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Elias Canetti A língua do papel de parede A língua cortada / estar cortado por sua língua¹ O primeiro volume da autobiografia de Elias Canetti se denomina Die Gerettete Zunge, Geschichte einer jugend (A língua absolvida, história de uma juventude). Porém um estranho fenômeno de memorização visual ou fônico quer que cometamos um erro no que diz respeito ao sintagma “língua absolvida”. Michel Schneider nos revela com prazer este desprezo: Permita-me evocar para concluir uma característica pessoal. Abordando a autobiografia de Canetti com J.-B. Pontalis, eu lhe atribui por título A língua roubada. Meio-consciente de meu lapso, procurei e me detive em A língua perdida. Foi-me necessário ter o livro em mãos a fim de reencontrar a língua absolvida.² Eu passei pela mesma experiência. Impossível reencontrar A língua absolvida. Vinham em minhas lembranças A língua cortada se relacionando a abertura dessa auto-biografia. Estranha passagem aqui apresentada: Minha lembrança mais antiga está banhada de vermelho. Saio por uma porta, nos braços de uma moça, o chão diante de mim é vermelho, à esquerda uma escada igualmente vermelha. Em nossa frente, na mesma altura, uma porta se abre, deixando passar um homem que vem em meu encontro me sorrindo gentilmente. Diante de mim ele pára e me diz: “Bote para fora a língua!” Eu coloco a língua para fora, ele enfia a mão em meu bolso, tira um canivete, abre-o e aproxima a lâmina quase contra minha língua. E diz: “Agora a gente vai cortar a língua”. Não ouso colocar de volta minha língua novamente na boca, e eis que tudo se desenrola bem próximo do canivete, a lâmina não demorará a tocar a língua. No último momento, ele retira sua mão e diz: “Não, hoje não, amanhã”. Fecha o canivete e coloca-o em seu bolso.³ Ameaça de castração, ameaça diferida, perpetuamente retomada, ameaça que traz o silêncio: “a ameaça do conteúdo alcançou o seu objetivo, a criança se matou por dez anos” 4

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Elias CanettiA língua do papel de parede

A língua cortada / estar cortado por sua língua¹

O primeiro volume da autobiografia de Elias Canetti se denomina Die Gerettete Zunge, Geschichte einer jugend (A língua absolvida, história de uma juventude). Porém um estranho fenômeno de memorização visual ou fônico quer que cometamos um erro no que diz respeito ao sintagma “língua absolvida”. Michel Schneider nos revela com prazer este desprezo:

Permita-me evocar para concluir uma característica pessoal. Abordando a autobiografia de Canetti com J.-B. Pontalis, eu lhe atribui por título A língua roubada. Meio-consciente de meu lapso, procurei e me detive em A língua perdida. Foi-me necessário ter o livro em mãos a fim de reencontrar a língua absolvida.²

Eu passei pela mesma experiência. Impossível reencontrar A língua absolvida. Vinham em minhas lembranças A língua cortada se relacionando a abertura dessa auto-biografia. Estranha passagem aqui apresentada:

Minha lembrança mais antiga está banhada de vermelho. Saio por uma porta, nos braços de uma moça, o chão diante de mim é vermelho, à esquerda uma escada igualmente vermelha. Em nossa frente, na mesma altura, uma porta se abre, deixando passar um homem que vem em meu encontro me sorrindo gentilmente. Diante de mim ele pára e me diz: “Bote para fora a língua!” Eu coloco a língua para fora, ele enfia a mão em meu bolso, tira um canivete, abre-o e aproxima a lâmina quase contra minha língua. E diz: “Agora a gente vai cortar a língua”. Não ouso colocar de volta minha língua novamente na boca, e eis que tudo se desenrola bem próximo do canivete, a lâmina não demorará a tocar a língua. No último momento, ele retira sua mão e diz: “Não, hoje não, amanhã”. Fecha o canivete e coloca-o em seu bolso.³

Ameaça de castração, ameaça diferida, perpetuamente retomada, ameaça que traz o silêncio: “a ameaça do conteúdo alcançou o seu objetivo, a criança se matou por dez anos”4

Ameaça que teve no instante o mesmo efeito (o mutismo) que se o desconhecido tivesse levado a ação a cabo. Não mais ter língua. Calar-se. Uma língua cortada. Aquele que profere a ameaça é o namorado da doméstica da família que os país de Elias trouxeram da Bulgária com ele a Karsrushe quando ele era pequenino. A família de Elias Canetti é originária de Rustchuk, pequena cidade dos Bálcãs as margens do Danúbio na Bulgária onde Elias nasceu em 1905.

A região é um verdadeiro patchwork cultural e lingüístico. Os búlgaros são a maioria, também podem ser encontrados turcos, gregos, albaneses, armênios, ciganos, romenos que apenas atravessaram o Danúbio e judeus sefarditas em grande número. A doméstica, citada no trecho acima, fala apenas o búlgaro, mas se vira bem em alemão. Sem sobra de dúvidas o desconhecido deve falar alemão, ela o búlgaro e como casal “eles se viram”. Em qual língua o pequeno Elias é ameaçado? Verossimilhantemente no alemão, a língua que será mais tarde, por causa do papel que sua mãe desempenhará em alemão, uma língua adulada, língua que se precisará “salvar” da barbárie nazista, com a qual será preciso fazer outra coisa além de uma língua de empréstimo, sua própria língua, sua língua íntima...

Ameaça do corte. Em Auto-de-fé, o singular personagem do judeu Fischerle (cujo nome carrega o diminutivo afetivo característico do iídiche) é um horroroso corcunda que sonha em se tornar campeão mundial de xadrez e se mudar para a América. Ele também sonha em poder eliminar sua corcunda e se vê na pele de um Dr. Fisher, milionário que vive de sombra e água

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fresca. Depois de uma sóbria história rocambolesca que mistura Fischerle e Kien (o triste herói do romance que vive apenas e tão somente em função de sua biblioteca, Fischerle em seu sonho americano, se predispõe a ser morto por um cego. O cego lhe extirpa a corcunda, realizando desta forma seu sonho, mas que fique bem claro, ele se predispõe a morrer. Corcunda e judeidade estão ligadas. Relação com a origem, com o corpo. Cortar o laço com a origem, Canetti evocará o tempo no qual durante a guerra, refugiado na Inglaterra, “cortado” portanto por sua língua, ele preenchia páginas com palavras alemãs que não estavam relacionadas com o trabalho que estava em vias de executar, mas desta forma podia manter contato com sua língua no intuito de não perdê-la.

Eram substantivos muito frequentemente, não exclusivamente; no entanto verbos e adjetivos podiam ser encontrados [...] Ele produz algo que diz respeito à língua anterior: devemos tomar cuidado, pois não dá sinais intempestivamente [...] ela está repelida; nós a cercamos. Adormeceram-na, tomaram-na pela cadeira.5

Para não perder esta língua, aprisionada, Canetti elabora listas com palavras alemãs. Mas não se tratavam de neologismos, nem de jogo de palavras apostava na distribuição lexical:

Talvez eu devesse mencionar também que repugno com veemência despedaçar as palavras ou desfigurá-las de alguma forma; a forma delas para mim é intocável; as deixo intactas. 6

Despedaçar as palavras, desfigurá-las, cortá-las, fatiá-las. Ameaça intolerável. Foi-lhe necessário uma “confiança da língua”, a degradação das palavras não lhe é

suportável: todo lugar que te permite formar frases é intacto. Os lugares rompidos gaguejam”7, escreve no livro O coração secreto do relógio. Intacto/ruptura/gagueira. Canetti despenderá muito tempo para compreender que gaguejar em uma língua não é necessariamente uma fraqueza.

A língua que deve ser por conta própria, intacta. É tão verdade que em Território do homem, Canetti vai inclusive imaginar dois orifícios distintos para a boca, um para comer, outro para falar.

Como as palavras podem sair de uma boca onde entra e passa matéria triturada? Não seria preferível possuirmos outra abertura para os alimentos, e a boca pudesse ser reservada exclusivamente às palavras?8

Outra variante desta mesma passagem, uma página do Testemunho auricular. Ainda que em Território do homem é em seu próprio nome que ele fala, no seguinte trecho ele o apresenta como um traço da “syllabo-cathare”:

A syllabo-cathare tem uma boca pela qual as palavras não se infectam. Dizemos que ela nunca a utiliza para comer, a fim de não colocar suas protegidas em perigo. Ela se alimenta de fluidos automáticos que lhe fazem bem. Sua vida é virginal como a de uma mulher muito casta. Contudo esta vida de santidade não lhe custa nada: ela vive assim por amor a língua... 9

Língua cortada, corcunda cortada, vida arrancada, palavras despedaçadas e desfiguradas, matéria triturada a qual poderíamos acrescentar língua deformada tendo em vista que a mãe de Elias Canetti (esta mãe tão central em seu romance da língua) ocupa-se ativamente em fazer com que a língua não seja deformada (luta contra as incorreções do

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alemão, contra os sotaques, contra os dialetos, todos os problemas que nós encontramos); a cadeia das palavras está lá onde figura o infigurável, a separação da origem, da identidade e da língua de origem, a procura de uma língua intacta que guardaria eternamente o vestígio da não-separação, Mas qual é para Canetti a língua das origens, língua nativa, natal ou materna? Nos deparamos imediatamente com o multilinguismo da família, a multiplicidade de referências no que diz respeito à infância, a heterogeneidade da combinação das vozes que o habitarão na lembrança, no recalque, a ocultação, o esquecimento, a nostalgia ou o inverso pela veneração da língua.

Elias Canetti se encontra na encruzilhada de diversas línguas, para as quais ele vai propor um papel imaginário, inventando para si um romance da língua e um lugar nestas (para suas línguas, romance que vai se elaborar ao longo de sua vida, que ele irá lapidar, deslocando as diversas peças sobre um tabuleiro de xadrez. Três grupos de línguas, três lugares de língua.

As línguas populares ilegítimas. Estas dos camponeses do entorno, o búlgaro, o romeno, a da família, o judeu-espanhol e inclusive em um recorte lateral, o turco. Diante das línguas não legítimas, as grandes línguas européias, o francês, o inglês e sobretudo notavelmente o alemão que se tornará a língua da Canetti. Entre os dois, a parte, insituável, a língua sagrada, mágica, o hebreu. Esta distribuição como a veremos, vai oscilar e variar na maturidade mas é indispensável que partamos deste ponto.

A língua dos habitantes da casa é o judeu-espanhol:

O espanhol que falavam entre eles era praticamente o mesmo que falavam séculos antes, quando foram expulsos da península. Algumas palavras turcas haviam sido incorporadas a esta língua, entretanto elas continuavam turcas, reconhecíveis como tal, aliás dispúnhamos quase sempre da palavra espanhola correspondente. As primeiras canções infantis que eu ouvi me foram cantadas em espanhol, fui embalado por antigas canções de ninar ibéricas [...]10

Seus primeiros amores, amores de garoto, estão ligados a uma fonia espanhola, Manzanitas coloradas que vienen de Stambol, frase que significa “as bochechinhas vermelhas que vêm de Stambul” que lhe enganaram de várias formas. Canetti rapazinho não podia resistir as bochechas avermelhadas das moças.

No entanto mesmo se os judeus sefardistas se sentem superiores aos da Europa Central, os teutos, eles falam uma língua ilegítima que não é de forma alguma uma porta de entrada para a cultura universal. O judeu-espanhol ou ladino é em sua lembrança principalmente a língua de seu avô paterno que só lê jornais em judeu-espanhol com o alfabeto hebreu que permanecerá para sempre impenetrável para Canetti; o avô que fala com dificuldade todas as línguas dos Bálcãs sem dominar nenhuma. É tão verdade que esta língua serve apenas aos olhos da mãe de Canetti para tecer o romance glorioso das origens espanholas, mas a língua está riscada. No terceiro volume de suas memórias, Canetti revela que é sob a influência de Sonne, este personagem enigmático, especialista na língua hebraica, que ele se interessa pela literatura espanhola e por herança ladina:

Eu havia repugnado até aquele momento me interessar mais significativamente pela Idade Média espanhola. Eu não havia me esquecido dos provérbios e das canções de minha infância, mas estes já não serviam para mais nada, estavam fixos em mim, debilitados no clima de suficiência de minha família que tomou para si mesma tudo o que era espanhol ainda que sob a condição de que isso enchesse seu orgulho de casta [..] Também não é sem razão que notei em minha mãe um conhecimento de quase todas as literaturas européias, mas uma ignorância quase que total dos autores espanhóis. Ela

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havia visto peças de Calderón no Burgtheater, no entanto nunca lhe ocorrera de ler o enredo da peça. O espanhol não era aos seus olhos uma língua literária. [...] 11

Em 1924, com dezenove anos, Canetti passa uma estadia em Sofia, reencontra primos, o ramo Arditti do lado de sua mãe. Acaba ficando fascinado por um de seus primos, Bernard, advogado, sionista que habita literalmente o judeu-espanhol:

Do qual este se serve do antigo espanhol e apreende com emoção que era possível tratar as coisas gerais neste idioma empobrecido que, para mim, era o das

crianças e das empregados da cozinha [...]12

O judeu-espanhol na cozinha, o búlgaro nos quartos e sem dúvida na cozinha também. É a língua dos jovens camponeses que correm descalços por toda casa e que se enroscavam entre eles durante a noite (o pequeno Canetti os acompanhava) contavam histórias de vampiros e de lobisomem que davam muito medo. Língua esquecida, língua de nostalgia, língua do outro, da infância:

Um livro de cânticos dos Bálcãs veio parar em minhas mãos, consigo reconhecer as primeiras linhas da maioria das histórias que são descritas. Elas ficaram gravadas em minha memória, presentes em meu espírito em seus mínimos detalhes, contudo e estranhamente não há língua original.13

Mesma estranheza nostálgica quando evoca Backenroth, um judeu da Galícia polonesa que se sobressai no Instituto de química de Viena. Ele fala iídiche ou polonês. Poderíamos nos perguntar como Canetti faz para não discriminar. O que ele se lembra é de não compreender a língua, que ela era doce, estranha, tenra com sotaques cantaroláveis. Backenroth se suicida e desaparece do horizonte. Canetti nunca lhe dirigiu a palavra, nem ele e tão pouco sua companheira no Instituto: “Em qual língua”14 Sem dúvida, esta língua excessivamente doce era na realidade indigna. Tendo em vista que, na distribuição imaginária das línguas, realizando sem sobra de dúvidas o desejo de sua mãe, Canetti contrapõe as línguas não legítimas, estas semi-línguas, as grandes línguas européias, línguas de comunicação, de liberdade, de literaturas, línguas da escrita por oposição à oralidade popular.

Na época em que a família chega em Manchester, Canetti tem seis anos. Eles se instalam na Burton Road. O inglês se tornará não somente a língua das governantas, da escola, da rua mas principalmente a do pai e por intermédio do pai, a dos livros. The Arabian Nights, Robson Crusoé, dos Tales de Shakespeare marcam uma iniciação em língua estrangeira e em literatura. O pai ama a Inglaterra, o país da liberdade, ele se esforça em falar corretamente o inglês, toma aulas particulares, repete frases pelo prazer que a musicalidade da língua lhe proporciona. Lança palavras, as retoma, se diverte ao repeti-las a seus filhos. Admiração pela palavra island, pela palavra meadow, pela palavra Europe ( a última palavra denunciada pelo pai em inglês, antes de sucumbir vítima de uma crise cardíaca. E sobretudo, ele apenas se dirige a seus filhos em inglês: “De forma alguma eu poderia lhe contar sobre o que eu havia lido de outra forma se não fosse em inglês. Acredito que é por causa precisamente destas leituras apaixonadas que meus progressos em inglês foram tão rápidos” 15

Os filhos continuaram a falar inglês entre eles mesmo depois de a família ter deixado a Inglaterra, muito tempo depois de sua instalação em terras de língua germânica, e logo em seguida, quando Canetti foi abrigado a deixar Viena depois de 1937, é em Londres que ele se instala, reencontrando o inglês após um longo périplo existencial.

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Contudo, o inglês (língua de amor do pai) nunca será a língua de Canetti, sua “língua íntima”. É o alemão, transmitido de uma forma turva pela mãe, que se tornará sua língua de amor.

Os familiares de Canetti, na Bulgária, falavam alemão entre eles. Língua da cumplicidade, ela permitia-lhes que se comunicassem sem serem compreendidos pelos outros, e também permitia que evocassem a todo momento com um esnobismo singular o tempo do estudo deles em Viena, as noites passadas no Burgtheater, a entrada na grande cultura. A primeira iniciação ocorre, portanto por este “vivenciamento” que circunda o pequeno Elias, palavras que ele repete em segredo sem compreendê-las:

Eu dizia a mim mesmo que deveriam se tratar de coisas maravilhosas que somente poderiam ser expressas nesta língua. Quando os atormentava (os familiares) por muito tempo sem resultado, eu me irritava e ia para outro quarto, raramente ocupado; lá repetia as frases que havia escutado, com o mesmo sotaque como fórmulas mágicas. Entregava-me com freqüência a este exercício a partir do momento em que ficava só, despejava as frases ou as palavras isoladas que havia assimilado, uma depois da outra, tão rápido que ninguém, seguramente, teria podido compreendê-las [...]16

A segunda iniciação ocorreu na Inglaterra, um dia em que seu pai cantou um lied de Schubert, sua mãe o acompanhou no piano. Tratava-se de “A Tumba na charneca” (La tombe dans la lande), versos que aprende de cor e que o deixam extasiado. Vem em seguida a morte brutal do pai, a depressão da mãe que necessita de um substituto na cumplicidade a qual dividia com seu marido em alemão. A caminho de Viena, em Lausanne, ela decide que Elias aprenderá o alemão e que será ela quem lhe dará as primeiras aulas.

Pouco tempo depois de nossa chegada em Lausane nós fomos a uma livraria, ela solicitou um livro que ensinasse alemão, pegou o primeiro que lhe mostraram, nos conduziu o quanto ante à casa e me deu a primeira aula [...] Ela lia para mim em voz alta uma frase em alemão e fazia com que eu a repetisse. Como minha pronuncia lhe desagradava, eu tinha de repetir a frase reiteradas vezes até que minha fala lhe parecesse suportável. Entretanto, isso não ocorria com freqüência, ela zombava geralmente de minha pronúncia e como não havia nada no mundo para mim tão insuportável como a decepção de minha mãe, me esforçava e rapidamente pronunciava corretamente. Ai então somente ela me dava o sentido da frase em inglês. Ela nunca traduzia a frase duas vezes, me era necessária entendê-la na primeira vez. Em seguida ela passava a próxima frase, sempre procedendo da mesma forma, sob a condição que eu a houvesse pronunciado corretamente, ela traduzia, me olhava da cabeça aos pés com um ar imperativo no intuito de fazer com que a frase entrasse em minha cabeça e, imediatamente, ditava outra frase. Não sei quantas vezes ela me fez ingurgitar n primeira vez, posso dizer prudentemente que algumas vezes, ---------------------------------------. Ela me dispensava declamando “Repita tudo isso. Você não deve esquecer uma só frase. Nenhuma. Continuaremos amanhã.” Foi a catástrofe, eu não sabia mais nada, a exceção da primeira frase, eu não havia retido absolutamente nada. Repeti a frase, ela me questionou com os olhos, gaguejei e me puni [...] “O que diria seu pai se ele te escutasse agora, ele falava tão bem o alemão”17

Paulatinamente, a criança obteve reais progressos, ele lisonjeia a mãe, dividindo com ela a “língua íntima”.

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Canetti encontrou palavras fortes em suas memórias para relacionar o amor da mãe ao amor da língua, para mostrar até que ponto o alemão se tornou para ele uma “língua materna adquirida tardiamente sob o preço de verdadeiros sofrimentos”:18

É em Lausanne, sob a influência da mãe, que nasci na língua alemã; nas dores que precederam este segundo nascimento, concebi a paixão que devia me unir a uma e a outra, eu quero dizer à língua e a minha mãe. Sem essas duas coisas que são de fato uma única e mesma coisa, o desenvolvimento ulterior de minha vida não teria nenhum sentido e permaneceria incompreensível. 19

Uma “língua materna” disse Canetti. No sentido específico do termo. Língua do desejo pela mãe, língua incestuosa pois ela é concebida (a palavra está na frase de Canetti) na dor, fruto dos amores entre mãe e filho. Trata-se de tomar o lugar do pai e para isso deve-se ser forte como ele (daí esta dor intolerável quando sua mãe o trata como idiota, visto que ele não consegue memorizar as frases em alemão e sobretudo quando ela lhe dizia que seu pai falava um alemão perfeito. A língua jamais foi materna, marcada por uma indistinção principal que une o filho a mãe. Faz-se necessário sem dúvida explicar aqui a terrível proibição com a qual sua mãe trata as coisas relacionadas ao sexo. O alemão ocupa seu corpo. Um corpo único com a língua, com a escrita.

O alemão é a língua na qual muito cedo tudo se traduz e se retraduz (os grandes textos da cultura existem apenas, em último caso, por estarem traduzidos em alemão) e na qual a lembrança dos refrãos da infância, as canções ouvidas na Bulgária, ressurgem.

O alemão será a língua de sua carreira de escritor, da descoberta maravilhada de Karl kraus, este mestre da linguagem, este purista da língua alemã. Em 1944, em L. Londres, ele observa:

A língua alemã permanecerá a língua de meu espírito, e isso porque eu sou judeu. O que quero conservar em mim, enquanto judeu, é o que resta de um país devastado de todas as formas possíveis. O destino de seus filhos é também meu, mas além disso eu deixo uma herança para toda a humanidade. Quero devolver a língua deles o que lhes devo. Quero contribuir com o que eles possuem como fantasia. 20

Canetti tem uma dívida para com o alemão por ser um dos filhos da língua alemã, na condição de e por ser judeu, ele será o depositário da cultura, aquele que conserva o traço para a posteridade apesar e diante do desastre fascista. Dissociar o alemão da barbárie e, para isso, se ancorar ainda mais profundamente em uma filiação imaginária de escritor. Filho da língua alemã no sentido já aludido anteriormente. Comparar-se a língua de Johann Peter Hebel. Não é por acaso que sua autobiografia, evocando o nome deste escritor, Canetti se recorda de uma de suas A caixa com tesouros (Schatzkästlein). Testemunho da “impossível simbiose” entre a judeidade e a germanicidade. Canetti não aceita a separação. Permanecerá (e continua ainda hoje) um filho da língua alemã reivindicando uma herança dupla. Na época em que recebe um importante prêmio em 1969, na Alemanha, em sua alocução na academia da Bavária de Belas Artes, ele se diz o “hóspede da língua alemã”, expressão vizinha a de Kafka. Um hóspede é recebido em uma casa que não é a sua. Na continuação do texto é visível o contrário, ou seja, que o alemão é para ele tão vital como o ar que respira.

[...] pois para mim continuar na Inglaterra escrevendo em alemão era natural, como respirar e andar. Eu não poderia ter agido de outra forma [...] o que acontece em circunstâncias iguais com a língua [...] Ela se torna mais íntima? É possível que ela tenha se tornado uma língua secreta que é utilizada apenas e tão somente para si mesmo

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[...] Estas são as palavras que não se afrouxam quando presas; as palavras isoladas como tais, para além de todo contexto intelectual mais vasto [...] Tudo quer novamente se denominar como se denominava anteriormente, e propriamente dito [...] 21

O alemão será a partir de então a língua da “esfera do privado”, língua do interior, linguado anterior, da dobra do si com o si, do segredo. (Desde então, Canetti está novamente instalado em Zurique, portanto em um ambiente de língua alemã). O alemão terá dessa forma percorrido um círculo, de língua de amor a língua do segredo, de língua da esfera pública a da privada; da língua da simbiose judeu-alemã a de todos os filhos da língua alemã, da língua do exílio ao exílio na língua, língua de amor, língua de amores, língua secreta entre o pai e a mãe de outrora, língua da filiação imaginária que o liga a Hebel. Canetti permanecerá colado ao alemão, enrolado no alemão, agarrado a língua. Falando de Sonne, este personagem tão decisivo que atravessa o terceiro volume da autobiografia, Canetti escreve:

Ele enriqueceu de tal forma o meu eu que levei comigo pouco tempo depois quando me foi preciso deixar Viena. Ele me preparou para colocar em minhas bagagens uma língua e me agarrar a ela tão fortemente que em nenhum caso ela se perderia.22

Entre as línguas populares, línguas da cozinha e as grandes línguas européias cujo exemplo emblemático é o alemão, uma língua a parte, língua sagrada, mágica, o hebreu.

As primeiras lembranças são as de deslumbramento diante da magia do Seder em Pessakh. O pequeno Eliasintegrado na cerimônia segura um livro e faz como se ele estivesse lendo, esperando com felicidade o fim da cerimônia por causa da trama sonora: Had Gadia, Had Gadia, “o cordeiro, o cordeiro”, que encanta a criança. E em seguida a magia se perde. O pequeno é confrontado com um Kaddish que ele ignora diante da morte de seu pai e por ocasião dela e depois o retorno a Viena, ao avô paterno que lhe dá lições de hebreu, envia-o no domingo de manhã a uma escola talmúdica. Onde tudo se deteriora, o ensino é “medíocre”, o professor “ridículo”. Aprende-se a ler, falar e recitar as preces com tristeza e hesitação sem inclusive compreendê-las. O único objetivo é o de ao final saber o kaddis: “Eu me lamentava para minha mãe e lhe descrevia como era estúpido aquele método de ensino; e ela concordava comigo. Quão diferentes eram nossas leituras em conjunto!”23

Percebe-se aqui a exposição de uma oposição entre o caráter luminoso das relações mãe/filho que se dão em alemão e a impossibilidade de encontrar de início o menor interesse pelo hebreu, uma vez passada a magia da infância. Mas o hebreu apronta muitas surpresas. De língua sagrada, ele volta a se tornar língua viva. Canetti, reencontrando seu primo Bernhard Arditti em Sofia no ano de 1924, ele confia seu desejo de escrever em alemão, e este com um tom mal humorado: “ Por quê? Aprenda o hebreu. É a nossa língua. Você acha que existe uma mais bonita?”24 Enfim bem mais tarde ele reencontra Sonne, o enigmático Sonne, de uma família judia de Przemysl, um erudito, um sábio que compõem poemas sob o pseudônimo de Abraham bem Yitzrchak, em hebreu, “esta língua ressuscitada”, e que conhece a Bíblia de cor, traduzindo-a e comentando-a com inteligência:

[...] O que mais me estupefazia era sua autoridade em matéria de hebreu. Ele podia citar literalmente qualquer passagem de qualquer um dos livros e os traduzia sem hesitar nem retratar-se em um alemão da maior beleza, digno a seus olhos de um poeta [...] Eu via naquele momento a ocasião para descobrir as Escrituras em sua língua original. Havia me resguardado até aquele momento: e isso me havia distanciado de poder conhecer mais precisamente coisas tão próximas de minhas origens, ainda que eu estivesse inclinado com zelo inesgotável sobre qualquer outra religião.25

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A origem, a origem fictícia, fantasmática no hebreu não pode ser abordada excessivamente de perto, ela necessita ser desviada, descentrada, transferida. Passar pelo outro o qual faremos nosso, neste caso o alemão. O hebreu deve permanecer opaco, ignorado, desconhecido, incógnito. Dessa forma o hebreu se torna atraente, fascinante, rico em estratos culturais múltiplos, mas sob a condição de que fique escondido nas profundezas:

É ele [Miguelangelo] quem me conduziu ao encontro dos profetas: Ezequiel, Jeremias e Josué. Aspirando unicamente ao que não estava próximo de mim, eu refutava, portanto ler a Bíblia. As preces do avô, proferidas em horários fixos, não me diziam nada que valesse a pena. Ele as proferia em uma língua que eu não conhecia, eu inclusive não queria saber o que elas significavam. 26

Línguas orais, populares, das amas-de-leite, dos criados, dos cozinheiros desencadeando uma imensa nostalgia, trazidas a tona pelas grandes línguas européias amarradas ao redor do pai (o inglês) e da mãe (o alemão) e desenhando de forma latente uma língua sagrada, mágica, destinada a permanecer no esquecimento, o hebreu, tal como se apresenta o burburinho das línguas para Canetti que não lhe é de forma alguma apercebida como uma cacofonia, mas sim uma constelação lingüística na qual ele constitui suas próprias referências.

A língua do lado/estar ao lado de sua língua

Esta constelação no entanto é acompanhada de um deslocamento, de uma partida, de uma transferência. Ela acontece em uma não coincidência absoluta. Nada mais pode dar certo, não está conforme, há sempre algo “que manca”.

O jovem Canetti aprende o francês na Inglaterra. Isso acontece com um professor que “esquece” de lhe ensinar o sotaque correto, se bem que a narrativa que ele deve memorizar e recitar diante dos convidados desencadeia uma comicidade geral: “Ela se limitava a me ensinar frases e a repeti-las em voz alta com sotaque inglês.” 27 Segundo deslocamento com relação ao primeiro: esta criança que chega à Inglaterra falando apenas o judeu-espanhol e que vive daquele momento em diante em um ambiente inglês (na escola com as governantas, com o pai e a descoberta deslumbrada dos livros), aprende muito mal o francês com um sotaque que não é de forma alguma o de seu país natal.

O inglês se tornou para Elias e seus irmãos a nova língua deles. De volta a Viena em 1913, os irmãos continuam a falar inglês entre eles. Eram chamados de “os inglesinhos” no dia primeiro de agosto de 1914, eles se encontram próximos a Viena em um parque no qual uma orquestra se faz presente, o concerto é interrompido pelo anúncio da declaração de guerra. A multidão se põe em posição de sentido, o hino austríaco é entoado, depois o hino alemão que na época não era outro senão o God Save the King com as apropriadas vozes alemãs. Os irmãos Canetti se deram conta do ar familiar com o hino inglês e começaram a cantar aos berros em inglês o God Save the King. É curioso o fato deles não terem sido linchados. Chovem tapas. Só se safam porque a mãe “que falava como uma vienense” se interpõe entre a multidão e eles:

[...] os tapas me serviram de lição: eu me vigiei pelo tempo que permanecemos em Viena, para não deixar transparecer o que quer que pudesse identificar minhas disposições de espírito. Fora de casa, as palavras inglesas eram daquele momento em diante proibidas. Detive-me a esta regra e me entreguei com muito mais carinho a minhas leituras inglesas. 28

Que uma língua possa nos conduzir a perseguição popular, que ela possa ser estigmatizada ou ao contrário nos salvar (o sotaque vienense da mãe), é uma experiência um

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tanto quanto traumatizante esta de não existir língua materna. O judeu-espanhol está em vias de ser esquecido, ele está recalcado, e Elias em 1914 acaba de retornar a Manchester onde residiu de 1911 a 1913, apesar de sua mãe já tê-lo iniciado no alemão de acordo com o seu método singular. Aliás, esta iniciação no alemão se realiza durante a viagem que os leva a Viena, passando por Lausanne em 1913. Lausanne não é Zurique. Fala-se francês lá. É em uma cidade francófona que sua mãe angustiada se depara repentinamente com a idéia de seu filho ser recusado como aluno da terceira classe na escola em Viena, se dispõe freneticamente a lhe ensinar alemão. Novo isolamento de Elias, mas é bem verdade que naquele momento, a mãe é só sua, apenas ele e a mãe.

Outras diferenças essenciais dizem respeito ao problema do sotaque, daquilo que singulariza, que denuncia a identidade a partir do momento em que se abre a boca.

Moram em Zurique de 1916 a 1921. Canetti se lembra de um curioso incidente. Na escola durante uma aula de geografia, os alunos devem avançar e ler em voz alta o nome dos rios que figuram sobre um mapa representando a América do Sul. Canetti depara-se com o rio Desaguadero. O judeu espanhol, mais ou menos esquecido, mais ou menos presente, leva-o a pronunciar Desaguadero. O professor o corrige dizendo-lhe que o u não deve ser pronunciado. A criança insiste com uma obstinação que intriga o mestre. O jovem Canetti acrescenta um tanto quanto fanfarrão que o espanhol era “praticamente” sua língua materna. A história acaba mal, ninguém quis ceder. O que me chama a atenção aqui é este praticamente. Canetti também poderia ter dito que era uma língua “quase” materna. Sempre há um pequeno afastamento, uma pequena diferença, um nada. O mesmo ocorre quando descobre A caixa com tesouros, em estenografia, jubila na leitura de um romance cuja intriga se desenrola na Turquia. Haviam palavras turcas nesta língua nativa, mas não se tratava do idioma turco, mas sim de palavras turcas.

Em Zurique não se fala o alemão normatizado, mas sim um dialeto alemão, o Zurichdeutsch, língua que a mãe associa a um alemão ruim:

Minha mãe que pregava pela pureza de nossa língua e demonstrava desprezo pelas línguas não-literárias temia que meu “bom” alemão perdesse suas qualidades originais e quando me apercebi entusiasmado em defender o dialeto que me agradava, ela se zangava e dizia: “Eu não te trouxe a Suíça para que você esquecesse o que te havia dito sobre a Burgtheater” 29

Se bem que Elias, ainda tímido, fala pouco, tem dificuldades para se integrar, não porta o “sotaque correto”, o sotaque do país, mas sim o da nação do lado. Que este seja o da dominação cultural não resolve nada. Depois de 1937, este será o exílio já mencionado, e a infelicidade de não estar mais em sua língua.

Dessa forma Canetti terá circulado de língua em língua, entre as línguas, em todas as línguas, em alemão, sempre um pouco ao lado, com o mau sotaque, ou no mau momento, alhures, na diferença. Diferenças de língua, diferenças de identidade, no fictício da reterritorialização precária.

O episódio que conclui o terceiro tomo de sua autobiografia tem valor simbólico.Em 1937, Elias é prevenido por seu irmão Jorge que sua mãe estava morrendo em Paris.

Elias Canetti se dirige à França. Leva para ela um buquê de rosas. Sua mãe adorava estas flores e sempre fazia alusão às grandes roseiras em direção as quais ele se dirigia correndo para se refugiar a fim de ler por prazer. Perfume das rosas, perfume dos livros para sempre associados. Elias fez com que ela acreditasse que ele as havia colhido em Rustschkuk, no país natal. “Estas são as rosas do jardim” disse a ela. Se ela acreditou ou não pouco importa! Ela as recebeu confiante e morreu crente de que aquelas rosas eram sim as do jardim de Rustschkuk. Rosas mais vermelhas, mais perfumadas, rosas da infância; rosas fictícias a imagem da língua, desta

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língua fictícia, ela sim, a única que coincide verdadeiramente com ela mesma, sem diferença, sem contrabalanço, sem partida, língua de um país natal que permanecerá para sempre imaginário.

O tropeço da língua: a revanche do avô

A mãe como já pudemos observar preza pela pureza da língua de Elias, pelo seu alemão. A autobiografia está atravessada por sua obsessão pela norma, pela correção do “bom sotaque”, pelo seu desprezo diante do encontro de “língua não literárias”, pela oralidade popular, pela caça depreendida contra os dialetos. Abandonado entre as pequenas pessoas, entre os povos “sem cultura”, o dialeto, o pidgin é o indício do não domínio da língua o que se traduz para a mãe de Elias Canetti em infelicidade absoluta.

Em Zurique, Elias é sensível a prosódia do suíço-alemão. Ele o defende quando sua mãe o ataca. Resiste e faz a seguinte observação:

Eu aprendi o dialeto totalmente sozinho, contra a vontade de minha mãe, escondendo cuidadosamente os progressos que realizava. Era em relação a ela e em matéria linguística minha primeira demonstração de autonomia. 30

É com respeito ao avô que a oposição língua correta/pidgin se apresenta mais perceptível:

Ele pretendia falar para cada um na sua língua. No entanto, com exceção exceção exceção das línguas balcânicas e do espanhol que lhe fazia parte por assim se dizer, ele jamais aprendeu essas línguas, apenas passou por elas ao longo de suas viagens, aliás seus conhecimentos eram terrivelmente lacunares. Tinha prazer de enumerar nos dedos as línguas que falava; a segurança lúdica com a qual ele se punha a contar – Deus sabe como – dezessete ou até dezenove línguas em seu arsenal, provocavam um efeito irresistível na maioria das pessoas, e isto apesar de sua pronuncia super-estranha. Eu ficava muito embaraçado com estes episódios quando eles aconteciam e eu estava por perto: ele cometia tantos erros falando que meu professor, M. Tegel, não o teria aceitado em sua sala na escola primária. Pior ainda: ele não seria admitido na escola de minha mãe, ela que nos atacava verbalmente com sarcasmos ao menor dos erros. Em casa nós praticávamos ao todo quatro línguas31 e quando perguntei a minha mãe se era possível falar dezessete línguas, ela me respondeu, sem se referir ao avô: “Não! Neste caso, não se fala nenhuma como se deve” 32

Podemos notar que tudo se estabelece em função de uma norma legitima(dora): o professor, o julgamento da mãe, a risada dos ouvintes diante da pronúncia estranha do avô.

Esta pureza da língua, longe dos dialetos e da oralidade popular, será ainda reforçada pelo encontro decisivo de Canetti com K. Krauss em 1924, encontro com o homem, o orador, os escritos, as teorias. K. Krauss é aquele que melhor sabe utilizar as palavras dos outros contra as asneiras deles próprios, imitar sua maneira de falar, seu idioleto, sua máscara acústica, termo que Canetti forjará a partir das lições de Krauss. Satírico, crítico da “reportagem universal” em sua variante alemã e austríaca, ele preza pela pureza da língua, sua verdade, sua autenticidade. Ancorado na universalidade, a pontaria linguajeira de Krauss permitirá a Elias Canetti representar a empresa de MAUTHNER, uma Sprachkritik. Estar na escuta (o título do segundo tomo da autobiografia retoma o título da revista de Krauss (Die Fackel), Uma luz no meu ouvido), na escuta dos falares; dar-se conta do que se esconde por detrás da multitude dos idioletos sociais, analisar a linguagem. Isso implica uma atitude de exterioridade, de mediação,

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um movimento para fora que é a posição da análise para a qual não existe o dialeto propriamente, nem dialeto singular. O analista ou o escritor são os únicos a se situarem fora do dialeto, do corporal da língua. Depreende-se deste ponto a importância de Krauss no horizonte cultural de Canetti; a fascinação que exerceu sobre ele e ao mesmo tempo, mais tarde, o recuo por vezes horrorizado que Canetti toma com respeito a seu antigo mestre.

Longe do dialeto, do idioleto, do corpo da língua, nos livros, na escrita. Uma língua com a qual Canetti fala de Krauss em seu diário de 1974, diz que ela era uma “língua blindada”.

Como se efetua o desapego da mãe, da escrita, da norma, do neutro?Vimos o pequeno Canetti resistir a sua mãe, se percebe surpreendido amando o dialeto

de Zurique em segredo, se diz orgulhoso por conhecer o judeu-espanhol e afirma na aula de geografia que o espanhol era “praticamente” sua língua materna. Podemos entretanto encontrar os alicerces de uma atitude, que não irá desembocar sobre uma obra de ficção (salvo Auto-de-fé –Die Blendung-, escrito no final dos anos 20, Canetti só é homem de algumas peças de teatro e de uma imensa autobiografia que, mais além dela, se ramifica em escrita de diário, de aforismos ou de reflexões), se escreverá sem folga, vai-se elaborar pouco a pouco como uma prova de sua própria existência. A amizade de Sonne, de quem já falei, o remete ao mesmo tempo a filiação e a limpeza da fala, a sua especificidade corporal:

Fazia-me falta uma ocasião para que pudesse voltar as minhas origens visto que eu fazia pouco caso delas. Era questão de não deixar nada de uma vida se perder [...] Fazendo parte deste todo [...] os seres dos quais ele havia ouvido as vozes... Fazendo parte delas também sua origem ou ao menos aquilo que ele poderia apreender. Para Sonne, elas não se reduziam a algo de puramente privado: elas se escutavam na totalidade da época e dos lugares dos quais eram oriundos. Nas palavras de uma língua que nós havíamos talvez ouvido apenas na infância, ligada a literatura na qual estas palavras foram mais tarde desabrochadas. 33

Sonne o reconcilia com o hebreu (apesar de permanecer o ignorando) e com o judeu-espanhol. Ele o mergulha simbolicamente nas línguas judias ainda que manifestadamente Canetti não tenha fugido delas sempre as ignorou (o hebreu), talvez por tê-las como ilegítimas e de qualquer forma próximas por demais de um essencial que queria ter a distância.

A verdadeira iluminação se dará com As vozes de Marrakesh, texto tardio de 1967 que lhe permite reencontrar-se com a judeidade, repousar e permite-lhe ainda meditar de outra forma sobre o problema de sua relação com as línguas.

Ele já havia em sua autobiografia retratado o avô e havia se aproximado de sua gestualidade, sua arte de prosear, a língua mesmo dos contadores de causo de Marrakech que o impressionaram.

Aos proseadores e à magia sonora que emana deles; ao corpo da voz, Canetti opõe daquele momento em diante a secura da escrita:

[...] eu me entreguei ao papel. Sob o abrigo de mesas e portas, vivi portanto como um sonhador covarde. Eles vivem na aglomeração do mercado entre centenas de rostos estrangeiros, a cada dia renovados. Eles não são encarregados de nenhuma ciência fria e supérflua. Não possuem livros, nem ambições de falsas glórias. Entre os homens de nosso hemisfério que vivem de literatura, eu raramente me sinto tão à vontade. Eu os havia desprezado porque desprezo qualquer coisa em mim e acredito que este qualquer coisa seja o papel. Aqui eu me encontrei de repente entre poetas em direção aos quais eu podia olhar nos olhos uma vez que não haviam palavras a serem lidas. 34

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Pela primeira vez Canetti tira os olhos do papel. Deixa de ser cego ou semi-cego. O título alemão de Auto-de-fé é Die Blendung, o deslumbramento. O tema do cego, do ofuscamento ou do incêndio atravessa a obra, da cegueira de Sanson aos cegos de Breughel, do cego que mata Fisherle ao incêndio da biblioteca de Kien. Estar cego com relação a, não simplesmente cego. Canetti descobre aqui a oposição entre o papel, a escrita, a língua analítica de K. Krauss, as vozes, o corpo, o idioleto, a tremura, o tropeço, o abandono de uma posição de domínio sobre uma língua. Ele diz adeus a língua blindada, encouraçada. Ele a procura frágil, consumida, oferecida:

O que há na língua? O que ela esconde? O que ela nos ensina? Nas semanas que passei no Marrocos, não tentei apreender nem o árabe, nem nenhum dialeto berbere. Não queria perder nada da potência exótica daqueles gritos. Eu queria ser tocado pelas vozes tal qual eles se apresentavam por elas mesmas e não afetá-las ou diminuí-las com um saber artificial e insuficiente. 35

A língua destes contadores de história me remete de imediato a meu avô. A associação é realizada no primeiro volume da autobiografia:

Ele estava morto há muito tempo quando por acaso me deparei em Marrakesh com contadores de história dignos de meu avô; eu não compreendia uma só palavra da língua que eles falavam e, no entanto, estes proseadores me lembravam de tal forma meu avô que me sentei imediatamente mais próximo deles do que de qualquer outra pessoa em Marrakesh. 36

Assim, o avô Canetti que falava dezessete línguas sem falar nenhuma e cuja mãe caçoava deste fato, o avô Canetti que repetia suas preces em hebraico, que contava histórias, contos judeu-espanhóis com entonações cômicas e uma gestualidade de comediante, este avô que “soubera conservar-se como si mesmo”, sob o preço de seus erros de gramática, este proseador nato que misturava as palavras e os odores da antiga Turquia a seu modo, ele reencontra, para além da morte, seu neto convertido em um grande escritor discípulo de K. Krauss e que ao mesmo tempo redescobre a sua judeidade nas ruas de Marrakesh e a língua frágil, a tremida da voz, o corpo na língua simples assim.

“Uma ressonância de língua primitiva”

Canetti se move no seio de uma dupla filiação. A verdadeira filiação, tão difícil de ser assumida, a qual ele trata de avaliar seu verdadeiro lugar, sua verdadeira posição, seus pontos de ancoramento, a verdadeira ascendência que passa por Andrinople (conhecida hoje por Edirne, Adrianópolis, Adrinopla) por Constantinopla e talvez no transcorrer dos séculos pela Espanha. Como escritor, no entanto, Canetti engendrou para si mesmo uma outra filiação a qual ele trança com a primeira sua filiação de escritor. De Goethe a Quevedo, de Hebel a Karl Krauss, de Stendhal a Kafka. Ele deve encontrar para si um lugar em uma corrente literária.

Eu cai nesta época sobre quatro sonhos de Quevedo. Ele se tornou ao lado de Swift e Aristófanes um de meus grandes antepassados. Um escritor precisa de antepassados. Deve conhecer nominalmente alguns deles. Quando tem a impressão de que seu próprio nome o sufoca, ele pensa em seus antepassados que carregam o deles com felicidade e não de forma mortal. Eles talvez sorriam de sua indelicadeza, mas eles não o repudiam. Eles também precisam de outrem, de descendentes... 37

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Tendo assim fabricado ancestrais, os laços (no intuito de que as palavras não se rompam, não se quebrem ou não gaguejem), ele pode dar livre curso a suas lembranças que constroem uma imagem e até mesmo uma estátua dele mesmo, como esta quase primeira lembrança na qual se vê pegando um machado no intuito de matar sua prima porque ela não o deixa ver a beleza das letras de seu livro escolar. O amor já presente pelas letras, pela língua e principalmente pelos livros e pela escrita...

Filiação real e filiação imaginária lhe permitem articular, em uma relação harmoniosa, línguas judias, línguas populares e línguas “literárias”.

Quevedo representa o espanhol mas é também por metonímia o judeu-espanhol, o jardim da infância e voz do avô. Shakespeare remete aos tempos felizes em Manchester, o pai é quem conferirá ao inglês o status de língua rainha. Em 1980, ele escreve:

Tudo que é inglês se tornava cada vez mais importante para mim, mas somente no plano da língua. Refiro-me pouco aos seres, mas as palavras me perturbam como se fossem as de uma língua perdida. Viver por lá continua me parecendo indispensável como se naquele local se tratasse de um dever imperativo para mim; mas talvez a língua bastasse. 38

Enfim, o alemão, a língua das línguas liga a mãe e o pai (o amor deles por Viena e pelo Burgtheater) à literatura alemã e austríaca no seu conjunto e bem precocemente instala Elias Canetti na evidência da língua alemã. Sonne restabelece a ligação entre as grandes figuras bíblicas que, por intermédio de Michelangelo, outrora haviam fascinado nosso autor. Ele os restitui a sua língua, a pesar de se tratar de uma tradução.

Duplo status das línguas do grandioso ao ilegítimo, do escrito ao oral, do papel a voz, do abstrato universal à tremida da singularidade, do domínio a gagueira. Duplo status, hesitação, oscilação retratadas na obra pela oposição à língua paranóica do presidente Schreber e a língua do louco em Auto-de-fé. Canetti consagra em Massa e poder um capítulo a paranóia do mais célebre dos pacientes de Freud. Ele se atém longamente às vozes e à língua ao fato de que tudo tem significado que o mundo é repleto de palavras. Um repleto-excesso de sentidos “A tendência mais extrema da paranóia talvez seja a apreensão total do mundo pelas palavras, como se a língua fosse um punho e o mundo fosse tomado por ele. Trata-se de um punho que não se reabre jamais” 39 O que provoca medo em Canetti é a hipercausalidade, a motivação que se estende a tudo, o sistema, a sobre-ligação. “Já que”, “tendo em vista portanto”, “a menos que”, “uma vez que” ligam as frases entre elas, uma verdadeira mania pela motivação, hiperdomínio, apesar de continuar imaginário. Sabemos que Canetti é permanentemente tentado, fascinado por este domínio, a imagem de Kein, que vive apenas e tão somente em função de sua biblioteca, seu saber abstrato, sua misantropia. No entanto, existe um outro personagem que passa desapercebido. O irmão de Kein, médico que passa da ginecologia à psiquiatria e que um dia se vê confrontado com uma espécie de louco (o gorila) que inventou uma língua para si:

Toda sílaba que ele emitia correspondia a um gesto preciso. Para os objetos as designações pareciam variadas. Mostrou a imagem uma centena de vezes e em cada vez a nomeou de uma forma diferente; os nomes dependiam do gesto pelo qual a imagem era mostrada. Produto, acompanhado pelo corpo inteirinho, não havia um som emitido com indiferença. 40

A língua neste caso é móvel, corporal, e a motivação é delicada, pragmática, gestual. As palavras mudam de sentido a cada momento, elas não são fixas. Existe uma ordem (o médico

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foi capaz de apreender a língua do louco) mas para conseguir, foi necessário elucidar o segredo das emoções do outro.

Esfregar-se no outro, na língua outra, estar entre as línguas, hesitar entre o domínio rígido e a gagueira, o tropeço. O segredo: desaprender, desfazer, deixar falar em si o eco das línguas perdidas ou esquecidas, se deixar penetrar por uma língua desconhecida.

Reiteradamente, Canetti evoca esta confrontação que a cada vez deixa traços profundos. Em Marrakesh o que o encanta são os proseadores cuja língua ele não compreende.

Uma substância maravilhosamente luminosa e refratária permanece em mim, expondo minhas palavras ao ridículo. Eu devia traduzir em mim pouco a pouco a língua de Marrakesh esta língua que eu não compreendia. Havia eventos, imagens, sons cujo sentido nos escapa de início; que não eram nem traduzidas nem definidas pelas palavras, e para além das palavras, eles são mais profundos e mais ambíguos do que elas. Eu sonho com um homem que teria desaprendido as línguas da terra até o ponto de não poder mais compreender em país algum o que ali se dizia. 41

Experiência similar anos antes, em Praga em 1937 em ocasião de uma manifestação camponesa. Ele fica fascinado pela palavra música em tcheco. Hudka. Ele a repete até se satisfazer. Em seguida as outras palavras, as sonoridades do tcheco acabam por encantá-lo e ele percorre a passos largos Praga, vida fascinante entre todas, completamente envolvida pelas palavras tchecas:

Errei completamente enfeitiçado de um quarteirão a outro [...] A violência com a qual as palavras tchecas me atingiam era ocasionada provavelmente pela lembrança do búlgaro ouvido em minha tenra infância. Entretanto, eu jamais havia pensado nisso, pois havia esquecido por completo o búlgaro e não saberia avaliar o que subsiste em nós realmente das línguas esquecidas. Certamente produziu-se uma aproximação, durante esta estadia em Praga, entre diversas coisas vividas em épocas distintas de minha vida. Notei sons eslavos como que fazendo parte de uma língua que me inexplicavelmente próxima. No entanto, eu pessoalmente falava alemão e nenhuma outra... 42

Em Marrakesh, Canetti não mais relacionará o berbere com a infância, com o que havia escutado outrora. Uma simples menção ao avô bastará, por analogia, para além da diferença das línguas. Em Praga, o charme do tcheco, da língua desconhecida que evoca o búlgaro. Uma língua por uma outra. Nesta mesma estadia em Praga, o jovem escritor que o havia convidado leva-o para visitar a cidade e depois o deixa continuar sozinho seu passeio, sentindo que este seria o desejo secreto de Canetti:

Ele compreendeu o quanto eu me esforçava para escutar sozinho os seres, os diversos seres, se exprimindo em uma língua desconhecida para mim sem que suas palavras me fossem logo em seguida traduzidas. Isso deve ter sido algo novo para ele, ver alguém se aproximar pelas repercussões das palavras incompreendidas, um fenômeno completamente singular... 43

Em Marrakesh em 1953 como em Praga em 1937, algo se coloca no lugar, do opaco, do escondido, sob a condição de não ser traduzido. Ainda que o alemão fosse a língua suprema na qual tudo se traduzia, Shakespeare, a Bíblia e inclusive a lembrança das canções de ninar em búlgaro, a língua portanto da inteligibilidade, o berbere ou o tcheco deviam permanecer não traduzíveis, estranhos, apenas sonoridades, uma corrente falada, cantada sem segmentação recuperável. O fantasma de uma língua a ser mantida no desconhecimento ( a exemplo do hebreu que permanecerá assim até o fim) como a sombra da língua é forte o

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bastante que o fará dar espaço a toda espécie de desenvolvimento nas coletâneas de jornais, aforismos e reflexões os quais Canetti publicará depois da guerra. Um desdobramento de enunciados ao redor da língua, tendo por núcleo esta necessidade de colocar uma língua em contato com uma outra, fazer surgir a sobra neste caso, de esquecê-la. Alguns exemplos recolhidos em O território do homem, A consciência das palavras, O coração secreto do relógio. “Como eu gostaria de me escutar como se eu fosse um estrangeiro sem me reconhecer e somente mais tarde ficar sabendo que se tratava de mim.” 44

Manual de esquecimento das línguas

Viva em um país onde todos os nomes são desconhecidos. 46

Eu jamais poderia viver em uma única língua. Se eu sou tão profundamente apaixonado pelo alemão, é porque ele me permite sempre sentir ao mesmo tempo uma outra língua. É justo dizer que eu a sinto, pois eu não estou de forma alguma consciente disso. Entretanto, fico alegremente transtornado quando me deparo com algo que a traga a superfície. 47

Ele se perde em sua própria verbosidade. É a sua própria verborragia e isso se assemelha a uma língua desconhecida. 48

Admiração sim mas não na língua com a qual se escreve: na dos outros. 49

Só acredite naqueles dos quais você compreenda a língua. 50

O lado estranho da palavra alemã “Atem” – o sopro – como se ela pertencesse a uma outra língua. Há algo de egípcio, hindu e mais do que isso uma ressonância de língua primitiva. 51

Esta língua outra, a sombra, o eco, a ressonância, a reminiscência de uma língua outra a qual nunca se poderá atingir no entanto figura no horizonte, metaforicamente Canetti a havia evocado no início de sua autobiografia. Trata-se do episódio no qual o pequenino, na Inglaterra, fala com o papel de parede:

De fato eu brincava pouco, com freqüência falava com o papel de parede. Os inumeráveis círculos escuros que se estendiam acima de mim me pareciam personagens. Eu inventava histórias nas quais eles interviam, ora como ouvintes, ora como atores; eu não os deixava e podia me entreter com eles por horas. Quando a governanta saia com meus dois irmãozinhos, me dispunha a ficar só com meus personagens; eu realmente preferia a companhia deles a de meus irmãos [...] Um dos círculos, disposto em um local determinado, me contradizia com uma veemência particular e não se tratava de uma vitória qualquer quando eu conseguia convencê-lo a ficar do meu lado [...] habituei-me a contar minhas histórias em silêncio, apesar de meus irmãozinhos estarem no quarto [...] Na presença da governanta o papel de parede ficava mudo. 52

Com relação a isso, Canetti tem ilustres predecessores e contemporâneos, de Proust a Sartre. Recordemos a célebre passagem de Proust:

Para me distrair nas noites em que me julgavam muito infeliz, haviam inventado de me dar uma lanterna mágica, com a qual cobriam minha lâmpada, enquanto esperávamos a hora de jantar; e, à maneira dos primeiros arquitetos e mestres vidraceiros da era gótica, a lanterna substituía a opacidade das paredes por irisações impalpáveis, aparições sobrenaturais multicores, onde eram pintadas legendas como num vitral vacilante e

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instantâneo. Porém isso fazia aumentar ainda mais a minha tristeza, pois a mudança de iluminação destruía o hábito do meu quarto, graças ao qual, salvo o suplício de me deitar, ele se me tornava suportável. Agora, não o reconhecia mais e sentia-me inquieto, como num quarto de hotel ou de um chalé, ao qual tivesse chegado pela primeira vez ao descer de um trem. Ao passo sacudido de seu cavalo, Golo, cheio de um desígnio atroz, saía da pequena floresta triangular que aveludava de um verde sombrio a encosta de uma colina, e avançava, aos solavancos, para o castelo da infeliz Geneviève de Brabant. 53

Parece-me no entanto que estes inumeráveis círculos escuros eram de uma outra ordem. Eles eram abstratos, eles eram falados ao mesmo tempo em que falavam. Eram convocados e desapareciam por conta própria. Conferindo-lhe o sentido que desejamos. Eles representam simultaneamente as palavras e as coisas, a língua e os personagens de suas histórias. Eles antecedem Babel, na não-divisão, o país no qual as palavras são de todas as línguas sem pertencerem a nenhuma, no qual as palavras eram geladas. Elas permanecem intactas, autênticas sem jamais poderem ser usadas. Elas são de um país onde as palavras não podem ser quebradas.

Do alemão ao hebreu, do judeu-espanhol ao espanhol, do inglês ao francês, ou no dialeto suisso-alemão, as línguas se escondem, mostram suas próprias falhas. Nostalgia de um ferimento da língua por parte de um grande escritor que sempre respirou no e pelo alemão?

Língua perdida, não traduzida, desconhecida, primitiva, Canetti a reencontraria sem se dar conta disso, um pensamento místico, uma espécie de Cabala, um poder secreto dos nomes? Há, ele notou, uma etimologia pessoal que passa pelos nomes, muito mais pelo significante do que pelo significado, pela ladainha, pelo prosódico. Acima observamos como ele havia redigido listas com nomes em alemão durante a guerra. Em 1976, retoma este problema se apegando a língua de sua infância. “Sem a ‘Colchide’ Medée não teria valido para mim” 54 afirmou. Evoca uma lista pelo prazer da sonoridade:

A. Rustchuk, a palavra “Stambol”, o termo designando as plantas: calabazas, merengenas, manzanas; criatura (criança), mancebo, Hermano, lazon; fuego (fogo), mañana, entonces, culebra (serpente), gallina (galinha, palavra que me fez amar posteriormente os gauleses), zinganas (ciganos)Nomes: Aftalion, Rosanis, posteriormente Adjubel.Um dos nomes de desdém de meu avô era “corredór” (designa alguém que apenas e tão-somente erra sem se fixar em parte alguma). Ele pronunciava de tal forma com desprezo que a palavra por si-só, a mobilidade que implicava, e os seres vivos em um movimento perpétuo me fascinaram rapidamente. Bem que eu gostaria de ter-me tornado um “corredor”, mas acabei por não ousá-lo. 55

Quando da entrega do prêmio Nobel em 1981, Canetti pode ser aclamado (e muitos países não se equivocaram em fazê-lo) por um número incalculável de países. Por muito tempo ele viajou com o passaporte turco, ele havia sido búlgaro. A Espanha poderia reivindicá-lo, apesar de ter expulsado em um passado longínquo seus ancestrais, a Grã-Bretanha o acolheu na emigração, a Suíça tinha a honra de sua presença (residiu em Zurique até o final de sua vida). Os países de língua germânica sentiam que se tratava de um dos seus e isto apesar da catastrófica prova da última guerra. Ele verdadeiramente não se sentia de lugar algum, produto final de uma longa odisséia, sabendo da existência do documento de identidade e da identidade do documento. Sentia que além da língua de seus mestres, de sua filiação imaginária, Karl Krauss, Kafka, Hermann Broch, sua verdadeira língua, a língua verdadeira, a da falta, da margem, a que impede o preenchimento, a encarnação, a que deixa em aberto a espera

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messiânica e que ao mesmo tempo que figuralisa a não-separação é a dos inumeráveis círculos escuros que outrora ornaram o papel de parede de seu quarto.

Notas:1. Para Canetti não se trata de língua iídiche, mas sim do judeu-espanhol ou ladino. Este

último no entanto carrega igualmente o status de um jargão, de uma semi-língua, de uma língua pária ilegítima. O problema se apresenta da mesma forma ao que acontece com o iídiche, ou seja, há a necessidade de se posicionar a distância dessa língua.

2. M. Schneider, “Elias Canetti : la défusion des langues”, (em tradução literal para o português: Elias Canetti: a desfusão das línguas), Le temps de la réflexion, 1981, t II, p. 385.

3. E. Canetti, Histoire d'une jeunesse. La langue sauvée. (Traduzido no Brasil: História de uma juventude. A língua absolvida. Enquanto em Portugal o título é A língua posta a salvo.

4. Ibid, p. 8.5. E. Canetti; La conscience des mots (A consciência das palavras), Albin Michel, 1984, p.

205.6. Ibid, p. 205.7. E. Canetti, Le coeur secret de l'horloge (O coração secreto do relógio), Paris, Albin

Michel, 1989, p. 189.8. Id., Le territoire de l'homme (Tradução literal para o português: O território do homem),

Paris, Albin Michel, 1978, p. 141)9. Id., Le témoin auriculaire, op cit, p. 66.10. Id., La langue sauvée (A língua absolvida), op. cit. p. 66.11. Id., Jeux de regard (O jogo dos olhos) p. 336.12. Id., Histoire d'une vie. Le flambeau dans l'oreille (Uma luz em meu ouvido) p. 108.13. Id., La langue sauvée, op. Cit., p. 17.14. Id., Le Flambeau dans l'oreille (Uma luz em meu ouvido) op. Cit., p. 215.15. E. Canetti, La langue sauvée, op. Cit., p. 61.16. Ibid, p. 39.17. Ibid., p. 102-104.18. Ibid., p. 107.19. Ibid., p. 113.20. E. Canetti, Le Territoire de l'homme, op. Cit., 1978, p. 78.21. E. Canetti; La conscience des mots (A consciência das palavras), Albin Michel, 1984, p.

203.22. Id., Jeux de regard (O jogo dos olhos), op. Cit., p. 339.23. Id., La langue sauvée, op. Cit., p. 345.24. E. Canetti, Le Flambeau dans l'oreille (Uma luz em meu ouvido), op. Cit, p.110.25. E. Canetti, Jeux de regard, p. 145. Fui eu quem sublinhou.26. Id., La langue sauvée, op. Cit, p. 345.27. Ibid, p. 80.28. Ivid, p. 134.29. Ibid, p. 205.30. Ibid, p. 205.31. Trata-se do momento em que a mãe e os irmãos instalados em Viena após 1913. Prima-

se pelo alemão e observa-se também o judeu-espanhol da infância, o inglês e sem

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dúvida alguma o francês que se tornará para Georges, um dos irmãos de Elias, sua língua da mesma maneira que o alemão se tornou para Elias.

32. Ibid, p. 128-129.33. E. Canetti, jeux de regard (O jogo dos olhos), op. Cit., p. 338-339.34. E. Canetti, Les Voix de Marrakech (As vozes de Marrakesh), Paris, Livre de Poche,

1980, p. 91, sublinhado por mim.35. Ibid, p. 27.36. E. Canetti, La langue sauvée, op. Cit, p. 130.37. E. Canetti, Jeux de regard, op. Cit., p. 337-338.38. E. Canetti, Le coeur secret de l’horloge, Paris, Albin Michel, 1987, p. 104.39. E. Canetti, Masse et puissance, (Massa e poder) Paris, Gallimard, 1966, p. 480.40. E. Canetti, Auto da fé (Auto-de-fé), Paris, Gallimard, 1969, p. 484.41. E. Canetti, Les Voix de Marrakech (As vozes de Marrakesh), op cit., p. 27.42. E. Canetti, Jeux de regard, op. Cit, p. 311-312.43. Ibid, p. 313.44. E. Canetti, Le Territoire de l’homme (O Território do homem), op. Cit, p. 136.45. E. Canetti, Le coeur secret de l’horloge, op. Cit., p. 33.46. Ibid.47. Ibid48. Ibid49. Ibid50. Ibid51. Ibid52. E. Canetti, La langue sauvée, op. Cit., p. 58.53. M. Proust, À La recherche Du temps perdu, Paris, Gallimard, “Bibliotèque de La

Plêiade”, t1, p. 9.54. E. Canetti, Le coeur secret de l’horloge, op. Cit, p. 48.55. Ibid, p. 49-50.