texere ~ i ~
DESCRIPTION
textos e imagens dehttp://texere.blogspot.comAgosto - Dezembro 2004TRANSCRIPT
eli miguel
I - 24 de Agosto de 2004 – 31 de Dezembro de 2004
Vincent Van Gogh
Josée, Forces Vitales
Todo o meu ser é um cântico negro
que te levará
fazendo-te durar
ao despertar dos crescimentos e florescimentos eternos
neste cântico eu suspirei tu suspiraste
neste cântico
eu acrescentei-te à árvore à água ao fogo.
A vida é talvez
uma rua comprida pela qual uma mulher segurando
um cesto passa todos os dias.
A vida é talvez
uma corda com a qual um homem se enforca numa árvore
a vida é talvez uma criança a regressar a casa da escola.
A vida é talvez acender um cigarro
na pausa narcótica entre fazer amor e fazer amor
ou o olhar ausente de um homem que passa
tirando o chapéu a um outro homem que passa
com um sorriso vazio e um bom dia.
A vida é talvez esse momento fechado
quando o meu olhar se destrói na pupila dos teus olhos
a vida está no sentimento
que eu irei pôr na impressão da Lua
e na percepção da Noite.
Num quarto grande como a solidão
o meu coração
que é grande como o amor
olha os simples pretextos da sua felicidade
o belo murchar das flores no vaso
a jovem árvore que plantaste no teu jardim
e o canto dos canários
alvejando o tamanho de uma janela.
Ah
este é o meu destino
este é o meu destino
o meu destino é
um céu que desaparece com a queda de uma cortina
o meu destino é despenhar-me no voo de estrelas agora inúteis
reconquistar qualquer coisa no meio da putrefacção e da nostalgia
o meu destino é um passeio triste no jardim das memórias
e morrer na dor de uma voz que me diz
eu amo
as tuas mãos.
Irei plantar as minhas mãos no jardim
crescerei eu sei eu sei eu sei
e as andorinhas virão pôr ovos
no vazio das minhas mãos manchadas de tinta.
Vou usar
um par de cerejas gémeas como brincos
e pôr pétalas de dália nas minhas unhas
há um beco
onde os rapazes que se apaixonaram por mim
se demoram ainda com o mesmo cabelo despenteado
os mesmos pescoços finos e as mesmas pernas magras
pensando nos sorrisos inocentes de uma rapariga
que foi levada pelo vento uma noite.
Há um beco
que o meu coração roubou
às ruas da minha infância.
A viagem de uma forma na linha do tempo
fecundando a linha do tempo com a forma
uma forma consciente de uma imagem
a regressar de uma carícia num espelho.
E é desta maneira
que alguém morre
e alguém segue vivendo.
Nenhum pescador jamais achará uma pérola num pequeno regato
que se esvazia num lago.
Eu conheço uma pequena e triste fada
que vive num oceano
tocando a flauta mágica do seu coração
suave, suavemente
pequena e triste fada
que morre com um beijo todas as noites
e com um beijo renasce a cada amanhecer.
Forugh Farrokzad
(Versão de Vasco Gato)
Mark Rothko, Sem título
Estou mais perto de ti porque te amo.
Os meus beijos nascem já na tua boca.
Não poderei escrever teu nome com palavras.
Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me.
Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto.
Quero a tua boca aberta em minha boca.
E amo-te como se nunca te tivesse amado
porque tu estás em mim mas ausente de mim.
Nesta noite sei apenas dos teus gestos
e procuro o teu corpo para além dos meus dedos.
Trago as mãos distantes do teu peito.
Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte.
Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim.
E eu estou perto de ti porque te amo.
Joaquim Pessoa, Os Olhos de Isa
Ai daqueles
ai daqueles
que se amaram sem
nenhuma briga
aqueles que deixaram que a mágoa nova
virasse chaga antiga
ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é feito pão em casa
e que a pedra só não voa
porque não quer
não por que não tem asa.
Paulo Leminsky
Fractal Feelings
EM LOUVOR DO FOGO
Um dia chega
de uma extrema doçura:
tudo arde.
Arde a luz
nos vidros da ternura.
As aves,
no branco
labirinto da cal.
As palavras ardem
e a púrpura das naves.
O vento,
onde tenho casa
à beira do outono.
O limoeiro, as colinas.
Tudo arde
Na extrema e lenta
doçura da tarde.
Eugénio de Andrade, Obscuro Domínio
Deedra Ludwig, Alchemy
concerto para uma só voz
a minha
: no mais profundo silêncio.
Márcia Maia, um tolo desejo de azul
Il est très simple
Il est très simple: on ne voit bien qu'avec le coeur.
Antoine de Saint- Exupéry, Le Petit Prince
Jim Dine, The Woodcut Self
Larionov, raionismo
Mais uma noite, amor
Mais uma noite, amor. Ao recordar-te
retomo os fins do mundo, a cinza, os dias
manchados de outras lágrimas. Sabias
como eu a cor das sombras, essa arte
que nos engana agora e se reparte
por esquinas e cafés. Já não me guias
os muitos passos vãos, as fantasias
da minha falsa vida. Vou deixar-te
fugindo-me. Na chuva, sem ninguém,
apenas alguns vultos, o que vem
«e dói não sei porquê» -este deserto
onde te vejo, imagem outra vez,
até de madrugada. O que me fez
sentir o muito longe aqui tão perto?
Fernando Pinto do Amaral, A Escada de Jacob
Canção autobiográfica
aos quarenta e dois anos, com um cão e o silêncio
da sua pata cúmplice, a solidão é uma
destreza atormentada; e o coração o incerto secretário
de agonia e desejo, variantes da alma.
aos quarenta e dois anos, com um cão e o silêncio.
canção, canção que nunca acabarias
de te escrever, vaivém das
tantas coisas.
Vasco Graça Moura, Os Rostos Comunicantes
Camille Claudel, La Danaïde
em fundo
Franz Schuber,
Schwanengsang
Aniversário
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião
qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar pela vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui – ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
Vincent Van Gogh, Vase with Irises against a yellow background
O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da
casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através
das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo
frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga
nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que
há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na
loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na
sombra debaixo do alçado –,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha
causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
Álvaro de Campos, Poemas
Musa
Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
O canto para todos
Por todos entendido
Musa ensina-me o canto
O justo irmão das coisas
Incendiador da noite
E na tarde secreto
Musa ensina-me o canto
Em que eu mesma regresso
Sem demora e sem pressa
Tornada planta ou pedra
Ou tornada parede
Da casa primitiva
Ou tornada o murmúrio
Do mar que a cercava
Eustache LE
sueur, Trois Muses:
Melpomène, Erato et
Polymnie
(Eu me lembro do chão
De madeira lavada
E do seu perfume
Que atravessava)
Musa ensina-me o canto
Onde o mar respira
Sophia de Mello Breyner Andresen, Signo
António Canova, Eros e Psique
Chanson
Dans l'amour la vie a encore
L'eau pure de ses yeux d'enfant
Qui s'ouvre sans savoir comment
Sa bouche est encore une fleur
Dans l'amour la vie a encore
Ses mains agrippantes d'enfant
Ses pieds partent de la lumière
Et ils s'en vont vers la lumière
Dans l'amour la vie a toujours
Un coeur léger et renaissant
Rien n'y pourra jamais finir
Demain s'y allège d'hier.
Paul Eluard, Derniers poèmes d'amour
Sísifo
(Coimbra, 27 de Dezembro de 1977)
Recomeça...
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar
E vendo,
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.
Miguel Torga, Antologia Poética
Hemos perdido aun este crepúsculo.
Nadie nos vió esta tarde con las manos unidas,
mientras la noche azul caía sobre el mundo.
He visto desde mi ventana
la fiesta del poniente en los cerros lejanos.
A veces como una moneda
se encendía un pedazo de sol entre mis manos.
Yo te recordaba con el alma apretada
de esa tristeza que tú me conoces.
Entonces dónde estabas?
Entre qué gentes?
Diciendo qué palabras?
Por qué se me vendrá todo el amor de golpe
cuando me siento triste, y te siento lejana?
Cayó el libro que siempre se toma en el crepúsculo,
y como un perro herido rodó a mis pies mi capa.
Siempre, siempre te alejas en las tardes
hacia donde el crepúsculo corre borrando estatuas.
Pablo Neruda, Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada
Uma noite acordarei junto ao corpo infindável
da amada, e meu sangue não se encantará.
Então, rosa a rosa murcharão meus ombros.
Quer dizer que a sombra carregará meus sentidos
de distância, como se tudo fosse o cheiro
que as ervas pungentemente perdem
através do silêncio.
Plácido chegarei à mesa, e de súbito
meu coração se atravessará de gelo puro.
O vinho? Perguntarei. Flores de sal cobrirão
a luz poderosa do meu olhar.
Tempo, tempo. Eu próprio perguntarei no recente
pasmo da minha carne: o vinho?
Rosa a rosa murcharão meus ombros.
Então lembrarei a vermelha resina, o espesso
murmúrio do sangue,
o ocre e sobrenatural aroma das acácias.
Tentarei encontrar uma forma.
Com beijos antigos um momento ainda queimarei
o corpo solitário da amada, direi palavras
de uma ternura azebre.
E uma vez mais me perderei, dizendo: o vinho?
Rosa a rosa murcharão meus ombros.
Herberto Hélder, A colher na boca
em fundo
Maria Callas, La Forza del Destino, Verdi
Fredrick Hart, Destiny
Syd Art, Destiny
Vasco da Gama
Somos nós que fazemos o destino.
Chegar à Índia ou não
É um íntimo desígnio da vontade.
Os fados a favor
E a desfavor,
São argumentos da posteridade.
O próprio génio pode estar ausente
Da façanha.
Basta que nos momentos de terror,
Persistente,
O ânimo enfrente
A fúria de qualquer Adamastor.
O renome é o salário do triunfo.
O que é preciso, pois, é triunfar.
Nunca meia viagem consentida!
Nunca meia medida
Do vinho que nos há-de embriagar!
Miguel Torga, Poemas Ibéricos
Há noites que são feitas dos meus braços
e um silêncio comum às violetas
e há sete luas que são sete traços
de sete noites que nunca foram feitas.
Há noites que levamos à cintura
como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
duma espada à bainha de um cometa.
Há noites que nos deixam para trás
enrolados no nosso desencanto
e cisnes brancos que só são iguais
à mais longínqua onda de seu canto.
Há noites que nos levam para onde
o fantasma de nós fica mais perto:
e é sempre a nossa voz que nos responde
e só o nosso nome estava certo.
Natália Correia, Sonetos Românticos
sete luas
Edward Hopper
A minha solidão
(Durante dias andei a ruminar estes versos.)
A minha solidão
não é uma invenção
para enfeitar noites estreladas...
...Mas este querer arrancar a própria sombra do chão
e ir com ela pelas ruas de mãos dadas.
...Mas este sufocar entre coisas mortas
e pedras de frio
onde nem sequer há portas
para o Calafrio.
...Mas este rir-me de repente
no poço das noites amarelas...
- única chama consciente
com boca nas estrelas.
...Mas este eterno Só-Um
(mesmo quando me queima a pele o teu suor)
- sem carne em comum
com o mundo em redor.
...Mas este haver entre mim e a vida
sempre uma sombra que me impede
de gozar na boca ressequida
o sabor da própria sede.
...Mas este sonho indeciso
de querer salvar o mundo
- e descobrir afinal que não piso
o mesmo chão do pobre e do vagabundo.
...Mas este saber que tudo me repele
no vento vestido de areia...
E até, quando a toco, a própria pele
me parece alheia.
Não. A minha solidão
não é uma invenção
para enfeitar o céu estrelado...
...mas este deitar-me de súbito a chorar no chão
e agarrar a terra para sentir um Corpo Vivo a meu lado.
José Gomes Ferreira
Every Poem is an Epitaph
Desfiz meu corpo nas vivas marés
que os versos me traziam. Solidão
mil vezes retomada, sombra e pó,
palavras que nos doem mais de perto:
tudo desfez meu corpo e neste mar
um navegante encontra o seu deserto.
Luís Filipe Castro Mendes, Outras Canções
FOREVER GONE
The rose is now forever gone
The scent remains the whole life long
And visions of a petal's hue
Abide within the depth of you
The wine he poured and slowly sipped
Remains on wetness of your lip
A taste so sweet does not depart
Embedded in a tender heart
A touch of silk, a feel of soft
The sense of rising up aloft
To touch the clouds, to soar the sky
Still dwells in reminiscent eye
How well we save the little parts
Of sweetness wrapped within our hearts
And never count the solemn tears
That fill the soul throughout the years
His words are scrolled in lyric rhyme
That live forever in your mind
His eyes that once enchanted yours
Are diamond's gleam that still allures
The rose yet blossoms in your eyes
It is a flower that never dies
Elizabeth Santos
Anne Bertoin, ADN
I
Afinal sou assim, infeliz e volúvel,
Porque minha alma guarda uma ordem diversa
De pulsões celulares ao longo do seu eixo:
Decifre-me quem saiba, - que, dispersa,
Com nome A.D.N. aqui na cruz a deixo.
II
Nervo a pavor, fonte renal de rijo,
Cor dos meus olhos, estatura, gosto,
Quanto me importo, ó Deus, quanto me aflijo,
Tudo A.D.N. inscreve no meu rosto.
Vitorino Nemésio, Limite de Idade
em fundo
Maria João Pires, Beethoven, Sonatas Quasi una Fantasia
Pace non trovo
Pace non trovo, e non ó da far guerra
E temo e spero, ed ardo e son un ghiaccio,
E volo sopra’l cielo e giaccio in terra
E nulla stringo e tutto’l mondo abbraccio.
Tal m’ha in prigion che non m’apre né serra,
Nè per suo mi riten né scoglie il laccio,
E non m’ancide Amor e non mi sferra,
Nè mi vuol vivo né mi trae d’impaccio.
Veggio senza occhi; e no ò língua, e grido,
E bramo di perir, e cheggio aiuta,
Ed ho in ódio me stesso ed amo altrui.
Pascomi di dolor, piangendo rido,
Egualmente mi spiace morte e vita:
In questo stato son, Donna, per vui.
Petrarca, Cancioneiro
Tanto do meu estado me acho incerto
Tanto do meu estado me acho incerto,
Que, em vivo ardor, tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio,
O mundo todo abarco, e nada aperto.
É tudo quanto sinto um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio;
Agora desvario, agora acerto.
Estando em terra, chego ao Céu voando;
Num’hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar um’hora.
Se me pergunta alguém, porque assi ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.
Camões, Rimas
Piero di Cosimo, Simonetta Vespuci
Wer, wenn ich schriee, hörte mich denn aus der Engel Ordnungen?
Rainer Maria Rilke
Munch, O Grito
Uma lâmina de ar
atravessando as portas. Um arco,
uma flecha cravada no outono. E a canção
que fala das pessoas. Do rosto e dos lábios das pessoas.
E um velho marinheiro grave, rangendo o cachimbo
como
uma amarra. À espera do mar. Esperando o silêncio.
É Outono. Uma mulher de botas atravessa-me a tristeza
quando saio para a rua, molhado, como um pássaro.
Vêm de muito longe as minhas palavras, quem sabe se
da minha revolta última. Ou do teu nome que repito.
Hoje há soldados eléctricos. Uma parede
cumprimenta o sol. Procura-se viver.
Vive-se, de resto, em todas as ruas, nos bares e nos
cinemas.
Há homens e mulheres que compram o jornal e amam-se
como se, de repente, não houvesse mais nada senão
a imperiosa ordem de (se) amarem.
Há em mim uma ternura desmedida pelas palavras.
Não há um nome para a tua ausência. Há um muro
que os meus olhos derrubam. Um estranho vinho
que a minha boca recusa. É Outono.
A pouco e pouco despem-se as palavras.
Joaquim Pessoa, 125 Poemas – antologia poética
em fundo
Alphonse Mucha
Antonio Vivaldi, I Quatro Stagioni
Picasso, Blue Nude
Desejos vãos
Eu queria ser o Mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a Pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!
Eu queria ser o Sol, a luz intensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu queria ser a Árvore tosca e tensa
Que ri do mundo vão e até da morte!
Mas o Mar também chora de tristeza...
As árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!
E o Sol, altivo e forte, ao fim de um dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras... essas... pisa-as toda a gente!...
Florbela Espanca, Livro de Mágoas, in Sonetos
Yo no te pido
Yo no te pido que me bajes
una estrella azul
solo te pido que mi espacio
llenes con tu luz.
Yo no te pido que me firmes
diez papeles grises para amar
sólo te pido que tu quieras
las palomas que suelo mirar.
De lo pasado no lo voy a negar
el futuro algún día llegara
y del presente
que le importa a la gente
si es que siempre van a hablar.
Sigue llenando este minuto
de razones para respirar
no me complazcas no te niegues
no hables por hablar.
Yo no te pido que me bajes
una estrella azul
solo te pido que mi espacio
llenes con tu luz.
Mario Benedetti
Georgia O'Keeffe. Evening Star, III
Não sei se dor
Ou muito amor
Eu sinto.
Mas isto é maior do que a morte;
Não posso mais.
Eu minto.
Ruy Cinatti, Anoitecendo, a Vida Recomeça
Van Gogh, Tree Sunflowers
As férias
Era uma rosa azul de água amarrada
Um palácio de cheiros um terraço
E uma jarra de amigos derramada
Da casa até ao mar como um abraço.
Era a intensa e clara madrugada
Com cigarras dormindo no regaço
E a ampulheta do sono defraudada
No tempo cada dia mais escasso.
Era um país de urzes e lilases
De tardes sonolentas espreguiçando
Um aroma de nardos pelo chão
E bandos de meninas e rapazes
Correndo amando rindo e adiando
A minha inexorável solidão.
Ary dos Santos, O sangue das Palavras
em fundo
Elis Regina & Tom Jobim, Por toda a Minha Vida
(Pedro Almodóvar, hable con ella)
Edward Hopper, Morning sun
le coeur..
le coeur a ses raisons que la raison ne connaît point
René Descartes
Gift
ou tell me that silence
is nearer to peace than poems
but if for my gift
I brought you silence
(for I know silence)
you would say
This is not silence
this is another poem
and you would hand it back to me.
Leonard Cohen,
Stranger Music - Selected Poems and Songs
Ítaca
Quando partires de regresso a Ítaca.
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências.
Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,
um Poseidon irado – não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito te habita.
Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,
Poseídon em fúria – nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportes
ou ela os não erguer perante ti.
Deves orar por uma viagem longa.
Que sejam muitas as manhãs de Verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos!
Em colónias fenícias deverás deter-te
para comprar mercadorias raras:
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie:
compra desses perfumes quanto possas,
E vai ver as cidades do Egipto,
para aprenderes com os que sabem muito.
Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.
Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.
Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
terás compreendido o sentido de Ítaca.
Constantino Cavafy, 90 e Mais Quatro Poemas
- versão de Jorge de Sena
Jacinthe Dugal-Lacroix, Freedom
Ítaca
Não vale a pena suportar tanto castigo.
Procuras Ítaca. Mas só há esse procurar.
Onde quer que te encontres está contigo
dentro de ti em casa na distância
onde quer que procures há outro mar
Ítaca é tua própria errância.
Manuel Alegre, in Rosa do Mundo
- 2001 poemas para o futuro
Munch, The dance of Life
o pequeno demiurgo
ao Hélder Moura Pinheiro
escrevo barco e uma quilha fende o vastíssimo mar
e as árvores crescem dos espaços enevoados
entre olhar e olhar movem-se
animais presos à terra com suas plumagens de ferro
e de orvalho de ouro quando a lua se eclipsa
comunicando-lhes o cio e a nómada alegria de viver
penso outono ou inverno
e o lume resinoso dos pinhais escorre sobre o rosto
sobre o corpo em tímidos gestos
eis o tempo
do Capricórnio reduzido ao esconderijo tatuado
na asa mineral da ave em pleno voo e digo nuvens
relâmpago erva águas
homem
movimento do susto oceanos sal exaustos corpos
transumantes paixões digo
e surge irrompe escorre ergue-se move-se vive
morre
mas não julguem ser trabalho simples nomear
arrumar e desordenar o mundo
para que não se apague esta trémula escrita
preciso do sonho e do pesadelo
da proximidade vertiginosa dos espelhos e
de pernoitar no fundo de mim com as mãos sujas
pelo árduo trabalho de construir os gestos exactos
da alegria que por descuido deus abandonou ao cansaço
no fim do sétimo dia
Al Berto, O Medo
Sabrás que no te amo y que te amo
SABRÁS que no te amo y que te amo
puesto que de dos modos es la vida,
la palabra es un ala del silencio,
el fuego tiene una mitad de frío.
Yo te amo para comenzar a amarte,
para recomenzar el infinito
y para no dejar de amarte nunca:
por eso no te amo todavía.
Te amo y no te amo como si tuviera
en mis manos las llaves de la dicha
y un incierto destino desdichado.
Mi amor tiene dos vidas para amarte.
Por eso te amo cuando no te amo
y por eso te amo cuando te amo.
Pablo Neruda, Cien Sonetos de Amor
em fundo
Debussy , La Mer , Trois Esquisses Symphoniques
Chicago Symphony Orchestra – Daniel Barenboim
CAMPO DE FLORES
Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus – ou foi talvez o Diabo - deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor
Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.
Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.
Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
o sumo se espremeu para fazer um vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.
E o tempo que levou uma rosa indecisa
A tirar sua cor dessas chamas extintas
Era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.
Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.
Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
à visão extasiada.
Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde
Vinicius de Moraes
William Bouguereau, Crepuscule
LA TENDRESSE
Pour un peu de tendresse
Je donnerais les diamants
Que le diable caresse
Dans mes coffres d'argent
Pourquoi crois-tu la belle
Que les marins au port
Vident leurs escarcelles
Pour offrir des trésors
A de fausses princesses
Pour un peu de tendresse
Pour un peu de tendresse
Je changerais de visage
Je changerais d'ivresse
Je changerais de langage
Pourquoi crois-tu la belle
Qu'au sommet de leurs chants
Empereurs et ménestrels
Abandonnent souvent
Puissances et richesses
Pour un peu de tendresse
Pour un peu de tendresse
Je t'offrirais le temps
Qu'il reste de jeunesse
A l'été finissant
Pourquoi crois-tu la belle
Que monte ma chanson
Vers la claire dentelle
Qui danse sur ton front
Penché vers ma détresse
Pour un peu de tendresse
Jacques Brel
Piam, tendresse
em fundo
Jean Sibelius, The Swan of Tuonela
Berliner Philharmoniker - Herbert von Karajan
Aquela triste e leda madrugada
Aquela triste e leda madrugada,
cheia toda de mágoa e de piedade,
enquanto houver no mundo saudade
quero que seja sempre celebrada.
Ela só, quando, amena e marchetada.
saía, dando ao mundo claridade,
viu apartar-se de üa outra vontade,
que nunca poderá ver-se apartada.
Ela só viu as lágrimas em fio
que de uns e de outros olhos derivadas,
se acrescentaram em grande e largo rio.
Ela ouviu as palavras magoadas
que puderam tornar o fogo frio
e dar descanso às almas condenadas.
Luís de Camões, Rimas
E alegre se fez triste
Aquela clara madrugada que
viu lágrimas correrem no teu rosto
e alegre se fez triste como se
chovesse de repente em pleno Agosto.
Ela só viu meus dedos nos teus dedos
meu nome no teu nome. E demorados
viu nossos olhos juntos nos segredos
que em silêncio dissemos separados.
A clara madrugada em que parti.
Só ela viu teu rosto olhando a estrada
por onde um automóvel se afastava.
E viu que a pátria estava toda em ti.
E ouviu dizer-me adeus: essa palavra
que fez triste a clara madrugada.
Manuel Alegre, Trinta Anos de Poesia
Helga Butzer Felleisen, Tears
WHEN YOU ARE OLD
WHEN you are old and grey and full of sleep,
And nodding by the fire, take down this book,
And slowly read, and dream of the soft look
Your eyes had once, and of their shadows deep;
How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true,
But one man loved the pilgrim Soul in you,
And loved the sorrows of your changing face;
And bending down beside the glowing bars,
Murmur, a little sadly, how Love fled
And paced upon the mountains overhead
And hid his face amid a crowd of stars.
William Butler Yeats, The Rose
Matisse, Janela interior com miosótis
Mulheres de preto
Há muito que são velhas, vestidas
de preto até à alma.
Contra o muro
defendem-se do sol de pedra;
ao lume
furtam-se ao frio do mundo.
Ainda têm nome? Ninguém
pergunta, ninguém responde.
A língua, pedra também.
Eugénio de Andrade, Trinta Poemas
Fotografia de Guilherme Carreiro
Allégeance
Dans les rues de la ville, il y a mon amour.
Peu importe où il va dans le temps divisé.
Il n'est plus mon amour : chacun peut lui parler.
Il ne se souvient plus qui, au juste, l'aima.
Il cherche son pareil dans le voeu des regards.
L'espace qu'il parcourt est ma fidélité.
Il dessine l'espoir, puis, léger, l'éconduit.
Je vis au fond de lui comme une épave heureuse.
A son insu, ma liberté est son trésor !
Dans le grand méridien où s'inscrit son essor,
Ma solitude se creuse.
Dans les rues de la ville, il y a mon amour.
Peu importe où il va dans le temps divisé.
Il n'est plus mon amour : chacun peut lui parler.
Il ne se souvient plus qui, au juste, l'aima
Et l'éclaire de loin pour qu'il ne tombe pas !
René Char
Josée, Passage du Temps
em fundo
Maria João Pires - Mozart - Klaviersonaten
Foto: eli
Que me quereis, perpétuas saudades
Que me quereis, perpétuas saudades,
Com que sonhos ainda me abismais?
O tempo é um rio que não pára mais,
Nem se repetem as visões das margens.
Como se diz adeus a quem morreu,
Dizem adeus os anos já passados
A desejos iguais, desigualados
Se a vontade mudando os esqueceu.
Aquilo a que queria mudou tanto
Que é outro amor; e meu prazer dum dia
Maldiz o de hoje, ao novo desencanto.
Cada enganosa esperança em meu desejo
Passa por ela o tempo e queda, fria,
Como Almourol a ver passar o Tejo.
Carlos de Oliveira, Trabalho Poético
Teia
Se da baba o insecto faz a teia,
se com choro porém não sei prender-te,
do céu, que era de cinza, direi verde,
e da terra e das lágrimas areia.
E da forma direi que foi ideia,
para que à noite o corpo não desperte.
Do perdido direi que não se perde
se ao menos nestes versos se encadeia.
Do cabelo, se louro, direi preto;
do amor que sofri direi soneto,
ante a luz tão corpórea que o invade…
Nas redes da ficção ficarás presa
e acordarás, mais tarde, na surpresa
de ser outra por toda a eternidade.
David Mourão-Ferreira, Infinito Pessoal
Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va
On oublie le visage et l'on oublie la voix
Le coeur, quand ça bat plus, c'est pas la peine d'aller
Chercher plus loin, faut laisser faire et c'est très bien
Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va
L'autre qu'on adorait, qu'on cherchait sous la pluie
L'autre qu'on devinait au détour d'un regard
Entre les mots, entre les lignes et sous le fard
D'un serment maquillé qui s'en va faire sa nuit
Avec le temps tout s'évanouit
Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va
Mêm' les plus chouett's souv'nirs ça t'as un' de ces gueules
A la Gal'rie j'farfouille dans les rayons d'la mort
Le samedi soir quand la tendresse s'en va tout seule
Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va
L'autre à qui l'on croyait pour un rhume, pour un rien
L'autre à qui l'on donnait du vent et des bijoux
Pour qui l'on eût vendu son âme pour quelques sous
Devant quoi l'on s'traînait comme traînent les chiens
Avec le temps, va, tout va bien
Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va
On oublie les passions et l'on oublie les voix
Qui vous disaient tout bas les mots des pauvres gens
Ne rentre pas trop tard, surtout ne prends pas froid
Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va
Et l'on se sent blanchi comme un cheval fourbu
Et l'on se sent glacé dans un lit de hasard
Et l'on se sent tout seul peut-être mais peinard
Et l'on se sent floué par les années perdues
Alors vraiment
Avec le temps on n'aime plus.
Léo Ferré
Kasemir Malevich, Head of a Peasant Girl
Vieste como um barco carregado de vento, abrindo
feridas de espuma pelas ondas. Chegaste tão depressa
que nem pude aguardar-te ou prevenir-me; e só ficaste
o tempo de iludires a arquitectura fria do estaleiro
onde hoje me sentei a perguntar como foi que partiste,
se partiste,
que dentro de mim se acanham as certezas e
tu vais sempre ardendo, embora como um lume
de cera, lento e brando, que já não derrama calor.
Tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar
o dia inteiro, como os pescadores fazem com as redes,
e não existe no mundo cegueira pior do que a minha:
o fio do horizonte começou ainda agora a oscilar,
exausto de me ver entre mulheres que se passeiam
no cais como se transportassem no corpo o vaivém
dos barcos. Dizem-me os seus passos
que vale a pena esperar, porque as ondas acabam
sempre por quebrar-se junto das margens. Mas eu sei
que o meu mar está cercado de litorais, que é tarde
para quase tudo. Por isso, vou para casa
e aguardo os sonhos, pontuais como a noite.
Maria do Rosário Pedreira, O Canto do Vento nos Ciprestes
foto: eli
em fundo
Beethoven
Fantasia coral, op. 80
Wiener Philharmoniker - Claudio Abbado
"fugas"
O lago, o salto
no alvo da água.
Setas de lume
nas escarpas.
Pequenas vagas
de salgueiros, veios
inseguros semeados
de batéis. Fisgas
em flor, risos
abrem o ar.
Veredas alvejadas
de voos, arroubos
dos 20 anos, fugas
ao que já findou.
Joaquim Manuel Magalhães, uma luz com um toldo vermelho
Foto: René Dumoulin
On ne connaît que les choses que l'on apprivoise
Antoine de Saint-Exupéry, Le Petit Prince
Giacinto Braca, Tempus fugit
“Quantas horas perdi
foi por ti
que as perdi.”
Vai o meu coração
repetiu a lição:
- "Quantas horas perdi
foi por ti
que as ganhei..."
Sebastião da Gama, Cabo da Boa Esperança
em fundo
Schubert - Lieder
Dietrich Fischer-Dieskau
Gerald Moore
Apache tears
em fundo
Beethoven - clair de lune - Rudolf Serkin
Lucien Lévy-Dhurmer, Harmonie en bleu
Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.
Ricardo Reis, Odes
No palco eu faço amor com 25.000 pessoas, depois vou sozinha para casa.
Janis Joplin
Gu Xiaolin (Lironing), Loneliness
Estátua
Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem cor, - frio escalpelo,
O meu olhar quebrei, a debatê-lo,
Como a onda na crista dum rochedo.
Segredo dessa alma e meu degredo
E minha obsessão! Para bebê-lo
Fui teu lábio oscular, num pesadelo,
Por noites de pavor, cheio de medo.
E o meu ósculo ardente, alucinado,
Esfriou sobre o mármore correcto
Desse entreaberto lábio gelado…
Desse lábio de mármore, discreto,
Severo como um túmulo fechado,
Sereno como um pélogo quieto.
Camilo Pessanha, Clepsidra
Barbara Rainer Nothdurf, Faszination Eis
em fundo
Claudined, silence dans l'azur
Ottorino Respighi, Italiana, from Ancient Airs and Dances for Lute
Berliner Philharmoniker - Herbert von Karajan
Sou de vidro
Meus amigos sou de vidro
Sou de vidro escurecido
Encubro a luz que me habita
Não por ser feia ou bonita
Mas por ter assim nascido
Sou de vidro escurecido
Mas por ter assim nascido
Não me atinjam não me toquem
Meus amigos sou de vidro
Sou de vidro escurecido
Tenho fumo por vestido
E um cinto de escuridão
Mas trago a transparência
Envolvida no que digo
Meus amigos sou de vidro
Por isso não me maltratem
Não me quebrem não me partam
Sou de vidro escurecido
Tenho fumo por vestido
Mas por assim ter nascido
Não por ser feia ou bonita
Envolvida no que digo
Encubro a luz que me habita
Lídia Jorge
No rechaces los sueños por ser sueños.
Todos los sueños pueden
ser realidad, si el sueño no se acaba.
La realidad es un sueño. Si soñamos
que la piedra es la piedra, eso es la piedra.
Lo que corre en los ríos no es un agua,
es un soñar, el agua, cristalino.
La realidad disfraza
su propio sueño, y dice:
«Yo soy el sol, los cielos, el amor.»
Pero nunca se va, nunca se pasa,
si fingimos creer que es más que un sueño.
Y vivimos soñándola. Soñar
es el modo que el alma
tiene para que nunca se le escape
lo que se escaparía si dejamos
de soñar que es verdad lo que no existe.
Sólo muere
un amor que ha dejado de soñarse
hecho materia y que se busca en tierra.
Pedro Salinas
alvador Dali, Sueño causado por el vuelo de una abeja
alrededor de una granada un segundo antes del despertar
ontem,
o meu pôr do sol
Abria o guarda-fatos e tirava
o casaco mais velho e as piores
calças de veludo cor de sombra
Ia ter contigo. Só o perfume
fazia pressentir o coração,
essa frágil ideia que batia
quando me sentava no café
muito antes da hora combinada.
As mãos quietas, o rosto debruçado
para o vidro sujo de tabacos
donde ao longe havias de chegar.
O chão coberto duma luz magoada,
de papéis amassados, cinzas
que teus pés vinham a calcar.
Joaquim Manuel Magalhães, Uma Exposição
Edward Hopper, Sunlight in a Cafetaria
C'est le temps que tu as perdu...
C'est le temps que tu as perdu pour ta rose qui fait ta rose si importante.
Antoine de Saint-Exupéry, Le Petit Prince
Teu nome amarfanhado jaz num poço
a um salto mortal do esquecimento
teu nome renegado que eu não ouço
teu nome feito raiva e desalento
Teu nome que eu roí até ao osso
do ódio da ternura e do tormento
é agora o sinal de que não posso
castigar mais o próprio sofrimento.
Teu nome a cama estreita onde me deito
o abismo de sons onde recordo
um silêncio impossível e perfeito.
Teu nome que só lembro quando mordo
um nome de milhões de nomes feito
que só é nomeado quando acordo.
José Carlos Ary dos Santos, Obra Poética
em fundo
Maria João Pires, Le Voyage Magnifique, Schubert
Imagine
Imagine there's no Heaven
It's easy if you try
No hell below us
Above us only sky
Imagine all the people
Living for today
Imagine
there's no countries
It isn't hard to do
Nothing to kill or die for
And no religion too
Imagine all the people
Living life in peace
You may say that I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will be as one
Imagine no possessions
I wonder if you can
No need for greed or hunger
A brotherhood of man
Imagine all the people
Sharing all the world
You may say that I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will live as one
John Lennon
On n'oublie rien de rien
On n'oublie rien du tout
On n'oublie rien de rien
On s'habitue c'est tout
Ni ces départs ni ces navires
Ni ces voyages qui nous chavirent
De paysages en paysages
Et de visages en visages
Ni tous ces ports ni tous ces bars
Ni tous ces attrape-cafard
Où l'on attend le matin gris
Au cinéma de son whisky
Ni tout cela ni rien au monde
Ne sait pas nous faire oublier
Ne peut pas nous faire oublier
Qu'aussi vrai que la terre est ronde
On n'oublie rien de rien
On n'oublie rien du tout
On n'oublie rien de rien
On s'habitue c'est tout
Ni ces jamais ni ces toujours
Ni ces je t'aime ni ces amours
Que l'on poursuit à travers cœurs
De gris en gris de pleurs en pleurs
Ni ces bras blancs d'une seule nuit
Collier de femme pour notre ennui
Que l'on dénoue au petit jour
Par des promesses de retour
Ni tout cela ni rien au monde
Ne sait pas nous faire oublier
Ne peut pas nous faire oublier
Qu'aussi vrai que la terre est ronde
On n'oublie rien de rien
On n'oublie rien du tout
On n'oublie rien de rien
On s'habitue c'est tout
Ni même ce temps où j'aurais fait
Mille chansons de mes regrets
Ni même ce temps où mes souvenirs
Prendront mes rides pour un sourire
Ni ce grand lit où mes remords
Ont rendez-vous avec la mort
Ni ce grand lit que je souhaite
A certains jours comme une fête
Ni tout cela ni rien au monde
Ne sait pas nous faire oublier
Ne peut pas nous faire oublier
Qu'aussi vrai que la terre est ronde
On n'oublie rien de rien
On n'oublie rien du tout
On n'oublie rien de rien
On s'habitue c'est tout
Jacques Brel
Van Gogh, Vase with Gladioli
Irina Kalentieva, Girl near the window
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos
esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)
Álvaro de Campos, Poemas
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que
escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
DOMINGO
Quando chega domingo,
faço tenção de todas as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida.
Há quem vá para o pé das águas
deitar-se na areia e não pensar...
E há os que vão para o campo
cheios de grandes sentimentos bucólicos
porque leram, de véspera, no boletim do jornal:
« Bom tempo para amanhã»...
Mas uma maioria sai para as ruas pedindo,
pois nesse dia
aqueles que passeiam com a mulher e os filhos
são mais generosos.
Um rapaz que era pintor
não disse nada a ninguém
e escolheu o domingo para se matar.
Ainda hoje a família e os amigos
andam pensando porque seria.
Só não relacionam que se matou num domingo!
Mariazinha Santos
(aquela que um dia se quis entregar,
que era o que a família desejava,
para que o seu futuro ficasse resolvido),
Mariazinha Santos
quando chega domingo,
vai com uma amiga para o cinema.
Deixa que lhe apalpem as coxas
e abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe lhe bordou,
quando ela era ainda muito menina...
Para eu contar isto
é que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo!
À hora negra das noites frias e longas
sei duma hora numa escada
onde uma velha põe sua neta
e vem sorrir aos homens que passam!
E a costureirinha mais honesta que eu namorei
vendeu a virgindade num domingo
— porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores!
Há mais amargura nisto
que em toda a História das Guerras.
Partindo deste princípio.
que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer,
eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o
domingo.
E esta era uma das coisas mais belas
que um homem podia fazer na vida!
Então,
todas as raparigas amariam no tempo próprio
e tudo seria natural
sem mendigos nas ruas nem casas de penhores...
Penso isto, e vou a grandes passadas...
E um domingo parei numa praça
e pus-me a gritar o que sentia,
mas todos acharam estranhos os meus modos
e estranha a minha voz...
Mariazinha Santos foi para o cinema
e outras menearam as ancas
— ao sol
como num ritual consagrado a um deus! —
até chegar o homem bem-amado entre todos
com uma nota de cem na mão estendida...
Venha a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu fique rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras;
venha a ânsia do peito para os braços!
E vou a grandes passadas
como um louco maior que a sua loucura...
O rapaz que era pintor
aconchegou-se sobre a linha férrea
para que a morte o desfigurasse
e o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica
de revolta contra o mundo.
Mas como o rosto lhe estava intacto
vai a família ao necrotério e ficou aterrada!
Conheci-o numa noite de bebedeira
e acho tudo aquilo natural.
A costureirinha que eu namorei
deixava-se ir para as ruas escuras
sem nenhum receio.
Uma vez que chovia até entrámos numa escada.
Somente sequer um beijo trocámos...
E isto porque no momento próprio
olhava para mim com um propósito tão sereno
que eu, que dela só desejava o corpo bom feito,
me punha a observar o outro aspecto do seu rosto,
que era aquela serenidade
de pessoa que tem a vida cheia e inteira.
No entanto, ela nunca pôs obstáculo
que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas.
Hoje encontramo-nos aí pelos cafés...
(ela está sempre com sujeitos decentes)
e quando nos fitamos nos olhos,
bem lá no fundo dos olhos,
eu que sou homem nascido
para fazer as coisas mais heróicas da vida
viro a cabeça para o lado e digo:
— rapaz, traz-me um café...
O meu amigo, que era pintor,
contou-me numa noite de bebedeira:
— Olha,
quando chega domingo,
não há nada melhor que ir para o futebol...
E como os olhos se me enevoassem de água,
continuou com uma voz
que deve ser igual à que se ouve nos sonhos:
— .... no entanto, conheço um homem
que ia para a beira do rio
e passava um dia inteirinho de domingo
segurando uma cana donde caia um fio para a água...
... um dia pescou um peixe,
e nunca mais lá voltou...
O pior é pensar:
que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre
como se fosse uma festa?... —
O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara,
tão rara e certa e maravilhosa
que deslumbrado se matou.
Pago o café e saio a grandes passadas.
Hoje e depois e todos os dias que vierem,
amo a vida mais e mais
que aqueles que sabem que vão morrer amanhã!
Mariazinha Santos,
que vá para o cinema morder o lencinho que sua mãe lhe
bordou...
E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos,
que parem ao sol
e joguem um tostão na mão dos pedintes...
E a menina das horas longas e frias
continue pela mão de sua avó...
E tu, que só andas com cavalheiros decentes,
ó costureirinha honesta que eu namorei um dia,
fita-me bem no fundo dos olhos,
fita-me bem no fundo dos olhos!
Então,
virá a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu ficarei rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras:
e virá a ânsia do peito para os braços!
Domingo que vem,
eu vou fazer as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida!
Manuel da Fonseca
em fundo
Chavelas Vargas
- interpreta -
Pablo Neruda, Eduardo Falú, Nicolas Guillen
Facundo Cabral, Atahualpa Yupanqui
Quero falar-te deste amor, como de um vento
amordaçado na camisa; uma febre de verão
que o mercúrio não acha; um telhado esmagado
pela ideia da chuva. Quero dizer-te
que sobre ele pairaram sempre brumas e nevoeiros
e profecias de temporais maiores, como os que levam
para longe os corpos dos navios. Não há notícias
deste amor; apenas uma intriga, um recado sonâmbulo,
um temor que desmaia as pregas do vestido e um sortilégio
urdido nas paisagens suspensas de um mapa que aperto
na mão sem desdobrar. E há memórias
deste amor? A voz sem as palavras, um livro lido
às escuras, um bilhete cifrado deixado num hotel,
um velho calendário cheio de desencontros? Não,
não há memória deste amor.
Maria do Rosário Pedreira, O Canto do Vento nos Ciprestes
Munch, Cinzas
Rodin, Les Mains
MÃOS
Côncavas de ter
Longas de desejo
Frescas de abandono
Consumidas de espanto
Inquietas de tocar e não prender.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral
Diz-me, silêncio...
Diz-me, silêncio, em ruídos permanentes
singelamente confusos primitivos -
que mão estender à voz que ouvida não
fala comigo ou com ninguém, silente:
Devo tocar como quem chama e pede?
Ou agarrar o que não fala ainda
senão por gestos quase imperceptíveis?
Esperarei perguntas sem resposta?
Responderei perguntas não faladas?
Diz-me, silêncio, em ruídos de que és feito,
como entender-te quando és corpo humano.
Jorge de Sena
Magritte, La méditation
esta esquisita prova me tentou
de tecer um rumor em muros de água
ossos de terra calcinada
o jugo
culpado me castigo com engenho
e da voz desenhada o artifício
restos de pele antiga
no laço da armadilha
em silêncio me muro e me demoro
no cálculo de rotas inexactas
um duro arbítrio quer que me desprenda
dos cinco ou mais sentidos
vou ser livre na terra desnudada
vou dizer o que sei como quem mente.
António Franco Alexandre, A Pequena Face
Athouguia, Na Rota de Mares Subterrâneos
Nicolas Stael
Águia
As águias não deviam ser aves
mas corações aduncos e com asas;
se olhares à flor dos campos e das casas
sentes o peito maior do que a amplidão:
se alguma coisa nasceu para voar
foi o teu coração.
Carlos de Oliveira, Colheita Perdida
Tudo que faço ou medito
Fica sempre na metade.
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.
Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma é lúcida e rica,
E eu sou um mar de sargaço –
Um mar onde bóiam lentos
Fragmentos de um mar de além...
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.
Pessoa, Cancioneiro
De Chirico, Nostalgia do Infinito
Símbolos? Estou farto de símbolos...
Mas dizem-me que tudo é símbolo.
Todos me dizem nada.
Quais símbolos? Sonhos. –
Que o sol seja um símbolo, está bem...
Que a lua seja um símbolo, está bem...
Que a terra seja um símbolo, está bem...
Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa,
E ele rompe as nuvens e aponta para trás das costas
Para o azul do céu?
Mas quem repara na lua senão para achar
Bela a luz que ela espalha, e não bem ela?
Mas quem repara na terra, que é o que pisa?
Chama terra aos campos, às árvores, aos montes.
Por uma diminuição instintiva,
Porque o mar também é terra...
Bem, vá, que tudo isso seja símbolo...
Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,
Mas neste poente precoce e azulando-se
O sol entre farrapos finos de nuvens,
Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado,
E o que fica da luz do dia
Doura a cabeça da costureira que pára vagamente à esquina
Onde demorava outrora com o namorado que a deixou?
Símbolos? Não quero símbolos...
Queria – pobre figura de miséria e desamparo! –
Que o namorado voltasse para o costureira.
Álvaro de Campos
desistiu.
cortou os cabelos, encurtou
as saias, trocou a cor do
batom e o número do telefone
celular.
esqueceu promessas e juras
- mentiras antigas -
bem como a cor dos seus olhos e
o tom grave da sua voz
: dele.
tratou de, em paz, viver a vida:
a sua.
as cartas, entretanto, guardou
para o caso de arrependimento
futuro ou se viesse a pesar a solidão.
Márcia Maia
mudança de hábito
Ocorre-me tropeçar em ti numa linha
que escrevi noutra idade - tão discreta
é a tua presença que ninguém
a não ser eu te poderá descobrir.
E sinto-me grato, como também o estou
ao gato do quintal ou às gaivotas
que esgravatam em tantos versos meus
à procura de sol fresco para alimento.
"É o seu peito, a sua boca", digo então,
e na penumbra do quarto por instantes
brilha de novo o corpo do desejo.
Eugénio de Andrade, O Sal da Língua
Claudined, Désir Intemporel
O fortuna
velut Luna
statu variabilis,
semper crescis
aut decrescis;
vita detestabilis
nunc obdurat
et tunc curat
ludo mentis aciem,
egestatem,
potestatem
dissolvit ut glaciem.
Sors immanis
et inanis,
rota tu volubilis,
status malus,
vana salus
semper dissolubilis,
obumbrata
et velata
michi quoque niteris;
[...]
Carl Orff - Carmina Burana
Caminho sem pés e sem sonhos
Caminho sem pés e sem sonhos
só com a respiração e a cadência
da muda passagem dos sopros
caminho como um remo que se afunda.
os redemoinhos sorvem as nuvens e os peixes
para que a elevação e a profundidade se conjuguem.
avanço sem jugo e ando longe
de caminhar sobre as águas do céu.
Daniel Faria, Explicação das Árvores e de Outros Animais
Astrid Lüders, Wirbel
Das Klavier ist mein zweites Ich
Chopin
Semiradsky - Chopin
A João Rui de Sousa
Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.
António Ramos Rosa, Não
posso adiar o coração
Na grande confusão
deste medo
deste não querer saber
na falta de coragem
ou na coragem de
me perder me afundar
perto de ti tão longe
tão nu
tão evidente
tão pobre como tu
Oh diz-me quem sou eu
quem és tu?
António Ramos Rosa
Kirsten Hellmich, Gross Flehen
Súplica
Agora que o silêncio é um mar sem ondas
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim.
Já tão longe de ti, como de mim.
Perde-se a vida, a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz, seria
Matar a sede com água salgada.
Miguel Torga, Câmara Ardente
CAMILLE CLAUDEL
L'Abandon
Deborah Ormsby, fractal-Fountain of Youth
Nos teus dedos nasceram horizontes
e aves verdes vieram desvairadas
beber neles julgando serem fontes.
Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos
A dor da separação
Pousada numa âncora, uma gaivota pia.
De súbito, sem uma palavra, a âncora desliza.
Surpreendida, a gaivota levanta voo.
Em breve, a âncora empalidece na água, afundando-se.
E o que a gaivota sente torna-se um grito bravio, triste,
Perdido no vento.
Maruyama Kaoru – Trad.: José Alberto Oliveira
In Rosa Do Mundo, 2001 Poemas Para O Futuro
Sonho
Penso que devo ter adormecido por algum tempo;
Pois quando acordei tinhas vindo e partido.
Apenas algumas flores permaneciam –
Flores que não podiam sequer dizer quem eram…
E uma fragrância vaga e suave no ar.
Esta noite tenho de sonhar um sonho mais longo
Para que as flores falem
E a sua fragrância estenda uma trémula ponte
Entre nós.
P.S. Rege - Trad.: Cecília Rego Pinheiro
Turner, Claire de Lune
Como cresceram as brasas!
Como cresceram as brasas! Como queimam
o ar em que desenho
o vazio dos dedos!
Que mala de amianto possuir
para guardar o fogo
de iluminar as noites que virão?
Egito Gonçalves, O fósforo na Palha
AMOR
Não sei nunca se é isto exactamente
o que chamam amor - esta vontade
de imaginar assim a força que há-de
tornar-nos mais felizes de repente
ou infelizes, tanto faz; a ardente
promessa de um saber que nos invade
e nos deixa sem nome nem idade
à espera de uma imagem que nos mente
na certeza de tudo o que se entrega
à nossa alma com uma luz que cega
todas as circunstâncias, uma a uma,
até se transformar na fantasia
que rouba o dia à noite, a noite ao dia,
e vai morrer algures, desfeita em espuma.
Fernando Pinto do Amaral, Pena Suspensa
Chagall, Lovers in the Lilacs
Difícil é...
Difícil é esperar
quando sabemos
nada haver a esperar.
O eco de uma lágrima não basta
para dar vento à sementeira.
Egito Gonçalves, O Fósforo na Palha
Colin Mackenzie, tears from the heart
em fundo
Tchaikovsky - Violin Concerto D major, op.35
David Oistrach,Violin. Igor Oistrach, Violin
Leipzig Gewandhaus Orchestra - Franz Konwitschny
IL VENTO CI PORTERÀ VIA
Nella mia piccola notte il vento, e le foglie
si ritrovano.
Nella mia piccola notte la paura, è
distruzione.
Ascolta, senti il frusciar dell'oscurità?
Io guardo meravigliato, questa felicità Del
mio pessimismo, son dipendente.
Ascolta, senti il frusciar dell'oscurità?
Ora nella notte qualcosa sta passando, e la
luna rossa è in allarme.
Su questo letto, che ogni attimo teme il
crollo, le nuvole, come un popolo in lutto,
attendono il momento della pioggia.
Un momento e subito dopo... nulla più.
Dietro questa finestra la notte trema e la
terra arresta il suo girare.
Oltre la finestra, un estraneo si preoccupa
di me e di te.
Oh corpo rigoglioso...le tue mani come
doloroso ricordo, poggia tra le mie
innamorate.
E le tue labbra, come una sensazione calda
di vita, lasciale carezzare le mie labbra
innamorate.
Il vento ci porterà via.
di Forugh Farrokhzad - traduzione Babak Karimi
Cascina Valletta
THE WIND WILL TAKE US
In my small night, ah
the wind has a date with the leaves of the trees
in my small night there is agony of destruction
listen
do you hear the darkness blowing?
I look upon this bliss as a stranger
I am addicted to my despair.
listen do you hear the darkness blowing?
something is passing in the night
the moon is restless and red
and over this rooftop
where crumbling is a constant fear
clouds, like a procession of mourners
seem to be waiting for the moment of rain.
a moment
and then nothing
night shudders beyond this window
and the earth winds to a halt
beyond this window
something unknown is watching you and me.
Alexis Lesaffre
O green from head to foot
place your hands like a burning memory
in my loving hands
give your lips to the caresses
of my loving lips
like the warm perception of being
the wind will take us
the wind will take us.
Forough Farrokhzad - Translated by Ahmad Karimi Hakkak
LE VENT NOUS EMPORTERA
Dans ma nuit, si brève, hélas
Le vent a rendez-vous avec les feuilles.
Ma nuit si brève est remplie de l'angoisse dévastatrice
Ecoute! Entends-tu le souffle des ténèbres?
De ce bonheur, je me sens étranger.
Au désespoir je suis accoutumée.
Ecoute! Entends-tu le souffle des ténèbres?
Là, dans la nuit, quelque chose se passe
La lune est rouge et angoissée.
Et accrochés à ce toit
Qui risque de s'effondrer à tout moment,
Les nuages, comme une foule de pleureuses,
Attendent l'accouchement de la pluie,
Un instant, et puis rien.
Derrière cette fenêtre,
C'est la nuit qui tremble
Et c'est la terre qui s'arrête de tourner.
Derrière cette fenêtre, un inconnu s'inquiète
pour moi et toi.
Toi, toute verdoyante,
Pose tes mains - ces souvenirs ardents -
Sur mes mains amoureuses
Et confie tes lèvres, repues de la chaleur de la vie,
Aux caresses de mes lèvres amoureuses
Le vent nous emportera!
Le vent nous emportera!
Forough Farrokhzad,
Poème extrait du film Le Vent nous emportera,
d'Abbas Kiarostami
Erik Anestad
O VENTO LEVAR-NOS-Á
Na minha noite, infelizmente tão curta
o vento está prestes a encontrar-se com as folhas das árvores
na minha noite, tão breve, e plena de uma angústia devastadora
ouve
ouves o sussurro das sombras?
esta felicidade é-me desconhecida
estou habituada ao desespero
Ouves o sussurro das sombras?
ali, na noite, algo acontece
a lua é vermelha e ansiosa
e sobre este telhado
que a qualquer momento pode ruir
as nuvens, qual procissão de carpideiras
aguardam o nascimento da chuva.
um segundo
depois nada
atrás desta janela a noite treme
e a terra pára de girar
atrás desta janela
qualquer coisa desconhecida inquieta-se comigo e contigo
Tu, verde dos pés à cabeça
coloca as tuas mãos, essas memórias escaldantes,
nas minhas mãos amorosas
entrega os teus lábios ao toque
dos meus lábios amorosos
repletos do calor da vida
o vento levar-nos-á
o vento levar-nos-á.
Forugh Farrokzad - Versão de Vasco Gato
Jacques Pontbriand
Uma voz na pedra
Não sei se respondo ou se pergunto
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta
nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.
António Ramos Rosa
Magritte, Le regard interieur
El Infinito
De un tiempo a esta parte
el infinito
se ha encogido
peligrosamente.
Quién iba a suponer
que segundo a segundo
cada migaja
de su pan sin límites
iba así a despeñarse
como canto rodado
en el abismo.
Mário Benedetti
Edward Hopper, hotel-room
Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville.
Quelle est cette langueur
Qui pénètre mon coeur?
O bruit doux de la pluie
Par terre et sur les toits!
Pour un coeur qui s'ennuie,
O le chant de la pluie!
Il pleure sans raison
Dans ce coeur qui s'écoeure.
Quoi? Nulle trahison?
Ce deuil est sans raison.
C'est bien la pire peine
De ne savoir pourquoi
Sans amour et sans haine
Mon coeur a tant de peine!
Verlaine
Água morrente
Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville.
Verlaine
Meus olhos apagados,
Vede a água cair.
Das beiras dos telhados
Cair, sempre cair.
Das beiras dos telhados,
Cair, quase morrer...
Meus olhos apagados,
E cansados de ver.
Meus olhos, afogai-vos
Na vã tristeza ambiente.
Caí e derramai-vos
Como a água morrente.
Camilo Pessanha
Van Gogh, Japonaiserie, Bridge in the Rain (after Hiroshige)
Ursula Tillmetz, Tristan & Isolde
Tristão e Isolda
As linhas paralelas que nós somos
passam, distantes dos terrenos bens.
Para elas não são nenhuns dos pomos
com que tu, irmão-homem, te entreténs...
Podem vir pois ameaçar, tentar
águas de fáceis lagos nossos remos...
Para nós dois apenas este Mar:
o Infinito aonde nos veremos.
David Mourão-Ferreira
Lisboa – do Miradouro do Monte Agudo
mal-me-queres
Ó malmequer mentiroso
Quem te ensinou a mentir
Tu dizes quem me quer bem
Quem de mim anda a fugir
Desfolhei um malmequer
Num lindo jardim de Santarém
Malmequer, bem me quer
Muito longe está quem me quer bem
Coitado do malmequer
Sem fazer mal a ninguém
São todos a desfolhá-lo
Para ver quem lhe quer bem
Malmequer não é constante
Malmequer muito varia
Vinte folhas dizem morte
Treze dizem alegria
Cancioneiro
Van Gogh, vase with daisies and anemones
Drei Eichen, Feuer
AMORES PROIBIDOS
em memória de David Mourão-Ferreira
Onde está quem amamos quando amamos
outro corpo de fogo em movimento?
Pra que abismo corremos pra que enganos
quando as promessas são poeira ao vento?
De que matéria alheia mal tentamos
fugir quando a verdade mora dentro
de alguém a cujo céu nos entregamos
numa noite de sonho e de tormento?
Ainda somos humanos se traímos
por instinto um amor de tantos anos
e só àquele instante obedecemos?
Ainda somos humanos? Ou seremos
a febre que há no sangue quando vimos
de súbito morrer num corpo e vamos
em busca do inferno que merecemos?
Talvez por um momento então sejamos
sonâmbulos fantasmas do que fomos
reflectidos num espelho que não vemos
Ou talvez nesse corpo descubramos
a memória da alma que perdemos
pra sempre no momento em que transpomos
a fronteira dos gestos quotidianos
e ao sabor de um desejo destruímos
todas as intenções todos os planos,
em nome dos prazeres mais supremos
na noite em que deixamos de ser donos
do nosso próprio corpo e abandonamos
angústias e remorsos e partimos
em busca da manhã que não sabemos
Onde está quem amamos quando somos
mais do que humanos? Mais? Ou muito menos?
Fernando Pinto do Amaral, Pena Suspensa
Brigitte Pelzer-Hilke, Krafftier Krähe - Licht und Dunkelheit
A gralha negra em tempo de chuva
Lá no alto, num ramo firme
arqueia-se uma gralha toda molhada
arranjando e voltando a arranjar as penas à chuva.
Não espero qualquer milagre
nem nada
que venha lançar fogo à paisagem
no interior dos meus olhos, nem procuro
mais no tempo inconstante qualquer desígnio,
mas deixo as folhas manchadas cair conforme caem,
sem cerimónia ou maravilha.
Embora - admito-o - deseje
ocasionalmente alguma resposta
do céu mudo, não posso honestamente queixar-me:
uma certa luz pode ainda
surgir incandescente
da mesa da cozinha ou da cadeira
como se um fogo celestial tornasse
seu, de um instante para outro, os mais estranhos objectos,
assim consagrando um intervalo
de outro modo inconsequente
por nos dar grandeza e glória
ou até amor. De qualquer modo, caminho agora
atenta (por isso poderia acontecer
mesmo nesta paisagem triste e arruinada); descrente,
mas astuta, ignorante
de que um anjo se decida a resplandecer
repentinamente a meu lado. Apenas sei que uma gralha
ordenando as suas penas negras pode brilhar
de tal maneira que prenda a minha atenção, erga
as minhas pálpebras, e conceda
um breve repouso com medo
de uma neutralidade total. Com sorte,
viajando teimosamente por esta estação
de fadiga, acabarei
por juntar um conjunto
de coisas. Os milagres acontecem
se gostares de invocar aqueles espasmódicos
gestos de luminosos milagres. A espera recomeçou de novo,
a longa espera pelo anjo,
por essa rara, fortuita visita.
Sylvia Plath, Pela Água
ed. bilingue - trad.: Maria de Lourdes Guimarães
Catherine Bourdeau, une certaine timidité
Timidez
Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...
- mas só esse eu não farei.
Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras distantes...
- palavras que não direi.
Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,
- que amargamente inventei.
E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo
até não se sabe quando...
- e um dia me acabarei.
Cecília Meireles
je regarde la mer
Je regarde la mer
s'élever dans l'espace
sur ses immenses ailes d'eau
s'envoler loin d'ici
loin des misères de la terre
et qui se pose pour chanter
sur l'une des branches
de l'arbre soleil
Pierre Chatillon, Le violon vert
Begoña Rojas, Mar
Aqui na orla da praia, ...
Manuel Antão, A força do mar
Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,
Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,
E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.
A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio
Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;
O amor é um sonho que chega para o pouco ser que se é;
A glória concede e nega; não tem verdades a fé.
Por isso na orla morena da praia calada e só,
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.
Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,
Não quero nada do acaso, senão a brisa na face;
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei,
Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.
Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar,
Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.
Fernando Pessoa, Cancioneiro
Se eu pudesse iluminar por dentro...
(O soneto que só errado ficou certo.)
Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.
Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guias
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.
Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.
Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva.
José Gomes Ferreira, Poesia IV
René Magritte, l'empire de la lumière
Duas linhas paralelas
Duas linhas paralelas
Muito paralelamente
Iam passando entre estrelas
Fazendo o que estava escrito:
Caminhando eternamente
de infinito a infinito
Seguiam-se passo a passo
Exactas e sempre a par
Pois só num ponto do espaço
Que ninguém sabe onde é
Se podiam encontrar
Falar e tomar café.
Mas farta de andar sozinha
Uma delas certo dia
Voltou-se para a outra linha
Sorriu-lhe e disse-lhe assim:
"Deixa lá a geometria
E anda aqui para o pé de mim...!
Diz a outra: "Nem pensar!
Mas que falta de respeito!
Se quisermos lá chegar
Temos de ir devagarinho
Andando sempre a direito
Cada qual no seu caminho!"
Não se dando por achada
Fica na sua a primeira
E sorrindo amalandrada
Pela calada, sem um grito
Deita a mãozinha matreira
Puxa para si o infinito.
E com ele ali à frente
As duas a murmurar
Olharam-se docemente
E sem fazerem perguntas
Puseram-se a namorar
Seguiram as duas juntas.
Assim nestas poucas linhas
Fica uma estória banal
Com linhas e entrelinhas
E uma moral convergente:
O infinito afinal
Fica aqui ao pé da gente.
José Fanha
Ingrid Wolff-Hamm, Das Unendliche
Certitude
Si je te parle c'est pour mieux t'entendre
Si je t'entends je suis sûr de comprendre
Si tu souris c'est pour mieux m'envahir
Si tu souris je vois le monde entier
Si je t'étreins c'est pour me continuer
Si nous vivons tout sera à plaisir
Si je te quitte nous nous souviendrons
Et nous quittant nous nous retrouverons.
Paul Eluard, Derniers poèmes d'amour
M.Wiora, flores de tília
Partiste a minha vida...
Partiste a minha vida em longos promontórios,
um dos quais penetra até um jardim relvado
onde a maneira doce como cruzaste as pernas
o fixou em acerada ponta dolorosa.
De longe atacas-me de ternura em riste
penetrando na solidão que te franqueio
onde se engasta o brilho dos teus olhos
e a estranha flor da tua ausência.
Egito Gonçalves, O Fósforo na Palha
Anni Adkins, bruised hibiscus
CANÇÃO DA ALMA CAIADA
Aprendi desde criança
Que é melhor me calar
E dançar conforme a dança
Do que jamais ousar
Mas às vezes pressinto
Que não me enquadro na lei:
Minto sobre o que sinto
E esqueço tudo o que sei.
Só comigo ouso lutar,
Sem me poder vencer:
Tento afogar no mar
O fogo em que quero arder.
De dia caio minh'alma
Só à noite caio em mim
por isso me falta calma
e vivo inquieto assim.
António Cícero
Kandinsky, the red oval
Tchaikowsky
Sinfonia nº 6, en si mayor, op. 74 "Patetica"
Orquestra Sinfónica del Estado de la URSS
K. Ivanov
em fundo
Nathann Altman, Anna Akhmatova
Como Pedra Branca
Como pedra branca no fundo do poço
dentro de mim está uma memória.
Nem quero afastá-la, nem posso:
é sofrimento e é prazer e glória.
Julgo que quem olhar-me bem de perto
dentro em meus olhos logo pode vê-la.
E ficará mais triste e pensativo
que alguém que escute uma anedota obscena.
Eu sei que os deuses metamorfoseavam
os homens em coisas sem tirar-lhes alma.
Para que o espante da tristeza dure sempre,
em coisa da memória te mudei.
Tradução de Jorge de Sena
As a White Stone...
As a white stone in the well's cool deepness,
There lays in me one wonderful remembrance.
I am not able and don't want to miss this:
It is my torture and my utter gladness.
I think, that he whose look will be directed
Into my eyes, at once will see it whole.
He will become more thoughtful and dejected
Than someone, hearing a story of a dole.
I knew: the gods turned once, in their madness,
Men into things, not killing humane senses.
You've been turned in to my reminiscences
To make eternal the unearthly sadness.
Translated by Yevgeny Bonver
Anna Akhmatova
¡Si me llamaras, sí;
si me llamaras!
Lo dejaría todo,
todo lo tiraría:
los precios, los catálogos,
el azul del océano en los mapas,
los días y sus noches,
los telegramas viejos
y un amor.
Tú, que no eres mi amor,
¡si me llamaras!
Y aún espero tu voz:
telescopios abajo,
desde la estrella,
por espejos, por túneles,
por los años bisiestos
puede venir. No sé por dónde.
Desde el prodigio, siempre.
Porque si tú me llamas
-¡si me llamaras, sí, si me llamaras!-
será desde un milagro,
incógnito, sin verlo.
Nunca desde los labios que te beso,
nunca
desde la voz que dice: "No te vayas".
Pedro Salinas
Juan Gris, La Plaza Ravignan
Amar não é aceitar tudo.
Onde tudo é aceito, presumo que há falta de amor.
Vladimir Maiakovsky
Pablo Picasso
Alguien entra en el silencio y me abandona.
Ahora la soledad no está sola.
Tú hablas como la noche.
Te anuncias como la sed.
Alexandra Pizarnik, los trabajos y las noches
Van Gogh, two cut sunflowers
Como é natural
Vão longe os anos de intermezzo
quando a brisa indolente passeava
doce esperança à flor dos lábios mudos
Se uma folha caída se um rumor
brando acordava o silêncio mal represo
quanto alarme no ar de flores coberto
Vão longe os tempos de alvoroço
de fronteira a fronteira imaginária
rara aventura agora impessoal
uma alegria alheia que hoje amarga
Dou corda a este velho relógio de parede
pesa-me o braço que levanto
do peso de outros tempos que desperto
E um fantasma lá dos fundos do quadrante
sorri-me com tristeza e diz É tarde
talvez já seja muito tarde.
Mário Dionísio, O Silêncio Voluntário
Chagall, Lovers Gray
CET AMOUR
Cet amour
Si violent
Si fragile
Si tendre
Si désespéré
Cet amour
Beau comme le jour
Et mauvais comme le temps
Quand le temps est mauvais
Cet amour si vrai
Cet amour si beau
Si heureux
Si joyeux
Et si dérisoire
Tremblant de peur comme un enfant dans le noir
Et si sûr de lui
Comme un homme tranquille au milieu de la nuit
Cet amour qui faisait peur aux autres
Qui les faisait parler
Qui les faisait blêmir
Cet amour guetté
Parce que nous le guettions
Traqué blessé piétiné achevé nié oublié
Parce que nous l'avons traqué blessé piétiné achevé nié oublié
Cet amour tout entier
Si vivant encore
Et tout ensoleillé
C'est le tien
C'est le mien
Celui qui a été
Cette chose toujours nouvelle
Et qui n'a pas changé
Aussi vraie qu'une plante
Aussi tremblante qu'un oiseau
Aussi chaude aussi vivante que l'été
Nous pouvons tous les deux
Aller et revenir
Nous pouvons oublier
Et puis nous rendormir
Nous réveiller souffrir vieillir
Nous endormir encore
Rêver à la mort
Nous éveiller sourire et rire
Et rajeunir
Notre amour reste là
Têtu comme une bourrique
Vivant comme le désir
Cruel comme la mémoire
Bête comme les regrets
Tendre comme le souvenir
Froid comme le marbre
Beau comme le jour
Fragile comme un enfant
Il nous regarde en souriant
Et il nous parle sans rien dire
Et moi j'écoute en tremblant
Et je crie
Je crie pour toi
Je crie pour moi
Je te supplie
Pour toi pour moi et pour tous ceux qui s'aiment
Et qui se sont aimés
Oui je lui crie
Pour toi pour moi et pour tous les autres
Que je ne connais pas
Reste là
Là où tu es
Là où tu étais autrefois
Reste là
Ne bouge pas
Ne t'en va pas
Nous qui sommes aimés
Nous t'avons oublié
Toi ne nous oublie pas
Nous n'avions que toi sur la terre
Ne nous laisse pas devenir froids
Beaucoup plus loin toujours
Et n'importe où
Donne-nous signe de vie
Beaucoup plus tard au coin d'un bois
Dans la forêt de la mémoire
Surgis soudain
Tends-nous la main
Et sauve-nous.
Jacques Prévert, Paroles
Vieira da Silva, Jardins suspendus
Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence o vencedor;
é ter, com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Luís de Camões, Rimas
Matisse, harmonie jaune
Cantiga de amigo
Nem um poema nem um verso nem um canto
tudo raso de ausência tudo liso de espanto
e nem Camões Virgílio Shelley Dante
o meu amigo está longe
e a distância é bastante.
Nem um som nem um grito nem um ai
tudo calado todos sem mãe nem pai
Ah não Camões Virgílio Shelley Dante!
o meu amigo está longe
e a tristeza é bastante.
Nada a não ser este silêncio tenso
que faz do amor sozinho o amor imenso.
Calai Camões Virgílio Shelley Dante:
o meu amigo está longe
e a saudade é bastante!
Ary dos Santos, Obra Poética
Papoilas
estou opiada de ti
e percorres-me os nervos todos
com papoilas borboletas vermelhas
o meu corpo entrança-se de sonhos
e sente-se caminhando por dentro
aspiro-te
como se me faltasse o ar
e os perfumes dançam-me
qualquer coisa como uma droga bem forte
corpo e alma
rezam pequenas orações
gestos ritmados ao abraçar-te como quem abraça
sonhos
coisa estranha
opiada me preciso ou apenas vestida de papoilas e
muito sol com luas por dentro
para poder mastigar estes sonhos
reais como mandrágoras
Ana Mafalda Leite
Georgia O'keeffe, poppies
Amor
Vibrátil, fina, perfumada e clara,
Ondula a aragem que o amor provoca.
Longe, respira a vida. Aqui, o sonho.
Tudo é infância de águas e colinas
Na manhã dos teus olhos.
E voos, de mãos dadas.
E cantos, cantos de infinito amor,
Nos galhos, nas correntes e nas sombras veladas.
Envolve-se de nuvem nosso abraço.
Vibrátil, fina, perfumada e clara,
Ondula a aragem. Fadas e duendes
Agitam instrumentos na folhagem...
Vibrátil, fina, imperceptível, fluida,
Orquestra ao longe, no fundo dos sentidos:
Dedos de flores ondeiam sobre a pele
De céus indefinidos...
Cantam mistérios bocas fascinadas.
Abrem corolas, sobre a luz que as toca.
Vibrátil, fina, perfumada e clara,
Ondula a aragem que o amor provoca.
Natércia Freire
Jean Arp, Constellation
Un sol
Mi corazón es como un dios sin lengua,
Mudo se está a la espera del milagro,
He amado mucho, todo amor fue magro,
Que todo amor lo conocí con mengua.
He amado hasta llorar, hasta morirme.
Amé hasta odiar, amé hasta la locura,
Pero yo espero algún amor natura
Capaz de renovarme y redimirme.
Amor que fructifique mi desierto
Y me haga brotar ramas sensitivas,
Soy una selva de raíces vivas,
Sólo el follaje suele estarse muerto.
¿En dónde está quien mi deseo alienta?
¿Me empobreció a sus ojos el ramaje?
Vulgar estorbo, pálido follaje
Distinto al tronco fiel que lo alimenta.
¿En dónde está el espíritu sombrío
De cuya opacidad brote la llama?
Ah, si mis mundos con su amor inflama
Yo seré incontenible como un río.
¿En dónde está el que con su amor me envuelva?
Ha de traer su gran verdad sabida...
Hielo y más hielo recogí en la vida:
Yo necesito un sol que me disuelva.
Alfonsina Storni
Munch
Balla, mercury passing in front of the sun
O círculo é a forma eleita
É ovo, é zero.
É ciclo, é ciência.
Nele se inclui todo o mistério
E toda a sapiência.
É o que está feito,
Perfeito e determinado,
É o que principia
No que está acabado.
A viagem que o meu ser empreende
Começa em mim,
E fora de mim,
Ainda a mim se prende.
A senda mais perigosa.
Em nós se consumando,
Passando a existência
Mil círculos concêntricos
Desenhando.
Ana Hatherly
em fundo
Donizetti, l'elisir d'amore
Rescigno, Pavarotti, Blegen
Metropolitan Opera
Bouguereau, the first kis
Una furtiva lagrima
Una furtiva lagrima
negli occhi suoi spuntò...
quelle festose giovani
invidiar sembrò...
Che più cercando io vo?
M'ama, lo vedo.
Un solo istante i palpiti
del suo bel cor sentir!..
Co' suoi sospir confondere
per poco i miei sospir!...
Cielo, si può morir;
di più non chiedo.
Eccola... Oh! qual le accresce
beltà l'amor nascente!
A far l'indifferente
si seguiti così finché non viene
ella a spiegarsi.
Una Furtiva Lacrima - G. Donizetti
Enleio
Não sei se volteio
Se rodopio
Se quebro
Se tombo nesta queda
em que passeio
Não sei se a vertigem
em que me afundo
é este precipício em que me enleio
Não sei se cair assim
me quebra...
Me esmago ou sobrevivo
em busca deste anseio
Maria Teresa Horta, Destino
Maxfield Parrish, ecstasy
Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...
Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... e eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...
Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri
E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...
Florbela Espanca, In Charneca em Flor
Hopper
Como te amo?
Como te amo? Deixa-me contar os modos.
Amo-te ao mais fundo, amplo e alto
Minh'alma pode alcançar, além dos limites visíveis
E fins do Ser e da Graça ideal.
Amo-te até ao nível das mais diárias
E ínfimas necessidades, à luz do sol e das velas.
Amo-te com liberdade, como os homens buscam por
Justiça;
Amo-te com pureza, como voltam das Preces.
Amo-te com a paixão posta em uso
Nas minhas velhas mágoas e com a fé da minha infância.
Amo-te com um amor que me parecia perdido
Com meus Santos perdidos - amo-te com o fôlego,
Sorrisos, lágrimas, de toda a minha vida! - e, se Deus
quiser,
Amar-te-ei melhor depois da morte.
Elizabeth Barrett Browning
Sonetos dos Portugueses, trad.:Luís Eusébio
How do I love thee?
How do I love thee? Let me count the ways.
I love thee to the depth and breadth and height
My soul can reach, when feeling out of sight
For the ends of Being and ideal Grace.
I love thee to the level of everyday's
Most quiet need, by sun and candlelight.
I love thee freely, as men strive for Right;
I love thee purely, as they turn from Praise.
I love thee with the passion put to use
In my old griefs, and with my childhood's faith.
I love thee with a love I seemed to lose
With my lost saints, - I love thee with the breath,
Smiles, tears, of all my life! - and, if God choose,
I shall but love thee better after death.
Elizabeth Barrett Browning
Sonnets from the Portuguese
Chagall, Land Gods II - Cupid and Psyche
em fundo
Franz Schubert, Ave Maria
Ave Maria
Gratia plena
Maria, gratia plena
Maria, gratia plena
Ave, ave dominus
Dominus tecum
Benedicta tu in mulieribus
Et benedictus
Et benedictus fructus ventris
Ventris tui, Jesus.
Ave Maria
Ave Maria
Mater Dei
Ora pro nobis peccatoribus
Ora pro nobis
Ora, ora pro nobis peccatoribus
Nunc et in hora mortis
Et in hora mortis nostrae
Et in hora mortis nostrae
Et in hora mortis nostrae
Ave Maria
Gustav Klimt, Franz Schubert
Sozinha no bosque
Com meus pensamentos,
Calei as saudades
Fiz tréguas a tormentos.
Olhei para a Lua,
Que as sombras rasgava,
Nas trémulas águas
Seus raios soltava.
N'aquela torrente
Que vai despedida,
Encontro assustada
A imagem da vida.
Do peito em que as dores
Já iam cessar,
Revoa a tristeza
E torno a penar.
Marquesa de Alorna, Obras Poéticas
Dante Gabriel Rossetti, Portrait of Elizabeth Siddal
Les gens ont des étoiles qui ne sont pas les mêmes.
Antoine de Saint-Exupéry, Le Petit Prince
Asas
Eu tenho asas!
Piso o chão como pisa toda a gente
mas tenho asas
de impalpável tecido transparente,
feitas de pó de estrelas e de flores.
Asas que ninguém vê, que ninguém sente,
asas de todas as cores.
Pequenas asas brancas que me afastam
das coisas triviais
e as tornam leves, fluídas, irreais
- polén, nuvem, luar, constelações,
irisados cristais.
Asa branca minha alma a palpitar,
bater de asas o doce ciciar
de pálpebras e cílios.
Ó minhas asas brancas de cetim!
Revoadas de pássaros meus sonhos,
Meus desejos sem fim!
Fernanda de Castro, Exílio
Hino ao sol
Foto: eli
Respiro o doce hálito da tua boca
- diz Akhenaton ao divino Sol. -
Vejo a tua beleza
todos os dias,
quero para sempre ouvir tua doce voz,
como o vento.
Desejo que a vida renasça em mim,
graças ao teu amor.
Dá-me o alento
que rejuvenesce o teu espírito,
para que eu o colha,
o receba
e dele viva.
Chama por mim até à eternidade.
Jamais deixarei de estar contigo,
jamais deixarei de te responder.
Akhenaton (Amenófis IV)
ENDIMIÃO, ENDIMIÃO
Endimião, Endimião,
porque existes só para seres sombra
do desejo mais forte.
Apelas para o elo
que a boca bem redonda continua.
O beijo, sede de água
luminosa soando a pedra fresca
escorrida pelo rio.
Só faltam assim as mãos.
A empatia.
(O senso mais medido.)
Endimião, não quero teu busto
ao canto da casa que me ergo,
não quero a cegueira empedernida.
És, ouve bem,
a pura forma de encontrar a via,
o sono,
o canto na lonjura.
A imobilidade rasa da
resignação.
Amar-te o silêncio
é entregar-me em abismo à natureza.
Maria Alzira Seixo
in 366 poemas que falam de amor
antologia organizada por
Vasco Graça Moura
Endymion
David Perret, endymion
Por ti lutavam deuses desumanos.
E eu vi-te numa praia abandonado
À luz, e pelos ventos destroçado,
E os teus membros rolaram nos oceanos.
Sophia de Mello Breyner Andresen
La blanche Séléné...
- La blanche Séléné laisse flotter son voile,
Craintive, sur les pieds du bel Endymion,
Et lui jette un baiser dans un pâle rayon...
Arthur Rimbaud, Soleil et chair
Edward J. Poynter, Vision of Endymion
On n'a pas besoin de la lune
On n'a pas besoin de la lune
Quand on est vraiment amoureux
Pas besoin de vent sur la dune
Ni de source ni de ciel bleu
Du moment qu'on aime sa brune
Ça suffit pour qu'on soit heureux
Les yeux dans les yeux
Et le coeur joyeux
On oublie la terre et les cieux
Quelle bonheur quelle joie quelle chance
Ma donnée la vie
La première fois que je vis
Celle qui est mon amie
Nous avons fait connaissance
Son jardin fleuri
Et pas sous le ciel de la Provence
Mais sous un parapluie Place Clichy
Un petit coin de parapluie
Contre un coin de paradis
Elle avait quelque chose d'un ange
On n'a pas besoin de la lune
Quand on est vraiment amoureux
Pas besoin de vent sur la dune
Ni de source ni de ciel bleu
Du moment qu'on aime sa brune
Ça suffit pour qu'on soit heureux
Les yeux dans les yeux
Et le coeur joyeux
On oublie la terre et les cieux
On n'a pas besoin de la lune
Quand on est vraiment amoureux
Georges Brassens, chansons de sa jeunesse
AMIZADE
De mais ninguém, senão de ti, preciso:
Do teu sereno olhar, do teu sorriso,
Da tua mão pousada no meu ombro.
Ouvir-te murmurar: - "Espera e confia!"
E sentir converter-se em harmonia,
O que era, dantes, confusão e assombro.
Carlos Queirós
in 366 poemas que falam de amor,
uma antologia organizada por
Vasco Graça Moura
em fundo
Resnichenko, violin
Johannes Brahms, Violin Concerto, op. 77
BRAHMS
O som do violino
escapa
por entre as lisuras
As fissuras incandescentes da tarde
Buscando no corpo a eleição
a perfeição
Os jacintos adormecidos da arte
Numa desordem
súbita
Maria Teresa Horta, Destino
Sintra
... um jardim terreal que Salomão mandou aqui
a um rei de Portugal
Gil Vicente
Foto: eli
Em Sintra
Monserrate – Sintra – foto: eli
As águas maravilham-se entre os lábios
e a fala, rápidos
em Sintra espelhos surgem como pássaros,
a luz de que se erguem acontece às águas,
à flor da fala
divide os lábios e a ternura. Da linguagem
rebentam folhas duma cor incómoda, as de que
maravilhado de água surges entre
livros, algum crime, um
menino a dissolver-se ou dele os lábios e ergues
equívoca a luz depois. Rápidos
espelhos então cercam-te explodindo os pássaros.
Luís Miguel Nava, Poesia Completa
foto: Wiora
escuta amor
talvez num dia
em que de mim já nada mais exista
te lembres de dois braços
que te abraçaram convulsivamente
nessa altura
deixa que os lábios te sangrem
deixa que o sangue
te corra pelo peito
e as mãos
essas
abandona-as...
Mário Henrique Leiria
Miedo
Aquí, sobre tu pecho, tengo miedo de todo;
estréchame en tus brazos como una golondrina
y dime la palabra, la palabra divina
que encuentre en mis oídos dulcísimo acomodo.
Háblame de amor, arrúllame, dame el mejor apodo,
besa mis pobres manos, acaricia la fina
mata de mis cabellos, y olvidaré, mezquina,
que soy, ¡oh cielo eterno!, sólo un poco de lodo.
¡Es tan mala la vida! ¡Andan sueltas las fieras!...
Oh, no he tenido nunca las bellas primaveras
que tienen las mujeres cuando todo lo ignoran.
En tus brazos, amado, quiero soñar en ellos,
mientras tus manos blancas suavizan mis cabellos,
mientras mis labios besan, mientras mis ojos lloran.
Alfonsina Storni
Anni Adkins
Liberdade
Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando, ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.
Sophia de Mello Breyner Andresen,
Mar Novo
Foto: eli
Azul. Era azul?...
Azul. Era azul? Era a cor
que era, não a que pretendo
- ou seja, a que relembro.
O mar. Água, em todo o caso.
Vento por cima; ou era a voz
de alguém fazendo o ar bulir?
É na pele o que sinto
ou nos ouvidos soa? A sós
a praia. A sós, que não estou lá.
Pedro Tamen, Memória Indescritível
Foto: eli
endechas a Bárbara escrava
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.
Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.
Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E. pois nela vivo,
É força que viva.
Luís de Camões, Rimas
Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que pera meus olhos
Fosse mais fermosa.
Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.
Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Marie Benoist, Portrait
Camoniana
Quem és tu, bárbara, que moras
num poema que se estuda nas escolas
e se lê em recitais,
- tu que te limitaste a ser amada
por um poeta que, se calhar, mais
não te deu em troca do amor
do que esse poema que tu, se calhar,
nunca chegaste a ouvir? Quem és,
ó mulher mais real do que esse
poeta que te cantou, e de cuja vida
ninguém sabe nada - a não ser
que te amou, e te deitou nesse
poema em que ainda vives, e respiras
como no dia em que ele o escreveu
lembrando-se do teu corpo, e dos
teus lábios, e dos dias, ou noites,
que contigo se passaram? Quem és,
mulher real e sonhada que habitas
todos os poemas que esse poema
inspirou, e todos os sonhos que
nessa bárbara encontraram uma imagem
precisa e definitiva? volta-te
nesses versos, para que te vejamos
o rosto, e diz-nos o teu nome o nome
autêntico, e não esse que o poeta
inventou para te chamar num poema
que de ti só guarda o segredo;
e adormece depois, esquecendo
o que de ti disseram, e os comentários
de que foste o pretexto, e as imagens
em que, cada vez mais, foste perdendo
a tua, e única, imagem.
Nuno Júdice, Um canto na Espessura do Tempo
em fundo
Ottorino Respighi, Italiana
from Ancient Airs and Dances for Lute (suite III)
Berliner Philharmoniker - Herbert von Karajan
Somos como árvores
só quando o desejo é morto
Só então nos lembramos
que dezembro traz em si a primavera
Só então, belos e despidos,
ficamos longamente à sua espera.
Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos
Takashi Imashiro, arbres dépouillés par l'hiver
oh! a primeira pegada
Oh! a primeira pegada
na areia molhada...
E um homem de pé
a olhar em redor
para o sonho do céu,
dos peixes e das ondas,
num querer arrancar-lhe
a dor da realidade.
Oh! a primeira pegada
na areia molhada...
Foto: eli
E a sombra dum homem
a erguer-se dos seixos
com pés de deusa azul
para atravessar, sozinha,
as águas e as nuvens...
- e ir criar o mundo
com mãos de tempestade...
José Gomes Ferreira, Poesia II
Jean-Jules Sahmson, La Musique, Georg Friedrich Händel
WATER MUSIC. DE HÄNDEL
Sobre o rio descem
cordas e madeiras
a remos de metais.
É como sol nas águas, no arvoredo verde
que as águas reverdece de verdura e sombra.
Crepitam trompas e destilam flautas
na crespa ondulação que as proas tangem
e morre em margens de oboé e bombo,
cadenciando o choque das remadas de ouro.
A brisa flui
serena e fina
em cabeleiras
e em rendas que
ondulam risonhas e solenes
sobre os bordados esparzidos, prata
que dança e salta enquanto
as barcas se meneiam
na transparência opaca de águas como céu
azul que a tarde por silêncios tece
em majestade eterna e momentânea
dos astros em seu curso.
Habitados só
por deuses e pastores
gerados na saudade
da simples harmonia
contrapontada na invenção da vida,
os planetas pisam
abstractas órbitas
à luz de um sol de que recebem foco.
E as barcas descem temporais o rio
de cujas águas são flutuante forma
da eternidade do destino ignoto.
Com pompas e sorrisos
os instrumentos tocam
virilmente lânguidos
a circunstância de uma festa aquática:
secreta e oculta uma melancolia
dessas grandezas que ordenadas flúem
a remos de metais no efémero perene
de que o eterno faz a sucessão de instantes.
Os últimos acordes como vénias passam.
O sol dardeja sobre as frondes. Tronos
dourados se dissolvem no reflexo de águas
que a música prolonga em gloriosas tardes.
E a glória se dilui de etéreas trompas
que as cordas acompanham sobre os rios
de música tão régia que a existência vive
o acto de pensar na ordem recriada.
Jorge de Sena, Arte de Música
O Cacilheiro
Lá vai no Mar da Palha o Cacilheiro,
comboio de Lisboa sobre a água:
Cacilhas e Seixal, Montijo mais Barreiro.
Pouco Tejo, pouco Tejo e muita mágoa.
Na Ponte passam carros e turistas
iguais a todos que há no mundo inteiro,
mas, embora mais caras, a Ponte não tem vistas
como as dos peitoris do Cacilheiro.
Leva namorados, marujos,
soldados e trabalhadores,
e parte dum cais
que cheira a jornais,
morangos e flores.
Regressa contente,
levou muita gente
e nunca se cansa.
Parece um barquinho
lançado no Tejo
por uma criança.
Num carreirinho aberto pela espuma,
la vai o Cacilheiro, Tejo à solta,
e as ruas de Lisboa, sem ter pressa nenhuma,
tiraram um bilhete de ida e volta.
Alfama, Madragoa, Bairro Alto,
tu cá-tu lá num barco de brincar.
Metade de Lisboa à espera do asfalto,
e já meia saudade a navegar.
Leva namorados, marujos,
soldados e trabalhadores,
e parte dum cais
que cheira a jornais,
morangos e flores.
Regressa contente,
levou muita gente
e nunca se cansa.
Parece um barquinho
lançado no Tejo
por uma criança.
Se um dia o Cacilheiro for embora,
fica mais triste o coração da água,
e o povo de Lisboa dirá, como quem chora,
pouco Tejo, pouco Tejo e muita mágoa.
Letra: Ary dos Santos
Música: Paulo de Carvalho
Canta: Carlos do Carmo
Elegia
A veces me dan ganas de llorar,
pero las suple el mar.
José Gorostiza,
de Canciones para cantar en las barcas
Foto: eli
Qui sait...
Qui sait, nous ne nous aimerions peut-être pas tant
Si nos âmes ne se voyaient pas de si loin.
Nous ne serions peut-être pas si près, qui sait
Si le destin ne nous avait séparés.
Nazin Hikmet, c'est un dur métier que l'exil
Tapiès
em fundo
do Miradouro de Santa Luzia
The Choir of New College, Oxford
Edward Higginbottom
Amor é olhar total, que nunca pode
ser cantado nos poemas ou na música,
porque é tão-só próprio e bastante,
em si mesmo absoluto táctil,
que me cega, como a chuva cai
na minha cara, de faces nuas,
oferecidas sempre apenas à água.
Fiama Hasse Pais Brandão
CALÇADA À PORTUGUESA
O mar sai das mãos destes calceteiros
que logo de manhã se ajoelham na rua
a bater
nos cubos de pedra
como se fossem pães de um tempo
inacabado.
Sisudos e pacientes limpam o corpo negro
do pó branco do trabalho
e avançam lentamente aos pés
de quem anda a correr pelos próprios meios
e mundos.
O mar não se devia perder
em minúcias citadinas de raças que tentam conviver
na sobrevivência.
Mas o suor é uma água nostálgica
que envolve a carne frágil
das mulheres
com seus carrinhos de compras
e as suas crianças de carrinho.
Água soberba e manchada de sexo.
Negro, negro sensual de mornas e coladeiras
não subas acima do passeio.
Não me invadas o corpo,
não me molhes as noites mal dormidas.
E o homem no chão afeiçoa
a pequena pedra
ao mar seco e saudoso da sua transumância,
às entranhas da terra que não é a sua.
Só o coração simples lhe pede
uma sede de água.
Ou de cerveja.
Armando Silva Carvalho, Lisboas
Lisboa, Parque das Nações
in CAIS, Círculo de Apelo à Integração dos Sem-abrigo
Nº 54 - Janeiro/Fevereiro de 2001
L'Alliance
photogalery
Définitivement ils sont deux petits arbres
Seuls dans un champ léger
Ils ne se sépareront plus jamais.
Paul Eluard, Derniers poèmes d'amour
Destino
Quem disse à estrela o caminho
Que ela há-de seguir no céu?
A fabricar o seu ninho
Como é que a ave aprendeu?
Quem diz à planta - "Floresce!" -
E ao mudo verme que tece
Sua mortalha de seda
Os fios quem lhos enreda?
Ensinou alguém à abelha
Que no prado anda a zumbir
Se à flor branca ou à vermelha
O seu mel há-de ir pedir?
Que eras tu meu ser, querida,
Teus olhos a minha vida,
Teu amor todo o meu bem...
Ai! não mo disse ninguém.
Como a abelha corre ao prado,
Como no céu gira a estrela,
Como a todo o ente o seu fado
Por instinto se revela,
Eu no teu seio divino
Vim cumprir o meu destino...
Vim, que em ti só sei viver,
Só por ti posso morrer.
Almeida Garrett,
Folhas Caídas
Garrett, desenho de Almada Negreiros
em fundo
Beethoven, Symphonie nr.9
Anna Tomowa-Sintow . Agnes Baltsa
Peter Schreier . José Van dam
Wiener Singverein
Berliner Philharmoniker - Herbert von Karajan
Andy Warhol, Beethoven
ODE AN DIE FREUNDE
O Freunde, nicht diese Töne!
Sondern lasst uns angenehmere anstimmen
und freundenvollere!
Freunde, schöner Götterfunken
Tochter aus Elysium
wir betreten feuertrunken
Himmlische, dein Heiligtum!
Deiner Zauber binden wieder,
Was die Mode streng geteilt;
Alle Menschen werdwn Brüder,
Wo dein sanfter Flügel weilt.
Wem der grosse Wurf gelungen,
Eines Freundes Freund zu sein,
Wer ein holdes Weib errungen
Mische seine Jubel ein!
Ja, wer auch nur eine Seele
Sein nennt auf dem Erdenrund!
und wer's nie gekonnt, der stehle
Weinend sich aus diesem Bund.
freunde trinken alle wesen
An den Brüsten der Natur;
Alle Guten, alle Bösen
Folgen ihrer Rosenspur.
Küsse gab sie uns und Reben
Einen Freund, geprüft im Tod;
Wollust ward dem Wurm gegeben,
Und der Cherub steht vor Gott!
Froh, wie seine Sonnen fliegen
Durch des Himmels prächt'gen Plan,
Laufet, Brüder, eure Bahn,
Freudig, wie ein Held zum Siegen
Seid umschlungen, Millionen.
Diesen Kuss der ganzen Welt!
Brüder! Überm Sternenzelt
Muss ein lieber Vater wohnen.
Ihr stürzt nieder, Millionen?
Ahnest du den Schöpfer, Welt?
Such'ihn überm Sternenzelt!
Über Sternen muss er wohnen.
Friedrich von Schiller
Presépio no exterior do Convento de Mafra, Dez. 2004
Fotos de F. –
KYRIE
Em nome dos que choram,
Dos que sofrem,
Dos que acendem na noite o facho da revolta
E que de noite morrem,
Com a esperança nos olhos e arames em volta.
Em nome dos que sonham com palavras
De amor e paz que nunca foram ditas,
Em nome dos que rezam em silêncio
E falam em silêncio
E estendem em silêncio as duas mãos aflitas.
Em nome dos que pedem em segredo
A esmola que os humilha e os destrói
E devoram as lágrimas e o medo
Quando a fome lhes dói.
Em nome dos que dormem ao relento
Numa cama de chuva com lençóis de vento
O sono da miséria, terrível e profundo.
Em nome dos teus filhos que esqueceste,
Filho de Deus que nunca mais nasceste,
Volta outra vez ao mundo!
José Carlos Ary dos Santos, 20 Anos de Poesia
L'hymne à l'Amour
Le ciel bleu sur nous peut s'effondrer
Et la terre peut bien s'écrouler
Peu m'importe si tu m'aimes
Je me fous du monde entier
Tant qu'l'amour inond'ra mes matins
Tant que mon corps frémira sous tes mains
Peu m'importe les problèmes
Mon amour puisque tu m'aimes
J'irais jusqu'au bout du monde
Je me ferais teindre en blonde
Si tu me le demandais
J'irais décrocher la lune
J'irais voler la fortune
Si tu me le demandais
Je renierais ma patrie
Je renierais mes amis
Si tu me le demandais
On peut bien rire de moi
Je ferais n'importe quoi
Si tu me le demandais
Si un jour la vie t'arrache à moi
Si tu meurs que tu sois loin de moi
Peu m'importe si tu m'aimes
Car moi je mourrais aussi
Nous aurons pour nous l'éternité
Dans le bleu de toute l'immensité
Dans le ciel plus de problèmes
Mon amour crois-tu qu'on s'aime
Dieu réunit ceux qui s'aiment
Paroles: Edith Piaf
Musique: Marguerite Monnot
Toulouse-Lautrec, Baiser
Ad Animam Oblitam
Estamos em Lisboa face a face, neste lugar atlântico de
passagem.
Ouço na tua voz um recado de Alice:
amanhã, se puderes, veste-te de azul pálido e de branco,
põe no cabelo uma
fita prateada. Senta-te, como convém, no crescente da lua
e navega sobre as
águas de outro dia, cantam sereias.
Manuela Parreira da Silva, O Álbum de Vishnu
Lisboa - do Miradouro da Senhora do Monte – foto: eli
Solstice d’hiver
Solstice d’hiver, solstice noir
Solstice d’espoir
Au creux de ton ombre
Dans ton silence
La lumière vient,
Reprend son souffle...
Solstice noir, solstice d’espoir
Solstice d’hiver
Dans le silence
et dans l’errance…
L’espérance…
Michèle Roberge,
Tant d’hiver au cœur du changement:
essai sur la nature des transitions
Foto: a.m.
AO APROXIMAR-SE O INVERNO
Esta é a mulher que eu sou,
sozinha ao aproximar-se o inverno,
começando a compreender o outono,
o lamento do céu
e as fracas mãos de cimento.
O tempo passou,
o tempo passou.
São quatro da tarde
e o trimestre do inverno
principia hoje.
Escuto às escondidas momentos, estações.
O salvador dorme no túmulo
enquanto a terra tranquilamente acena.
O tempo passou e o relógio deu as quatro horas.
O vento persegue a vereda,
persegue a vereda.
Eu penso em flores mutiplicando-se
e botões em hastes vestigiais,
nesta época cansada e tuberculosa.
Junto às árvores húmidas um homem vira-se.
Ramos de veias como cobras mortas
coagulam no seu pescoço e na sua têmpora
uma palavra palpita como sangue:
"Olá, olá!"
(penso em flores multiplicando-se.)
Ao aproximar-se o inverno há funerais
para espelhos e suas pálidas memórias.
A tarde pondera o seu silêncio.
Como se pode gritar alto
para alguém assim
(virando-se lentamente, sem objectivo),
alguém que nunca viveu,
alguém que não vive?
O vento agita a rua
e os velhos corvos vivem sós,
voando em círculo sobre os antigos pomares.
A escada ousada é mesquinha, afinal.
Quem roubou a capacidade de acreditar
nos castelos dos contos de fadas?
O que poderá levantar agora alguém
para dançar ou deixar cair o cabelo infantil
nas correntes? Quem pisa a maçã finalmente saboreada?
Caro amigo, que nuvens
descem para regozijo do sol?
Dos contornos verdes do pensamento,
ao contemplar o voo,
um dia um pássaro ergueu-se,
as folhas tremeram
no sopro decidido do vento.
Aquela luz violeta na janela
era apenas a imagem de uma candeia.
O vento escuta atentamente no beco
tal como fez no dia em que as tuas mãos morreram.
O dia traz consigo desolação.
Queridas estrelas de papel, quando as mentiras
fervilharem no céu, que conforto
haverá nos versos dos loucos profetas?
Encontrar-nos-emos como os mortos milenares.
O sol julgará a nossa putrescência.
Estou fria, fria,
e não mais sentirei
calor algum.
Ó bem-amado, os peixes
estão a mordiscar a minha carne
onde me tens cativa no fundo do oceano.
O tempo pesa tudo em redor.
Brincos de madrepérola
furam-me. Estou fria.
Eu sei que até os sonhos
de uma papoila selvagem redundam
nalgumas gotas de sangue.
Eu suspendo linhas e números
e de uma limitada geometria
fujo, gozando o vasto espaço.
Estou exposta, como as pausas
numa declaração de amor,
esse amor que me fez mal.
Eu construí este barco insular
debaixo de tempestades e krakatoas:
da mais ínfima partícula estilhaçada
pode nascer o sol.
Saúdo-te, noite inocente!
Os olhos dos lobos nómadas
transformas em cavidades
de fé e despida confiança.
Ao longo dos teus bancos os salgueiros
cheiram os gentis machados que se aproximam.
Eu abandonei este leito de serpente,
o mundo descomprometido
das palavras e dos sons
onde batem os pés das multidões
e as pessoas oferecem o seu beijo
enquanto atam o nó da tua forca.
Saúdo-te, noite inocente!
Mas por que não olhei eu?
Havia uma janela
e uma vista apartada.
Junto às árvores húmidas um homem virou-se,
a minha mãe tinha estado a chorar,
porém eu não vi nada.
Nessa noite tornei-me a noiva
das acácias quando o meu marido
regressou e ficou diante
do espelho e me chamou.
A noite estava azul
por causa dos azulejos de Isfahan.
A dor deu-me colo e eu concebi.
Ele ficou de pé puro e resplandecente
como um espelho mas subitamente
eu estava casada com os ramos das acácias.
A minha mãe tinha estado a chorar.
Pela janela nada chegou
e a felicidade inteira percebeu
que as tuas mãos morreriam.
Eu não vi nada
até as quatro horas terem sido dadas
pelo desgraçado cuco.
De olhos como o ninho vazio
do roc, aquela mulher chegou,
escoltando até ao enterro
a minha adolescência, encrustada na noite.
Quando levará o vento o meu cabelo?
Quando plantarei eu amores-perfeitos na fronteira
e gerânios na janela do céu?
Quando voltarei a dançar
no rebordo dos copos?
Quando conduzirá a campainha da porta
a uma voz iminente?
Eu disse à minha mãe que tudo terminara.
Eu disse: "Acontece mais cedo do que se pensa.
Temos de enviar condolências
para a página de necrologia."
E aí vem ele, o pateta presunçoso,
os seus dentes mastigando salmos,
o seu olhar devorando-te.
Junto às árvores húmidas ele vira-se
(lentamente, sem objectivo).
São quatro horas.
Ramos de veias como cobras mortas
coagulam no seu pescoço e na sua têmpora
uma palavra palpita como sangue:
"Olá, olá!"
(Alguma vez cheiraste
quatro lírios azuis assim?)
O tempo passou,
o tempo passou,
e a noite caiu sobre a acácia revelada,
recolhendo por trás das vidraças da janela
as últimas coisas do dia.
Onde estive eu,
o cheiro da noite ainda sobre mim,
o túmulo ainda fresco com terra
para aquelas mãos mortas...?
Tão gentil foste
na maneira como mentiste,
na maneira como fechaste
os olhos abertos do espelho.
Arrancaste os candelabros às hastes de arame
e levaste-me aos campos prazerosos
na escuridão cortante
onde um pequeno rasto de vapor,
debaixo das intermináveis rodopiantes estrelas
de papel, era tudo o que restava
da pressa de uma sede.
Quem traduziu a fala em som,
quem tornou a vista pública,
quem reclamou o cabelo acariciado?
Aqui está a alma -- olhai! --
de alguém que falou destas coisas,
alguém que lançou um olhar,
alguém pacificado por uma carícia.
Martirizada pelas farpas da ilusão,
ela carrega as marcas dos teus
cinco dedos na sua face.
Em que consiste o silêncio,
ó bem amado, senão no não dito?
A minha fala prolonga-se nos pardais
e no furor da natureza.
A primavera, diz ela, está aqui
com folhas e brisas perfumadas.
O chilreio morre nas fábricas.
Quem dá corda ao seu relógio habitual,
subtraindo e dividindo,
nos caminhos do céu?
Quem ignora o canto do galo
excepto enquanto seu sinal para o pequeno-almoço?
A coroa do amor está na sua testa
enquanto os trajes de casamento apodrecem por todo o lado.
Então o sol não iria conceder
o mesmo final feliz
a ambos os pólos desesperados.
O brilho dos azulejos abandonou-te,
mas eu pairo ainda com tal plenitude
que a minha voz é um telhado
no qual o povo realiza as suas orações.
Pessoas tão satisfeitas, mortas.
Mortas, e infelizes.
Caladas, inteligentes, mortas.
Bem vestidas, bem alimentadas.
Sociáveis, mortas.
Nas gares da estação, com luzes
que facilmente tremelicam, frutos
apodrecem em suas ansiosas mãos.
Tão preocupadas estão
com os perigos de um cruzamento,
porém é aqui, ao soar o apito de paragem,
que um homem deve ser esmagado
pelo abrandamento do trânsito.
Junto às árvores húmidas um homem vira-se...
Onde estive eu?
Eu disse à minha mãe que tudo terminara.
Eu disse: "Acontece mais cedo do que se pensa.
Temos de enviar condolências
para a página de necrologia."
E agora eu acolho uma nova
presença da solidão.
Eu rendo o meu quarto.
Por que são sempre as nuvens escuras
prenúncios de pureza,
os sofrimentos de uma vela
uma suspeita cujo derreter
é mais brilhante na ponta?
Confiemos, confiemos
nesta aproximação do inverno,
este murchar das árvores cheias de fruto,
foices deixadas de lado,
sementes encarceradas.
Olha como a neve cai...
Debaixo dessa neve
estão as tuas jovens mãos.
Mas no próximo ano a Primavera deitar-se-á
com o céu por baixo da janela,
e os verdes caules ramificar-se-ão, transportando a flor,
a partir do seu corpo, ó bem-amado.
Confiemos na aproximação do inverno...
Forugh Farrokzhad - Versão de Vasco Gato
Mafra – foto de F. -
LA RELÍQUIA
Faune mutilat,
brollador eixut,
jardí desolat
de ma joventut...
Beneïda l'hora
que m'ha duit aquí.
La font que no vessa, la font que no plora
me fa plorar a mi.
Sembla que era ahir
que dins el misteri de l'ombra florida,
tombats a la molsa,
passàvem les hores millors de la vida.
De l'aigua sentíem la música dolça;
dintre la piscina guaitàvem els peixos,
collíem poncelles, caçàvem bestioles,
i ens féiem esqueixos
muntant a la branca de les atzeroles.
Ningú sap com era
que entre l'esponera
de l'hort senyorívol,
fent-lo més ombrívol,
creixia la rama d'antiga olivera.
Arbre centenari,
amorós pontava la soca torçuda,
perquè sense ajuda
poguéssim pujar-hi.
Al forc de la branca senyora i majora
penjàvem la corda de l'engronsadora,
i, venta qui venta,
folgàvem i réiem fins que la vesprada
la llum esvaïa de l'hora roenta,
de l'hora encantada.
Somni semblaria
el temps que ha volat
de la vida mia,
sense les ferides que al cor ha deixat;
sense les ferides que es tornen a obrir
quan veig que no vessa
ni canta ni plora la font del jardí.
Trenta anys de ma vida volaren depressa,
i encara no manca,
penjat a la branca,
un tros de la corda de l'engronsadora,
com trista penyora,
despulla podrida d'un món esbucat...
Faune mutilat,
brollador eixut,
jardí desolat
de ma joventut.
Joan Alcover, Cap al tard, 1910
Foto : G.
LADAINHA DOS PÓSTUMOS NATAIS
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos
nítido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito
David Mourão Ferreira
Presépio de Machado de Castro
ternura
o brilho do meu olhar
quando
(sem que te
apercebas)
em ti
repouso meus olhos.
Márcia Maia
As nuvens são sombrias
As nuvens são sombrias
Mas, nos lados do sul,
Um bocado do céu
É tristemente azul.
Assim, no pensamento,
Sem haver solução,
Há um bocado que lembra
Que existe o coração.
E esse bocado é que é
A verdade que está
A ser beleza eterna
Para além do que há.
Fernando Pessoa, Poemas Dispersos
Foto: eli
Estranho é o sono que não te devolve.
Estranho é o sono que não te devolve.
Como é estrangeiro o sossego
De quem não espera recado.
Essa sombra como é a alma
De quem já só por dentro se ilumina
E surpreende
E por fora é
Apenas peso de ser tarde. Como é
Amargo não poder guardar-te
Em chão mais próximo do coração.
Daniel Faria, Poesia
Georgia O'Keeffe, Abstraction IV
Mosteiro dos Jerónimos – Foto a.m.-
XVII
Estilo manuelino:
Não a nave romântica onde a regra
Da semente sobe da terra
Nem o fuste de espiga
Da coluna grega
Mas a flor dos acasos que a errância
Em sua deriva agrega
Sophia de Mello Breyner Andresen, Cem Poemas de Sophia
em fundo
CALLAS - life & art
Massenet - Werther! Qui m'aurait dit
CD2 - the romantic heroine
Foto: eli
Foto: eli
CHARLOTTE
Werther! Werther!... Qui m'aurait dit
la place que dans mon coeur
il occupe aujourd'hui?
Depuis qu'il est parti, malgré moi,
tout me lasse!
Et mon âme est pleine de lui!...
Ces lettres!
Ah! je les relis sans cesse...
Avec quel charme, mais aussi quelle tristesse!
Je devrais les détruire... je ne puis!
(lisant)
"Je vous écris
de ma petite chambre;
un ciel gris
et lourd de décembre
pèse sur moi, comme un linceul...
et je suis seul! seul! toujours seul!..."
Ah! personne près de lui!
Pas un seul témoignage
de tendresse ou même de pitié!
Dieu! comment m'est venu ce triste courage
d'ordonner cet exil et cet isolement?
(ouvrant une autre lettre)
"Des cris joyeux d'enfants montent
sous ma fenêtre,
et je pense à ce temps si doux
où tous vos chers petits jouaient
autour de nous!
Ils m'oublieront peut-être!"
Non, Werther, dans leur souvenir
votre image reste vivante,
et quand vous reviendrez...
mais doit-il revenir?...
Ah! ce dernier billet me glace
et m'épouvante:
"Tu m'as dit: A Noël!
Et j'ai crié: jamais!
On va bientôt connaître
qui de nous disait vrai!
Mais si je ne dois reparaître,
au jour fixé, devant toi,
ne m'accuse pas, pleure-moi!
Oui, de ces yeux si pleins de charmes,
ces lignes, tu les reliras,
tu les mouilleras de tes larmes...
Ô Charlotte, et tu frémiras!"
(Edouard Blau, Paul Milliet & Georges Hartmann)
ternura
Todas as paisagens nos teus olhos
me parecem nuvens
cobrindo horizontes de certas cores
que só existem dentro do silêncio.
Sandra Costa
Castelo de São Jorge
Foto: eli
I - 24 de Agosto de 2004 - 31 de Dezembro de 2004