao geral do trabalho. A filosofia da mente. Cincia cognitiva como filosofia redescoberta. Ser a psicologia (mais) importante para a filosofia (do gue as outras cincias)?

Termos como design, input e output, top-down, bottom-up, embeddedness e awareness, so amplamente utilizados em teoria da cognio - por exemplo na Psicologia e na Inteligncia Artificial - e permitem-nos falar sobre sistemas cognitivos, sistemas intencionais, agentes racionais que manifestam inteligncia ou conscincia e que, como tal, presumivelmente utilizam representaes, entre as quais auto-representaes, para se comportarem no mundo fsico. No entanto, o estatuto de tais termos no imediatamente claro. Este trabalho tem como objectivo avaliar as pretenses de esclarecimento do estatuto dos termos referidos de uma meta-teoria da cognio a que se chama Teoria dos Sistemas Intencionais (TSI). De modo geral utiliza-se o termo 'sistema' no sentido de entidade isolada ou isolvel. Utiliza-se o termo 'racional' para nomear sistemas que so agentes, i.e. sistemas que 'guiados por representaes' se comportam de forma adaptada ao ambiente em funo de 'estruturas de finalidades'. relativamente a esses sistemas, os agentes racionais, que se analisa a natureza e contedo dos estados mentais, a conscincia e a auto-conscincia, a existncia de aces por oposio a meros movimentos, a identidade pessoal por oposio mesmidade de um corpo que persiste ao longo do tempo e, finalmente, a racionalidade que de acordo com a TSI sustenta todas as atribuies de caractersticas mentais. primeira vista, este trabalho sobre um autor, um filsofo americano, Daniel Dennett1. No entanto, aquilo que de facto se pretende utilizar a obra de Dennett como fio condutor para a exposio e avaliao de determinados problemas e teses da filosofia da mente. por essa razo que a dissertao se intitula uma teoria: a TSI proposta por Dennett uma de entre as vrias teorias que na filosofia da mente competem no sentido de esclarecer a natureza do contedo e da conscincia. Assim, embora se proponha que a TSI constitui um ponto de observao privilegiado dos principais debates que atravessaram a filosofia da mente e a cincia cognitiva nos ltimos trinta e cinco anos, aproximadamente, admite-se que tais debates possam tambm evidenciar alguns dos seus limites. A particular teoria analisada neste trabalho, a TSI, em ltima anlise uma teoria normativa ou transcendental da mente. Entende-se por teoria normativa ou transcendental uma teoria segundo a qual objectos so inteligveis em virtude de um compromisso prvio quanto quilo que eles podem ser. certo que o prprio Dennett no se refere nunca TSI como uma

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teoria transcendental. No entanto, alguns dos intrpretes do seu pensamento no hesitam em faz-lo2 e este trabalho adoptar essa posio. E importante que fique claro desde j que alguns dos tratamentos no meramente expositivos da TSI que aqui se levam a cabo no seriam facilmente aceites por Dennett e nem sequer caberiam muito facilmente numa certa caracterizao da filosofia americana

contempornea. Por exemplo no que diz respeito considerao da TSI como teoria transcendental da mente, tudo o que se encontra no prprio Dennett a ideia de que uma suposio de racionalidade constitutiva do mental enquanto mental, sendo unicamente mediante uma Estratgia Intencional (El) que sistemas fsicos so interpretados como sendo mentais ou cognitivos. H pelo menos trs coisas neste trabalho que partida evidenciam um certo afastamento relativamente ao que mais comum na filosofia americana contempornea: uma postura histrica, uma ateno aos textos e a defesa final de uma posio no naturalista. A TSI uma teoria quiniana da interpretao de sistemas fsicos supondo a racionalidade. Inicialmente definida como uma teoria fisicalista, funcionalista e instrumentalista do mental, ela abarca neste momento um conjunto de posies sofisticadas relativamente aos fenmenos do contedo e da conscincia. A TSI assim, nomeadamente, um realismo moderado (acerca da natureza das representaes em sistemas cognitivos), um

teleofuncionalismo interpretativista (quanto ao contedo dessas representaes), um niilismo do significado (quanto ao poder explicativo das noes semnticas). Estas posies perante a natureza do significado so acompanhadas por uma teoria deflacionria da conscincia, eliminativista relativamente aos qualia3 e por uma teoria naturalista e normativa (e por isso gradualista) quanto natureza de pessoas e de aces. Globalmente considerada, a TSI representa ainda uma posio ecummica relativamente distribuio da mentalidade por entidades naturais e artificiais. Se o fisicalismo , em traos gerais, a convico de que a natureza do mundo fundamentalmente fsica, o funcionalismo a ideia segundo a qual a natureza da cognio independente relativamente ao seu substracto material. Noutras palavras, o funcionalismo a explorao psicolgica e filosfica da diferena entre hardware e software, redundando num dualismo caracterstico de muitas das teorias contemporneas da cognio. A TSI nunca abdica do funcionalismo.

' N. 1942, MA Harvard 1963, DPhil Oxford 1965. Cf. por exemplo FODOR & LEPORE 1992 e HAUGELAND 1997. O termo qualia utilizado na filosofia da mente para referir as qualidades da experincia sentida e o estatuto especial de tais qualidades no seio da experincia mental.2

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Ser instrumentalista acerca de alguma coisa utiliz-la por motivos pragmticos sem lhe conceder realidade ou importncia fundamental. O instrumentalismo aqui em causa um instrumentalismo acerca da linguagem mental. Mas a TSI vem a mostrar no ser exactamente instrumentalista, ligando antes o reconhecimento dos padres da mentalidade ao ponto de vista de um intrprete e considerando que esses padres so reconhecveis pelo intrprete devido realidade do design4 que lhes subjaz. O niilismo do significado5 traduz-se, por sua vez, nos termos da TSI, pela defesa da inexistncia de 'mquinas semnticas' {semantic engines). No ncleo da teoria da representao est a convico de que o facto de alguma coisa significar no pode ser causalmente responsvel por trabalho fsico, pela causao do que quer que seja. Sendo todo o sistema cognitivo um sistema fsico, a linguagem mentalista (a linguagem que descreve sistemas fsicos em termos de razes, significados, pensamentos) no descreve nunca os processos causais que finalmente e realmente guiam os comportamentos. Num mundo de mquinas semnticas o mental seria causalmente eficaz e a linguagem mentalista seria explicativa. No nosso mundo, o 'mental' apenas uma interpretao holista6 de sistemas fsicos e um atalho heurstico. Deflacionar , por outro lado, diminuir o valor de alguma coisa. Esta inteno traduz-se no mbito da teoria dennetiana do mental na identificao da conscincia com uma certa incorrigibilidade no auto-acesso de sistemas, caracterstica da produo de relatos (lingusticos) acerca de si, por oposio a alguma apario fundamental e a-conceptual ou a uma especificidade ontolgica do sentimento de si ou da experincia de ser. O Modelo dos Esboos Mltiplos (MEM), a teoria da conscincia que a TSI enquadra, de natureza deflacionria. A partir destas posies bsicas, o funcionalismo, a deflao e um instrumentalismo que afinal apenas interpretativismo, a TSI pretende analisar a subjectividade de vrias maneiras e a partir de vrios ngulos. Um dos objectivos deste trabalho verificar se a anlise proposta globalmente coerente, se ela constitui realmente uma teoria fisicalista do mental e se legtimo fazer uso de uma suposio de racionalidade na interpretao de sistemas fsicos de modo a discernir a natureza mental destes sem oferecer uma teoria explcita da natureza da racionalidade. Alm de abordar problemas concretos de um domnio (a filosofia da mente) atravs das solues para esses problemas exploradas na obra de um filsofo (Daniel Dennett), o presente

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alis basicamente realidade de funes, no sentido de propsitos ou finalidades de dispositivos, que o atrs referido teleofuncionalismo (uma tese acerca do contedo de representaes) se reporta. 5 A expresso utilizada por J. Fodor e E. Lepore. Cf. FODOR &LEPORE 1992. 6 I.e. uma interpretao do sistema cognitivo ou agente como totalidade e no a interpretao de uma parte (por exemplo cerebral) desse sistema ou agente.

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trabalho tem ainda como inteno situar Dennett no mbito da histria da filosofia analtica. Isto justifica a postura histrica atrs referida. Ora, a situao da filosofia da mente no mbito da filosofia analtica inseparvel do desenvolvimento recente da cincia cognitiva7. Assim, um outro objectivo do trabalho investigar a relao da filosofia da mente com a histria da cincia cognitiva das ltimas dcadas, nomeadamente focando debates com grande peso filosfico tais como os debates em torno da existncia de uma linguagem do pensamento, da existncia de imagens mentais, da natureza da conscincia, da natureza da racionalidade, da natureza dos conceitos, etc. No ser sequer necessrio introduzir a partir de fora tais discusses da cincia cognitiva uma vez que elas aparecem naturalmente no trabalho dos filsofos. No entanto no apenas o teor da investigao emprica acerca de cognio que importa quando se procura investigar a relao da filosofia da mente com a cincia cognitiva: importam tambm as posies alternativas defendidas por filsofos relativamente a essa investigao. Embora nem todas as teorias do contedo e da conscincia que divergem da de D. Dennett sejam aqui consideradas, procurar-se- tanto quanto possvel, dar voz a filsofos que, no mesmo perodo, no mesmo contexto e lidando com idnticos dados provenientes dos estudos cientficos da cognio defenderam posies em tenso com as posies de Dennett8. Quanto teoria da representao so disso exemplo autores como Jerry Fodor, defendendo o realismo intencional9, Fred Dretske investigando o papel da informao na explicao do

comportamento10, Ruth Millikan elaborando uma biossemntica teleofuncionalista11 ou Paul Churchland propondo o materialismo eliminativo12. Relativamente ao problema da conscincia David Chalmers13, John Searle14 e Frank Jackson15 so alguns dos filsofos que defendem posies realistas quanto conscincia e que, ao contrrio de Dennett, consideram que a questo da conscincia uma questo metafsica fundamental.

Traduzir-se- cognitive science por cincia cognitiva e no por cincias cognitivas. Embora a 'cincia cognitiva' no seja uma disciplina mas uma constelao de vrias disciplinas todas elas tm por objecto a 'cognio'. Um caso muito especial o D. Davidson, que defende uma teoria da mente com inmeros paralelismos com a de Dennett (cf. DAVIDSON 1980 e DAVIDSON 1984). O pensamento de D. Davidson no ser muito explorado neste trabalho devido ao facto de Davidson no ser centralmente um filsofo da cincia cognitiva, no tendo em geral como objectivo reportar as suas teses acerca da natureza do mental a investigaes empricas especficas acerca da cognio. No entanto, quer para D. Dennett quer para D. Davidson a teoria da mente parte da situao quiniana de interpretao radical, uma teoria (holista) da interpretao que (pre)supe a racionalidade, nega a existncia de leis psicofsicas e culmina numa defesa da irredutibilidade do aspecto normativo do pensamento. 9 FODOR 1975, FODOR 1987, FODOR 1998. 10 DRETSKE 1981, DRETSKE 1988. 11 MILLIKAN 1984, MILLIKAN 1993. 12 CHURCHLAND 1981. 13 CHALMERS 1996. 14 SEARLE 1992. 15 JACKSON [1986], JACKSON 1993.

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um facto que a filosofia da mente, e no apenas a filosofia de Dennett, vive hoje da proximidade que estabelece com a investigao emprica multidisciplinar acerca da cognio. Os tpicos clssicos da filosofia da mente, tais como a conscincia, a representao e a causao mental, so frequentemente tratados (tal como Quine prescreveu16) em continuidade com o trabalho cientfico sobre o mental. A enorme quantidade de investigao emprica em cincia cognitiva nas ltimas dcadas explica alis em parte, de um ponto de vista sociolgico, o protagonismo da filosofia da mente dentro da filosofia analtica no perodo em causa. Como afirma J. Kim, nas ltimas duas dcadas, aproximadamente, a filosofia da mente tem sido uma rea extraordinariamente activa e excitante. O campo cresceu enormemente, e (...) houve avanos significativos no nosso entendimento das questes respeitantes mente (...) Este boom foi em parte, devido ao mpeto fornecido pelo crescimento explosivo, desde meados do sculo, da cincia cognitiva17. Ora, o crescimento explosivo da cincia cognitiva importante para a filosofia. Mesmo que o estudo cientfico da mente e da cognio possa ser considerado como a invaso de um territrio tradicionalmente filosfico, o que se verifica que a cincia cognitiva , em grande parte, filosofia redescoberta e (...) filosofia reabilitada18. Um primeiro aspecto dessa reabilitao claramente o renascimento das teorias realistas das representao, que h muito pareciam abandonadas19. Embora o autor central neste trabalho parea (pelo menos primeira vista) defender uma posio anti-realista acerca da representao, mesmo para ele o realismo renascido incontornvel. por essa razo alis, que o realismo intencional de J. Fodor o contraponto constante da apresentao da TSI. Naturalmente, o facto de estar em causa uma investigao cientfica do mental uma das razes para o mencionado renascimento do realismo. No entanto, dado o retorno do realismo da representao, o problema saber se ele sustenta uma posio metafsica tambm ela realista. Trata-se de saber que forma podero ter a metafsica e a ontologia requeridas pelo estudo cientfico da representao, j que a ideia de representao evoca o(s) espelhamento(s) do mundo, os 'mundos dentro do mundo' (os mundos representados, os mundos-para-as-mentes, sendo estas mentes no apenas de tipos diferentes - humanas, animais, artificiais - como tambm numericamente diferentes, i.e vrias, inmeras).

Faz-se aluso, evidentemente, ideia de epistemologia naturalizada. Cf. por exemplo QUINE 1953, QUINE 1969 b, QUINE 1981. Dennett um quineano no apenas devido sua defesa da epistemologia naturalizada como tambm devido ao facto, j referido, de considerar que a teoria da mente uma teoria da interpretao. 17 KIM 1996: xi. 18 FODOR 1981: 26 19 Essa morte nunca foi definitiva, mas em vrios quarteires da filosofia o realismo era simplesmente inadmissvel. Basta pensar, relativamente teoria analtica do mental, na grande influncia de G. Ryle e de L.Wittgenstein.

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Um segundo aspecto envolvido na mencionada reabilitao da filosofia o surgimento de uma clara necessidade de fundamentao epistemolgica. O trabalho emprico sobre o mental foi sendo naturalmente acompanhado por uma reflexo que s pode ser qualificada como filosfica, mesmo que muito dos seus praticantes no sejam filsofos profissionais. Essa reflexo epistemolgica uma vocao clssica da filosofia, ou, no mnimo, uma vocao especfica da filosofia moderna - de autores como Descartes, Leibniz, Hume, Kant - caracterizada por acompanhar a cincia natural em desenvolvimento. essa mesma vocao epistemolgica da filosofia que solicitada contemporaneamente pela cincia cognitiva. Simplesmente no se trata agora de fundamentar a fsica clssica, a mecnica galilaica ou newtoniana, mas em ltima anlise a fsica e a matemtica da cognio, a investigao cientfica do mental como parte da natureza. Uma certa identidade de inteno da filosofia da mente contempornea e da epistemologia clssica, dos sculos XVII e XVIII, explica o facto de os problemas de ambas se assemelharem to estranhamente, tanto que no raro encontrar tipologias de posies em filosofia da mente iniciadas com o dualismo de Descartes, o paralelismo de Leibniz ou o monismo de Espinosa20 ou posies acerca do contedo e da conscincia nomeadas como harmonia pr-estabelecida ou epifenomenismo21. De certo modo, uma nova inocncia parece ter sido ganha aps o divrcio entre a filosofia e as cincias naturais notrio em muito do trabalho filosfico dos sculos XIX e XX. A questo epistemolgica do fundamento aparecer, neste trabalho, em primeiro lugar. Segundo Dennett, cabe filosofia da mente fundamentar (e no competir com) as teorias neurofisiolgicas, psicolgicas, computacionais da cognio, procurando clarificar as suposies metafsicas que estas inevitavelmente fazem22. Uma teoria filosfica da mente dever, assim, estar preparada para responder a questes tais como: Existem mentes? Em que sentido existem? Sero as mentes fsicas? A teoria da cognio por em causa que a maneira bsica de existir seja fsica? Como sabemos seja o que fr acerca de mentes? Em que sentido so as mentes responsveis pela constituio de mundos dentro do mundo? Podem esses mundos ser incompatveis? Estas questes mais directamente tericas (metafsicas, ontolgicas,

epistemolgicas) no podem deixar de trazer consigo questes ticas ou proto-ticas. Exemplos de tais questo so: Porque que para algumas mentes, ao contrrio do que acontece com as pedras ou as estrelas, as coisas importam, sendo no apenas apercebidas mas tambm

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Cf. por exemplo McLAUGHLIN 1995 e KIM 1996. Cf. DENNETT 1998b. Dennett louva F. Dretske por, precisamente, no se coibir de utilizar termos como epifenomenismo e harmonia pr-estabelecida nas discusses sobre contedo mental, uma vez que precisamente isso que est em causa. 22 DENNETT 1978: xii.21

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sentidas? Como se relacionam o mental e o sentimento de si? Como se relacionam o eu e a conscincia com o controlo do comportamento? Em que que uma aco voluntria de uma entidade consciente difere de um mero movimento? O que que isso tem a ver com a existncia de pessoas? Mesmo se todas estas questo esto tacitamente presentes na investigao emprica da cognio, as respostas no aparecem simplesmente a partir dos resultados desta. De facto, a TSI no uma hiptese emprica acerca do mental mas sim, em grande parte, uma hiptese apriorista. Alguns autores chamam-lhe mesmo, como foi dito, uma hiptese transcendental, entendendo por transcendental, repita-se, a ideia segundo a qual objectos tericos apenas so inteligveis em virtude de um compromisso prvio que marca os limites daquilo que eles podem ser. Esse seria o caso do mental como objecto de pensamento, de acordo com a TSI. Admitindo que uma teoria filosfica da mente consiste num trabalho conceptual de fundamentao e na elaborao de hipteses aprioristas, e no duplica portanto o trabalho emprico, ainda assim a resposta s questes acima enumeradas no pode ser puramente conceptual e apriorista. Essa resposta s poder surgir, segundo Dennett, de um inqurito impuro. Noutras palavras, a teoria filosfica da mente, sendo inevitavelmente apriorista, no pode ignorar o trabalho emprico sobre a cognio. A impureza' da teoria da mente defendida por Dennett reflectir-se- neste trabalho numa troca constante (e numa deambulao, sem necessidade de delimitao estrita) entre a filosofia e a psicologia. verdade que se atribui aqui um sentido muito lato ao termo 'psicologia', um sentido de acordo com o qual a psicologia diz respeito a qualquer tipo de mente e no apenas s mentes humanas ou s mentes biologicamente realizadas. Considera-se que este sentido de 'psicologia' foi justificado por H. Putnam com o desenvolvimento das ideias funcionalistas nos anos 6023. Segundo o funcionalismo, como j se afirmou, a natureza de predicados psicolgicos ou dos estados mentais de sistemas de uma maneira importante independente do substracto material que os implementa. Esses predicados so assim, de certa maneira, no fsicos. Esta afirmao s obtm, obviamente, todo o seu peso se fr entendida no mbito de um estudo cientfico e materialista da cognio. J. Fodor, em The Language of Thought (1975), uma obra central no perodo de que se ocupar este trabalho, afirma que durante muito tempo ficou mal aos filsofos psicologizarem e

O lugar clssico destas ideias funcionalistas so os artigos Mineis anei Machines (PUTNAM 1960), The Nature of Mental States (PUTNAM 1967a), Robots: Machines or Artificially Created Life (PUTNAM 1964;, The Mental Life of Some Machines (PUTNAM 1967b) reunidos no 2 volume (Mind, Language and Reality) dos Philosophical Papers de H. Putnam (PUTNAM 1975).

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aos psiclogos filosofarem24. Afirma-o antes de declarar que exactamente isso que vai fazer. Psicologia especulativa, conceptualmente disciplinada, e filosofia empiricamente informada: esse o teor do trabalho de filsofos como D. Dennett e de J. Fodor, e isso que os torna representantes centrais da inovao metodolgica em filosofia que a filosofia da mente das ltimas dcadas constitui. Uma tal opo metodolgica no obviamente partilhada por todos os filsofos analticos contemporneos. Ela no entanto uma consequncia possvel do imperativo quineano de naturalizao da epistemologia, que de algum modo conduz a considerar a filosofia da mente como um ramo da filosofia da cincia. Mais especificamente a filosofia da mente filosofia da psicologia num sentido generalizado, um sentido em que o termo 'psicologia' nomeia todas as disciplinas cientficas que se ocupam do mental, desde aquelas que esto mais prximas da engenharia e da biologia, como o caso, respectivamente, da Inteligncia Artificial e das neurocincias, at aquelas que se ocupam com nveis mais afastados da implementao material, como a etologia cognitiva e a lingustica. O trabalho de filsofos da mente como Dennett e Fodor pode parecer, primeira vista, pertencer quele a que Putnam chama o shallower levefi, um nvel mais superficial da filosofia, em que se trata de questes 'pequenas e prticas' como 'Pode-se atribuir crenas a paramcias, ostras ou macacos?', por oposio s grandes questes como 'Ser que a realidade independente do pensamento?' ou 'Ser que o pensamento independente da linguagem?'. No entanto, as exploraes desse nvel mais superficial, ou menos directamente metafsico, contribuem muito para a prpria qualidade do tratamento terico das grandes questes metafsicas. Mas se filsofos como Dennett e Fodor se dedicam investigao da cognio lado a lado com cientistas, no conveniente ocultar que, para muitos filsofos analticos, o puro armchair knowledge, o esclarecimento conceptual em grande medida apriorista, continua a ser o ncleo metodolgico da filosofia. Deste ponto de vista, que se poderia considerar representado por exemplo por Thomas Nagel ou Michael Dummett26, a filosofia da mente tal como Fodor ou Dennett a praticam representa uma concesso excessiva do filsofo s suas prprias inclinaes cientficas. Face a essa crtica possvel e admitindo que o impacto da cincia cognitiva foi decisivo no desenvolvimento da filosofia americana ps-quiniana, um outro aspecto da inteno de

FODOR 1975: vii-viii Since (...) psychologizing and philosophizing are mutually incompatible activities, these accusations were received with grave concern. 25 Cf. PUTNAM 1988. D-se como exemplo estes dois filsofos apenas porque o seu trabalho se liga menos directamente do que o trabalho de Fodor ou de Dennett s discusses aplicadas da cincia da cognio. No se pretende entrar numa comparao daquilo que os autores mencionados entendem como trabalho filosfico (encontrar-se-iam tambm diferenas importantes, certo).

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alguma maneira histrica deste trabalho, a caracterizao desse desenvolvimento. Escolhendo Dennett como referncia num trajecto pela filosofia da mente procura-se explicitar algumas razes da recente maneira americana de fazer filosofia, de modo a enfrentar directamente a crtica de certos autores (como por exemplo M. Dummett) segundo os quais essa maneira representaria uma regresso relativamente sofisticao conseguida pela filosofia analtica anterior. Esta, na tradio de Frege e de Wittgenstein, ao conceber a metodologia filosfica como uma anlise do pensamento feita atravs da anlise da linguagem e ao conceber portanto a filosofia como primeiramente filosofia da linguagem, conseguiria uma 'extruso' (na expresso de M. Dummett) do pensamento em relao mente individual27 que evitaria o erro de conceber sem mais que os pensamentos, a vida mental, fazem parte do fluxo de conscincia do indivduo emprico. Esta orientao teria sido perdida em grande parte da filosofia americana contempornea, com a desastrosa opo pela filosofia da mente em detrimento da filosofia da linguagem. Ainda segundo M. Dummett28, essa m opo da filosofia americana - devida, repitase, ao impacto da cincia cognitiva - traz consigo os perigos do cientismo, do psicologismo e da esterilidade. No pensamento de Dennett permanecem muitas margens indefinidas e muitas respostas incompletas, possivelmente por razes como as apontadas por Dummett. H nomeadamente um lugar vazio para a especificao de uma teoria da objectividade que sustente a teoria da representao proposta, bem como a necessidade de uma ontologia mais elaborada, que explore a relao entre o ponto de vista evolucionista acerca da ontologia e da metafsica na TSI e o fisicalismo. A filosofia de Dennett , no entanto, uma filosofia prtica, no sentido em que est comprometida com o trabalho emprico. Para alm disso, pode-se sempre pensar que se a teoria da mente aparece como a teoria de um hbrido deselegante, e se ela captura a natureza nas suas articulaes, ento porque o mental um hbrido deselegante. preciso considerar essa hiptese, por mais que ela contradiga sculos de especulao filosfica em tomo de uma razo 'pura', terica e prtica29, que permitiria enfrentar mais directamente as acima mencionadas questes da verdade e da ontologia. O trabalho de Dennett no alis uma filosofia prtica apenas na medida em que acompanha a cincia emprica mais relevante e aposta numa ontologia e epistemologia27

Cf. DUMMETT 1993: 22. M. Dummett considera alis que este foi tambm o imperativo que presidiu gnese da fenomenologia. 28 DUMMETT 1997: 52. 29 Evidentemente os acima citados sculos de divrcio entre filosofia e cincias naturais (os sculos XIX e XX), muito claro pelo menos na filosofia a que os filsofos analticos chamariam continental, corresponderam a filosofias da razo impura (pense-se na filosofia de Nietzsche, ou no existencialismo).

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cientficas standard e conservadoras30. O prprio autor assume praticar a escrita filosfica com um esprito de engenharia, considerando que desenha e constri dispositivos -

argumentos, bombas de intuio (intuition pumps), mquinas de metforas - que supostamente atingiro determinados efeitos31. Por outro lado, e ainda num terceiro sentido, a filosofia de Dennett uma filosofia prtica na medida em que considera a teoria das pessoas e das aces como o ponto culminante da teoria da mente. Os conceitos de pessoa e de aco esclarecem-se mutuamente e um tal esclarecimento apenas tem lugar, evidentemente, aps o esclarecimento das noes de contedo e de conscincia. A teoria das pessoas e das aces um ponto delicado da filosofia da psicologia, no qual est em causa a relao entre o conhecimento emprico e a normatividade. Apesar dessa dificuldade, a explorao dos fundamentos da tica uma constante no trabalho de Dennett que considera que a teoria da mente envolve inevitavelmente no caso humano uma teoria da pessoalidade (personhood) e que o conceito de aco central para a prpria possibilidade de pessoas (por oposio a, ou em acrescento a, organismos humanos vivos ou outro tipo de entidades). De acordo com o que se tem vindo a afirmar, a cincia cognitiva no poderia deixar de constituir o pano de fundo do trajecto filosfico de Dennett. Ela hoje um campo disciplinar plenamente constitudo (sobretudo nos Estados Unidos), presente em inmeros programas universitrios de ensino e investigao. A expresso cognitive science s comeou a ser utilizada nos anos 70, mas a gestao da chamada revoluo cognitiva32 pode ser reportada ciberntica dos anos 4033. O nascimento de facto da cincia cognitiva normalmente fixado em 1956, e no uma coincidncia indiferente que essa seja tambm a data oficial de nascimento

Simplesmente essa teoria da razo impura foi sobretudo uma teorizao existencial e no tanto epistemolgica, como ser o caso aqui. 30 DENNETT 1993:205. 3 ' DENNETT 1993: 203. Cf. GARDNER 1984 para um estudo histrico da revoluo cognitiva, em vrias disciplinas (psicologia, filosofia, Inteligncia Artificial, neurocincia, antropologia). Cf. DUPUY 1994. J.P. Dupuy parte da hiptese de que a cincia cognitiva tem a sua origem no movimento ciberntico, no qual teria sido pela primeira vez explorada a ideia segundo a qual o que importante para a existncia de uma mente no a organizao concreta ou os materiais de um determinado sistema mas uma organizao causal abstracta que se mantm invariante de sistema para sistema. Na obra citada J.P.Dupuy analisa a ciberntica nascida nos anos 40, nos Estados Unidos, numa pequena comunidade de neurobilogos, matemticos, engenheiros e economistas, entre os quais, numa primeira fase se encontram por exemplo John Von Neumann e Norbert Wiener e numa segunda fase Heinz von Foerster, William Ross Ashby, Warren McCulloch e Walter Pitts. A tese geral de Dupuy que a ciberntica no esteve altura das suas prprias intenes e que em parte por isso as cincias cognitivas (que hoje frequentemente desconhecem as suas origens cibernticas ou mesmo as renegam) teriam falhado o encontro com uma tradio filosfica que lhes teria sido bem mais til do que a filosofia analtica, centrada na linguagem, nomeadamente a tradio fenomenolgica.

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da Inteligncia Artificial34. O nascimento da cincia cognitiva fixado em 1956 por ser essa a data de um encontro acerca de teoria da informao no MIT, na qual estiveram presentes Allen Newell e Herbert Simon, Noam Chomsky e George Miller, apresentando respectivamente os artigos The Logic Theory Machine, Three Models for the Description of Language, The Magical Number Seven, Plus or Minus Two25. Foi a que, na conhecida descrio do psiclogo George Miller, a convico de que vrias disciplinas eram peas de um todo mais vasto se imps36. Esse todo mais vasto visado por vrias disciplinas pode ser chamado a cognio, o mental, a agncia {agency) inteligente, e as maneiras de o estudar so muito variadas37. Assume-se neste trabalho que a TSI s pode ser compreendida, em primeiro lugar, como uma resposta necessidade de esclarecimento conceptual que a convergncia de reas de estudo to dspares gera. Em segundo lugar, prope-se que a TSI deve ser comprendida como o desenvolvimento de uma das posies possveis na resposta seguinte questo: A psicologia ou no importante para a filosofia?' Para Dennett a psicologia, no sentido geral de cincia cognitiva, importante para a filosofia mas considerar que no tambm constitui uma posio defensvel. O facto de considerar que a psicologia importante para a filosofia explica por um lado o interesse de Dennett pela psicologia como engenharia invertida (i.e. pela psicologia como compreenso dos mecanismos da cognio enquanto 'condies de possibilidade' da prpria cognio) e, por outro lado, a sua concepo da filosofia da psicologia ou filosofia da mente como consistindo em grande parte numa teoria da linguagem psicolgica (i.e. numa teoria da linguagem mentalista e finalista usada na descrio de sistemas fsicos com design complexo). Ainda assim, e mesmo se, devido importncia concedida psicologia, a linguagem34

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Cf. por exemplo COELHO 1995: 20. GARDNER 1985: 28-29. 36 BECHTEL, ABRAHAMSEN & GRAHAM 1998: 37. 37 Apenas a ideia de peas de um todo mais vasto explica o facto de ao lado de figuras mais bvias tais como Noam Chomsky, Allen Newell, Herbert Simon, Marvin Minsky, John McCarthy e George Miller aparecerem usualmente como fontes de grandes contributos para a cincia cognitiva (cf. por exemplo a lista de curtas biografias dos autores dos mais relevantes contributos para a cincia cognitiva que aparece em BECHTEL &GRAHAM 1998: 750-776) filsofos como H. Putnam, J. Searle, D. Dennett, J. Fodor, Paul Churchland e Patricia Churchland e tericos como G. Boole, C. Babbage, A. Church e A. Turing, estes ltimos devido ao seu 'trabalho preparatrio' em lgica e teoria da computao. Uma noo da convergncia (e divergncia) temtica que se pode hoje esperar encontrar em torno do estudo da cognio pode ser dada pela MIT Encyclopedia of the Cognitive Sciences (WILSON &KEIL 1999) que, sob os seis ttulos gerais de 'Inteligncia Computacional', 'Cultura, Cognio e Evoluo', 'Lingustica', 'Neurocincias', 'Filosofia' e 'Psicologia' congrega entradas que vo desde Algoritmos, Autmatos, Redes, Propriedades de Sistemas Formais, Aquisio de Linguagem, Processamento de Linguagem, Memria, Binding Problem, Viso cega, Fisiologia da Cor, Fisiologia da Dor, Emoes, Afasias, Sonhos, Sono, Imagens Mentais, Sistema Lmbico, Etologia, Psicologia Evolucionista ou Altrusmo, at entradas relativas a temas gerais da Filosofia como Lgica, tica, Fisicalismo, Causao mental, Eu, Significao, Introspeco, Intencionalidade, Supervenincia, What-it's-like, Qualia, Semntica dos mundos possveis, Descartes, Hume e Kant.

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introspectiva e teleolgica est por toda a parte nos trabalhos de Dennett, trata-se de uma situao ambgua. Essa linguagem tomada pelo seu valor facial, mas no , em tima anlise, considerada fundamental. No que respeita ao estatuto do vocabulrio mentalista, Dennett um quineano, i.e. um fisicalista e um niilista do significado, algum que considera a linguagem intencional como sendo apenas uma 'estratgia' de descrio da realidade fsica, sendo esta aquilo que realmente e fundamentalmente existe.

Estrutura especfica do trabalho.

Na Primeira Parte deste trabalho, intitulada As Origens, procurar-se- esclarecer a genealogia do texto de Dennett dentro da filosofia analtica e ao mesmo tempo expor a teoria da mente avanada em Content and Consciousness, o primeiro livro de Dennett38. O Captulo 1 {Dennett e a teoria da mente em 1965) um captulo histrico. Na origens da TSI encontram-se W.O. Quine e a indeterminao da traduo, H. Putnam e o funcionalismo, E. Anscombe e a anlise das aces intencionais, C. Taylor e a crtica explicao behaviorista do comportamento, bem como a Teoria da Identidade psicofsica, um fisicalismo reducionista que era o principal adversrio contra o qual foram feitas, na poca, as propostas da TSI. Alis, a teoria da mente apresentada em Content and Consciousness o resultado da conjugao de influncias ainda mais alargadas, entre as quais esto Gilbert Ryle, o mestre de Dennett em Oxford, e Wittgenstein, o seu 'heri filosfico'. Na influncia de ambos os autores em Dennett est em causa a definio de uma posio acerca da relao entre descries conceptuais e explicaes causais na teoria da mente. no entanto da filosofia americana, e nomeadamente de Quine e de Putnam, que Dennett recebe o ncleo da sua posio quanto ao mental, nomeadamente a inteno naturalista em epistemologia, a sofisticao do materialismo requerida pelo desenvolvimento do estudo da cognio e uma posio geral quanto ao estatuto do significado. De todas estas influncias resulta um primeiro esboo da TSI e portanto a proposta de uma teoria da mente que um fisicalismo anti-reducionista e uma teoria holista da interpretao. Na Segunda Parte do trabalho, intitulada O Modelo, procurar-se- analisar as propostas tericas especficas de Dennett quanto Intencionalidade (Captulo 2 - A posteridade do funcionalismo de Putnam: diferendos acerca da natureza da psicologia), quanto Conscincia (Captulo 3 - Pensamentos conhecendo outros pensamentos) e quanto a Pessoas e Aces (Captulo 4 - As Pessoas e as suas Aces: a filosofia da mente e os fundamentos da filosofia

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mora!). Embora se considere frequentemente que o funcionalismo cognitivista elimina a subjectividade do domnio mental - ou pelo menos elimina aspectos essncias da subjectividade como os qualia da experincia - assistir-se- nestes trs captulos a uma reinstaurao dessa mesma subjectividade. Esta reinstaurao far-se- no entanto a partir de uma distino de dimenses e nomeadamente de uma distino entre trs grupos de questes: questes relativas interpretao, intencionalidade e racionalidade, questes relativas unificao e incorrigibilidade, e questes relativas ao self, ao controlo, identidade pessoal e voluntariedade. O Captulo 2 acerca de intencionalidade e tem duas partes distintas. Numa primeira parte trata-se da natureza representacional de alguma coisa fsica, numa segunda parte trata-se do contedo das representaes. Na primeira parte, o principal contraponto da apresentao das posies da TSI a Teoria Representacional da Mente (TRM) de J. Fodor. O captulo inicia-se com a apresentao das ideias de J. Fodor, o funcionalista simblico tpico, que definiu a agenda da discusso em filosofia da psicologia a partir do funcionalismo putnamiano. Comear assim um dispositivo argumentativo, j que em grande medida a TSI se define contra o funcionalismo forte da TRM e contra a teoria da explicao psicolgica que esta envolve, mas tambm um reflexo dos prprios princpios da TSI, nomeadamente do seu anti-representacionismo (ou, melhor, anti-sentencialismo39). De acordo com a TSI aquilo que existe para haver mentalidade em sistemas fsicos so padres (reais) e reconhecimento (desses padres) por intrpretes e no um nvel autnomo de realidade que seria intrinsecamente representacional e que teria forma de linguagem. A segunda parte do segundo captulo especialmente importante para compreender o niilismo do significado, entendido como a ideia segundo a qual no existem mquinas semnticas, na sua relao com a explicao psicolgica. A ideia central a ideia de mundo nocional ou heterofenomenolgico, a qual no uma categoria causal. Repare-se que so, assim, necessrias pelo menos duas ideias distintas para compreender a posio sobre o significado desenvolvida na TSI, os 'padres reais' (uma noo relativa natureza representacional de alguma coisa) e os 'mundos nocionais' (uma noo relativa ao contedo das representaes, i.e. ao representado na representao). A ideia de mundo nocional combina-se com uma posio teleofuncionalista acerca do contedo das representaes. O teleofuncionalismo pretende reintroduzir a noo biolgica de

a dissertao de doutoramento de Dennett que vem a ser publicada como Content and Consciousness. Entende-se por anti-sentencialismo a oposio ideia segundo a qual seria a forma de linguagem que possibilita a existncia de representaes em sistemas fsicos.39

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funo na teoria da mente e uma teoria basicamente extemalista acerca do contedo das representaes. O extemalismo a ideia segundo a qual aquilo que est fora da mente que determina os significados e culmina na afirmao segundo a qual significar - ou representar no um funcionamento epistemicamente controlado pelos sistemas cognitivos nos quais veculos de significado acontecem, nem um funcionamento necessariamente relacionado com a conscincia ou com a conscincia de si. H um certo consenso entre os autores aqui seleccionados para a anlise comparativa das solues para o problema do contedo das representaes. Todos admitem que o mundo (exterior) o maior responsvel pela fixao do contedo das representaes internas aos sistemas de uma forma que passa ao lado do que o sistema sabe. Aquilo que se discute so interpretaes especficas dessa soluo e sobretudo as razes pelas quais a posio de Dennett fazendo apelo, do mesmo modo que as outras posies teleofuncionalistas, ao design dos sistemas cognitivos afinal menos realista do que as restantes. O Captulo 3 acerca de conscincia. A forma mais elaborada da teoria dennettiana da conscincia o Modelo dos Esboos Mltiplos (MEM). O MEM pretende impossibilitar a concepo da mente como Teatro Cartesiano40, aniquilar os qualia (qualidades da experincia sentida) e mostrar que os zombies (seres fenomenalmente apagados41 embora

comportamentalmente indistinguveis de criaturas conscientes) so inconcebveis. Se a teoria do contedo por princpio independente da teoria da conscincia, esta teoria da conscincia pressupe a teoria do contedo analisada no captulo anterior. O esquema orientador do captulo o seguinte. Por duas vezes Dennett props modelos funcionalistas de conscincia, nos anos 70 e nos anos 90, em Brainstorms (BS) e em Consciousness Explained (CE). proposta de modelos funcionalistas chama-se a parte construtiva da teoria da conscincia. tais com modelos que se pretende preencher o abismo nageliano entre fisiologia e fenomenologia42. A anlise destes modelos, que so a parte construtiva da teoria da conscincia, o primeiro fio condutor do captulo. Este primeiro fio condutor tem uma dupla face: se por um lado se trata de expor modelos, por outro trata-se de construir um caso favorvel ao tipo de abordagem proposto. Aparece assim uma parte desconstrutiva da teoria da conscincia que tem como ncleo uma determinada posio quanto

O 'Teatro Cartesiano' a ideia metafrica do mental como palco ou centro segundo a qual tudo o que se est a passar numa dada mente num dado instante parece estar presente conjuntamente para um nico Sujeito. Este supervisionaria assim a sua prpria vida mental. 41 A expresso 'fenomenalmente apagado' retomada de PINTO 1999. Cf. NAGEL [1974] para uma influente descrio de um tal abismo entre o sentimento de ser e de experienciar (cuja pedra de toque o what-it's-like)e aquilo que se sabe acerca dos mecanismos fsicos que lhe subjazem.

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aos qualia, alcanada em funo da aplicao de princpios intelectualistas e verificacionistas ao estatuto epistmico dos relatos que sistemas cognitivos fazem dos seus prprios estados. Os modelos funcionaiistas permitem um posicionamento face a questes empricas da cincia cognitiva (como as imagens mentais, os sonhos, a produo de linguagem e a viso cega) e a exposio deste posicionamento o segundo fio condutor do captulo. Para alm disso, os modelos permitem tambm a estruturao de uma posio face s tpicas abordagens da conscincia pelos filsofos (usualmente apresentadas em torno de casos como o morcego de T. Nagel43, Mary-a-neurocientista de F. Jackson44, o zombie de D. Chalmers45 ou as situaes de inverso dos qualia46). A explorao das implicaes dos modelos funcionaiistas relativamente a qualia e zombies, ao Argumento do Conhecimento, ao what-it's-like distinguido por Nagel como marca da experincia consciente ou mesmo experincia mental do Quarto Chins de J. Searle47, constitui o terceiro fio condutor do captulo. Todo o Captulo 3 assenta na suposio de que o MEM s pode ser compreendido quando contrastado ao mesmo tempo com o estatuto e os objectivos de outras teorias a que se chama teorias emprico-especulativas da conscincia (como as de F. Crick e C. Koch48, L. Weizkranz49, G. Edelman50, B. Baars51 ou R. Penrose52) e teorias metafsicas da conscincia (como as de D. Chalmers, F. Jackson, J. Searle ou T. Nagel). A posio de Dennett de resto ela prpria uma metafsica da conscincia, embora o autor recue perante tal terminologia. O Captulo 4 acerca de pessoas e de aces, dois temas que pressupem o esclarecimento das questes do contedo e da conscincia. O captulo situa-se na interseco da teoria da mente com a filosofia moral e a inteno que lhe preside identificar e examinar as consequncias da TSI e do MEM na filosofia moral. Sendo conceitos normativos, os conceitos de pessoa e de aco no so nunca totalmente satisfeitos por entidades ou acontecimentos actuais. A teoria exposta quanto a este ponto gradualista. Prope-se que as noes de pessoa e aco devem ser examinadas luz da TSI e que as noes de Eu, Controlo e Conscincia devem ser analisadas luz do MEM. A anlise da noo de pessoa faz-se em dois momentos: o primeiro visa as Condies de Pessoalidade, o segundo a questo da Identidade Pessoal.

4J

NAGEL 1974. JACKSON [1986]. 45 CHALMERS 1996. 46 Cf. LOCKE [1690], CHALMERS 1996 Cap.7, BLOCK 1997a. 47 SEARLE 1980. 48 CRICK & KOCH 1990. 49 WEIZKRANZ 1986. 50 EDELMAN 1989. 51 BAARS 1988, BAARS 1996. 52 PENROSE 1989, PENROSE 1994.44

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Localizam-se trs pontos focais: uma teoria da agncia e da liberdade que conduz ideia de auto-controlo meta-reflexivo, uma teoria da unidade e da identidade pessoal que conduz s ideias de unificao virtual e de auto-avaliao constitutiva da pessoalidade e da racionalidade prprias e uma teoria da deliberao que conduz ideia de prudncia naturalizada. Com esta ltima ideia a filosofia moral esboada no trabalho de Dennett distancia-se das ticas da maximizao racional, nomeadamente das ticas deontolgicas e utilitaristas. O Captulo 5, intitulado Questes aplicadas da TSI.Tipos de Mentes: mentes animais, artificiais e humanas, conclui a Segunda Parte do trabalho. Nele so expostos mais claramente os princpios da eliminao da distino apriorista entre o natural e o artificial, eliminao essa que conduz considerao horizontal de todos os tipos de mentes - humanas, animais e artificiais na TSI. So ainda tratados dois problemas aplicados da TSI, envolvendo

respectivamente a mentalidade animal e a mentalidade artificial: o problema da interpretao na etologia cognitiva e o problema do enquadramento {frame problem) na Inteligncia Artificial. Conclui-se com a localizao de perturbaes do funcionalismo que no conduzem no entanto a um afastamento do funcionalismo, correspondendo antes a uma objeco ao funcionalismo descerebralizado clssico, o funcionalismo simblico, que precisamente fundamentou algumas das primeiras apologias da indistino entre o natural e o artificial. A Terceira Parte, intitulada Os problemas, constituda pelo Captulo 6 (Fisicalismo, Contedo e Conscincia:da filosofia da mente ontologia) e tem como objectivo uma avaliao global do pensamento de Dennett, comeando por enfrentar, do ponto de vista da ontologia, os problemas que permanecem em torno da TSI. So consideradas de forma especfica as eventuais incongruncias de uma teoria da mente que se declara simultaneamente fisicalista e interpretativista e que tem a pretenso de abarcar o leque total das dimenses da subjectividade. Assim, o Captulo 6 d um passo atrs relativamente aos pequenos debates da filosofia da mente para fazer uma crtica mais geral da TSI. Admite-se que a filosofia da mente filosofia da psicologia ou da cincia cognitiva e portanto filosofia da cincia (ou, melhor, das vrias cincias da cognio). Mas ser que ela uma sub-rea central da filosofia da cincia? Noutras palavras, dever-se- considerar a cincia cognitiva como especialmente importante para a filosofia pelo facto de ter como objecto o substracto fsico da cognio e do pensamento? Prope-se que no. A incumbncia principal da filosofia da psicologia (tal como entendida neste trabalho) interpretar o tratamento cientfico dos veculos e suportes da cognio e da conscincia. Isso no significa no entanto que as teses discutidas na filosofia da psicologia sejam incuas de um ponto de vista ontolgico e metafsico, uma vez que elas inevitavelmente lidam com o lugar do pensamento no mundo. O objectivo central do Captulo 6 precisamente extrair as

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consequncias ontolgicas e metafsicas das discusses anteriores bem como avaliar a coerncia da teoria. O capitulo parte da localizao um primeiro ponto crtico da TSI: o fisicalismo. Sugere-se que uma interpretao ontolgica coerente das propostas de Dennett acerca do estatuto da intencionalidade conduz - num sentido especfico - a uma subverso do fisicalismo. Esclarecese o estatuto do mental como interface e como origem dos objectos. certo que o facto de o ponto de vista fsico no sustentar a subsistncia discreta das coisas e a sua individuao, mas apenas a particularidade e a localidade, perturba o fisicalismo ligado concepo hierrquica de natureza que se insinua na TSI como prioridade absoluta concedida Estratgia Fsica, i.e. descrio do mundo feita pela fsica. No entanto, o facto de o ponto de vista fsico no sustentar a subsistncia discreta das coisas e a sua individuao mas apenas a particularidade e a localidade confirma as razes pelas quais a TSI se ope Teoria Representacional da Mente, nomeadamente confirma a pertinncia do anti-sentencialismo da teoria dennettiana do mental. No contexto deste esclarecimento sugere-se ainda que a TSI no pode abdicar totalmente da distino entre intencionalidade intrnseca e intencionalidade atribuda se pretende explicar a sua noo fundamental, a noo de intrprete. o intrprete que assegura, atravs da sua unidade, cada uma das estratgias de abordagem da realidade previstas na filosofia de Dennett (a Estratgia Fsica, a Estratgia do Design e a Estratgia Intencional). A unidade do intrprete essencial para compreender a natureza da representao e no se identifica directamente com a instituio de uma representao de unidade (o Eu) num sistema cognitivo de agentes mltiplos. Corrige-se assim um defeito de perspectiva da TSI, a ideia segundo a qual o intrprete visa sempre outros sistemas cognitivos, e sempre a partir de fora. A nica maneira de no deixar um intrprete como resto na TSI conceber o estatuto da interpretao de si por si como mental realizada por um sistema cognitivo fsico. Ora, isso que constitui, a partir de uma determinada organizao funcional, o entendimento genuno. Feito estes esclarecimentos e porque a questo da racionalidade est sempre subjacente teoria da intencionalidade, retoma-se a questo da racionalidade. Concede-se que a TSI, embora sendo uma teoria quiniana da interpretao supondo a racionalidade, no obrigada a definir 'racionalidade'. So tambm retomadas e justificadas as ideias de Dennett segundo a quais (1) a racionalidade um conceito sistematicamente pr-terico e (2) a racionalidade no pode ser comprovada ou infirmada empiricamente. Sublinha-se que a TSI pode ser considerada como apresentando um argumento duplo, um argumento a priori e um argumento emprico, a favor da impossibilidade de irracionalidade dos Sistemas Intencionais. De acordo com os prprios princpios da TSI conclui-se que no legtimo supor que existe algo

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que seria uma verdadeira natureza ou um valor intrnseco da racionalidade e que a estipulao de condies necessrias e suficientes para a racionalidade, ou a abordagem do problema da racionalidade atravs de anlise conceptual, fechariam a porta ao inqurito emprico de uma forma incompatvel com os princpios metodolgicos assumidos. No possvel no entanto deixar de notar insuficincias na explicitao da 'suposio de racionalidade'. Procura-se nomear essas insuficincias e encontrar aquilo que a TSI deveria afirmar explicitamente acerca da racionalidade. A intencionalidade e a racionalidade so os sustentculos do trabalho que se apresenta e neste ponto que se apresenta a ltima palavra quanto a elas. O captulo concludo com um retomar do tratamento da conscincia. Prope-se que a teoria dennetiana da conscincia, naquilo em que pertinente (e -o em vrios aspectos, por exemplo nas suas propostas quanto ao estatuto virtual da unidade e da centralidade dos sistemas cognitivos fsicos) uma teoria do contedo. Para extrair as vantagens da teoria da conscincia a partir dos seus defeitos (ou mesmo contradies) distingue-se antes de mais a teoria da subjectividade latente na Estratgia Intencional do absolutismo da terceira pessoa53 que rege a teoria dennetiana da conscincia. Defende-se que a noo de subjectividade presente na TSI como teoria do contedo constitui base suficiente para discernir e corrigir os defeitos cientistas do tratamento da conscincia no MEM. Na Concluso do trabalho, intitulada Vale a pena fazer filosofia da mente?, procede-se a um retorno s origens. Esse retorno tem vrios sentidos. Num primeiro sentido trata-se de um retorno ao incio do trabalho e s questes histricas e sociolgicas que se colocam a propsito da filosofia da mente e da cincia cognitiva como domnios tericos. Num segundo sentido tratase de um retorno s origens da TSI na tradio filosfica amplamente considerada, embora partindo de Quine e de Putnam, os dois filsofos que mais marcaram a TSI em termos ontolgicos e epistemolgicos. Num terceiro sentido trata-se de um retorno vida mental individual. O presente trabalho guiou-se pela seguinte convico: a pertinncia de uma teoria filosfica avalivel pelo esclarecimento que ela capaz de produzir em relao ao conhecimento e compreenso previamente operantes, nomeadamente em reas cientficas. Quando se trata da cincia cognitiva o desafio grande: so muitas as disciplinas e muitos os dados aos quais se reporta uma meta-teoria ou filosofia da cognio. No entanto, aquilo que ao longo deste trabalho se joga um esclarecimento desse gnero, possibilitado pela Teoria dos Sistemas Intencionais proposta por D. Dennett.

Cf. SIEWERT 1993 e CHALMERS 1997.

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PRIMEIRA PARTE: AS ORIGENS

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CAPTULO 1 - Dennett e a teoria da mente em 1965, O primeiro esboo da Teoria dos Sistemas Intencionais: princpios orientadores de Content and Consciousness

O objectivo da teoria da mente resumido da seguinte maneira por D. Dennett em Content and Consciousness54: a teoria deve ir da matria e movimento ao contedo e propsito e voltar55. Este objectivo seria alcanado em C&C atravs da defesa de um fisicalismo no reducionista, reportado interpretao holista de sistemas. De acordo com Dennett, estas duas posies bsicas explicam a natureza do contedo e da conscinciaos dois traos bsicos do mentalevitando a situao clssica da teoria da mente, caracterizada como uma oscilao pendular do dualismo cartesiano para o materialismo de Hobbes, para o idealismo de Berkeley55. A teoria da mente apresentada em C&C no considera a conscincia, o contedo e a finalidade como caractersticas no fsicas. No os identifica no entanto tambm - apesar de partir do pressuposto segundo o qual aquilo que basicamente existe fsico - com entidades ou propriedades espao-temporais. As caractersticas mentais dependem segundo Dennett de uma determinada postura ou estratgia (a que ento Dennett chama abordagem centralista e no futuro chamar Estratgia Intencional) perante sistemas fsicos. A dependncia da mentalidade em relao a uma abordagem revelar, em C&C, a caracterstica postura interpretativista e deflacionria de Dennett j a postos com tudo aquilo que ela envolve: uma oposio reificao dos significados e dos estados de conscincia e uma inimizade em relao aos qualia, inefabilidade da experincia subjectiva e suposta unidade do problema da conscincia. Apesar da pretenso de Dennett de apresentar uma teoria no reducionista do mental, Thomas Nagel57 no hesitar em classificar C&C como mais um exemplo da recente onda de euforia reducionista, onda na qual inclui por exemplo as teorias defendidas por Jack J.C.Smart, David Lewis, David Armstrong e Hilary Putnam58.

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Content and Consciousness foi inicialmente uma tese de PhD apresentada por Dennett em Oxford em 1965. Essa a data tomada como ponto de referncia neste captulo, embora o livro resultante da tese seja referido daqui em diante como DENNETT 1969. Utilizar-se- tambm a sigla C&C no corpo do texto. 55 DENNETT 1969: 40. 56 DENNETT 1969: 3. 57 NAGEL 1974: 165. 58 Cf. J.J. C. SMART 1963, Philosophy and Scientific Realism, David LEWIS 1966, An Argument for the Identity Theory, H.PUTNAM 1967, Psychological Predicates, D.M.ARMSTRONG 1968, A Materialist Theory of the Mind. Note-se que as posies que T. Nagel classifica como reducionistas incluem no apenas as verses da teoria da identidade defendidas por J. Smart, D. Armstrong e D. Lewis como tambm o funcionalismo proposto por H.Putnam como alternativa teoria da identidade. J.J.C. Smart foi o primeiro filsofo a defender uma teoria da identidade. Esta uma teoria materialista segundo a qual todo o estado mental idntico a algum estado fsico, mesmo se os estados mentais e os estados fsicos so identificados de maneiras diferentes (por exemplo, respectivamente, como dor e como disparo das fibras-C). D. Armstrong e D. Lewis mantm a ideia de J.J.C. Smart segundo a qual apesar de aparentemente serem ou mentais ou fsicas as propriedades dos estados so 'neutras' (topic-neutrat) e

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Em consequncia da clareza da posio defendida, os adversrios tericos deste tipo de abordagem (por exemplo o prprio Thomas Nagel)59 esto j definidos. Na linguagem que Dennett vir a usar futuramente em Consciousness Explained60, est iniciado em C&C o 'desmantelamento do programa de proteco de testemunhas'61. Mais exactamente, est iniciado o desmantelamento da particular testemunha que seria em cada mente o 'observador daquilo que acontece'. Este observador uma figura que, mais ou menos subrepticiamente mas com enorme persistncia, se introduz na teoria cientfica ou filosfica do mental, assim como nas descries introspectivas comuns. Eliminar o observador ou a testemunha equivale, na prtica, a mostrar que ilegtimo postular na teoria da mente em geral - entenda-se: na teoria da linguagem, da percepo, da aco, do raciocnio, da imaginao, etc - elementos explicativos no analisveis que possuam capacidades idnticas s dos sistemas globais que

(supostamente) explicam. Este movimento redundaria evidentemente na ausncia de explicao, j que esses elementos, para terem as referidas caractersticas, teriam que estar a ser assim para algum, e uma vez deixada para trs a pessoa, o agente cognitivo global, no h mais ningum. Por outro lado, se a testemunha fr eliminada ou dispensada, como D. Dennett pretende, o terico da mente ficar a braos com o problema de Hume62. Se no existe um autor, um eu, um sujeito-agente substanciado, que faa com que o pensamento pense, aparentemente o pensamento dever acontecer por si, sem superviso, agenciamento ou inteno. Resta saber se sem algo como um 'motor primeiro', o pensamento se moveria. O problema de Hume consiste precisamente em saber como possvel que existam movimentos de pensamento (transies cognitivas, inferncias, decursos de imaginaes ou de associaes) se esses movimentos de pensamento no so aces de um autor. Hume, obrigado pela sua teoria da mente a explicar a maneira como as ideias pensam sozinhas, escolheu como soluo o associacionismo, o qual , para D. Dennett, uma no-soluo63. Mas embora o

associacionismo no seja a boa soluo para o problema dos movimentos de pensamento, Hume viu seguramente o bom problema, tendo alm do mais, escolhido o rumo metodolgico acertado para o seu tratamento, o rumo naturalista, justificado pelo princpio segundo o qual no

especificam-na defendendo que para um estado mental ser um estado mental ele deve ter uma relao causal caracterstica com outras ocorrncias 59 Cf. NAGEL 1995a: 82 (recenso a DENNETT 1969). 60 DENNETT 1991. 61 DENNETT 1991:32. 62 Cf. por exemplo DENNETT 1978 f: 101 para esta terminologia "DENNETT 1978f: 101.

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temos mais acesso essncia dos fenmenos mentais do que essncia dos fenmenos fsicos64. Felizmente, entre D. Hume e D. Dennett, algo de novo aconteceu no estudo da cognio. Como Jerry Fodor acentua65, a vantagem, em relao ao empirista clssico, do terico contemporneo da cognio o facto de este ltimo dispor de uma teoria cientfica da cognio, a teoria computacional, que permite precisamente conceber a forma como as ideias 'pensam sozinhas', sem sentirem a falta da testemunha cartesiana e ao mesmo tempo evitando as armadilhas do associacionismo. Anteriormente teoria computacional da cognio, ningum fazia a mnima ideia de como podiam processos meramente materiais implementar as leis (...) que governam uma mente semanticamente coerente (...) e ali estava o problema at Alan Turing ter tido o (...) melhor pensamento acerca de como a mente funciona que algum teve at agora66. De facto, a explorao concreta, no estudo cientfico da cognio e da agncia inteligente, da ideia de sistema simblico fsico - uma ideia surgida na sequncia do pensamento de Alan Turing sobre autmatos abstractos67 - constitui em grande medida para Dennett, quando escreve C&C68, o pano de fundo dos problemas relevantes da mente e do conhecimento. o tratamento cientfico da cognio como informao e computao que comea a indiciar que o discurso mentalista acerca de sistemas cognitivos fsicos pode ser de alguma forma acerca de processamento interno de informao, no estando necessariamente ligado a descries introspectivas autoritrias de substncias imateriais pensantes. A existncia de computadores e a investigao das capacidades destes mostrara a possibilidade de sistemas fsicos inteligentes (ou pelo menos susceptveis de descries mentalistas) sem o envolvimento de uma regresso infinita de homnculos, observadores ou testemunhas. essa a lio deve ser aplicada ao caso humano. claro que a ilegtima testemunha do que se passa na mente (o 'fantasma na mquina' na expresso de Gilbert Ryle) no tem por hbito aparecer claramente na teoria cognitivaas64

HUME [1739]: 44-45 for me it seems evident that the essence of mind being equally unknown to us with that of external bodies, it must be equally impossible to form any notion of its powers and qualities otherwise than from careful and exact experiments (...) But if this impossibility of explaining ultimate principles should be esteemed a defect in the science of man, I will venture to affirm that 'tis a defect common to it with all the sciences (...) None of them can go beyond experience, or establish any principles which are not founded in that authority As aluses a David Hume e ao problema de Hume para caracterizar a situao de partida da teoria da mente so frequentes na obra de Dennett. 65 FODOR 1990: 19-24. 66 FODOR 1994b: 296. 67 Alude-se aqui s Mquinas de Turing. 68 Cf. BECHTEL, ABRAHAMSEN & GRAHAM 1998:1, The Life of Cognitive Science, para uma exposio da cena contempornea do estudo cientfico da cognio e dos agentes inteligentes. Embora a hiptese dos sistemas simblicos fsicos s tenha sido formulada com este nome tardiamente (cf.

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teorias no prevem usualmente uma alma cartesiana placidamente introduzidamas sob uma grande quantidade de mscaras. A testemunha aparece subrepticiamente em expresses como 'interpretaes de estmulos', 'reconhecimentos', 'comandos', 'analisadores' de vrios tipos (para Dennett, at mesmo nas expresses 'linguagem do pensamento' ou 'teoria representacional e computacional da mente'). De facto, basta percorrer os textos da psicologia cognitiva ou da neurofisiologia para encontrar o fantasma na mquina nesta sua variedade de disfarces. O problema que algum que procura acabar com a 'proteco das testemunhas,' como Dennett se prope fazer j em C&C, acaba certamente com uma dvida em relao a si prprio. Dennett vir a enfrentar claramente esse problema: Sou um behaviorista? Searle e Nagel sempre insistiram que sim, agora (Patricia) Churchland vem dizer o mesmo69. Caracterizando Dennett como behaviorista, B.Dahlbom70 afirma: Dennett um behaviorista e no seu behaviorismo conjuga ideias de Wittgenstein, Ryle e Quine, bem como da psicologia experimental. O behaviorismo o funcionalismo aplicado a organismos, a ideia segundo a qual um organismo uma mquina, produzindo comportamento com uma mente-crebro como sistema de controlo. uma verso do naturalismo, tratando os seres humanos como organismos biolgicos e indo buscar as contribuies do evolucionismo para a nossa auto-compreenso (...) O behaviorismo e o funcionalismo de Dennett esto ligados ao verificacionismo, a ideia segundo a qual onde no existe evidncia que permita decidir uma questo, no existe questo (...) Mas o behaviorismo tambm a mais particular aplicao do verificacionismo linguagem psicolgica, aquilo a que os filsofos em Oxford costumavam chamar 'behaviorismo lgico'. A eliminao de testemunhas e observadores conduz portanto ao behaviorismo. no entanto muito ntido em C&C que o (suposto71) behaviorismo de Dennett se define exactamente pela oposio ao impraticvel (porque 'periferista') behaviorismo psicolgico. Saber em que sentido Dennett um behaviorista , assim, complicado. Dennett no um behaviorista semelhante a B.F.Skinner72. Pelo contrrio, ele sempre se ops ao behaviorismo periferista skinneriano, que desconsidera os resultados das teorias computacionais da cognio. Mas o facto behavioristas lgicos como L. Wittgenstein e G. Ryle inspiram a sua teoria da mente, e que a ideia chave do behaviorismo lgico segundo a qual as entidades mentais so construes lgicas a partir de eventos

NEWELL 1980, Physical Symbolic Systems), o processo que lhe d origem comea vrias dcadas mais cedo. 69 DENNETT 1993a: 210. 70 DAHLBOM 1993a: 4-5. Suposto na medida em que dever ser clarificado, porque ele claramente assumido por muitos dos defensores de Dennett (cf. por exemplo DAHLBOM 1993a: 1) e pelo prprio Dennett. 72 Cf. por exemplo SKINNER 1951, SKINNER 1954 e SKINNER 1974 para manifestaes skinnerianas dos princpios do behaviorismo

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comportamentais73 nunca anda longe. Por outro lado, Dennett considera o behaviorismo, tomado num certo sentido, como um bom e natural associado do empirismo naturalista que defende. Existe portanto um certo behaviorismo que no deve nem pode ser abandonado. O problema que a pedra de toque do behaviorismo em psicologia o afastamento de toda a contaminao de teleologia e intencionalidade na descrio do comportamento de sistemas e a causa de D. Dennett como filsofo da psicologia precisamente defender a impossibilidade de abdicar de descries intencionais e teleolgicas ( nisso se traduz o centralismo de C&C e posteriormente a Estratgia Intencional). Mas a causa intencional e teleolgica apenas obscurece provisoriamente o compromisso behaviorista. De facto, a ltima palavra de Dennett que a lei do efeito - de acordo com a qual as associaes estmulo-resposta recompensadas sero repetidas - no desaparecer74 na teoria da cognio. A lei no desaparecer mas ter que ser re-instalada: o mbito do behaviorismo defendido por Dennett o interior dos sistemas cognitivos fsicos, interior no qual se encontram por exemplo crebros. A lei do efeito um princpio a ser aplicado a eventos internos e no a comportamentos globais de sistemas como animais ou humanos. conveniente sublinhar desde j o limite desta defesa do bom behaviorismo por Dennett. Uma teoria da mente como aquela que Dennett ir apresentar ao longo da sua obra no permite segundo a maioria dos seus crticos diferenciar um zombie de um ser consciente. Pelo contrrio, uma teoria semelhante arrisca-se a ser obrigada a considerar como indistinguveis para todos os efeitos seres consciente e no-conscientes, nomeadamente seres sem vida mental em primeira pessoa mas que se comportam da forma correcta, de um modo previsvel intencional e teleologicamente (comportar-se da maneira correcta inclui obviamente a possibilidade de afirmar 'eu sou um ser consciente', de descrever os contedos da conscincia e de agir de acordo com essa afirmao). Esta sempre foi a principal crtica dirigida a Dennett. Segundo T. Nagel, Dennett elabora uma teoria da mente em terceira pessoa e depois pergunta: Cf. PUTNAM [1963]: 326. Numa anlise do behaviorismo lgico, H. Putnam lembra que o modelo para a caracterizao dos eventos mentais como construes lgicas a partir de acontecimentos comportamentais actuais ou possveis foi o tratamento dos nmeros naturais na lgica. Os nmeros foram tratados como construes lgicas a partir de conjuntos, estabilizando assim a sua suspeita ontologia. O terico dos nmeros estaria a fazer teoria dos conjuntos sem o saber. Do mesmo modo, segundo o behaviorista lgico, aquele que fala de eventos mentais estaria a falar de comportamentos sem o saber. Em ambos os casos salva-se a teoria que importa afastando embaraos filosficos. Como Putnam nota, o sucesso das tentativas no comparvel. 74 A expresso o ttulo de um artigo de Dennett (DENNETT 1978c, Why the Law of Effect will not Go Away). A Lei do Efeito foi assim chamada por E. Thorndike, psiclogo behaviorista. A Lei do Efeito foi proposta no mbito do behaviorismo para explicar a adaptao sem consideraes teleolgicas (cf.73

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Poderia um sistema fsico que satisfizesse esta descrio realmente no ser consciente?Alguma coisa necessria para a conscincia estaria a faltar? E a resposta dele : Noisto tudo o que a conscincia 75. Como se v, a situao faz temer o pior: e se Dennett ele prprio um zombie? Afinal aquilo que 'sabemos' sobre a conscincia experienciamo-lo em primeira pessoa e pode dar-se o caso de tal experincia no existir em Dennett. Se assim fosse, nunca o saberamos. Como nota D.Chalmers, isso no ajuda nada76. No apenas este limite da teoria dennetiana da mente que est j presente em C&C, todos os temas futuros de Dennett esto presentes tambm: a Estratgia Intencional e os Sistemas Intencionais, a dependncia, na ordem da teoria, da conscincia em relao intencionalidade ou 'contedo', a relao entre significado, funo e evoluo, a ideia de evoluo no crebro, a desconstruco dos equvocos no tratamento da conscincia, a no unidade desta, as relaes entre apercebimento {awareness) e controlo nos Sistemas Intencionais, a teoria das pessoas e das suas aces intencionais. Alguns erros embaraosos esto ainda presentes77, nomeadamente a considerao de uma linha divisria entre conscincia e no conscincia (uma awareness line, cuja transposio marcaria o limiar de um certo estarconsciente), alm de admitidos exageros na negao da existncia de imagens mentais. C&C contem em grmen a futura obra de Dennett e por isso se partir da anlise das teses que a se encontram, procurando relevar a orientao particular que elas representam em filosofia da mente, com ocasionais referncias a textos posteriores. o prprio Dennett que autoriza este tratamento, na medida em que considera que os principais livros que posteriormente escreveu consistiram em sucessivas retomas dos dois tpicos centrais da filosofia da mente nomeados no ttulo deste primeiro livro: o Contedo e a Conscincia78. Assim, a primeira parte de Brainstorms (1978) retoma a questo do contedo, a segunda parte a questo da conscincia. Intentional Stance (1987) tem por objecto a questo do contedo e Consciousness Explained (1991) a questo da conscincia. Os livros posteriores, Darwin's Dangerous Idea - Evolution and the meanings of life (1995), Kinds of Minds - Towards an Understanding of Consciousness (1996) e Brainchildren - Essays on Designing Minds (1998) so concretizaes, aplicaes e esclarecimentos, nomeadamente em termos de biologia e IA, das grandes teses acerca do contedo e da conscincia delineadas nos primeiros livros. Elbow

TAYLOR 1964: 118 para as objeces que os proponentes da Lei do Efeito podem receber de outros behavioristas). 7S NAGEL1995b:88. 76 Cf. CHALMERS 1996:190 e PINTO 1999: 123, para comentrios s consequncias da posio de Dennett segundo a qual somos todos zombies. 77 DENNETT 1986a, prefcio 2a edio de DENNETT 1969. 78 DENNETT 1998y, Self Portrait.

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Room (1983) totalmente dedicado s questo da aco e da pessoalidade, que pressupem as teorias do contedo e da conscincia. O trajecto terico de Dennett est muito prximo do trabalho emprico sobre cognio. Uma das modificaes trazidas pelo advento da cincia cognitiva foi alis a aproximao de um grande nmero de filsofos ao trabalho emprico sobre a cognio e a deciso de se considerarem a si prprios como cientistas cognitivos. No entanto, uma tal proximidade no necessariamente acompanhada por um materialismo como o defendido por Dennett79. O que certamente acontece que a proximidade torna mais premente o esclarecimento das implicaes metafsicas - correspondentes ou no a uma posio materialista - do trabalho cientfico sobre cognio. O prprio Dennett comear a tornar-se no filsofo-cientista cognitivo que hoje apenas aps C&C. Quando escreve C&C, a sua proximidade em relao ao trabalho emprico no era ainda grande: ele prprio admite que grande parte das intuies a apontadas tiveram que esperar por desenvolvimentos cientficos posteriores para se consolidarem80. Apesar disso, como afirma numa narrao do seu itinerrio terico, o fascnio por mecanismos e pelo funcionamento destes, conjuntamente com a convico de que o dualismo representa um beco sem sada na teoria da mente, fizeram com que Dennett se decidisse a trabalhar a partir do ponto de vista de terceira pessoa, i.e. a partir das cincias naturais, em busca dos mecanismos do mental. Um tal gosto e uma tal estratgia, a que se juntou a influncia de Quine e de Ryleque eram, nas suas palavras e embora (se) sentisse movido pelo (...) desacordo com eles, a fonte da segurana intelectual que (...) tinha em virtude da (...) profunda concordncia quanto ao que eles pensavam ser a filosofia81 -definem a figura de Dennett. Relativamente ao campo filosfico ocupado pela teoria do mental exposta em C&C, , como se ver, difcil (ou vo) separar estritamente a filosofia da mente de reas imediatamente contguas e constantemente convocveis como a filosofia da cincia (nomeadamente a filosofia da biologia, devido questo das funes) e a filosofia da linguagem. certo, no entanto, que a aproximao de um filsofo da mente a uma particular disciplina cientfica pode fazer toda a

Trata-se de 'Materialismo de tipo A' ou defesa da supervenincia lgica da conscincia ao mundo fsico, por razes funcionalistas ou eliminativas, de acordo com a classificao que David Chalmers faz das teses possveis quanto experincia consciente em CHALMERS 1996: 165. D. Chalmers classifica como materialistas de tipo A, alm de D. Dennett, D. Armstrong, D. Lewis, G. Ryle, Fred Dretske, David Rosenthal, JJ.C.Smart e outros. Alis, Chalmers considera que a alternativa que se coloca a qualquee terico da conscincia fundamentalmente uma escolha entre o materialismo de tipo A, como o defendido por Dennett, e a posio a que chama tipo C e que inclui vrios tipos de dualismo de propriedades. De acordo com as posies de tipo C o materialismo suposto ser falso sendo propriedades fenomenais ou proto-fenomenais tomadas como irredutveis. 80 DENNETT 1986 a. 81 DENNETT 1998y: 356-357. Resta saber se de facto possvel tomar conjuntamente a maneira como Ryle e Quine entendem a filosofia, pois trata-se de entendimentos deveras diferentes.

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diferena na teoria da mente apresentada. Poder-se-ia por exemplo considerar que a diferena entre as posies de Dennett e de Chalmers quanto conscincia se relaciona com a exemplaridade que, respectivamente, a biologia evolucionista e a fsica assumem no seu pensamento. A perspectiva evolucionista, central na filosofia de Dennett, nunca desmentiria, por exemplo, a hiptese do zombie - alis, a ideia de zombie no sequer concebvel a partir do interior da abordagem de Dennett82. A n