texere ~ iii ~

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eli miguel III 1 de Junho de 2005 31 de Dezembro de 2005

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Page 1: TEXERE ~ III ~

eli miguel

III – 1 de Junho de 2005 – 31 de Dezembro de 2005

Page 2: TEXERE ~ III ~

BAIRRO NEGRO

Olha o sol que vai nascendo

Anda ver o mar

Os meninos vão correndo

Ver o sol chegar

Menino sem condição

Irmão de todos os nus

Tira os olhos do chão

Vem ver a luz

Menino do mal trajar

Um novo dia lá vem

Só quem souber cantar

Virá também

Negro bairro negro

Bairro negro

Onde não há pão

Não há sossego

Menino pobre o teu lar

Queira ou não queira o papão

Há-de um dia cantar

Esta canção

Olha o sol que vai nascendo

Anda ver o mar

Os meninos vão correndo

Ver o sol chegar

Se até dá gosto cantar

Se toda a terra sorri

Quem te não há-de amar

Menino a ti

Page 3: TEXERE ~ III ~

Se não é fúria a razão

Se toda a gente quiser

Um dia hás-de aprender

Haja o que houver

Negro bairro negro

Bairro negro

Onde não há pão

Não há sossego

Menino pobre o teu lar

Queira ou não queira o papão

Há-de um dia cantar

Esta canção

José Afonso

Page 4: TEXERE ~ III ~

Prayer

Some days, although we cannot pray, a prayer

utters itself. So, a woman will lift

her head from the sieve of her hands and stare

at the minims sung by a tree, a sudden gift.

Some nights, although we are faithless, the truth

enters our hearts, that small familiar pain;

then a man will stand stock-still, hearing his youth

in the distant Latin chanting of a train.

Pray for us now. Grade I piano scales

console the lodger looking out across

a Midlands town. Then dusk, and someone calls

a child's name as though they named their loss.

Darkness outside. Inside, the radio's prayer -

Rockall. Malin. Dogger. Finisterre.

Carol Ann Duffy

Page 5: TEXERE ~ III ~

OS ESTIVADORES

Só eles suam mas só eles sabem

o preço de estar vivo sobre a terra

Só nessas mãos enormes é que cabem

as coisas mais reais que a vida encerra

Outros rirão e outros sonharão

podem outros roubar-lhes a alegria

mas a um deles é que chamo irmão

na vida que em seus gestos principia

Onde outrora houve o deus e houve a ninfa

eles são a moderna divindade

e o que dantes era pura linfa

é o que sobra agora da cidade

Vede como alheios a tudo o resto

compram com o suor a claridade

e rasgam com a decisão do gesto

o muro oposto da gravidade

Ode marítima é o que chamo à ode

escrita ali sobre a pedra do cais

A natureza é certo que muito pode

mas um homem de pé pode bem mais

Ruy Belo, Homem de Palavra(s)

Foto: da net

Page 6: TEXERE ~ III ~

CANTO SEGUNDO

Esta manhã mal saí do portão

parecia-me ter esquecido alguma coisa em casa.

Dois passos até ao damasqueiro

e toca a regressar.

Agora que nada resta para fazer

fico sentado diante da janela

e pergunto-me a mim mesmo: Queres isto? Queres aquilo?

Deitei fogo a páginas de livros, a calendários

e mapas. Para mim a América

já não existe, a Austrália igualmente,

a China na minha cabeça é uma fragrância,

a Rússia uma alva teia de aranha

e a África o sonho de um copo de água.

Há dois ou três dias sigo os passos de Pinela, o camponês,

que procura o mel das abelhas selvagens.

Tonino Guerra, O Mel. Trad.: Mário Rui de Oliveira

Ivan Durrant

Page 7: TEXERE ~ III ~

A cidade é um chão de palavras pisadas

A cidade é um chão de palavras pisadas

a palavra criança a palavra segredo.

A cidade é um céu de palavras paradas

a palavra distância e a palavra medo.

A cidade é um saco um pulmão que respira

pela palavra água pela palavra brisa

A cidade é um poro um corpo que transpira

pela palavra sangue pela palavra ira.

A cidade tem praças de palavras abertas

como estátuas mandadas apear.

A cidade tem ruas de palavras desertas

como jardins mandados arrancar.

A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.

A palavra silêncio é uma rosa chá.

Não há céu de palavras que a cidade não cubra

não há rua de sons que a palavra não corra

à procura da sombra de uma luz que não há.

José Carlos Ary dos Santos

Page 8: TEXERE ~ III ~

Del mar azul las transparentes olas

Del mar azul las transparentes olas

mientras blandas murmuran

sobre la arena, hasta mis pies rodando,

tentadoras me besan y me buscan.

Inquietas lamen de mi planta el borde,

lánzanme airosas su nevada espuma,

y pienso que me llaman, que me atraen

hacia sus salas húmedas.

Mas cuando ansiosa quiero

seguirlas por la líquida llanura,

se hunde mi pie en la linfa transparente

y ellas de mi se burlan.

Y huyen abandonándome en la playa

a la terrena, inacabable lucha,

como en las tristes playas de la vida

me abandonó inconstante la fortuna.

Rosalia de Castro

Page 9: TEXERE ~ III ~

SESTA ANTIGA

A ruazinha lagarteando ao sol,

O coreto de música deserto

Aumenta ainda mais o silêncio.

Nem um cachorro.

Este poeminha

É só o que acontece no mundo...

Mário Quintana

Page 10: TEXERE ~ III ~

Baldio

O menino que fui debruça-se furtivo

de meus olhos sobre o recanto da paisagem.

Entre a dureza austera dos prédios

e o largo sorriso dolorido das vidraças

aquele recanto que sobrou da paisagem

pertence intacto ao menino que eu fui outrora

e o menino que eu fui outrora desce

alvoroçado de meus olhos, desliza

entre o capim, atira pedra ao gala-galas

e salta sobre velhas folhas de zinco

apodrecido, num cenário querido de girassóis

antigos. Então parto dali

e o menino que fui regressa extenuado

e adormece na sombra de meus olhos.

Rui Knopfli

Max Lyonga

Page 11: TEXERE ~ III ~

Eugénio

SERÃO PALAVRAS SÓ...

Diremos prado bosque

primavera,

e tudo o que dissermos

é só para dizermos

que fomos jovens.

Diremos mãe amor

um barco,

e só diremos

que nada há

para levar ao coração.

Diremos terra ou mar

ou madressilva,

mas sem música no sangue

serão palavras só,

e só palavras, o que diremos.

Eugénio de Andrade, Mar de Setembro

Page 12: TEXERE ~ III ~

Luís de Camões

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49

"Mais ia por diante o monstro horrendo

Dizendo nossos fados, quando, alçado,

Lhe disse eu: — Quem és tu? que esse estupendo

Corpo, certo, me tem maravilhado!

A boca e os olhos negros retorcendo

E, dando um espantoso e grande brado,

Me respondeu, com voz pesada e amara,

Como quem da pergunta lhe pesara:

50

— "Eu sou aquele oculto e grande Cabo,

A quem chamais vós outros Tormentório,

Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,

Plínio, e quantos passaram, fui notório.

Aqui toda a Africana costa acabo

Neste meu nunca visto Promontório,

Que pera o Pólo Antárctico se estende,

A quem vossa ousadia tanto ofende.

51

— Fui dos filhos aspérrimos da Terra,

Qual Encélado, Egeu e o Centimano;

Chamei-me Adamastor, e fui na guerra

Contra o que vibra os raios de Vulcano;

Não que pusesse serra sobre serra,

Mas, conquistando as ondas do Oceano,

Fui capitão do mar, por onde andava

A armada de Neptuno, que eu buscava.

52

— Amores da alta esposa de Peleu

Me fizeram tomar tamanha empresa.

Todas as Deusas desprezei do céu,

Só por amar das águas a Princesa.

Um dia a vi, coas filhas de Nereu,

Sair nua na praia, e logo presa

A vontade senti de tal maneira,

Que inda não sinto cousa que mais queira.

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53

— Como fosse impossível alcançá-la,

Pela grandeza feia de meu gesto,

Determinei por armas de tomá-la,

E a Dóris este caso manifesto.

De medo a Deusa então por mi lhe fala;

Mas ela, cum fermoso riso honesto,

Respondeu: — "Qual será o amor bastante

De Ninfa, que sustente o dum Gigante?

54

— Contudo, por livrarmos o Oceano

De tanta guerra, eu buscarei maneira,

Com que, com minha honra, escuse o dano."

Tal resposta me torna a mensageira.

Eu, que cair não pude neste engano,

(Que é grande dos amantes a cegueira)

Encheram-me com grandes abondanças

O peito de desejos e esperanças.

55

— Já néscio, já da guerra desistindo,

Uma noite, de Dóris prometida,

Me aparece de longe o gesto lindo

Da branca Tétis, única, despida.

Como doudo corri, de longe abrindo

Os braços pera aquela que era vida

Deste corpo, e começo os olhos belos

A lhe beijar, as faces e os cabelos.

56

— Ó que não sei de nojo como o conte!

Que, crendo ter nos braços quem amava,

Abraçado me achei cum duro monte

De áspero mato e de espessura brava.

Estando cum penedo fronte a fronte,

Que eu polo rosto angélico apertava,

Não fiquei homem, não, mas mudo e quedo,

E, junto dum penedo, outro penedo.

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57

— Ó Ninfa, a mais fermosa do Oceano,

Já que minha presença não te agrada,

Que te custava ter-me neste engano,

Ou fosse monte, nuvem, sonho, ou nada?

Daqui me parto, irado e quase insano

Da mágoa e da desonra ali passada,

A buscar outro mundo, onde não visse

Quem de meu pranto e de meu mal se risse.

58

— Eram já neste tempo meus Irmãos

Vencidos e em miséria extrema postos,

E, por mais segurar-se os Deuses vãos,

Alguns a vários montes sotopostos.

E, como contra o Céu não valem mãos,

Eu, que chorando andava meus desgostos,

Comecei a sentir do fado inimigo

Por meus atrevimentos, o castigo.

59

— Converte-se-me a carne em terra dura,

Em penedos os ossos se fizeram,

Estes membros, que vês, e esta figura

Por estas longas águas se estenderam.

Enfim, minha grandíssima estatura

Neste remoto cabo converteram

Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas,

Me anda Tétis cercando destas águas." —

60

Assim contava, e cum medonho choro

Súbito de ante os olhos se apartou.

Desfez-se a nuvem negra, e cum sonoro

Bramido muito longe o mar soou.

Eu, levantando as mãos ao santo coro

Dos anjos, que tão longe nos guiou,

A Deus pedi que removesse os duros

Casos, que Adamastor contou futuros.

Os Lusíadas, V, 49-60

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SANTO ANTÓNIO

Nasci exactamente no teu dia –

Treze de Junho, quente de alegria,

Citadino, bucólico e humano,

Onde até esses cravos de papel

Que têm uma bandeira em pé quebrado

Sabem rir...

Santo dia profano

Cuja luz sabe a mel

Sobre o chão de bom vinho derramado!

Santo António, és portanto

O meu santo,

Se bem que nunca me pegasses

Teu franciscano sentir,

Católico, apostólico e romano.

(Reflecti.

Os cravos de papel creio que são

mais propriamente, aqui,

Do dia de S. João...

Mas não vou escangalhar o que escrevi.

Que tem um poeta com a precisão?)

Adiante... Ia eu dizendo, Santo António,

Que tu és o meu santo sem o ser.

Por isso o és a valer,

Que é essa a santidade boa,

A que fugiu deveras ao demónio.

És o santo das raparigas,

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És o santo de Lisboa,

És o santo do povo.

Tens uma auréola de cantigas,

E então

Quanto ao teu coração –

Está sempre aberto lá o vinho novo.

Dizem que foste um pregador insigne,

Um austero, mas de alma ardente e ansiosa,

Etcetera...

Mas qual de nós vai tomar isso à letra?

Que de hoje em diante quem o diz se digne

Deixar de dizer isso ou qualquer outra coisa.

Qual santo! Olham a árvore a olho nu

E não a vêem, de olhar só os ramos.

Chama-se a isto ser doutor

Ou investigador.

Qual Santo António! Tu és tu.

Tu és tu como nós te figuramos.

Valem mais que os sermões que deveras pregaste

As bilhas que talvez não concertaste.

Mais que a tua longínqua santidade

Que até já o Diabo perdoou,

Mais que o que houvesse, se houve, de verdade

No que – aos peixes ou não – a tua voz pregou,

Vale este sol das gerações antigas

Que acorda em nós ainda as semelhanças

Com quando a vida era só vida e instinto,

As cantigas,

Os rapazes e as raparigas,

As danças

E o vinho tinto.

Nós somos todos quem nos faz a história.

Nós somos todos quem nos quer o povo.

O verdadeiro título de glória,

Que nada em nossa vida dá ou traz

É haver sido tais quando aqui andámos,

Bons, justos naturais em singeleza,

Que os descendentes dos que nós amámos

Nos promovem a outros, como faz

Com a imaginação que há na certeza,

O amante a quem ama,

E o faz um velho amante sempre novo.

Assim o povo fez contigo

Nunca foi teu devoto: é teu amigo,

Ó eterno rapaz.

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(Qual santo nem santeza!

Deita-te noutra cama!)

Santos, bem santos, nunca têm beleza.

Deus fez de ti um santo ou foi o Papa?...

Tira lá essa capa!

Deus fez-te santo! O Diabo, que é mais rico

Em fantasia, promoveu-te a manjerico.

És o que és para nós. O que tu foste

Em tua vida real por mal ou bem,

Que coisas, ou não-coisas se te devem

Com isso a estéril multidão arraste

Na nora de uns burros que puxam, quando escrevem,

Essa prolixa nulidade, a que se chama história,

Que foste tu, ou foi alguém,

Só Deus o sabe, e mais ninguém.

És pois quem nós queremos, és tal qual

O teu retrato, como está aqui,

Neste bilhete postal.

E parece-me até já que te vi.

És este, e este és tu, e o povo é teu –

O povo que não sabe onde é o céu,

E nesta hora em que vai alta a lua

Num plácido e legítimo recorte,

Atira risos naturais à morte,

E cheio de um prazer que mal é seu,

Em canteiros que andam enche a rua.

Sê sempre assim, nosso pagão encanto,

Sê sempre assim!

Deixa lá Roma entregue à intriga e ao latim,

Esquece a doutrina e os sermões.

De mal, nem tu nem nós merecíamos tanto.

Foste Fernando de Bulhões,

Foste Frei António –

Isso sim.

Porque demónio

É que foram pregar contigo em santo?

Fernando Pessoa, Poemas Dispersos

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Carmen 7

Perguntas-me, Lésbia, quantos beijos me serão

suficientes e mais que suficientes.

Quantos os grãos inúmeros de areia líbica

que estão em Cirene produtora de lasarpício,

entre o oráculo ardente de Júpiter

e o sagrado sepulcro do velho Bato,

quantas as estrelas que, na noite silenciosa,

contemplam os amores furtivos dos homens

- tantos os beijos teus suficientes ao louco Catulo;

em tão grande número que os não possam contar os curiosos,

nem fazer-lhes feitiço os maldizentes.

Gaius Valerius Catullus. Trad.: Agostinho da Silva

Page 21: TEXERE ~ III ~

[...] Os homens, esses valem,

conforme os deuses concedem,

pela coragem ou pela arte...

Píndaro (séc. VI-V a.C.)

Page 22: TEXERE ~ III ~

À TÍLIA

Peregrino, senta debaixo da ramagem,

Descansa; eu prometo – sequer o sol selvagem

Aqui pode avançar. Porém os raios justos

Deverão as sombras aquietar nos arbustos.

Aqui sempre sopram brisas frescas do campo,

Rouxinóis e negras aves cantam seu canto.

Abelhas obreiras recolhem mel das flores

Perfumadas para brindar as mesas nobres.

E a todos os homens meu murmúrio sereno

Cobre facilmente de adocicado sono.

Maçãs não carrego, mas sou árvore farta

Das Hespérides no jardim, meu amo exorta.

Jan Kochanowski. Trad. Aleksandar Jovanovic

In Rosa do Mundo – 2001 Poemas para o Futuro

Page 23: TEXERE ~ III ~

C'est le temps

Günter Rolf

C’est le temps,

de se parler,

si encore on peut se parler,

et de se donner,

si encore

on peut se donner quelque chose.

C’est le temps

et bientôt on restera

sans lui.

Alojz Ihan

In Hommage aux poètes des Balkans

Page 24: TEXERE ~ III ~

Cruzeiro Seixas

Page 25: TEXERE ~ III ~

Chagall

– O poema é aqui,

quando levanto o olhar do papel

e deixo as minhas mãos tocarem-te,

quando sei sem rimas e sem metáforas que te amo

José Luís Peixoto

Page 26: TEXERE ~ III ~

Rumor de água

Rumor de água

na ribeira ou no tanque?

O tanque foi na infância

minha pureza refractada.

A ribeira secou no verão.

Rumor de água

no tempo e no coração.

Rumor de nada.

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético

Page 27: TEXERE ~ III ~

ALEGORIA SEGUNDA

De poetas e filósofos tu sabes,

sabes também por ti. Por isso eu digo:

esta pedra é vermelha, esta pedra é sangue.

Toca-lhe: saberás

como em segredo florescem as acácias

ao redor dos muros, como fluem

suas concêntricas artérias. Acaricia-as: tocas

a parte mais sensível de ti mesmo.

Dizias ontem que o verão ardia

nesta pedra. Nela

queimavas tuas mãos. Onde

as aqueces hoje? Eu digo:

o verão não morreu, esta pedra é o verão.

E tudo permanece. E tudo é teu.

Tu és o sangue, o verão e a pedra.

Albano Martins, Paralelo ao Vento

Page 28: TEXERE ~ III ~

.

E narram o cruel martirológio

Dos que são teus, ó corpo sem defeito,

E julgam que é monótono o teu peito

Como o bater cadente dum relógio.

Porém eu sei que tu, que como um ópio

Me matas, me desvairas e adormeces

És tão loira e doirada como as messes

E possuis muito amor... muito amor

próprio.

Harpa

1874

Porto

Cesário Verde,

O Livro de Cesário Verde

A Vaidosa

Dizem que tu és pura como um lírio

E mais fria e insensível que o granito,

E que eu que passo aí por favorito

Vivo louco de dor e de martírio.

Contam que tens um modo altivo e sério,

Que és muito desdenhosa e presumida,

E que o maior prazer da tua vida,

Seria acompanhar-me ao cemitério.

Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,

A déspota, a fatal, o figurino,

E afirmam que és um molde alabastrino,

E não tens coração como as estátuas.

Mina Anguelova

Page 29: TEXERE ~ III ~

Ich liebe meines Wesens Dunkelstunden

Ich liebe meines Wesens Dunkelstunden,

in welchen meine Sinne sich vertiefen;

in ihnen hab ich, wie in alten Briefen,

mein täglich Leben schon gelebt gefunden

und wie Legende weit und überwunden.

Aus ihnen kommt mir Wissen, daß ich Raum

zu einem zweiten zeitlos breiten Leben habe.

Und manchmal bin ich wie der Baum,

der, reif und rauschend, über einem Grabe

den Traum erfüllt, den der vergangne Knabe

(um den sich seine warmen Wurzeln drängen)

verlor in Traurigkeiten und Gesängen.

Rainer Maria Rilke, Die Gedichte

Amo as horas sombrias do meu ser

em que os meus sentidos se aprofundam;

nelas encontrei, como em velhas cartas,

o meu dia a dia já vivido,

ultrapassado e vasto como numa lenda.

Elas me ensinam que possuo espaço

p'ra uma intemporal Segunda vida.

E por vezes sou como a árvore

que, madura e rumorosa, sobre uma campa

cumpre o sonho que a criança de outrora

(abraçada por suas cálidas raízes)

perdeu em tristezas e canções.

Rainer Maria Rilke. Trad.: Ana Hatherly

Page 30: TEXERE ~ III ~

De algumas perguntas...

De algumas perguntas tememos o som e o desenlace

delas, noite adiante, resguardo nenhum.

Sabemo-las assim lentas, um cristal

mais afiado, um abandono mais duro.

Eduardo Pitta

Page 31: TEXERE ~ III ~

Andreas Biesenbach

- Ce qui embellit le désert,

dit le petit prince,

c'est qu'il cache un puits quelque part...

Antoine de Saint-Exupéry, Le petit Prince

Page 32: TEXERE ~ III ~

ÚLTIMA CARTA DE VAN GOGH A THÉO

nunca me preocupei em reproduzir exactamente

aquilo que vejo e observo

a cor serve para me exprimir théo: amarelo

terra azul corvo lilás sol branco pomar vermelho

arles

sulfurosas cores cintilanddo sob o mistério

das estrelas na profunda noite afundadas onde

me alimento de café absinto tabaco visões e

um pedaço de pão théo

que o padeiro teve a bondade de fiar

o mistral sopra mesmo quando não sopra

os pomares estão em flor

o mistral torna-se róseo nas copas das ameixeiras

arles continuou a arder quando tentei matar aquele

que viu a minha paleta tornar-se límpida

mas acabei por desferir um golpe contra mim mesmo

théo

cortei-me uma orelha e o mistral sopra agora

só de um lado do meu corpo os pomares estão em flor

e arles théo continua a arder sob a orelha cortada

por fim théo

em auvers voltei a cara para o sol

apontando o revólver ao peito senti o corpo

como um torrão de lama em fogo regressar ao início

num movimento de incendiado girassol

Al Berto, O Medo

Page 33: TEXERE ~ III ~

Van Gogh

Page 34: TEXERE ~ III ~

Canção

Pus o meu sonho num navio

e o navio em cima do mar;

- depois, abri o mar com as mãos,

para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas

do azul das ondas entreabertas,

e a cor que escorre dos meus dedos

colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,

a noite se curva de frio;

debaixo da água vai morrendo

meu sonho, dentro de um navio...

Choararei quanto for preciso,

para fazer com que o mar cresça,

e o meu navio chegue ao fundo

e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito:

praia lisa, águas ordenadas,

meus olhos secos como pedras

e as minhas duas mãos quebradas.

Cecília Meireles, Viagem

Page 35: TEXERE ~ III ~

quando é doce fazer anos

Sofia Almeida

Page 36: TEXERE ~ III ~

a praia é a mesma... o tempo passou...

Areia Branca revisitada em 2005

Page 37: TEXERE ~ III ~

Arndt Norbert

POEMA BREVE

Inda percorro os dias

e as noites sem sono

e o que perpassa é o sonho

Glória de Sant'Anna, Algures no Tempo

Page 38: TEXERE ~ III ~

vai tão pequena a teia, que lamento

… sola est non territa virgo,

sed tamen erubuit

Ovídio, Metamorfoses, VI: 45-6

Page 39: TEXERE ~ III ~

Vai tão pequena a teia, que lamento

ter perdido o meu tempo em outros jogos,

pois com talento e tempo poderia

abandonar a fria geometria

e desenhar figuras, tão reais

que nelas revelasse

a verdade maior da fantasia.

Um cisne, por exemplo, feito signo

do amor incendiário que conduz

deuses à terra, procurando gente;

uma nuvem ali, de onde cai chuva

ou luz, mas que simula

pedacinhos de sol, moedas de ouro;

cavalos, aves, gado, e um golfinho;

por baixo, em singular moldura,

o tortuoso corpo da serpente.

Mas, pequeno que sou, receio a inveja

da sociedade, ou de um poder mais alto,

que em mim veja rival ou parasita

e me transforme em bicho repelente;

preferias alguém menos ligeiro,

carne menos subtil, pele rosada,

forma de gente, não de bicho abjecto.

Sozinho agora, e solto, enquanto acaba

mãe-sol de riscar linhas no horizonte,

lamento que não saibas que se esconde

uma princesa em cada feia aranha,

mais bela e cintilante do que a lua;

depois recolho ao centro do meu verso

com esta reflexão modesta e triste:

de tudo quanto viste e mal ouviste,

em mim, do que mais gostas é da baba.

António Franco Alexandre, ARACNE

Page 40: TEXERE ~ III ~

Em todos os jardins

Em todos os jardins hei-de florir,

Em todos beberei a lua cheia,

Quando enfim no meu fim eu possuir

Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,

A tudo quanto existe me hei-de unir,

E o meu sangue arrasta em cada veia

Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo

Todo o fogo que habita na floresta

Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,

A secreta abundância dessa festa

Que eu via prometida nas imagens.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Page 41: TEXERE ~ III ~

LERAM-ME HOJE S. FRANCISCO DE ASSIS

Leram-me hoje S. Francisco de Assis.

Leram-me e pasmei.

Como é que um homem que gostava tanto das cousas

Nunca olhava para elas, não sabia o que elas eram?

Para que hei-de chamar minha irmã à água, se ela não é

minha irmã?

Para a sentir melhor?

Sinto-a melhor bebendo-a do que chamando-lhe qualquer

cousa -

Irmã, ou mãe, ou filha.

A água é a água e é bela por isso.

Se eu lhe chamar minha irmã,

Ao chamar-lhe minha irmã, vejo que o não é

E que se ela é a água o melhor é chamar-lhe água;

Ou, melhor ainda, não lhe chamar cousa nenhuma,

Mas bebê-la, senti-la nos pulsos, olhar para ela

E tudo isto sem nome nenhum.

Alberto Caeiro, Poesia

Page 42: TEXERE ~ III ~

À NOITE

Quando o Sol se vai e é chegada a lua

o pai corre fechos, persianas,

vai trancar o portão que dá p'rà rua.

Depois eu adormeço, mas os meus sonhos

não cabem na casa e eu saio

para riscar a noite com um fio de luz,

cavalgar mistérios até de manhã.

À noite, uma simples brisa

escancara portas e janelas

e não há chave, fecho ou tranca

que encerre a porta larga dos meus sonhos.

Álvaro Magalhães, O Reino Perdido

Page 43: TEXERE ~ III ~

Vergüenza

Si tú me miras, yo me vuelvo hermosa

como la hierba a que bajó el rocío,

y desconocerán mi faz gloriosa

las altas cañas cuando baje al río.

Tengo vergüenza de mi boca triste

de mi voz rota y mis rodillas rudas;

ahora que me miraste y que viniste,

me encontré pobre y me palpé desnuda.

Ninguna piedra en el camino hallaste

más desnuda de luz la alborada

que esta mujer a la que levantaste,

porque oíste su canto, la mirada.

Yo callaré para que no conozcan

mi dicha los que pasan por el llano,

en el fulgor que da a mi frente tosca

Turner

y en la tremolación que hay en mi mano...

Es noche y baja a la hierba el rocío;

mírame largo y habla con ternura,

que ya mañana al descender al río

la que besaste llevará hermosura!

Gabriela Mistral

Page 44: TEXERE ~ III ~

Orfeu do avesso

Andreas Wagner

De pé sobre o abismo

e não morri:

Canto gregoriano

muito limpo

não me chegou:

o fim

Catedral

sobre o risco,

sobre um azul tão grande

que afundar-me podia

Ao fundo do mais fundo

mergulhei

e não morri:

amei

Ana Luísa Amaral, Epopeias

Page 45: TEXERE ~ III ~

O sol no castelo de Almourol

Vi poisar o Sol

no castelo de Almourol.

E inventei uma história

com sombras e clarões,

príncipes e ladrões,

fadas e fadistas,

espadas e turistas,

reis e rainhas,

rios e tainhas,

água e aguardente

de medronho

a correr

no rio

do sonho.

Tudo isto,

quando o Sol

se pôs

no Castelo de Almourol,

que rima com rouxinol,

que rima com Sol.

Matilde Rosa Araújo

Page 46: TEXERE ~ III ~

bagagem

Page 47: TEXERE ~ III ~

As coisas melhores

As coisas melhores são feitas no ar,

andar nas nuvens, devanear,

voar, sonhar, falar no ar,

fazer castelos no ar

e ir lá para dentro morar

ou então estar em qualquer sítio só a estar,

a respirar a respirar,

o coração a pulsar,

o sangue a sangrar,

a imaginação a imaginar,

os olhos a olhar.

(embora sem ver)

e ficar muito quietinho a ser,

os tecidos a tecer,

os cabelos a crescer.

E isto tudo a saber

que isto tudo está a acontecer!

As coisas melhores são de ar

só é preciso abrir os olhos e olhar,

basta respirar!

Manuel António Pina

Page 48: TEXERE ~ III ~

Cada árvore é um ser para ser em nós

Cada árvore é um ser para ser em nós

Para ver uma árvore não basta vê-la

a árvore é uma lenta reverência

uma presença reminiscente

uma habitação perdida

e encontrada

À sombra de uma árvore

o tempo já não é o tempo

mas a magia de um instante que começa sem fim

a árvore apazigua-nos com a sua atmosfera de folhas

e de sombras interiores

nós habitamos a árvore com a nossa respiração

com a árvore nós partilhamos o mundo com os deuses

António Ramos Rosa, Cada árvore é um ser para ser em nós

Page 49: TEXERE ~ III ~

QUADRO

tanto oiro na tarde

escorrendo do poente

as silhuetas das árvores

são fímbrias de poemas

e quantos horizontes

me esqueceram?

Glória de Sant'Anna, Algures no Tempo

Page 50: TEXERE ~ III ~

Petit poème des poissons de la mer

Je me suis penché sur la mer

Pour communiquer mon message

Aux poissons:

«Voilà ce que je cherche et que je veux savoir.»

Les petits poissons argentés

Du fond des mers sont remontés

Répondre à ce que je voulais.

La réponse des petits poissons était:

«Nous ne pouvons pas vous le dire

Monsieur

PARCE QUE»

Là la mer les a arrêtés.

Alors j'ai écarté la mer

Pour les mieux fixer au visage

Et leur ai redit mon message:

«Vaut-il mieux être que d'obéir?»

Je le leur redis une fois, je leur dis une seconde

Mais j'eus beau crier à la ronde

Ils n'ont pas voulu entendre raison!

Je pris une bouilloire neuve

Excellente pour cette épreuve

Où la mer allait obéir.

Mon coeur fit hamp, mon coeur fit hump

Pendant que j'actionnais la pompe

À eau douce, pour les punir.

Un, qui mit la tête dehors

Me dit: «Les petits poissons sont tous morts.»

«C'est pour voir si tu les réveilles,

Lui criai-je en plein dans l'oreille,

Va rejoindre le fond de la mer.»

Dodu Mafflu haussa la voix jusqu'à hurler en déclamant ces

trois derniers vers,

Page 51: TEXERE ~ III ~

et Alice pensa avec un frisson: «Pour rien au monde je n'aurai voulu être ce

messager!»

Celui qui n'est pas ne sait pas

L'obéissant ne souffre pas.

C'est à celui qui est à savoir

Pourquoi l'obéissance entière

Est ce qui n'a jamais souffert

Lorsque l'être est ce qui s'effrite

Comme la masse de la mer.

Jamais plus tu ne seras quitte,

Ils vont au but et tu t'agites.

Ton destin est le plus amer.

Les poissons de la mer sont morts

Parce qu'ils ont préféré à être

D'aller au but sans rien connaître

De ce que tu appelles obéir.

Dieu seul est ce qui n'obéit pas,

Tous les autres êtres ne sont pas

Encore, et ils souffrent.

Ils souffrent ni vivants ni morts.

Pourquoi?

Mais enfin les obéissants vivent,

On ne peut pas dire qu'ils ne sont pas.

Ils vivent et n'existent pas.

Pourquoi?

Pourquoi? Il faut faire tomber la porte

Qui sépare l'Être d'obéir!

L'Être est celui qui s'imagine être

Être assez pour se dispenser

D'apprendre ce que veut la mer...

Mais tout petit poisson le sait!

Il y eut une longue pause.

«Est-ce là tout? demanda Alice timidement.»

Antonin Artaud, «L'Arve et l'Aume: tentative

anti-grammaticale contre Lewis Carroll»,

Oeuvres Complètes

Page 52: TEXERE ~ III ~

Último Jardim

Tardes no meu jardim

tão lúcidas, quietas,

quase inquietas,

com pequeninos sóis

em cada pétala molhada,

com sombras fugidias...

(Tal os dias

sumindo-se um a um...)

E as canções

que não foram cantadas?

E as rosas decepadas

pelo simum?

E os riscos na parede?

E a sede

numa taça vazia?

E a noite que começa

fria, fria...!

Saúl Dias, Vislumbre

Page 53: TEXERE ~ III ~

Os olhos do poeta

O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do mundo,

e as formas e as proporções exactas, mesmo das coisas que os sábios desconhecem.

Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas,

e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros de miséria,

com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento.

Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos

e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta entre as pátrias

e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da Terra

e o gesto desolado dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas

e a luz do deserto incandescente e trémula, e os gelos dos pólos, brancos, brancos,

e a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram

e os tesouros dos oceanos desvendados maravilhando como contos-de-fada à hora da infância

e os trapos negros das mulheres dos pescadores esvoaçando como bandeiras aflitas

e correndo pela costa de mãos jogadas pró mar amaldiçoando a tempestade:

- todas as cores, todas as formas do mundo se agitam e gritam nos olhos do poeta.

Do seu olhar, que é um farol erguido no alto de um promontório,

sai uma estrela voando nas trevas

tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes.

E os dias claros, inundados de vida, perdem o brilho nos olhos do poeta

que escreve poemas de revolta com tinta de sol na noite de angústia que pesa no mundo.

Manuel da Fonseca, Poemas

Page 54: TEXERE ~ III ~

LA VITA DELL'OMO

Nove mesi a la puzza: poi in fassciola

Tra sbasciucchi, lattime e llagrimoni:

Poi p'er laccio, in ner crino, e in vesticciola,

Cor torcolo e l'imbraghe pe ccarzoni.

Poi comincia er tormento de la scola,

L'abbeccè, le frustate, li ggeloni,

La rosalìa, la cacca a la ssediola,

E un po' de scarlattina e vvormijjoni.

Poi viè ll'arte, er diggiuno, la fatica,

La piggione, le carcere, er governo,

Lo spedale, li debbiti, la fica,

Er zol d'istate, la neve d'inverno...

E pper urtimo, Iddio sce bbenedica,

Viè la morte, e ffinissce co l'inferno.

Roma, 18 gennaio 1833

Giuseppe Gioachino Belli

VIDA DO HOMEM

Nove meses no fedor, depois nas faixas,

por entre crostas, beijocas, lagrimonas,

depois à trela, na andadeira, em camisinha,

pára turras na testa, cueiros por calções.

Depois começa o tormento da escola,

o á bê cê, a vergasta e as frieiras,

a rubéola, a caca na cagadeira

e um pouco de escarlatina e de bexigas.

Depois o ofício, o jejum, a trabalheira,

a pensão a pagar, as prisões, o governo,

o hospital, as dívidas, a crica,

o sol no Verão, a neve no Inverno…

E por último – e que Deus nos abençoe –

vem a morte, e acaba no inferno.

Giuseppe Gioachino Belli. Trad. Alexandre O’Neill

Page 55: TEXERE ~ III ~

Imagem da net

Page 56: TEXERE ~ III ~

S (esse)

Direi de meu tempo que havia um S

havia uma sombra e um silêncio

havia um S de sigla e de suspeita

com suas seitas e seus sicários.

Não sei se signo não sei se sina

não sei se simplesmente sujo.

Ou só servil. Ou só sevícia.

Havia um S de Saturno

havia um susto

havia um S de soturno

sobre um S de sol.

De meu tempo direi

que havia um S

de sepulcro.

Sentinela. Sentinelas.

Ou talvez selva. Talvez serpente.

S de sebo e de sebenta: seco seco.

E também senão. E também senil.

De meu tempo direi

que havia um S

sem sentido.

E também Setembro. E também solstício.

Saga e safra.

Ou talvez semente. Ou talvez segredo.

Havia um S de sal e sílex

havia um silvo

Havia uma sílaba ciciada.

Page 57: TEXERE ~ III ~

E também o sonho: entre suar e ser.

(Como um soluço como um soluço.)

De meu tempo direi

que havia um S

de sol e som.

Havia Setembro e um assobio

contra um S de sombra e de silêncio.

Manuel Alegre, 18 de Janeiro de 74

Page 58: TEXERE ~ III ~

OFERENDA

São rosas desfolhadas pela noite

as oferendas que faço ao meu amor.

São raivas soterradas as palavras

que segredo velando o meu amor.

Os gestos são de medo, os do afago.

E a secreta angústia do desejo

a porta que me fecha para a vida.

São rosas desfolhadas meu amor.

São raivas soterradas meu amor.

Amor de carne,

pasmo de sangue a revelar-me a ferida

na luta de encontrar para perder,

furor que me devolve corpo a corpo

ao espaço onde não ter é ter chegado,

de olhos fendidos e com dedos ocos,

em frente ao sonho sem saber sonhar.

Em ti, amor, procuro

e em ti, abraço o que me foge

pois bem sei, meu amor, amante amor

que ao nos amarmos nós queremos ser

de nós o que em vão ser nos destruísse.

E bem sei, bem sei, fêmea de mim,

que num e noutro só sabemos ver

o que de nós em nós não tem lugar.

E és para mim, bem sei, todo o mistério

e eu sou a busca dele que te procuro

pelo caminho que o teu corpo afirma.

Amor,

desgosto só de me não seres

que eu guardo e quero e peço

neste vão abraçar-te solitário

pra sem mim ir sugando a tua carne

pra sem ti ir fingindo a minha vida

- as oferendas que tive e desfolhei

- as rosas derramadas pela noite.

Hélder Macedo

Page 59: TEXERE ~ III ~

Bjorn Rorslett

Page 60: TEXERE ~ III ~

O funcionário cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos

dispersou-me os amigos

tenho o coração confundido e a rua é estreita

estreita em cada passo

as casas engolem-nos

sumimo-nos

estou num quarto só num quarto só

com os sonhos trocados

com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado

um funcionário triste

a minha alma não acompanha a minha mão

Débito e Crédito Débito e Crédito

a minha alma não dança com os números

tento escondê-la envergonhado

o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente

e debitou-me na minha conta de empregado

Sou um funcionário cansado de um dia exemplar

Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?

Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas

Flor rapariga amigo menino

irmão beijo namorada

mãe estrela música.

São as palavras cruzadas do meu sonho

palavras soterradas na prisão da minha vida

isso todas as noites do mundo uma noite só cumprida

num quarto só

António Ramos Rosa, Viagem Através de Uma Nebulosa

Liers

Page 61: TEXERE ~ III ~

Summertime

Olho a sua boca. Tanto

que vem o punhal da luz

levar-me os olhos.

O carvão, a cinza dos

meus olhos. Os seus.

A sua boca, o sulco

onde me pergunta e eu

respondo. A morrer,

a olhar anavalhado

o seu brilho bravio.

Sons de sirenes, uivos,

estrondos, desabamentos,

ravinas donde rompe

o amor. A sua boca.

Joaquim Manuel Magalhães, Uma Exposição

Edward Hopper

Page 62: TEXERE ~ III ~

A CARPA

Sobre uma colagem de Marina Obo

Fundolho escamado superficiando olho prà carpa.

Vem do fundo do olho que foi ao fundo.

Movindo das profundas move manualetas,num abr'olhos

de peixespanto.

Dizque tacteia águas que estão na água,

trevas que estão na terra. Podeserque.

Carpabricolada,reactiva nossa gula das jóias,

tão segura da sua completude está,

tão cor é na desluz que a encerra (escrínio).

Nada nadando,a carpa vem ao de cima

devolver o olhar com que a vimos.

Olho na carpa de olhos em nós.Por ela e por nós.

Peixespelho,troço de maravilhoso,

atenção!,

a carpa vai fechar a luz.

Fechou.Agora, no escuro, a carpa travestindo-se

para novos feéricos espectáculos pela mão de Marina Obo.

Oh, as Carpas amestradas!

Alexandre O'Neill, Poesias Completas

Page 63: TEXERE ~ III ~

La signora dell'ultima volta

Foto: nasa

L'ultima volta che la vide non sapeva che era l'ul-

tima volta che la vedeva.

Perchè?

Perchè queste cose non si sanno mai.

Allora non fu gentile quell'ultima volta?

Sì, ma non a sufficienza per l'eternità.

Vivian Lamarque

Page 64: TEXERE ~ III ~

FRENTE AL MAR

Oh mar, enorme mar, corazón fiero

De ritmo desigual, corazón malo,

Yo soy más blanda que ese pobre palo

Que se pudre en tus ondas prisionero.

Oh mar, dame tu cólera tremenda,

Yo me pasé la vida perdonando,

Porque entendía, mar, yo me fui dando:

«Piedad, piedad para el que más ofenda».

Vulgaridad, vulgaridad me acosa.

Ah, me han comprado la ciudad y el hombre.

Hazme tener tu cólera sin nombre:

Ya me fatiga esta misión de rosa.

¿Ves al vulgar? Ese vulgar me apena,

Me falta el aire y donde falta quedo,

Quisiera no entender, pero no puedo:

Es la vulgaridad que me envenena.

Me empobrecí porque entender abruma,

Me empobrecí porque entender sofoca,

Bendecida la fuerza de la roca!

Yo tengo el corazón como la espuma.

Mar, yo soñaba ser como tú eres,

Allá en las tardes que la vida mía

Bajo las horas cálidas se abría...

Ah, yo soñaba ser como tú eres.

Mírame aquí, pequeña, miserable,

Todo dolor me vence, todo sueño;

Mar, dame, dame el inefable empeño

De tornarme soberbia, inalcanzable.

Dame tu sal, tu yodo, tu fiereza.

Aire de mar!... Oh, tempestad! Oh enojo!

Desdichada de mí, soy un abrojo,

Y muero, mar, sucumbo en mi pobreza.

Y el alma mía es como el mar, es eso,

Page 65: TEXERE ~ III ~

Ah, la ciudad la pudre y la equivoca;

Pequeña vida que dolor provoca,

Que pueda libertarme de su peso!

Vuele mi empeño, mi esperanza vuele...

La vida mía debió ser horrible,

Debió ser una arteria incontenible

Y apenas es cicatriz que siempre duele.

Alfonsina Storni, Irremediablemente

Page 66: TEXERE ~ III ~

EXPLICAÇÃO DA ESPERA

Quando me sentarei ao sol

Despido

Líquen vivendo

Da inclinação dos ramos?

Quando crescerei como nuvem

Mão leve sobre a fronte

Da doença?

Quando repousarei

Ausente sem sofrer

Qualquer ausência?

Daniel Faria, Poesia

Page 67: TEXERE ~ III ~

O espírito da matéria

Também as catedrais são sinfonias:

Rege a massa coral da arquitectura

a divinização da partitura;

e ambas se irmanam por analogias!

O alegro, o adágio, o andante, a tessitura,

o arco, o fuste, o florão... Alegorias

que, pela execução das harmonias,

Timbram exatas, no esplendor da altura!

E, pelos olhos, as orquestras se ouvem.

E, pelo ouvido, a torre se levanta,

para que os sonhos da matéria louvem!

E na sua amplitude sacrossanta,

a alma de um Brunelleschi ou de um Beethoven,

fulge na pedra, quando a pedra canta!

Martins Fontes

Page 68: TEXERE ~ III ~

O TEMPO

Seria já... ou ontem?

Não me lembro

O que interessa o tempo

neste caso?

Se não fosse Agosto era Dezembro

As horas que se gastam não refazem

Seria já... ou ontem?

Não me lembro

Os anos voam

num instante de asa

E nós não o querendo vamos sendo

e sem dar por isso a vida passa

Maria Teresa Horta, Destino

Christian Buth

Page 69: TEXERE ~ III ~

HOMEM

Homem que vens de humanas desventuras,

Que te prendes à vida e te enamoras,

Que tudo sabes e que tudo ignoras,

Vencido herói de todas as loucuras;

Que te debruças pálido nas horas

Das tuas infinitas amarguras

E na ambição das coisas mais impuras

És grande simplesmente quando choras;

Que prometes cumprir e que te esqueces,

Que te dás à virtude e ao pecado,

Que te exaltas e cantas e aborreces,

Arquitecto do sonho e da ilusão,

Ridículo fantoche articulado

Eu sou teu camarada e teu irmão.

António Botto, Canções

Felice Applauso

Page 70: TEXERE ~ III ~

à la mystérieuse

J'ai tant rêvé de toi que tu perds ta réalité. Est-il encore temps

d'atteindre

ce corps vivant et de baiser sur cette bouche la naissance de la

voix qui

m'est chère? J'ai tant rêvé de toi que mes bras habitués en

étreignant ton

ombre à se croiser sur ma poitrine ne se plieraient pas au

contour de ton

corps, peut-être. Et que, devant l'apparence réelle de ce qui me

hante et me gouverne depuis des jours et des années, je

deviendrais une ombre sans doute.O balances sentimentales.

J'ai tant rêvé de toi qu'il n'est plus temps

sans doute que je m'éveille.

Je dors debout, le corps exposé à toutes

les apparences de la vie et de l'amour

et toi, la seule qui compte

aujourd' hui pour moi,

je pourrais moins

toucher ton front et tes lèvres que les premières lèvres

et le premier front venu. J'ai tant

rêvé de toi, tant marché,

parlé, couché avec

ton fantôme qu'il ne me

reste plus peut-être, et

pourtant, qu'à être fantôme

parmi les fantômes et plus

ombre cent fois que

l'ombre qui se

promène et se

promènera

allégrement

sur le cadran

solaire de ta vie

Robert Desnos, Corps et Biens

Page 71: TEXERE ~ III ~

Lusitânia no Bairro Latino

3

Georges! anda ver meu país de romarias

E procissões!

Olha estas moças, olha estas Marias!

Caramba! dá-lhes beliscões!

Os corpos delas, vê! são ourivesarias,

Gula e luxúria dos Manéis!

Têm nas orelhas grossas arrecadas,

Nas mãos (com luvas) trinta moedas, em anéis,

Ao pescoço serpentes de cordões,

E sobre os seios entre cruzes, como espadas,

Além dos seus, mais trinta corações!

Vá! Georges, faze-te Manel! viola ao peito,

Toca a bailar!

Dá-lhes beijos, aperta-as contra o peito.

Que hão-de gostar!

Tira o chapéu, silêncio!

Passa a procissão

Estralejam foguetes e morteiros.

Lá vem o Pálio e pegam ao cordão

Honestos e morenos cavalheiros.

[...]

António Nobre, Só

Amadeo de Souza-Cardoso

Page 72: TEXERE ~ III ~

Logo atrás de ti

Esta dor não passa quando adormeço

chora ao pé de mim

irremediável

alguém nos toca no ombro e

damos por nós mais sozinhos

o meu lugar na morte

é junto da janela

logo atrás de ti

Mário Rui de Oliveira

Anna L. Zentner

Page 73: TEXERE ~ III ~

Hiroshima - 6 de Agosto de 1945 - 8 h 15 m

Page 74: TEXERE ~ III ~

É a vida

É uma escada em caracol

e que não tem corrimão.

Vai a caminho do Sol

mas nunca passa do chão.

Os degraus, quanto mais altos,

mais estragados estão.

Nem sustos nem sobressaltos

servem sequer de lição.

Quem tem medo não a sobe.

Quem tem sonhos também não.

Há quem chegue a deitar fora

o lastro do coração.

Sobe-se numa corrida.

Correm-se p'rigos em vão.

Adivinhaste: é a vida

a escada sem corrimão.

David Mourão-Ferreira, Obra Poética

Page 75: TEXERE ~ III ~

A MINHA TARDE

Disponho do vento disponho do sol disponho da árvore

arranjo pássaros arranjo crianças

tenho mesmo à minha disposição o mar

talvez com tudo isto possa formar uma tarde

uma tarde azul e calma onde me possa refugiar

Mas e as ideias as doutrinas os problemas?

Se nem resolvi ainda o problema da unha do dedo mínimo

como pretender ter resolvido o mínimo problema?

E as ideias, que só servem para dividir?

As ideias têm húmeros inúmeros

e é difícil caminhar no meio da multidão

Podia dizer (mas não me deixa descansado):

Sou novo. Tenho por isso a razão pelo meu lado

Deixai os pássaros cantar as crianças brincar

o tempo não urge o coração não arde

Quem sou eu? Eu só e minha tarde

As crianças com as suas vozes brancas

riscam alegremente o céu azul

passam as aves em seu voo rasante

desde sá de miranda até jorge de sena

E o tempo passa assim. Sou eu e o passado

Era novo. Não tenho a razão pelo meu lado

Ruy Belo, Homem de Palavra[s]

Andrea Schauerte

Page 76: TEXERE ~ III ~

LLUVIA

Oh lluvia silenciosa, sin tormentas ni vientos,

lluvia mansa y serena de esquila y luz suave,

lluvia buena y pacifica que eres la verdadera,

la que llorosa y triste sobre las cosas caes!

Oh lluvia franciscana que llevas a tus gotas

almas de fuentes claras y humildes manantiales!

Cuando sobre los campos desciendes lentamente

las rosas de mi pecho con tus sonidos abres.

El canto primitivo que dices al silencio

y la historia sonora que cuentas al ramaje

los comenta llorando mi corazón desierto

en un negro y profundo pentagrama sin clave.

Mi alma tiene tristeza de la lluvia serena,

tristeza resignada de cosa irrealizable,

tengo en el horizonte un lucero encendido

y el corazón me impide que corra a contemplarte.

Oh lluvia silenciosa que los árboles aman

y eres sobre el piano dulzura emocionante;

das al alma las mismas nieblas y resonancias

que pones en el alma dormida del paisaje!

Federico García Lorca

Gonzalo Espinosa Mendez

Page 77: TEXERE ~ III ~

Encontro no poente

Encontro no poente

essa calma luminosa que rói a ilusão

os pretextos subtis e brandamente ilesos

a que a razão resiste.

Soberanamente se elevam os pássaros

pouco

ou do maior encanto lhes atendo as penas.

Há porém um problema maior

a verificação experimental da existência

seu decorrer coeso.

Procuro a haste que delicadamente retém

o lacerado pranto de Actéon

e abandonada talvez a poesia

tento o encontro da maior

contradição -

adequado entender da felicidade.

Isto que digo:

que de muito podermos contrafeitos

em si do nada é feito o sinal gasto.

Ou que dádiva de encontro, o aliado

menor mal sujeito

que em Elêusis cantávamos sob as oliveiras

Maria Alzira Seixo, Letra da Terra

Page 78: TEXERE ~ III ~

DEFINIÇÃO

O sal é o mar servido à mesa nas suas praias domésticas

de linho.

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético

Page 79: TEXERE ~ III ~

UM INSTANTE

Aqui me tenho

como não me conheço

nem me quis

sem começo

nem fim

aqui me tenho

sem mim

nada lembro

nem sei

à luz presente

sou apenas um bicho

transparente.

Ferreira Gullar

Page 80: TEXERE ~ III ~

OH YES

there are worse things than

being alone

but it often takes decades

to realize this

and most often

when you do

it´s too late

and there´s nothing worse

than

too late.

Charles Bukowsky

OH SIM

há coisas bem piores

do que ser sozinho.

mas às vezes levamos décadas

a percebê-lo.

e ainda mais vezes

demasiado tarde

e não há nada pior

do que

demasiado tarde

Charles Bukowsky

Trad. de Amélia Pais

Page 81: TEXERE ~ III ~
Page 82: TEXERE ~ III ~

A un olmo seco

Al olmo viejo, hendido por el rayo

y en su mitad podrido,

con las lluvias de abril y el sol de mayo

algunas hojas verdes le han salido.

El olmo centenario en la colina

que lame el Duero! Un musgo amarillento

le mancha la corteza blanquecina

al tronco carcomido y polvoriento.

No será, cual los álamos cantores

que guardan el camino y la ribera,

habitado de pardos ruiseñores.

Ejército de hormigas en hilera

va trepando por él, y en sus entrañas

urden sus telas grises las arañas.

Antes que te derribe, olmo del Duero,

con su hacha el leñador, y el carpintero

te convierta en melena de campana,

lanza de carro o yugo de carreta;

antes que rojo en el hogar, mañana,

ardas en alguna mísera caseta,

al borde de un camino;

antes que te descuaje un torbellino

y tronche el soplo de las sierras blancas;

antes que el río hasta la mar te empuje

por valles y barrancas,

olmo, quiero anotar en mi cartera

la gracia de tu rama verdecida.

Mi corazón espera

también, hacia la luz y hacia la vida,

otro milagro de la primavera.

António Machado, Poesias Completas

Page 83: TEXERE ~ III ~

BRAÇOS ABERTOS

Separei os braços

E exilei o peito

Doeu-me tanto

Que não sei chorá-lo

Daniel Faria, Poesia

Page 84: TEXERE ~ III ~

DEUS NÃO VIVE AQUI

Deus não vive aqui,

não nos contempla pelos vitrais das suas

naves incendiadas.

É meio-dia neste país de lágrimas.

O sol está parado nas doze lanças de

luz insuportável.

É meio-dia sobre o rio amargo,

cujas barcas dormem na brancura terrível

desta hora.

Quem arrancou os crisântemos que

morrem na casa abandonada?

Dói este silêncio, esta ausência, este

relógio de pêndulo com passos de fantasma.

Estas paredes estão geladas.

No quarto ao lado,

alguém suspira,

mas o quarto está vazio, desde que tu

partiste,

meu pai das ilhas assombradas.

Por isso dizemos, em voz baixa,

em surdina,

dizemos que amámos,

num dia de feroz claridade,

num cais de estacas febris,

as têmporas que explodiam,

todas as veias queimadas pela neve das

estepes sem fim.

Por isso,

deixa para sempre os desertos desta vida, e

desce,

meu irmão das estrelas,

Page 85: TEXERE ~ III ~

desce as margens do rio amargo, e

ouve,

ouve aquele que murmura nos quartos vazios,

ouve a oração dos malditos,

dos aflitos,

ouve o rumor das giestas nos campos do

desamparo,

as pás que escavam os alicerces,

o machado de impiedosa pedra que brilha

sobre o gelo do Árctico,

meu irmão dos barcos naufragados,

procura-me onde o meu corpo já não está,

nem o meu nome,

aqui,

nesta casa abandonada.

José Agostinho Baptista, Esta Voz É Quase O Vento

Bogdan H.

Page 86: TEXERE ~ III ~

El Pi de Formentor (Electus ut cedri)

Mon cor estima un arbre! Més vell que l'olivera,

més poderós que el roure, més verd que el taronger,

conserva de ses fulles l'eterna primavera,

i lluita amb les tormentes que assalten la ribera,

com un gegant guerrer.

No guaita per ses fulles la flor enamorada;

no va la fontanella ses ombres a besar;

mes Déu ungí d'aromes sa testa consagrada

i li donà per trone l'esquerpa serralada,

per font l'immensa mar.

Quan lluny damunt les ones renaix la llum divina,

no canta per ses branques l'aucell que encativam;

el crit sublim escolta de l'àguila marina,

o del voltor que passa sent l'ala gegantina

remoure son fullam.

Del llim d'aquesta terra sa vida no sustenta;

revincla per les roques sa poderosa rel,

té pluges i rosades i vents i llum ardenta,

i, com un vell profeta, rep vida i s'alimenta

de les amors del cel.

Arbre sublim! Del geni n'és ell la viva imatge;

domina les muntanyes i aguaita l'infinit;

per ell la terra és dura, mes besa son ramatge

el cel qui l'enamora, i té el llamp i l'oratge

per glòria i per delit.

Oh! sí: que quan a lloure bramulen les ventades

i sembla entre l'escuma que tombi el seu penyal,

llavors ell riu i canta més fort que les onades

i vencedor espolsa damunt les nuvolades

sa cabellera real.

Arbre, mon cor t'enveja! Sobre la terra impura,

com a penyora santa duré jo el teu record.

Lluitar constant i vèncer, reinar sobre l'altura

i alimentar-se i viure de cel i de llum pura...

oh vida, oh noble sort!

Page 87: TEXERE ~ III ~

Amunt, ànima forta! Traspassa la boirada

i arrela dins l'altura com l'arbre els penyals.

Veuràs caure a tes plantes la mar del món irada,

i tes cançons tranquiles 'niran per la ventada

com l'au dels temporals.

Miquel Costa i Llobera

(Versió de 1907)

EL PINO DE FORMENTOR

Hay en mi tierra un árbol que el corazón venera;

De cedro es su ramaje, de césped su verdor,

Anida entre sus hojas perenne primavera

Y arrastra los turbiones que azotan la ribera,

Añoso luchador.

No asoma por sus ramas la flor enamorada,

No va la fuentecilla sus plantas a besar;

Mas báñase en aromas su frente consagrada,

Y tiene por terreno la costa acantilada,

Por fuente el hondo mar.

Al ver sobre las olas rayar la luz divina,

No escucha débil trino que al hombre da placer;

El grito oye salvaje del águila marina,

Y siente el ala enorme que el vendaval domina

Su copa estremecer.

Page 88: TEXERE ~ III ~

Del limo de la tierra no toma vil sustento;

Retuerce sus raíces en fuerte peñascal.

Bebe rocío y lluvias, radiosa luz y viento;

Y cual viejo profeta recibe el alimento

De efluvio celestial.

¡Árbol sublime¡ Enseña de vida que adivino,

La inmensidad augusta domina por doquier,

Si dura es la tierra, celeste su destino

Le encanta, y aun le sirve el trueno y torbellino

De gloria y de placer.

¡Oh¡ sí; que cuando libres asaltan la ribera

Los vientos y las olas con hórrido fragor,

Entonces ríe y canta con la borrasca fiera,

Y sobre rotas nubes la augusta cabellera

Sacude triunfador.

¡Árbol, tu suerte envidio¡ Sobre la tierra impura

de un ideal sagrado la cifra en ti he de ver.

Luchar, vencer constante, mirar desde la altura,

Vivir y alimentarse de cielo y de luz pura...

¡Oh vida, oh noble ser¡

¡Arriba, oh alma fuerte¡ Desdeña el lodo inmundo,

y en las austeras cumbres arraiga con afán.

Verás al pie estrellarse las olas de este mundo,

Y libres como alciones sobre ese mar profundo

Tus cantos volarán.

Miquel Costa i Llobera

Page 89: TEXERE ~ III ~

Miró

Page 90: TEXERE ~ III ~

PEQUENA ELEGIA DE SETEMBRO

Não sei como vieste,

mas deve haver um caminho

para regressar da morte.

Estás sentada no jardim,

as mãos no regaço cheias de doçura,

os olhos pousados nas últimas rosas

dos grandes e calmos dias de setembro.

Que música escutas tão atentamente

que não dás por mim?

Que bosque, ou rio, ou mar?

Ou é dentro de ti

que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,

dizer-te apenas que estou aqui,

mas tenho medo,

medo que toda a música cesse

e tu não possas mais olhar as rosas.

Medo de quebrar o fio

com que teces os dias sem memória.

Com que palavras

ou beijos ou lágrimas

se acordam os mortos sem os ferir,

sem os trazer a esta espuma negra

onde corpos e corpos se repetem,

parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,

ó cheia de doçura,

sentada, olhando as rosas,

e tão alheia

que nem dás por mim.

Eugénio de Andrade, Coração do Dia

Page 91: TEXERE ~ III ~
Page 92: TEXERE ~ III ~

Nos olhos de Isa

Nos olhos de Isa a chuva grita e a noite

Acende fogueiras.

Os meus olhos param. Nos olhos de Isa.

Oh, nos olhos de Isa espreguiça-se a madrugada

E o vento acorda para ajudar os pássaros a voar

E as árvores a acenar-lhes uma bandeira de folhas, uma tristeza verde.

Nos olhos de Isa.

Nos olhos de Isa a manhã explode num inferno de estrelas,

Num clarão de silêncio, em estilhaços de rosas, pétalas de sombra.

Nos olhos de Isa os poetas vagueiam num bosque de mel

Onde as abelhas constroem a tarde

Desesperadamente.

Nos olhos de Isa ninguém repara na minha solidão.

Joaquim Pessoa, Nos Olhos de Isa

Elisabetta Rogai

Page 93: TEXERE ~ III ~

Pára-me de repente o pensamento

Pára-me de repente o pensamento

Como que de repente refreado

Na doida correria em que levado

Ia em busca da paz do esquecimento

Pára surpreso, escrutador, atento,

Como pára um cavalo alucinado

Ante um abismo súbito rasgado.

Pára e fica, e demora-se um momento.

Pára e fica, na doida correria.

Pára à beira do abismo, e se demora.

E mergulha na noite escura e fria

Um olhar de aço, que essa noite explora.

Mas a espora da dor seu flanco estria,

E ele galga e prossegue sob a espora...

Ângelo de Lima , In Rosa do Mundo

2001 Poemas para o Futuro

Fractal

Page 94: TEXERE ~ III ~

CUÉNTAMELO OTRA VEZ

Cuéntamelo otra vez: es tan hermoso

que no me canso nunca de escucharlo.

Repíteme otra vez que la pareja del cuento

fue feliz hasta la muerte,que ella no le fue infiel,

que a él ni siquierase le ocurrió engañarla.

Y no te olvides de que, a pesar del tiempo y los problemas,

se seguían besando cada noche.

Cuéntamelo mil veces, por favor.

Es la historia más bella que conozco.

Amalia Bautista

Conta-mo outra vez

Conta-mo outra vez: é tão bonito

que não me canso nunca de escutá-lo.

Repete-me outra vez que o par

do conto foi feliz até à morte.

Que ela não lhe foi infiel, que a ele nem sequer

lhe ocorreu enganá-la. E não te esqueças

de que, apesar do tempo e dos problemas,

continuaram beijando-se cada noite.

Conta-mo mil vezes por favor

é a história mais bela que conheço.

Amalia Bautista. Trad.: Jorge Sousa Braga

Page 95: TEXERE ~ III ~

Picasso

Page 96: TEXERE ~ III ~

SER LUZ

Queria ser luz para poder sentir

a tua alma sôfrega bebê-la...

Queria ser luz para poder dormir

vibrando e ardendo como aquela estrela...

Se eu fosse luz iria descobrir

mais oceano ainda a cada vela;

como os olhos das águias a fulgir

seguiria nas noites de procela...

Ser luz para doirar toda a miséria,

talhar em jóias as pedras dos caminhos,

florir as almas, acordar os ninhos...

Quando beijo a chorar a noite etérea

do teu olhar, amor, a minha cruz

é esta sede imensa de ser luz!

António Patrício, Poesia Completa

Page 97: TEXERE ~ III ~

sub-soneto-crítico

paraíso não há

nem para riso

nem país para isso

nem para brisas.

ao vento o rosto

revela-se utopia

nem de noite

nem de dia.

só a lúdica crise

se revolta na onda

que leva a vela.

eles SE tomam

a sério

no se.

E. M. de Melo e Castro

Sonia Delaunay

Page 98: TEXERE ~ III ~

CHILE - 11 de Setembro de 1973

LAS MASACRES

Pero entonces la sangre fue escondida

detrás de las raíces, fue lavada

y negada

(fue tan lejos), la lluvia del Sur la borró

de la tierra

(tan lejos fue), el salitre la devoró en la

pampa:

y la muerte del pueblo fue como siempre

ha sido:

como si no muriera nadie, nada,

como si fueran piedras las que caen

sobre la tierra, o agua sobre el agua.

Arnd Schultheiss

Page 99: TEXERE ~ III ~

De Norte a Sur, adonde trituraron

o quemaron los muertos,

fueron en las tinieblas sepultados,

o en la noche quemados en silencio,

acumulados en un pique

o escupidos al mar sus huesos:

nadie sabe dónde están ahora,

no tienen tumba, están dispersos

en las raíces de la patria

sus martirizados dedos:

sus fusilados corazones:

la sonrisa de los chilenos:

los valerosos de la pampa:

los capitanes del silencio.

Pablo Neruda, Canto General

Nadie sabe dónde enterraron

los asesinos estos cuerpos,

pero ellos saldrán de la tierra

a cobrar la sangre caída

en la resurrección del pueblo.

En medio de la Plaza fue este crimen.

No escondió el matorral la sangre

pura

del pueblo, ni la tragó la arena de la

pampa.

Nadie escondió este crimen.

Este crimen fue en medio de la Patria.

Page 100: TEXERE ~ III ~

PÉGASO

À saída do estádio

pressentimos na brisa

a chegada dos signos da noite

Indeciso, o cavalo

transpõe o fosso do horizonte,

sob a lua e um alto

expoente de pó

Inverte-se o casco percussor

à beira da fonte do Hélicon,

e o cavalo grego

deita-se para morrer

Um frémito distende-lhe as asas;

no olhar anterior ao mito,

aflui agora

a mais pura estância

das lágrimas.

Sebastião Alba, A Noite Dividida

Odilon Redon

Page 101: TEXERE ~ III ~

What Lips My Lips Have Kissed, And Where, And Why

What lips my lips have kissed, and where, and why,

I have forgotten, and what arms have lain

Under my head till morning; but the rain

Is full of ghosts tonight, that tap and sigh

Upon the glass and listen for reply,

And in my heart there stirs a quiet pain

For unremembered lads that not again

Will turn to me at midnight with a cry.

Thus in winter stands the lonely tree,

Nor knows what birds have vanished one by one,

Yet knows its boughs more silent than before:

I cannot say what loves have come and gone,

I only know that summer sang in me

A little while, that in me sings no more.

Edna St. Vincent Millay

Lois Barker

Page 102: TEXERE ~ III ~

Desligando a TV

A esta hora as anémonas nadam evitando o lodo

e Jesus Cristo está ainda sentado à direita de Deus Pai É a ele

que me dirijo: para que

evite a poluição das águas;

acenda a luz das auto-estradas;

faça admitir na Guarda Nacional indivíduos capazes;

fiscalize devidamente os empréstimos externos;

esteja ao lado dos camponeses e operários;

mantenha a nossa cidade limpa;

acabe de vez com a inflação e o contrabando;

não permita lock-outs;

não se alheie das graves dificuldades do Serviço Nacional de Saúde;

atenda as preces das mães solteiras;

não deixe continuar nesta situação o nosso único Zoo;

dê coragem aos que julgam que já não há nada a fazer;

tire da cabeça dos nossos governantes a ideia maluca de mandarem

[construir uma central

nuclear;

impeça o desvio dos nossos aviões;

dê um empurrãozinho na Habituação Social;

dê também uma olhadela pela Secretaria de Estado da

Cultura;

ajude o mais possível nas nossas colheitas,

procure a maneira de actualizar as pensões de reforma e

invalidez;

termine com as pequenas e grandes invejas dos nossos

intelectuais;

volte a pôr a Feira do Livro na Avenida da Liberdade;

tente que cada um de nós ame mais o próximo ou

se não for possível que ao menos façamos todos férias

repartidas

Joaquim Pessoa, Amor Combate

Page 103: TEXERE ~ III ~

Et un sourire

La nuit n'est jamais complète

Il y a toujours puisque je le dis

Puisque je l'affirme

Au bout du chagrin une fenêtre ouverte

Une fenêtre éclairée

Il y a toujours un rêve qui veille

Désir à combler faim à satisfaire

Un coeur généreux

Une main tendue une main ouverte

Des yeux attentifs

Une vie la vie à se partager.

Paul Eluard, Derniers poèmes d'amour

Page 104: TEXERE ~ III ~

Rien n'est jamais acquis à l'homme, ni sa force

Ni sa faiblesse, ni son coeur. Et quand il croit

Ouvrir ses bras, son ombre est celle d'une croix

Et quand il croit serrer son bonheur, il le broie

Sa vie est un étrange et douloureux divorce

Il n'y a pas d'amour heureux

Sa vie, elle ressemble à ces soldats sans armes

Qu'on avait habillés pour un autre destin

A quoi peut leur servir de se lever matin

Eux qu'on retrouve au soir désoeuvrés incertains

Dites ces mots " Ma vie " et retenez vos larmes

Il n'y a pas d'amour heureux

Mon bel amour, mon cher amour, ma déchirure

Je te porte dans moi comme un oiseau blessé

Et ceux-là sans savoir les mots que j'ai tressés

Et qui, pour tes grands yeux, tout aussitôt moururent

Il n'y a pas d'amour heureux.

Le temps d'apprendre à vivre il est déjà trop

tard

Que pleurent dans la nuit nos coeurs à l'unisson

Ce qu'il faut de malheur pour la moindre

chanson

Ce qu'il faut de regrets pour payer un frisson

Ce qu'il faut de sanglots pour un air de guitare

Il n'y a pas d'amour heureux

Il n'y a pas d'amour qui ne soit à douleur

Il n'y a pas d'amour dont on ne soit meurtri

Et pas plus que de toi l'amour de la patrie

Il n'y a pas d'amour qui ne vive de pleurs

Il n'y a pas d'amour heureux

Mais c'est notre amour à tous deux

Louis Aragon, La Diane française

Il n'y a pas d'amour heureux

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Page 106: TEXERE ~ III ~

POESIA FACILE

Pace non cerco, guerra non sopporto

Tranquillo e solo vo pel mondo in sogno

Pieno di canti soffocati. Agogno

La nebbia ed il silenzio in un gran porto.

In un gran porto pien di vele lievi

Pronte a salpar per l'orizzonte azzurro

Dolci ondulando, mentre che il sussurro

Del vento passa con accordi brevi.

E quegli accordi il vento se li porta

Lontani sopra il mare sconosciuto.

Sogno. La vita è triste ed io son solo

O quando, o quando in un mattino ardente

L'anima mia si sveglierà nel sole

Nel sole eterno, libera e fremente.

Dino Campana (1885-1932)

POESIA FÁCIL

Paz não busco, guerra não suporto

Tranquilo e só vou pelo mundo em sonho

Cheio de cantos sufocados. Apeteço

A névoa e o silêncio num grande porto.

Num grande porto cheio de velas leves

Prestes a zarpar para o horizonte azul

Page 107: TEXERE ~ III ~

Doces ondulando, enquanto o sussurro

Do vento passa com acordes breves.

E aqueles acordes o vento os leva

Distantes sobre o mar desconhecido.

Sonho. A vida é triste e eu estou só.

Oh quando oh quando numa manhã ardente

A minha alma despertará no sol

No sol eterno, livre e fremente.

Dino Campana, in Dez Poetas Italianos Contemporâneos,

Selecção, tradução e notas de Albano Martins

Marlene Kremers

Page 108: TEXERE ~ III ~

Essa velha ciência, a de esperar,...

Essa velha ciência, a de esperar, escreve-la

em cadernos retirados a cada viagem. Neles

anotaste os movimentos do mundo, o balanço

do mar. São só velhos, os cadernos; ainda

escreves à mão, ainda respiras por ele,

ciência antiga - onde a conservas? Linha

a linha as viagens vão passando por eles como

um mapa: aqui as ilhas, ali pequenos continentes,

provas de que o mundo não acaba à tua porta

quando o jardim desaparece entre os granitos.

Levantas a voz uma vez por outra, mas não é

isso que te interessa. Gostavas apenas que

os cadernos ficassem, gravados de ti e de quem

amas,

guardados em gavetas, guardando o mundo.

Francisco José Viegas, O Puro e o Impuro

Duarte belo

Page 109: TEXERE ~ III ~

Francis Bacon

A fome

Aqui, onde a mão não

alcança o interruptor da vida, aqui

só brilha a solidão.

Desfazem-se as lembranças contra os vidros.

Aqui, onde a brancura

dum lenço é a brancura do infortúnio,

aqui a solidão

não brilha, apenas

se estorce.

A fome fala através das feridas.

Luís Miguel Nava, Vulcão

Page 110: TEXERE ~ III ~

LÁGRIMAS

Ela chorava muito e muito, aos cantos,

Frenética, com gestos desabridos;

Nos cabelos, em ânsias desprendidos,

Brilhavam como pérolas os prantos.

Ele, o amante, sereno como os santos,

Deitado no sofá, pés aquecidos,

Ao sentir-lhe os soluços consumidos,

Sorria-se cantando alegres cantos.

E dizia-lhe então, de olhos enxutos;

- "Tu pareces nascida de rajada,

"Tens despeitos raivosos, resolutos;

e ne

"Chora, chora, mulher arrenegada;

"Lacrimeja por esses aquedutos...

"Quero um banho tomar d’ água salgada".

Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde

Page 111: TEXERE ~ III ~

Jsuis seulement amoureux de Marie

Je ne suis seulement amoureux de Marie,

Anne me tient aussi dans les liens d'Amour,

Ore l'une me plaît, ore l'autre à son tour :

Ainsi Tibulle aimait Némésis, et Délie.

On me dira tantôt que c'est une folie

D'en aimer, inconstant, deux ou trois en un jour,

Voire, et qu'il faudrait bien un homme de séjour,

Pour, gaillard, satisfaire à une seule amie.

Je réponds à cela, que je suis amoureux,

Et non pas jouissant de ce bien doucereux,

Que tout amant souhaite avoir à sa commande.

Quant à moi, seulement je leur baise la main,

Les yeux, le front, le col, les lèvres et le sein,

Et rien que ces biens-là d'elles je ne demande.

Pierre de Ronsard, Second livre des Amours

Chagall

Page 112: TEXERE ~ III ~

Adeus

É um adeus...

Não vale a pena sofismar a hora!

É tarde nos meus olhos e nos teus...

Agora,

O remédio é partir discretamente,

Sem palavras,

Sem lágrimas,

Sem gestos.

De que servem lamentos e protestos

Contra o destino?

Cego assassino

A que nenhum poder

Limita a crueldade,

Só o pode vencer a humanidade

Da nossa lucidez desencantada.

Antes da iniquidade

Consumada,

Um poema de líquido pudor,

Um sorriso de amor,

E mais nada.

Miguel Torga

Willi Schnekenburger

Page 113: TEXERE ~ III ~

SETEMBRE

Aquella primavera ja és lluny per no tornar;

fugí batent ses ales en la claror xalesa.

De sos daurats ensomnis, una tristesa en resta,

i de ses flors tan belles, ni una en va fruitar.

Ara, que com una ombra l’estiu declina ja

i es va emboirant de llàgrimes sa lluminosa festa,

no sents pertot difondre’s, ànima meva, aquesta

sentor de flor marcida qui en l’aire se desfà?

Potser l’abril, d’enfora, l’últim adéu t’envia.

El seu record perfuma l’estiu en sa agonia,

encomanant als aires un mal d’enyorament.

Victoria Josephson

Somriuen en les postes diafanitats llunyanes.

Amb una delicada tristesa de germanes,

les roses de setembre s’esfullen lentament.

Miquel Ferrà, A mig camí, 1926.

Page 114: TEXERE ~ III ~

Tempo, subitamente solto...

Tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,

como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,

mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.

eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,

que eu amava, quando imaginava que amava, era a tua

tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu

rosto,

era a tua pele, antes de te conhecer, existia

nas árvores

nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.

muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.

José Luís Peixoto

Page 115: TEXERE ~ III ~
Page 116: TEXERE ~ III ~

Tapiès

Estamos agora em paz

Estamos agora em paz

sabendo simular o esquecimento

sentados

com os olhos no vento

lá de fora atirado para antes

de nós as mãos caídas

nos joelhos mas nada suplicantes

só esvaídas

conformados

com não nos conformarmos

resignados

a esperando não esperarmos

como se tudo fosse um imenso tanto faz

Mário Dionísio, Terceira Idade

Page 117: TEXERE ~ III ~

OLHAR

Olhei quase sempre para o chão.

E aquela estrela que parava no sul, descia de

repente e caía aos nossos pés.

Recolhi-a,

ano após ano,

e com o resto da sua luz quis iluminar o

teu caminho.

Mas tu não viste as suas lágrimas que eram

as minhas,

apagando a última, sobre o chão.

José Agostinho Baptista, Biografia

Tux

Page 118: TEXERE ~ III ~

AO SOL

(Oração de tradição oral)

Eu te saúdo sol. Sol das estações,

Na tua viagem pelos altos céus.

Rasto indelével no cimo dos montes,

Senhor amável de todas as estrelas.

Mergulhas sereno nas trevas do mar,

E nada te toca e nada tu sofres.

Depois te alevantas da calma das ondas,

Como jovem príncipe coroado de rosas.

Cultura Celta (gaélico escocês)

Trad.: José Domingos Morais

In Rosa do Mundo - 2001 poemas para o Futuro

Page 119: TEXERE ~ III ~

LA ORILLA DEL MAR

No es agua ni arena la orilla del mar.

El agua sonora de espuma sencilla,

el agua no puede formarse la orilla.

Y porque descanse en muelle lugar,

no es agua ni arena la orilla del mar.

Las cosas discretas, amables, sencillas;

las cosas se juntan como las orillas.

Lo mismo los labios, si quieren besar.

No es agua ni arena la orilla del mar.

Yo sólo me miro por cosa de muerto;

solo, desolado, como en un desierto.

A mí venga el lloro, pues debo penar.

No es agua ni arena la orilla del mar.

José Gorostiza

Page 120: TEXERE ~ III ~

A UMA OLIVEIRA

Muito antes de Os Lusíadas diz-se que já aqui estavas.

Pré-camoniana,

sazão a sazão,

foste varejada séculos a fio.

O pinho viajou.

Tu ficaste.

Ao som bárbaro de um rádio de pilhas,

desdobram toalhas

na tua sombra rala.

Alexandre O'Neill, Poesias Completas

Page 121: TEXERE ~ III ~

Os trabalhos da mão

Começo a dar-me conta: a mão

que escreve os versos

envelheceu. Deixou de amar as areias

das dunas, as tardes de chuva

miúda, o orvalho matinal

dos cardos. Prefere agora as sílabas

da sua aflição.

Sempre trabalhou mais que sua irmã,

um pouco mimada, um pouco

preguiçosa, mais bonita.

A si coube sempre

a tarefa mais dura: semear, colher,

coser, esfregar. Mas também

acariciar, é certo. A exigência,

o rigor, acabaram por fatigá-la.

O fim não pode tardar: oxalá

tenha em conta a sua nobreza.

Eugénio de Andrade, Ofício de Paciência

Page 122: TEXERE ~ III ~

Les feuilles mortes

Oh! je voudrais tant que tu te souviennes

Des jours heureux où nous étions amis

En ce temps-là la vie était plus belle,

Et le soleil plus brûlant qu'aujourd'hui

Les feuilles mortes se ramassent à la pelle

Tu vois, je n'ai pas oublié...

Les feuilles mortes se ramassent à la pelle,

Les souvenirs et les regrets aussi

Et le vent du nord les emporte

Dans la nuit froide de l'oubli.

Tu vois, je n'ai pas oublié

La chanson que tu me chantais.

Refrain:

C'est une chanson qui nous ressemble

Toi, tu m'aimais et je t'aimais

Et nous vivions tous deux ensemble

Toi qui m'aimais, moi qui t'aimais

Mais la vie sépare ceux qui s'aiment

Tout doucement, sans faire de bruit

Et la mer efface sur le sable

Les pas des amants désunis.

Les feuilles mortes se ramassent à la pelle,

Les souvenirs et les regrets aussi

Mais mon amour silencieux et fidèle

Sourit toujours et remercie la vie

Je t'aimais tant, tu étais si jolie,

Comment veux-tu que je t'oublie?

En ce temps-là, la vie était plus belle

Et le soleil plus brûlant qu'aujourd'hui

Tu étais ma plus douce amie

Mais je n'ai que faire des regrets

Et la chanson que tu chantais

Toujours, toujours je l'entendrai!

Paroles: Jacques Prévert

Page 123: TEXERE ~ III ~
Page 124: TEXERE ~ III ~

por decreto

tão mais inúteis quanto mais se sucedem

ensolaradas e mudas são as manhãs

de domingo

: eu finjo que não te espero

finges tu não nos saber

e a vida segue.

a olhos vistos se adelgaça perde o viço

empalidece

sem que haja em toda a medicina uma única

maneira - poção ventosa ou vacina -

que a possa socorrer

exceto talvez abolir - por decreto - de uma

vez por todas todas elas

: as mudas e claras e azuis e inúteis

manhãs de domingo.

Márcia Maia

Page 125: TEXERE ~ III ~

Já nasceste a saber o que eu não sei

Já nasceste a saber o que eu não sei,

o que o lume na água mais procura;

se me dás de beber vou ter a sede

incessante da fonte mais impura.

Cada noite te peço que imagines

uma outra fina, elementar tortura,

como essa, de nunca mais arder

o corpo que no corpo se insinua.

Por cada gesto teu, leio almanaques

de vãs filosofias, para ter

a réplica prevista à sua altura;

por cada lábio, sou mais sábio que

toda a corte celeste talmudista;

e ainda não sei o que ao nascer sabias.

António Franco Alexandre, Duende

Cory Ench

Page 126: TEXERE ~ III ~

REFERÊNCIA

Quantas vezes te digo

quantas vezes…

que és para mim

o meu homem amado?

O que chega primeiro

e só parte por vezes

antes de eu perceber

que já tinhas voltado

Quantas vezes te digo

quantas vezes…

que és para mim

o meu homem amado?

Aquele que me beija

e me possui

me toma e me deixa

ficando a meu lado

Quantas vezes te digo

quantas vezes…

que és para mim

o meu homem amado?

Que sempre me enlouquece

e só aí percebo

como estava perdida

sem te ter encontrado

Maria Teresa Horta

Page 127: TEXERE ~ III ~

Kate Liu

Page 128: TEXERE ~ III ~

Aquela noite de beijos e carícias indecisas...

Aquela noite de beijos e carícias indecisas...

Amaste-me talvez nesses momentos - só nesses momentos...

Aquele recanto de aldeia esquecido no meio da cidade,

a noite perfeita,

a paz imensa daquela hora breve

- essa indizível magia de certas noites imensas...

Sim, amaste-me talvez nesses breves momentos

Em que fomos apenas a Mulher e o Homem

- tu, liberta da tortura de analisar sem fim

os teus sentimentos por este e por aquele;

eu, capaz por uma vez de não pensar os meus gestos

e tendo apenas a voz do mais obscuro instinto.

A natureza em volta aniquilava as nossas biografias,

e não havia senão a extática presença da terra e dos astros,

e perdidos nela, nós, tão pobres, tão abandonados,

purificados de toda a nossa miséria,

tão Eva e Adão antes da maçã comida,

nós, vivos em nossa carne bem humana,

tecendo nas linhas embriagadas das nossas carícias

o véu que nos escondia a memória dos outros.

Page 129: TEXERE ~ III ~

Que importam as palavras que dissemos,

as juras que fizemos!

Que nesse momento, em cada um de nós,

as palavras do outro eram já sabidas antes de ser ditas,

e o tumulto dos nossos corpos,

e o tumulto das nossas almas,

e a maré viva da nossa perfeita comunhão,

e o espraiar-se da nossa ternura sobre o mundo,

eram a única Palavra que valia!

Adolfo Casais Monteiro

In 366 poemas que falam de amor

uma antologia organizada por

Vasco Graça Moura

Chagall

Page 130: TEXERE ~ III ~

Um dia vais pla rua como quem

Um dia vais pla rua como quem

já não deseja nada deste mundo:

olhas pró céu, reparas no inferno

e todas as pessoas são iguais,

inocentes obstáculos povoando

a memória indelével. Continuas,

atravessas o parque e de repente

encontras o regresso já perdido

no dia do juízo. Fica aqui,

coisa inútil que alguém deixou arder,

resto de prata acesa em mil estilhaços

e espera pelo último semáforo,

pla última canção perto da noite

até que o vento seja o teu destino.

Fernando Pinto do Amaral, Pena Suspensa

Page 131: TEXERE ~ III ~

Exactamente como foi, ...

Exactamente como foi, o medo de me enganar

mais tarde na memória - é tudo o que me resta: estar

de noite às escuras a pensar em ti

E se me lembro mal, se troco as vezes, naquela

quinta-feira o dia do amor em vez de ser

na quarta, o erro surge-me gigante,

um peso carregado como Atlas

Por isso é que preciso de lembrar coisas

exactas, como aconteceu tudo; não só

transpor depois na ficção recolhida, sou eu

que te preciso e dos teus dias

que me foram meus

Lembrar-me exactamente como foi, o que usei

nesse dia e o que usei no outro, até que horas

tudo, se havia gente ou não

e em que dia. Porque as palavras depois se

reconstroem

O que se disse então torna-se fácil.

Assim dito parece coisa pouca,

lugar comum e

fácil, mas as noites são grandes

e lembrar-se

exactamente,

de uma forma correcta

é-me tão importante

dentro das noites a pensar em ti

sabendo: não te vejo nunca mais

Ana Luísa Amaral

Helana de Almeida

Page 132: TEXERE ~ III ~

Celebración del viento y de los árboles

Si el espacio llorase,

como pretende la nube,

el viento sería una historia de lágrimas.

En el polvo toco

los dedos del viento.

En el viento leo

la escritura del polvo.

El camino no puede avanzar de verdad

más que a través de un viento dialogante

con su propio polvo.

El viento posa la mano derecha

en el hombro de la rosa

y se mete la izquierda en el bolsillo.

Viento: ladrón de perfume.

El viento es el dialecto

en la naturaleza.

La luz es la lengua culta.

El aire:

único amante

con quien baila la rama

mientras se dispone a acostarse

con otro amante.

Vientos: cuerpos que caminan

con pies invisibles

como de ángeles.

Viento: palabra confusa que murmura

el silencio cósmico.

Page 133: TEXERE ~ III ~

El viento enseña silencio

aunque no cese de hablar.

Hoy,

triste por el aire enfermo,

la adelfa no ha bailado.

Al árbol le gusta entonar canciones

que el viento no recuerda.

Viento: puerto único,

movimiento perpetuo

hacia lo desconocido.

Adonis (Ali Ahmad Said),

Traducción del árabe por María Luisa Prieto

Page 134: TEXERE ~ III ~

OUTONO

Tarde pintada

Por não sei que pintor.

Nunca vi tanta cor

Tão colorida!

Se é de morte ou de vida,

Não é comigo.

Eu, simplesmente, digo

Que há tanta fantasia

Neste dia,

Que o mundo me parece

Vestido por ciganas adivinhas,

E que gosto de o ver, e me apetece

Ter folhas, como as vinhas.

Miguel Torga, Diário X

Page 135: TEXERE ~ III ~

words

Be careful of words,

even the miraculous ones.

For the miraculous we do our best,

sometimes they swarm like insects

and leave not a sting but a kiss.

They can be as good as fingers.

They can be as trusty as the rock

you stick your bottom on.

But they can be both daisies and bruises.

Yet I am in love with words.

They are doves falling out of the ceiling.

They are six holy oranges sitting in my lap.

They are the trees, the legs of summer,

and the sun, its passionate face.

Yet often they fail me.

I have so much I want to say,

so many stories, images, proverbs, etc.

But the words aren't good enough,

the wrong ones kiss me.

Sometimes I fly like an eagle

but with the wings of a wren.

But I try to take care

and be gentle to them.

Words and eggs must be handled with care.

Once broken they are impossible

things to repair.

Anne Sexton

Page 136: TEXERE ~ III ~
Page 137: TEXERE ~ III ~

Como nuvens pelo céu

Como nuvens pelo céu

Passam os sonhos por mim.

Nenhum dos sonhos é meu

Embora eu os sonhe assim.

São coisas no alto que são

Enquanto a vista as conhece,

Depois são sombras que vão

Pelo campo que arrefece.

Símbolos? Sonhos? Quem torna

Meu coração ao que foi?

Que dor de mim me transtorna?

Que coisa inútil me dói?

Fernando Pessoa, Poemas dispersos

Page 138: TEXERE ~ III ~

Estrofa al vent

Jo escric al vent aqueixa estrofa alada

per a què el vent la porti cel enllà

jo vull seguir-la amb ma candent mirada,

plorós de no poder-la acompanyar.

Entre els hiverns, quan vibri la ventada,

el meu vers per l'espai ressonarà,

i sobre els homes sa brunzent tonada

durà el so d'un incògnit oceà.

I cantarà en la lira de les branques

i de la lluna en les crineres blanques

o en l'arquet de silenci de la nit.

Gaspar Sabater

I eternament la maternal Natura

l'espargirà per la infinita altura

quan el meu nom, obscur, serà extingit.

Gabriel Alomar

Page 139: TEXERE ~ III ~

Soneto

Esperança e desespero de alimento

Me servem neste dia em que te espero

E já não sei se quero ou se não quero

Tão longe de razões é meu tormento

Mas como usar amor de entendimento?

Daquilo que te peço desespero

Ainda que mo dês – pois o que eu quero

Ninguém o dá senão por um momento.

Mas como é belo, amor, de não durares,

De ser tão breve e fundo o teu engano,

E de eu te possuir sem tu te dares.

Amor perfeito dado a um ser humano:

Também morre o florir de mil pomares

E se quebram as ondas no oceano.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral

Page 140: TEXERE ~ III ~

Ao desconcerto do mundo

Os bons vi sempre passar

No mundo graves tormentos;

E pera mais me espantar,

Os maus vi sempre nadar

Em mar de contentamentos.

Cuidando alcançar assim

O bem tão mal ordenado

Fui mau, mas fui castigado.

Assim que, só para mim,

Anda o Mundo concertado.

Luís de Camões

Page 141: TEXERE ~ III ~

Com o espírito da casa

Acabei hoje o sabonete cujo uso iniciaste aquando

o teu último banho cá em casa. Ficaram coisas que

te pertencem e que não sei se deva guardar,

a saber: um candeeiro, um desenho, uma fotografia.

Outras coisas ficaram

alguns discos e já não sei que livro. Não ferem

tanto. Há ainda a memória da pele, o amarelo dos

olhos e algumas expressões do teu português falado.

Mas estas últimas coisas já se confundem com o

espírito da casa, quero dizer-te com a poeira da

casa.

João Miguel Fernandes Jorge,

A Jornada de Cristóvão de Távora. Primeira Parte

Page 142: TEXERE ~ III ~

Saí do comboio

Saí do comboio,

Disse adeus ao companheiro de viagem,

Tínhamos estado dezoito horas juntos.

A conversa agradável,

A fraternidade da viagem,

Tive pena de sair do comboio, de o deixar.

Amigo casual cujo nome nunca soube.

Meus olhos, senti-os, marejaram-se de lágrimas...

Toda despedida é uma morte...

Sim, toda despedida é uma morte.

Nós, o comboio a que chamamos a vida

Somos todos casuais uns para os outros,

E temos todos pena quando por fim desembarcamos.

Tudo que é humano me comove, porque sou homem.

Tudo me comove, porque tenho,

Não uma semelhança com ideias ou doutrinas,

Mas a vasta fraternidade com a humanidade verdadeira.

A criada que saiu com pena

A chorar de saudade

Da casa onde a não tratavam muito bem...

Tudo isso é no meu coração a morte e a tristeza do mundo.

Tudo isso vive, porque morre, dentro do meu coração.

E o meu coração é um pouco maior que o universo inteiro.

Álvaro de Campos

Page 143: TEXERE ~ III ~

X - B

Nesta Cidade-Mundo

quem poderá entoar

um cântico de júbilo?

O real

O manto da invenção

Árvores de lágrimas

Florestas de papel

Impotência tudo

Um desvalor

enche o nosso coração

Ana Hatherly, Rilkeana

Page 144: TEXERE ~ III ~

em fundo

Christoph Willibald Gluck

Dance of the Blessed Spirits

de Orfeo ed Euridice

Karlheinz Zoeller, flauta

Herbert von Karajan

Berliner Philharmoniker

Page 145: TEXERE ~ III ~

AS SEM-RAZÕES DO AMOR

Eu te amo porque te amo.

Não precisas ser amante,

e nem sempre sabes sê-lo.

Eu te amo porque te amo.

Amor é estado de graça

e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,

é semeado no vento,

na cachoeira, no eclipse.

Amor foge a dicionários

e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo

bastante ou demais a mim.

Porque amor não se troca,

não se conjuga nem se ama.

Porque amor é amor a nada,

feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,

e da morte vencedor,

por mais que o matem (e matam)

a cada instante de amor.

Carlos Drummond de Andrade

Camille Claudel

Page 146: TEXERE ~ III ~

OUTROS MASTROS

moldo o teu rosto

entre os barcos:

imóvel percurso

do desassossego

a fogo e quartzo

revelo a memória

de outros mastros:

padrões

da viagem

inconcluída

repousa o mar

na orla

dos teus olhos

(vesperal

e frio)

ermo dos claustros

por ti erguidos

no meu painel

de tojo

arremesso à água

as grainhas

e vou perder-te

mais longe:

onde as nascentes

despertam

José Manuel Mendes, Limiar da terra

Page 147: TEXERE ~ III ~
Page 148: TEXERE ~ III ~

Botella al mar

Pongo estos seis versos en mi botella al mar

con el secreto designio de que algún día

llegue a una playa casi desierta

y un niño la encuentre y la destape

y en lugar de versos extraiga piedritas

y socorros y alertas y caracoles.

Mario Benedetti

Page 149: TEXERE ~ III ~

NA SOLIDÃO RENOVADA

Com os dentes.

Sem música,

sem água.

Reptilmente.

António Ramos Rosa, Nos Seus Olhos de Silêncio

Page 150: TEXERE ~ III ~

A terra... O mar...

A terra é a minha passagem,

O mar o meu refúgio...

Maria do Céu Costa, Sentimentos no Silêncio

Page 151: TEXERE ~ III ~

PELO FIM DA TARDE

Era um dia, pelo fim da tarde,

o sol descia sobre

o sentimento da vida.

João Miguel Fernandes Jorge,

Tronos e Dominações pelo fim da Tarde

Page 152: TEXERE ~ III ~

PENSAMENTO

meu penssamento

partiu no vento

podem prendê-lo

matá-lo não

Meu pensamento

quebrou amarras

partiu no vento

deixou guitarras

meu pensamento

por onde passa

estátua de vento

em cada praça

[Refrão]

Foi à conquista

de um novo mundo

foi vagabundo

contrabandista

foi marinheiro

maltês ganhão

foi prisioneiro

mas servo não

[Refrão]

E os reis mandaram

fazer muralhas

tecer as malhas

de negras leis

homens morreram

chamas ao vento

por ti morreram

meu pensamento

Letra: Manuel Alegre

Música:A. Correia de Oliveira e A. Portugal

Page 153: TEXERE ~ III ~
Page 154: TEXERE ~ III ~

tecum©

de noite escura

e raras madrugadas

faz-se a minha alma

de bruma e penumbra

quase sempre ocaso

derradeira luz sobre

um deserto de mares

imensos

assim eu sou

sempre ilha

jamais a almejada

península

pura inquietação

e a parca claridade

Márcia Maia

Page 155: TEXERE ~ III ~

um gato é um poema

Um cão, eu sempre disse, é prosa;

Um gato é um poema.

Jean Burden, In Assinar a Pele

Page 156: TEXERE ~ III ~

Domingo

Quando chega domingo,

faço tenção de todas as coisas mais belas

que um homem pode fazer na vida.

Há quem vá para o pé das águas

deitar-se na areia e não pensar...

E há os que vão para o campo

cheios de grandes sentimentos bucólicos

porque leram, de véspera, no boletim do jornal:

«bom tempo para amanhã»...

Mas uma maioria sai para as ruas pedindo,

pois nesse dia

aqueles que passeiam com a mulher e os filhos

são mais generosos.

Um rapaz que era pintor

não disse nada a ninguém

e escolheu o domingo para se matar.

Ainda hoje a família e os amigos

andam pensando porque seria.

Só não relacionam que se matou num domingo!

Mariazinha Santos

(aquela que um dia se quis entregar,

que era o que a família desejava,

para que o seu futuro ficasse resolvido),

Mariazinha Santos

quando chega domingo,

vai com uma amiga para o cinema.

Deixa que lhe apalpem as coxas

e abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe

lhe bordou,

quando ela era ainda muito menina...

Para eu contar isto

é que conheço todas as horas que fazem um dia de

domingo!

À hora negra das noites frias e longas

sei duma hora numa escada

onde uma velha põe sua neta

e vem sorrir aos homens que passam!

E a costureirinha mais honesta que eu namorei

Page 157: TEXERE ~ III ~

vendeu a virgindade num domingo

— porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores!

Há mais amargura nisto

que em toda a História das Guerras.

Partindo deste princípio,

que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer,

eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo.

E esta era uma das coisas mais belas

que um homem podia fazer na vida!

Então,

todas as raparigas amariam no tempo próprio

e tudo seria natural

sem mendigos nas ruas nem casas de penhores...

Penso isto, e vou a grandes passadas...

E um domingo parei numa praça

e pus-me a gritar o que sentia,

mas todos acharam estranhos os meus modos

e estranha a minha voz...

Mariazinha Santos foi para o cinema

e outras menearam as ancas

— ao sol

como num ritual consagrado a um deus! —

até chegar o homem bem-amado entre todos

com uma nota de cem na mão estendida...

Venha a miséria maior que todas

secar o último restolho de moral que em mim resta;

e eu fique rude como o deserto

e agreste como o recorte das altas serras;

venha a ânsia do peito para os braços!

E vou a grandes passadas

como um louco maior que a sua loucura...

O rapaz que era pintor

aconchegou-se sobre a linha férrea

para que a morte o desfigurasse

e o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica

de revolta contra o mundo.

Mas como o rosto lhe estava intacto

vai a família ao necrotério e ficou aterrada!

Conheci-o numa noite de bebedeira

e acho tudo aquilo natural.

A costureirinha que eu namorei

deixava-se ir para as ruas escuras

Page 158: TEXERE ~ III ~

sem nenhum receio.

Uma vez que chovia até entrámos numa escada.

Somente sequer um beijo trocámos...

E isto porque no momento próprio

olhava para mim com um propósito tão sereno

que eu, que dela só desejava o corpo bom feito,

me punha a observar o outro aspecto do seu rosto,

que era aquela serenidade

de pessoa que tem a vida cheia e inteira.

No entanto, ela nunca pôs obstáculo

que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas.

Hoje encontramo-nos aí pelos cafés...

(ela está sempre com sujeitos decentes)

e quando nos fitamos nos olhos,

bem lá no fundo dos olhos,

eu que sou homem nascido

para fazer as coisas mais heróicas da vida

viro a cabeça para o lado e digo:

— rapaz, traz-me um café...

O meu amigo, que era pintor,

contou-me numa noite de bebedeira:

— Olha,

quando chega domingo,

não há nada melhor que ir para o futebol...

E como os olhos se me enevoassem de água,

continuou com uma voz

que deve ser igual à que se ouve nos sonhos:

— .... no entanto, conheço um homem

que ia para a beira do rio

e passava um dia inteirinho de domingo

segurando uma cana donde caia um fio para a água...

... um dia pescou um peixe,

e nunca mais lá voltou...

O pior é pensar:

que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre

como se fosse uma festa?... —

O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara,

tão rara e certa e maravilhosa

que deslumbrado se matou.

Pago o café e saio a grandes passadas.

Hoje e depois e todos os dias que vierem,

amo a vida mais e mais

que aqueles que sabem que vão morrer amanhã!

Mariazinha Santos,

que vá para o cinema morder o lencinho que sua mãe lhe

bordou...

Page 159: TEXERE ~ III ~

E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos,

que parem ao sol

e joguem um tostão na mão dos pedintes...

E a menina das horas longas e frias

continue pela mão de sua avó...

E tu, que só andas com cavalheiros decentes,

ó costureirinha honesta que eu namorei um dia,

fita-me bem no fundo dos olhos,

fita-me bem no fundo dos olhos!

Então,

virá a miséria maior que todas

secar o último restolho de moral que em mim

resta;

e eu ficarei rude como o deserto

e agreste como o recorte das altas serras:

e virá a ânsia do peito para os braços!

Domingo que vem,

eu vou fazer as coisas mais belas

que um homem pode fazer na vida!

Manuel da Fonseca

Page 160: TEXERE ~ III ~

PALMEIRA AGRESTE

Palmeira agreste, aveludado

perfume

de índias ocidentais. De que

falam as sombras

azuis, a lentidão

reconvertida, a súplice

inclinação das horas?

Albano Martins, Paralelo ao vento

Page 161: TEXERE ~ III ~

OS BARCOS

Dormem na praia os barcos pescadores

Imóveis mas abrindo

Os seus olhos de estátua

E a curva do seu bico

Rói a solidão

Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral

Page 162: TEXERE ~ III ~

[...] puisque c'est elle que j'ai arrosée.

Le Petit Prince, Antoine de Saint-Exupéry

Page 163: TEXERE ~ III ~

Quando falamos de amor

Quando falamos de amor

de que amor

falamos?

Quando esperamos realizar

a nossa

esperança

de que esperança nos cremos

portadores? A que verdade

supomos esperançar-nos?

Quando falamos da fonte

e a madrugada

sabemos se haverá água

nas manhãs?

Agarrados ao fogo das palavras

afogamo-nos

supondo ter a margem

sob os dedos?

Egito Gonçalves, O Fósforo na Palha

Page 164: TEXERE ~ III ~

Daqui a pouco acaba o dia

Daqui a pouco acaba o dia.

Não fiz nada.

Também, que coisa é que faria?

Fosse o que fosse, estava errada.

Daqui a pouco a noite vem.

Chega em vão

Para quem como eu só tem

Para contar o coração.

E após a noite a irmos dormir

Torna o dia.

Nada farei senão sentir.

Também que coisa é que faria?

Fernando Pessoa, Poemas dispersos

Page 165: TEXERE ~ III ~

MARESIA

Neste mar à minha frente

O sol repousa e os nossos olhos dormem…

- Caem saudades mortas como chuva miúda,

Ou sobem, trémulas, como o vapor das algas,

Ou ficam, extáticas, como um bafo da areia,

Calmas, sobre a paisagem,

Como um véu de cambraia deixado…

Não sei se é o calor das algas,

Se é o bafo da areia que baila,

Ou se é a chuva miúda que cai neste dia de sol

Como um véu de cambraia deixado,

Sei que me lembram os signos do Zodíaco

Em boa caligrafia,

Uns signos como nem sequer eu tinha imaginado!...

E este calor que dimana da terra e nos confunde com ela,

Nos aquece as pernas de encontro à areia, numa vida exterior

Com mais sangue que a nossa e, sobretudo, cheia

Duma inconsciência que se não parece com nada,

Esta respiração pausada como as ondas, de trás para diante

Fazendo, lentas, e desfazendo

A mesma curva humaníssima e sensível,

Faz-me escrever, devagar, e com letra de menino

pequeno

Sobre o chão acamado, esta palavra.

AMOR.

António Pedro

In Rosa do Mundo

2001 Poemas para o Futuro

Page 166: TEXERE ~ III ~

CORAGEM

É preciso arranjar outros

motivos

outras flores e astros

Outras abertas

Entre a chuva cansada de um Outono

que não sabe já

qual é a terra certa

É preciso pensar outras imagens

outras fissuras, sítios

e cidades

Pôr fim ao lamento deste vento

tentar tirar ao anjo

a túnica e o sabre

É preciso inventar outras paisagens

outros montes e águas

outras margens

Abrir e expor o coração

e finalmente deixar

correr as lágrimas

Maria Teresa Horta, Destino

Page 167: TEXERE ~ III ~

Mina Anguelova

Page 168: TEXERE ~ III ~

Amore, oggi il tuo nome

Amore, oggi il tuo nome

al mio labbro è sfuggito

come al piede l'ultimo gradino...

ora è sparsa l'acqua della vita

e tutta la lunga scala

è da ricominciare.

T'ho barattato, amore, con parole.

Buio miele che odori

dentro diafani vasi

sotto mille e seicento anni di lava -

ti riconoscerò dall'immortale

silenzio.

Cristina Campo

Amor, hoje teu nome

Amor, hoje teu nome

a meus lábios escapou

como ao pé o último degrau...

Espalhou-se a água da vida

e toda a longa escada

é para recomeçar.

Desbaratei-te, amor, com palavras.

Escuro mel que cheiras

nos diáfanos vasos

sob mil e seiscentos anos de lava -

Hei-de reconhecer-te pelo imortal

silêncio.

Cristina Campo. Trad.: José Tolentino Mendonça

Page 169: TEXERE ~ III ~
Page 170: TEXERE ~ III ~

A MÃO NO ARADO

Feliz aquele que administra sabiamente

a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias

Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

Oh! como é triste envelhecer à porta

entretecer nas mãos um coração tardio

Oh! como é triste arriscar em humanos regressos

o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão

ao longo do mar transbordante de nós

no demorado adeus da nossa condição

É triste no jardim a solidão do sol

vê-lo desde o rumor e as casas da cidade

até uma vaga promessa de rio

e a pequenina vida que se concede às unhas

Mais triste é termos de nascer e morrer

e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem

regressa e entrar humildemente por engano pela

morte dentro

É triste no outono concluir

que era o verão a única estação

Passou o solidário vento e não o conhecemos

e não soubemos ir até ao fundo da verdura

como rios que sabem onde encontrar o mar

e com que pontes com que ruas com que gentes

com que montes conviver

através de palavras de uma água para sempre dita

Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã

Page 171: TEXERE ~ III ~

Triste é comprar castanhas depois da tourada

entre o fumo e o domingo na tarde de novembro

e ter como futuro o asfalto e muita gente

e atrás a vida sem nenhuma infância

revendo tudo isto algum tempo depois

A tarde morre pelos dias fora

É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente

Ruy Belo,

in Poemas de Ruy Belo

ditos por Luís Miguel Cintra

Page 172: TEXERE ~ III ~

deixa o tempo fazer o resto

deixa o tempo fazer o resto

fechar janelas

aplacar os barcos

recolher os víveres

semear a sorte

acender o fogo

esperar a ceia

abre as portas: lê a luz

a sombra, a arte do passarinheiro

com três paus

fazes uma canoa

com quatro tens um verso,

deixa o tempo fazer o resto.

Ana Paula Inácio, Vago Pressentimento Azul Por Cima

Page 173: TEXERE ~ III ~

Aquele que acredita no girassol não meditará dentro de casa.

Todos os pensamentos de amor serão os seus pensamentos.

René Char, A Religião do Girassol

Trad.: Jorge Sousa Braga

Page 174: TEXERE ~ III ~

há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida

pensava eu... como seriam felizes as mulheres

à beira-mar debruçadas para a luz caiada

remendando o pano das velas espiando o mar

e a longitude do amor embarcado

por vezes

uma gaivota pousava nas águas

outras era o sol que cegava

e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite

os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano

esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas

punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua

assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar

se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no

coração, mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve

que nunca mais avistei cidades crepusculares

e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta

inclino-me de novo para o pano deste século

recomeço a bordar ou a dormir

tanto faz

sempre tive dúvidas de que alguma vez me visite a felicidade

Al Berto, O Medo

HÁ-DE FLUTUAR UMA CIDADE NO CREPÚSCULO DA VIDA

Page 175: TEXERE ~ III ~
Page 176: TEXERE ~ III ~

Salta con la camisa en llamas

Salta con la camisa en llamas

de estrella a estrella,

de sombra en sombra.

Muere de muerte lejana

la que ama al viento.

Alejandra Pizarnik, Árbol de Diana

Page 177: TEXERE ~ III ~

LE CANCRE

Il dit non avec la tête

mais il dit oui avec le cœur

il dit oui à ce qu’il aime

il dit non au professeur

il est debout

on le questionne

et tous les problèmes sont posés

soudain le fou rire le prend

et il efface tout

les chiffres et les mots

les dates et les noms

les phrases et les pièges

et malgré les menaces du maître

sous les huées des enfants prodiges

avec des craies de toutes les couleurs

sur le tableau noir du malheur

il dessine le visage du bonheur.

Jacques Prévert, Paroles

Page 178: TEXERE ~ III ~

CARTA DE OUTONO

Pensarás que não te escrevi antes porque o verão

consome a energia da alma com um apetite solar; e

porque as tempestades do crepúsculo incendiaram as

palavras com o rápido fogo aéreo. No entanto, eu

ouço aquelas aves que gastaram as asas na travessia

do Espírito, cujos olhos viram o que havia de duvidoso

nas traseiras do invisível, onde um deus culpado

se esconde e se ouvem as vozes sem nexo dos

anjos enlouquecidos. Essas aves deixaram de saber voar;

agarram-se aos ramos dos arbustos e, ao fim da tarde,

gritam em direcção às nuvens com os olhos secos e

sem medo. Abri-lhes o peito: e encontrei as entranhas

verdes como as folhas perenes do norte. Então,

ouço-te bater por dentro de mim, embora estejas morto;

e os teus dedos tenham perdido a força antiga que

desafiava a sombra. Procuro uma entrada no átrio

desabrigado da página; avanço entre sílabas e versos

perdendo-me do silêncio na insistência dos passos.

O passado é todo o dia de ontem; a vida coube-me

neste bolso do infinito onde guardei os últimos cigarros;

o teu amor gastou-se com um breve brilho de

isqueiro. Saio sem desejo dos desertos de outubro

e novembro, arrastando o outono com os pés, nas planícies

provisórias de um esquecimento de estações.

Nuno Júdice, in Poemas em Voz Alta

Poemas ditos por Natália Luiza

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Page 180: TEXERE ~ III ~

A quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso.

Manoel de Barros

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8 de Dezembro: Florbela Espanca~ Camille Claudel

AMAR!

Eu quero amar, amar perdidamente!

Amar só por amar: Aqui... além...

Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...

Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...

Prender ou desprender? É mal? É bem?

Quem disser que se pode amar alguém

Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:

É preciso cantá-la assim florida,

Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada

Que seja a minha noite uma alvorada,

Que me saiba perder... pra me encontrar...

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MEU AMOR MEU AMOR

Meu amor meu amor

meu corpo em movimento

minha voz à procura

do seu próprio lamento.

Meu limão de amargura meu punhal a crescer

nós parámos o tempo não sabemos morrer.

e nascemos nascemos

do nosso entristecer.

Meu amor meu amor

meu pássaro cinzento,

a chorar a lonjura,

do nosso afastamento.

Meu amor meu amor

meu nó de sofrimento

minha mó de ternura

minha nau de tormento

este mar não tem cura este céu não tem ar

nós parámos o vento não sabemos nadar

e morremos morremos

devagar devagar

José Carlos Ary dos Santos, Poesia Completa

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Veio de longe, e mal chegou partiu para mais longe ainda

Eugénio de Andrade, Os Sulcos da Sede

Page 185: TEXERE ~ III ~

E a vida... e o amor... Deixá-la ir, a vida!...

Antero de Quental, Sonetos

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Uma onda

que penso.

Outra em que reparo.

A mesma em que pensei

e que retorna ao mar.

Manuel Rui, A Onda

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III – 1 de Maio de 2005 – 31 de Agosto de 2005

Esplendor da tarde;

deve haver um amarelo

também a florir!

Yosa Buson

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Como está sereno o Céu

Como está sereno o Céu,

como sobe mansamente

a Lua resplandecente,

e esclarece este jardim!

Marquesa de Alorna, Sonetos

Page 189: TEXERE ~ III ~

De facto

não amamos como as flores

totalmente simples na sua entrega

Ana Hatherly

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Eu pescador que tantas vezes faço

a mim mesmo a pergunta de Elsenor

e quais águas que passam sei que passo

sem saber a resposta. Eu pescador.

Manuel Alegre, Senhora das Tempestades

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Ladainha dos Póstumos Natais

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que o Nada retome a cor do Infinito

David Mourão Ferreira

Um Monumento de Palavras - CD

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Jesus bleibet meine Freunde,

Meines Herzens Trost und Saft,

Jesus wehret allem Leide,

Er ist meines Lebens Kraft,

Meiner Augen Lust und Sonne,

Meiner Seele Schatz und Wonne,

Darum lass ich Jesum nicht

Aus dem Herzen und Gesicht.

- em fundo:

J.S. Bach, Cantata BWV 147

Jesus bleibet meine Freunde

The Choir of New College, Oxford

Edward Higginbottom-

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solstício de inverno - uma meditação

Jules Massenet, Méditation from Thais

Anne-Sophie Mutter

Wiener Philarmoniker

James Levine-

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Receita de Ano Novo

Para você ganhar um belíssimo Ano Novo

cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,

Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido

(mal vivido ou talvez sem sentido)

para você ganhar um ano

não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,

mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,

novo até no coração das coisas menos percebidas

(a começar pelo seu interior)

novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,

mas com ele se come, se passeia,

se ama, se compreende, se trabalha,

você não precisa beber champanha

ou qualquer outra birita,

não precisa expedir nem receber mensagens

(planta recebe mensagens?

passa telegramas?).

Não precisa fazer lista de boas intenções

para arquivá-las na gaveta.

Não precisa chorar de arrependido

pelas besteiras consumadas

nem parvamente acreditar

que por decreto da esperança

a partir de janeiro as coisas mudem

e seja tudo claridade, recompensa,

justiça entre os homens e as nações,

liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,

direitos respeitados, começando

pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um ano-novo

que mereça este nome,

você, meu caro, tem de merecê-lo,

tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,

mas tente, experimente, consciente.

É dentro de você que o Ano Novo

cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade

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eli miguel

III – 1 de Junho de 2005 – 31 de Dezembro de 2005