texere ~ i ~

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eli miguel I - 24 de Agosto de 2004 31 de Dezembro de 2004

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Page 1: TEXERE ~ I ~

eli miguel

I - 24 de Agosto de 2004 – 31 de Dezembro de 2004

Page 2: TEXERE ~ I ~

Vincent Van Gogh

Page 3: TEXERE ~ I ~

Josée, Forces Vitales

Todo o meu ser é um cântico negro

que te levará

fazendo-te durar

ao despertar dos crescimentos e florescimentos eternos

neste cântico eu suspirei tu suspiraste

neste cântico

eu acrescentei-te à árvore à água ao fogo.

A vida é talvez

uma rua comprida pela qual uma mulher segurando

um cesto passa todos os dias.

A vida é talvez

uma corda com a qual um homem se enforca numa árvore

a vida é talvez uma criança a regressar a casa da escola.

Page 4: TEXERE ~ I ~

A vida é talvez acender um cigarro

na pausa narcótica entre fazer amor e fazer amor

ou o olhar ausente de um homem que passa

tirando o chapéu a um outro homem que passa

com um sorriso vazio e um bom dia.

A vida é talvez esse momento fechado

quando o meu olhar se destrói na pupila dos teus olhos

a vida está no sentimento

que eu irei pôr na impressão da Lua

e na percepção da Noite.

Num quarto grande como a solidão

o meu coração

que é grande como o amor

olha os simples pretextos da sua felicidade

o belo murchar das flores no vaso

a jovem árvore que plantaste no teu jardim

e o canto dos canários

alvejando o tamanho de uma janela.

Ah

este é o meu destino

este é o meu destino

o meu destino é

um céu que desaparece com a queda de uma cortina

o meu destino é despenhar-me no voo de estrelas agora inúteis

reconquistar qualquer coisa no meio da putrefacção e da nostalgia

o meu destino é um passeio triste no jardim das memórias

e morrer na dor de uma voz que me diz

eu amo

as tuas mãos.

Irei plantar as minhas mãos no jardim

crescerei eu sei eu sei eu sei

e as andorinhas virão pôr ovos

no vazio das minhas mãos manchadas de tinta.

Vou usar

um par de cerejas gémeas como brincos

e pôr pétalas de dália nas minhas unhas

Page 5: TEXERE ~ I ~

há um beco

onde os rapazes que se apaixonaram por mim

se demoram ainda com o mesmo cabelo despenteado

os mesmos pescoços finos e as mesmas pernas magras

pensando nos sorrisos inocentes de uma rapariga

que foi levada pelo vento uma noite.

Há um beco

que o meu coração roubou

às ruas da minha infância.

A viagem de uma forma na linha do tempo

fecundando a linha do tempo com a forma

uma forma consciente de uma imagem

a regressar de uma carícia num espelho.

E é desta maneira

que alguém morre

e alguém segue vivendo.

Nenhum pescador jamais achará uma pérola num pequeno regato

que se esvazia num lago.

Eu conheço uma pequena e triste fada

que vive num oceano

tocando a flauta mágica do seu coração

suave, suavemente

pequena e triste fada

que morre com um beijo todas as noites

e com um beijo renasce a cada amanhecer.

Forugh Farrokzad

(Versão de Vasco Gato)

Page 6: TEXERE ~ I ~

Mark Rothko, Sem título

Estou mais perto de ti porque te amo.

Os meus beijos nascem já na tua boca.

Não poderei escrever teu nome com palavras.

Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me.

Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto.

Quero a tua boca aberta em minha boca.

E amo-te como se nunca te tivesse amado

porque tu estás em mim mas ausente de mim.

Nesta noite sei apenas dos teus gestos

e procuro o teu corpo para além dos meus dedos.

Trago as mãos distantes do teu peito.

Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte.

Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim.

E eu estou perto de ti porque te amo.

Joaquim Pessoa, Os Olhos de Isa

Page 7: TEXERE ~ I ~

Ai daqueles

ai daqueles

que se amaram sem

nenhuma briga

aqueles que deixaram que a mágoa nova

virasse chaga antiga

ai daqueles que se amaram

sem saber que amar é feito pão em casa

e que a pedra só não voa

porque não quer

não por que não tem asa.

Paulo Leminsky

Fractal Feelings

Page 8: TEXERE ~ I ~

EM LOUVOR DO FOGO

Um dia chega

de uma extrema doçura:

tudo arde.

Arde a luz

nos vidros da ternura.

As aves,

no branco

labirinto da cal.

As palavras ardem

e a púrpura das naves.

O vento,

onde tenho casa

à beira do outono.

O limoeiro, as colinas.

Tudo arde

Na extrema e lenta

doçura da tarde.

Eugénio de Andrade, Obscuro Domínio

Page 9: TEXERE ~ I ~

Deedra Ludwig, Alchemy

concerto para uma só voz

a minha

: no mais profundo silêncio.

Márcia Maia, um tolo desejo de azul

Page 10: TEXERE ~ I ~

Il est très simple

Il est très simple: on ne voit bien qu'avec le coeur.

Antoine de Saint- Exupéry, Le Petit Prince

Jim Dine, The Woodcut Self

Page 11: TEXERE ~ I ~

Larionov, raionismo

Mais uma noite, amor

Mais uma noite, amor. Ao recordar-te

retomo os fins do mundo, a cinza, os dias

manchados de outras lágrimas. Sabias

como eu a cor das sombras, essa arte

que nos engana agora e se reparte

por esquinas e cafés. Já não me guias

os muitos passos vãos, as fantasias

da minha falsa vida. Vou deixar-te

fugindo-me. Na chuva, sem ninguém,

apenas alguns vultos, o que vem

«e dói não sei porquê» -este deserto

onde te vejo, imagem outra vez,

até de madrugada. O que me fez

sentir o muito longe aqui tão perto?

Fernando Pinto do Amaral, A Escada de Jacob

Page 12: TEXERE ~ I ~

Canção autobiográfica

aos quarenta e dois anos, com um cão e o silêncio

da sua pata cúmplice, a solidão é uma

destreza atormentada; e o coração o incerto secretário

de agonia e desejo, variantes da alma.

aos quarenta e dois anos, com um cão e o silêncio.

canção, canção que nunca acabarias

de te escrever, vaivém das

tantas coisas.

Vasco Graça Moura, Os Rostos Comunicantes

Camille Claudel, La Danaïde

Page 13: TEXERE ~ I ~

em fundo

Franz Schuber,

Schwanengsang

Page 14: TEXERE ~ I ~

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu era feliz e ninguém estava morto.

Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,

E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião

qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,

De ser inteligente para entre a família,

E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.

Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.

Quando vim a olhar pela vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,

O que fui de coração e parentesco,

O que fui de serões de meia-província,

O que fui de amarem-me e eu ser menino,

O que fui – ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...

A que distância!...

(Nem o acho...)

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

Vincent Van Gogh, Vase with Irises against a yellow background

Page 15: TEXERE ~ I ~

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da

casa,

Pondo grelado nas paredes...

O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através

das minhas lágrimas),

O que eu sou hoje é terem vendido a casa,

É terem morrido todos,

É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo

frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!

Desejo físico da alma se encontrar ali outra vez,

Por uma viagem metafísica e carnal,

Com uma dualidade de eu para mim...

Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga

nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que

há aqui...

A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na

loiça, com mais copos,

O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na

sombra debaixo do alçado –,

As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha

causa,

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!

Não penses! Deixa o pensar na cabeça!

Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!

Hoje já não faço anos.

Duro.

Somam-se-me dias.

Serei velho quando o for.

Mais nada.

Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Álvaro de Campos, Poemas

Page 16: TEXERE ~ I ~

Musa

Musa ensina-me o canto

Venerável e antigo

O canto para todos

Por todos entendido

Musa ensina-me o canto

O justo irmão das coisas

Incendiador da noite

E na tarde secreto

Musa ensina-me o canto

Em que eu mesma regresso

Sem demora e sem pressa

Tornada planta ou pedra

Ou tornada parede

Da casa primitiva

Ou tornada o murmúrio

Do mar que a cercava

Eustache LE

sueur, Trois Muses:

Melpomène, Erato et

Polymnie

(Eu me lembro do chão

De madeira lavada

E do seu perfume

Que atravessava)

Musa ensina-me o canto

Onde o mar respira

Sophia de Mello Breyner Andresen, Signo

Page 17: TEXERE ~ I ~

António Canova, Eros e Psique

Chanson

Dans l'amour la vie a encore

L'eau pure de ses yeux d'enfant

Qui s'ouvre sans savoir comment

Sa bouche est encore une fleur

Dans l'amour la vie a encore

Ses mains agrippantes d'enfant

Ses pieds partent de la lumière

Et ils s'en vont vers la lumière

Dans l'amour la vie a toujours

Un coeur léger et renaissant

Rien n'y pourra jamais finir

Demain s'y allège d'hier.

Paul Eluard, Derniers poèmes d'amour

Page 18: TEXERE ~ I ~

Sísifo

(Coimbra, 27 de Dezembro de 1977)

Recomeça...

Se puderes,

Sem angústia e sem pressa.

E os passos que deres,

Nesse caminho duro

Do futuro,

Dá-os em liberdade.

Enquanto não alcances

Não descanses.

De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,

Vai colhendo

Ilusões sucessivas no pomar.

Sempre a sonhar

E vendo,

Acordado,

O logro da aventura.

És homem, não te esqueças!

Só é tua a loucura

Onde, com lucidez, te reconheças.

Miguel Torga, Antologia Poética

Page 19: TEXERE ~ I ~

Hemos perdido aun este crepúsculo.

Nadie nos vió esta tarde con las manos unidas,

mientras la noche azul caía sobre el mundo.

He visto desde mi ventana

la fiesta del poniente en los cerros lejanos.

A veces como una moneda

se encendía un pedazo de sol entre mis manos.

Yo te recordaba con el alma apretada

de esa tristeza que tú me conoces.

Entonces dónde estabas?

Entre qué gentes?

Diciendo qué palabras?

Por qué se me vendrá todo el amor de golpe

cuando me siento triste, y te siento lejana?

Cayó el libro que siempre se toma en el crepúsculo,

y como un perro herido rodó a mis pies mi capa.

Siempre, siempre te alejas en las tardes

hacia donde el crepúsculo corre borrando estatuas.

Pablo Neruda, Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada

Page 20: TEXERE ~ I ~

Uma noite acordarei junto ao corpo infindável

da amada, e meu sangue não se encantará.

Então, rosa a rosa murcharão meus ombros.

Quer dizer que a sombra carregará meus sentidos

de distância, como se tudo fosse o cheiro

que as ervas pungentemente perdem

através do silêncio.

Plácido chegarei à mesa, e de súbito

meu coração se atravessará de gelo puro.

O vinho? Perguntarei. Flores de sal cobrirão

a luz poderosa do meu olhar.

Tempo, tempo. Eu próprio perguntarei no recente

pasmo da minha carne: o vinho?

Rosa a rosa murcharão meus ombros.

Então lembrarei a vermelha resina, o espesso

murmúrio do sangue,

o ocre e sobrenatural aroma das acácias.

Tentarei encontrar uma forma.

Com beijos antigos um momento ainda queimarei

o corpo solitário da amada, direi palavras

de uma ternura azebre.

E uma vez mais me perderei, dizendo: o vinho?

Rosa a rosa murcharão meus ombros.

Herberto Hélder, A colher na boca

Page 21: TEXERE ~ I ~

em fundo

Maria Callas, La Forza del Destino, Verdi

Fredrick Hart, Destiny

Page 22: TEXERE ~ I ~

Syd Art, Destiny

Vasco da Gama

Somos nós que fazemos o destino.

Chegar à Índia ou não

É um íntimo desígnio da vontade.

Os fados a favor

E a desfavor,

São argumentos da posteridade.

O próprio génio pode estar ausente

Da façanha.

Basta que nos momentos de terror,

Persistente,

O ânimo enfrente

A fúria de qualquer Adamastor.

O renome é o salário do triunfo.

O que é preciso, pois, é triunfar.

Nunca meia viagem consentida!

Nunca meia medida

Do vinho que nos há-de embriagar!

Miguel Torga, Poemas Ibéricos

Page 23: TEXERE ~ I ~

Há noites que são feitas dos meus braços

e um silêncio comum às violetas

e há sete luas que são sete traços

de sete noites que nunca foram feitas.

Há noites que levamos à cintura

como um cinto de grandes borboletas.

E um risco a sangue na nossa carne escura

duma espada à bainha de um cometa.

Há noites que nos deixam para trás

enrolados no nosso desencanto

e cisnes brancos que só são iguais

à mais longínqua onda de seu canto.

Há noites que nos levam para onde

o fantasma de nós fica mais perto:

e é sempre a nossa voz que nos responde

e só o nosso nome estava certo.

Natália Correia, Sonetos Românticos

sete luas

Page 24: TEXERE ~ I ~

Edward Hopper

A minha solidão

(Durante dias andei a ruminar estes versos.)

A minha solidão

não é uma invenção

para enfeitar noites estreladas...

...Mas este querer arrancar a própria sombra do chão

e ir com ela pelas ruas de mãos dadas.

...Mas este sufocar entre coisas mortas

e pedras de frio

onde nem sequer há portas

para o Calafrio.

Page 25: TEXERE ~ I ~

...Mas este rir-me de repente

no poço das noites amarelas...

- única chama consciente

com boca nas estrelas.

...Mas este eterno Só-Um

(mesmo quando me queima a pele o teu suor)

- sem carne em comum

com o mundo em redor.

...Mas este haver entre mim e a vida

sempre uma sombra que me impede

de gozar na boca ressequida

o sabor da própria sede.

...Mas este sonho indeciso

de querer salvar o mundo

- e descobrir afinal que não piso

o mesmo chão do pobre e do vagabundo.

...Mas este saber que tudo me repele

no vento vestido de areia...

E até, quando a toco, a própria pele

me parece alheia.

Não. A minha solidão

não é uma invenção

para enfeitar o céu estrelado...

...mas este deitar-me de súbito a chorar no chão

e agarrar a terra para sentir um Corpo Vivo a meu lado.

José Gomes Ferreira

Page 26: TEXERE ~ I ~

Every Poem is an Epitaph

Desfiz meu corpo nas vivas marés

que os versos me traziam. Solidão

mil vezes retomada, sombra e pó,

palavras que nos doem mais de perto:

tudo desfez meu corpo e neste mar

um navegante encontra o seu deserto.

Luís Filipe Castro Mendes, Outras Canções

Page 27: TEXERE ~ I ~

FOREVER GONE

The rose is now forever gone

The scent remains the whole life long

And visions of a petal's hue

Abide within the depth of you

The wine he poured and slowly sipped

Remains on wetness of your lip

A taste so sweet does not depart

Embedded in a tender heart

A touch of silk, a feel of soft

The sense of rising up aloft

To touch the clouds, to soar the sky

Still dwells in reminiscent eye

How well we save the little parts

Of sweetness wrapped within our hearts

And never count the solemn tears

That fill the soul throughout the years

His words are scrolled in lyric rhyme

That live forever in your mind

His eyes that once enchanted yours

Are diamond's gleam that still allures

The rose yet blossoms in your eyes

It is a flower that never dies

Elizabeth Santos

Page 28: TEXERE ~ I ~

Anne Bertoin, ADN

I

Afinal sou assim, infeliz e volúvel,

Porque minha alma guarda uma ordem diversa

De pulsões celulares ao longo do seu eixo:

Decifre-me quem saiba, - que, dispersa,

Com nome A.D.N. aqui na cruz a deixo.

II

Nervo a pavor, fonte renal de rijo,

Cor dos meus olhos, estatura, gosto,

Quanto me importo, ó Deus, quanto me aflijo,

Tudo A.D.N. inscreve no meu rosto.

Vitorino Nemésio, Limite de Idade

Page 29: TEXERE ~ I ~

em fundo

Maria João Pires, Beethoven, Sonatas Quasi una Fantasia

Page 30: TEXERE ~ I ~

Pace non trovo

Pace non trovo, e non ó da far guerra

E temo e spero, ed ardo e son un ghiaccio,

E volo sopra’l cielo e giaccio in terra

E nulla stringo e tutto’l mondo abbraccio.

Tal m’ha in prigion che non m’apre né serra,

Nè per suo mi riten né scoglie il laccio,

E non m’ancide Amor e non mi sferra,

Nè mi vuol vivo né mi trae d’impaccio.

Veggio senza occhi; e no ò língua, e grido,

E bramo di perir, e cheggio aiuta,

Ed ho in ódio me stesso ed amo altrui.

Pascomi di dolor, piangendo rido,

Egualmente mi spiace morte e vita:

In questo stato son, Donna, per vui.

Petrarca, Cancioneiro

Tanto do meu estado me acho incerto

Tanto do meu estado me acho incerto,

Que, em vivo ardor, tremendo estou de frio;

Sem causa, juntamente choro e rio,

O mundo todo abarco, e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto;

Da alma um fogo me sai, da vista um rio;

Agora espero, agora desconfio;

Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando;

Num’hora acho mil anos, e é de jeito

Que em mil anos não posso achar um’hora.

Se me pergunta alguém, porque assi ando,

Respondo que não sei; porém suspeito

Que só porque vos vi, minha Senhora.

Camões, Rimas

Page 31: TEXERE ~ I ~

Piero di Cosimo, Simonetta Vespuci

Page 32: TEXERE ~ I ~

Wer, wenn ich schriee, hörte mich denn aus der Engel Ordnungen?

Rainer Maria Rilke

Munch, O Grito

Page 33: TEXERE ~ I ~

Uma lâmina de ar

atravessando as portas. Um arco,

uma flecha cravada no outono. E a canção

que fala das pessoas. Do rosto e dos lábios das pessoas.

E um velho marinheiro grave, rangendo o cachimbo

como

uma amarra. À espera do mar. Esperando o silêncio.

É Outono. Uma mulher de botas atravessa-me a tristeza

quando saio para a rua, molhado, como um pássaro.

Vêm de muito longe as minhas palavras, quem sabe se

da minha revolta última. Ou do teu nome que repito.

Hoje há soldados eléctricos. Uma parede

cumprimenta o sol. Procura-se viver.

Vive-se, de resto, em todas as ruas, nos bares e nos

cinemas.

Há homens e mulheres que compram o jornal e amam-se

como se, de repente, não houvesse mais nada senão

a imperiosa ordem de (se) amarem.

Há em mim uma ternura desmedida pelas palavras.

Não há um nome para a tua ausência. Há um muro

que os meus olhos derrubam. Um estranho vinho

que a minha boca recusa. É Outono.

A pouco e pouco despem-se as palavras.

Joaquim Pessoa, 125 Poemas – antologia poética

Page 34: TEXERE ~ I ~

em fundo

Alphonse Mucha

Antonio Vivaldi, I Quatro Stagioni

Page 35: TEXERE ~ I ~

Picasso, Blue Nude

Desejos vãos

Eu queria ser o Mar de altivo porte

Que ri e canta, a vastidão imensa!

Eu queria ser a Pedra que não pensa,

A pedra do caminho, rude e forte!

Eu queria ser o Sol, a luz intensa,

O bem do que é humilde e não tem sorte!

Eu queria ser a Árvore tosca e tensa

Que ri do mundo vão e até da morte!

Mas o Mar também chora de tristeza...

As árvores também, como quem reza,

Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!

E o Sol, altivo e forte, ao fim de um dia,

Tem lágrimas de sangue na agonia!

E as Pedras... essas... pisa-as toda a gente!...

Florbela Espanca, Livro de Mágoas, in Sonetos

Page 36: TEXERE ~ I ~

Yo no te pido

Yo no te pido que me bajes

una estrella azul

solo te pido que mi espacio

llenes con tu luz.

Yo no te pido que me firmes

diez papeles grises para amar

sólo te pido que tu quieras

las palomas que suelo mirar.

De lo pasado no lo voy a negar

el futuro algún día llegara

y del presente

que le importa a la gente

si es que siempre van a hablar.

Sigue llenando este minuto

de razones para respirar

no me complazcas no te niegues

no hables por hablar.

Yo no te pido que me bajes

una estrella azul

solo te pido que mi espacio

llenes con tu luz.

Mario Benedetti

Georgia O'Keeffe. Evening Star, III

Page 37: TEXERE ~ I ~

Não sei se dor

Ou muito amor

Eu sinto.

Mas isto é maior do que a morte;

Não posso mais.

Eu minto.

Ruy Cinatti, Anoitecendo, a Vida Recomeça

Van Gogh, Tree Sunflowers

Page 38: TEXERE ~ I ~

As férias

Era uma rosa azul de água amarrada

Um palácio de cheiros um terraço

E uma jarra de amigos derramada

Da casa até ao mar como um abraço.

Era a intensa e clara madrugada

Com cigarras dormindo no regaço

E a ampulheta do sono defraudada

No tempo cada dia mais escasso.

Era um país de urzes e lilases

De tardes sonolentas espreguiçando

Um aroma de nardos pelo chão

E bandos de meninas e rapazes

Correndo amando rindo e adiando

A minha inexorável solidão.

Ary dos Santos, O sangue das Palavras

Page 39: TEXERE ~ I ~

em fundo

Elis Regina & Tom Jobim, Por toda a Minha Vida

(Pedro Almodóvar, hable con ella)

Edward Hopper, Morning sun

Page 40: TEXERE ~ I ~

le coeur..

le coeur a ses raisons que la raison ne connaît point

René Descartes

Page 41: TEXERE ~ I ~

Gift

ou tell me that silence

is nearer to peace than poems

but if for my gift

I brought you silence

(for I know silence)

you would say

This is not silence

this is another poem

and you would hand it back to me.

Leonard Cohen,

Stranger Music - Selected Poems and Songs

Page 42: TEXERE ~ I ~

Ítaca

Quando partires de regresso a Ítaca.

deves orar por uma viagem longa,

plena de aventuras e de experiências.

Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,

um Poseidon irado – não os temas,

jamais encontrarás tais coisas no caminho,

se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime

teu corpo toca e o espírito te habita.

Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,

Poseídon em fúria – nunca encontrarás,

se não é na tua alma que os transportes

ou ela os não erguer perante ti.

Deves orar por uma viagem longa.

Que sejam muitas as manhãs de Verão,

quando, com que prazer, com que deleite,

entrares em portos jamais antes vistos!

Em colónias fenícias deverás deter-te

para comprar mercadorias raras:

coral e madrepérola, âmbar e marfim,

e perfumes subtis de toda a espécie:

compra desses perfumes quanto possas,

E vai ver as cidades do Egipto,

para aprenderes com os que sabem muito.

Page 43: TEXERE ~ I ~

Terás sempre Ítaca no teu espírito,

que lá chegar é o teu destino último.

Mas não te apresses nunca na viagem.

É melhor que ela dure muitos anos,

que sejas velho já ao ancorar na ilha,

rico do que foi teu pelo caminho,

e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.

Sem Ítaca, não terias partido.

Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.

Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,

terás compreendido o sentido de Ítaca.

Constantino Cavafy, 90 e Mais Quatro Poemas

- versão de Jorge de Sena

Jacinthe Dugal-Lacroix, Freedom

Page 44: TEXERE ~ I ~

Ítaca

Não vale a pena suportar tanto castigo.

Procuras Ítaca. Mas só há esse procurar.

Onde quer que te encontres está contigo

dentro de ti em casa na distância

onde quer que procures há outro mar

Ítaca é tua própria errância.

Manuel Alegre, in Rosa do Mundo

- 2001 poemas para o futuro

Munch, The dance of Life

Page 45: TEXERE ~ I ~

o pequeno demiurgo

ao Hélder Moura Pinheiro

escrevo barco e uma quilha fende o vastíssimo mar

e as árvores crescem dos espaços enevoados

entre olhar e olhar movem-se

animais presos à terra com suas plumagens de ferro

e de orvalho de ouro quando a lua se eclipsa

comunicando-lhes o cio e a nómada alegria de viver

penso outono ou inverno

e o lume resinoso dos pinhais escorre sobre o rosto

sobre o corpo em tímidos gestos

eis o tempo

do Capricórnio reduzido ao esconderijo tatuado

na asa mineral da ave em pleno voo e digo nuvens

relâmpago erva águas

homem

movimento do susto oceanos sal exaustos corpos

transumantes paixões digo

e surge irrompe escorre ergue-se move-se vive

morre

mas não julguem ser trabalho simples nomear

arrumar e desordenar o mundo

para que não se apague esta trémula escrita

preciso do sonho e do pesadelo

da proximidade vertiginosa dos espelhos e

de pernoitar no fundo de mim com as mãos sujas

pelo árduo trabalho de construir os gestos exactos

da alegria que por descuido deus abandonou ao cansaço

no fim do sétimo dia

Al Berto, O Medo

Page 46: TEXERE ~ I ~

Sabrás que no te amo y que te amo

SABRÁS que no te amo y que te amo

puesto que de dos modos es la vida,

la palabra es un ala del silencio,

el fuego tiene una mitad de frío.

Yo te amo para comenzar a amarte,

para recomenzar el infinito

y para no dejar de amarte nunca:

por eso no te amo todavía.

Te amo y no te amo como si tuviera

en mis manos las llaves de la dicha

y un incierto destino desdichado.

Mi amor tiene dos vidas para amarte.

Por eso te amo cuando no te amo

y por eso te amo cuando te amo.

Pablo Neruda, Cien Sonetos de Amor

Page 47: TEXERE ~ I ~

em fundo

Debussy , La Mer , Trois Esquisses Symphoniques

Chicago Symphony Orchestra – Daniel Barenboim

Page 48: TEXERE ~ I ~

CAMPO DE FLORES

Deus me deu um amor no tempo de madureza,

quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.

Deus – ou foi talvez o Diabo - deu-me este amor maduro,

e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos

e outros acrescento aos que amor já criou.

Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso

e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia

e cansado de mim julgava que era o mundo

um vácuo atormentado, um sistema de erros.

Amanhecem de novo as antigas manhãs

que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra

imensa e contraída como letra no muro

e só hoje presente.

Deus me deu um amor porque o mereci.

De tantos que já tive ou tiveram em mim,

o sumo se espremeu para fazer um vinho

ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.

E o tempo que levou uma rosa indecisa

A tirar sua cor dessas chamas extintas

Era o tempo mais justo. Era tempo de terra.

Onde não há jardim, as flores nascem de um

secreto investimento em formas improváveis.

Page 49: TEXERE ~ I ~

Hoje tenho um amor e me faço espaçoso

para arrecadar as alfaias de muitos

amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,

e ao vê-los amorosos e transidos em torno,

o sagrado terror converto em jubilação.

Seu grão de angústia amor já me oferece

na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia

os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura

e o mistério que além faz os seres preciosos

à visão extasiada.

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,

há que amar diferente. De uma grave paciência

ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia

tenha dilacerado a melhor doação.

Há que amar e calar.

Para fora do tempo arrasto meus despojos

e estou vivo na luz que baixa e me confunde

Vinicius de Moraes

William Bouguereau, Crepuscule

Page 50: TEXERE ~ I ~

LA TENDRESSE

Pour un peu de tendresse

Je donnerais les diamants

Que le diable caresse

Dans mes coffres d'argent

Pourquoi crois-tu la belle

Que les marins au port

Vident leurs escarcelles

Pour offrir des trésors

A de fausses princesses

Pour un peu de tendresse

Pour un peu de tendresse

Je changerais de visage

Je changerais d'ivresse

Je changerais de langage

Pourquoi crois-tu la belle

Qu'au sommet de leurs chants

Empereurs et ménestrels

Abandonnent souvent

Puissances et richesses

Pour un peu de tendresse

Pour un peu de tendresse

Je t'offrirais le temps

Qu'il reste de jeunesse

A l'été finissant

Pourquoi crois-tu la belle

Que monte ma chanson

Vers la claire dentelle

Qui danse sur ton front

Penché vers ma détresse

Pour un peu de tendresse

Jacques Brel

Piam, tendresse

Page 51: TEXERE ~ I ~

em fundo

Jean Sibelius, The Swan of Tuonela

Berliner Philharmoniker - Herbert von Karajan

Page 52: TEXERE ~ I ~

Aquela triste e leda madrugada

Aquela triste e leda madrugada,

cheia toda de mágoa e de piedade,

enquanto houver no mundo saudade

quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando, amena e marchetada.

saía, dando ao mundo claridade,

viu apartar-se de üa outra vontade,

que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio

que de uns e de outros olhos derivadas,

se acrescentaram em grande e largo rio.

Ela ouviu as palavras magoadas

que puderam tornar o fogo frio

e dar descanso às almas condenadas.

Luís de Camões, Rimas

E alegre se fez triste

Aquela clara madrugada que

viu lágrimas correrem no teu rosto

e alegre se fez triste como se

chovesse de repente em pleno Agosto.

Ela só viu meus dedos nos teus dedos

meu nome no teu nome. E demorados

viu nossos olhos juntos nos segredos

que em silêncio dissemos separados.

A clara madrugada em que parti.

Só ela viu teu rosto olhando a estrada

por onde um automóvel se afastava.

E viu que a pátria estava toda em ti.

E ouviu dizer-me adeus: essa palavra

que fez triste a clara madrugada.

Manuel Alegre, Trinta Anos de Poesia

Page 53: TEXERE ~ I ~

Helga Butzer Felleisen, Tears

Page 54: TEXERE ~ I ~

WHEN YOU ARE OLD

WHEN you are old and grey and full of sleep,

And nodding by the fire, take down this book,

And slowly read, and dream of the soft look

Your eyes had once, and of their shadows deep;

How many loved your moments of glad grace,

And loved your beauty with love false or true,

But one man loved the pilgrim Soul in you,

And loved the sorrows of your changing face;

And bending down beside the glowing bars,

Murmur, a little sadly, how Love fled

And paced upon the mountains overhead

And hid his face amid a crowd of stars.

William Butler Yeats, The Rose

Matisse, Janela interior com miosótis

Page 55: TEXERE ~ I ~

Mulheres de preto

Há muito que são velhas, vestidas

de preto até à alma.

Contra o muro

defendem-se do sol de pedra;

ao lume

furtam-se ao frio do mundo.

Ainda têm nome? Ninguém

pergunta, ninguém responde.

A língua, pedra também.

Eugénio de Andrade, Trinta Poemas

Fotografia de Guilherme Carreiro

Page 56: TEXERE ~ I ~

Allégeance

Dans les rues de la ville, il y a mon amour.

Peu importe où il va dans le temps divisé.

Il n'est plus mon amour : chacun peut lui parler.

Il ne se souvient plus qui, au juste, l'aima.

Il cherche son pareil dans le voeu des regards.

L'espace qu'il parcourt est ma fidélité.

Il dessine l'espoir, puis, léger, l'éconduit.

Je vis au fond de lui comme une épave heureuse.

A son insu, ma liberté est son trésor !

Dans le grand méridien où s'inscrit son essor,

Ma solitude se creuse.

Dans les rues de la ville, il y a mon amour.

Peu importe où il va dans le temps divisé.

Il n'est plus mon amour : chacun peut lui parler.

Il ne se souvient plus qui, au juste, l'aima

Et l'éclaire de loin pour qu'il ne tombe pas !

René Char

Josée, Passage du Temps

Page 57: TEXERE ~ I ~

em fundo

Maria João Pires - Mozart - Klaviersonaten

Foto: eli

Page 58: TEXERE ~ I ~

Que me quereis, perpétuas saudades

Que me quereis, perpétuas saudades,

Com que sonhos ainda me abismais?

O tempo é um rio que não pára mais,

Nem se repetem as visões das margens.

Como se diz adeus a quem morreu,

Dizem adeus os anos já passados

A desejos iguais, desigualados

Se a vontade mudando os esqueceu.

Aquilo a que queria mudou tanto

Que é outro amor; e meu prazer dum dia

Maldiz o de hoje, ao novo desencanto.

Cada enganosa esperança em meu desejo

Passa por ela o tempo e queda, fria,

Como Almourol a ver passar o Tejo.

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético

Page 59: TEXERE ~ I ~

Teia

Se da baba o insecto faz a teia,

se com choro porém não sei prender-te,

do céu, que era de cinza, direi verde,

e da terra e das lágrimas areia.

E da forma direi que foi ideia,

para que à noite o corpo não desperte.

Do perdido direi que não se perde

se ao menos nestes versos se encadeia.

Do cabelo, se louro, direi preto;

do amor que sofri direi soneto,

ante a luz tão corpórea que o invade…

Nas redes da ficção ficarás presa

e acordarás, mais tarde, na surpresa

de ser outra por toda a eternidade.

David Mourão-Ferreira, Infinito Pessoal

Page 60: TEXERE ~ I ~

Avec le temps...

Avec le temps, va, tout s'en va

On oublie le visage et l'on oublie la voix

Le coeur, quand ça bat plus, c'est pas la peine d'aller

Chercher plus loin, faut laisser faire et c'est très bien

Avec le temps...

Avec le temps, va, tout s'en va

L'autre qu'on adorait, qu'on cherchait sous la pluie

L'autre qu'on devinait au détour d'un regard

Entre les mots, entre les lignes et sous le fard

D'un serment maquillé qui s'en va faire sa nuit

Avec le temps tout s'évanouit

Avec le temps...

Avec le temps, va, tout s'en va

Mêm' les plus chouett's souv'nirs ça t'as un' de ces gueules

A la Gal'rie j'farfouille dans les rayons d'la mort

Le samedi soir quand la tendresse s'en va tout seule

Avec le temps...

Avec le temps, va, tout s'en va

L'autre à qui l'on croyait pour un rhume, pour un rien

L'autre à qui l'on donnait du vent et des bijoux

Pour qui l'on eût vendu son âme pour quelques sous

Devant quoi l'on s'traînait comme traînent les chiens

Avec le temps, va, tout va bien

Avec le temps...

Avec le temps, va, tout s'en va

On oublie les passions et l'on oublie les voix

Qui vous disaient tout bas les mots des pauvres gens

Ne rentre pas trop tard, surtout ne prends pas froid

Avec le temps...

Avec le temps, va, tout s'en va

Et l'on se sent blanchi comme un cheval fourbu

Et l'on se sent glacé dans un lit de hasard

Et l'on se sent tout seul peut-être mais peinard

Et l'on se sent floué par les années perdues

Alors vraiment

Avec le temps on n'aime plus.

Léo Ferré

Kasemir Malevich, Head of a Peasant Girl

Page 61: TEXERE ~ I ~

Vieste como um barco carregado de vento, abrindo

feridas de espuma pelas ondas. Chegaste tão depressa

que nem pude aguardar-te ou prevenir-me; e só ficaste

o tempo de iludires a arquitectura fria do estaleiro

onde hoje me sentei a perguntar como foi que partiste,

se partiste,

que dentro de mim se acanham as certezas e

tu vais sempre ardendo, embora como um lume

de cera, lento e brando, que já não derrama calor.

Tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar

o dia inteiro, como os pescadores fazem com as redes,

e não existe no mundo cegueira pior do que a minha:

o fio do horizonte começou ainda agora a oscilar,

exausto de me ver entre mulheres que se passeiam

no cais como se transportassem no corpo o vaivém

dos barcos. Dizem-me os seus passos

que vale a pena esperar, porque as ondas acabam

sempre por quebrar-se junto das margens. Mas eu sei

que o meu mar está cercado de litorais, que é tarde

para quase tudo. Por isso, vou para casa

e aguardo os sonhos, pontuais como a noite.

Maria do Rosário Pedreira, O Canto do Vento nos Ciprestes

foto: eli

Page 62: TEXERE ~ I ~

em fundo

Beethoven

Fantasia coral, op. 80

Wiener Philharmoniker - Claudio Abbado

Page 63: TEXERE ~ I ~

"fugas"

O lago, o salto

no alvo da água.

Setas de lume

nas escarpas.

Pequenas vagas

de salgueiros, veios

inseguros semeados

de batéis. Fisgas

em flor, risos

abrem o ar.

Veredas alvejadas

de voos, arroubos

dos 20 anos, fugas

ao que já findou.

Joaquim Manuel Magalhães, uma luz com um toldo vermelho

Page 64: TEXERE ~ I ~

Foto: René Dumoulin

On ne connaît que les choses que l'on apprivoise

Antoine de Saint-Exupéry, Le Petit Prince

Page 65: TEXERE ~ I ~

Giacinto Braca, Tempus fugit

“Quantas horas perdi

foi por ti

que as perdi.”

Vai o meu coração

repetiu a lição:

- "Quantas horas perdi

foi por ti

que as ganhei..."

Sebastião da Gama, Cabo da Boa Esperança

Page 66: TEXERE ~ I ~

em fundo

Schubert - Lieder

Dietrich Fischer-Dieskau

Gerald Moore

Apache tears

Page 67: TEXERE ~ I ~

em fundo

Beethoven - clair de lune - Rudolf Serkin

Lucien Lévy-Dhurmer, Harmonie en bleu

Page 68: TEXERE ~ I ~

Tão cedo passa tudo quanto passa!

Morre tão jovem ante os deuses quanto

Morre! Tudo é tão pouco!

Nada se sabe, tudo se imagina.

Circunda-te de rosas, ama, bebe

E cala. O mais é nada.

Ricardo Reis, Odes

Page 69: TEXERE ~ I ~

No palco eu faço amor com 25.000 pessoas, depois vou sozinha para casa.

Janis Joplin

Gu Xiaolin (Lironing), Loneliness

Page 70: TEXERE ~ I ~

Estátua

Cansei-me de tentar o teu segredo:

No teu olhar sem cor, - frio escalpelo,

O meu olhar quebrei, a debatê-lo,

Como a onda na crista dum rochedo.

Segredo dessa alma e meu degredo

E minha obsessão! Para bebê-lo

Fui teu lábio oscular, num pesadelo,

Por noites de pavor, cheio de medo.

E o meu ósculo ardente, alucinado,

Esfriou sobre o mármore correcto

Desse entreaberto lábio gelado…

Desse lábio de mármore, discreto,

Severo como um túmulo fechado,

Sereno como um pélogo quieto.

Camilo Pessanha, Clepsidra

Barbara Rainer Nothdurf, Faszination Eis

Page 71: TEXERE ~ I ~

em fundo

Claudined, silence dans l'azur

Ottorino Respighi, Italiana, from Ancient Airs and Dances for Lute

Berliner Philharmoniker - Herbert von Karajan

Page 72: TEXERE ~ I ~

Sou de vidro

Meus amigos sou de vidro

Sou de vidro escurecido

Encubro a luz que me habita

Não por ser feia ou bonita

Mas por ter assim nascido

Sou de vidro escurecido

Mas por ter assim nascido

Não me atinjam não me toquem

Meus amigos sou de vidro

Sou de vidro escurecido

Tenho fumo por vestido

E um cinto de escuridão

Mas trago a transparência

Envolvida no que digo

Meus amigos sou de vidro

Por isso não me maltratem

Não me quebrem não me partam

Sou de vidro escurecido

Tenho fumo por vestido

Mas por assim ter nascido

Não por ser feia ou bonita

Envolvida no que digo

Encubro a luz que me habita

Lídia Jorge

Page 73: TEXERE ~ I ~

No rechaces los sueños por ser sueños.

Todos los sueños pueden

ser realidad, si el sueño no se acaba.

La realidad es un sueño. Si soñamos

que la piedra es la piedra, eso es la piedra.

Lo que corre en los ríos no es un agua,

es un soñar, el agua, cristalino.

La realidad disfraza

su propio sueño, y dice:

«Yo soy el sol, los cielos, el amor.»

Pero nunca se va, nunca se pasa,

si fingimos creer que es más que un sueño.

Y vivimos soñándola. Soñar

es el modo que el alma

tiene para que nunca se le escape

lo que se escaparía si dejamos

de soñar que es verdad lo que no existe.

Sólo muere

un amor que ha dejado de soñarse

hecho materia y que se busca en tierra.

Pedro Salinas

alvador Dali, Sueño causado por el vuelo de una abeja

alrededor de una granada un segundo antes del despertar

Page 74: TEXERE ~ I ~

ontem,

o meu pôr do sol

Page 75: TEXERE ~ I ~

Abria o guarda-fatos e tirava

o casaco mais velho e as piores

calças de veludo cor de sombra

Ia ter contigo. Só o perfume

fazia pressentir o coração,

essa frágil ideia que batia

quando me sentava no café

muito antes da hora combinada.

As mãos quietas, o rosto debruçado

para o vidro sujo de tabacos

donde ao longe havias de chegar.

O chão coberto duma luz magoada,

de papéis amassados, cinzas

que teus pés vinham a calcar.

Joaquim Manuel Magalhães, Uma Exposição

Edward Hopper, Sunlight in a Cafetaria

Page 76: TEXERE ~ I ~

C'est le temps que tu as perdu...

C'est le temps que tu as perdu pour ta rose qui fait ta rose si importante.

Antoine de Saint-Exupéry, Le Petit Prince

Page 77: TEXERE ~ I ~

Teu nome amarfanhado jaz num poço

a um salto mortal do esquecimento

teu nome renegado que eu não ouço

teu nome feito raiva e desalento

Teu nome que eu roí até ao osso

do ódio da ternura e do tormento

é agora o sinal de que não posso

castigar mais o próprio sofrimento.

Teu nome a cama estreita onde me deito

o abismo de sons onde recordo

um silêncio impossível e perfeito.

Teu nome que só lembro quando mordo

um nome de milhões de nomes feito

que só é nomeado quando acordo.

José Carlos Ary dos Santos, Obra Poética

Page 78: TEXERE ~ I ~

em fundo

Maria João Pires, Le Voyage Magnifique, Schubert

Page 79: TEXERE ~ I ~

Imagine

Imagine there's no Heaven

It's easy if you try

No hell below us

Above us only sky

Imagine all the people

Living for today

Imagine

there's no countries

It isn't hard to do

Nothing to kill or die for

And no religion too

Imagine all the people

Living life in peace

You may say that I'm a dreamer

But I'm not the only one

I hope someday you'll join us

And the world will be as one

Imagine no possessions

I wonder if you can

No need for greed or hunger

A brotherhood of man

Imagine all the people

Sharing all the world

You may say that I'm a dreamer

But I'm not the only one

I hope someday you'll join us

And the world will live as one

John Lennon

Page 80: TEXERE ~ I ~

On n'oublie rien de rien

On n'oublie rien du tout

On n'oublie rien de rien

On s'habitue c'est tout

Ni ces départs ni ces navires

Ni ces voyages qui nous chavirent

De paysages en paysages

Et de visages en visages

Ni tous ces ports ni tous ces bars

Ni tous ces attrape-cafard

Où l'on attend le matin gris

Au cinéma de son whisky

Ni tout cela ni rien au monde

Ne sait pas nous faire oublier

Ne peut pas nous faire oublier

Qu'aussi vrai que la terre est ronde

On n'oublie rien de rien

On n'oublie rien du tout

On n'oublie rien de rien

On s'habitue c'est tout

Ni ces jamais ni ces toujours

Ni ces je t'aime ni ces amours

Que l'on poursuit à travers cœurs

De gris en gris de pleurs en pleurs

Ni ces bras blancs d'une seule nuit

Collier de femme pour notre ennui

Que l'on dénoue au petit jour

Par des promesses de retour

Ni tout cela ni rien au monde

Ne sait pas nous faire oublier

Ne peut pas nous faire oublier

Qu'aussi vrai que la terre est ronde

On n'oublie rien de rien

On n'oublie rien du tout

On n'oublie rien de rien

On s'habitue c'est tout

Page 81: TEXERE ~ I ~

Ni même ce temps où j'aurais fait

Mille chansons de mes regrets

Ni même ce temps où mes souvenirs

Prendront mes rides pour un sourire

Ni ce grand lit où mes remords

Ont rendez-vous avec la mort

Ni ce grand lit que je souhaite

A certains jours comme une fête

Ni tout cela ni rien au monde

Ne sait pas nous faire oublier

Ne peut pas nous faire oublier

Qu'aussi vrai que la terre est ronde

On n'oublie rien de rien

On n'oublie rien du tout

On n'oublie rien de rien

On s'habitue c'est tout

Jacques Brel

Van Gogh, Vase with Gladioli

Page 82: TEXERE ~ I ~

Irina Kalentieva, Girl near the window

Todas as cartas de amor são

Ridículas.

Não seriam cartas de amor se não fossem

Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,

Como as outras,

Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,

(Todas as palavras esdrúxulas,

Como os sentimentos

esdrúxulos,

São naturalmente

Ridículas.)

Álvaro de Campos, Poemas

Têm de ser

Ridículas.

Mas, afinal,

Só as criaturas que nunca escreveram

Cartas de amor

É que são

Ridículas.

Quem me dera no tempo em que

escrevia

Sem dar por isso

Cartas de amor

Ridículas.

A verdade é que hoje

As minhas memórias

Dessas cartas de amor

É que são

Ridículas.

Page 83: TEXERE ~ I ~

DOMINGO

Quando chega domingo,

faço tenção de todas as coisas mais belas

que um homem pode fazer na vida.

Há quem vá para o pé das águas

deitar-se na areia e não pensar...

E há os que vão para o campo

cheios de grandes sentimentos bucólicos

porque leram, de véspera, no boletim do jornal:

« Bom tempo para amanhã»...

Mas uma maioria sai para as ruas pedindo,

pois nesse dia

aqueles que passeiam com a mulher e os filhos

são mais generosos.

Um rapaz que era pintor

não disse nada a ninguém

e escolheu o domingo para se matar.

Ainda hoje a família e os amigos

andam pensando porque seria.

Só não relacionam que se matou num domingo!

Mariazinha Santos

(aquela que um dia se quis entregar,

que era o que a família desejava,

para que o seu futuro ficasse resolvido),

Mariazinha Santos

quando chega domingo,

vai com uma amiga para o cinema.

Deixa que lhe apalpem as coxas

e abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe lhe bordou,

quando ela era ainda muito menina...

Para eu contar isto

é que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo!

À hora negra das noites frias e longas

sei duma hora numa escada

onde uma velha põe sua neta

e vem sorrir aos homens que passam!

E a costureirinha mais honesta que eu namorei

vendeu a virgindade num domingo

— porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores!

Há mais amargura nisto

que em toda a História das Guerras.

Page 84: TEXERE ~ I ~

Partindo deste princípio.

que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer,

eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o

domingo.

E esta era uma das coisas mais belas

que um homem podia fazer na vida!

Então,

todas as raparigas amariam no tempo próprio

e tudo seria natural

sem mendigos nas ruas nem casas de penhores...

Penso isto, e vou a grandes passadas...

E um domingo parei numa praça

e pus-me a gritar o que sentia,

mas todos acharam estranhos os meus modos

e estranha a minha voz...

Mariazinha Santos foi para o cinema

e outras menearam as ancas

— ao sol

como num ritual consagrado a um deus! —

até chegar o homem bem-amado entre todos

com uma nota de cem na mão estendida...

Venha a miséria maior que todas

secar o último restolho de moral que em mim resta;

e eu fique rude como o deserto

e agreste como o recorte das altas serras;

venha a ânsia do peito para os braços!

E vou a grandes passadas

como um louco maior que a sua loucura...

O rapaz que era pintor

aconchegou-se sobre a linha férrea

para que a morte o desfigurasse

e o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica

de revolta contra o mundo.

Mas como o rosto lhe estava intacto

vai a família ao necrotério e ficou aterrada!

Conheci-o numa noite de bebedeira

e acho tudo aquilo natural.

A costureirinha que eu namorei

deixava-se ir para as ruas escuras

sem nenhum receio.

Uma vez que chovia até entrámos numa escada.

Somente sequer um beijo trocámos...

Page 85: TEXERE ~ I ~

E isto porque no momento próprio

olhava para mim com um propósito tão sereno

que eu, que dela só desejava o corpo bom feito,

me punha a observar o outro aspecto do seu rosto,

que era aquela serenidade

de pessoa que tem a vida cheia e inteira.

No entanto, ela nunca pôs obstáculo

que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas.

Hoje encontramo-nos aí pelos cafés...

(ela está sempre com sujeitos decentes)

e quando nos fitamos nos olhos,

bem lá no fundo dos olhos,

eu que sou homem nascido

para fazer as coisas mais heróicas da vida

viro a cabeça para o lado e digo:

— rapaz, traz-me um café...

O meu amigo, que era pintor,

contou-me numa noite de bebedeira:

— Olha,

quando chega domingo,

não há nada melhor que ir para o futebol...

E como os olhos se me enevoassem de água,

continuou com uma voz

que deve ser igual à que se ouve nos sonhos:

— .... no entanto, conheço um homem

que ia para a beira do rio

e passava um dia inteirinho de domingo

segurando uma cana donde caia um fio para a água...

... um dia pescou um peixe,

e nunca mais lá voltou...

O pior é pensar:

que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre

como se fosse uma festa?... —

O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara,

tão rara e certa e maravilhosa

que deslumbrado se matou.

Pago o café e saio a grandes passadas.

Hoje e depois e todos os dias que vierem,

amo a vida mais e mais

que aqueles que sabem que vão morrer amanhã!

Page 86: TEXERE ~ I ~

Mariazinha Santos,

que vá para o cinema morder o lencinho que sua mãe lhe

bordou...

E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos,

que parem ao sol

e joguem um tostão na mão dos pedintes...

E a menina das horas longas e frias

continue pela mão de sua avó...

E tu, que só andas com cavalheiros decentes,

ó costureirinha honesta que eu namorei um dia,

fita-me bem no fundo dos olhos,

fita-me bem no fundo dos olhos!

Então,

virá a miséria maior que todas

secar o último restolho de moral que em mim resta;

e eu ficarei rude como o deserto

e agreste como o recorte das altas serras:

e virá a ânsia do peito para os braços!

Domingo que vem,

eu vou fazer as coisas mais belas

que um homem pode fazer na vida!

Manuel da Fonseca

Page 87: TEXERE ~ I ~

em fundo

Chavelas Vargas

- interpreta -

Pablo Neruda, Eduardo Falú, Nicolas Guillen

Facundo Cabral, Atahualpa Yupanqui

Page 88: TEXERE ~ I ~

Quero falar-te deste amor, como de um vento

amordaçado na camisa; uma febre de verão

que o mercúrio não acha; um telhado esmagado

pela ideia da chuva. Quero dizer-te

que sobre ele pairaram sempre brumas e nevoeiros

e profecias de temporais maiores, como os que levam

para longe os corpos dos navios. Não há notícias

deste amor; apenas uma intriga, um recado sonâmbulo,

um temor que desmaia as pregas do vestido e um sortilégio

urdido nas paisagens suspensas de um mapa que aperto

na mão sem desdobrar. E há memórias

deste amor? A voz sem as palavras, um livro lido

às escuras, um bilhete cifrado deixado num hotel,

um velho calendário cheio de desencontros? Não,

não há memória deste amor.

Maria do Rosário Pedreira, O Canto do Vento nos Ciprestes

Munch, Cinzas

Page 89: TEXERE ~ I ~

Rodin, Les Mains

MÃOS

Côncavas de ter

Longas de desejo

Frescas de abandono

Consumidas de espanto

Inquietas de tocar e não prender.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral

Page 90: TEXERE ~ I ~

Diz-me, silêncio...

Diz-me, silêncio, em ruídos permanentes

singelamente confusos primitivos -

que mão estender à voz que ouvida não

fala comigo ou com ninguém, silente:

Devo tocar como quem chama e pede?

Ou agarrar o que não fala ainda

senão por gestos quase imperceptíveis?

Esperarei perguntas sem resposta?

Responderei perguntas não faladas?

Diz-me, silêncio, em ruídos de que és feito,

como entender-te quando és corpo humano.

Jorge de Sena

Magritte, La méditation

Page 91: TEXERE ~ I ~

esta esquisita prova me tentou

de tecer um rumor em muros de água

ossos de terra calcinada

o jugo

culpado me castigo com engenho

e da voz desenhada o artifício

restos de pele antiga

no laço da armadilha

em silêncio me muro e me demoro

no cálculo de rotas inexactas

um duro arbítrio quer que me desprenda

dos cinco ou mais sentidos

vou ser livre na terra desnudada

vou dizer o que sei como quem mente.

António Franco Alexandre, A Pequena Face

Athouguia, Na Rota de Mares Subterrâneos

Page 92: TEXERE ~ I ~

Nicolas Stael

Águia

As águias não deviam ser aves

mas corações aduncos e com asas;

se olhares à flor dos campos e das casas

sentes o peito maior do que a amplidão:

se alguma coisa nasceu para voar

foi o teu coração.

Carlos de Oliveira, Colheita Perdida

Page 93: TEXERE ~ I ~

Tudo que faço ou medito

Fica sempre na metade.

Querendo, quero o infinito.

Fazendo, nada é verdade.

Que nojo de mim me fica

Ao olhar para o que faço!

Minha alma é lúcida e rica,

E eu sou um mar de sargaço –

Um mar onde bóiam lentos

Fragmentos de um mar de além...

Vontades ou pensamentos?

Não o sei e sei-o bem.

Pessoa, Cancioneiro

De Chirico, Nostalgia do Infinito

Page 94: TEXERE ~ I ~

Símbolos? Estou farto de símbolos...

Mas dizem-me que tudo é símbolo.

Todos me dizem nada.

Quais símbolos? Sonhos. –

Que o sol seja um símbolo, está bem...

Que a lua seja um símbolo, está bem...

Que a terra seja um símbolo, está bem...

Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa,

E ele rompe as nuvens e aponta para trás das costas

Para o azul do céu?

Mas quem repara na lua senão para achar

Bela a luz que ela espalha, e não bem ela?

Mas quem repara na terra, que é o que pisa?

Chama terra aos campos, às árvores, aos montes.

Por uma diminuição instintiva,

Porque o mar também é terra...

Bem, vá, que tudo isso seja símbolo...

Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,

Mas neste poente precoce e azulando-se

O sol entre farrapos finos de nuvens,

Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado,

E o que fica da luz do dia

Doura a cabeça da costureira que pára vagamente à esquina

Onde demorava outrora com o namorado que a deixou?

Símbolos? Não quero símbolos...

Queria – pobre figura de miséria e desamparo! –

Que o namorado voltasse para o costureira.

Álvaro de Campos

Page 95: TEXERE ~ I ~

desistiu.

cortou os cabelos, encurtou

as saias, trocou a cor do

batom e o número do telefone

celular.

esqueceu promessas e juras

- mentiras antigas -

bem como a cor dos seus olhos e

o tom grave da sua voz

: dele.

tratou de, em paz, viver a vida:

a sua.

as cartas, entretanto, guardou

para o caso de arrependimento

futuro ou se viesse a pesar a solidão.

Márcia Maia

mudança de hábito

Page 96: TEXERE ~ I ~

Ocorre-me tropeçar em ti numa linha

que escrevi noutra idade - tão discreta

é a tua presença que ninguém

a não ser eu te poderá descobrir.

E sinto-me grato, como também o estou

ao gato do quintal ou às gaivotas

que esgravatam em tantos versos meus

à procura de sol fresco para alimento.

"É o seu peito, a sua boca", digo então,

e na penumbra do quarto por instantes

brilha de novo o corpo do desejo.

Eugénio de Andrade, O Sal da Língua

Claudined, Désir Intemporel

Page 97: TEXERE ~ I ~

O fortuna

velut Luna

statu variabilis,

semper crescis

aut decrescis;

vita detestabilis

nunc obdurat

et tunc curat

ludo mentis aciem,

egestatem,

potestatem

dissolvit ut glaciem.

Sors immanis

et inanis,

rota tu volubilis,

status malus,

vana salus

semper dissolubilis,

obumbrata

et velata

michi quoque niteris;

[...]

Carl Orff - Carmina Burana

Page 98: TEXERE ~ I ~

Caminho sem pés e sem sonhos

Caminho sem pés e sem sonhos

só com a respiração e a cadência

da muda passagem dos sopros

caminho como um remo que se afunda.

os redemoinhos sorvem as nuvens e os peixes

para que a elevação e a profundidade se conjuguem.

avanço sem jugo e ando longe

de caminhar sobre as águas do céu.

Daniel Faria, Explicação das Árvores e de Outros Animais

Astrid Lüders, Wirbel

Page 99: TEXERE ~ I ~

Das Klavier ist mein zweites Ich

Chopin

Semiradsky - Chopin

Page 100: TEXERE ~ I ~

A João Rui de Sousa

Para um amigo tenho sempre um relógio

esquecido em qualquer fundo de algibeira.

Mas esse relógio não marca o tempo inútil.

São restos de tabaco e de ternura rápida.

É um arco íris de sombra, quente e trémulo.

É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.

António Ramos Rosa, Não

posso adiar o coração

Na grande confusão

deste medo

deste não querer saber

na falta de coragem

ou na coragem de

me perder me afundar

perto de ti tão longe

tão nu

tão evidente

tão pobre como tu

Oh diz-me quem sou eu

quem és tu?

António Ramos Rosa

Page 101: TEXERE ~ I ~

Kirsten Hellmich, Gross Flehen

Súplica

Agora que o silêncio é um mar sem ondas

E que nele posso navegar sem rumo,

Não respondas

Às urgentes perguntas

Que te fiz.

Deixa-me ser feliz

Assim.

Já tão longe de ti, como de mim.

Perde-se a vida, a desejá-la tanto.

Só soubemos sofrer, enquanto

O nosso amor

Durou.

Mas o tempo passou,

Há calmaria...

Não perturbes a paz que me foi dada.

Ouvir de novo a tua voz, seria

Matar a sede com água salgada.

Miguel Torga, Câmara Ardente

Page 102: TEXERE ~ I ~

CAMILLE CLAUDEL

L'Abandon

Page 103: TEXERE ~ I ~

Deborah Ormsby, fractal-Fountain of Youth

Nos teus dedos nasceram horizontes

e aves verdes vieram desvairadas

beber neles julgando serem fontes.

Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos

Page 104: TEXERE ~ I ~

A dor da separação

Pousada numa âncora, uma gaivota pia.

De súbito, sem uma palavra, a âncora desliza.

Surpreendida, a gaivota levanta voo.

Em breve, a âncora empalidece na água, afundando-se.

E o que a gaivota sente torna-se um grito bravio, triste,

Perdido no vento.

Maruyama Kaoru – Trad.: José Alberto Oliveira

In Rosa Do Mundo, 2001 Poemas Para O Futuro

Page 105: TEXERE ~ I ~

Sonho

Penso que devo ter adormecido por algum tempo;

Pois quando acordei tinhas vindo e partido.

Apenas algumas flores permaneciam –

Flores que não podiam sequer dizer quem eram…

E uma fragrância vaga e suave no ar.

Esta noite tenho de sonhar um sonho mais longo

Para que as flores falem

E a sua fragrância estenda uma trémula ponte

Entre nós.

P.S. Rege - Trad.: Cecília Rego Pinheiro

Turner, Claire de Lune

Page 106: TEXERE ~ I ~

Como cresceram as brasas!

Como cresceram as brasas! Como queimam

o ar em que desenho

o vazio dos dedos!

Que mala de amianto possuir

para guardar o fogo

de iluminar as noites que virão?

Egito Gonçalves, O fósforo na Palha

Page 107: TEXERE ~ I ~

AMOR

Não sei nunca se é isto exactamente

o que chamam amor - esta vontade

de imaginar assim a força que há-de

tornar-nos mais felizes de repente

ou infelizes, tanto faz; a ardente

promessa de um saber que nos invade

e nos deixa sem nome nem idade

à espera de uma imagem que nos mente

na certeza de tudo o que se entrega

à nossa alma com uma luz que cega

todas as circunstâncias, uma a uma,

até se transformar na fantasia

que rouba o dia à noite, a noite ao dia,

e vai morrer algures, desfeita em espuma.

Fernando Pinto do Amaral, Pena Suspensa

Chagall, Lovers in the Lilacs

Page 108: TEXERE ~ I ~

Difícil é...

Difícil é esperar

quando sabemos

nada haver a esperar.

O eco de uma lágrima não basta

para dar vento à sementeira.

Egito Gonçalves, O Fósforo na Palha

Colin Mackenzie, tears from the heart

Page 109: TEXERE ~ I ~

em fundo

Tchaikovsky - Violin Concerto D major, op.35

David Oistrach,Violin. Igor Oistrach, Violin

Leipzig Gewandhaus Orchestra - Franz Konwitschny

Page 110: TEXERE ~ I ~

IL VENTO CI PORTERÀ VIA

Nella mia piccola notte il vento, e le foglie

si ritrovano.

Nella mia piccola notte la paura, è

distruzione.

Ascolta, senti il frusciar dell'oscurità?

Io guardo meravigliato, questa felicità Del

mio pessimismo, son dipendente.

Ascolta, senti il frusciar dell'oscurità?

Ora nella notte qualcosa sta passando, e la

luna rossa è in allarme.

Su questo letto, che ogni attimo teme il

crollo, le nuvole, come un popolo in lutto,

attendono il momento della pioggia.

Un momento e subito dopo... nulla più.

Dietro questa finestra la notte trema e la

terra arresta il suo girare.

Oltre la finestra, un estraneo si preoccupa

di me e di te.

Oh corpo rigoglioso...le tue mani come

doloroso ricordo, poggia tra le mie

innamorate.

E le tue labbra, come una sensazione calda

di vita, lasciale carezzare le mie labbra

innamorate.

Il vento ci porterà via.

di Forugh Farrokhzad - traduzione Babak Karimi

Cascina Valletta

Page 111: TEXERE ~ I ~

THE WIND WILL TAKE US

In my small night, ah

the wind has a date with the leaves of the trees

in my small night there is agony of destruction

listen

do you hear the darkness blowing?

I look upon this bliss as a stranger

I am addicted to my despair.

listen do you hear the darkness blowing?

something is passing in the night

the moon is restless and red

and over this rooftop

where crumbling is a constant fear

clouds, like a procession of mourners

seem to be waiting for the moment of rain.

a moment

and then nothing

night shudders beyond this window

and the earth winds to a halt

beyond this window

something unknown is watching you and me.

Alexis Lesaffre

O green from head to foot

place your hands like a burning memory

in my loving hands

give your lips to the caresses

of my loving lips

like the warm perception of being

the wind will take us

the wind will take us.

Forough Farrokhzad - Translated by Ahmad Karimi Hakkak

Page 112: TEXERE ~ I ~

LE VENT NOUS EMPORTERA

Dans ma nuit, si brève, hélas

Le vent a rendez-vous avec les feuilles.

Ma nuit si brève est remplie de l'angoisse dévastatrice

Ecoute! Entends-tu le souffle des ténèbres?

De ce bonheur, je me sens étranger.

Au désespoir je suis accoutumée.

Ecoute! Entends-tu le souffle des ténèbres?

Là, dans la nuit, quelque chose se passe

La lune est rouge et angoissée.

Et accrochés à ce toit

Qui risque de s'effondrer à tout moment,

Les nuages, comme une foule de pleureuses,

Attendent l'accouchement de la pluie,

Un instant, et puis rien.

Derrière cette fenêtre,

C'est la nuit qui tremble

Et c'est la terre qui s'arrête de tourner.

Derrière cette fenêtre, un inconnu s'inquiète

pour moi et toi.

Toi, toute verdoyante,

Pose tes mains - ces souvenirs ardents -

Sur mes mains amoureuses

Et confie tes lèvres, repues de la chaleur de la vie,

Aux caresses de mes lèvres amoureuses

Le vent nous emportera!

Le vent nous emportera!

Forough Farrokhzad,

Poème extrait du film Le Vent nous emportera,

d'Abbas Kiarostami

Erik Anestad

Page 113: TEXERE ~ I ~

O VENTO LEVAR-NOS-Á

Na minha noite, infelizmente tão curta

o vento está prestes a encontrar-se com as folhas das árvores

na minha noite, tão breve, e plena de uma angústia devastadora

ouve

ouves o sussurro das sombras?

esta felicidade é-me desconhecida

estou habituada ao desespero

Ouves o sussurro das sombras?

ali, na noite, algo acontece

a lua é vermelha e ansiosa

e sobre este telhado

que a qualquer momento pode ruir

as nuvens, qual procissão de carpideiras

aguardam o nascimento da chuva.

um segundo

depois nada

atrás desta janela a noite treme

e a terra pára de girar

atrás desta janela

qualquer coisa desconhecida inquieta-se comigo e contigo

Tu, verde dos pés à cabeça

coloca as tuas mãos, essas memórias escaldantes,

nas minhas mãos amorosas

entrega os teus lábios ao toque

dos meus lábios amorosos

repletos do calor da vida

o vento levar-nos-á

o vento levar-nos-á.

Forugh Farrokzad - Versão de Vasco Gato

Jacques Pontbriand

Page 114: TEXERE ~ I ~

Uma voz na pedra

Não sei se respondo ou se pergunto

Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.

Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.

Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.

De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.

A minha tristeza é a da sede e a da chama.

Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.

O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.

Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta

nascente.

Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.

Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.

Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.

Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.

Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

António Ramos Rosa

Magritte, Le regard interieur

Page 115: TEXERE ~ I ~

El Infinito

De un tiempo a esta parte

el infinito

se ha encogido

peligrosamente.

Quién iba a suponer

que segundo a segundo

cada migaja

de su pan sin límites

iba así a despeñarse

como canto rodado

en el abismo.

Mário Benedetti

Edward Hopper, hotel-room

Page 116: TEXERE ~ I ~

Il pleure dans mon coeur

Comme il pleut sur la ville.

Quelle est cette langueur

Qui pénètre mon coeur?

O bruit doux de la pluie

Par terre et sur les toits!

Pour un coeur qui s'ennuie,

O le chant de la pluie!

Il pleure sans raison

Dans ce coeur qui s'écoeure.

Quoi? Nulle trahison?

Ce deuil est sans raison.

C'est bien la pire peine

De ne savoir pourquoi

Sans amour et sans haine

Mon coeur a tant de peine!

Verlaine

Água morrente

Il pleure dans mon coeur

Comme il pleut sur la ville.

Verlaine

Meus olhos apagados,

Vede a água cair.

Das beiras dos telhados

Cair, sempre cair.

Das beiras dos telhados,

Cair, quase morrer...

Meus olhos apagados,

E cansados de ver.

Meus olhos, afogai-vos

Na vã tristeza ambiente.

Caí e derramai-vos

Como a água morrente.

Camilo Pessanha

Van Gogh, Japonaiserie, Bridge in the Rain (after Hiroshige)

Page 117: TEXERE ~ I ~

Ursula Tillmetz, Tristan & Isolde

Tristão e Isolda

As linhas paralelas que nós somos

passam, distantes dos terrenos bens.

Para elas não são nenhuns dos pomos

com que tu, irmão-homem, te entreténs...

Podem vir pois ameaçar, tentar

águas de fáceis lagos nossos remos...

Para nós dois apenas este Mar:

o Infinito aonde nos veremos.

David Mourão-Ferreira

Page 118: TEXERE ~ I ~

Lisboa – do Miradouro do Monte Agudo

Page 119: TEXERE ~ I ~

mal-me-queres

Ó malmequer mentiroso

Quem te ensinou a mentir

Tu dizes quem me quer bem

Quem de mim anda a fugir

Desfolhei um malmequer

Num lindo jardim de Santarém

Malmequer, bem me quer

Muito longe está quem me quer bem

Coitado do malmequer

Sem fazer mal a ninguém

São todos a desfolhá-lo

Para ver quem lhe quer bem

Malmequer não é constante

Malmequer muito varia

Vinte folhas dizem morte

Treze dizem alegria

Cancioneiro

Van Gogh, vase with daisies and anemones

Page 120: TEXERE ~ I ~

Drei Eichen, Feuer

Page 121: TEXERE ~ I ~

AMORES PROIBIDOS

em memória de David Mourão-Ferreira

Onde está quem amamos quando amamos

outro corpo de fogo em movimento?

Pra que abismo corremos pra que enganos

quando as promessas são poeira ao vento?

De que matéria alheia mal tentamos

fugir quando a verdade mora dentro

de alguém a cujo céu nos entregamos

numa noite de sonho e de tormento?

Ainda somos humanos se traímos

por instinto um amor de tantos anos

e só àquele instante obedecemos?

Ainda somos humanos? Ou seremos

a febre que há no sangue quando vimos

de súbito morrer num corpo e vamos

em busca do inferno que merecemos?

Talvez por um momento então sejamos

sonâmbulos fantasmas do que fomos

reflectidos num espelho que não vemos

Ou talvez nesse corpo descubramos

a memória da alma que perdemos

pra sempre no momento em que transpomos

a fronteira dos gestos quotidianos

e ao sabor de um desejo destruímos

todas as intenções todos os planos,

em nome dos prazeres mais supremos

na noite em que deixamos de ser donos

do nosso próprio corpo e abandonamos

angústias e remorsos e partimos

em busca da manhã que não sabemos

Onde está quem amamos quando somos

mais do que humanos? Mais? Ou muito menos?

Fernando Pinto do Amaral, Pena Suspensa

Page 122: TEXERE ~ I ~

Brigitte Pelzer-Hilke, Krafftier Krähe - Licht und Dunkelheit

A gralha negra em tempo de chuva

Lá no alto, num ramo firme

arqueia-se uma gralha toda molhada

arranjando e voltando a arranjar as penas à chuva.

Não espero qualquer milagre

nem nada

que venha lançar fogo à paisagem

no interior dos meus olhos, nem procuro

mais no tempo inconstante qualquer desígnio,

mas deixo as folhas manchadas cair conforme caem,

sem cerimónia ou maravilha.

Embora - admito-o - deseje

ocasionalmente alguma resposta

do céu mudo, não posso honestamente queixar-me:

uma certa luz pode ainda

surgir incandescente

Page 123: TEXERE ~ I ~

da mesa da cozinha ou da cadeira

como se um fogo celestial tornasse

seu, de um instante para outro, os mais estranhos objectos,

assim consagrando um intervalo

de outro modo inconsequente

por nos dar grandeza e glória

ou até amor. De qualquer modo, caminho agora

atenta (por isso poderia acontecer

mesmo nesta paisagem triste e arruinada); descrente,

mas astuta, ignorante

de que um anjo se decida a resplandecer

repentinamente a meu lado. Apenas sei que uma gralha

ordenando as suas penas negras pode brilhar

de tal maneira que prenda a minha atenção, erga

as minhas pálpebras, e conceda

um breve repouso com medo

de uma neutralidade total. Com sorte,

viajando teimosamente por esta estação

de fadiga, acabarei

por juntar um conjunto

de coisas. Os milagres acontecem

se gostares de invocar aqueles espasmódicos

gestos de luminosos milagres. A espera recomeçou de novo,

a longa espera pelo anjo,

por essa rara, fortuita visita.

Sylvia Plath, Pela Água

ed. bilingue - trad.: Maria de Lourdes Guimarães

Page 124: TEXERE ~ I ~

Catherine Bourdeau, une certaine timidité

Timidez

Basta-me um pequeno gesto,

feito de longe e de leve,

para que venhas comigo

e eu para sempre te leve...

- mas só esse eu não farei.

Uma palavra caída

das montanhas dos instantes

desmancha todos os mares

e une as terras distantes...

- palavras que não direi.

Para que tu me adivinhes,

entre os ventos taciturnos,

apago meus pensamentos,

ponho vestidos noturnos,

- que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,

os mundos vão navegando

nos ares certos do tempo

até não se sabe quando...

- e um dia me acabarei.

Cecília Meireles

Page 125: TEXERE ~ I ~

je regarde la mer

Je regarde la mer

s'élever dans l'espace

sur ses immenses ailes d'eau

s'envoler loin d'ici

loin des misères de la terre

et qui se pose pour chanter

sur l'une des branches

de l'arbre soleil

Pierre Chatillon, Le violon vert

Begoña Rojas, Mar

Page 126: TEXERE ~ I ~

Aqui na orla da praia, ...

Manuel Antão, A força do mar

Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,

Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,

Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,

E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.

A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio

Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;

O amor é um sonho que chega para o pouco ser que se é;

A glória concede e nega; não tem verdades a fé.

Por isso na orla morena da praia calada e só,

Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;

Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,

E comecei a morrer muito antes de ter vivido.

Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,

Não quero nada do acaso, senão a brisa na face;

Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei,

Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.

Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar,

Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,

Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,

Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.

Fernando Pessoa, Cancioneiro

Page 127: TEXERE ~ I ~

Se eu pudesse iluminar por dentro...

(O soneto que só errado ficou certo.)

Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias

para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,

que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias

e esta ternura dos olhos que se dão.

Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão

- mas o desejo de ser a noite que me guias

e baixinho ao bafo da tua respiração

contar-te todas as minhas covardias.

Ao pé de ti não me apetece ser herói

mas abrir-te mais o abismo que me dói

nos cardos deste sol de morte viva.

Ser como sou e ver-te como és:

dois bichos de suor com sombra aos pés.

Complicações de luas e saliva.

José Gomes Ferreira, Poesia IV

René Magritte, l'empire de la lumière

Page 128: TEXERE ~ I ~

Duas linhas paralelas

Duas linhas paralelas

Muito paralelamente

Iam passando entre estrelas

Fazendo o que estava escrito:

Caminhando eternamente

de infinito a infinito

Seguiam-se passo a passo

Exactas e sempre a par

Pois só num ponto do espaço

Que ninguém sabe onde é

Se podiam encontrar

Falar e tomar café.

Mas farta de andar sozinha

Uma delas certo dia

Voltou-se para a outra linha

Sorriu-lhe e disse-lhe assim:

"Deixa lá a geometria

E anda aqui para o pé de mim...!

Diz a outra: "Nem pensar!

Mas que falta de respeito!

Se quisermos lá chegar

Temos de ir devagarinho

Andando sempre a direito

Cada qual no seu caminho!"

Page 129: TEXERE ~ I ~

Não se dando por achada

Fica na sua a primeira

E sorrindo amalandrada

Pela calada, sem um grito

Deita a mãozinha matreira

Puxa para si o infinito.

E com ele ali à frente

As duas a murmurar

Olharam-se docemente

E sem fazerem perguntas

Puseram-se a namorar

Seguiram as duas juntas.

Assim nestas poucas linhas

Fica uma estória banal

Com linhas e entrelinhas

E uma moral convergente:

O infinito afinal

Fica aqui ao pé da gente.

José Fanha

Ingrid Wolff-Hamm, Das Unendliche

Page 130: TEXERE ~ I ~

Certitude

Si je te parle c'est pour mieux t'entendre

Si je t'entends je suis sûr de comprendre

Si tu souris c'est pour mieux m'envahir

Si tu souris je vois le monde entier

Si je t'étreins c'est pour me continuer

Si nous vivons tout sera à plaisir

Si je te quitte nous nous souviendrons

Et nous quittant nous nous retrouverons.

Paul Eluard, Derniers poèmes d'amour

M.Wiora, flores de tília

Page 131: TEXERE ~ I ~

Partiste a minha vida...

Partiste a minha vida em longos promontórios,

um dos quais penetra até um jardim relvado

onde a maneira doce como cruzaste as pernas

o fixou em acerada ponta dolorosa.

De longe atacas-me de ternura em riste

penetrando na solidão que te franqueio

onde se engasta o brilho dos teus olhos

e a estranha flor da tua ausência.

Egito Gonçalves, O Fósforo na Palha

Anni Adkins, bruised hibiscus

Page 132: TEXERE ~ I ~

CANÇÃO DA ALMA CAIADA

Aprendi desde criança

Que é melhor me calar

E dançar conforme a dança

Do que jamais ousar

Mas às vezes pressinto

Que não me enquadro na lei:

Minto sobre o que sinto

E esqueço tudo o que sei.

Só comigo ouso lutar,

Sem me poder vencer:

Tento afogar no mar

O fogo em que quero arder.

De dia caio minh'alma

Só à noite caio em mim

por isso me falta calma

e vivo inquieto assim.

António Cícero

Kandinsky, the red oval

Page 133: TEXERE ~ I ~

Tchaikowsky

Sinfonia nº 6, en si mayor, op. 74 "Patetica"

Orquestra Sinfónica del Estado de la URSS

K. Ivanov

em fundo

Page 134: TEXERE ~ I ~

Nathann Altman, Anna Akhmatova

Page 135: TEXERE ~ I ~

Como Pedra Branca

Como pedra branca no fundo do poço

dentro de mim está uma memória.

Nem quero afastá-la, nem posso:

é sofrimento e é prazer e glória.

Julgo que quem olhar-me bem de perto

dentro em meus olhos logo pode vê-la.

E ficará mais triste e pensativo

que alguém que escute uma anedota obscena.

Eu sei que os deuses metamorfoseavam

os homens em coisas sem tirar-lhes alma.

Para que o espante da tristeza dure sempre,

em coisa da memória te mudei.

Tradução de Jorge de Sena

As a White Stone...

As a white stone in the well's cool deepness,

There lays in me one wonderful remembrance.

I am not able and don't want to miss this:

It is my torture and my utter gladness.

I think, that he whose look will be directed

Into my eyes, at once will see it whole.

He will become more thoughtful and dejected

Than someone, hearing a story of a dole.

I knew: the gods turned once, in their madness,

Men into things, not killing humane senses.

You've been turned in to my reminiscences

To make eternal the unearthly sadness.

Translated by Yevgeny Bonver

Anna Akhmatova

Page 136: TEXERE ~ I ~

¡Si me llamaras, sí;

si me llamaras!

Lo dejaría todo,

todo lo tiraría:

los precios, los catálogos,

el azul del océano en los mapas,

los días y sus noches,

los telegramas viejos

y un amor.

Tú, que no eres mi amor,

¡si me llamaras!

Y aún espero tu voz:

telescopios abajo,

desde la estrella,

por espejos, por túneles,

por los años bisiestos

puede venir. No sé por dónde.

Desde el prodigio, siempre.

Porque si tú me llamas

-¡si me llamaras, sí, si me llamaras!-

será desde un milagro,

incógnito, sin verlo.

Nunca desde los labios que te beso,

nunca

desde la voz que dice: "No te vayas".

Pedro Salinas

Juan Gris, La Plaza Ravignan

Page 137: TEXERE ~ I ~

Amar não é aceitar tudo.

Onde tudo é aceito, presumo que há falta de amor.

Vladimir Maiakovsky

Page 138: TEXERE ~ I ~

Pablo Picasso

Alguien entra en el silencio y me abandona.

Ahora la soledad no está sola.

Tú hablas como la noche.

Te anuncias como la sed.

Alexandra Pizarnik, los trabajos y las noches

Page 139: TEXERE ~ I ~

Van Gogh, two cut sunflowers

Como é natural

Vão longe os anos de intermezzo

quando a brisa indolente passeava

doce esperança à flor dos lábios mudos

Se uma folha caída se um rumor

brando acordava o silêncio mal represo

quanto alarme no ar de flores coberto

Vão longe os tempos de alvoroço

de fronteira a fronteira imaginária

rara aventura agora impessoal

uma alegria alheia que hoje amarga

Dou corda a este velho relógio de parede

pesa-me o braço que levanto

do peso de outros tempos que desperto

E um fantasma lá dos fundos do quadrante

sorri-me com tristeza e diz É tarde

talvez já seja muito tarde.

Mário Dionísio, O Silêncio Voluntário

Page 140: TEXERE ~ I ~

Chagall, Lovers Gray

Page 141: TEXERE ~ I ~

CET AMOUR

Cet amour

Si violent

Si fragile

Si tendre

Si désespéré

Cet amour

Beau comme le jour

Et mauvais comme le temps

Quand le temps est mauvais

Cet amour si vrai

Cet amour si beau

Si heureux

Si joyeux

Et si dérisoire

Tremblant de peur comme un enfant dans le noir

Et si sûr de lui

Comme un homme tranquille au milieu de la nuit

Cet amour qui faisait peur aux autres

Qui les faisait parler

Qui les faisait blêmir

Cet amour guetté

Parce que nous le guettions

Traqué blessé piétiné achevé nié oublié

Parce que nous l'avons traqué blessé piétiné achevé nié oublié

Cet amour tout entier

Si vivant encore

Et tout ensoleillé

C'est le tien

C'est le mien

Celui qui a été

Cette chose toujours nouvelle

Et qui n'a pas changé

Aussi vraie qu'une plante

Aussi tremblante qu'un oiseau

Aussi chaude aussi vivante que l'été

Nous pouvons tous les deux

Aller et revenir

Nous pouvons oublier

Et puis nous rendormir

Page 142: TEXERE ~ I ~

Nous réveiller souffrir vieillir

Nous endormir encore

Rêver à la mort

Nous éveiller sourire et rire

Et rajeunir

Notre amour reste là

Têtu comme une bourrique

Vivant comme le désir

Cruel comme la mémoire

Bête comme les regrets

Tendre comme le souvenir

Froid comme le marbre

Beau comme le jour

Fragile comme un enfant

Il nous regarde en souriant

Et il nous parle sans rien dire

Et moi j'écoute en tremblant

Et je crie

Je crie pour toi

Je crie pour moi

Je te supplie

Pour toi pour moi et pour tous ceux qui s'aiment

Et qui se sont aimés

Oui je lui crie

Pour toi pour moi et pour tous les autres

Que je ne connais pas

Reste là

Là où tu es

Là où tu étais autrefois

Reste là

Ne bouge pas

Ne t'en va pas

Nous qui sommes aimés

Nous t'avons oublié

Toi ne nous oublie pas

Nous n'avions que toi sur la terre

Ne nous laisse pas devenir froids

Beaucoup plus loin toujours

Et n'importe où

Donne-nous signe de vie

Beaucoup plus tard au coin d'un bois

Dans la forêt de la mémoire

Surgis soudain

Tends-nous la main

Et sauve-nous.

Jacques Prévert, Paroles

Page 143: TEXERE ~ I ~

Vieira da Silva, Jardins suspendus

Amor é um fogo que arde sem se ver,

é ferida que dói, e não se sente;

é um contentamento descontente,

é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;

é um andar solitário entre a gente;

é nunca contentar-se de contente;

é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;

é servir a quem vence o vencedor;

é ter, com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor

nos corações humanos amizade,

se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís de Camões, Rimas

Page 144: TEXERE ~ I ~

Matisse, harmonie jaune

Cantiga de amigo

Nem um poema nem um verso nem um canto

tudo raso de ausência tudo liso de espanto

e nem Camões Virgílio Shelley Dante

o meu amigo está longe

e a distância é bastante.

Nem um som nem um grito nem um ai

tudo calado todos sem mãe nem pai

Ah não Camões Virgílio Shelley Dante!

o meu amigo está longe

e a tristeza é bastante.

Nada a não ser este silêncio tenso

que faz do amor sozinho o amor imenso.

Calai Camões Virgílio Shelley Dante:

o meu amigo está longe

e a saudade é bastante!

Ary dos Santos, Obra Poética

Page 145: TEXERE ~ I ~

Papoilas

estou opiada de ti

e percorres-me os nervos todos

com papoilas borboletas vermelhas

o meu corpo entrança-se de sonhos

e sente-se caminhando por dentro

aspiro-te

como se me faltasse o ar

e os perfumes dançam-me

qualquer coisa como uma droga bem forte

corpo e alma

rezam pequenas orações

gestos ritmados ao abraçar-te como quem abraça

sonhos

coisa estranha

opiada me preciso ou apenas vestida de papoilas e

muito sol com luas por dentro

para poder mastigar estes sonhos

reais como mandrágoras

Ana Mafalda Leite

Georgia O'keeffe, poppies

Page 146: TEXERE ~ I ~

Amor

Vibrátil, fina, perfumada e clara,

Ondula a aragem que o amor provoca.

Longe, respira a vida. Aqui, o sonho.

Tudo é infância de águas e colinas

Na manhã dos teus olhos.

E voos, de mãos dadas.

E cantos, cantos de infinito amor,

Nos galhos, nas correntes e nas sombras veladas.

Envolve-se de nuvem nosso abraço.

Vibrátil, fina, perfumada e clara,

Ondula a aragem. Fadas e duendes

Agitam instrumentos na folhagem...

Vibrátil, fina, imperceptível, fluida,

Orquestra ao longe, no fundo dos sentidos:

Dedos de flores ondeiam sobre a pele

De céus indefinidos...

Cantam mistérios bocas fascinadas.

Abrem corolas, sobre a luz que as toca.

Vibrátil, fina, perfumada e clara,

Ondula a aragem que o amor provoca.

Natércia Freire

Page 147: TEXERE ~ I ~

Jean Arp, Constellation

Page 148: TEXERE ~ I ~

Un sol

Mi corazón es como un dios sin lengua,

Mudo se está a la espera del milagro,

He amado mucho, todo amor fue magro,

Que todo amor lo conocí con mengua.

He amado hasta llorar, hasta morirme.

Amé hasta odiar, amé hasta la locura,

Pero yo espero algún amor natura

Capaz de renovarme y redimirme.

Amor que fructifique mi desierto

Y me haga brotar ramas sensitivas,

Soy una selva de raíces vivas,

Sólo el follaje suele estarse muerto.

¿En dónde está quien mi deseo alienta?

¿Me empobreció a sus ojos el ramaje?

Vulgar estorbo, pálido follaje

Distinto al tronco fiel que lo alimenta.

¿En dónde está el espíritu sombrío

De cuya opacidad brote la llama?

Ah, si mis mundos con su amor inflama

Yo seré incontenible como un río.

¿En dónde está el que con su amor me envuelva?

Ha de traer su gran verdad sabida...

Hielo y más hielo recogí en la vida:

Yo necesito un sol que me disuelva.

Alfonsina Storni

Munch

Page 149: TEXERE ~ I ~

Balla, mercury passing in front of the sun

O círculo é a forma eleita

É ovo, é zero.

É ciclo, é ciência.

Nele se inclui todo o mistério

E toda a sapiência.

É o que está feito,

Perfeito e determinado,

É o que principia

No que está acabado.

A viagem que o meu ser empreende

Começa em mim,

E fora de mim,

Ainda a mim se prende.

A senda mais perigosa.

Em nós se consumando,

Passando a existência

Mil círculos concêntricos

Desenhando.

Ana Hatherly

Page 150: TEXERE ~ I ~

em fundo

Donizetti, l'elisir d'amore

Rescigno, Pavarotti, Blegen

Metropolitan Opera

Bouguereau, the first kis

Page 151: TEXERE ~ I ~

Una furtiva lagrima

Una furtiva lagrima

negli occhi suoi spuntò...

quelle festose giovani

invidiar sembrò...

Che più cercando io vo?

M'ama, lo vedo.

Un solo istante i palpiti

del suo bel cor sentir!..

Co' suoi sospir confondere

per poco i miei sospir!...

Cielo, si può morir;

di più non chiedo.

Eccola... Oh! qual le accresce

beltà l'amor nascente!

A far l'indifferente

si seguiti così finché non viene

ella a spiegarsi.

Una Furtiva Lacrima - G. Donizetti

Page 152: TEXERE ~ I ~

Enleio

Não sei se volteio

Se rodopio

Se quebro

Se tombo nesta queda

em que passeio

Não sei se a vertigem

em que me afundo

é este precipício em que me enleio

Não sei se cair assim

me quebra...

Me esmago ou sobrevivo

em busca deste anseio

Maria Teresa Horta, Destino

Maxfield Parrish, ecstasy

Page 153: TEXERE ~ I ~

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,

A essa hora dos mágicos cansaços,

Quando a noite de manso se avizinha,

E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha

A tua boca... e eco dos teus passos...

O teu riso de fonte... os teus abraços...

Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,

Traça as linhas dulcíssimas dum beijo

E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...

Quando os olhos se me cerram de desejo...

E os meus braços se estendem para ti...

Florbela Espanca, In Charneca em Flor

Hopper

Page 154: TEXERE ~ I ~

Como te amo?

Como te amo? Deixa-me contar os modos.

Amo-te ao mais fundo, amplo e alto

Minh'alma pode alcançar, além dos limites visíveis

E fins do Ser e da Graça ideal.

Amo-te até ao nível das mais diárias

E ínfimas necessidades, à luz do sol e das velas.

Amo-te com liberdade, como os homens buscam por

Justiça;

Amo-te com pureza, como voltam das Preces.

Amo-te com a paixão posta em uso

Nas minhas velhas mágoas e com a fé da minha infância.

Amo-te com um amor que me parecia perdido

Com meus Santos perdidos - amo-te com o fôlego,

Sorrisos, lágrimas, de toda a minha vida! - e, se Deus

quiser,

Amar-te-ei melhor depois da morte.

Elizabeth Barrett Browning

Sonetos dos Portugueses, trad.:Luís Eusébio

How do I love thee?

How do I love thee? Let me count the ways.

I love thee to the depth and breadth and height

My soul can reach, when feeling out of sight

For the ends of Being and ideal Grace.

I love thee to the level of everyday's

Most quiet need, by sun and candlelight.

I love thee freely, as men strive for Right;

I love thee purely, as they turn from Praise.

I love thee with the passion put to use

In my old griefs, and with my childhood's faith.

I love thee with a love I seemed to lose

With my lost saints, - I love thee with the breath,

Smiles, tears, of all my life! - and, if God choose,

I shall but love thee better after death.

Elizabeth Barrett Browning

Sonnets from the Portuguese

Page 155: TEXERE ~ I ~

Chagall, Land Gods II - Cupid and Psyche

Page 156: TEXERE ~ I ~

em fundo

Franz Schubert, Ave Maria

Ave Maria

Gratia plena

Maria, gratia plena

Maria, gratia plena

Ave, ave dominus

Dominus tecum

Benedicta tu in mulieribus

Et benedictus

Et benedictus fructus ventris

Ventris tui, Jesus.

Ave Maria

Ave Maria

Mater Dei

Ora pro nobis peccatoribus

Ora pro nobis

Ora, ora pro nobis peccatoribus

Nunc et in hora mortis

Et in hora mortis nostrae

Et in hora mortis nostrae

Et in hora mortis nostrae

Ave Maria

Gustav Klimt, Franz Schubert

Page 157: TEXERE ~ I ~

Sozinha no bosque

Com meus pensamentos,

Calei as saudades

Fiz tréguas a tormentos.

Olhei para a Lua,

Que as sombras rasgava,

Nas trémulas águas

Seus raios soltava.

N'aquela torrente

Que vai despedida,

Encontro assustada

A imagem da vida.

Do peito em que as dores

Já iam cessar,

Revoa a tristeza

E torno a penar.

Marquesa de Alorna, Obras Poéticas

Dante Gabriel Rossetti, Portrait of Elizabeth Siddal

Page 158: TEXERE ~ I ~

Les gens ont des étoiles qui ne sont pas les mêmes.

Antoine de Saint-Exupéry, Le Petit Prince

Page 159: TEXERE ~ I ~

Asas

Eu tenho asas!

Piso o chão como pisa toda a gente

mas tenho asas

de impalpável tecido transparente,

feitas de pó de estrelas e de flores.

Asas que ninguém vê, que ninguém sente,

asas de todas as cores.

Pequenas asas brancas que me afastam

das coisas triviais

e as tornam leves, fluídas, irreais

- polén, nuvem, luar, constelações,

irisados cristais.

Asa branca minha alma a palpitar,

bater de asas o doce ciciar

de pálpebras e cílios.

Ó minhas asas brancas de cetim!

Revoadas de pássaros meus sonhos,

Meus desejos sem fim!

Fernanda de Castro, Exílio

Page 160: TEXERE ~ I ~

Hino ao sol

Foto: eli

Respiro o doce hálito da tua boca

- diz Akhenaton ao divino Sol. -

Vejo a tua beleza

todos os dias,

quero para sempre ouvir tua doce voz,

como o vento.

Desejo que a vida renasça em mim,

graças ao teu amor.

Dá-me o alento

que rejuvenesce o teu espírito,

para que eu o colha,

o receba

e dele viva.

Chama por mim até à eternidade.

Jamais deixarei de estar contigo,

jamais deixarei de te responder.

Akhenaton (Amenófis IV)

Page 161: TEXERE ~ I ~

ENDIMIÃO, ENDIMIÃO

Endimião, Endimião,

porque existes só para seres sombra

do desejo mais forte.

Apelas para o elo

que a boca bem redonda continua.

O beijo, sede de água

luminosa soando a pedra fresca

escorrida pelo rio.

Só faltam assim as mãos.

A empatia.

(O senso mais medido.)

Endimião, não quero teu busto

ao canto da casa que me ergo,

não quero a cegueira empedernida.

És, ouve bem,

a pura forma de encontrar a via,

o sono,

o canto na lonjura.

A imobilidade rasa da

resignação.

Amar-te o silêncio

é entregar-me em abismo à natureza.

Maria Alzira Seixo

in 366 poemas que falam de amor

antologia organizada por

Vasco Graça Moura

Page 162: TEXERE ~ I ~

Endymion

David Perret, endymion

Por ti lutavam deuses desumanos.

E eu vi-te numa praia abandonado

À luz, e pelos ventos destroçado,

E os teus membros rolaram nos oceanos.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Page 163: TEXERE ~ I ~

La blanche Séléné...

- La blanche Séléné laisse flotter son voile,

Craintive, sur les pieds du bel Endymion,

Et lui jette un baiser dans un pâle rayon...

Arthur Rimbaud, Soleil et chair

Edward J. Poynter, Vision of Endymion

Page 164: TEXERE ~ I ~

On n'a pas besoin de la lune

On n'a pas besoin de la lune

Quand on est vraiment amoureux

Pas besoin de vent sur la dune

Ni de source ni de ciel bleu

Du moment qu'on aime sa brune

Ça suffit pour qu'on soit heureux

Les yeux dans les yeux

Et le coeur joyeux

On oublie la terre et les cieux

Quelle bonheur quelle joie quelle chance

Ma donnée la vie

La première fois que je vis

Celle qui est mon amie

Nous avons fait connaissance

Son jardin fleuri

Et pas sous le ciel de la Provence

Mais sous un parapluie Place Clichy

Un petit coin de parapluie

Contre un coin de paradis

Elle avait quelque chose d'un ange

On n'a pas besoin de la lune

Quand on est vraiment amoureux

Pas besoin de vent sur la dune

Ni de source ni de ciel bleu

Du moment qu'on aime sa brune

Ça suffit pour qu'on soit heureux

Les yeux dans les yeux

Et le coeur joyeux

On oublie la terre et les cieux

On n'a pas besoin de la lune

Quand on est vraiment amoureux

Georges Brassens, chansons de sa jeunesse

Page 165: TEXERE ~ I ~
Page 166: TEXERE ~ I ~

AMIZADE

De mais ninguém, senão de ti, preciso:

Do teu sereno olhar, do teu sorriso,

Da tua mão pousada no meu ombro.

Ouvir-te murmurar: - "Espera e confia!"

E sentir converter-se em harmonia,

O que era, dantes, confusão e assombro.

Carlos Queirós

in 366 poemas que falam de amor,

uma antologia organizada por

Vasco Graça Moura

Page 167: TEXERE ~ I ~

em fundo

Resnichenko, violin

Johannes Brahms, Violin Concerto, op. 77

BRAHMS

O som do violino

escapa

por entre as lisuras

As fissuras incandescentes da tarde

Buscando no corpo a eleição

a perfeição

Os jacintos adormecidos da arte

Numa desordem

súbita

Maria Teresa Horta, Destino

Page 168: TEXERE ~ I ~

Sintra

... um jardim terreal que Salomão mandou aqui

a um rei de Portugal

Gil Vicente

Foto: eli

Page 169: TEXERE ~ I ~

Em Sintra

Monserrate – Sintra – foto: eli

As águas maravilham-se entre os lábios

e a fala, rápidos

em Sintra espelhos surgem como pássaros,

a luz de que se erguem acontece às águas,

à flor da fala

divide os lábios e a ternura. Da linguagem

rebentam folhas duma cor incómoda, as de que

maravilhado de água surges entre

livros, algum crime, um

menino a dissolver-se ou dele os lábios e ergues

equívoca a luz depois. Rápidos

espelhos então cercam-te explodindo os pássaros.

Luís Miguel Nava, Poesia Completa

Page 170: TEXERE ~ I ~

foto: Wiora

escuta amor

talvez num dia

em que de mim já nada mais exista

te lembres de dois braços

que te abraçaram convulsivamente

nessa altura

deixa que os lábios te sangrem

deixa que o sangue

te corra pelo peito

e as mãos

essas

abandona-as...

Mário Henrique Leiria

Page 171: TEXERE ~ I ~

Miedo

Aquí, sobre tu pecho, tengo miedo de todo;

estréchame en tus brazos como una golondrina

y dime la palabra, la palabra divina

que encuentre en mis oídos dulcísimo acomodo.

Háblame de amor, arrúllame, dame el mejor apodo,

besa mis pobres manos, acaricia la fina

mata de mis cabellos, y olvidaré, mezquina,

que soy, ¡oh cielo eterno!, sólo un poco de lodo.

¡Es tan mala la vida! ¡Andan sueltas las fieras!...

Oh, no he tenido nunca las bellas primaveras

que tienen las mujeres cuando todo lo ignoran.

En tus brazos, amado, quiero soñar en ellos,

mientras tus manos blancas suavizan mis cabellos,

mientras mis labios besan, mientras mis ojos lloran.

Alfonsina Storni

Anni Adkins

Page 172: TEXERE ~ I ~

Liberdade

Aqui nesta praia onde

Não há nenhum vestígio de impureza,

Aqui onde há somente

Ondas tombando, ininterruptamente,

Puro espaço e lúcida unidade,

Aqui o tempo apaixonadamente

Encontra a própria liberdade.

Sophia de Mello Breyner Andresen,

Mar Novo

Foto: eli

Page 173: TEXERE ~ I ~

Azul. Era azul?...

Azul. Era azul? Era a cor

que era, não a que pretendo

- ou seja, a que relembro.

O mar. Água, em todo o caso.

Vento por cima; ou era a voz

de alguém fazendo o ar bulir?

É na pele o que sinto

ou nos ouvidos soa? A sós

a praia. A sós, que não estou lá.

Pedro Tamen, Memória Indescritível

Foto: eli

Page 174: TEXERE ~ I ~

endechas a Bárbara escrava

Onde o povo vão

Perde opinião

Que os louros são belos.

Pretidão de Amor,

Tão doce a figura,

Que a neve lhe jura

Que trocara a cor.

Leda mansidão,

Que o siso acompanha;

Bem parece estranha,

Mas bárbara não.

Presença serena

Que a tormenta amansa;

Nela, enfim, descansa

Toda a minha pena.

Esta é a cativa

Que me tem cativo;

E. pois nela vivo,

É força que viva.

Luís de Camões, Rimas

Aquela cativa

Que me tem cativo,

Porque nela vivo

Já não quer que viva.

Eu nunca vi rosa

Em suaves molhos,

Que pera meus olhos

Fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,

Nem no céu estrelas

Me parecem belas

Como os meus amores.

Rosto singular,

Olhos sossegados,

Pretos e cansados,

Mas não de matar.

Uma graça viva,

Que neles lhe mora,

Pera ser senhora

De quem é cativa.

Pretos os cabelos,

Page 175: TEXERE ~ I ~

Marie Benoist, Portrait

Page 176: TEXERE ~ I ~

Camoniana

Quem és tu, bárbara, que moras

num poema que se estuda nas escolas

e se lê em recitais,

- tu que te limitaste a ser amada

por um poeta que, se calhar, mais

não te deu em troca do amor

do que esse poema que tu, se calhar,

nunca chegaste a ouvir? Quem és,

ó mulher mais real do que esse

poeta que te cantou, e de cuja vida

ninguém sabe nada - a não ser

que te amou, e te deitou nesse

poema em que ainda vives, e respiras

como no dia em que ele o escreveu

lembrando-se do teu corpo, e dos

teus lábios, e dos dias, ou noites,

que contigo se passaram? Quem és,

mulher real e sonhada que habitas

todos os poemas que esse poema

inspirou, e todos os sonhos que

nessa bárbara encontraram uma imagem

precisa e definitiva? volta-te

nesses versos, para que te vejamos

o rosto, e diz-nos o teu nome o nome

autêntico, e não esse que o poeta

inventou para te chamar num poema

que de ti só guarda o segredo;

e adormece depois, esquecendo

o que de ti disseram, e os comentários

de que foste o pretexto, e as imagens

em que, cada vez mais, foste perdendo

a tua, e única, imagem.

Nuno Júdice, Um canto na Espessura do Tempo

Page 177: TEXERE ~ I ~

em fundo

Ottorino Respighi, Italiana

from Ancient Airs and Dances for Lute (suite III)

Berliner Philharmoniker - Herbert von Karajan

Page 178: TEXERE ~ I ~

Somos como árvores

só quando o desejo é morto

Só então nos lembramos

que dezembro traz em si a primavera

Só então, belos e despidos,

ficamos longamente à sua espera.

Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos

Takashi Imashiro, arbres dépouillés par l'hiver

Page 179: TEXERE ~ I ~

oh! a primeira pegada

Oh! a primeira pegada

na areia molhada...

E um homem de pé

a olhar em redor

para o sonho do céu,

dos peixes e das ondas,

num querer arrancar-lhe

a dor da realidade.

Oh! a primeira pegada

na areia molhada...

Foto: eli

E a sombra dum homem

a erguer-se dos seixos

com pés de deusa azul

para atravessar, sozinha,

as águas e as nuvens...

- e ir criar o mundo

com mãos de tempestade...

José Gomes Ferreira, Poesia II

Page 180: TEXERE ~ I ~

Jean-Jules Sahmson, La Musique, Georg Friedrich Händel

WATER MUSIC. DE HÄNDEL

Sobre o rio descem

cordas e madeiras

a remos de metais.

É como sol nas águas, no arvoredo verde

que as águas reverdece de verdura e sombra.

Crepitam trompas e destilam flautas

na crespa ondulação que as proas tangem

e morre em margens de oboé e bombo,

cadenciando o choque das remadas de ouro.

A brisa flui

serena e fina

em cabeleiras

e em rendas que

ondulam risonhas e solenes

Page 181: TEXERE ~ I ~

sobre os bordados esparzidos, prata

que dança e salta enquanto

as barcas se meneiam

na transparência opaca de águas como céu

azul que a tarde por silêncios tece

em majestade eterna e momentânea

dos astros em seu curso.

Habitados só

por deuses e pastores

gerados na saudade

da simples harmonia

contrapontada na invenção da vida,

os planetas pisam

abstractas órbitas

à luz de um sol de que recebem foco.

E as barcas descem temporais o rio

de cujas águas são flutuante forma

da eternidade do destino ignoto.

Com pompas e sorrisos

os instrumentos tocam

virilmente lânguidos

a circunstância de uma festa aquática:

secreta e oculta uma melancolia

dessas grandezas que ordenadas flúem

a remos de metais no efémero perene

de que o eterno faz a sucessão de instantes.

Os últimos acordes como vénias passam.

O sol dardeja sobre as frondes. Tronos

dourados se dissolvem no reflexo de águas

que a música prolonga em gloriosas tardes.

E a glória se dilui de etéreas trompas

que as cordas acompanham sobre os rios

de música tão régia que a existência vive

o acto de pensar na ordem recriada.

Jorge de Sena, Arte de Música

Page 182: TEXERE ~ I ~

O Cacilheiro

Lá vai no Mar da Palha o Cacilheiro,

comboio de Lisboa sobre a água:

Cacilhas e Seixal, Montijo mais Barreiro.

Pouco Tejo, pouco Tejo e muita mágoa.

Na Ponte passam carros e turistas

iguais a todos que há no mundo inteiro,

mas, embora mais caras, a Ponte não tem vistas

como as dos peitoris do Cacilheiro.

Leva namorados, marujos,

soldados e trabalhadores,

e parte dum cais

que cheira a jornais,

morangos e flores.

Regressa contente,

levou muita gente

e nunca se cansa.

Parece um barquinho

lançado no Tejo

por uma criança.

Page 183: TEXERE ~ I ~

Num carreirinho aberto pela espuma,

la vai o Cacilheiro, Tejo à solta,

e as ruas de Lisboa, sem ter pressa nenhuma,

tiraram um bilhete de ida e volta.

Alfama, Madragoa, Bairro Alto,

tu cá-tu lá num barco de brincar.

Metade de Lisboa à espera do asfalto,

e já meia saudade a navegar.

Leva namorados, marujos,

soldados e trabalhadores,

e parte dum cais

que cheira a jornais,

morangos e flores.

Regressa contente,

levou muita gente

e nunca se cansa.

Parece um barquinho

lançado no Tejo

por uma criança.

Se um dia o Cacilheiro for embora,

fica mais triste o coração da água,

e o povo de Lisboa dirá, como quem chora,

pouco Tejo, pouco Tejo e muita mágoa.

Letra: Ary dos Santos

Música: Paulo de Carvalho

Canta: Carlos do Carmo

Page 184: TEXERE ~ I ~

Elegia

A veces me dan ganas de llorar,

pero las suple el mar.

José Gorostiza,

de Canciones para cantar en las barcas

Foto: eli

Page 185: TEXERE ~ I ~

Qui sait...

Qui sait, nous ne nous aimerions peut-être pas tant

Si nos âmes ne se voyaient pas de si loin.

Nous ne serions peut-être pas si près, qui sait

Si le destin ne nous avait séparés.

Nazin Hikmet, c'est un dur métier que l'exil

Tapiès

Page 186: TEXERE ~ I ~

em fundo

do Miradouro de Santa Luzia

The Choir of New College, Oxford

Edward Higginbottom

Page 187: TEXERE ~ I ~

Amor é olhar total, que nunca pode

ser cantado nos poemas ou na música,

porque é tão-só próprio e bastante,

em si mesmo absoluto táctil,

que me cega, como a chuva cai

na minha cara, de faces nuas,

oferecidas sempre apenas à água.

Fiama Hasse Pais Brandão

Page 188: TEXERE ~ I ~

CALÇADA À PORTUGUESA

O mar sai das mãos destes calceteiros

que logo de manhã se ajoelham na rua

a bater

nos cubos de pedra

como se fossem pães de um tempo

inacabado.

Sisudos e pacientes limpam o corpo negro

do pó branco do trabalho

e avançam lentamente aos pés

de quem anda a correr pelos próprios meios

e mundos.

O mar não se devia perder

em minúcias citadinas de raças que tentam conviver

na sobrevivência.

Mas o suor é uma água nostálgica

que envolve a carne frágil

das mulheres

com seus carrinhos de compras

e as suas crianças de carrinho.

Água soberba e manchada de sexo.

Negro, negro sensual de mornas e coladeiras

não subas acima do passeio.

Não me invadas o corpo,

não me molhes as noites mal dormidas.

E o homem no chão afeiçoa

a pequena pedra

ao mar seco e saudoso da sua transumância,

às entranhas da terra que não é a sua.

Só o coração simples lhe pede

uma sede de água.

Ou de cerveja.

Armando Silva Carvalho, Lisboas

Page 189: TEXERE ~ I ~

Lisboa, Parque das Nações

in CAIS, Círculo de Apelo à Integração dos Sem-abrigo

Nº 54 - Janeiro/Fevereiro de 2001

Page 190: TEXERE ~ I ~

L'Alliance

photogalery

Définitivement ils sont deux petits arbres

Seuls dans un champ léger

Ils ne se sépareront plus jamais.

Paul Eluard, Derniers poèmes d'amour

Page 191: TEXERE ~ I ~

Destino

Quem disse à estrela o caminho

Que ela há-de seguir no céu?

A fabricar o seu ninho

Como é que a ave aprendeu?

Quem diz à planta - "Floresce!" -

E ao mudo verme que tece

Sua mortalha de seda

Os fios quem lhos enreda?

Ensinou alguém à abelha

Que no prado anda a zumbir

Se à flor branca ou à vermelha

O seu mel há-de ir pedir?

Que eras tu meu ser, querida,

Teus olhos a minha vida,

Teu amor todo o meu bem...

Ai! não mo disse ninguém.

Como a abelha corre ao prado,

Como no céu gira a estrela,

Como a todo o ente o seu fado

Por instinto se revela,

Eu no teu seio divino

Vim cumprir o meu destino...

Vim, que em ti só sei viver,

Só por ti posso morrer.

Almeida Garrett,

Folhas Caídas

Garrett, desenho de Almada Negreiros

Page 192: TEXERE ~ I ~

em fundo

Beethoven, Symphonie nr.9

Anna Tomowa-Sintow . Agnes Baltsa

Peter Schreier . José Van dam

Wiener Singverein

Berliner Philharmoniker - Herbert von Karajan

Andy Warhol, Beethoven

Page 193: TEXERE ~ I ~

ODE AN DIE FREUNDE

O Freunde, nicht diese Töne!

Sondern lasst uns angenehmere anstimmen

und freundenvollere!

Freunde, schöner Götterfunken

Tochter aus Elysium

wir betreten feuertrunken

Himmlische, dein Heiligtum!

Deiner Zauber binden wieder,

Was die Mode streng geteilt;

Alle Menschen werdwn Brüder,

Wo dein sanfter Flügel weilt.

Wem der grosse Wurf gelungen,

Eines Freundes Freund zu sein,

Wer ein holdes Weib errungen

Mische seine Jubel ein!

Ja, wer auch nur eine Seele

Sein nennt auf dem Erdenrund!

und wer's nie gekonnt, der stehle

Weinend sich aus diesem Bund.

freunde trinken alle wesen

An den Brüsten der Natur;

Alle Guten, alle Bösen

Folgen ihrer Rosenspur.

Küsse gab sie uns und Reben

Einen Freund, geprüft im Tod;

Wollust ward dem Wurm gegeben,

Und der Cherub steht vor Gott!

Froh, wie seine Sonnen fliegen

Durch des Himmels prächt'gen Plan,

Laufet, Brüder, eure Bahn,

Freudig, wie ein Held zum Siegen

Seid umschlungen, Millionen.

Diesen Kuss der ganzen Welt!

Brüder! Überm Sternenzelt

Muss ein lieber Vater wohnen.

Ihr stürzt nieder, Millionen?

Ahnest du den Schöpfer, Welt?

Such'ihn überm Sternenzelt!

Über Sternen muss er wohnen.

Friedrich von Schiller

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Presépio no exterior do Convento de Mafra, Dez. 2004

Fotos de F. –

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KYRIE

Em nome dos que choram,

Dos que sofrem,

Dos que acendem na noite o facho da revolta

E que de noite morrem,

Com a esperança nos olhos e arames em volta.

Em nome dos que sonham com palavras

De amor e paz que nunca foram ditas,

Em nome dos que rezam em silêncio

E falam em silêncio

E estendem em silêncio as duas mãos aflitas.

Em nome dos que pedem em segredo

A esmola que os humilha e os destrói

E devoram as lágrimas e o medo

Quando a fome lhes dói.

Em nome dos que dormem ao relento

Numa cama de chuva com lençóis de vento

O sono da miséria, terrível e profundo.

Em nome dos teus filhos que esqueceste,

Filho de Deus que nunca mais nasceste,

Volta outra vez ao mundo!

José Carlos Ary dos Santos, 20 Anos de Poesia

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L'hymne à l'Amour

Le ciel bleu sur nous peut s'effondrer

Et la terre peut bien s'écrouler

Peu m'importe si tu m'aimes

Je me fous du monde entier

Tant qu'l'amour inond'ra mes matins

Tant que mon corps frémira sous tes mains

Peu m'importe les problèmes

Mon amour puisque tu m'aimes

J'irais jusqu'au bout du monde

Je me ferais teindre en blonde

Si tu me le demandais

J'irais décrocher la lune

J'irais voler la fortune

Si tu me le demandais

Je renierais ma patrie

Je renierais mes amis

Si tu me le demandais

On peut bien rire de moi

Je ferais n'importe quoi

Si tu me le demandais

Si un jour la vie t'arrache à moi

Si tu meurs que tu sois loin de moi

Peu m'importe si tu m'aimes

Car moi je mourrais aussi

Nous aurons pour nous l'éternité

Dans le bleu de toute l'immensité

Dans le ciel plus de problèmes

Mon amour crois-tu qu'on s'aime

Dieu réunit ceux qui s'aiment

Paroles: Edith Piaf

Musique: Marguerite Monnot

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Toulouse-Lautrec, Baiser

Page 198: TEXERE ~ I ~

Ad Animam Oblitam

Estamos em Lisboa face a face, neste lugar atlântico de

passagem.

Ouço na tua voz um recado de Alice:

amanhã, se puderes, veste-te de azul pálido e de branco,

põe no cabelo uma

fita prateada. Senta-te, como convém, no crescente da lua

e navega sobre as

águas de outro dia, cantam sereias.

Manuela Parreira da Silva, O Álbum de Vishnu

Lisboa - do Miradouro da Senhora do Monte – foto: eli

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Solstice d’hiver

Solstice d’hiver, solstice noir

Solstice d’espoir

Au creux de ton ombre

Dans ton silence

La lumière vient,

Reprend son souffle...

Solstice noir, solstice d’espoir

Solstice d’hiver

Dans le silence

et dans l’errance…

L’espérance…

Michèle Roberge,

Tant d’hiver au cœur du changement:

essai sur la nature des transitions

Foto: a.m.

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AO APROXIMAR-SE O INVERNO

Esta é a mulher que eu sou,

sozinha ao aproximar-se o inverno,

começando a compreender o outono,

o lamento do céu

e as fracas mãos de cimento.

O tempo passou,

o tempo passou.

São quatro da tarde

e o trimestre do inverno

principia hoje.

Escuto às escondidas momentos, estações.

O salvador dorme no túmulo

enquanto a terra tranquilamente acena.

O tempo passou e o relógio deu as quatro horas.

O vento persegue a vereda,

persegue a vereda.

Eu penso em flores mutiplicando-se

e botões em hastes vestigiais,

nesta época cansada e tuberculosa.

Junto às árvores húmidas um homem vira-se.

Ramos de veias como cobras mortas

coagulam no seu pescoço e na sua têmpora

uma palavra palpita como sangue:

"Olá, olá!"

(penso em flores multiplicando-se.)

Ao aproximar-se o inverno há funerais

para espelhos e suas pálidas memórias.

A tarde pondera o seu silêncio.

Como se pode gritar alto

para alguém assim

(virando-se lentamente, sem objectivo),

alguém que nunca viveu,

alguém que não vive?

O vento agita a rua

e os velhos corvos vivem sós,

voando em círculo sobre os antigos pomares.

A escada ousada é mesquinha, afinal.

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Quem roubou a capacidade de acreditar

nos castelos dos contos de fadas?

O que poderá levantar agora alguém

para dançar ou deixar cair o cabelo infantil

nas correntes? Quem pisa a maçã finalmente saboreada?

Caro amigo, que nuvens

descem para regozijo do sol?

Dos contornos verdes do pensamento,

ao contemplar o voo,

um dia um pássaro ergueu-se,

as folhas tremeram

no sopro decidido do vento.

Aquela luz violeta na janela

era apenas a imagem de uma candeia.

O vento escuta atentamente no beco

tal como fez no dia em que as tuas mãos morreram.

O dia traz consigo desolação.

Queridas estrelas de papel, quando as mentiras

fervilharem no céu, que conforto

haverá nos versos dos loucos profetas?

Encontrar-nos-emos como os mortos milenares.

O sol julgará a nossa putrescência.

Estou fria, fria,

e não mais sentirei

calor algum.

Ó bem-amado, os peixes

estão a mordiscar a minha carne

onde me tens cativa no fundo do oceano.

O tempo pesa tudo em redor.

Brincos de madrepérola

furam-me. Estou fria.

Eu sei que até os sonhos

de uma papoila selvagem redundam

nalgumas gotas de sangue.

Eu suspendo linhas e números

e de uma limitada geometria

fujo, gozando o vasto espaço.

Estou exposta, como as pausas

numa declaração de amor,

esse amor que me fez mal.

Eu construí este barco insular

debaixo de tempestades e krakatoas:

da mais ínfima partícula estilhaçada

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pode nascer o sol.

Saúdo-te, noite inocente!

Os olhos dos lobos nómadas

transformas em cavidades

de fé e despida confiança.

Ao longo dos teus bancos os salgueiros

cheiram os gentis machados que se aproximam.

Eu abandonei este leito de serpente,

o mundo descomprometido

das palavras e dos sons

onde batem os pés das multidões

e as pessoas oferecem o seu beijo

enquanto atam o nó da tua forca.

Saúdo-te, noite inocente!

Mas por que não olhei eu?

Havia uma janela

e uma vista apartada.

Junto às árvores húmidas um homem virou-se,

a minha mãe tinha estado a chorar,

porém eu não vi nada.

Nessa noite tornei-me a noiva

das acácias quando o meu marido

regressou e ficou diante

do espelho e me chamou.

A noite estava azul

por causa dos azulejos de Isfahan.

A dor deu-me colo e eu concebi.

Ele ficou de pé puro e resplandecente

como um espelho mas subitamente

eu estava casada com os ramos das acácias.

A minha mãe tinha estado a chorar.

Pela janela nada chegou

e a felicidade inteira percebeu

que as tuas mãos morreriam.

Eu não vi nada

até as quatro horas terem sido dadas

pelo desgraçado cuco.

De olhos como o ninho vazio

do roc, aquela mulher chegou,

escoltando até ao enterro

a minha adolescência, encrustada na noite.

Quando levará o vento o meu cabelo?

Quando plantarei eu amores-perfeitos na fronteira

e gerânios na janela do céu?

Page 203: TEXERE ~ I ~

Quando voltarei a dançar

no rebordo dos copos?

Quando conduzirá a campainha da porta

a uma voz iminente?

Eu disse à minha mãe que tudo terminara.

Eu disse: "Acontece mais cedo do que se pensa.

Temos de enviar condolências

para a página de necrologia."

E aí vem ele, o pateta presunçoso,

os seus dentes mastigando salmos,

o seu olhar devorando-te.

Junto às árvores húmidas ele vira-se

(lentamente, sem objectivo).

São quatro horas.

Ramos de veias como cobras mortas

coagulam no seu pescoço e na sua têmpora

uma palavra palpita como sangue:

"Olá, olá!"

(Alguma vez cheiraste

quatro lírios azuis assim?)

O tempo passou,

o tempo passou,

e a noite caiu sobre a acácia revelada,

recolhendo por trás das vidraças da janela

as últimas coisas do dia.

Onde estive eu,

o cheiro da noite ainda sobre mim,

o túmulo ainda fresco com terra

para aquelas mãos mortas...?

Tão gentil foste

na maneira como mentiste,

na maneira como fechaste

os olhos abertos do espelho.

Arrancaste os candelabros às hastes de arame

e levaste-me aos campos prazerosos

na escuridão cortante

onde um pequeno rasto de vapor,

debaixo das intermináveis rodopiantes estrelas

de papel, era tudo o que restava

da pressa de uma sede.

Quem traduziu a fala em som,

quem tornou a vista pública,

quem reclamou o cabelo acariciado?

Aqui está a alma -- olhai! --

Page 204: TEXERE ~ I ~

de alguém que falou destas coisas,

alguém que lançou um olhar,

alguém pacificado por uma carícia.

Martirizada pelas farpas da ilusão,

ela carrega as marcas dos teus

cinco dedos na sua face.

Em que consiste o silêncio,

ó bem amado, senão no não dito?

A minha fala prolonga-se nos pardais

e no furor da natureza.

A primavera, diz ela, está aqui

com folhas e brisas perfumadas.

O chilreio morre nas fábricas.

Quem dá corda ao seu relógio habitual,

subtraindo e dividindo,

nos caminhos do céu?

Quem ignora o canto do galo

excepto enquanto seu sinal para o pequeno-almoço?

A coroa do amor está na sua testa

enquanto os trajes de casamento apodrecem por todo o lado.

Então o sol não iria conceder

o mesmo final feliz

a ambos os pólos desesperados.

O brilho dos azulejos abandonou-te,

mas eu pairo ainda com tal plenitude

que a minha voz é um telhado

no qual o povo realiza as suas orações.

Pessoas tão satisfeitas, mortas.

Mortas, e infelizes.

Caladas, inteligentes, mortas.

Bem vestidas, bem alimentadas.

Sociáveis, mortas.

Nas gares da estação, com luzes

que facilmente tremelicam, frutos

apodrecem em suas ansiosas mãos.

Tão preocupadas estão

com os perigos de um cruzamento,

porém é aqui, ao soar o apito de paragem,

que um homem deve ser esmagado

pelo abrandamento do trânsito.

Junto às árvores húmidas um homem vira-se...

Onde estive eu?

Eu disse à minha mãe que tudo terminara.

Eu disse: "Acontece mais cedo do que se pensa.

Temos de enviar condolências

Page 205: TEXERE ~ I ~

para a página de necrologia."

E agora eu acolho uma nova

presença da solidão.

Eu rendo o meu quarto.

Por que são sempre as nuvens escuras

prenúncios de pureza,

os sofrimentos de uma vela

uma suspeita cujo derreter

é mais brilhante na ponta?

Confiemos, confiemos

nesta aproximação do inverno,

este murchar das árvores cheias de fruto,

foices deixadas de lado,

sementes encarceradas.

Olha como a neve cai...

Debaixo dessa neve

estão as tuas jovens mãos.

Mas no próximo ano a Primavera deitar-se-á

com o céu por baixo da janela,

e os verdes caules ramificar-se-ão, transportando a flor,

a partir do seu corpo, ó bem-amado.

Confiemos na aproximação do inverno...

Forugh Farrokzhad - Versão de Vasco Gato

Mafra – foto de F. -

Page 206: TEXERE ~ I ~

LA RELÍQUIA

Faune mutilat,

brollador eixut,

jardí desolat

de ma joventut...

Beneïda l'hora

que m'ha duit aquí.

La font que no vessa, la font que no plora

me fa plorar a mi.

Sembla que era ahir

que dins el misteri de l'ombra florida,

tombats a la molsa,

passàvem les hores millors de la vida.

De l'aigua sentíem la música dolça;

dintre la piscina guaitàvem els peixos,

collíem poncelles, caçàvem bestioles,

i ens féiem esqueixos

muntant a la branca de les atzeroles.

Ningú sap com era

que entre l'esponera

de l'hort senyorívol,

fent-lo més ombrívol,

creixia la rama d'antiga olivera.

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Arbre centenari,

amorós pontava la soca torçuda,

perquè sense ajuda

poguéssim pujar-hi.

Al forc de la branca senyora i majora

penjàvem la corda de l'engronsadora,

i, venta qui venta,

folgàvem i réiem fins que la vesprada

la llum esvaïa de l'hora roenta,

de l'hora encantada.

Somni semblaria

el temps que ha volat

de la vida mia,

sense les ferides que al cor ha deixat;

sense les ferides que es tornen a obrir

quan veig que no vessa

ni canta ni plora la font del jardí.

Trenta anys de ma vida volaren depressa,

i encara no manca,

penjat a la branca,

un tros de la corda de l'engronsadora,

com trista penyora,

despulla podrida d'un món esbucat...

Faune mutilat,

brollador eixut,

Page 208: TEXERE ~ I ~

jardí desolat

de ma joventut.

Joan Alcover, Cap al tard, 1910

Foto : G.

Page 209: TEXERE ~ I ~

LADAINHA DOS PÓSTUMOS NATAIS

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que hão-de me lembrar de modo menos

nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que o Nada retome a cor do Infinito

David Mourão Ferreira

Presépio de Machado de Castro

Page 210: TEXERE ~ I ~

ternura

o brilho do meu olhar

quando

(sem que te

apercebas)

em ti

repouso meus olhos.

Márcia Maia

Page 211: TEXERE ~ I ~

As nuvens são sombrias

As nuvens são sombrias

Mas, nos lados do sul,

Um bocado do céu

É tristemente azul.

Assim, no pensamento,

Sem haver solução,

Há um bocado que lembra

Que existe o coração.

E esse bocado é que é

A verdade que está

A ser beleza eterna

Para além do que há.

Fernando Pessoa, Poemas Dispersos

Foto: eli

Page 212: TEXERE ~ I ~

Estranho é o sono que não te devolve.

Estranho é o sono que não te devolve.

Como é estrangeiro o sossego

De quem não espera recado.

Essa sombra como é a alma

De quem já só por dentro se ilumina

E surpreende

E por fora é

Apenas peso de ser tarde. Como é

Amargo não poder guardar-te

Em chão mais próximo do coração.

Daniel Faria, Poesia

Georgia O'Keeffe, Abstraction IV

Page 213: TEXERE ~ I ~

Mosteiro dos Jerónimos – Foto a.m.-

XVII

Estilo manuelino:

Não a nave romântica onde a regra

Da semente sobe da terra

Nem o fuste de espiga

Da coluna grega

Mas a flor dos acasos que a errância

Em sua deriva agrega

Sophia de Mello Breyner Andresen, Cem Poemas de Sophia

Page 214: TEXERE ~ I ~

em fundo

CALLAS - life & art

Massenet - Werther! Qui m'aurait dit

CD2 - the romantic heroine

Foto: eli

Foto: eli

Page 215: TEXERE ~ I ~

CHARLOTTE

Werther! Werther!... Qui m'aurait dit

la place que dans mon coeur

il occupe aujourd'hui?

Depuis qu'il est parti, malgré moi,

tout me lasse!

Et mon âme est pleine de lui!...

Ces lettres!

Ah! je les relis sans cesse...

Avec quel charme, mais aussi quelle tristesse!

Je devrais les détruire... je ne puis!

(lisant)

"Je vous écris

de ma petite chambre;

un ciel gris

et lourd de décembre

pèse sur moi, comme un linceul...

et je suis seul! seul! toujours seul!..."

Ah! personne près de lui!

Pas un seul témoignage

de tendresse ou même de pitié!

Dieu! comment m'est venu ce triste courage

d'ordonner cet exil et cet isolement?

(ouvrant une autre lettre)

"Des cris joyeux d'enfants montent

sous ma fenêtre,

et je pense à ce temps si doux

où tous vos chers petits jouaient

autour de nous!

Ils m'oublieront peut-être!"

Non, Werther, dans leur souvenir

votre image reste vivante,

et quand vous reviendrez...

mais doit-il revenir?...

Ah! ce dernier billet me glace

et m'épouvante:

"Tu m'as dit: A Noël!

Et j'ai crié: jamais!

On va bientôt connaître

qui de nous disait vrai!

Mais si je ne dois reparaître,

au jour fixé, devant toi,

ne m'accuse pas, pleure-moi!

Oui, de ces yeux si pleins de charmes,

ces lignes, tu les reliras,

tu les mouilleras de tes larmes...

Ô Charlotte, et tu frémiras!"

(Edouard Blau, Paul Milliet & Georges Hartmann)

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ternura

Todas as paisagens nos teus olhos

me parecem nuvens

cobrindo horizontes de certas cores

que só existem dentro do silêncio.

Sandra Costa

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Castelo de São Jorge

Foto: eli

Page 218: TEXERE ~ I ~

I - 24 de Agosto de 2004 - 31 de Dezembro de 2004