tolerância e política em pierre bayle
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
MARIA CECLIA PEDREIRA DE ALMEIDA
O ELOGIO DA POLIFONIA:
TOLERNCIA E POLTICA EM PIERRE BAYLE
So Paulo 2011
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MARIA CECLIA PEDREIRA DE ALMEIDA
O ELOGIO DA POLIFONIA:
TOLERNCIA E POLTICA EM PIERRE BAYLE
Tese apresentada ao programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Doutora em Filosofia, sob orientao do professor Dr. Rolf Kuntz.
So Paulo 2011
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Aos meus pais, Jaime (in memoriam) e Nair,
por sempre terem sido tolerantes com minhas escolhas
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Agradecimentos
Dentre tantas pessoas que contriburam para que este trabalho se concretizasse, devo agradecer de modo especial: Ao meu orientador, professor Rolf Kuntz, pela generosidade, dedicao e excepcional pacincia no processo de orientao; professora Maria das Graas de Souza, pelos comentrios preciosos no exame de qualificao, e por todo apoio e gentileza ao longo da pesquisa; Ao professor Alberto de Barros, pela elegante amabilidade e pelas observaes valiosas no exame de qualificao; Ao professor Bertrand Binoche, pelo acolhimento em um estgio na Universidade de Paris 1 Panthon-Sorbonne, de importncia inestimvel para este trabalho; Patrcia Aranovich, pelo apoio, amizade e por todas as inmeras colaboraes importantes durante a elaborao da tese, mesmo que no se relacionassem diretamente com ela; A todos os membros do Grupo de Estudos sobre as Luzes Britnicas, e equipe dos Cadernos de tica e Filosofia Poltica, pelas discusses sempre estimulantes; Ao Plnio Smith, pela delicadeza e pelo importante auxlio no incio da pesquisa com a indicao e emprstimo de vrios volumes da bibliografia especializada; s minhas irms queridas, Lcia e Lvia por terem me tolerado durante a realizao deste trabalho; Aos amigos "fantsticos" Sheila Paulino, Daniel Monteiro e Thomaz Kawauche pelo companheirismo, incentivo, e por todas as outras coisas que no caberiam aqui; Maria Adriana Capello, Walid Rachedi, Marcos William Balieiro, e Paulo Jonas de Lima Piva pela gentileza e amizade; Teresa Cristina e ao Antnio Lima Sobrinho pelo afeto e pelo apoio constante; Ao Todd Ryan pelas conversas insubstituveis em torno da obra de Bayle (e de Molire e Marivaux); E finalmente, CAPES pelo apoio concedido, sem o qual esta pesquisa no teria sido possvel.
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A vida breve, a arte longa,
a ocasio fugaz, a experincia falaz, o juzo difcil.
Hipcrates
Se nossa condio fosse verdadeiramente feliz,
no precisaramos nos divertir pensando nela para sermos felizes.
Pascal
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RESUMO ALMEIDA, Maria Ceclia Pedreira de. O elogio da polifonia: tolerncia e poltica em Pierre Bayle. 2011. 233 f. Tese. (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011. A obra de Pierre Bayle colaborou decisivamente para a formao do discurso filosfico sobre o conceito de tolerncia, noo central nas sociedades modernas. Uma das principais teses defendidas por Bayle que a liberdade de conscincia e de opinio deve ser garantida aos indivduos. A conseqncia o estabelecimento de uma tolerncia irrestrita, que deve se estender a todas as confisses religiosas e at mesmo aos ateus. Paradoxalmente, Bayle afirma a utilidade de um absolutismo poltico. O soberano tem o dever de elaborar as leis e o sdito tem a obrigao da obedincia. Trata-se, portanto, de investigar a teoria poltica de Pierre Bayle, algo negligenciada pelos comentadores, e, alm disso, propor que, na sua reflexo, a ideia da tolerncia motor de sua teoria poltica, intimamente associada garantia daquela noo fundamental. Ao investigar a construo e a medida da tolerncia em Pierre Bayle, bem como suas implicaes especialmente para a poltica e para o direito, a inteno mostrar que a obra bayliana contm uma teoria poltica que no est sistematizada, mas, como quase todos os grandes temas dos escritos de Bayle, disseminada por vrios textos. uma constante a expresso de certas teses de vrias formas, a utilizao de vrias vozes para compor um argumento. A metfora da tolerncia como polifonia, utilizada no Comentrio filosfico, pode ser iluminadora e mesmo uma chave para a compreenso de seu pensamento. Apesar da obra de Bayle situar-se em um horizonte clssico, e inserir-se em debates poltico-teolgicos especficos, no se pretende examinar a sua obra como pea de circunstncia ou como curiosidade histrica; antes, trata-se de analisar as teses e argumentos em defesa liberdade de conscincia, relacion-las com a sua noo de poder poltico e, por conseguinte, mostrar a contribuio e importncia daquele autor para a histria do pensamento poltico e jurdico, o que permitir revelar a sua atualidade. Palavras-chave: liberdade de conscincia, lei, tolerncia, poder poltico, religio.
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ABSTRACT ALMEIDA, Maria Ceclia Pedreira de. The praise of the polyphony: tolerance and politics in Pierre Bayle's work. 2011. 233 f. Thesis. (Doctoral) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011. Pierre Bayle's work contributed decisively to the development of philosophical discourse concerning the concept of tolerance, a central notion in modern societies. One of Bayles main theses is that freedom of conscience and opinion should be guaranteed to individuals. The consequence is an unrestricted tolerance, which should extend to all faiths and even atheists. Paradoxically, Bayle argues for the utility of political absolutism. The ruler has the duty to establish laws, and the subject the obligation to obey. The aim of this work, therefore, is to investigate the political theory of Pierre Bayle, which has been largely overlooked by commentators. It will also be shown that in its reflection, the idea of tolerance is the driving force behind his political theory, which is closely bound up with the guarantee of this fundamental notion. In examining the theory construction and extent of tolerance in Pierre Bayle, and in particular its implications for politcs and law, I aim to show that his work contains a political theory that is not systematic, but, like almost all the major themes in his writings, is spread across several texts. The use of "many voices" to compose an argument is a constant in Bayles writings. The metaphor of tolerance as polyphony that appears in the Commentaire philosophique, can be illuminating and may even hold the key to understanding his thought. Although Bayles writings are located in a classic horizon and engage in specific political-theological debates, my purpose is not to examine his work as a work of circumstance, much less a historical curiosity, but rather to examine his theses and arguments for liberty of conscience and to relate them to the notion of political power. The result will be to demonstrate Bayles important contribution to the history of political and legal thought, which will underscore its continuing relevance.
Keywords: freedom of conscience, law, tolerance, political power, religion.
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RSUM ALMEIDA, Maria Ceclia Pedreira de. L'loge de la polyphonie: tolrance et politique chez Pierre Bayle. 2011. 233 f. Thse. (Doctorat) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011. Luvre de Pierre Bayle a concouru de faon dcisive la formation du discours philosophique sur la notion de tolrance : une notion cl dans les socits modernes. L'un des principaux arguments soutenus par Bayle est que la libert de conscience et d'opinion doit tre garantie aux individus, avec pour consquence ltablissement dune tolrance absolue, lgard non seulement de toutes les religions mais mme des athes. Paradoxalement, Pierre Bayle affirme l'utilit d'un absolutisme politique : le souverain a le devoir de faire des lois et le sujet garde l'obligation de sy conformer. Il sagit, donc, dune enqute sur la thorie politique de Pierre Bayle, un peu nglig par les commentateurs, et galement proposer que, dans sa rflexion, l'ide de la tolrance est moteur de sa thorie politique, troitement associe la garantie de cette notion fondamentale. Lorsque l'on tudie la construction et l'tendue du concept de tolrance chez Pierre Bayle, et surtout ses implications en politique et en droit, l' objectif est de montrer que le travail baylien contient une thorie politique qui n'est pas systmatise, mais, comme presque tous les grands thmes des crits de Bayle, rpandue travers plusieurs textes. Lexpression de certaines de ses thses se fait sous diverses formes, avec comme constante l'utilisation de "plusieurs voix" pour composer un argument. La mtaphore de la tolrance comme la polyphonie, utilis dans le Commentaire philosophique, peut tre clairante et mme une cl pour comprendre sa pense. Malgr le fait que luvre de Bayle soit situe sur un perspective classique et sest vue introduite dans des dbats politiques-thologiques spcifiques, lobjectif nest pas dexaminer son travail comme une pice de circonstance ou comme une curiosit historique. Lobjectif est d'analyser les thses et les arguments quil utilise pour soutenir la libert de conscience, de les mettre en rapport avec sa notion de pouvoir politique et, donc, de montrer la contribution et l'importance de cet auteur dans la pense politique et juridique contemporaine, et souligner, par consquent, son actualit. Mots-Cl : Libert de conscience, Loi, tolrance, puissance politique, religion.
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ABREVIATURAS
APD Addition aux Penses diverses sur les comtes. A edio utilizada a
contida em uvres diverses.
AR Avis important aux rfugiez sur leur prochain retour en France. A edio utilizada a contida em uvres diverses.
CGM Nouvelles lettres de l'auteur de la Critique gnrale de l'Histoire du calvinisme de Mr. Maimbourg. A edio utilizada a contida em uvres diverses.
CP
De la tolrance: Commentaire philosophique sur ces paroles de Jsus-Christ Contrains-les d'entrer. As citaes deste texto seguem a edio prefaciada e anotada por Jean-Michel Gros (Paris: Presses pocket, 1992), e so indicadas pela parte, nmero do captulo e nmero da pgina.
CPD Continuation des Penses diverses crites un Docteur de Sorbonne. A edio utilizada a contida em uvres diverses.
DHC Dictionnaire historique et critique. Paris: Desoer Libraire, 1820.
FTC Ce que c'est que la France toute catholique sous le rgne de Louis le Grand. A edio utilizada a prefaciada por E. Labrousse (Paris : Vrin, 1973).
NLC Nouvelles lettres de l'auteur de la Critique gnrale de l'Histoire du calvinisme de Mr. Maimbourg. A edio utilizada a contida em uvres diverses.
NRL Nouvelles de la rpublique des lettres. A edio utilizada a contida em uvres diverses.
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OD Oeuvres diverses de Pierre Bayle, La Haye, 1727-1731.
PD Penses diverses crites un Docteur de Sorbonne, l'occasion de la comte qui parut au mois de dcembre 1680. A edio utilizada a apresentada e anotada por Joyce e Hubert Bost (Paris: Flammarion, 2007).
RQP Rponse aux questions d'un provincial. A edio utilizada a contida em uvres diverses.
SCP Supplment du Commentaire philosophique. A edio utilizada a editada por Yves C. ZARKA no volume III de Les fondements philosophiques de la tolerance (Paris: PUF, 2002).
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SUMRIO
Introduo..............................................................................................................13
I O ELOGIO DA TOLERNCIA A construo de uma novidade........................................................................................34 1. A elaborao de um conceito..................................................................................34 2. O Commentaire philosophique: um comentrio de gnero novo.......................39 3. Tolerncia como escala ...........................................................................................60
II O DIREITO DE ERRAR A infinita liberdade da busca ..........................................................................................68 1. A temerria pretenso verdade...........................................................................68 2. Utilidade e virtude: a sociedade de ateus.............................................................71 3. "Propriedade e salvao": os limites da tolerncia em John Locke ..................85 4. A doutrina da conscincia errante: entre a verdade e a ignorncia..................96
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III
A POLTICA DO POSSVEL A afirmao da utilidade e a rejeio das utopias..........................................................109 1. "Salus populi, suprema Lex": a ordem pblica ......................................................116 2. "A espada do soberano": poder absoluto e no arbitrrio ...............................123 3. "Dos males, o menor": a justificao da monarquia absoluta ..........................129 4. "O pretexto especioso da liberdade": a recusa da soberania popular ............139 5. "Um composto impossvel": a rejeio do governo misto ................................150 6. Advinhos ou magistrados? O papel do direito .................................................153 7. "O reverso da medalha" ou poltica como terapia ............................................164
IV BAYLE E A REPBLICA DAS LETRAS Entre a realidade e a utopia ..........................................................................................178 1. O imprio da verdade e da razo ........................................................................185 2. Uma repblica democrtica? ................................................................................193 3. "Habitante do mundo": utopia e realidade ........................................................203 Consideraes Finais .................................................................................................211 Bibliografia...................................................................................................................221
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INTRODUO
Eu pretendo ter uma vocao legtima para me opor aos progressos das supersties,
das vises e da credulidade popular.
Bayle
A tolerncia considerada hoje uma condio essencial
coexistncia democrtica. valorizada formalmente em declaraes internacionais de
direitos, como a Declarao de Princpios sobre a Tolerncia, aprovada pela Conferncia
Geral da UNESCO de 16 de novembro de 1995, que estabelece no seu artigo 1, item
1.3: A tolerncia o sustentculo dos direitos humanos, do pluralismo (inclusive o
pluralismo cultural), da democracia e do Estado de Direito. Implica a rejeio do
dogmatismo e do absolutismo e fortalece as normas enunciadas nos instrumentos
internacionais relativos aos direitos humanos.
Inicialmente destinado apenas a apontar uma soluo para o
problema da convivncia de diversas crenas religiosas, o discurso da tolerncia,
alm de se deter sobre a verdade e a possibilidade da coexistncia terica ou prtica
de ideias diferentes, trata atualmente em primeiro plano do tema do preconceito e da
discriminao. Se o reconhecimento jurdico dessa noo no foi suficiente para que
muitas sociedades se tornassem propriamente tolerantes, no resta dvida de que a
democracia moderna comprometida com alguma verso do princpio da tolerncia,
isto , da viso segundo a qual a renncia perseguio sistemtica de modos
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14 Introduo
desviantes e no violentos de vida uma das virtudes cardeais da ordem poltica e
da sociedade1.
Se a tolerncia posta juridicamente como sustentculo dos
direitos humanos (e da democracia)2, e se atualmente no mais se questiona sua
necessidade, a questo esclarecer as articulaes entre esses diferentes conceitos.
Pode ser til para esse propsito um estudo sobre a histria do conceito de
tolerncia, tendo em vista a ligao entre a tolerncia e os direitos do homem e a
prtica de sua defesa em um mesmo momento histrico. Nesse contexto, a obra de
Pierre Bayle revela-se um campo privilegiado de reflexo.
Uma obra essencial que estabelece uma defesa da tolerncia o
Commentaire philosophique (1686), que rene e consolida elementos centrais de textos
anteriores do autor: Penses diverses sur la comte (1682), Nouvelles lettres critiques
(1685), e Ce que c'est que la France toute catholique sous le rgne de Louis le Grand (1686).
Embora a defesa e justificao da tolerncia religiosa esteja presente em toda a obra
de Bayle, nesses textos que o tema se coloca como objeto central. O seu
engajamento3 um valor essencial numa poca em que poucos se opunham
frontalmente intolerncia religiosa. O Commentaire philosophique publicado na
Holanda, sob pseudnimo. O momento histrico explica o receio de divulgar seu
nome verdadeiro. A revogao do Edito de Nantes em 1685, que garantia certa
1 Cf. GEUS, Raymond. History and Illusion in Politics. Cambridge University Press, 2001, p. 73. 2 Cf. UNESCO. Declarao de Princpios sobre a Tolerncia, 1995, artigo 1. 3 Defensor infatigvel da tolerncia religiosa e da liberdade de conscincia, a vida desse filsofo de certo modo marcada pela religio: nascido em 1647, filho de um pastor calvinista, Bayle sentiu na pele o peso da intolerncia. Depois de ler livros de controvrsia, converteu-se ao catolicismo em 1669 e estudou filosofia no colgio dos Jesutas de Toulouse. Aps ter concludo o curso, retorna Igreja reformada. Em 1675, torna-se professor na Academia Calvinista de Sedan, mas deixa o seu posto pouco antes da Academia ser fechada por Lus XIV, para exilar-se na Holanda em 1681. Todo o perodo vivido na Holanda de grande engajamento intelectual. Bayle professor para prover o seu sustento, mas dedica grande parte de seu tempo funo de polemista e de jornalista. Em 1684 um dos fundadores de Nouvelles de la Rpublique des Lettres, uma das publicaes literrias e filosficas mais influentes de seu tempo. Possivelmente em virtude de seu sucesso como escritor e jornalista, em 1685 seu irmo, Jacob Bayle, foi aprisionado e morto por razes religiosas. Seus escritos heterodoxos tornaram-no um homem malvisto mesmo pelos protestantes e, em 1693, Bayle perde a sua ctedra em Rotterdam, sem explicaes formais e com alguma humilhao pblica. Apesar disso, continuar a escrever incansavelmente at o fim de sua vida, em 1706. Cf. a este respeito: JENKINSON, Sally L. Chronology. In: Bayle, P. Political Writings, pp. xlii-xlix, a breve biografia escrita por MORI, G. disponvel em http://www.lett.unipmn.it/~mori/bayle/biogr.html (acesso em 05.12.2011), e tambm LABROUSSE, E. Pierre Bayle. Htrodoxie et Rigorisme. Paris, Albin Michel, 1996, p. 542 e ss..
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15 Introduo
liberdade de culto para os protestantes na Frana, um verdadeiro desastre. Depois
disso, a represso e a violncia contra os protestantes intensifica-se, provocando a
fuga em massa de huguenotes para naes mais tolerantes, especialmente para os
Pases Baixos.
Precisamente a Holanda, o refgio do autor, desfruta de certa
liberdade, o que favorece a publicao de textos que certamente seriam (e muitas
vezes foram) proibidos em outras partes da Europa4. Nesse perodo, h um bom
nmero de publicaes que discute a tolerncia religiosa. Segundo Paul Hazard, no
Refgio no h tanto interesse por tragdias, comdias ou romances; antes de 1715 o
que interessa essencialmente no a literatura, o pensamento5.
O leitor contemporneo encontra raciocnios bastante familiares
quando analisa a defesa da tolerncia em Bayle, de modo que nem sempre fcil
perceber o que sua filosofia tem de novo ou de revolucionrio. Para isso preciso ter
em mente que a intolerncia era a regra, e a tolerncia, a exceo. Pierre Bayle foi
uma figura-chave na revoluo intelectual operada pela defesa desta ideia, por
meio da qual se produz uma inverso do pensvel6. Depois de seus escritos, a
tolerncia deixa de ser uma resignada aceitao do mal inevitvel, ou uma mera
atitude psicolgica, e passa a ser uma atitude positiva e uma postura poltica7.
exatamente esta concepo da tolerncia como virtude e ao mesmo tempo como
exigncia da vida poltica que ser explorada e divulgada no Sculo das Luzes.
Voltaire em suas Cartas Filosficas faz um aberto elogio obra de
Bayle8. De acordo com o autor das Cartas, este ltimo um modelo de filsofo9. Alm
4 Paul Hazard afirma que a Holanda contava com cinco grandes centros livreiros, enquanto a Frana e a Inglaterra s tinham dois cada uma. Cf. Crise da conscincia europia. Lisboa, Edies Cosmos, 1948, pp. 74-5. 5 HAZARD, Paul. Crise da conscincia europia. Lisboa, Edies Cosmos, 1948, p. 73. 6 CERTEAU, Michel de apud GROS, Jean-Michel. Cf. BAYLE, CP, p. 17. 7 Cf. VIENNE, Jean-Michel. La tolrance, de Spinoza Locke. tudes Littraires. Volume 32 ns 1-2, 2000, p. 126. 8 H sem dvida uma relao estreita entre o pensamento de Bayle e os escritos de Voltaire. Dois elementos constantemente retomados por este ltimo so o valor e o interesse de Bayle e a necessidade de reduzi-lo, o que ele tentou fazer ao produzir o seu prprio Dicionrio Filosfico. Especialistas afirmam que os temas, os comentadores, os exemplos, os julgamentos crticos e ainda a familiaridade do tom so decisivamente inspirados por Bayle. Cf. BESSIRE, Franois. De larticle David du Dictionnaire Historique et Critique de Bayle larticle David du Dictionnaire Philosophique de Voltaire. In : DELPLA, Isabelle e ROBERT, Philipe de (Eds). La raison corrosive, pp. 69-83.
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16 Introduo
disso, o verbete tolerncia da Enciclopdia tambm indica que o sculo XVIII seguiu
de perto a doutrina de Bayle. Nele, o autor, Jean Edme Romilly, sustenta uma defesa
da tolerncia com argumentos presentes nos textos de Bayle. Ao longo do artigo,
possvel observar a referncia quase textual aos seus escritos, especialmente tese
sobre os direitos da conscincia errante10.
Os escritos de Pierre Bayle foram considerados no sculo XVIII
referncia obrigatria no domnio da filosofia moral e da poltica.11 O Dicionrio
histrico e crtico, considerado a obra-prima do autor, publicado em 1696 e ampliado
em 1702, torna-se uma das leituras favoritas da maioria dos eruditos europeus da
poca.12 No entanto, atualmente, estudos sobre a obra do autor parecem cada vez
mais raros.13 Um dos motivos dessa negligncia pode ser o prprio estilo de Bayle,
escritor prolfico, mas que no tem um pensamento sistematizado. Se, por um lado,
isso tende a afastar as pretenses de anlise filosfica pura, por outro, torna o seu
exame ainda mais interessante, pois para compreend-lo preciso muitas vezes
ultrapassar as fronteiras da filosofia, e adentrar campos como o da literatura e o da
histria.
Como tentar capturar a circunscrio de um conceito em um autor
cujos eptetos mais frequentes so assistemtico, filsofo do paradoxo,
mosaico e at enigma?14 Quem pretenda retomar temas do pensamento de Bayle
ter portanto diante de si vrias dificuldades. tarefa complexa decifrar os seus 9 Cf. VOLTAIRE. Dicionrio Filosfico. Verbete filsofo. So Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 191 (Col. Os Pensardores). 10 Cf. ROMILLY, J. Encyclopdie, ou dictionnaire raisonn des sciences, des arts et des mtiers, etc. Tolrance. Disponvel em . Acesso em 05.12.2011. 11 Jonathan Israel afirma que Bayle foi um dos autores mais lidos e mais influentes de sua poca. Cf. ISRAEL, Jonathan I. Radical Enlightenement, p. 10. 12. Nesse sentido, h vrias observaes curiosas. Por exemplo, a histria que J.J. Winckelmann, erudito e importante historiador da arte do sculo XVIII, teria lido o Dicionrio duas vezes e copiado dele cerca de 1.300 pginas de artigos, que chamou de iustum volumen. Cf. GRAFTON, A. As origens trgicas da erudio: pequeno tratado sobre a nota de rodap, p. 161. 13 Vale notar que no Brasil so ainda muito escassos os estudos sobre o autor. A ausncia completa de tradues dos seus textos contribui para essa lacuna. 14 Todos estes adjetivos foram usados por intrpretes renomados da obra bayliana. Cf. esp. BOST, Hubert. Pierre Bayle historien, critique et moraliste, p. 185, LENNON, Thomas M. Reading Bayle, p. 14 e ss. e ainda JOSSUA, Jean-Pierre. Pierre Bayle ou l'obsession du mal, p. 7.
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17 Introduo
argumentos e noes, dada a multiplicidade de fontes, interpretaes e tradies por
ele utilizadas. No entanto, o leitmotiv eleito para este estudo, a noo de tolerncia e
sua articulao com a poltica, favorece a percepo segundo a qual, apesar do
aspecto desordenado, multifacetado e muitas vezes divertido de seus escritos, Bayle
persegue claramente uma finalidade, ainda que por vezes confunda o leitor com sua
retrica habilidosa. Mas ser compensador esse esforo? Por que recuperar um autor
que, apesar de ser considerado pai das Luzes Francesas, traz na sua obra debates
filosficos, polticos e teolgicos extremamente datados, marcados pelas
controvrsias entre reformados e catlicos da Europa do sculo XVII? Por que
retomar sua longa e minuciosa defesa da noo de tolerncia religiosa? justamente
a, onde alguns entendem que a sua obra fastidiosa, que talvez seja possvel
apresent-la no como uma pea de curiosidade histrica, mas como algo que
mantm certa atualidade, cujos argumentos esto presentes ainda em debates
contemporneos.
O propsito geral deste trabalho , em primeiro lugar, esclarecer a
ideia de tolerncia e sua conexo com o poder poltico no pensamento de Bayle,
tpico em geral esquecido pelos comentadores, como confirma John Christian
Laursen, ao declarar que a contribuio de Bayle para a histria da teoria poltica
tem sido largamente negligenciada15. A inteno mostrar que a obra bayliana
contm uma teoria poltica que no est sistematizada, mas antes, como quase todos
os grandes temas dos escritos de Bayle, disseminada e por vezes dissimulada em sua
obra. Apesar do autor no ter composto um tratado de poltica, h nos seus textos
uma srie de suposies sobre a natureza humana, uma investigao sobre qual o
melhor modo de constituio de uma sociedade poltica e sobre o que uma
comunidade justa e pacfica, qualquer que seja o modo pelo qual ela tenha se
formado. Tudo isso permitiria afirmar, no a existncia de um sistema, mas ao
menos a de um conjunto de ideias que elaboram e organizam as noes de poder
poltico e de relaes entre os indivduos.
15 LAURSEN, J.C. Baylean liberalism: Tolerance requires nontolerance. In: LAURSEN, John Christian e NEDERMAN, Cary J. (eds.). Beyond the persecuting society: Religious toleration before the Enlightenment, p. 197: Bayles contribution to the history of political theory has been widely neglected.
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18 Introduo
A conseqncia disso propor que, ao contrrio do que aduzem
certos intrpretes, a poltica de Bayle no oposta sua doutrina da tolerncia. No
rara a associao da monarquia com o arbitrrio, a tirania e o despotismo. Talvez por
essa razo esse regime seja comumente representado como retrgrado, politicamente
repressivo ou oposto liberdade dos sditos. Por conseqncia, haveria uma
aparente incompatibilidade entre a defesa da tolerncia de um lado, e a afirmao de
uma monarquia absoluta, de outro. Em outras palavras, se Bayle uma figura-chave
para o movimento das Luzes do sculo XVIII, tendo escrito uma das obras mais
influentes para aquele sculo, o Dicionrio histrico e crtico, o arsenal de toda
filosofia iluminista, na clebre frmula de Cassirer16, como possvel explicar a sua
opo pela monarquia absoluta, se uma das caractersticas centrais do Iluminismo
justamente a posio anti-absolutista? Pretende-se mostrar que, na reflexo de Bayle,
a preocupao em estabelecer a tolerncia motor de sua teoria poltica, intimamente
associada garantia daquela noo. A ideia da tolerncia noo fundamental e
parte integrante do seu pensamento poltico. No entanto, a elucidao dessa questo
no simples, pois assim como em diversos outros temas, as ideias polticas de Bayle
esto expostas em muitos textos e de vrios modos. uma constante em seus escritos
a expresso de certas teses de vrias formas, a utilizao de vrias vozes para
compor um argumento. A metfora da tolerncia como polifonia, utilizada no
Comentrio Filosfico, na qual duas ou mais vozes se desenvolvem, em unssono ou
no, mas preservando a forma meldica e a harmonia, pode ser iluminadora e
mesmo uma chave para a compreenso de seu pensamento.17
Para uma anlise da teoria poltica de Bayle, preciso compreender
como as noes de tolerncia e de liberdade de conscincia so elaboradas. A
liberdade de conscincia no seu pensamento uma mxima, fundada
ontologicamente. Se o homem tem antes de tudo o dever de obedecer prpria 16 CASSIRER, E. A filosofia do Iluminismo, p. 227. 17 Thomas Lennon nota que os textos de Bayle pode ser ditos "polifnicos" tambm por permitirem que outros personagens falem anonimamente e se expressem de forma diferente da que seria normalmente usada pelo autor. O Dictionnaire a nica obra que teve a autoria reconhecida por Bayle. Em todas as outras ele prefere o anonimato ou cria um personagem ao qual atribui voz. Lennon caracteriza o pensamento polifnico como aquele que rene a independncia de voz, um carter pessoal e uma abertura permanente ou averso completude. Cf. LENNON, T. Reading Bayle, pp. 28-40.
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19 Introduo
conscincia, tambm verdade que, de acordo com o autor, a ignorncia e o erro
habitam o esprito humano pela constituio mesma de seu ser. portanto inevitvel
que o homem erre por vezes de boa-f. A liberdade de conscincia , dessa forma, um
direito inviolvel do indivduo, mas que s pode ser garantido externamente pelo
Estado. No entanto, parece curioso que ao mesmo tempo em que afirma a liberdade
de conscincia e uma tolerncia radical, Bayle prefira, dentre todas as formas de
governo, a monarquia absoluta. Uma das hipteses aqui aventadas a de que a sua
escolha se d menos por razes positivas do que por negativas pois seria a que
traria menos inconvenientes. A monarquia absoluta no em si a melhor forma de
governo, mas somente aquela que, na conjuntura de sua poca, acarretaria menores
males. Em outras palavras, a poltica de Bayle tambm polifnica, ou seja, admite
medidas distintas de acordo com as diferentes circunstncias, assim como vrias
vozes podem coexistir desde que preservem a harmonia da melodia.
A presente tese composta por quatro captulos. O primeiro captulo
do trabalho apresentar a anlise da construo do conceito de tolerncia em Bayle, o
exame dos seus conceitos mais importantes e de sua terminologia. Assim, para a
anlise do sentido novo que Bayle confere noo de tolerncia, realiza-se um exame
detido da primeira parte do Commentaire philosophique. Finalmente, busca-se
identificar precisamente a extenso do conceito de tolerncia no pensamento do
autor.
O objetivo do segundo captulo examinar o seu conceito de
liberdade de conscincia e a sua doutrina da conscincia errante. Em que consiste a
verdade ou o erro quando se trata de convices? A sua tica da liberdade de
conscincia passa pelo reconhecimento do direito de se enganar. E esse direito se
estende para todas as confisses e at mesmo para os ateus. Por isso, analisa-se em
que consistiria a fico da sociedade de ateus, idealizada por Bayle e ndice da
radicalidade de seu pensamento. Tendo em vista essa figura controvertida, que
vrios tericos excluam do direito tolerncia, apresenta-se a doutrina de John
Locke, contemporneo de Bayle e um dos grandes expoentes da filosofia do XVII, o
que alm de marcar um contraponto, permitir elucidar a singularidade do
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20 Introduo
pensamento bayliano. Por fim, esse captulo tratar da noo de conscincia errante,
fundamental na reflexo de Bayle, procurando esclarecer o alcance e as
conseqncias desse conceito.
Como a aposta do autor para garantir a paz pblica repousa sobre
uma escolha poltica, e se h a suposio de que somente um poder absoluto, mas
regido por leis, pode assegurar a tolerncia, o passo seguinte ser desvendar em que
se baseia a autoridade das leis em seu sistema. O terceiro captulo tratar dessa
temtica. Bayle certamente recusa a tirania e a arbitrariedade, e no considera que a
fonte do direito esteja na figura do soberano. O autor, no registro do Comentrio
filosfico, seguindo a tradio jusnaturalista, prope a existncia de uma lei eterna que
traduziria os critrios de justia, acessvel a todos os homens e que deveria ser
obedecida sobretudo pelo magistrado. Ao mesmo tempo, sugere a utilidade e uma
certa razo de estado como critrios que devem guiar efetivamente os governantes
em suas decises. Neste contexto, a inteno desvendar essas noes, para o que
ser imprescindvel apresentar aproximaes com os sistemas filosfico-polticos de
Hugo Grotius e Jean Bodin, para afirmar no s as consonncias, mas sobretudo os
distanciamentos e tenses entre eles. Uma das teses aqui que a ordem pblica a
grande finalidade da teoria poltica de Bayle. ela que justifica em larga medida a
opo pela monarquia absoluta. Ao se elaborar uma anlise de sua concepo de
soberania e das formas de governo mostra-se que razovel supor que algumas de
suas escolhas no domnio da poltica so consequncia de ideias relativas natureza
humana e histria. Elas fundamentam igualmente o seu tratamento da poltica
como cincia conjectural.
Finalmente, o quarto captulo pretende introduzir o contraponto da
poltica apresentada por Bayle. Se a sua escolha recai sobre a monarquia absoluta
quando trata da realidade poltica, ele prefere a democracia numa sociedade
metafrica, a Repblica das Letras. A exposio mostrar o papel importante
desempenhado por Bayle enquanto escritor e jornalista nessa comunidade de
eruditos, fundamental para a formao de uma opinio pblica nos sculos
posteriores. Depois disso se discutir a relao instituda entre os corpos polticos
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21 Introduo
reais e a repblica dos letrados, mostrando que embora haja elementos de contraste
com o pensamento propriamente poltico de Bayle, h princpios fundamentais de
sua filosofia que atuam tambm nessa repblica utpica.
Ao longo do trabalho h a preocupao com o cuidado e o rigor da
leitura estrutural, de modo a restituir a unidade indissolvel deste pensamento que
inventa teses18 a partir da inteno autoral que se anuncia pelas conexes internas
do texto. No entanto, por ser uma anlise que se insere no campo da filosofia poltica,
ela no se limitar a isso, pois por vezes ser inevitvel recorrer histria,
reconduzindo os argumentos a seu contexto original, com a finalidade de elucidar
certas ideias do autor. Nesse sentido, h uma dupla provocao proposta por sua
obra, pois sendo assistemtica e mesmo contraditria para alguns, ela no admite a
pura anlise textual nem tampouco se justifica somente por meio do estudo da
histria.
Considerado uma das figuras mais enigmticas da histria
intelectual, Bayle um dos prenunciadores do paradoxo moderno. Como afirma M.
Yardeni, os paradoxos fazem parte de seu pensamento e de sua filosofia.19 Talvez
por essa razo, entre os especialistas sensvel a diversidade de correntes e
interpretaes. Ele tido como um calvinista autntico, segundo a escola francesa,
representada sobretudo por Elisabeth Labrousse e Hubert Bost20; porm,
contrariando esta posio, Bayle tido como desta, ctico ou ateu, de acordo com a
escola italiana. Gianluca Mori e Gianni Paganini representam bem esta corrente21.
A viso de um Bayle ctico tambm parece dominar parte da doutrina anglo-sax,
em especial a interpretao de Richard Popkin e em diferente medida a de Thomas
Lennon22. O recente trabalho de Todd Ryan trata do rduo tema da metafsica em
18 GOLDSCHMIDT, Victor. A religio de Plato, p. 141. 19 YARDENI, Myriam. La vision dune civilisation protestante dans luvre de Pierre Bayle. In: ROBERT, Philippe de (ed.) e BOST, Hubert; Pailhs, Claudine (colaboradores). Le Rayonnement de Bayle, p. 51. 20 O trabalho consagrado e seminal de Labrousse originalmente de 1963. Cf. Pierre Bayle. Htrodoxie et Rigorisme. Paris, Albin Michel, 1996 e BOST, Hubert. Pierre Bayle historien, critique et moraliste. Turnhout : Brepols, 2006. 21 Cf. MORI, Gianluca. Bayle philosophe. Paris, Honor Champion, 1999 e PAGANINI, G. Analisi della fede e critica della ragione nella filosofia di Pierre Bayle. Firenze: La Nuova Italia, 1980. 22 Cf. POPKIN, Richard H. The history of scepticism : from Savonarola to Bayle. New York : Oxford university press, 2003 e LENNON, Thomas M. Reading Bayle. Toronto, University of Toronto Press, 1999.
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22 Introduo
Bayle, e em particular, da sua relao com o cartesianismo. Ao analisar as doutrinas
que esto no cerne de seu pensamento metafsico, prope uma leitura que o
aproxima de um ceticismo cartesiano.23 Como sugerem Mackenna e Paganini, essas
abordagens diferentes se explicam em funo dos diversos elementos que os
comentadores pretendem privilegiar. Assim, a escola francesa opta claramente por
uma anlise biogrfica e histrica, o que permite descobrir em Bayle uma evoluo
pessoal complexa. Por sua vez, a escola italiana, como tambm, de certo modo, a
anglo-sax, preferem capturar unicamente o sentido dos textos, que inclui tambm o
estudo de suas fontes e de como so utilizadas e comentadas pelo autor.24 No que
concerne ao estudo de seu pensamento poltico, os estudos de John Christian Laursen
e de Sally Jenkinson veem Bayle como um defensor da tolerncia e exploram os
paradoxos da liberdade presentes na sua obra, segundo eles uma das precursoras do
liberalismo25. Por fim, convm mencionar ainda o monumental trabalho de Jonathan
Israel26, historiador das luzes, que retrata o filsofo como uma figura radical e
subversiva, o que contraria frontalmente a viso de E. Labrousse, que compreende
Bayle essencialmente como um religioso sincero e basicamente conformista no
mbito da poltica.
Tais interpretaes, por vezes diametralmente opostas, decorrem da
pretenso de estabelecer uma unidade de pensamento, uma viso coerente do
mundo, ou mesmo um sistema filosfico em Bayle. Apesar da indiscutvel
importncia das duas primeiras escolas de interpretao, parece que a abordagem
puramente histrico-biogrfica, ou centrada unicamente nos textos insuficiente.
preciso sopesar e relacionar cada um desses elementos: apenas a biografia no
capaz de dar conta das questes suscitadas pelos textos de Bayle, do mesmo modo
23 Cf. RYAN, T. Pierre Bayle's Cartesian metaphysics: rediscovering early modern philosophy. New York: Routledge, 2009. 24 Cf. MCKENNA, Antony e PAGANINI, Gianni (eds.) Pierre Bayle dans la rpublique des lettres, p. 10 e ss. 25 Cf. LAURSEN, John Christian. Baylean liberalism: Tolerance requires non-tolerance. In: LAURSEN, John Christian e NEDERMAN, Cary J. (eds.). Beyond the persecuting society: Religious toleration before the Enlightenment. University of Pensilvania Press, 1997 e a introduo elaborada por Jenkinson ao volume Bayle, P. Political Writings. JENKINSON, Sally L. (ed.). Cambridge : Cambridge University Press, 2000. 26 Cf. ISRAEL, Jonathan. Enlightenment Contested: philosophy, modernity, and the emancipation of man (1670-1752).Oxford University Press, 2006 e tambm Radical Enlightenement. Philosophy and the making of modernity 1650-1750. Oxford University Press, 2002.
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23 Introduo
que s a leitura de seus escritos, ainda que detida e ponderada, deixar de fora
informaes essenciais que esto alm deles. Desse modo, este trabalho se
empenhar em no s examinar o significado do que foi dito, mas ao mesmo tempo
entender qual a inteno do autor na produo de seu discurso27, e isso inclui
necessariamente um esforo para compreender o contexto histrico, os problemas de
seu tempo, bem como quem foram seus interlocutores. Isso pressupe um dilogo
nem sempre simples entre a anlise filosfica e a histria das ideias, mas se espera
que culmine numa interpretao mais fecunda, que, ainda que no resolva alguns
dos muitos problemas suscitados pela obra de Bayle, arrisque-se menos a diminu-la
ou deturp-la, ao levar em conta os vrios elementos que compem a sua reflexo.
A riqueza de interpretaes variadas e opostas, o volume do corpus
bayliano (tanto em dimenses quanto na erudio que exige de seu leitor28) e ainda a
falta de sistematizao de seu pensamento so sem dvida elementos que
desencorajaram a anlise de sua teoria poltica29. Alm disso, o estilo algo ardoroso
de Bayle, sempre ornado e carregado retoricamente, e a sua argumentao sinuosa,
que produz no um nico caminho, mas uma rede sutil e complexa de teses e
justificaes, podem ter contribudo para essa negligncia. As formas eleitas por
27 Esse o pensamento de Quentin Skinner. Ele cita precisamente os casos de Hobbes e Bayle para ilustrar os defeitos de certas posies que levam a aporias interpretativas, e destaca o carter necessariamente comunicativo do discurso, que no constitudo apenas pelo seu contedo explcito, e que portanto, poderia ser isolado e estudado abstratamente, como aqueles que fazem apenas a leitura interna de textos, o que no seria apenas inadequado, como levaria em alguns casos a uma interpretao enganadora. Segundo Skinner, os discursos de autores clssicos tambm devem ser tomados como atos de comunicao. Isso implica na necessidade da compreenso de como esse significado deve ser considerado, ou seja, alm do contedo que veicula, como o autor espera que sua obra seja apreendida, ou seja, as intenes do autor, o que deve levar em conta o contexto social e histrico em que cada texto foi produzido como parte de seu arcabouo lingstico. Cf. SKINNER, Quentin. Meaning and understanding in the history of ideas. In: Visions of Politics, vol. I, p. 82 e ss. 28 A afirmao no de modo algum retrica: o Comentrio composto por trs partes e mais um Supplment (1688), e o Dicionrio histrico e crtico, uma obra colossal, tem 16 volumes que compreendem mais de 2000 artigos. Um estudo de suas fontes mostra que ele contm 3756 ttulos de livros do incio da idade moderna e cita cerca de 267 autores clssicos e antigos. Sobre os nmeros e o processo detalhado de elaborao do Dicionrio vale conferir VAN LIESHOUT, H.H.M. The making of Pierre Bayles Dictionaire Historique et Critique. Amsterdam & Utrecht. APA Holland University Press, 2001, esp. pp. 68-93. 29 Essa posio confirmada por Laursen: It is certainly possible that a combination of anglophone preoccupations and the greater difficulty of reading and understanding all of Bayles discussions of toleration have led scholars of toleration theory to neglect his work. But that does not excuse such neglect. LAURSEN, John Christian. Baylean liberalism: Tolerance requires nontolerance. In: Laursen, John Christian e Nederman, Cary J. (eds.). Beyond the persecuting society: Religious toleration before the Enlightenment, p. 206.
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24 Introduo
Bayle para veicular seu pensamento tambm no so muito convencionais: a filosofia
no se faz apenas nos tratados, nas sumas e discursos, mas em panfletos, textos
jornalsticos de uma revista, observaes em um dicionrio. Assim como os gneros
literrios so variados, h a criao de diferentes personalidades ou heternimos que
assinam os seus textos30. Se no especfica e sistemtica, ela se torna essencialmente
crtica31. Ao apresentar suas ideias, o autor adota inmeras metforas, anedotas,
exemplos, repeties, discursos e dilogos fictcios. Essa variedade, tanto na forma
quanto no contedo, juntamente com a preocupao sempre presente de pesar os
prs e contras de cada argumento, podem ser parte da mensagem. Em outras
palavras, o seu modo de escrever no simplesmente um estilo. Assim como em
Ccero e outros pensadores latinos, pode ser entendido, tambm, como uma
estratgia. O estilo no apenas ornamento, elemento extrnseco ao contedo. Ao
contrrio, parece possvel supor que em Bayle a forma escolhida guarda relao com
o contedo imediato. Na exposio sobre a liberdade de conscincia, segundo
Laursen, o meio parte da mensagem: a tolerncia de muitos pontos de vista
expressa por muitos pontos de vista32. Nesse sentido, o desvendamento dos nveis
do discurso utilizados por Bayle, bem como o da figura do leitor bayliano que um
leitor especial , so etapas importantes no esclarecimento dos textos daquele autor.
evidente que uma tarefa assim implica um complicado trabalho de
seleo33: a opo foi edificar grande parte da anlise utilizando o Commentaire
philosophique, obra publicada em 1686, dedicada integralmente refutao da
interpretao literal das Escrituras, especialmente quanto ao imperativo Obriga-os a
entrar, o qual, tomado literalmente, constitua um dos principais argumentos
utilizados pelos perseguidores catlicos para constranger fiis de outras religies e
30 Bayle escreve textos polmicos em um jornal, comentrios em um Dicionrio, assume a personalidade fictcia de um ingls no Comentrio Filosfico, assina como um catlico moderado em uma parte de Ce que cest que la France toute Catholique, cria um dilogo epistolar em Rponse aux questions dun provincial. 31 Cf. GROS, J.M. Introduo. In. Bayle, P. Commentaire philosophique, p. 10. 32 The medium is part of the message: toleration of many viewpoins is justified from many viewpoints. LAURSEN, J.C. Baylean liberalism: Tolerance requires nontolerance. In: LAURSEN, John Christian; NEDERMAN, Cary J. (eds.). Beyond the persecuting society: Religious toleration before the Enlightenment, p. 198. 33 T. Ryan lembra que justamente por seu carter assistemtico, a fim de se construir uma interpretao precisa deve-se utilizar o maior nmero possvel de fontes. Cf. Pierre Bayles Cartesian Metaphysics, p. xiii.
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25 Introduo
para justificar a coero. Ser igualmente imprescindvel o exame de alguns verbetes
do Dicionrio histrico e crtico, obra mais clebre e de maturidade do autor. Nela,
constata-se que certos verbetes por vezes so meros pretextos para externar a opinio
do filsofo sobre os mais variados assuntos. Em cada artigo h mostra de sua
erudio e de seu esprito, pois ele d livre curso a suas reflexes e associaes.34
Bayle faz isso nas inmeras notas de rodap, chamadas por ele tambm
observaes (remarques), que ocupam cerca de dez vezes o espao dedicado ao
texto do artigo.35
No Dicionrio histrico e crtico, a nota de rodap, detalhe encontrado
normalmente no final das pginas, quando no no fim do livro, se torna o mais
importante. mais uma das incontveis inverses do autor: as notas, em geral
acessrias, se transformam no assunto principal. O Dicionrio no apenas tem notas
de rodap como constitudo em grande medida dessas notas, as quais possuem por
vezes mais notas36. O objetivo inicial seria apontar os erros cometidos por outros
escritores, filsofos e historiadores, ou seja, restabelecer a verdade dos fatos. Tal
empresa recebeu crticas de figuras importantes do cenrio intelectual da poca,
como Leibniz, que entendia que uma compilao de erros ou de controvrsias entre
eruditos seria menos til do que tediosa37 e props que Bayle reorientasse o projeto
num sentido positivo. Este passou ento a alm de denunciar os erros, compilar as
verdades, e ainda considerar outras verses ou opinies sobre uma mesma questo,
sempre com um sistema de referncias minucioso para que os leitores pudessem
reconhecer as fontes38.
34 Cf. BOTS, Hans e WAQUET, Franoise. La Rpublique des Lettres, p. 32. 35 Cf. BESSIRE, Franois. De larticle David du Dictionnaire Historique et Critique de Bayle larticle David du Dictionnaire Philosophique de Voltaire. In : DELPLA, Isabelle e ROBERT, Philipe de (eds). La raison corrosive, p. 73. 36 Cf. GRAFTON, Anthony. As origens trgicas da erudio: pequeno tratado sobre a nota de rodap. p. 159. 37 Apud BAHR, Fernando. Introduo. In: Bayle, P. Diccionario Histrico y Crtico. Buenos Aires: Facultad de Filosofia y Letras Universidad de Buenos Aires, 2003, p. xvii. 38 Cf. Idem, ibidem, p. xvii.
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26 Introduo
Bayle dificilmente perde a ocasio de criticar Morri39, autor do
dicionrio mais famoso da poca, mas que, na viso dele, traria inmeras
informaes e relatos imprecisos40. A tarefa descrita dramaticamente por Bayle no
Projet: pior do que combater monstros, querer cortar as cabeas da hidra,
como limpar os estbulos de ugias.41 A preocupao em se distanciar daquela obra
repleta de erros visvel mesmo na organizao da diagramao do Dicionrio. O
livro de Morri tem corpo tipogrfico nico, e disposto em colunas duplas e
uniformes. Os artigos so compostos em pargrafos, segundo um plano regular: a
notcia histrica, uma reviso da literatura, e ao fim, depois de um asterisco, uma
pequena bibliografia bblica e crtica. Nenhuma nota vem completar o texto. Nada
mais distante do Dicionrio histrico e crtico: ele irregular, assimtrico, com dois
corpos tipogrficos e dupla disposio.42 Mesmo na sua estruturao topogrfica
um texto complexo e que impe uma leitura descontnua. No entanto, em meio
diagramao confusa e desordem aparente, ele prima pela transparncia nas fontes,
pela clareza de raciocnio e por um sistema cuidadoso de referncias. justamente o
oposto de Morri, que utiliza uma estrutura clssica, ordenada, mas que, segundo
Bayle, no mostra fidelidade s fontes ou honestidade para com o leitor, pois vincula
informaes inexatas.
nesse enorme e inusitado best seller que Bayle exerce com toda a
veemncia um trao essencial de seu pensamento: a crtica. O seu exerccio constante
se reflete na preocupao em pesar os prs e os contras de cada argumento. A crtica
exerce simultaneamente o papel de defensor e acusador diante do tribunal da
razo43, e pe em xeque muitos dos principais dogmas religiosos. Para o autor,
39 Louis Morri, autor do Grand dictionnaire historique, de 1674, que atingiria a 20 edio em 1759, apesar das crticas de Bayle. Cf. GRAFTON, Anthony. As origens trgicas da erudio: pequeno tratado sobre a nota de rodap. p. 159. 40 Cf. HAZARD, P. A crise da conscincia europia, p. 88: H profissionais da mentira, como Moreri, que fez um dicionrio como no se deve fazer, um dicionrio incrtico, um dicionrio transbordante de falsidades. 41 BAYLE, DHC, Dissertation contenant le projet du DHC , p. 223. 42 Cf. BESSIRE, Franois. De larticle David du Dictionnaire Historique et Critique de Bayle larticle David du Dictionnaire Philosophique de Voltaire. In : DELPLA, Isabelle e ROBERT, Philipe de (Eds). La raison corrosive, p. 73. Este autor nota que cada artigo escrito rapidamente e sem muita meditao. Assim, il est toujours susceptible dadditions, qui ne risquent pas de dtruire lharmonie : il ny en a pas . (p. 77). 43 A expresso de Bayle, exposta no verbete Archelaus , e tambm no CP, I, 1, p. 88.
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27 Introduo
preciso exercitar a razo, uma vez que a intolerncia ser frequentemente associada
preguia crtica ou ignorncia. Por isso, Bayle confere crtica um papel
especialmente importante, algo que chega a se confundir com seu estilo, o que
confirmado por Koselleck:
A crtica torna-se a instncia judicativa que distingue a razo, que faz
avanar constantemente o processo dos prs e contras. Aps o enorme
trabalho de Bayle, o conceito de crtica estar indissociavelmente ligado ao
conceito de razo44.
Bayle destaca a importncia de uma sociedade que no tema o
pluralismo de religies e que valorize a liberdade da crtica. A crtica como arte de
julgar, ou de levar a cabo uma distino45, esclarecendo sobre a verdade ou
falsidade de uma informao ou de uma opinio, pode se dar de vrias maneiras.
Uma delas o ataque direto posio adversria, por meio de argumentos racionais,
filosficos ou de autoridade, como quando o filsofo afirma, por exemplo, que os
princpios da tolerncia no introduzem conflito em uma repblica; ao contrrio, a
no tolerncia que causa todas as desordens imputadas falsamente tolerncia46.
Ou seja, a intolerncia e suas conseqncias que causam uma reao em cadeia e
perpetuam a violncia em uma sociedade. Outro exemplo a crtica que Bayle dirige
via utilizada para a converso pelos catlicos, a qual postula ser absolutamente
contrria s mximas do Evangelho:
Peo que os conversores que prestem ateno (...), pois eles ousam dizer
que por amor a Jesus Cristo (...) eles perdoam as injrias que lhe so feitas,
procuram a paz e a justia. Eles ousaro dizer isso, que crem pela coero
estar de acordo com a conscincia crist, quando esto a pilhar, castigar,
aprisionar, seqestrar e matar uma infinidade de pessoas que no fazem
44 KOSELLECK, Reinhart. Crtica e crise, p. 96. 45 Cf. KOSELLECK, Reinhart. Crtica e crise, p. 93. 46 Cest la non-tolrance qui cause tous les dsordres quon impute faussement la tolrance . BAYLE. CP, discours, p. 73.
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28 Introduo
nenhum mal ao Estado, nem a seu prximo, e no cometeram nenhum erro
seno crer como outros sobre o que devido a Deus?47
O que est posto aqui a confiana na capacidade de julgamento do
leitor, no apenas no mbito da anlise da revelao, mas tambm na esfera da mera
argumentao racional. O tom indignado apenas torna mais clara a inteno do
autor, na qual no h mensagens ocultas. Mas Bayle especialmente habilidoso em
utilizar o recurso ao cmico e ironia em seus escritos, justamente para explicitar,
para os bons leitores, o absurdo da perseguio. O uso constante da ironia, uma
pequena figura de retrica agressiva e maldosa, fez com que Bayle tivesse que se
explicar em um de seus escritos por ter sido levado a srio por seus leitores.48 Diante
de um tema assim delicado, que toca nos abusos e torturas impingidos aos
protestantes para obter a abjurao de sua f, como fazer rir? preciso um certo
cuidado para dosar adequadamente gravidade e escrnio, como por exemplo:
Para dizer a verdade, senhor, seus drages tm alguma razo em se
vangloriar porque no foram muito violentos e tambm os seus
missionrios tiveram alguma razo ao escrever que eles no praticaram
violncias; e os dois tiveram a chance de se queixar, como o lobo de sopo,
da ingratido de nossa gente, pois como samos de suas mos com a vida
salva e sem ver nossas casas queimadas ns lhes devemos mil
agradecimentos. Uma tropa de Drages, animada pelos missionrios (...) se
devem crer doces como cordeiros quando no jogam mes e crianas no
meio das chamas.49
47 Je prie les convertisseurs de faire attention () car oseront-ils dire que pour lamour de Jsus-Christ ils sacrifient leur ressentiment, ils pardonnent les injures qui leur sont faites, ils cherchent la paix et la justice ? Oseront-ils dire cela, lorsquon pourra leur reprocher, que par la contrainte quils croient pouvoir faire chrtiennement la conscience, ils sont dans lengagement de piller, de battre, demprisonner, denlever, de faire mourir une infinit de personnes qui ne font nul tort ltat, ni leur prochain, et qui ne font nulle autre faute, que de ne pas croire par respect pour Dieu ce que dautres croient aussi par respect pour Dieu ? BAYLE, CP, discours, p. 81. 48 Cf. BAYLE, NRL, OD I, p. 497b. O captulo 4 deste trabalho tratar deste assunto. 49 A vous dire le vrai, Monsieur, vos Dragons ont quelque raison de se vanter quils nont pas t fort violens, & vos Missionaires ont eu quelque raison dcrire, quil ne stoit pas fait des violences ; &les uns & les autres ont lieu de se plaindre, limitation du loup dEsope, de lingratitude de nos gens, car puis quon est sorti de
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29 Introduo
A ironia aqui evidente e repousa num procedimento retrico que
prope uma dissimulao: Bayle diz uma coisa mas d a entender outra. Nesse
sentido, trs pontos devem ser observados: o primeiro, de contedo, trata de algo
que o autor no se cansa de denunciar, a distncia entre a teoria dos religiosos e a sua
prtica. Os exemplos dados por Bayle no so meramente retricos: sabe-se que
depois da revogao do Edito de Nantes em 1685, e com a formao das tropas
chamadas de Dragonnades, houve milhares de converses foradas por meio das
piores sevcias. O evangelho cristo no pode servir de justificao para a
perseguio dos reformados, como queriam os perseguidores. Em segundo lugar,
nota-se que os catlicos so figurados como lobos, que agem como feras diante
daqueles que no tm a mesma crena. Essa metfora utilizada como um indcio
seguro da ironia. Os lobos, e em especial os de sopo, no gozam de muito boa
reputao. So conhecidos como personagens cruis, mentirosos e violentos. Para
no deixar dvidas, o autor afirma que os drages devem acreditar que so como
cordeiros quando no queimam mes e filhos. claro que h uma distncia entre o
que enunciado e a inteno ltima do autor. Em terceiro lugar, ele exige um leitor
especial. O texto de Bayle deixa ao pblico o prazer de descobrir o verdadeiro
pensamento do autor, como num enigma. um tipo de humor que leva em conta a
inteligncia do leitor, que a eleva e em um certo sentido faz com que se torne
cmplice do autor50:
O mundo to mau e prprio desta ordem imutvel, que Lei soberana
de Deus, que ele seja ao mesmo tempo infeliz e ridculo. Ora, como Deus
um agente infinitamente sbio, ele deve punir o mundo pelas vias mais
rpidas e mais apropriadas, e no penso que haja meio mais apropriado,
mais rpido e mais eficaz para colocar o gnero humano no estado onde ele
merece estar por seus pecados (...) do que o de conservar a Igreja Romana
leurs mains la vie sauve, & sans voir ses maisons brules, on leur doit mille remercmens. Une troupe de Dragons, anime par des Missionaires, se doivent croire douces comme des Agneaux, lors quelles ne jettent pas ple-mle les mres & les enfans au milieu des flammes . BAYLE, FTC, p. 42. 50 Cf. MCKENNA, A. Lironie de Bayle et son statut dans l'criture philosophique, p. 2.
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30 Introduo
com grande poder e prosperidade. No temais que os outros homens
deixem de ser bem atormentados de mil maneiras, contanto que vossa
Igreja seja florescente.51
Desta vez, a ironia mais do que uma mera figura de retrica. O
sentido real do texto dissimulado, algo que est escondido e que deve ser
descoberto52 pelo leitor. O objetivo que o pblico seja levado a uma avaliao, a um
julgamento, e posterior descoberta de uma verdade, ou ao menos, tomada de
conscincia dos equvocos, que o propsito final da crtica. Neste trecho, o recurso
utilizado a concluso no resultar das premissas. Ora, Deus bom e sbio e o poder
por ele concedido Igreja Catlica apenas aumenta os flagelos humanos. A h uma
contradio, a menos que Deus queira nossos sofrimentos, e a ele ser injusto. A
contradio no est exposta diretamente, mas se segue da conseqncia das
premissas. Esse tipo de argumento, utilizado com alguma freqncia por Bayle,
exclui a afirmao direta e autoritria sobre o que seja a verdade, e em vez disso,
permite uma srie de possibilidades de construo da verdade pelo leitor, pois a
situa alm das aparncias e convida a uma investigao53.
Para deixar claro o descompasso e a incoerncia entre a
argumentao e a prtica dos catlicos, e sublinhar a irracionalidade da perseguio,
h o uso do cmico para denunciar o trgico. Um bom exemplo disso se d quando
Bayle escreve sobre a converso facultada s crianas. Por uma Dclaration de 1681, o
governo francs permitiu a renncia da religio reformada a crianas a partir dos sete
anos, de qualquer sexo. Esta estranha prescrio causou grande espanto por parte
dos juristas e da comunidade internacional j que nessa idade os indivduos no so
51 Le monde est si mchant, quil est de lordre de ct ordre immuable, qui est la Loi souveraine de Dieu, quil soit tout ensemble & malheureux & ridicule ; Or comme Dieu est un Agent infiniment sage, il doit punir le monde par les voies les plus courtes, & les plus-propres, & je ne pense pas, quil y ait de moien plus-propre, plus-court, & plus-efficace, pour mettre le genre humain dans ltat o il mrite dtre par ses pchez, () que de conserver lEglise Romaine dans une grande prosperit et crdit. Ne craignez pas que les autres hommes manquent tre bien tourmentez en mille manires, pourvu que vtre Eglise soit florissante. . BAYLE, FTC, p. 62-3. 52 Cf. MCKENNA, A. Lironie de Bayle et son statut dans l'criture philosophique, p. 3. 53 Cf. MCKENNA, A. Lironie de Bayle et son statut dans l'criture philosophique, p. 3.
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31 Introduo
capazes de praticar quaisquer atos da vida civil54. Bayle no perde a oportunidade de
tecer os seus comentrios sobre o interessante acontecimento. A citao longa mas
proveitosa:
J que uma coisa razovel permitir s crianas escolherem uma religio,
pois eles podem ofender a Deus, seria ento razovel tambm, pela mesma
razo, permitir-lhes escolherem uma mulher. Assim, as leis que quebram as
promessas de casamento feitas pelas crianas so injustas. (...) Pois muito
mais difcil a uma criana julgar se as provas da Igreja Romana so
melhores dos que as nossas, do que julgar se melhor desposar essa ou
aquela mulher. Alm disso, as conseqncias de uma escolha errada so
infinitamente mais terrveis em matria de Religio do que em matria de
casamento. Pois uma coisa triste ser mal casado, mas no um mal sem
remdio, pois no casamento h divertimentos: a pacincia, as viagens, a
velhice, e se tudo for intil, ora, pelo menos a morte d uma soluo, pois o
casamento uma coisa que dura 60 ou 70 anos, e isso no nada em
comparao s penas eternas que atramos ao escolher uma falsa religio.
H a uma desordem prodigiosa na jurisprudncia francesa: proibir de um
lado as crianas de se casarem contra a vontade de seus Superiores e lhes
permitir outro de escolherem uma Igreja apesar de seus superiores. 55
Neste exemplo, percebemos mais uma vez o desmascaramento da
injustia e da hipocrisia pelo ridculo, segundo o prprio Bayle, a melhor maneira
54 Cf. LABROUSSE, E. La rvocation de ldit de Nantes, p. 158. 55 Puisque cest une chose raisonnable de permettre aux enfans de se choisir une femme, ds quils peuvent offenser Dieu, cen seroit une raisonnable de leur permettre de se choisir une femme, ds quils peuvent offenser Dieu. Donc les loix qui cassent les promesses de mariage faites par des enfans, sont injustes. () Car non seulement il est beaucoup plus malais un enfant de juger si les preuves de lEglise Romaine ne sont meilleures que les ntres, que de juger sil vaut mieux pouser une telle quune telle femme ; mais aussi les consquences du mauvais choix sont infiniment plus terribles en matire de Religion, quen matire de mariage. Cest une trsite sort, ce quon dit, que dtre mal mari ; mais ce nest pas un mal sans remede. Mille choses y peuvent faire diversion : la patience, les voyages, la vieillesse, & si malheureusement tout se trouvoit inutile, au moins la mort y mettroit elle bon ordre, & cest une affaire tout au plus de soixante, ou de soixante-dix ans ; cest a-dire, que ce nest rien en comparaison des peines ternelles que lon sattire, en choisissant une fausse Religion. Voil sans doute une dsordre prodigieux dun ct aux enfans de se marier contre le gr de leurs Superieurs, & leur permettre de lautre de se choisir une Eglise en dpit de leurs Suprieurs . BAYLE, NLC, OD II, pp. 212b-213a.
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32 Introduo
de combater uma doutrina56. Para atingir este objetivo vemos que o autor prope
uma conversao livre, agradvel, quase familiar. O exemplo escolhido primoroso:
se uma criana de sete anos pode abjurar e escolher uma nova religio, a ela deveria
tambm ser permitido o casamento. O que torna o exemplo engraado o inusitado
da proposio crianas normalmente no se casam e Bayle sugere o contrrio. O
imprevisto, o inesperado, o que os renascentistas chamavam admiratio, acaba por
provocar o riso, chamado igualmente por eles de delectatio.57 No entanto, isso no
para qualquer um. A ironia que dissimula o pensamento verdadeiro do autor s ser
descoberta por um leitor especial, que j tenha algum senso crtico desenvolvido
para desvendar as frmulas cifradas do texto. A questo que pode ser proposta nesse
momento : por que escolher este instrumento para a crtica? Por que no ser direto,
e talvez assim atingir um nmero maior de leitores? Por que exigir esse leitor to
especial e cultivado?
A resposta pode se encaminhar por duas vias: a primeira a
concepo de leitura e de escrita para o filsofo. Ao elaborar o Dicionrio, a inteno
era informar, ensinar, mas tambm distrair58: Bayle afirma, em um dos
Esclarecimentos, que o Dicionrio uma coleo de todos os tipos de assuntos, alguns
srios, outros risveis.59 As metforas de que Bayle se utiliza tambm contribuem
para fazer do ato de leitura um elemento central e tambm divertido da vida: a
intriga sobre a autoria dos seus escritos, j que muitos foram publicados
anonimamente, a escolha das questes picantes, as metforas maliciosas. H uma
mistura entre o dever, o prazer e o lazer, e por isso que alguns dizem que h na
escritura filosfica de Bayle, uma dimenso ldica. 60
A outra via de interpretao, igualmente importante, relaciona-se
com o objetivo ltimo de Bayle, que nunca deixou de ser o estabelecimento de uma
diversidade religiosa e intelectual. No se pode deixar de pensar as anedotas como
formas literrias capazes de enviar o leitor imediatamente ao real. A reflexo cmica 56 Cf. BAYLE, DHC, Sainte-Aldegonde , G. 57 Cf. SKINNER, Q. Hobbes e a teoria clssica do riso, p. 32-33. 58 Cf. BOST, H. Pierre Bayle historien, critique et moraliste, p. 92. 59 Cf. BAYLE, DHC, claircissement sur les obscnits, p. 324. 60 Cf. BOST, H. Pierre Bayle historien, critique et moraliste, p. 98.
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33 Introduo
seduz o leitor e chama a sua ateno para uma pequena histria dentro de uma
histria maior, uma abertura dentro de um todo. O fato de ser fictcia, mas
enraizada na realidade, dota-a de uma fora ainda maior. 61 nesse ponto que se
evidencia o sentido engajado do pensamento de Bayle. Parece que alm de informar,
formar, e divertir, para ele o riso seria passvel tambm de transformar. Por meio de
exemplos e anedotas, h a exposio de questes de forma implacvel ao leitor,
fazendo um convite reflexo, ao abandono de certos preconceitos, e enfim a um
exerccio da crtica. A leitura, atividade necessariamente solitria, pode promover
essa dimenso autocrtica, constituda pelo esforo para pensar, perceber e colocar-se
no papel do outro. Neste contexto, a crtica implica sobretudo renunciar certeza de
que se tem razo. 62
A ironia um tipo de escrita perfeita para aqueles que se encontram
perseguidos ou sob ameaa de algum tipo de coero, como foi o caso de Bayle, como
afirmam Mckenna e tambm Leo Strauss. Um protestante que viveu primeiro sob o
Edito de Nantes e depois refugiou-se na Holanda sabe que o dilogo social e poltico
assegurado por um poder forte que permite a convivncia de diferentes verdades
constitui a condio necessria da liberdade de conscincia e da tolerncia
eclesistica e civil. 63 No entanto, pode-se dizer que a ironia no apenas uma
estratgia pra sugerir coisas que o autor no pode dizer diretamente, mas um
instrumento eficaz da prpria crtica. O riso, seja ele de escrnio, de desprezo ou
provocado pela admiratio, um instrumento de seduo, que ajuda a obter a
aprovao do leitor, que tem potencial subversivo e transformador. Essa seria uma
explicao possvel para o uso sistemtico de ironias, anedotas e reflexes
espirituosas em seus escritos. A imagem privilegiada dessa esttica, que tambm
uma tica e uma poltica, o da polifonia, uma diversidade harmnica de vozes, que
recusa o esprito de sistema, o arbitrrio e o pensamento nico.
***
61 Cf. FINEMAN, J. The history of the anecdote, pp.57-61. 62 Cf. BOST, H. Pierre Bayle historien, critique et moraliste, p. 246. 63 Cf. WHELAN, R. De Democritus et Heraclitus: Pierre Bayle et le rire. In : BOST, H., MCKENNA, A. (eds.) Les claircissements de Pierre Bayle, p. 470.
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I
O ELOGIO DA TOLERNCIA
A construo de uma novidade
No lugar em que vos aperceberdes de que uns tantos se agitam apenas para
virem socorrer e ajudar aos da nova religio, impedi-los-eis, por todos os meios
possveis, de se moverem, e, se souberdes que teimam em querer vir e partir, vs
os talhareis e fareis em postas sem escapar um nico; pois quanto mais mortos,
menos inimigos.
Catarina de Mdicis
1. A elaborao de um conceito
Um dos grandes temas do pensamento bayliano o elogio da
tolerncia. Apesar do carter assistemtico de sua obra, possvel distinguir a
consistncia de certas teses que esto presentes nos textos de juventude, como
as Nouvelles Republiques des Lettres, Ce que cest que la France toute catholique e o
Commentaire Philosophique, e persistem na sua obra de maturidade, o Dictionaire
Historique et Critique. No obstante a variedade de seus escritos, a tolerncia,
considerada como dever tanto do poder poltico quanto dos indivduos, uma
constante em sua reflexo. Muitos dos escritos e polmicas de Bayle tratam
deste tema com argumentos que so bastante ousados para a sua poca. Isso se
d, grosso modo, por dois motivos: em primeiro lugar, porque, diferentemente de
muitos defensores da noo de tolerncia, Bayle no se limita a discutir quais
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O elogio da tolerncia
seitas deveriam ser toleradas, ou que tipo de ritos deveria ser permitido. Este
autor se destaca exatamente por entender que a tolerncia religiosa deve ser
universal e por isso procura fund-la filosoficamente. O propsito deste
captulo analisar os principais argumentos mobilizados em favor da
tolerncia, especialmente no Commentaire philosophique, texto que refuta de
maneira veemente certa interpretao da Escritura que fundamentava a prtica
de aes intolerantes, como afirma Jean-Michel Gros:
o Commentaire philosophique uma das argumentaes mais novas e
mais audaciosas de seu tempo para justificar a tolerncia civil. Ao
fundament-la sobre uma definio de liberdade de conscincia,
uma resposta terica a uma das maiores tragdias de nossa histria: a
revogao do Edito de Nantes1.
Nesse sentido, o trabalho de Bayle reflete uma preocupao
amplamente difundida em alguns crculos de sua poca. A filosofia de John
Locke certamente aponta para isso. Embora tenham sido publicados depois do
Commentaire, o Ensaio sobre o entendimento humano (1690), e mesmo as Cartas
sobre a tolerncia (1689), de Locke, apresentam diversos argumentos filosficos e
polticos em defesa da tolerncia, destacando a falibilidade e as limitaes do
conhecimento humano, como a variao das palavras ao longo do tempo, e as
dificuldades ligadas ao significado de muitos termos empregados na linguagem
religiosa ortodoxa2. Na Carta sobre a tolerncia, Locke rejeita a ideia segundo a
qual se poderia constranger algum a crer, ou seja, de que o constrangimento
seria apenas um instrumento para a obteno de um bem maior, no caso, o
verdadeiro caminho da salvao. Para Locke, assim como para Bayle, a crena
no pode ser imposta coercitivamente. A convico interior algo
imprescindvel para a verdadeira f, segundo Locke, a nica agradvel a Deus.
1 GROS, Jean-Michel. CP, p. 10. 2 Cf. MARSHALL, J. John Locke, Toleration and Early Enlightenment Culture, p. 470. No Ensaio, cf. IV, XX, 18 e IV, XIX, 5-8.
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O elogio da tolerncia
A vontade intil para interferir neste processo, pois assim como nossas
percepes e ideias, a f no depende de nossa vontade3.
Ao construir a sua fundamentao da tolerncia, Bayle critica
com veemncia os excessos cometidos pela Igreja romana na perseguio aos
huguenotes, porm, diversamente de Locke, no exclui nenhuma confisso;
antes, aceita-as todas porque no reclama apenas a tolerncia, mas a liberdade
de conscincia. Por isso, no concorda com o argumento comumente utilizado
por alguns protestantes, segundo o qual no seriam os catlicos que deteriam o
direito de perseguir, mas os protestantes. Bayle rejeita este raciocnio que
apenas inverte papis e perpetua a intolerncia e mostra a sua originalidade
quando valoriza uma repblica que concede liberdade crtica para todos a
repblica das letras4, que no teme a pluralidade de crenas5. Assim, Bayle
defende uma tolerncia radical, que no exclui seitas e que inclui pagos e
ateus. Poucos pensadores da poca compartilhavam deste ponto de vista.
Mesmo Locke, um dos grandes tericos da tolerncia no sculo XVII, exclua
ateus e catlicos quando se tratava de tolerncia religiosa.
Em segundo lugar, no tratamento dado noo de tolerncia,
Bayle tenta inverter o sentido negativo que esta palavra tinha nos sculos XVI e
XVII, ao sustentar que esta tem um valor intrnseco, fundado na razo. No
sculo XVI a palavra tolerncia mantm o mximo de sua carga negativa (que
existe, de certo modo, at hoje): tolerar ento era sofrer, suportar pacientemente
3 Para Locke, o cuidado das almas no pode pertencer ao magistrado civil, porque seu poder consiste apenas na fora exterior. Mas a religio verdadeira e salvadora consiste na persuaso interna (inward persuasion) da mente, sem o que nada pode ser aceitvel para Deus. E tal a natureza do entendimento, que no pode ser forado a crer em algo por uma fora exterior. Confisco de bens, aprisionamento, torturas, nada dessa natureza pode surtir qualquer eficcia para fazer os homens mudarem o julgamento interno que eles tm das coisas. Letter concerning toleration, p. 219. 4 The republic of letters was republican. Crucially, the ethos defined for the processes of discovery, communication, and discussion of scholarship in these years centred precisely on the virtues of a republic: on the duties of citizenship, of virtuous participation, of liberty, and of equality amongst its citizens. Cf. MARSHALL, J. John Locke, Toleration and Early Enlightenment Culture, p. 507. 5 Cf. JENKINSON, Sally L. Two concepts of tolerance: or why Bayle is not Locke. The Journal of Political Philosophy. Volume 4, n 4, 1996, pp. 311-312.
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O elogio da tolerncia
um mal inevitvel, como se se tratasse de uma doena ou de uma infeco6. S
se tolerava o que no se podia impedir. Tambm era comum que a tolerncia
designasse uma atitude de lenincia frente ao mal ou falta. Indicava uma
espcie de conivncia ou aceitao de um erro. Quem era tolerante poderia
ser acusado de indiferena religiosa, ou mesmo de ter mentalidade irreligiosa7,
quando no de subverso8. Por outro lado, a intolerncia designava uma
virtude, uma espcie de integridade moral ou firmeza para com os preceitos
morais, algo prximo da noo de austeridade.
Para efetuar esta inverso, para que a tolerncia deixe de ser
vcio e passe a ser virtude, Bayle rejeita argumentos e teses que so correntes no
sculo XVII, e que julgam a tolerncia como algo nocivo ao corpo poltico.
Ainda, inverte tambm a concepo existente na poca com relao novidade
em si mesma. O conceito de inovao, o innovare, a ideia de mudana, ao longo
dos sculos XVI e XVII era visto como potencialmente pernicioso, sobretudo em
matria de religio, como confirma Mario Turchetti:
No domnio religioso (...) a ideia de renovao no tem uma recepo
muito favorvel. (...) Em geral, a introduo da novidade, na liturgia,
no cerimonial e sobretudo na doutrina, atrai a reprovao geral,
porque o novum assimilado ao vitiosum, ao ambitiosum, ao inane,
desde os tempos antigos9.
Ora, especialmente no Commentaire philosophique, texto de 1686,
o empreendimento de Bayle justamente o de modificar a interpretao literal
6 COTTRET, B. De ldit de Nantes la Glourieuse Rvolution concorde, libert de conscience, tolrance. La naissance de lide de tolrance (1660-1689), p. 5. 7 BOBBIO, N. Elogio da Serenidade, p. 150. 8 Cf. ASHCRAFT, R. La politique revolutionnaire et les Deux traits de governement de Locke, p. 532. 9 Dans le domaine religieux, (...) lide de renouvellement na pas um accueil aussi favorable. (...) Em gnral, lintroduction de nouveaut, dans la liturgie, dans le crmonial et surtout dans la doctrine, attire la rprobation gnrale, parce que le novum est assimil au vitiosum, lambitiosum, linane, depuis les temps anciens . TURCHETTI, Mario. Rforme & tolrance, un binme polysmique. In : PIQUE, N, e WATERLOT, Ghislain. Tolrance et Rforme, p. 12.
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O elogio da tolerncia
de uma passagem do Evangelho, e afirmar um outro sentido, que permitir
uma ao tolerante por parte do Estado e dos indivduos. Neste texto,
evidente o esforo do autor no sentido de mostrar que as novidades - mesmo
em religio no so ms por si mesmas, embora seja essa a ideia corrente:
ainda que uma explicao da Escritura seja razovel, se ela nova, eles dizem
que ela no vale nada, que ela vem muito tarde e que h prescrio contra10.
Diferentemente da maioria dos homens de seu tempo, Bayle v
a novidade como algo bom, tanto no direito quanto na religio: no se deve
jamais recusar esclarecer-se com aqueles que tm alguma coisa de novo a dizer.
Pois como saber se aquilo no melhor do que o que cremos de boa f at o
momento?11. E um pouco adiante: a experincia nos ensina que houve
novidades em matria de religio que foram boas e santas12.
Parte da resistncia ideia do novum est associada doutrina
que entende que modificaes no domnio da religio acarretariam a alterao
do governo ou do Estado. Bayle afirma explicitamente que esta ideia era um
lugar comum, repetido por ignorantes.13 No domnio poltico, a novidade e a
mudana eram sempre vistas com desconfiana: (...) no domnio poltico, (...)
toda tentativa de introduzir novidades era passvel de acusao14. Bayle
procura inverter esse sentido essencialmente negativo da mudana e da
novidade, apelando sobretudo experincia histrica e ao carter precrio de
nosso conhecimento:
10 De sorte que quelque raisonnable que soit une explication de lcriture, si elle est novuelle, ils disent queelle ne vaut rien, quelle vient trop tard, et quil y a prescription contre . BAYLE, CP, I, 8, pp. 157-158. 11 Et ainsi lon ne doit jamais refuser de sclaircir avec ceux qui ont quelque chose de nouveau dire. Car que savons-nous si cela nest pas meilleur que ce que nous avons cru jusquici de bonne foi ? . BAYLE, CP, II, 5, p. 253. 12 Lexprience nous apprend quil y a eu des nouveauts en matire de religion, qui ont t bonnes et saintes . BAYLE, CP, II, 5, p. 259. 13 Cf. BAYLE, CP, II, 6, p. 258. 14 (...) Au domaine politique, (...) toute tentative dintroduire des noveauts tait passible dune mise en accusation . TURCHETTI, Mario. Rforme & tolrance, un binme polysmique. In : PIQUE, N, e WATERLOT, Ghislain. Tolrance et Rforme, p. 12. Ainda nesse sentido, na pgina 13, o autor cita carta de tienne Pasquier M. de Fonssonme, de 1560, na qual aquele afirma jabhorreray le changement de lEstat, qui advient ordinairement par le changement des Religions.
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O elogio da tolerncia
Ser que depois de tantas experincias devemos hoje crer que
impossvel que algum nos ensine coisas novas? Isso mostra que toda
lei que exclui novos esclarecimentos ou os progressos dos
conhecimentos humanos e divinos violenta. Onde estaramos se h
dois ou trs mil anos esta lei tivesse sido implementada?15.
Essa defesa da novidade essencial em sua estratgia, pois para
estabelecer a tolerncia como valor positivo necessrio que se abandone uma
certa interpretao da passagem do Evangelho, mas isso no basta. preciso
ainda que se aceitem certas ideias novas sob um prisma diferente. Isso
fundamental para o estabelecimento no apenas da ideia de tolerncia, mas
igualmente da liberdade de conscincia, da noo de conscincia errante e ainda
da sua proposta poltica.
2. O Commentaire philosophique: um comentrio de gnero novo
Um dos objetivos declarados do Commentaire philosophique
refutar a interpretao literal agostiniana da parbola contida no Evangelho de
Lucas (Lc 14, 23). Trata-se da histria em que um senhor prepara um banquete
para seus convidados, que se escusam. Diante disso, o dono diz ao criado que
traga os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos que encontrar nas ruas e nas
praas da cidade. O criado informa ao senhor que seguiu suas ordens, mas que
ainda h lugares mesa. E o senhor diz ao servo: vai pelos caminhos e trilhas e
obriga as pessoas a entrarem, para que a minha casa fique repleta. O compelle
15 Est-ce quaprs tant dexpriences nous devons croire aujourdhui, quil est impossible que personne nous apprenne des bonnes choses ? Cela fait voir que toute loi qui exclut les nouveaux claircissements, ou les progrs des connaissances humaines et divines, est violente. O en serait-on si depuis deux ou trois mille ans cette loi avait t mise en pratique ? . BAYLE, CP, II, 5, p. 254.
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O elogio da tolerncia
intrare erroneamente interpretado ser o leitmotiv de toda exposio de Bayle. O
esforo ser o de refutar a interpretao literal da Escritura, sentido utilizado
por Agostinho para reconduzir os donatistas Igreja da frica e posteriormente
recuperado por catlicos entre os sculos XVI e XVII para justificar a coero
contra os protestantes16.
Com a finalidade de rejeitar uma explicao teolgica que
legitimava a violncia, Bayle ser obrigado a discutir os vrios argumentos que
tentavam justificar a intolerncia. O autor deixa clara esta inteno logo no
incio da obra, que busca provar, por vrias razes demonstrativas, que no h
nada mais abominvel do que fazer converses pela coero. E onde se refutam
todos os sofismas dos conversores sobre a coero e a defesa que Santo
Agostinho fez das perseguies17. Para isso utiliza argumentos racionais,
epistemolgicos, teolgicos, polticos, jurdicos e morais em seu texto. A
exposio a seguir procurar destacar a estrutura geral do Commentaire
philosophique bem como os tipos de argumentos empregados pelo autor.
O texto do Commentaire precedido por um discurso
preliminar. Nele, o autor se apresentar. Bayle no assume a autoria deste
livro, mas apresenta seu heternimo como um certo escritor ingls, Jean Fox de
Bruggs18. Este explica que proceder refutao do sentido literal da parbola
contida em Lucas a pedido de um francs refugiado na Inglaterra. O ingls
esclarece as razes pelas quais aceitou o trabalho. Ele teria duas qualidades
essenciais a esta tarefa: uma averso extrema s perseguies, e tambm o
costume de procurar as boas razes das coisas19. Estas caractersticas estaro de
fato presentes no decorrer do texto. No raras vezes Bayle indigna-se, exclama,
16 Cf. HAZARD, P. A crise da conscincia europia, p. 86. 17 O lon prouve, para plusieurs raisons dmonstratives, quil ny a rien de plus abominable que de faire des conversions par la contrainte . Et o lon rfute tous les sophismes des convertisseurs contrainte, & lapologie que St. Augustin a faite des perscutions . BAYLE, CP, p. 45. 18 Jean-Michel Gros esclarece que o nome escolhido por Bayle esconde um jogo de palavras que remete a George Fox, quaker que foi defensor da tolerncia, e a David Joris, fundador de uma seita anabatista nos Pases Baixos e que foi submetido a uma ativa perseguio. Cf. BAYLE, CP, pp. 43-4. 19 Segundo Bayle, conseguir fazer isso prestar um grande servio boa causa, e mesmo a todo mundo
Cf. BAYLE, CP, discours, p. 47.
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e at injuria20, sobretudo quando relata as violncias perpetradas contra os
huguenotes na Frana. Ao mesmo tempo, no deixa de analisar as razes de
cada argumento, que por vezes se subdivide em muitos outros, todos
minuciosamente examinados, e alguns insistentemente retomados, como se o
autor compusesse variaes sobre um tema21, buscando estabelecer, em ltima
instncia, o que mais verdadeiro, ou ao menos, o que mais provvel, e
excluindo as concluses manifestamente contrrias razo e ao esprito do
evangelho.
Depois da apresentao do autor, o texto procura expor o seu
objetivo, bem como esclarecer a etimologia que ser ali utilizada. Bayle
apresenta o seu intento como um Comentrio filosfico sobre as palavras da
parbola nupcial, das quais os conversores, isto , os perseguidores, abusam22.
Trata-se ento, de uma obra sobre o abuso, sobre o excesso e o equvoco na
interpretao da palavra da Escritura, o que, por sua vez, produziria ainda mais
excesso. Esse um tpico que aparecer com freqncia ao longo da
argumentao bayliana.
O prximo passo estabelecer os termos que sero utilizados
no debate. Para Bayle, contrariamente concepo mais corrente, , o conversor,
o desonesto e o perseguidor so a mesma coisa. Ele explica que como ocorreu
com as palavras tirano e sofista, que designa