tese sobre ramachandran

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE COLETIVA

IMAGENS DO CORPO E IMAGENS DO EU: RAMACHANDRAN, SACKS E DAMSIO

SERGIO GOMES DA SILVA

JURANDIR FREIRE COSTA (ORIENTADOR)

RIO DE JANEIRO 2007

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C A T A L O G A O N A F O N T E U E R J / R E D E S I R I U S / C B C S587 Silva, Srgio Gomes da. Imagens do corpo e imagens do eu: Ramachandran, Sacks e Damsio / Srgio Gomes da Silva. 2007. 121f. Orientador: Jurandir Freire Costa. Dissertao (mestrado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social. 1. Ramachandran, V. S., 1951- Teses. 2. Damsio, Antonio Teses. 3. Sacks, Oliver W., 1933- Teses. 4. Imagem corporal Teses. 5. Fenomenologia Teses. 6. Neurologia Teses. I. Costa, Jurandir Freire, 1944- II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Medicina Social. III. Ttulo. CDU 391.6____________________________________________________________________________________

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AGRADECIMENTOS A Jurandir Freire Costa, pela perseverana de propor novos desafios a antigos problemas, pela pacincia e presteza em que me aceitou no seu grupo de pesquisa, pela sua orientao precisa e sua capacidade insofismvel de me fazer pensar sempre na contramo reafirmando a mxima s sei que nada sei; A Benilton Bezerra Jr., Francisco Ortega e Monah Winograd, por aceitarem a fazer parte da Banca; Aos colegas do grupo de orientao, s quartas-feiras, Delphin, Claudia, Carla, Ana Alice e Rossano, bem como aos colegas do grupo de orientao do Francisco Ortega, s teras-feiras, especialmente Marlia, Luciana Kind e Rafaela, que me possibilitou esclarecer algumas idias, enquanto elas ainda estavam envoltas em trevas; Ao corpo docente do Instituto de Medicina Social da UERJ, cuja experincia na rea da Sade Coletiva, ampliaram meus campos de conhecimento; Aos amigos e colegas do curso, em particular a Claudia, Daniela, Rachel, Igor, Andr, Paula, Elaine e Camilo; Aos novos amigos e amigas que souberam suportar minha ausncia, mas que contriburam com sua fora para o final dessa dissertao, Mrcia, Ercy, Ieda, Rodrigo, Miriam e Suely, minha gratido para com vocs no acaba nunca, particularmente Vera, amiga e professora de francs, que me ajudou em parte das tradues contidas nessa dissertao; Aos velhos amigos da terra nem to distante, que ficaram na torcida pela concretizao dessa Ps-Graduao, sobretudo Reivan, Mrcia, Tatiana, Wilma, Lourdinha, Roberto, Jnior, Wellington, Arlete, Valdir, e Robert; Sou eternamente grato Regina pelos intensos debates e discusso ao longo da construo desse trabalho, muitas vezes atravessando madrugadas insones via fone nessa ltima etapa da escrita; Direo da Escola de Servio Social da UFRJ, respectivamente Maria Magdala Vasconcelos, Gabriela Icasuriaga e Yolanda Guerra, pela fora na minha formao pessoal; Ao querido amigo Diomedes Paulo, in memorian, voc no sabe como me fez falta no final desse percurso, meu amigo; E finalmente a minha famlia, que suportou bravamente meu xodo para o Rio de Janeiro.

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RESUMO IMAGENS DO CORPO E IMAGENS DO EU: RAMACHANDRAN, SACKS E DAMSIO Abordar o tema da imagem corporal na contemporaneidade acima de tudo ressaltar a sua importncia a partir dos transtornos da percepo da imagem do corpo. No entanto, a tecnologia mdica forneceu neurologia e s neurocincias novos subsdios para a compreenso dos distrbios da imagem corporal verificando in loco todos os distrbios cerebrais correlacionados s disfunes de imagem corporal. Sem a representao mental ou fsica do nosso prprio corpo, no conseguiramos ter a noo de ipseidade no mundo. Quando o esquema corporal entra em conflito com a imagem corporal, podemos encontrar aquilo que denominamos de distores da imagem do corpo. Esse campo tem sido colocado em relevo por novas disciplinas, transformando o crebro como o agente principal da nossa identidade pessoal, tal como formulado pelo conceito de sujeito cerebral. A partir dessa perspectiva, objetivamos analisar as origens da imagem corporal a partir de trs autores nitidamente distintos: Ramachandran e os membros fantasmas, que procura compreender a formao da imagem corporal a partir de um mapa cerebral; Oliver Sacks a partir de uma neuro-fenomenologia do eu e Antnio Damsio a partir da neuro-anatomia das emoes e dos sentimentos e sua correlao com a corporeidade. Mostrar essas abordagens torna-se necessrio primeiramente para que possamos sair de uma abordagem reducionista, materialista e localizacionista, fomentado pelas disciplinas mdicas que tem ganho notoriedade nos ltimos anos; segundo, para construo de novas metforas ou narrativas da mente no campo dos distrbios de imagens corporais, e por fim, para mostrar o nus terico que se encontra em cada uma dessas disciplinas. Palavras-chaves: imagem corporal, esquema corporal, sujeito-cerebral, subjetividade, neurologia, fenomenologia.

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ABSTRACT BODY IMAGES AND SELF IMAGES: RAMACHANDRAN, SACKS E DAMSIO To study body-image today is to standing out its importance from the perception of body image disfunctions. However, the medical technology supplied to neurology and to neuroscience gave new approaches to the understanding the body-image disfunctions verifying all the correlated cerebral roots to the disfuctions of body-image. Without the mental or physical representation of our body, we would not obtain our sense we are one in the world. When the body-schema enters in conflict with the "body-image ", we can find what we call distortions of body-image". This approach has been placed in relief for new disciplines wich the brain become a new agent of our personal identity as brainhood (cerebral subject). To this point of view, we aims to analyze the origins of the body-image, identity, subjectivity and self image from three distinct approaches: Ramachandran and the their "phantom limbs", wich body image is understood as a brain map; Oliver Sacks from a neuro-phenomenology of the self and Antnio Damsio from the neuro-anatomy ou neuro-biology of emotions and feelings and its correlation with the corporeality or embodiment. First of all, to analize these differents approaches is important because we can leave a reducionist, materialistic and localizacionist toughts, to the new disciplines whom profit has notoriety in the last years; second, for construction of new metaphors or narratives of the mind and self in the field of bodyimage, and finally, to show the theoretical responsibility that found out in each one of these respective discipline. Key-words: body image, body schema, brainhood, subjectivity, fenomenology neurology,

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Voc no passa de um baralho de neurnios Francis Crick Citado por John Horgan O fim da cincia

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LISTA DAS FIGURAS

FIGURA 1 Homnculo de Penfield...................................................................... 29 FIGURA 2 Mudana na topografia cortical........................................................ 38 FIGURA 3 Paciente V. Q. .................................................................................... 39

FIGURA 4 A caixa de espelhos............................................................................. 41 FIGURA 5 As condies de manipulao............................................................ 45 FIGURA 6 e 7 Fotografia e reconstruo digital do crnio de Phineas Gage.. 99

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SUMRIO

INTRODUO.................................................................................................................. I. RAMACHANDRAN E OS FANTASMAS DO CORPO...................................... 1.1. Os primrdios dos membros fantasmas........................................................... 1.2. O fenmeno dos membros fantasmas.............................................................. 1.3. Enganando o crebro........................................................................................ II. SACKS E A NEUROLOGIA DA IDENTIDADE................................................. 2.1. Para uma neuro-fenomenologia do self........................................................... 2.2. Imagem do corpo e esquema corporal................................................................. III. DAMSIO E O CORPO NO TEATRO DAS EMOES E DOS SENTIMENTOS..................................................................... 3.1. A neuroanatomia das emoes e dos sentimentos............................................... 3.2. Emoes e sentimentos no teatro do corpo: a construo das imagens corporais...................................................................................................................... 3.2. Para uma neurobiologia da subjetividade humana.............................................. CONSIDERAES FINAIS............................................................................................ REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.............................................................................

08 21 23 26 40 50 53 62

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INTRODUO

A expresso imagem do corpo foi cunhada por dois eminentes neurologistas ingleses, Russel Brain e Henry Head, para designar o conjunto de experincias e sensaes a imagem e memria internas do corpo no tempo e no espao. Para criar e manter esta imagem corporal em um determinado momento, segundo os autores, os dois lobos cerebrais combinam informaes precedentes de muitas fontes, a saber: msculos, pele, articulaes, tendes, olhos e centros do comando motor. O conceito de imagem corporal aparece na literatura no sculo XVI, na Frana, atravs do mdico e cirurgio francs Ambroise Pare, que percebeu a existncia do membro fantasma, caracterizando uma alucinao do membro ausente como estando, de fato, presente no corpo do paciente. Posteriormente, trs sculos depois, na Filadlfia (EUA), Weir Mitchell demonstrou que a imagem corporal, ainda sem se referir a este fenmeno como tal, pode ser mudada sob tratamento ou em condies experimentais. Mas foi o neurologista Henry Head do London Hospital quem primeiro usou o termo esquema corporal para se referir a uma construo da imagem do corpo que temos de ns mesmos. De acordo com Head cada indivduo constri um modelo ou figura padro de si mesmo contra os julgamentos da postura e dos movimentos corporais. Para o autor, a alterao da postura de um indivduo pode mudar, e a isso ele denominou de esquema corporal ou schemata: Qualquer coisa que participe do movimento consciente de nossos corpos somada ao nosso modelo corporal e torna-se parte deste schemata.

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O conceito de imagem corporal tambm tem sido freqentemente associado aos estudos neurolgicos ou psicolgicos levando-nos, algumas vezes, a uma srie de confuso de conceitos tericos e metodolgicos nos vrios campos em que ele tem sido aplicado. Em neurologia, os termos esquema e imagem corporal so correntemente referidos a dois tipos de representaes: uma o ajuste do corpo no espao das atividades sensrio-motoras e do conhecimento do corpo na relao espacial. O outro termo referido pela psicanlise no registro da identidade relegando ao Outro um papel primordial na aquisio da identidade do sujeito (Morin & Thibierge, 2004). Gallagher (1986, 1995), por exemplo, aponta uma srie de implicaes no uso conceitual e terminolgico relativos imagem do corpo e ao esquema corporal ao abordar os estudos acerca da experincia do corpo e da personalidade, tanto no campo psicanaltico quanto na literatura fenomenolgica, reforando a idia de que necessrio diferenciar entre imagem e esquema corporal para solucionar o problema da conscincia de si (self-awareness) e a conscincia do corpo (body-awareness). A conscincia de si (self-awareness) refere compreenso de que algum existe como um self, um centro de gravidade narrativa, e inclui a existncia de um indivduo separado de outras pessoas com pensamentos privados, com uma alteridade e uma ipseidade. O self-awareness referido apenas no desenvolvimento de uma identidade (como um self). Alis, ele o nicho da prpria identidade e tambm se refere ao comportamento, ou seja, a base da identidade pessoal. A conscincia do corpo (body-awareness) a capacidade de referir-se ao seu prprio corpo como ora como uma imagem, ora como um esquema corporal

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atravs de sensaes proprioceptivas. tambm ter a certeza que o corpo tem uma intencionalidade regulada por aes internas e externas do ambiente. De modo geral, o esquema corporal formado por um conjunto de sensaes proprioceptivas e exteroceptivas no qual o corpo estaria apto para agir e reagir a estmulos do meio externo (o ambiente) e no tem nenhuma referncia ao eu corporal. Por outro lado, a imagem corporal est ligada a um fato mental com intencionalidade, privacidade e representacionalidade, conforme afirma Costa (2004a). No obstante, necessrio saber o que e o que no uma imagem corporal. De acordo com Shontz (1974, p. 462) h trs coisas eminentemente que imagem do corpo no : Primeiro, imagem corporal no um rgo corporal, mas uma integrao entre um determinante fisiolgico e psicolgico; ele no uma estrutura nem neurolgica nem mental, mas ambos. Segundo, a imagem corporal no uma imagem tal como uma fotografia, um diagrama, uma tatuagem ou um retrato de si mesmo; uma adequada imagem corporal necessria para o comportamento de muitos tipos, tais como conversar ou andar. Por fim, a imagem corporal no uma pessoa na cabea ou na mente, ou ainda uma entidade psicolgica, tal como uma espcie de ego corporal, colocando-se como um ncleo da personalidade. O ego corporal organiza e media as relaes corpo/comportamento, interpretando sensaes e aes. Segundo o autor, a idia de um ego corporal parece til, mas carece de muitas limitaes. A imagem do corpo tal como o ego corporal uma espcie de fantasma na mquina.

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Portanto, acreditamos que a melhor definio de imagem corporal seria aquela defendida por Costa (2004a), qual seja, um fato mental com as qualidades de intencionalidade, privacidade e representacionalidade. Para Costa (2004a, p. 59), a imagem do corpo seria intencional porque implica obrigatoriamente na referncia a um outro que lhe exterior solicitando ao sujeito a se representar. A imagem corporal seria privada porque se refere existncia do eu, que lhe prpria, auto-referida, impessoal tal qual um self, pois no existe imagem corporal sem um eu (self) que a reconhea como sendo sua propriedade. Por fim, a imagem do corpo seria representacional, segundo o autor, por ser composta de elementos descritivos necessitando de uma competncia lingisticamente organizada, de modo reflexivo ou pr-reflexivo, consciente ou inconsciente. Abordar o tema da imagem corporal na contemporaneidade acima de tudo ressaltar a sua importncia em duas perspectivas nitidamente distintas: por um lado, a explorao das sensaes corporais, as quais tem constitudo as novas identidades contemporneas (bioidentidades), e por outro, os transtornos da percepo da imagem do corpo. No que compete ao primeiro campo, encontram-se no s o consumo excessivo de drogas (lcitas ou ilcitas) bem como a explorao das modificaes corporais (Ortega, 2003, 2004). No segundo campo, encontram-se os distrbios alimentares (anorexia, bulimia entre outras), o fisiculturismo compulsivo, a compulso por correo esttica cirrgica, alm das ansiedades de exposio (sndrome do pnico e fobias sociais) (Costa, 2004a, 2004b; vila, 2004; Anzieu, 1989). H ainda um terceiro campo a ser explorado: a tecnologia mdica, atravs do escaneamento de imagens cerebrais, que forneceu neurologia e s neurocincias de

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modo geral subsdios para a compreenso de outros distrbios de imagem corporal tais como os membros fantasmas, anosognosia, somatofrenia ou ainda Sndrome de Capgras (crena de que os parentes foram substitudos por outros). Essa perspectiva parte do pressuposto que decorrente de cirurgias ou acidentes traumticos no corpo ou em determinadas regies do crebro responsvel pela nossa percepo corporal, o indivduo perde parte da sua capacidade de se reconhecer em sua totalidade corporal, passando a experimentar alguns fenmenos nunca antes experimentados, a no ser em estados alterados de conscincia. Tanto em um como em outro, o corpo fsico ou corpo vivido identificado como sede pulsional dos conflitos e sofrimentos psquicos e sugere uma intencionalidade fsica ou mental, na forma conferida por Costa (2004a, 2004b)1. Antes, os distrbios de imagem corporal se davam atravs de experincias alucingenas com uso de drogas lcitas ou ilcitas, de distrbios alimentares ou das diversas modalidades de mudanas corporais. Agora, com a tecnologia mdica, pode-se ver in loco todos os distrbios cerebrais e correlacion-los s disfunes de imagem corporal. como se a nossa interioridade passasse a ser materializada em imagens do crebro, e no mais precisssemos da representao fsica ou mental do nosso corpo. Sem a representao mental ou fsica do nosso prprio corpo, no conseguiramos ter a noo de ipseidade no mundo. Mas esta noo s possvel atravs da interao entre o eu e o mundo, entre o meio interno e o meio externo, entre o corpo e a mente ou ainda entre o corpo e o crebro. Freud (1923) j afirmava que o primeiro ego acima de tudo um ego corporal limitado pelo nosso envelope corpreo e para o ser humano, o corpo nunca A idia de corpo fsico deve ser entendido mais prximo do conceito de corpo vivido ressaltado por Merleau-Ponty e na forma conferida por Costa (2004).1

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apenas biologia, estados fisiolgicos, somticos, neurolgicos ou mentais. Para Freud, o corpo identidade e destino! Desde o nascimento, para nos reconhecermos enquanto ns mesmos necessitamos desenvolver uma imagem e um esquema corporal que so mediados pela mente e pelas disposies neuronais do crebro, reagindo a estmulos internos e externos tais como fome ou dor, prazer ou desprazer. Mas quando o esquema corporal entra em conflito com a imagem corporal, podemos encontrar aquilo que denominamos de distores da imagem do corpo. A distoro da imagem corporal um produto do choque entre o uso da representao da imagem do corpo como imagem e o uso como esquema corporal, tal como ressaltado por Costa (2004a, 2004b) e Campbell (1998), ou seja, quando o mpeto de afetar a intencionalidade do outro compromete a responsividade do corpo ou a inteno de adaptao imediata do ambiente, logo, o ambiente torna-se um mundo de necessidades e satisfaes ao favorecer o surgimento da auto-referncia corporal e a identificao com os objetos presentes no ambiente. Assim, a auto-representao de si e a constituio da identidade do sujeito apela constantemente a um outro que o referencie. Porm, apelar para um outro que o referencie pode desequilibrar, segundo Costa (2004a, 2004b), a economia da satisfao do esquema corporal. nesse sentido que se encontram as diversas modalidades de distrbios da imagem corporal na contemporaneidade. Mas do modo como as tecnologias mdicas vm tratando o crebro em sua ntima relao com a identidade, surgiu uma nova figura no cenrio contemporneo, qual seja, a transformao do crebro como o astro rei da nossa corporeidade, identificando nossa identidade com suas funes corticais e somato-sensoriais. Na

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contemporaneidade, so as neurocincias que vm despontando e mostrando as bases da nossa subjetividade ou da nossa identidade pessoal. De acordo com Alain Ehrenberg (2004) em seu famoso texto O sujeito cerebral, com o advento das neurocincias, h duas formas de ver o sujeito na contemporaneidade: a primeira aquela defendida por Jean Pierre Changeux, que defende a idia de um homem neuronal, uma noo que implica nas bases materialistas e biolgicas da identidade pessoal (Changeux, 1997). A segunda apontada por Gerald Edelman em seu livro A biologia da conscincia, que defende o ponto de vista das neurocincias como a chave do processo de aprendizagem, comportamentos sociais e disfunes neurolgicas, portanto, a perspectiva de um homem cerebral (Edelman, 2000). Ehrenberg ainda ressalta que no campo das neurocincias h de se distinguir dois tipos de programas: um programa forte e um programa fraco. O programa forte das neurocincias evidencia trs perspectivas: uma terica, uma prtica e outra social. A perspectiva terica uma base de explicao exclusivamente materialista ao esprito a partir do postulados de que o crebro o fundamento do esprito. A perspectiva prtica se d atravs de uma fuso entre neurologia e psiquiatria ela eminentemente profissional e teraputica. A perspectiva social se situa entre as questes teraputicas e alm delas de modo a fazer com que a linguagem das neurocincias chegue linguagem popular (isso se d atravs de um uso desmedido da linguagem das neurocincias na mdia, em jornais e revistas, ressaltando as propriedades do crebro no campo religioso, afetivo, somtico, dos negcios, na educao, na teraputica, etc.). O programa fraco, por sua vez, visa apenas o progresso de doenas neurolgicas e a descoberta de aspectos neuropatolgicos das doenas mentais. O primeiro programa trata de aliar o

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conhecimento do crebro ao conhecimento de si mesmo no plano clnico, propondo uma neurobiologia da identidade, o segundo detm-se unicamente no plano das doenas neuropatolgicas. De acordo com o historiador Fernando Vidal (2005a, 2005b), o crebro o nico rgo do corpo que precisamos para ser ns mesmos, e se tornou o rgo indispensvel para a existncia do nosso eu, refazendo a mxima descartiana, penso, logo existo, para tenho um crebro, logo, sou!. De acordo com Vidal, o crebro define a pessoa que ns somos como um sujeito cerebral (brainhood). Mas, como ele mesmo tenta apontar, a idia de que somos essencialmente nosso crebro precede o atual movimento das neurocincias pelos filsofos da matria e da identidade pessoal no final do sculo XVII, a exemplo de John Locke. A idia de um sujeito cerebral decorre, segundo Vidal, da concepo de personhood (personalidade, em ingls), ou seja, assim como a personalidade a qualidade ou condio de sermos uma pessoa individual, de sermos um sujeito, brainhood, ou sujeito cerebral, a qualidade ou condio de ser um crebro e essa propriedade que o define. Por sua vez, a figura do sujeito cerebral foi determinada pela influncia da fisiologia galnica na psicologia do sculo XVIII (Vidal, 2005a, 2005b; Ehrenberg, 2004) e tem transformado o futuro das cincias mdicas, a exemplo das neurocincias e da neurologia na contemporaneidade. Nos ltimos 30 anos, o que se tem visto foi um aumento considervel de estudos e conhecimento sobre o crebro, cuja interao com o mundo exterior fundamental, haja visto que no pode existir um crebro sem um corpo, e esse corpo, no pode existir sem uma relao com o ambiente. Assim, se a dcada de 90 do sculo

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passado foi considerada como a dcada do crebro, o sculo XXI tender a ser, na viso de Jean-Pierre Changeaux (2000), o sculo do crebro! Ora, justamente por compreender o crebro como o lugar da alma e o rgo do self que alguns autores cada vez mais tem chamado ateno para essa transformao. As pesquisas atuais no campo das neurocincias tm cada vez mais reforado a crena de que estamos reduzidos ao nosso crebro. Nossa identidade pessoal, aquilo que nos personaliza, aquilo que nos individualiza, representado hoje pela nova disciplina do sculo XXI como sendo a cincia do crebro exposta nas mais variadas ramificaes: neurotica, neuromarketing, neuropsicnalise,

neurofenomenologia, neuroteologia, neuroasceses, entre outras, concebendo o sujeito como sendo um sujeito cerebral (brainhood).2 O historiador das cincias do crebro, Michael Hagner, tem apontado as mudanas de perspectivas atravs da biografia cerebral de cientistas do sculo XIX, tais como Kant, Schopenhauer entre outros, como uma decorrncia dos estudos frenolgicos de Joseph Gall (Hagner, 2003), ao passo que tem enfatizado o sujeito cerebral como sendo um homo cerebralis. Por outro lado, Jean-Pierre Changeaux (1997) tem referido que esse mesmo sujeito cerebral pode muito bem ser compreendido como sendo o homem neuronal, uma noo que implica nas bases materialistas da identidade pessoal. O materialismo uma posio frente ao dualismo mente-corpo atravs da recusa da idia de que h duas substncias no mundo e de que tudo o que h nele material. Ele freqentemente usado como sinnimo do fisicalismo tal como defendido2

Para uma discusso sobre o tema remeto o leitor a Ehrenberg (2004), Vidal e Ortega (2004) e Vidal (2002; 2005a; 2005b).

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pela filosofia da mente, que afirma que tudo o que existe no mundo espao-temporal fsico. Quando associado ao reducionismo, diz respeito ao problema mente-corpo e teoria da identidade, que prope que todo evento mental idntico a algum evento ou estado no crtex cerebral, ou seja, na ontologia fisicalista, todos os estados mentais internos, antes imateriais, passam a serem concebidos como materiais.O materialismo neural e fenomenolgica do sujeito so conciliveis se os descrevermos de modo a permitir a condio pretendida. (...) O materialismo nem significa congelamento do corpo em imagens neurais, nem seu confinamento em artefatos laboratoriais (Costa, 2006, p. 19).

Para os defensores do fisicalismo, o problema que se coloca definir estados mentais e no mentais como estados cerebrais, transformando o mental, o subjetivo, o imaterial em algo palpvel, material, concreto, fsico e composto de uma substncia. A subjetividade e a identidade de um sujeito, por conseqncia, no so compreendidas como estados mentais, mas um construto fsico encerrado nos dispositivos cerebrais. A teoria da identidade por sua vez, apresenta-se sob duas verses para os adeptos do materialismo: uma a teoria da identidade type-type a qual diz que todo evento mental tem seu correspondente fsico e material no crebro; a outra a teoria da identidade token-token a qual afirma que apesar de estados e acontecimentos mentais serem fsicos, eles no podem ser reduzidos a uma descrio fisicalista, eles precisam ser investigados caso a caso. A primeira teoria defendida por Flannagan que afirma: quando todas as relaes de identidade mente-crebro estiverem mapeadas, poderemos reformular nossas leis psicolgicas trocando o vocabulrio mentalista pelo vocabulrio fomentado pela neurologia. A segunda teoria defendida por Davidson que apresenta uma teoria da identidade a partir do materialismo sem reducionismo (Bezerra Jr., 2000).33

Para uma discusso sobre o tema, ver tambm Ferreira (2000; 2006).

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De acordo com Costa (2006, p. 19)O reducionismo funciona razoavelmente bem quando se trata de mostrar a causa neural de ocorrncias mentais simples e pontuais. (...) O como ser algo ou algum o what is like to be de Thomas Nagel no passvel de reduo heterofenomenolgica. At o presente, nem dispomos de um dicionrio neutro capaz de estabelecer relaes de sinonmia satisfatria entre a linguagem dos fatos neurais e a dos fatos mentais, nem de equipamento tecnolgico que possam validar empiricamente tal possibilidade.

A partir dessa perspectiva, caberia aqui questionar: Qual a relao entre a mente e o corpo, entre a mente e o crebro, entre o estado objetivo e o estado subjetivo? Como concatenar as experincias internas e externas, sem deixar de lado o que propriamente humano na experincia, ou seja, seu carter subjetivo? De que maneira os estudos neurolgicos tm compreendido a formao da imagem corporal e do eu na formao da identidade e de que forma suas anlises podem contribuir no trabalho clnico de diversas modalidades psis na contemporaneidade? Nosso percurso retoma, ento, os trabalhos desenvolvidos por trs eminentes neurologistas na contemporaneidade, a saber, V. S. Ramachandran, Oliver Sacks e Antnio Damsio, cada um deles, expostos em captulos nessa dissertao. No primeiro captulo, buscar-se- as origens da imagem corporal a partir dos relatos clnicos e tericos do neurologista indiano V. S. Ramachandran. Ramachandran se deteve no estudo sobre os famosos membros fantasmas, buscando compreender como a formao da imagem corporal se dava no crebro a partir da idia de um mapa cerebral. Toda sua compreenso acerca da nossa subjetividade, da nossa imagem corporal, da nossa personalidade e da identidade pessoal, se d a partir de um registro de um mapa corporal no nosso crtex cerebral no necessariamente delimitados tal qual nossa anatomia. Em um primeiro momento, busco resgatar brevemente a origem histrica do fenmeno dos membros fantasmas e sua relao com os distrbios da imagem corporal.

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Posteriormente, busco explicar o fenmeno atravs de dois relatos clnicos em sua relao com a construo da imagem do corpo a partir do homnculo de Penfield, para, logo em seguida, reforar as teses do autor sobre a construo da imagem do corpo. Nesse sentido, o que se procurar discutir a tese da plasticidade neuronal ou neural do crebro se adaptar s modificaes da imagem do corpo. No segundo captulo, retomo as anlises de Oliver Sacks a partir de uma neuro-fenomenologia do eu, na qual busca suporte terico em alguns conceitos da fenomenologia e da neurologia para a construo da imagem do corpo. Sacks, como poder se verificar, no despreza nem a construo da imagem do corpo a partir de uma representao deste no crebro, nem muito menos a partir de conexes neuronais tal como defende Damsio, porm prope que no se despreze a interao do corpo com o ambiente e a percepo deste no crebro a partir de um ponto de vista fenomenolgico ou neuro-fenomenolgico. Por fim, retomo as teses de Antnio Damsio sobre a construo da imagem do corpo e do eu, ressaltando suas anlises sobre a neuro-anatomia das emoes e dos sentimentos em sua relao com a corporeidade, para, por fim, apontar suas teses acerca da neurobiologia da subjetividade, da imagem do corpo e da identidade presentes em suas teorias. Sabemos que nenhuma disciplina pode se pretende a tratar o sofrimento psquico isolando-se no tempo e no espao em seu campo de atuao e a demanda clnica tem requerido constantemente uma resposta diante da cultura somtica. Assim, o objetivo do presente trabalho no s explicitar as principais teses desses autores no que compete ao tema proposto, bem como ressaltar sua importncia na atualidade no que confere clnica e dos estudos dos distrbios da imagem do corpo e do eu.

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Por que mostrar essas abordagens e sua correlao? Ora, de acordo com nossas preposies, mostrar essas abordagens torna-se necessrio primeiramente para que possamos sair de uma abordagem reducionista ou localizacionista, fomentado pelas disciplinas mdicas que tem ganho notoriedade nos ltimos anos; segundo, para novas metforas ou narrativas da mente possveis no campo clnico dos distrbios da imagem do corpo, concebendo-o como um sintoma contemporneo,e por fim, para mostrar o nus terico que se encontra em cada uma dessas disciplinas.

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CAPTULO 1 RAMACHANDRAN E OS FANTASMAS DO CORPO

Uma brisa no coto sentida como uma brisa no fantasma William James A conscincia do membro perdido

Os distrbios da imagem do corpo, na forma conferida pelo fenmeno dos "membros fantasmas" tomaram grande parte dos estudos do neurologista indiano radicado nos Estados Unidos V. S. Ramachandran. A percepo dos membros fantasmas, em muitos dos seus pacientes, lhe permitiu compreender como a imagem corporal estava diretamente relacionada perda do sentido de "eu" e da individualidade do sujeito. Alm disso, o estudo dos membros fantasmas deu a ele a possibilidade de entender como o crebro responsvel pela construo da imagem corporal. Tomados coletivamente, o trabalho com crebros humanos e animais deu uma valiosa oportunidade experimental s suas pesquisas:Investigar no apenas como novas conexes emergem no crebro adulto humano, como tambm quais informaes de diferentes mdulos sensoriais, como toque, propriocepo e viso interagem. O estudo de membros fantasmas tambm deu uma oportunidade de entender exatamente como o crebro humano constri a imagem do corpo e como essa imagem continuamente atualizada em respostas s mudanas sensoriais (Ramachandran & Hirstein, 1998, p. 1604).

A partir dessa perspectiva, Ramachandran buscou encontrar uma intrnseca relao entre as questes subjetivas que nos cerca e uma espcie de gnese ontognica da imagem corporal atravs de investigaes neurolgicas. Para ele, o crebro nada mais do que o lugar da interioridade, do eu, do self ou ainda da

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individualidade do sujeito, reforando a perspectiva contempornea de descrio de do sujeito e da subjetividade a partir do crebro (Ramachandran, 2004, p. 25). As diversas sndromes analisadas pelo autor ilustram princpios

fundamentais de como a mente e o crebro humano normais funcionam, podendo lanar luz sobre a natureza da imagem do corpo, da linguagem, do riso, dos sonhos, da depresso, entre outros, fenmenos esses que so eminentemente estudados atravs de teorias fenomenolgicas ou psicolgicas do sujeito4. Para Ramachandran, entender essas diversas sndromes nada mais do que resolver o mistrio de como vrias partes do crebro criam uma representao til do mundo externo e geram a iluso de um eu, uma individualidade, que resiste no espao e no tempo (Ramachandran & Blakeslee, 2004, p. 35). No apenas entender como o crebro trabalha, mas segundo o autor, esse estudo pode ajudar a compreender e tratar disfunes neurolgicas tais como as disfunes de imagem corporal (anorexia nervosa, apraxia, distonia focal, etc. 5) (Ramachandran et all., 1996). Seu trabalho atravs de testes psicofsicos e estudos de imagem funcional em pacientes com membros fantasmas lhe deu trs oportunidades nicas: primeiro demonstrou uma plasticidade neural em crebros humanos adultos nunca antes vista, a no ser com advento da tecnologia de imageamento do crebro. Segundo, a partir das4

De acordo com Berlucchi & Aglioti (1997, p. 560), leses cerebrais podem afetar profundamente a forma como o corpo percebido e representado, e em alguns casos, podem ser percebidos como desordem do domnio cognitivo, tais como a linguagem ou ateno espacial. As leses da conscincia do corpo (autotopagnosia incapacidade de reconhecer e localizar as diversas partes do corpo, provocada por leso orgnica cerebral e tambm denominada de agnosia da imagem do corpo; agnosia do dedo e desorientao espacial esquerda-direita), em sua grande maioria, so causadas por leses na parte posterior esquerda do lobo parietal. Outros distrbios podem afetar alteraes especficas do esquema corporal. 5 Anorexia nervosa, como sabemos, um distrbio alimentar associado imagem do corpo na qual o sujeito no se reconhece como magro e se recusa a alimentar-se, causando perda de massa corprea, podendo em casos graves, levar morte. Apraxia refere-se incapacidade de executar movimentos apropriados a um determinado objetivo do corpo, desde que no haja paralisia ou outros distrbios corporais, sejam eles sensitivos ou motores. J a distonia focal, tambm conhecida como cimbra do escrivo, est relacionada mais ao ato de escrever, mas pode ser caracterizada por contraes musculares involuntrias desencadeadas por determinados movimentos manuais escrever, tocar piano, digitar, etc.

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impresses das mudanas perceptuais (tais como as sensaes referidas) e as mudanas na topografia cortical em pacientes, foi possvel comear a explorar como a atividade dos mapas sensoriais tem aumentado a experincia consciente. Finalmente, os membros fantasmas tambm ajudaram a explorar os efeitos intersensoriais e o modo como o crebro constri e atualiza a imagem do corpo ao longo da vida (Ramachandran & Rogers-Ramachandran, 2000, p. 317), sobretudo reforando e reiterando a teoria de que h no cortex cerebral um completo mapa corporal sem o qual, o sujeito no teria como reconhecer partes do seu corpo. Neste captulo, abordarei as principais teses de Ramachandran sobre a construo da imagem do corpo, da interioridade e do self (eu), a partir do fenmeno dos membros fantasmas, e daquilo que ele reforou como sendo a plasticidade neuronal.

1.1. Os primrdios dos membros fantasmas

Historicamente o fenmeno do membro fantasma conhecido desde a antiguidade, mas a primeira percepo deste, na literatura mdica, foi observada no sculo XVI pelo cirurgio francs Ambroise Pare, a partir da perda do brao direito de um combatente em guerra, levando a crer que a sensao do fantasma seria a prova mais do que definitiva da existncia da alma humana no nosso corpo pois, se um brao pode existir mesmo aps ter sido retirado, por que a pessoa inteira no poderia sobreviver aniquilao fsica do corpo? No seria esta a prova definitiva de que o "esprito" continuava existindo muito tempo aps de ter se livrado de sua carcaa? (Ramachandran, 2004; Ramachandran & Rogers-Ramachandran, 2000).

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Outra prova pde ser encontrada atravs dos relatos de Lord Nelson, que aps ter perdido um brao durante um ataque a Santa Cruz de Tenerife, experienciou dor no membro fantasma, incluindo uma estranha sensao de dedos tateando a palma da sua mo. A emergncia dessas sensaes levou o Lord Nelson a proclamar que ele tinha a prova direta da existncia da alma, pois, mais uma vez, se um brao pode resistir fisicamente sua aniquilao, porque no toda a pessoa? No obstante, a primeira descrio clnica do membro fantasma foi feita por Silas Weir Mitchell em um artigo Injuries of Nerves and Their Consequences em 1872. A palavra membro fantasma foi introduzida por Weir Mitchell ao verificar a experincia do membro perdido em alguns pacientes que tiveram uma extremidade amputada como ainda estando presente no corpo e, em alguns casos, tambm experienciaram dor ou cimbras6. O termo tambm usado para designar uma associao entre a posio perdida do membro e sua atual posio, tais como ocorre durante uma obstruo espinhal ou do plexo braquial7. importante notar que em todos esses casos os pacientes reconhecem que as sensaes no so verdicas, eles experimentam uma iluso e no um engano (Ramachandran & Hirstein, 1998, p. 1604). J em maro de 1887, portanto, quinze anos depois de Mitchell, William James tambm publicava um artigo cientfico intitulado The Consciousness of Lost Limbs no peridico Proceeding of the American Society for Psychical Research, reafirmando a demanda da existncia de membros fantasmas e fazendo algumas observaes e crticas ao trabalho de Weir Mitchell.A descoberta dos membros fantasmas, para Oliver Sacks, est diretamente relacionada com o campo da neurologia na virada do sculo enquanto cincia mdica. Segundo o autor, Weir Mithell registrou vrios episdios de membros fantasmas aps a Guerra Civil Norte-Americana durante a dcada de 1860, mas na virada do sculo, as descries dos membros fantasmas tornaram-se raras, visto que no havia lugar para esse fenmeno no campo da neurologia. Conforme Sacks (2003). 7 Conjunto de nervos que saem da medula espinhal e cujas razes do origem ao tronco superior, ou seja, so os nervos responsveis pelo movimento e sensibilidade das mos, dos braos e dos dedos.6

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Segundo James, as principais questes que se precisava pontuar era a de que (1) alguns pacientes preservam a conscincia do membro depois de t-lo perdido, outros no; (2) em alguns casos, a sensao sempre aparece em uma posio fixa, em outros, sua aparente posio muda e, por fim, (3), a posio pode mudar de acordo com algum esforo ou a prpria vontade do sujeito, mas em outros casos, nenhum esforo ou vontade pode fazer esta mudana; em rarssimos casos o desejo de mudar pareceria cada vez mais impossvel. Porm, a conscincia do membro perdido varia de acordo coma dor, picada, coceira, queimao, cimbra, preocupao, topor, etc., no calcanhar ou em outro lugar, sentidos que so duramente perceptveis, ou que se tornaram perceptveis apenas depois de se pensar sobre ele. O sentimento no est presente na condio do coto, e cotos saudveis e dolorosos podem estar presentes ou ausentes (James,1897, p. 250).

At mesmo Descartes em Os Princpios da Filosofia fizera referncia ao fenmeno, ressaltando o dualismo mente-corpo. De acordo com o autor, algumas vezes algumas doenas podem afetar o crebro fazendo-nos perder o sentido de algumas partes do corpo atravs da obstruo de um nervo que conecta o crebro ao corpo. Descartes chega at mesmo a fazer referncias, de acordo com Leder (1990), s sensaes de dor na mo e no brao de uma garota que tivera o membro amputado. Mas a neurologia s veio dar mais alguns passos adiante aps a dcada de 1930, sobretudo na Unio Sovitica, com os estudos de A. R. Lria, com a criao da neuropsicologia (Sacks, 1997, 2003) 8. No obstante, os estudos contemporneos dos membros fantasmas tm se dado sistematicamente desde os primeiros anos da dcada de 90 atravs de achados

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Oliver Sacks refere-se s pesquisas desenvolvidas por Luria e colaboradores atravs da investigao dos hemisfrios cerebrais, que resultou nos livros The man with a shattered world e Higher cortical functions in man, referidos por ele no seu livro O homem que confundiu sua mulher com um chapu (Sacks, 1997).

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cientficos

que

comprovam

mudanas

nos

mapas

somatpicos

do

crebro

(Ramachandran & Rogers-Ramachandran, 2000). Ora, a neurologia clnica tem sido uma cincia mais descritiva do que experimental. Ela caminhou alguns passos a mais aps os estudos desses fantasmas e pde corroborar (ou no) alguns pressupostos entre o dualismo mente-corpo/mentecrebro, reforados nos ltimos anos pelos estudos das neurocincias e pelas tcnicas de imageamento do crebro. Para tanto, o ponto bsico estava na investigao da relao entre a anatomia do crebro com vrias partes do corpo distribudos e mapeados no crtex cerebral, pelo grande revestimento convoluto da superfcie externa do crebro (Ramachandran & Blakeslee, 2004, p. 51). A ressurgncia dos estudos sobre os fantasmas no corpo ou membros fantasmas s vieram a tomar forma a partir dos experimentos laboratoriais os quais possibilitaram mostrar como os mapas sensrios motores poderiam mudar no crtex cerebral.

1.2. O fenmeno dos membros fantasmas

Um membro fantasma, como sabemos, surge aps a seco de um membro do corpo: pernas, ps, mos, braos, dedos, ou ainda rgos internos, e persistir na mente de um sujeito mesmo depois de removido, possivelmente porque a mente no aceita a perda de um desses membros, remodelando ou reconfigurando, estruturando ou reestruturando a imagem do corpo de acordo com uma nova realidade corporal,

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conformando assim, o que se chamamos de membros fantasmas9. Embora fantasmas sejam mais comumente relatados depois da amputao de um brao ou perna, tambm tem havido relatos na ocorrncia de extrao de uma mama, partes do rosto ou em vsceras. Por exemplo, algum pode ter sensao de movimento do intestino, de flatulncia depois de uma completa remoo do clum sigmide e reto, e ainda dores de lcera fantasma aps gastrectomia parcial (Ramachandran & Hirstein, 1998). Tambm tem sido notada erees ou orgasmos em pnis fantasmas tanto em paraplgicos quanto em pacientes que tiveram o membro removido cirurgicamente; ainda tem sido notado pacientes com clicas de menstruao fantasma depois da histerectomia (retirada do tero). Mas para estudar pessoas que dizem experimentar o membro fantasma, necessrio distinguir trs tipos diferentes de fantasmas: o primeiro a falsa experincia do fantasma neste caso, as pessoas tm conscincia de que o membro fantasma no existe e esto experimentando uma alucinao, como se o crebro pregasse uma pea na conscincia do paciente. A segunda a sensao do membro fantasma propriamente dito, mas os sujeitos no possuem domnio sobre ele o crebro no reconhece que a imagem corporal mudou e o membro tem autonomia sobre o corpo do sujeito, ou seja, o membro fantasma ganha vida prpria, pode segurar um objeto com as mos ou os dedos das mos, fazer gestos ou afagar um animal ou um ente querido. Por fim os fenmenos decorrentes do membro fantasma coceira, cimbra e, sobretudo, dor fantasma-, que torna a experincia quase que insuportvel para quem as sente.

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Um bom exemplo disso pode ser extrado da literatura, do livro Johnny vai guerra, no qual o personagem ttulo, aps sofrer um grave acidente no campo de batalha, perde os membros superiores e inferiores. Em seu drama, ele passa pela experincia dos membros fantasmas: "De repente fez uma coisa curiosa que h meses no fazia. Comeou a estender a mo direita para apanhar a coisa pesada que haviam pendurado nele e pareceu que quase a tinha agarrado com os dedos at que compreendeu que no tinha brao a esticar nem dedos para pegar" (Trumbo, 2003, p. 151).

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Tomo de exemplo o caso de Tom Sorenson, relatado por Ramachandran & Blackslee (2004) em seu livro Fantasmas no crebro. Tom um jovem de 17 anos, que perdera o brao esquerdo logo abaixo do cotovelo em um acidente de carro. Alguns meses depois, Tom ainda tinha a ntida sensao do brao, podendo mexer os dedos ausentes ou estender o brao ausente para pegar objetos ao alcance da mo, aes que no dependiam da vontade dele. De acordo com Ramachandran, a impresso de que o brao perdido ainda estava ali um exemplo clssico de membro fantasma um brao ou uma perna que subsiste indefinidamente na mente do paciente muito tempo depois de ter sido perdido num acidente ou amputado por um cirurgio (Ramachandran & Blakeslee, 2004, p. 48). Algum tempo depois, Tom passa a sentir dores no brao fantasma e este um dos mais srios problemas a ser tratado: como aliviar a dor de um membro que no existe? No seria este um momento para compreender como o crebro nega a falta do membro perdido persistindo na mente do indivduo? 10 Como isso ocorre? De acordo com Ramachandran, isto se daria de trs formas: na primeira, o crebro no aceita a perda do membro e leva algum tempo para adaptar-se nova imagem do corpo. Esta seria, portanto, uma prova de que a construo da imagem do corpo estaria de algum modo projetado no crtex cerebral. No segundo, os nervos seccionados na altura do coto (parte onde foi amputado o membro) passam a enviar sinais e alimentar sensorialmente o crebro atravs de impulsos. Essa idia defendida por muitos neurologistas, mas no por Ramachandran. Por fim, a

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Muitos outros relatos na literatura mdica reforam que as experincias do fantasma pode se dar no campo dos rgos do sentido (visual, auditivo ou olfativo). Porm, os fenmenos que mais chamam a ateno o fenmeno da dor fantasma provocada por movimento do membro ausente. Conforme Berlucchi & Aglioti (1997).

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imagem do corpo seria determinada atravs dos nossos genes que vo se moldando ao longo da vida, podendo ser modificado pela experincia pessoal e seria o responsvel pela sensao do fantasma. Ramachandran, desconfiando da segunda hiptese e aceitando esta ltima, passa a investigar os fenmenos dos membros fantasmas buscando uma correlao direta com a construo da imagem do corpo no crebro. Para tanto, o autor vai retomar a representao da imagem e superfcie do corpo no crtex cerebral humano a partir das descobertas de Wilder Penfield, que cunhou e denominou o termo homnculo de Penfield (figura 1).

Figura 1: Homnculo de Penfield

O homnculo de Penfield uma representao artstica de como diferentes pontos da superfcie do corpo esto mapeados nos dois hemisfrios do crebro, algumas vezes, atravs de traos deformados para indicar que tais partes do corpo tm localizao especfica em alguma das regies. A idia que o crebro corresponde a um

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mapa genrico de vrias partes do nosso corpo sendo o homnculo, portanto, um mapa neural, desafiando as bases materialistas da cincia. O mapa cerebral representado pelo homnculo reflete a capacidade que o crebro possui de discriminao sensorial e sua importncia motriz referente a cada uma das partes de nosso corpo visto que ele est distribudo ao longo de todo o crtex cerebral nos dois hemisfrios. A ocorrncia de um membro fantasma ilustra portanto, a capacidade do crebro de perceber, agir e gerenciar cognitivamente a imagem do corpo, visto que ele uma mquina sensriomotora, ou seja, possui a funo de discernir os estmulos das respostas, de decidir, tomar decises e etc., cuja representao corporal se prolonga por toda a sua superfcie em ambos os hemisfrios.11 De acordo com Ramachandran (1994, 1998, 2004), o mapa foi construdo a partir de experimentos feitos com seres humanos durante cirurgias realizadas pelo canadense Wilder Penfield. Nessas cirurgias o crebro de alguns sujeitos fica exposto sob anestesia local e determinadas regies do crebro eram estimuladas por Penfield com um eletrodo que lhes perguntava o que sentiam. O resultado era a produo de imagens, sensaes corpreas ou lembranas e memrias. A partir disto, vrias reas do crebro puderam ser correlacionadas com partes do corpo. interessante notar que diferentes reas do corpo representadas no Homnculo de Penfield esto muitos prximas uma das outras, muito embora elas correspondam a superfcies diametralmente opostas ao corpo humano. Assim, o tronco11

Recentes avanos feitos por neuroimageamento do crebro MEG (magnetoencefalograma) tem sido possvel com o advento da grande formao de magnmetros e com a compreenso da fsica e da matemtica das medidas da atividade eltrico-cortical. Esses avanos tm seguido por uma pequena localizao de menos de 3mm de processamento, e tem se obtido um detalhoso mapa sensrio-somtico dos mapas das mos, face, e de muitas outras partes do corpo. Ele se baseia no princpio de que, se voc tocar diferentes partes do corpo, a atividade eltrica localizada no mapa de Penfield pode ser medida como mudana em campos magnticos do couro cabeludo. Com o MEG possvel mapear toda a superfcie do crebro de qualquer pessoa e h poucas variaes de pessoa para pessoa (Ramachandran & Blakeslee, 2004, p. 98).

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encontra-se prximo mo e ao polegar, que por sua vez encontra-se prximo rea da face, seguido da rea dos dentes, lngua, faringe e do abdmen, do mesmo modo como o p encontra-se prximo aos rgos genitais, ao passo que os lbios e a face encontramse prximas s reas dos dedos da mo no hemisfrio direito do crebro. Tomemos um exemplo: o caso conhecido pela maioria dos comentadores de Ramachandran. Um de seus pacientes relatou a presena de um membro fantasma em sua perna esquerda, relatando que, a cada experincia sexual, sentia erees e orgasmos no p fantasma. De acordo com a correspondncia do Homnculo de Penfield, a regio da sexualidade fica prxima regio da mo representada no crebro, o que levou a Ramachandran confirmar suas hipteses de que, haveria um remapeamento no crebro de determinadas partes do corpo. "Se uma pessoa perde uma perna e depois estimulado os rgos sexuais, experimentar sensaes na perna fantasma" (Ramachandran, 2004, p. 64). De acordo com Ramachandran, caberia perguntar se essa no deveria ser a prova mais do que irrefutvel da qual pontuou a psicanlise desde Freud, da existncia dos fetiches por ps? Pode-se notar aqui uma correlao direta feita pelo neurologista entre o crebro e as bases neurolgicas da subjetividade. Por outro lado, a discusso de Freud acerca sobre o fetichismo e particularmente o fetichismo pelo p como substituto do pnis passa ao largo das consideraes feitas por Ramachandran. Para maiores consideraes sobre o tema, remeto o leitor a Freud (1927) A no correspondncia linear dos membros do corpo humano encontrados no mapa cortical identificado por Penfield chama a nossa ateno pelas concluses do neurologista indiano. Na verdade sua preocupao demonstrar as bases neurolgicas da imagem corporal no crebro humano para compreender a nossa subjetividade.

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Apoiado em pesquisas e estudos neurolgicos e clnicos, ele defende a hiptese de que nossa subjetividade pautada numa construo da imagem do corpo atravs de mapas sensriomotores no crtex cerebral, conforme demonstrado pelo homnculo, ou em bases genticas determinados hereditariamente. De que maneira isso ocorre? Ora, de acordo com o autor, um membro fantasma possvel ser percebido instantes depois da perda do membro. Relatos mdicos demonstram que entre 90 e 98% das pessoas vivenciam o membro fantasma aps a perda de alguma parte do corpo, principalmente se houver dor local antes da cirurgia ou se a perda se der de modo traumtico. Os fantasmas so vistos com menos incidncia em crianas muitos novas. Talvez porque elas ainda no tenham construdo totalmente uma imagem concreta do corpo. Da, portanto Simmel (1962) relatar que os membros fantasmas foram encontrados na ordem de 20% em crianas amputadas com dois anos de idade, em 25% de crianas entre a 4 anos e em 61% em crianas entre os 4 a 6 anos de idade, e em 75% em crianas entre 6 e 8 anos de idade, e em 100% com crianas acima dos 8 anos de idade. No obstante, de acordo com Ramachandran, membros fantasmas podem ser encontrados ainda em pessoas que nasceram sem membros. "A ocorrncia de fantasmas em pessoas que nasceram sem membros obviamente no pode ser devido a um neuroma, e sugere que a representao central do membro sobrevive depois da amputao e grandemente responsvel pela iluso do fantasma" (Ramachandran, 1998, p. 1604). O exemplo referido pelo autor, atravs de uma de suas pacientes, ilustra algumas de suas hipteses: Mirabelle Kumar indiana, tem 25 anos e nascera sem

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braos. Possui apenas dois cotos pendentes na altura dos ombros cuja anlise radiogrfica demonstrou que eles continham a cabea do mero ou osso da parte posterior do brao, mas no havia sinais do osso rdio ou ulna (osso que forma o antebrao). No obstante, Mirabelle possua sinais rudimentares de unhas, mas no havia sinais de ossos da mo. Apesar dela usar prteses para os braos menores do que a maioria dos pacientes, ela dizia sentir seus braos fantasmas. As prteses dos braos eram menores do que o necessrio, segundo ela, porque seus braos fantasmas precisavam se ajustar perfeitamente na prtese, como se fossem luvas. Ao caminhar, a paciente referiu no balanar os braos como a maioria das pessoas, pois seus braos fantasmas ficavam congelados e junto ao corpo, porm, ao falar, eles gesticulavam como os braos de qualquer outra pessoa12. Para Ramachandran, seria fcil explicar porque isso aconteceria, caso a paciente houvesse perdido os braos depois da infncia, visto que o crebro dela teria registrado os movimentos da coordenao do corpo e movimento dos braos, dado que existiria um feedback dos sinais motores para o crebro. Mas no caso de Mirabelle, as reas sensoriais nunca receberam esse feedback. Em sua concepo, membros fantasmas nascem de uma complexa interao entre fatores no-genticos como remapeamento ou neuromas no coto, e a representao da imagem corporal congnita

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Antnio Damsio tambm se refere reduo dos membros fantasmas ao longo do tempo. Segundo ele, alguns indivduos que sofrem a amputao do membro e sentem o fantasma, relatam que o tamanho do membro varia com o tempo. De acordo com Damsio, essa sensao de reduo do membro fantasma est intimamente ligada memria do membro perdido. obvio que esses doentes possuem uma memria do seu membro, ou no seriam capazes de formar uma imagem dele em suas mentes. No entanto, com o tempo, alguns doentes podem experienciar uma reduo do membro fantasma, o que, aparentemente indica que a memria ou sua reproduo na conscincia passvel de reviso (DAMSIO, 1996, p. 141).

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geneticamente especificada para os seres humanos, cuja interao entre a imagem do corpo e a viso de vital importncia13. Atentem para este detalhe: em um momento, a imagem corporal explicada pela localizao de um mapa corporal no crebro; em um segundo momento, Ramachandran aponta um feedback visual das reas sensoriais enviadas para o crebro e deste, para o membro amputado; no momento seguinte ele afirma a necessidade da viso para o reconhecimento da imagem corporal. Ao afirmar que o conjunto de circuitos nervosos para a imagem corporal de uma paciente devia ter sido estabelecido parcialmente pelos seus genes e no ser estritamente dependente da experincia motora ou ttil ou ainda pela experincia adquirida, ele revela o quo dependente estaria de um certo fisicalismo ao afirmar que cada um de ns tem uma imagem que pode sobreviver indefinidamente, mesmo em face de informaes contraditrias dos sentidos" (Ramachandran & Blakeslee, 2004, p. 72), ou seja, se a sensao do fantasma existe em algum que nascera sem os membros, algum fator determinante deveria existir. Segundo o autor, os membros nascemGallagher (et all.) (1998) aponta para a hiptese gentica de Ramachandran ao investigar a presena de membros fantasmas em crianas recm nascidas. Para eles, um grande nmero de estudos tem sugerido a existncia de membros fantasmas em sujeitos que sofreram ausncia congnita de membros, evidenciados pelo esquema corporal inato. Os fantasmas aplsicos (aplasic phanton), isto , a presena de membros fantasmas desde o nascimento, foi encontrada em 17% em 30 casos estudados e indica um dos aspectos do esquema e da imagem corporal. H duas hipteses para a ocorrncia desses fantasmas: a primeira diz que os fantasmas aplsicos so baseados na existncia de um circuito neural especfico associado com esquemas motores inatos aos membros, como a matriz neural (neuromatrix). A segunda defende a idia de que os fantasmas aplsicos so modificados por um mecanismo que envolve a reorganizao de representaes neurais do membro perdido com uma complexa rede envolvendo estruturas corticais e subcorticais, as quais Ramachandran denominou de plasticidade neural ou cortical. De acordo com os autores se na aplasia, o prprio brao no se desenvolve, as representaes correspondentes ao desenvolvimento neural no so reforadas pelo movimento ou pela experincia ttil que eles necessitam para o seu desenvolvimento normal e completo. Na falta de um reforo experimental, eles deterioram em alguns graus e so deslocados ou dominados por neurnios vizinhos, estmulos que podem gerar a experincia do membro fantasma. [...] A primeira hiptese faz referncia s representaes neurais e a rede nos crtexes pr-frontal, pr-motor e motores, tanto quanto em estruturas sub-corticais, e indica um esquema motor inato [grifos nossos]. Isso explica o papel de esquemas motores especficos (...) na formao do membro-fantasma. (...) A segunda hiptese, que faz referncia reorganizao neural, expressa mais drasticamente as mudanas no crtex somatosensorial, mas provavelmente uma parte dela ou envolve a mais estendida matriz neural, correspondente aos aspectos da experincia fantasma associada com a imagem do corpo (Gallagher, et all., 1998, p. 59-63).13

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principalmente de fatores no-genticos, atravs do remapeamento da imagem corporal e interagindo diretamente no espectro da imagem corporal atravs dos genes, mas fundamenta, ainda que muito rapidamente, a necessidade da viso para que essa interao entre as bases genticas da imagem do corpo se cristalize no crebro. Para Ramachandran no basta apenas uma base gentica na construo da imagem do corpo, ainda h a necessidade de um dispositivo que dispare e predisponha os genes para agir: o campo visual. Mas, se assim o fosse, como reconhecer que este ou aquele membro um brao, uma perna, um dedo da mo ou do p? Haveria ento, uma codificao gentica do nosso corpo encerrado em nosso crebro, formatada tal qual um disco rgido, para que passssemos a dizer que tal e qual parte do corpo um brao ou uma perna seno pelo reconhecimento do nosso corpo atravs da linguagem? E quem seria o responsvel por nos fazer reconhecer nosso corpo? Nossos genes? Nossos neurnios? Nosso crebro? Caminhemos um pouco mais: o autor, atravs do exemplo de Mirabelle, nos diz que ela no poderia ter construdo as imagens dos seus braos no crebro desde a infncia porque ela no havia vivido a experincia de ter braos, portanto, haveria apenas uma proviso visual para que essas referncias passassem a existir. O neurologista, porm, no caminha a passos largos, e deixa de investigar, por exemplos, outros pacientes que nasceram sem braos e ao mesmo tempo no teria a viso como rea de registro da imagem corporal. 14

No encontrei, na literatura pesquisada, nenhum dado referente a pacientes com deficincia visual e com membros fantasmas nem desde o nascimento, nem que tenham perdido algum membro aps a perda da viso. Se a incidncia de membros fantasmas fosse a mesma em pacientes cegos, caberia questionar se no haveria de fato uma correlao direta entre uma base gentica da percepo do membro fantasma e a construo da imagem do corpo. Em nenhum momento, Ramachandran questiona a aquisio do membro fantasmas atravs da interao com o meio em pacientes que nasceram sem membros.

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Para estas e outras questes, Ramachandran afirma haver uma espcie de plasticidade neuronal, plasticidade cortical ou ainda plasticidade neural no crebro, de modo que este pode se readaptar s mudanas sofridas pela imagem do prprio corpo, dado a maleabilidade que o crebro possui em se reorganizar (Ramachandran & Rogers-Ramachandran, 2000; Ramachandran & Hirstein, 1998; Ramachandran et all., 1996; Ramachandran, 1994; Northoff, 2001; Xerri, 2003). Essa tese defendida por outros autores, os quais afirmam que a representao cortical do membro sofre alterao aps a amputao de modo que o crebro aprende a lidar com a nova imagem do corpo devido a uma reorganizao da rede neuronal15. Notem que esse padro de mudanas perceptivas da imagem do corpo segue a linha de pensamento de Ramachandran quando este retoma o mapa de Penfield para demonstrar os rearranjos neuronais ou corticais com a imagem do corpo (Northoff, 2001; Knecht et all., 1998; Melzack, 1989; Lackner, 1988; Xerri, 2003). Quando algum perde uma perna, uma mo ou um brao, as mensagens do crtex motor na parte frontal do crebro continuam a enviar sinais para os msculos do membro ausente. Posteriormente, uma parte do crebro que controla os movimentos no sabe que o membro se foi. Muito provavelmente esses comandos do movimento

Paqueron (2003) e colaboradores tambm investigaram a capacidade que o crebro tem de se readaptar s mudanas no corpo a partir do evento dos membros fantasmas. Para eles, pacientes com leses no nervo perifrico ou no cordo espinhal (spinal cord) freqentemente relatam distores relativas posio, forma, textura ou temperatura do corpo das reas afetadas. Seu estudo sobre a fenomenologia das distores da imagem do corpo induzida por anestesia regional mostrou que a percepo e conscincia da imagem do corpo construda por diferentes modelos plsticos na tentativa do crebro em se readaptar s mudanas ocorridas no corpo, assim como sublinhou a contribuio da atividade aferente perifrica para sustentar e unificar a imagem do corpo. Graziano (1999) procurou investigar o papel da viso e da propriocepo na representao neuronal do membro perdido demonstrando como a posio do brao representada no crebro na regio do crtex pr-motor de macacos atravs da estimulao da convergncia visual e proprioceptiva em alguns neurnios de seus crebros, provando que os neurnios responderam positivamente quando foram estimulados juntamente com o campo visual no crebro de macacos. Berlucchi & Aglioti (1997), por sua vez, j haviam ressaltado a importncia da viso em consonncia com o esquema corporal em paciente que perderam algum membro do corpo. Por fim, Pavani (2000) e colaboradores buscaram demonstrar como o campo visual necessrio na localizao ttil do corpo.

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so simultaneamente monitorados pelos lobos parietais que afetam a imagem do corpo. Em pessoas normais, mensagens do lobo frontal so enviadas em conjunto ou atravs do cerebelo para o lobo parietal, que monitora os comandos e simultaneamente recebem o feedback do membro sobre a sua posio e velocidade do movimento. No caso do membro ausente, no h feedback do membro fantasma, claro, mas a monitorao dos comandos motores pode continuar a ocorrer no lobo parietal, e assim o paciente tem a vvida sensao de movimento do membro fantasma (Ramachandran, 1996, p. 30). importante que se diga que o crebro demora a reconhecer que houve a perda de uma parte do corpo, e na tentativa de se readaptar, passa a organizar uma nova imagem corporal (Ramachandran et all., 1996). Alguns rearranjos cerebrais, corticais ou neuronais se do logo em seguida amputao do membro, trazendo como conseqncia uma readaptao do crebro a uma nova imagem do corpo conforme pode ser observado na figura 2. Nesta, podemos observar mudanas na topografia cortical revelada por magnetoencefalografia (MEG), atravs de uma viso superior da rea do crebro combinando magnetoencefalografia e imagem por ressonncia magntica na superfcie em 3D de um adulto cujo brao esquerdo foi amputado abaixo do cotovelo. A cor vermelha (no canto esquerdo) indica a rea da face; direita, a cor verde indica a rea da mo e em azul ( esquerda, prximo rea do rosto) e ao centro, observa-se a rea correspondente ao brao superior. Notem que a rea da mo (em verde) est faltando no hemisfrio direito e est sendo ativada agora pelo imput sensorial da regio do rosto e do antebrao (Ramachandran, 2000). Os achados so reforados, sobretudo, pelas novas tcnicas de imageamento cerebral tal como apontado por suas recentes descobertas nesta ltima dcada

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(Ramachandran & Hirstein, 1998; Ramachandran & Rogers-Ramachandran, 2000; Ramachandran, 2003). Nesse sentido, os estudos sobre os membros fantasmas desenvolvidos pelo neurologista e seus colaboradores, demonstraram a plasticidade neural nos crebros de adultos humanos atravs de mudanas perceptuais na sua topografia, alm de apresentar efeitos intersensoriais, demonstrando o modo como o crebro constri e atualiza a imagem do corpo na sua rede neuronal. Esses achados, mais uma vez, esto muito prximos do mapa do corpo organizado tal como mostra o homnculo de Penfield. Esse rearranjo neuronal faz com que se possa perceber o correlato do membro perdido em outras reas do corpo prximas s reas correspondentes ao membro perdido. Por exemplo, ao se amputar um brao, o rearranjo neuroral das reas do crebro podem migrar para reas prximas, tal como o rosto. No caso do paciente cujo p foi amputado, as reas correspondentes mais prximas da regio do p correspondia rea da regio genital, o que fez com que o referido paciente passasse a sentir ereo e orgasmo pelo p fantasma.

FIGURA 2: Mudanas na topografia cortical do crebro em um paciente cujo brao esquerdo foi amputado, revelada por magnetoencefalografia e

ressonncia magntica.

Para provar sua hiptese, Ramachandran acompanhou 18 pacientes com amputao do brao. Destes, 8 referiram encontrar sensaes semelhantes no brao

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perdido em reas anlogas face, alm de ter um mapa topograficamente organizado da mo na regio posterior da face. Esse mapa permaneceu estvel durante os exames feito pelos pesquisadores havendo poucas mudanas no decurso de seis meses. Em um desses pacientes (V. Q.) as mudanas na topografia cortical foram analisadas atravs de magnetoencefalografia e ressonncia magntica em 3D. O paciente V. Q. uma vez teve seu brao esquerdo amputado, as reas correspondentes da imagem do corpo para o brao migraram para a rea correspondente face. A partir do Mapa de Penfield, foi possvel verificar quais reas correspondiam ao brao, mo e dedos (figura 3). Este remapeamento da imagem do corpo pode ocorrer at mesmo horas depois da amputao. Notem que as regies do lado esquerdo do rosto de V.Q. eliciou precisamente as sensaes referidas nos dedos fantasmas 4 semanas aps sua amputao. A regio marcada com T sempre evocou sensaes no polegar fantasma. A letra P, no lbio inferior, indica o dedo mnimo; I, no lbio superior, refere-se aos dedos indicadores, e B, entre o olho e a orelha direita, refere-se ponta do polegar (Ramachandran, 1994, 1998, 2000).

Figura 3: Paciente V. Q.

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Para Ramachandran, a imagem do corpo um fantasma construdo pelo crebro para sua utilidade e convenincia (Ramachandran & Armel, 2003, p. 23-1). Mostrarei agora, como essa hiptese pde ser testada, a partir de dois experimentos: o primeiro, realizado atravs de uma caixa de espelho, e o segundo, feito com uma mo de borracha. Esses experimentos, segundo o pesquisador, reveleram a importncia do campo visual na formao da imagem corporal no crebro.

1.3. Enganando o crebro

A fim de tratar a dor presente em alguns pacientes com membros fantasmas, Ramachandran e colaboradores idealizaram um tratamento atravs de uma caixa de espelhos (figura 4). A caixa de espelho nada mais do que uma caixa feita em madeira, com abertura para duas mos, sendo que um espelho colocado verticalmente entre as duas aberturas. O paciente que apresenta dor na mo fantasma, incitado a colocar o brao e a mo dentro da caixa e posicionar a mo ausente na mesma posio que a outra. A partir de ento, atravs do reflexo da mo no espelho, cria-se a iluso de que a mo amputada est presente (Ramachandran, 1994, 1996, 1998, 2000, 2003, 2004). Muitos pacientes que se submeteram caixa de espelho tinham queixa de dor-fantasma no membro ausente. Aps algumas sesses de iluso de tica, eles referiram ao desaparecimento das dores. O experimento pde ser refeito semanas mais tarde com os olhos fechados, de modo a haver um controle daqueles pacientes que experimentaram dor fantasma. O efeito telescpico um conhecido fenmeno clnico que produz uma mudana na imagem do corpo a partir de uma iluso de tica. As

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evidncias desse experimento, de acordo com Ramachandran, sugerem que ao ser apresentado ao lobo parietal direito um conjunto de sinais em conflito, desde sinais visuais mostrando que um brao ou mo ou msculos esto se movendo quando o brao j no mais existe, o crebro simplesmente nega o envio desses sinais e tenta solucionar a confuso, eliminando a sensao da dor ou do membro fantasma, demonstrando assim a importncia do campo visual na sensao do fantasma, do mesmo modo como a possibilidade de elimin-lo atravs de uma iluso de tica.

Figura 4: A Caixa de espelhos.

Os experimentos com sensaes referentes em membros fantasmas, segundo o neurologista, so importantes por duas razes: primeiro eles sugerem, ao contrrio da figura esttica dos mapas cerebrais dados por neuroanatomistas, que a topografia do crebro extremamente susceptvel. Mesmo em crebros adultos, a reorganizao massiva pode ocorrer em perodos de tempo muito curto e as sensaes referentes podem ser usadas como um marcador (marker) para a plasticidade em crebros adultos. Segundo, os resultados permitem relacionar a qualia perceptual (perceptual qualia - sensaes subjetivas) para a atividade de mapas cerebrais e testar algumas das

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suposies mais amplamente aceitas na psicologia sensorial e na neurofisiologia e compreender como atividade neural conduz a experincia consciente do sujeito (Ramachandran & Rogers-Ramachandran, 2000). A experincia com espelhos apresenta ainda trs implicaes: primeiro, os espelhos podem ser clinicamente teis em aliviar posturas anormais e espasmos no membro fantasma. Segundo, sugere que o modelo hierrquico do crebro popularizado por engenheiros de computador precisa ser substitudo por uma viso mais dinmica do crebro em que h uma grande quantidade de interaes entre diferentes mdulos do crebro. Terceiro, a ressurreio de um fantasma em alguns pacientes, e sua "amputao" em outros, sugere que a imagem do corpo, apesar de toda aparente durabilidade, na verdade um construto interno transitrio, uma mera concha que nosso crebro cria temporariamente para nossos genes (Ramachandran Ramachandran, 2000). O segundo experimento feito refere-se capacidade que temos de adicionar imagem do nosso corpo um objeto externo, produzindo uma segunda iluso no crebro. A que ele se refere? Um sujeito leigo colocado diante de uma mo de borracha correspondente sua mo verdadeira. Uma divisria colocada entre a mo real e a mo falsa, de modo que o sujeito tem a viso da mo verdadeira encoberta. A partir de ento, o experimentador aplica uma srie de batidas leves na mo falsa e na mo verdadeira em perfeita sincronia. Logo, o sujeito passa a sentir a iluso de que as sensaes de toque so sentidas na localizao espacial da mo postia como sendo dele e no na mo real. Em um segundo momento, a mo real escondida tal qual no experimento anterior, entretanto, antes de usar a mo postia os experimentadores e Rogers-

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acariciam e do tapas na mesa em precisa sincronia por alguns minutos na mo real. Para a surpresa deles, os sujeitos relataram sentirem freqentemente sensaes surgidas na superfcie da mesa como sendo deles, independente da semelhana da mo postia com a mo real. Os autores interpretaram esses experimentos como a tolerncia cerebral para a discrepncia entre a viso e a propriocepo, no primeiro experimento, e no segundo, a extraordinria habilidade do crebro de detectar correlaes estatsticas nos imputs sensoriais ao construir uma til representao perceptiva do mundo, incluindo-se a, as partes do corpo (Ramachandran & Armel, 2003). A partir desses experimentos, buscou-se compreender em que sentido o sujeito realmente incorpora a mesa ou a mo postia sua imagem corporal, quais os limites dessa habilidade, qual o grau de tolerncia dessa incorporao de um objeto externo imagem do corpo e finalmente se a distncia entre o objeto externo e o corpo tem validade na construo da imagem do corpo16. Diante desses experimentos, os neurologistas criaram um novo, a fim de medir a inteno em que os sujeitos incorporam objetos externos sua imagem corporal, cujas respostas foram gravadas atravs de um condutor de respostas da pele (SCR skin conductance response), uma medida fisiolgica de estmulo psicolgico e autnomo17, com o objetivo de testar se a mesa havia se tornado parte da imagem corporal dos sujeitos ou se os sujeitos estavam simplesmente sendo metafricos ou16

Ver tambm o experimento semelhante descrito por Pavani e colaboradores (2000) acerca da captura visual do toque na experincia do corpo. 17 O condutor de respostas da pele um aparelho que possibilita medir e registrar a resposta de condutividade drmica sem qualquer dor ou mal-estar para o indivduo, atravs do uso de eletrodos ligados pele e a um polgrafo. O funcionamento do aparelho se d atravs da medio da alterao do organismo aps uma determinada resposta de ao ou pensamento, registrando o estado somtico correspondente. Neste caso, o sistema nervoso autnomo aumenta sutilmente a secreo das glndulas sudorparas em uma quantidade to pequena que nos impossvel enxergar a olho nu ou atravs dos sensores neurais da pele, porm, a mudana no estado do corpo suficiente para reduzir a resistncia da passagem da corrente eltrica disposta pelos eletrodos. A resposta de condutividade drmica consiste, portanto, numa alterao da quantidade de corrente eltrica conduzida e registrada atravs do aparelho (Damsio, 1996, p. 239).

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respondendo s tarefas demandadas quando eles relatavam a mesa ou a falsa mo como sendo deles mesmos. Se os objetos externos se tornaram integrados sua imagem corporal, eles poderiam ser estimulados quando a mesa ou a falsa mo fosse de algum modo danificada, do mesmo modo que a antecipao do dano corporal de si mesmos produzia estmulo? Variaes nas condies de controle foram usadas para testar se esse estmulo podia ser atribudo meramente a condies associativas. Um grupo de estudantes de graduao da Universidade da Califrnia em San Diego, sendo 16 participantes do experimento 1 e 24 no experimento 2 e 3, entre 18 e 23 anos responderam as questes pontuadas pelos experimentadores. No experimento um, objetivava-se saber se um dedo de uma mo postia fosse curvado para trs para parecer doloroso, o sujeito registraria uma SRC, ou seja, em que extenso a mo assimilada pela imagem corporal do sujeito? O SRC foi gravado e aps descrio da resposta livre da experincia o escore da intensidade da iluso foi obtida (figura 5-a). No segundo experimento, objetivava-se saber se os sujeitos poderiam experienciar a mesma iluso se a forma do objeto externo fosse mudado. Nesse caso, uma mesa foi tocada e batida de modo anlogo localizao da mo real (figura 5-b) No terceiro e ltimo experimento, objetivou-se verificar se os sujeitos poderiam experienciar a iluso se a localizao e extenso do objeto externo fosse manipulado. Assim, cada sujeito viu o toque para a falsa mo na localizao real em uma condio e ento para uma distncia falsa em outra (figura 5-c). O falso brao foi estendido quase um metro alm da mo real. Na distante mo manipulada, um falso dedo foi torcido para o estmulo doloroso como na experincia 1. A antecipao da dor, produz estmulos no sistema nervoso autnomo, por isso a necessidade de medir SCR,

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para verificar se eles no estavam sendo metafricos ou respondendo apenas s questes (Ramachandran & Armel, 2003).

FIGURA 5: As condies de manipulao vistas do alto. E = experimentador; S = sujeito; P = partio; FH falsa mo (fake hand); SCR = eletrodos de condutor de respostas da pele (skin conductance response). A, B e C referem-se aos trs experimentos.

Os resultados dos experimentos e das anlises de SRC (que no pode ser controlado por vontade prpria) fizeram os pesquisadores constatarem que a imagem do corpo pode ser fcil e profundamente modificada; no s a falsa mo foi assimilada pelos sujeitos, mas tambm a mesa foi percebida como fazendo parte do corpo do sujeito nesse experimento; e por fim, que o dedo torcido da falsa mo sugere que a informao visual afeta a imagem do corpo.18

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A idia de que a viso necessria para o auto-reconhecimento da imagem do corpo tem sido explorada atravs de estudos empricos tais como o realizado por Knoblich (2002). Para este autor, a viso necessria para o reconhecimento de partes visveis do corpo (mos, braos, pernas, ps, etc.), pois recebem todo o tempo estmulos proprioceptivos e tteis e so continuamente influenciados pelo campo visual. A necessidade da viso na construo da imagem de partes do corpo pode, inclusive, ser notado em bebs com poucos meses de vida. Ver tambm Ramachandran & Gregory (1991).

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Ramachandran enftico ao interpretar esses dados como sendo definitivos na construo da imagem do corpo e na plasticidade do crebro em adaptar-se s mudanas da imagem corporal:Tomado coletivamente, nossos experimentos sugerem que a assim chamada imagem do corpo, apesar de toda a sua aparncia, durabilidade e permanncia, um construto interno transitrio uma concha transitria que pode ser profundamente alterado por estmulos contingenciais e correlaes que algum encontra. Alm disso, para demonstrar a maleabilidade da imagem do corpo, essa simples ilustrao tambm mostra um importante princpio bsico da percepo: que o mecanismo da percepo pode estar envolvido em uma extrao de correlaes estatsticas do mundo para criar um modelo que temporariamente til. possvel que outras investigaes dentro da maleabilidade da imagem do corpo nos ajude a entender outro fenmeno, tais como a disfuno corporal dismrfica e a anorexia nervosa. Entender como ns identificamos com o objeto externo pode tambm nos dar idias sobre a base neural da empatia (Ramachandran & Armel, 2003, p. 1454).

Ora, o autor sustenta todos os seus experimentos atravs de bases neurolgicas da construo da imagem do corpo, no levando em conta que o corpo no pode ser entendido como sendo um crebro na cuba. Ele est em estreita relao com o mundo e como tal, ele est em constante troca de informaes somatosensitivas, fenomenolgicas e cognitivas. No agimos sozinho no mundo. Captamos dele informaes necessrias para construo da nossa imagem corporal. Agimos no mundo e somos o tempo todo influenciado por ele e pelos nossos pares. No nego as provas empricas de que o crebro possui um mapa do corpo formado na sua superfcie, mas da a pensar que esse mapa possa ser construdo a partir de bases genticas, no leva em conta todas as capacidades cognitivas pelas quais a psicologia e a psiquiatria incansavelmente chamaram a ateno, portanto, a construo corporal de um brao ou uma perna j esto dados no disco rgido cerebral, parece carecer de outras argumentaes que no condiz com seus estudos. O que Ramachandra no se deixou ver que o reconhecimento da totalidade do nosso corpo se d (no s, mas tambm) atravs do reconhecimento do mesmo por outro sujeito. Esse corpo no est s no meio externo. Ele participa de toda uma

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proviso para agir no mundo e por este afetado. O campo visual notadamente tambm participa do reconhecimento desse corpo, no s pelo prprio sujeito, mas por outros sujeitos que encontramos. Por exemplo, como saber se uma perna ou um brao uma perna e um brao e no um galho de rvore ou uma perna de mesa ou cadeira? O que faz com que saibamos que nosso corpo nos pertence, a no ser atravs da aprendizagem cognitiva e lingstica da coisa em si? Como ter a certeza que o meu corpo , de fato, o meu corpo e no o corpo do sujeito B ou C? Como saber se minha perna, de fato, minha perna, e no a perna da mesa, a perna da cadeira, a perna de todos os jogadores de futebol? Wittgenstein (1999) em sua ltima obra intitulada Da certeza, fundamenta a certeza do corpo numa nica questo: a ao. Para Wittgenstein, como saber se uma perna de fato minha perna? Responde Wittgenstein: levante a perna, ou chute uma bola, uma parede ou a perna de algum, ou seja, haja com o seu corpo no mundo! Ou ento, descreva o objeto em questo com a maior quantidade de substantivos ou adjetivos possveis, considere sua mo ou sua perna ou o seu p no maior nmero possvel dos jogos de linguagem. Ora, nosso crebro no nasce formatado como um disco rgido, ou seja, com a informao da imagem do nosso corpo como algo dado, inato, pronto, porque para tanto, ele precisa desenvolver toda a cadeia lingstica que far com que essas imagens possam ser representadas no nosso crebro. Isto porque, assim como Ramachandran defende que a construo da imagem do corpo no apenas uma construo interior e transitria, muitas disfunes e patologias da imagem do corpo podem ser compreendidas a partir de uma construo perversa, tal como formulada por Costa (2004b).

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Mas uma coisa a imagem do corpo, e outra a sua representao no crebro, assim como h de se diferenciar a ao do corpo e a representao desta ao com suas capacidades somatosensitivas. Dizer que o crebro nasce com certas disposies inatas e geneticamente pr-determinadas para conhecer e reconhecer imagens do nosso corpo, em primeiro lugar, esquecer, por exemplo, que o corpo no age sozinho no mundo, mas que ele encontra-se no mundo com "presteza para agir" (Todes, 2001). Sua representao se d atravs de todos os dispositivos mentalistas que faz com que reconheamos a ns mesmos como agentes no mundo. Dizer isso significa que necessrio "um outro" para que nos reconhecermos como um "eu" no mundo; um eu que pode tambm ser compreendido como sendo o mais prximo do que Dennett (1986) denominou um centro de gravidade narrativa. Em segundo lugar, tambm esquecer, conforme afirma Costa (2004a, 2004b), que a imagem do corpo formada unicamente por imagens e narrativas de si, possuindo uma intencionalidade, uma privacidade e uma representacionalidade. Portanto, a imagem do corpo necessita se situar intencionalmente no tempo e no espao, no podendo ser uma criao nem inata, nem gentica, pois, conforme tambm afirma Bergson (1990, p. 10-11)" o crebro que faz parte do mundo material, e no o mundo material que faz parte do crebro. Suprima a imagem que leva o nome de mundo material, voc aniquilar de uma s vez o crebro e o estmulo cerebral que fazem parte dele. (...) Fazer do crebro a condio de imagem total verdadeiramente contradizer a si mesmo, j que o crebro, por hiptese, uma parte dessa imagem".

A neurologia no a nica a defender que a construo da imagem do corpo se d nica e exclusivamente na superfcie do crebro. Outras noes e teorias tm surgido para dar conta da relao mente/corpo/crebro/mundo, no prprio campo da

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neurologia, somado a um aporte de alguns conceitos da fenomenologia, tal como formulado por Oliver Sacks. Vejamos suas consideraes.

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CAPTULO 2 SACKS E A NEUROLOGIA DA IDENTIDADEO corpo o veculo do ser no mundo, e ter um corpo , para um ser vivo, juntar-se a um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se continuamente neles. Merleau-Ponty Fenomenologia da Percepo

A neurologia foi uma das cincias que mais se desenvolveu nos ltimos tempos, sobretudo aps os avanos das tecnologias do imageamento cerebral. Os diversos distrbios neurolgicos tais como perda da fala, da linguagem, da memria, da viso, da percepo dos sentidos e da identidade, foram estudados largamente e construdo um conjunto de conhecimento especfico para cada uma deles, e muito do que se pensava sobre as causas fisiolgicas ou psquicas desses danos, caiu por terra com o avano da tecnologia mdica. Desde o final do sculo XIX, a pesquisa cientfica de inmeros neurologistas sobre o crebro humano foi a responsvel por estabelecer definitivamente uma relao entre crebro e mente, crebro e corpo e finalmente corpo e mente. Paul Broca foi um deles. Ao descobrir uma rea especfica do hemisfrio esquerdo do crebro como a responsvel pelos distrbios da fala em 1861, ele abriu caminho para um outro neurologista famoso, Freud, atribuir uma base fisiolgica aos problemas da fala. Desde ento, as pesquisas e o mapeamento do crebro humano no pararam mais. A neurologia tornou-se, portanto, uma cincia personalista ao comprovar que os acidentes vasculares cerebrais ou demais danos ao crebro, tal como foi vtima Phineas Gage, tambm afetava a personalidade e a identidade do sujeito, sua persona, sua subjetividade, seu prprio eu.

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Numerosos casos clnicos comprovaram essa sentena, tais como os casos analisados por Oliver Sacks. Seus pacientes, transformados em personagens em uma vasta produo literria, trouxeram tona uma gama de distrbios do comportamento com origens eminentemente causadas por danos ao crebro: um pintor que passou a enxergar tudo em preto e branco, uma mulher que perdeu a sensao da propriocepo, o homem que passou a perceber membros fantasmas no seu corpo, um jovem que perde a noo do tempo tendo sua memria restrita dcada de sessenta, quando ocorreu seu acidente; o cirurgio que passa a ter tiques nervosos ou ainda um neurologista famoso que perde a sensao e percepo da prpria perna, entre outros, so todos personagens do fantstico universo de Oliver Sacks. Muitos dos seus personagens tiveram suas histrias publicadas em revistas tais como The New Yorker e The New York Times, mais tarde em livros e posteriormente em filmes e peas de teatro.19 Em todos os casos, verificamos vividamente o esforo do neurologista em no deixar de lado as ferramentas que a cincia mdica dispe, mas o que transforma Sacks em um neurologista diferente da maioria, que ele apontou para algo que ainda no havia sido feito: ele passou a deixar seus pacientes falarem sobre si mesmos e sobre seus distrbios. Sacks se tornou um proeminente interprete das desordens neurolgicas na cultura anglo-americana, tornando-se uma celebridade no mundo acadmico. No incio de sua carreira ele inspirou a prtica daquilo que ele chamou de neurologia romntica, ou seja, uma neurologia que recobre a subjetividade de seus pacientes do que as condies fisiolgicas engendradas pela neurologia tradicional.

19 Os filmes so: At First Sight( Primeira Vista) Direo de Irwin Winkler MGM/United Artists, 1999; Awakening (Tempo de Despertar) Direo de Penny Marshall Columbia/Tristar Pictures, 1990. A pea de teatro chama-se The Man Who Mistook his Wife for a Hat (O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapu) Direo de Peter Brooks, Royal Natinal Theatre, Junho de 1994.

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Com isso, o neurologista Sacks praticamente atualiza o neurologista Freud naquilo em que ele fez de mais singular e especfico: Sacks no desperdia os laudos mdicos de exames neurolgicos complexos, mas deixa a palavra e as descries narrativas e subjetivas de seus pacientes tomarem forma. Munido de seus conhecimentos como neurologista e somado a uma leitura particular da filosofia, da psicologia e da psicanlise, Sacks busca as razes da subjetividade humana atravs de uma atenta observao do comportamento de seus pacientes e de uma escuta clnica sobre o que eles tm a dizer antes e depois de leses cerebrais, muitas das vezes graves, sobre sua histria de vida, sobre o que eles foram, sobre o que eles se tornaram e sobre o que eles pensam como sero da para frente. Sacks no se reduz a uma descrio biolgica, nem fisicalista nem mentalista da vida subjetiva. A conseqncia disso que Sacks, apesar de no construir uma teoria sobre a construo da imagem do corpo, da subjetividade e da identidade, ele passa fazer uso das teorias disponveis no campo fenomenolgico para auxili-lo nas descries subjetivas de diversos distrbios neurolgicos de seus pacientes sem, no entanto, desprezar a descries dos mesmos distrbios atravs das mais modernas tcnicas mdicas para anlise e tratamento. Assim sendo, ele no restringe a imagem do corpo nem a um mapa cerebral incrustado no prprio crebro, nem faz da cadeia de redes neuronais predicativa de nossas subjetividades. Ele no as nega, mas no se restringe a elas como veremos a seguir.

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2.1. Para uma neuro-fenomenologia do self

Logo no incio do livro O homem que confundiu sua mulher com um chapu, Oliver Sacks afirma:Para devolver o sujeito humano ao centro o ser humano sofredor, torturado, em luta devemos aprofundar um relato de caso transformando-o em uma narrativa ou histria; s ento teremos um quem alm de um o que, uma pessoa real, um paciente, em relao doena em relao ao fsico (Sacks, 1997, p. 10)

Sacks afirma que a gama de distrbios neurolgicos com os quais se deparou ao longo de sua vida enquanto mdico, o fez cada vez mais necessitar de um aporte maior do que aquele dado pelos instrumentos de que dispunha pela medicina tradicional ou pela tecnologia mdica, um estudo aprofundado sobre cada um dos distrbios de cada paciente seu, somado a uma descrio da doena e da vida pessoal destes, o que exigiu a concepo de uma nova discip