territórios de conflito: representações desde a cidade medieval europeia, ......
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TERRITÓRIOS DE CONFLITO: REPRESENTAÇÕES COTIDIANAS DA VIOLÊNCIA NA
CIDADE DE SÃO PAULO PELO MOVIMENTO PUNK
Andre Abreu da Silva
Orientador: Valter Martins
(PPGH – Universidade Estadual do Centro-Oeste)
Palavras-chave: São Paulo; violência; movimento punk.
Os percursos da violência trilhados pela juventude
Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento.
Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.
Bertolt Brecht
Das imagens mais recorrentes elaboradas a partir do senso comum, e posteriormente descritas e
reproduzidas a respeito dos movimentos de cultura contemporânea da juventude suburbana, entre
eles o movimento punk, são quase sempre tingidas pela simbologia da violência.
A estigmatização do jovem como vetor de uma suposta violência epidêmica, em boa parte resultado
da propaganda massiva dos órgãos de imprensa e dos meios de comunicação de massa, tem
garantido a contínua reprodução de um discurso condenatório e seletivo, atribuindo à juventude, de
preferência pobre e periférica, uma considerável fração do peso e da culpa das práticas da violência
cotidiana nos centros urbanos.
Contudo, os fatos históricos1 não podem desmentir, absolutamente, estas imagens construídas da
violência juvenil. Em boa parte, prática bastante associada a traços de uma ‘cultura da virilidade’,
de uma expressão ritualística social e de autoafirmação observada nas classes populares através da
história, com o predomínio de jovens do sexo masculino.
Desde a cidade medieval europeia, protegida por suas muralhas e pacificada através de suas normas
de conduta internas, e uma cultura de urbanidade que exaltava o privilégio da segurança, não foi
capaz de absorver a todos que almejavam respirar seus ares ordeiros.
Do lado de fora dos muros, uma cultura de ‘subúrbio’ era reproduzida pelos excluídos,
desobedientes da lei, vagabundos e os demais não assimilados pela urbe (MUCHEMBLED, 2014 p.
90 - 91).
1 Daqui em diante, as discussões e os referenciais teóricos sobre a violência na História, principalmente tendo a
juventude ocidental periférica como protagonista, serão baseados na obra de MUCHEMBLED (2014).
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Apesar de situar-se sob constante vigilância, na hipótese de possíveis atos de desobediência ou
eventualidade de transgressão da disciplina local imposta pelo poder citadino, os habitantes do
mundo ‘de fora’ estabeleceram racionalidades, códigos de sociabilidade e condutas peculiares.
A defesa da honra em praça pública, a virilidade e a masculinidade eram valores defendidos, se
fosse necessário, até a morte. A violência no universo popular possuía legitimidade, inclusive
perante os poderes governantes. No caso do descumprimento de algum destes princípios da
moralidade regente no período, a violência era tolerada, e havia uma contemporização ainda maior
se caso o legitimado a cometer tal ato violento fosse um jovem, que atuaria na defesa de sua
honradez e pela imposição de fazer-se forte e vigoroso na cena pública.
Os incidentes e assassinatos eram mais frequentes nos dias destinados às festas populares nos
calendários, momentos em que a concentração popular era maior e estimulava os jovens machos a
disputas por espaço e se destacar dos demais, elementos de rituais masculinos de aprendizagem para
a sobrevivência na vida adulta (MUCHEMBLED, 2014 p. 120).
No final da Idade Média, refletida por transformações das práticas jurídicas na Europa ocidental, são
implementadas algumas medidas civilizatórias, como sistemas de multas contidas em leis mais
rígidas visando a diminuição dos ‘crimes de sangue’.
Também se intensifica a repressão, que conduz a um aumento significativo das punições e suplícios
aos infratores, além de procedimentos inquisitórios temerosos que resultavam em castigos públicos
e, muitas vezes, em pena capital. Naquele mesmo momento, deu se início a um enquadramento mais
rigoroso da juventude pelos poderes estabelecidos (MUCHEMBLED, 2014 p. 94 - 100).
Mais adiante, precisamente no início do século XVII e depois no decorrer do século XIX,
acompanhando a consolidação dos Estados Modernos e mais adiante dos Estados Nacionais, ocorre
uma tendência de ‘domesticação’ da violência (MUCHEMBLED, 2014 p. 195 - 238) que a reduz
sensivelmente dos espaços públicos, mas não a erradica do cotidiano social. Neste recorte temporal,
nota-se uma queda considerável dos casos de homicídio na Europa, tornando-os residuais após a
segunda metade do século XX (MUCHEMBLED, 2014 p. 295).
Tal declínio nas taxas de homicídio não teria talvez alguma relação com os empreendimentos
colonizatórios europeus na América, África e Ásia a partir do século XVI até os processos de
descolonização dos países do continente africano na segunda metade do século XX, transferindo
boa parte da prática da ‘violência legítima’ destes Estados (MUCHEMBLED, 2014 p. 197) para os
locais colonizados?
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Um dos fenômenos presentes na retomada das gangues de rua europeias a partir do final dos anos de
1950 remete aos scuttlers da cidade de Manchester na Inglaterra, ativos do final do século XIX ao
início do século XX. Jovens organizados em grupos que combatiam outros agrupamentos, ou
indivíduos isolados, atacando uns aos outros com pedras, facas e demais objetos.
Pertencentes às classes operárias do período, atuavam na defesa de sua sobrevivência perante as
hostilidades da vida adulta, e na exibição de sua virilidade e honra. Mentalidade herdada
diretamente da tradição dos jovens rurais e das classes populares medievais.
Hegemonicamente do sexo masculino, mas com grupos de garotas presentes, os scuttlers deveriam
saber demonstrar sua brutalidade e a capacidade de se fazer respeitar na cena urbana.
As gangues scuttlers ofereciam um espaço de convívio distintivo aonde seus membros adquiriam os
valores predominantes no grupo, aonde forjavam uma identidade tradicional e conservadora de suas
classes de origem. Por conta disso, comumente não questionavam em nenhum momento a ordem
estabelecida, mas lutavam pela crença numa tentativa de autoafirmação perante sua própria
condição, em disputa com outros agrupamentos.
É relevante ressaltar que as gangues scuttlers representavam uma minoria dos filhos procedentes das
classes operárias, das quais a maioria dos jovens não se identificava com estes grupos.
As sucessões históricas observadas em matéria de violência correspondem-se a afirmação da
supremacia masculina e do machismo.
Com o incessante declínio da violência física, ela tornou-se residual no século XX na Europa, sendo
que uma grande parte dos jovens contemporâneos são capazes de controlar a agressividade e desviá-
la para confrontos simbólicos, principalmente através do esporte ou da expressão intelectual e
artística.
Os indivíduos transgressores da regra são rotineiramente originários de locais pouco favorecidos,
onde o uso da força e a ostentação da virilidade se conservam como valores imprescindíveis.
(MUCHEMBLED, 2014 p. 280 - 283).
Partindo destes pressupostos, a violência através da História tem ocupado os vácuos de cidadania
nem sempre garantida, tanto pelas políticas governamentais históricas quanto pelas democracias
mais recentes, e deste modo tem se disseminado com mais frequência entre os elos mais suscetíveis
e vulneráveis da hierarquia social. Neste caso, a violência praticada pelos jovens suburbanos,
invariavelmente membros de uma parcela minoritária desta categoria, se configura numa condição
de negação, nem sempre consciente, de uma ordem histórica da qual o indivíduo muitas vezes não
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se vê representado em seus símbolos civilizatórios, tampouco inserido de forma verdadeiramente
participativa em suas estruturas.
As hordas de jovens que agem com violência no cenário urbano são fenômenos que se repetem
continuamente na história do ocidente (MUCHEMBLED, 2014 p. 283), mas agora inseridos em
uma lógica de urbanização hegemônica.
Após os scuttlers, os anos do pós-guerra a partir do final da década de 1950 foi testemunha do
retorno das gangues e bandos adolescentes, que agora se desenvolvem num ambiente urbano que,
apesar da ausência de guerra, é subordinado quase que completamente ao cotidiano do trabalho
embrutecedor e enfadonho, e a lógica do consumo de bens materiais (MUCHEMBLED, 2014 p. 284
- 285).
A pulsação vertiginosa das ruas, a ausência de espaços de sociabilidade e lazer acessíveis, o
desajuste perante a escola, e a massificação em larga escala são fatores agravantes.
As gangues ofereciam aos jovens um espaço de reconhecimento e aceitação coletiva, uma noção de
pertencimento, acolhimento e segurança nas etapas de desenvolvimento rumo às adversidades do
mundo adulto. Um autêntico “refúgio contra a hostilidade, a incompreensão ou a exclusão”
(MUCHEMBLED, 2014 p. 287).
Os blousons noirs e a geração posterior dos loubards nos anos de 1970, originários das ditas
‘classes perigosas’ dos subúrbios franceses, os teddyboys ingleses, nozens na Holanda, skinn knuttar
na Suécia, stiliagues soviéticos, foram também expressões patentes do ressurgimento da rebeldia
jovem nos últimos anos da década de 1950 e início dos anos de 1960 (MUCHEMBLED, 2014 p.
284).
A partir deste cenário de protagonismo e rebeldia da juventude, a indústria cultural apropria-se do
tema, personificando representações inéditas da juventude para o cinema, a música e a literatura.
Foram projetados alguns ícones na tentativa de representação destes jovens pelos ascendentes meios
de comunicação de massa, como o ator de cinema James Dean em ‘Rebelde sem Causa’ de 1955
(MUCHEMBLED, 2014 p. 284), a escalada do rock com o icônico cantor Elvis Presley em 1954
(FRIEDLANDER, 2006 p. 70 - 73), o movimento literário Beatnik composto por escritores como
Jack Kerouac que lança em 1957 a obra On the Road (ROSÁRIO, 2012 p. 10), entre outros. A partir
desta circularidade, florescem os movimentos de contracultura nos Estados Unidos e na Europa.
Neste recorte temporal, destaca-se uma curva ascendente de efervescência política e revolucionária
em diversas localidades, onde podemos destacar os movimentos de descolonização dos países
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africanos, entre eles a guerra de libertação da Argélia iniciada em 1954, o triunfo dos jovens
rebeldes na Revolução Cubana em 1959, o surgimento dos situacionistas franceses2, e um pouco
mais adiante os provos holandeses3, movimentos distintos da juventude que adquiriram contornos
políticos mais radicais, que anos mais tarde exerceriam influência e envolvimento direto nos
acontecimentos de Maio de 1968 na França4.
O retorno das gangues, inserida também neste contexto de questionamento da autoridade e das
ordens vigentes, que em casos específicos poderiam inclusive vislumbrar um horizonte de
transformação e subversão do status-quo, não possuíam desejos revolucionários ou de
transformação sistêmica em sua maior parte (MUCHEMBLED, 2014 p. 288), mas acima de tudo
garantir, mesmo que através da força, acesso aos símbolos de poder, e defender seus espaços de
convivência e sociabilidade na cidade.
‘Território e sexualidade constituem os principais pontos identitários. Qualquer que seja o tipo de
bando, o espaço vivido coletivamente possui uma importância extraordinária’ (MUCHEMBLED,
2014 p. 288).
As gangues se territorializam através de códigos de conduta próprios e símbolos de identidade
específicos nas vestimentas, na fala, nos gestos, e em maneiras particulares de apropriação do
espaço urbano, este muitas vezes segregado ao uso dos populares por estratégias dos poderes civis
locais, governamentais e planejamentos urbanísticos separadores.
Estas condutas de ocupação territorial das gangues como, por exemplo, confrontos com grupos
rivais, pichações e demarcações, muitas vezes são transportados pelos seus membros dos subúrbios
para localidades diversas, preferencialmente nas áreas centrais da cidade (MUCHEMBLED, 2014 p.
288 - 289). Áreas de domínios regionais de grupos específicos em constante tensão e disputa, que
invariavelmente resultaria em conflitos violentos. Regiões estas que, por outro lado, ofereciam
algum amparo solidário mútuo para os excluídos rebeldes que, em si, constituíam uma minoria
(MUCHEMBLED, 2014 p. 290) dentre a massa de marginalizados invisíveis do cotidiano dos
subúrbios e periferias das cidades.
2 Sobre a Internacional Situacionista e sua relação específica com o movimento punk, ver a publicação brasileira de
Stewart Home lançada em 1999, Assalto à cultura: Utopia, subversão, guerrilha na (anti) arte do século XX. 3 Um panorama preciso sobre a trajetória deste movimento, ver Provos: Amsterdan e o nascimento da contracultura, de
Matteo Guarnaccia, lançado no Brasil em 2001. 4 Dois relatos distintos sobre o Maio de 68 francês podemos encontrar em Paris: Maio de 68, escrito pelo coletivo inglês
Solidarity um mês após os acontecimentos, traduzido e lançado no Brasil em 2003. O outro é a publicação de Angelo
Quattrocchi e Tom Nairn, O começo do fim: França, Maio de 68, lançado no Brasil em 1998.
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Na contemporaneidade, o ressentimento dos jovens da periferia excluídos dos oásis da sociedade de
consumo e seus respectivos símbolos de reconhecimento e enquadramento, invariavelmente
poderiam encontrar na prática da violência o meio simples para a obtenção do que lhes é negado
social e culturalmente na maior parte do tempo. Situação que tem sido agravada, principalmente em
períodos de perdas de direitos sociais, desemprego e crises causadas por recessões econômicas
cíclicas das economias ocidentais liberais.
A cidade de São Paulo, a violência e o movimento punk
Violência é o que vejo em todo ponto da cidade
Pessoas que se matam a toa por qualquer banalidade
Elas que às vezes pensam que estão fazendo grande coisa
Brigando por qualquer motivo, aniquilando outro ser vivo
Maldito é esse mundo e imbecis são essas pessoas
Que lutando pela sobrevivência acabam gerando mais violência.
(Lixomania, Violência e Sobrevivência, 1982).
Início dos anos de 1980. O Brasil vive sob o comando do último presidente da ditadura civil militar.
Anêmico mas ainda alerta, o regime observa desde o enterro do Ato Institucional Nº 5 em 1979
(FAUSTO, 2000 p. 272) a saída gradual de seus opositores da sombra da ilegalidade, e uma
vigorosa retomada das ruas pelas movimentações políticas pró-democracia.
Em uma roupagem inédita, a resistência popular e os trabalhadores são animados por um ‘novo
sindicalismo’, aglutinador de multidões a cada assembleia convocada. As greves tem adesão de
massa (FAUSTO, 2000 p. 276-282). As cidades industriais do ABC paulista fervilham. A sociedade
civil, movimentos sociais e operários clamam pelo fim da repressão e pela volta da democracia.
Diretas Já! Mas quem manda ainda é a ditadura.
Na cidade de São Paulo, pequenos grupos jovens têm circulado pelas ruas e, invariavelmente,
chamado certa atenção na cena urbana do momento.
Oriundos em sua maior parte das periferias da cidade, os punks carregam consigo uma linguagem
simbólica própria. Nas vestimentas, no andar, nos gestos provocativos, os punks reproduzem nos
espaços que ocupam, não importa aonde for, uma parcela da cultura suburbana e operária que os
constitui em sua essência, algumas vezes adquirindo contornos radicalmente politizados, outras,
representando valores e construções simbólicas e estéticas específicas de seu meio, muitas vezes
sem qualquer posicionamento ideológico conscientemente declarado, ou de militância político-
partidária definida.
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Tudo acontece na perifeira
Brigas, mortes na periferia
Tiros, sangue na periferia
Na periferia
Tudo acontece na periferia
Bagulho corre direto na periferia
Fazemos muita anarquia na perifeira, na periferia
Tudo acontece na periferia
Periferia.
(Ratos de Porão, Periferia, 1984).
Com exceção das abordagens temáticas polêmicas carregadas de ironia ácida, entre eles a violência
como assunto recorrente nas composições musicais, nas poesias e nas discussões reflexivas
empreendidas pelos integrantes do movimento punk, não têm se mostrado de maneira mais
abrangente uma apologia das práticas violentas ou discursos de ódio nestas produções. Pelo
contrário, a violência tem constituído na maioria das vezes objeto de desconstrução, preocupação e
crítica, apesar do contato constante, da repressão policial, e das ameaças cotidianas nas vivências de
boa parte dos grupos.
Vida violenta, a cada esquina uma cruel batalha
De uma cidade grande
Não acreditamos, não acreditamos,
Não acreditamos na violência
Só vejo pessoas mal encaradas
Revólver na cintura, cassetete na mão
Não acreditamos, não acreditamos,
Não acreditamos na violência
(Olho Seco, Vida Violenta, 1985)
Apesar de elemento estruturante e assunto recorrente nas construções culturais do movimento, não
há indícios significativos de estímulos e discursos explicitamente incentivadores das práticas
violentas.
A violência como fator influente e determinante da cultura do movimento punk, e de boa parte de
seus integrantes, geralmente tem sido expiada artisticamente através dos acordes ríspidos, ritmos
acelerados e letras de protesto contidas nas concepções sonoras e musicais.
Nas festas, a ritualística das danças vibrantes e quase convulsivas, ao som das bandas ao vivo ou da
discotecagem eletrônica com fitas cassetes de punk rock gravadas em casa, os levam ao êxtase,
numa energética e empolgante agitação. Costumes espontâneos talvez para aliviar as pressões,
festejar e, ao mesmo tempo, procurar depurar as violências presentes em suas rotinas diárias.
Em alguns casos, a presença de gangues rivais nas mesmas festas, somadas muitas vezes ao
consumo excessivo do álcool, terminava em tumultos e brigas.
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Tem violência em Bruxelas, tem violência em Moscou, tem violência em Nova Iorque
E também no Brasil
Têm vinganças religiosas, têm vinganças de raças, têm vinganças de governos
Tenho medo da guerra
Mas quem se importa? Mas quem se importa?
Eu me importo, eu me importo
Pela paz, pela paz
Pela paz em todo mundo
Mais o ódio se espalha, mais aumenta a fome
Mais as vidas são tiradas de dentro dos homens
São mais armas para o mundo, são mais filmes violentos
São crianças aprendendo, matar ou morrer.
(Cólera, Pela Paz em Todo Mundo, 1986).
Os choques e conflitos decorrentes do contato entre diferentes grupos que eventualmente se
encontravam nos mesmos espaços em momentos determinados, muitas vezes têm oferecido algum
pretexto para se construir externamente uma imagem do movimento punk como grupos de
‘vândalos’, ‘arruaceiros’, e uma tentativa de marginalização pretensamente justificada por
acontecimentos e atos sucedidos isoladamente, e que em sua grande maioria não condizem com as
práticas essenciais dos grupos pertencentes ao movimento. Análises muitas vezes sensacionalistas e
sem a profundidade e atenção necessárias para o entendimento da heterogeneidade e complexidade
do movimento punk. Agentes que atuam coletiva ou individualmente, que produzem cultura, que
apesar de enfrentar toda sorte de dificuldades e obstáculos, têm garantido espaços para a expressão
autêntica de uma juventude invisível, em sua maior parte, que habitam os grandes centros urbanos.
Oportunidade para se relacionar, participar e sentir-se pertencente a um grupo, com sociabilidades
específicas de acordo com seus comportamentos, códigos e símbolos próprios.
Apesar da demonstração pública de um discurso de afastamento das iniciativas de atitudes violentas,
os integrantes do movimento punk estão, ao mesmo tempo, muito distantes de integrar grupos
pacifistas em sua totalidade. A rebeldia e a revolta contida nas denúncias direcionadas aos poderes
que os oprimem de maneira severa cotidianamente, conservam em seus gestos uma prática de
violência residual derivada da cultura suburbana e operária dos jovens dos períodos históricos
anteriores, que também eram sistematicamente criminalizados e, de certo modo, culpabilizados
pelas suas condições materiais de existência e seus modos próprios de viver. Contudo, estas
analogias devem ser examinadas com cautela, e com as devidas ressalvas das particularidades
culturais, temporais e de lugar destes agentes, já discutidas de maneira introdutória no decorrer
deste trabalho.
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Os punks são legítimos herdeiros da marginalidade seminal dos scuttlers e loubards, passando pela
acidez politizada e revolucionária dos situacionistas, até a recepção da influência direta, que depois
se tornou mútua, de seus contemporâneos europeus. Ao lado destes últimos, foram responsáveis por
uma das construções culturais que melhor representou, e continua representando, uma parcela
considerável da vida cotidiana dos jovens das periferias e dos subúrbios urbanos em toda sua
autenticidade. Produções culturais em sua grande parte elaboradas de maneira autônoma e
independente, que naturalmente se distinguem das construções simbólicas usuais da juventude
determinadas pelos interesses da indústria cultural, quase sempre influenciada pelos apetites do
mercado.
Os fatos sobre a relação íntima da juventude com a violência são históricos e concretos. Mas, a
construção simbólica que atribui as práticas de violência principalmente a estereótipos específicos,
estigmatizando principalmente os jovens pobres e periféricos, na maioria das vezes, de forma
generalizada e imprecisa e, seletivamente excluir destas imagens outras categorias e agrupamentos
sociais, também não têm sido historicamente produzidas? E atualmente, quais seriam os interesses
envolvidos nestas construções que, invariavelmente, posicionam a juventude das periferias como
alvo principal do controle, da vigilância, do enquadramento constante e da desconfiança permanente
da sociedade?
[Figura 1 – Fanzine 1999 #2, São Paulo – SP, 1983. Arquivo pessoal]
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[Figura 2 – Fanzine Alerta Punk #3, São Paulo – SP, 1983. Arquivo pessoal]
[Figura 3 – Fanzine Diário Punkpular, São Paulo – SP, 198?. Arquivo pessoal]
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Publicações, fontes iconográficas e sonoras
1999 FANZINE. Ed. 02, São Paulo – SP, 1983.
ALERTA PUNK FANZINE. Ed. 03, São Paulo – SP, 1983.
CÓLERA. Pela Paz em Todo Mundo. In: Pela Paz em Todo Mundo, LP - Ataque Frontal, 1986.
DIÁRIO PUNKPULAR FANZINE. São Paulo – SP, S/D.
FACTOR ZERO FANZINE. Ed. 02, São Paulo – SP, 1983.
LIXOMANIA. Violência e Sobrevivência. In: Violência e Sobrevivência, LP - Independente, 1982.
OLHO SECO. Vida Violenta. In: Botas, Fuzis e Capacetes, LP - New Face Records, 1985.
RATOS DE PORÃO. Periferia. In: Crucificados pelo Sistema, LP - Punk Rock Discos, 1984.
Referências bibliográficas
FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. São Paulo: Edusp, 2000.
FRIEDLANDER, Paul. Rock and Roll: Uma história social. Rio de Janeiro: Record, 2006.
GUARNACCIA, Matteo. Provos: Amsterdan e o nascimento da contracultura. São Paulo: Conrad,
2001.
HOME, Stewart. Assalto à cultura: Utopia, subversão, guerrilha na (anti) arte do século XX. São
Paulo: Conrad, 1999.
MUCHEMBLED, Robert. A História da violência – Do fim da idade média aos nossos dias. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2012.
QUATTROCCHI, Angelo; NAIRN, Tom. O começo do fim: França, Maio de 68. Rio de Janeiro:
Record, 1998.
ROSÁRIO, André Telles do. Pé nas encruzilhadas: Trajetos e traduções de On The Road pela
América Latina. Recife: o autor, 2012.
SOLIDARITY. Paris: Maio de 68. São Paulo: Conrad, 2003.