um debate sobre o conhecimento de deus. job 32-37

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67 didaskalia xxxvi (2006)1. 67-83 Perguntas «dominantes» a Job 32–37 Palavras originais ou ulteriores? Absorta no movimento da Literarkritik, intensamente focalizado na reconstru- ção histórica-literária do texto bíblico, a pergunta dominante versou claramente sobre a relação de pertença entre palavra-autor. Foi nela que se situaram até aos dias de hoje a maioria dos autores: «são as palavras expressas nos ‘Discursos de Elihu’ originais do autor do livro de Job ou apenas palavras ulteriores, as primeiras de uma série infinita?». 2 Esta pergunta provocou direcções de investigação múltiplas, a grande maioria intensamente repetitiva, das quais se destacam algumas sinceramen- te inovadoras e outras liminarmente alucinantes. São um exemplo as primeiras ten- tativas de uma critica literária objectiva realizadas por H. H. Nichols, Jr. Jastrow e W.A. Irwin, 3 os estudos de incidência filológica realizados por N. H. Tur-Sinai, 1 Este artigo constitui uma introdução breve ao trabalho de investigação (tese) apresentado nas provas de doutoramento, em Outubro de 2005, e em fase de preparação para a sua publicação. 2 Cf. L. Alonso Schökel – J.L. Sicre Diaz, Job. Comentario teológico y literario (Madrid 1983); M. Witte, “Noch ein- mal: Seit wann gelten die Elihureden im Hiobbuch (Kap. 32–37)?“, Biblische Notizen 67 (1993) 20-25; G. Borgonovo, La notte e il suo sole. Luce e tenebre nel libro di Giobbe. Analisi simbolica (Roma 1995). 3 Cf. H.H. Nichols, “The Composition of Elihu Speeches”, AJSL 27 (1911) 97-186; M. Jr. Jastrow, The Book of Job. Its Origin, Growth and Interpretation with a New Translation based on a revised Text (Philadelphia, PA 1920) 314-342; W.A. Irwin, “The Elihu Speeches in the Criticism of the Book of Job”, JR 17 (1937) 37-47. Um debate sobre o conhecimento de Deus Composição e interpretação de Jb 32–37 1 Luísa Maria Varela Almendra Faculdade de Teologia (UCP) – Lisboa

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Artigo da prof. da Faculdade de Teologia (UCP) – Lisboa, Luísa Maria Varela Almendra

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  • 67didaskalia xxxvi (2006)1. 67-83

    Perguntas dominantes a Job 3237

    Palavras originais ou ulteriores?

    Absorta no movimento da Literarkritik, intensamente focalizado na reconstru-o histrica-literria do texto bblico, a pergunta dominante versou claramentesobre a relao de pertena entre palavra-autor. Foi nela que se situaram at aos diasde hoje a maioria dos autores: so as palavras expressas nos Discursos de Elihuoriginais do autor do livro de Job ou apenas palavras ulteriores, as primeiras de umasrie infinita?.2 Esta pergunta provocou direces de investigao mltiplas, agrande maioria intensamente repetitiva, das quais se destacam algumas sinceramen-te inovadoras e outras liminarmente alucinantes. So um exemplo as primeiras ten-tativas de uma critica literria objectiva realizadas por H. H. Nichols, Jr. Jastrow e W.A. Irwin,3 os estudos de incidncia filolgica realizados por N. H. Tur-Sinai,

    1 Este artigo constitui uma introduo breve ao trabalho de investigao (tese) apresentado nas provas de doutoramento,em Outubro de 2005, e em fase de preparao para a sua publicao.

    2 Cf. L. Alonso Schkel J.L. Sicre Diaz, Job. Comentario teolgico y literario (Madrid 1983); M. Witte, Noch ein-mal: Seit wann gelten die Elihureden im Hiobbuch (Kap. 3237)?, Biblische Notizen 67 (1993) 20-25; G. Borgonovo, Lanotte e il suo sole. Luce e tenebre nel libro di Giobbe. Analisi simbolica (Roma 1995).

    3 Cf. H.H. Nichols, The Composition of Elihu Speeches, AJSL 27 (1911) 97-186; M. Jr. Jastrow, The Book of Job.Its Origin, Growth and Interpretation with a New Translation based on a revised Text (Philadelphia, PA 1920) 314-342; W.A.Irwin, The Elihu Speeches in the Criticism of the Book of Job, JR 17 (1937) 37-47.

    Um debate sobre o conhecimento de DeusComposio e interpretao de Jb 32371

    Lusa Maria Varela AlmendraFaculdade de Teologia (UCP) Lisboa

  • 68 lusa maria varela almendra

    A. Guillaume e M. Dahood, a procura de uma estrutura formal desenvolvida por G. Fohrer e C. Westermann4 e os primeiros ensaios sobre uma relao entre os dis-cursos de Elihu e a seco potica, abordada por D.F. Freedman, G.W. Martin e R.Gordis.5 De um modo geral, todos estes estudos negaram a originalidade dos dis-cursos de Elihu, insistindo na sua adio tardia. Esta atitude persistiu nos estudosrecentes de V. Maag e de Th. Mende e H.M. Wahl, que levaram praticamente at exausto as hipteses de uma histria de redaco e composio destes discursos,6

    que muitos ousam contrariar, numa defesa acrrima da originalidade dos discursosde Elihu, da sua homogeneidade, pertena e lugar no desenvolvimento do dramado livro.7

    Palavras escusadas ou de sabedoria?

    A afirmao de uma redaco e integrao tardia dos discursos de Elihu arras-tou consigo a questo da oportunidade e da natureza das suas palavras. Alguns au-tores limitaram-se a considerar estes discursos como um conjunto de palavras de su-perioridade e artificialidade, escusadas e sem inspirao, que ningum escuta,porque apenas instigadoras de uma f estril.8 Outros preferiram sublinhar a sua di-menso sapiencial, que alguns utilizam como mera confirmao do seu perodo deredaco.9 Neste contexto, destacam-se com um especial relevo os estudos recentesde K. Dell e C. Newsom.10 O primeiro, extremamente crtico em relao dimen-so sapiencial do livro de Job, que afirma s poder ser considerado um livro sapien-cial num sentido muito geral; o segundo, um grande defensor das caractersticas sa-

    4 Cf. C. Westermann, Der Aufbau des Buches Hiob (BHT 23; Tbingen 1956-21977) 139-148; G. Fohrer, DieWeisheit des Elihu (Hi 32-37), AfO 19 (1959) 83-94.

    5 Cf. D.F. Freedman, The Elihu Speeches in the Book of Job: A Hypothetical Episode in the Literary History of theWork, HTR 61 (1968) 51-59; G.W. Martin, Elihu and the Third Cycle in the Book of Job (Ann Arbor 1973) 100-107; R.Gor-dis, The Book of God and Man. A Study of Job (Chicago 1965) 105-115.

    6 Cf. V. Maag, Hiob: Wandlung und Verarbeitung des Problems in Novelle, Dialogdichtung und Sptfassungen (FRLANT128; Gttingen 1982); Th. Mende, Leiden Zur Vollendung. Die Elihureden Im Buch Ijob (Ijob 32-37) (TTS 49; Trier 1990)406; H.-M. Wahl, Der Gerechte Schpfer: Eine Redaktions-und Theologiegeschichtliche Untersuchung der Elihureden Hiob 32-37 (BZAW 207; Berlin New Yrok 1993); e ainda J. Vermeylen, Pour justifier mon Crateur, Gott und Mensch im Dialog ,FS O. Kaiser (ed. M. Witte) (New York, NY 2005).

    7 Cf. entre os mais significativos N.C. HABEL, The Book of Job (London 1985) 36; J.G. JANZEN, Job (Atlanta, GA 1985)217-218; D. WOLFERS, Deep Things Out of the Darkness. The Book of Job (Grand Rapids, MI 1995) 65-66; L.J. WATERS TheAuthenticity of the Elihu Speeches in Job 3237 , BS (1999) 28-41.

    8 Cf. entre outros S.R. DRIVER G.B. GRAY, A Critical and Exegetical Commentary on the Book of Job (Edinburgh_1921-_1977) xl-xll; J. LVQUE, Job et son Dieu Essai d'exgse et de thologie biblique, I-II (Paris 1970) 538-544; J.B. CUTIS,Why were the Elihu Speeches added to the Book of Job, Eastern Great Lakes and Midwest Biblical Societies Proceedings 8(1988) 93-99; L.G. PERDUE, Wisdom in Revolt: Metaphorical Theology in the Book of Job (Sheffield 1991) 68; H. VIVIERS,Elihu 3237, Garrulous but Poor Rhetor? Why is he ingnored , The Rhetorical Analysis of Scripture (JSNT Sup 146; London1997) 137-153.

    9 Cf. A. WEISER, Das Buch Hiob (Gttinger 1951-21956); C. WESTERMANN, Der Aufbau des Buches Hiob (Tbingen1956-21977); G. FOHRER, Das Buch Hiob (Gtersloher 1963-_1989); TH. MENDE, Durch Leiden Zur Vollendung. Die Elihure-den Im Buch Ijob (Ijob 32-37) (Trier 1990).

    10 Cf. C.A. NEWSOM, Elihus Sapiential Hymn (Job 36.24-37.13). Genre, Rhetoric and Moral Imagination, Relating tothe Text. Interdisciplinary and Form-Critical Insights on the Bible (eds. T.J. SANDOVAL C. MANDOLFO) (Sheffield 2003) 211; K. DELL, The Book of Job as Sceptical Literature,( New York 1991) 66-107.

  • 69um debate sobre o conhecimento de deus

    pienciais dos discursos de Elihu.11 O debate iniciado por estes dois estudos consti-tui um passo significativo em relao simples reduo destes discursos a palavrasarticuladas por uma faco da tradio sapiencial, que reconhecia as limitaes co-locadas por Deus compreenso humana.12 A valorizao sapiencial dos caps.3237 representa um momento importante de um debate que clama por outrasquestes dominantes, capazes de romper os comportamento estranhos e esquivosdos que, no querendo tomar posio, decidem ignorar simplesmente os captulos3237.13 Neste advir ocorre citar os estudos de N. C. Habel e de K. Engljhringer,representantes significativos de uma viragem na direco texto-leitor. O primeiro,determinado em evidenciar o papel que os discursos desenvolvem no drama dolivro de Job;14 o segundo, obstinado numa compreenso das estruturas de comuni-cao e das figuras de retrica, guias fundamentais de uma interpretao onde a si-tuao concreta de dor extrema se torna um verdadeiro paradigma de teologia.15 no encalo destes novos horizontes que se inscreve uma Anlise Retrica Bblica doscaps. 3237.

    A resposta de uma Anlise Retrica Bblica

    Inscrito nos horizontes novos da exegese moderna, a anlise retrica bblicaapresenta-se como um caminho promissor.16 Seduz-me a sua dedicada submisso (P)palavra, que se oferece em construes e relaes literrias, quase sempre com-plexas e difceis. O seu percurso traa-se numa anlise que se prope como umaetapa do estudo exegtico de um texto bblico. Esta etapa no dispensa em absoluto oscontributos da crtica textual, do estudo lexicogrfico e gramatical, ou at mesmoda contextualizao histrica, social e religiosa.17 A sua novidade distingue-se na re-lao intrnseca e objectiva que esta etapa procura estabelecer entre composio einterpretao.18 O passo determinante encontrar a composio do texto, funda-mento inequvoco de uma compreenso e interpretao objectiva e coerente.

    A configurao dos caps. 3237 como uma seco bem definida, no interiordo Livro de Job, bem como a sua diviso interna em quatro poemas, bem delimita-dos pela afirmao tcnica Respondeu Elihu dizendo (32,6; 34,1; 35,1; 36,1),

    11 So dignos de nota os seus comparativos com algumas partes do livro de Sirac (Sir 42,1543,33).12 Cf. B.S. CHILDS, Introduction to the Old Testament as Scripture (Philadelphia, PA 1979) 541.13 o caso do estudo de H.-P. MLLER, Das Hiobproblem: seine Stellung und Entstehung im Alten Orient und im Alten Tes-

    tament (Darmstadt, 1978); M. GILBERT, Les cinq livres des Sages (Paris 2003).14 Cf. N.C. HABEL, The Book of Job. A Commentary (London 1985) 79-81. 15 Cf. K. ENGLJHRINGER, Theologie im Streitgesprch. Studien zur Dynamik der Dialoge des Buches Ijob (Stuttgart

    2003) 202.16 Cf. PONTIFCIA COMISSO BBLICA, A interpretao da Bblia na Igreja (Lisboa 1993) 37-39.17 Cf. R. MEYNET, Rhetorical Analysis. An Introduction to Biblical Rhetoric (JSOTSS 256; Sheffield 1998) 309.18 Cf. R. MEYNET, Un nuovo metodo per comprendere la Bibbia: L'analisi retorica, CivCatt 3 (1994) 121.

  • 70 lusa maria varela almendra

    foi desde sempre unanimemente reconhecida. Estes quatro poemas correspondems quatro sequncias que parecem caracterizar a composio geral da seco dosDiscursos de Elihu. Situa-se aqui o trabalho mais moroso e intrincado, nomeada-mente a identificao de cada parte, passagem e sequncia, numa re-escritura noabsoluto respeito pela disposio morfolgica e sintctica do texto original hebrai-co, onde a configurao final confirmada pela sua coerncia com o nvel superior.Proponho como exemplo demonstrativo uma viso muito rpida da anlise da pri-meira passagem da primeira sequncia (Jb 32,6b-22):

    19 Omite-se aqui o estudo filolgico e lexicogrfico, a anlise feita na identificao da composio dos segmentos, trechose partes, que antecede e prepara a composio final da passagem, que s encontra a sua confirmao definitiva, depois de anali-sadas as outras passagens que compem a sequncia. a isto aquilo que chamo a confirmao com o nvel superior. Suprimiu-se ainda um estudo comparativo com outras propostas de composio. Para todos estes aspectos remetemos o interessado para areferida tese tese a ser oportunamente publicada.

    32,6b Eu sou jovem em dias e vs idosos,por isso hesitei e tive medo de expor-vos o meu conhecimento.

    7 Eu dizia: Que falem os dias e os muitos anos dem a conhecer a sabedoria.

    8 Porm, () O ESPRITO-ela, no ser humano, O sopro de Shaddai, que faz compreender.9 No os que so muito so sbios, nem os idosos compreendem o julgamento.

    32,10 Por isso eu digo: Escuta-me, tambm eu quero expor o meu conhecimento11 Vede! Esperei pelo vosso falar escutei as vossas razes,

    enquanto procurveis palavras.12 Tentei compreender-vos, mas eis (que) no existe um censor para Job,

    nenhum de vs responde ao seu discursar.

    13 No digais portanto: Encontrmos a sabedoria; (s) DEUS pode refut-lo, no um homem.

    14 Ele no dirigiu contra mim palavras, no lhe retribuirei com o vosso discursar.15 Desconcertados, j no respondem, foram removidas deles as palavras.16 Devo esperar, porque no falam, porque permanecem e j no respondem?

    32,17 Responderei, tambm eu a minha parte, tambm eu quero expor o meu conhecimento,18 porque estou cheio de palavras; pressiona-me O ESPIRITO no meu interior.

    19 V! O meu interior () como vinho que no foi aberto, como odres novos a rebentar.20 Falarei e que exista um espao para mim, abrirei os meus lbios e responderei.

    21 No darei preferncia a um homem, e a um humano no darei ttulo,22 porque no sei dar ttulos de imediato me eliminaria o meu Criador.

    A passagem (32,6b-22) aparece dividida em trs partes, unidas pela repetiodo desejo que Elihu tem de expor o seu conhecimento.19 A expresso wayyiaani lh ben-barakel habbz wayyo-mar (Respondeu Elihu, filho de Barak de Bz,

  • 71um debate sobre o conhecimento de deus

    dizendo 32,6a) delimita o incio da primeira passagem (32,6b). O fim (32,22) marcado pelo aparecimento em 33,1 da conjuno wela-m (contudo) que, asso-ciado repetio da raiz hebraica sm (escutar), sugere a presena de uma novaunidade. Um dos aspectos mais significativos na composio desta passagem a re-petio conjunta dos verbos h.wh (expor) e yd (conhecer) (32,6e.10.17b), sob aqual se decide a diviso desta passagem em trs partes: 32,6b-9.10-16.17-22. Estadiviso aparece confirmada por uma articulao temtica, que coloca nos extremosa referncia ao Esprito e no centro Deus. O resultado uma composio de tipoaba: (A) o Esprito (rah.) que faz compreender (32,6b-9); (B) s Deus (i

    -l) podevencer, no um homem (32,10-16); (A) pressiona-me o Esprito (rah.) no meu in-terior (32,17-22). A relao entre as duas partes extremas (32,6b-9 e 17-22) eviden-te na repetio da expresso expor o meu conhecimento (32,6d.17b), que na pri-meira parte (32,6b-9) aparee associada aos verbos temer e hesitar (32,6c) e naultima (32,17-22) determinao de responder. O verbo falar une tambmestas duas partes: na primeira (32,6b-9) como uma oportunidade dada aos anciose na ultima (32,17-22) como uma deciso de Elihu. Um outro aspecto relevante areferncia ao Esprito, descrito na primeira parte como aquele que faz compreen-der (32,8) e na segunda como aquele que pressiona e vigia a imparcialidade deElihu (32,18.22). A disposio retrica destes elementos estabelece uma relao es-treita entre o desejo que Elihu tem de expor o seu conhecimento responder a Job e o impulso do Esprito. A parte central (32,10-16) liga-se s duas partes extremas(32,6b-9 e 17-22) pela repetio da expresso expor o meu conhecimento(32,10). O desejo que Elihu tem de falar (32,11.16) cria uma forte oposio ao si-lncio dos ancios, sugerindo uma estrutura concntrica de trs partes: (a) a opor-tunidade dada aos ancios de falar (32,6b-9); (b) o silncio dos ancios (32,10-16);(a) a determinao de Elihu em falar (32,17-22). No centro (32,13), o silncio dosancios ope-se referncia explcita a Deus, declarado como o nico capaz devencer/contestar Job. Esta referncia forma um paralelismo muito curioso com adeclarao do poder singular do Esprito no ser humano (32,8), que pressionaElihu a falar (32,18), sugerindo uma relao extraordinria entre o Esprito, Elihu eDeus sob a qual Elihu legitima a sua deciso de responder a Job. Esta referncia sin-gular a Deus (32,13) e ao Esprito (32,6b-9/17-22) confirma a configurao retri-ca da passagem numa composio tripartida de tipo ABA, onde a sabedoria e a ca-pacidade de responder a Job uma particularidade de Deus, oferecida ao serhumano / Elihu atravs do Esprito.

    Numa contextualizao bblica, o desejo que Elihu tem de expor o seu conheci-mento revela um pensamento marcadamente sapiencial, que v no sbio um homemque irradia conhecimento da sua lngua e dos seus lbios (Pr 15,2.7; Qo 12,9). Estepensamento incorporou na figura do sbio a capacidade de comunicar um conheci-

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    mento que pertence unicamente a Deus e que Ele d de sua livre vontade quelesque o temem (Pr 2,6; Qo 2,26). Ao insinuar-se como algum que deseja expor oseu conhecimento, Elihu assume o papel do sbio tal como era tradicionalmentevisto em Israel: aumentar o saber com lbios ricos de experincia e de conselho (Pr16,21.23; Jr 18,18), criar capacidade de resposta ao ultraje e saber discutir com oestulto (Pr 27,11; 29,9; Jb 15,2). Curiosamente, Elihu manifesta algo de singular,assinalado ao nvel morfolgico, no uso do termo de-, o qual evidencia uma distin-o entre o seu conhecimento (de-) e um conhecimento (daat) tradicionalmenteconsiderado como uma prerrogativa da sabedoria dos anos (Pr 2,5; 8,12; 9,10). Oque Elihu deseja expor no em absoluto um conhecimento da tradio, permane-cendo no entanto, um conhecimento que se realiza num mbito sapiencial, talcomo deixa assinalado na referncia sabedoria (h.okm) e ao entendimento(byn) (32,7b-9).

    Num primeiro esboo de interpretao, verifica-se que Elihu no nega o valor datradio, admite-o e d-lhe um lugar de relevo, colocando-a no centro da primeiraparte da passagem (32,7). No entanto, ao submet-la surpreendentemente superi-oridade do Esprito, nega-lhe a sua absoluta exclusividade (32,8-9).20 A sabedoriano em absoluto um apangio dos muitos anos, mas sobretudo um dom do Esp-rito, dado a todo o ser humano. Nesta declarao, Elihu sobrepe tradio domais velho a tradio que atribua ao Esprito a capacidade de entendimento e desabedoria (Ex 31,3), de profetizar (Nm 11,26-30) e de liderar (Nm 27,18), dandoa esta a precedncia sobre a primeira. Ao faz-lo demarca-se de Job e dos amigos,enredados num saber confinado aos que tm muitos dias. A sabedoria no perten-a absoluta dos muitos anos de vida, como a tradio o tinha imposto, mas um Es-prito de entendimento possvel a todos.21 Elihu sabe que no um escolhido, oualgum a quem os intervenientes chamaram para intervir no debate; basta-lhe a cer-teza da aco do Esprito no ser humano (32,8) e em si (32,18-19). Esta , em rela-o angstia de Job e s defesas dos amigos, a sua nica garantia de serenidade,imparcialidade e de no acomodao ao pensamento de outros ou da tradio(32,20-22). A oportunidade que Elihu diz ter dado aos amigos de responder a Job,e neles tradio das geraes passadas, surge cheia de ironia (32,11-12). A nfaseque Elihu coloca na incapacidade de resposta dos amigos a Job (32,12) e no seu si-lncio demissionrio (32,15-16) surpreendente. A sua concentrao momentneanos amigos e a sua expresso No digais ter encontrado a sabedoria! (5,27; 8,8;

    20 Sobre a aluso ao Esprito como uma inspirao particular ou como um conhecimento cf. J.W. MCKAY, Elihu. A Proto-Charismatic?, ExpTim 90 (1978) 168; A de WILDE, Das Buch Hiob (Leiden 1981) 311.

    21 Cf. as figuras bblicas de Samuel (1Sm 3), de Daniel (Dn 1-13), e o Sl 119,99-100 onde se declara que a meditao e aobedincia Torah do ao que fala um entendimento maior que o dos mestres ou at mesmo dos ancios. Neste sentido , porisso, muito redutor limitar as palavras de Elihu a um simples confronto com a tradio [cf. N.C. HABEL, Job (London 1985) 450].

  • 73um debate sobre o conhecimento de deus

    32,13) permitem entrever um contencioso declarado entre a sua posio e a dosamigos. Tudo quanto os ancios podem defender terem encontrado a tradio,mas no a sabedoria; essa s Deus conhece o caminho para ela (Jb 28,23). A sa-bedoria, entendida como a percepo prudente da realidade ensinada aos mais jo-vens pelos que mostravam possuir entendimento e experincia (Pr 1-7.10-31)surge, nas palavras de Elihu, personificada numa realidade ntima e acessvel s aDeus, como uma espcie de energia divina que s Deus possui em plenitude (Pr8,22; Jb 28,23).22 No entender de Elihu, a resposta s questes de Job requer estasabedoria suprema. E como s Deus conhece o caminho para ela (Jb 28), s Deus opode vencer, isto , s Deus lhe pode responder, no o ser humano (32,13).

    A composio de Jb 3337

    no mbito de um estudo acurado de cada parte, passagem e sequncia que oscaptulos 3237 emergem, no conjunto do livro de Job, como uma seco clara-mente definida e composta por quatro sequncias (A1 B1 B2 A2), cada uma dividi-da em trs passagens, com excepo da sequncia B2, composta por apenas umapassagem. Surpreendentemente, as sequncias extremas (A1 e A2) so assinaladasao nvel filolgico por uma concentrao intensa no tema do conhecimento, en-quanto as sequncias centrais privilegiam o tema da justia (B1 e B2). Tal como adinmica do texto o sublinha, esta concentrao em paralelo no uniforme. Nasequncia A1 (caps. 3233) o tema do conhecimento aparece nitidamente identifi-cado com o ensino da sabedoria, enquanto na sequncia A2 (caps. 3637) tomauma orientao clara para o temor de Deus. Esta caracterstica peculiar de repetiodo mesmo tema, numa tonalidade diferente, estende-se s duas sequncias centrais(B1 e B2). Na sequncia B1 a justia em debate incide essencialmente numa defesacerrada da certeza da justia divina, enquanto na sequncia B2 a justia em causa a exiguidade da justia de Job. Esta composio permite atribuir interveno deElihu uma estrutura em espelho:

    22 Job parece reconhecer esta inacessibilidade em 12,13; Pr 16,1;19,14;21,31).

    A1 O MEU CONHECIMENTO

    B1 A JUSTIA DE DEUS

    B2 A TUA JUSTIA HUMANA

    A2 O CONHECIMENTO DE DEUS

  • 74 lusa maria varela almendra

    A simetria entre as sequncias extremas

    As duas sequncias extremas (A1 32,6b-33,33 e A2 36,237,24) so ambascompostas por trs passagens que, ao nvel filolgico e temtico, apresentam umarelao particularmente significativa entre as passagens extremas, inicial (A1a) efinal (A2 a). A relao entre as duas sequncias extremas aparece sublinhada aonvel filolgico e temtico por uma forte correspondncia entre a primeira passa-gem da sequncia A1 (32,6b-22) e a ltima passagem da sequncia A2 (36, 26-37,24). Evidencia-se, em primeiro lugar, a repetio da raiz temer (yr), que abre efecha o grande discurso de Elihu, e a insistncia na raiz conhecer (yd ) e na raizcompreender (byn), que sublinham a atmosfera intensamente sapiencial em quese situa o grande discurso de Elihu. No incio Elihu fala do temor que o intimidadiante dos que so idosos, referindo-se certamente a um temor de respeito perante aexperincia e o conhecimento adquirido por aqueles que tinham vivido um maiornmero de dias (32,6b). Esta dimenso reforada pela sua associao com o verbohesitar (zh. l), que sublinha a circunspeco e prudncia com que Elihu entra nodebate: possudo por um temor (yr), mas tambm por um receio de confrontar oseu conhecimento com o conhecimento cristalizado da tradio. Surpreendente-mente a referncia ao temor aparece, de novo, no final do discurso. Porm, agora osujeito do temor (yr) no Elihu mas o prprio Deus, que temido com majesta-de pelos homens de corao (37,22.24).

    O autor realiza um salto curioso do temor dos ancios para o temor de Deus,mostrando que a sua verdadeira preocupao no a tradio, mas os fundamentosdesta tradio. No que respeita a temtica do conhecimento, num primeiro momen-to (A1a) Elihu fala do receio que tem de expor o seu conhecimento diante dos ancios(32,6b), repetindo a expresso mais duas vezes (32,10.17). Na ltima passagem dasequncia A2a, a dinmica do conhecimento centra-se na impossibilidade de conhe-cer Deus. Elihu declara a impossibilidade de conhecer Deus, porque Ele grande(36,26) e porque Ele realiza coisas que no conhecemos (37,5). No interior desta de-clarao, Elihu fala curiosamente de um selo, remetendo a possibilidade deste conhe-cimento para uma interveno exclusiva de Deus (37,7). Esta afirmao estabeleceuma incluso muito oportuna com a sua declarao de que s Deus pode respondera Job (32,13). As duas sequncias extremas (A1 e A2) aparecem ainda relacionadasna associao entre o desejo de responder e o de dar justia (32,17 / 36,2-4),entre as expresses ver com luz e temer sem ver (33,26-26 / 37,21-24), abrir osouvidos e instruir (33,16 / 36,10), atingindo um ponto crucial na oposio entreuma linguagem de acusao e a de louvor, e consequentemente entre a atitude de de-sespero e a de contemplao (33,9-11 / 36,24-25). Estas correspondncias oferecem relao entre as duas sequncias extremas a seguinte configurao temtica:

  • 75um debate sobre o conhecimento de deus

    As duas sequncias centrais (B1 34,2-37 e B2 35,2-16) apresentam uma compo-sio muito diversa: a primeira composta por trs passagens (34,2-15; 16-33; 34-37)e a segunda constituda por apenas uma (35,2-16). Esta diversidade superada poruma forte unidade filolgica e temtica, centrada no tema e vocabulrio da justia.

    A relao entre as duas sequncias centrais evidente na repetio dos termosrecompensa e proveito e do verbo dizer (mr), que aparece colocado numa re-lao estreita com a raiz s.dq (ser justo) e o termo direito (mispa-t.). A repetiodo verbo dizer orienta o debate para a declarao de Job Eu sou justo, mas Deusafasta o meu direito (34,5ab). Elihu situa esta afirmao estrategicamente entre aescolha que os sbios fazem do direito (34,3-4) e as imagens beber sarcasmocomo gua e andar em companhia de inquos, estabelecendo uma fronteira entreos que so sbios e Job (34,7-8). Enquanto os sbios procuram escolher o direito econhecer o que o bem, Job considera-se um justo e confina a questo da justiadivina equao de um proveito egocntrico (34,9). A meno a estas palavras deJob reaparece no incio da sequncia B2 (35,2-3). Porm, enquanto na sequncia

    Sequncia A1; passagem a (32,6b-22)

    6bEu sou jovem em dias e vs idosos,por isso hesitei e tive medo,de expor-vos o meu conhecimento.

    7 Eu dizia: Que falem os dias e os muitos anos dem a conhecer a sabedoria.

    8 Porm, () o Esprito-ela no ser humano,o Sopro de Shaddai, que faz compreender.

    9 No os que so muito so sbiosnem os ancios compreendem O JULGAMENTO.

    10 Por isso eu digo: ESCUTA-ME,tambm eu quero expor o meu conhecimento.

    11 Vede! Esperei pelos vossos discursos, dei ouvidos at s vossas razes...

    12 Tentei compreender-vos, e eis que no existe um censor para Job, nenhum de vs responde s suas palavras...

    17 Responderei, tambm eu a minha parte,tambm eu quero expor o meu conhecimento,

    18 porque estou cheio de palavras;pressiona-me o Esprito no meu interior.

    19 V! O meu interior como vinho por abrir, como odres novos prestes a rebentar.

    20 Falarei e que exista um espao para mim,abrirei os meus lbios e responderei...

    Sequncia A2: passagem a (36, 26-37, 24)

    26 V, Deus grande e ns no o conhecemos,o nmero dos seus anos sem clculo,...

    29 Sim! Quem compreende as extenses da nuvemnegra, os barulhos na sua tenda?...

    37,1 Tambm por esta, estremeceo meu corao e salta fora do peito.

    2 ESCUTAI! ESCUTAI o fragor da sua voze o estrondo que da sua boca sai

    5 Deus troveja com a sua voz maravilhosa,e realiza grandes coisas que no conhecemos

    7 Na mo de todo o ser humano ele coloca um selopara que conheam todos os homens a sua obra

    14 D ouvidos a isto Job, est atento e compreende as maravilhas de Deus

    15 Conheces tu quando Deus as coloca,e como faz brilhar a luz da sua nuvem?

    16 Conheces tu os movimentos da nuvem negrmaravilhas perfeitas de conhecimento

    22 Do norte vem o dourado,e Deus temido com majestade,

    23 A Shaddai no o encontramos...COM JUZO e muita justia, ele no responde.

    24 Por isso, o temem os homens,sem o ver todos os sbios de corao.

  • 76 lusa maria varela almendra

    B1 eles so um motivo importante para lanar uma defesa da justia de Deus(34,10-15), na sequncia B2 servem apenas para Elihu reduzir a justia de Job aoespao do humano (35,8). Esta dinmica reaparece no uso dos termos recompen-sa e proveito. Na sequncia B1 estes termos remetem para um contexto de defesada justia de Deus (34,10-15). Deus justo no s porque no pratica a maldadenem a iniquidade, mas porque recompensa o agir humano (34,10-11); a afirmaode Job de nada aproveita no tem qualquer fundamento (34,9). Na sequncia B2,quando Elihu retoma a questo do proveito, f-lo de novo estabelecendo um con-fronto entre a declarao de Job de possuir uma justia maior (35,2-3) e a sua lin-guagem absurda, que parece no entender a diferena de Deus (35, 5-7) nem reco-nhec-lo (35, 9-12). Enquanto Deus, na sua justia, sabe reconhecer erecompensar, Job reduz-se aos limites estreitos da sua compreenso humana; uma

    Sequncia B1: passagem a (34, 2-15)

    2 Escutai, sbios, as minhas palavras, e vs conhecedores, dai-me ouvidos!

    3 Porque o ouvido, as palavras examina, como a boca saboreia o alimento.

    4 O DIREITO escolhamos para ns, conheamos com os nossos olhos o que bem.

    5 Porque disse Job: Eu sou justo, mas Deus afasta o meu DIREITO.

    6 Contra o meu DIREITO passo-por-mentiroso;estou ferido com flechas, sem transgresso.

    7 Quem forte como Job, que bebe sarcasmo como gua,

    8 que faz estrada em companhia de inquos,andando com homens malvados?

    9 Porque ele disse: De nada APROVEITA ao geberser agradvel com Deus.

    10 Por isso, homens de corao, escutai-me! Longe de Deus a maldadee de Shaddai a injustia

    11 Pois, a obra do ser humano ele RECOMPENSA,e segundo o comportamento do homem faz favor.

    12 Na verdade, Deus no age como malvado,e Shaddai no entorta o DIREITO.

    13 Quem (lhe) confiou a terrae quem disps o mundo inteiro?

    14 Se dispusesse nele o seu corao,e o seu Esprito e o seu sopro ele tomasse,

    15 morreria toda a carne juntamentee o ser humano ao p retornaria.

    Sequncia B2 (35, 2-16)

    2 Isto pensas (ser) o DIREITO?dizer A minha justia maior que a de Deus,

    3 quando dizes o que importa para ti? o que APROVEITAREI sem o meu pecado?

    4 Eu tornar-te-ei palavrase aos teus amigos (que esto) contigo.

    5 Contempla os cus e v, observa as nuvens mais altas do que tu.

    6 Se pecas, que fazes contra ele?Se aumentas a tua revolta, que lhe fazes?

    7 Se s justo o que lhe ds?O que que da tua mo ele recebe?

    8 Para um homem como tu a tua maldadee para um filho de homem a tua justia.

    9 Sob grandes opresses eles gritam,clamam sob o brao dos poderosos,

    10 sem que diga: Onde est o Deus que me fez,que inspira cnticos durante a noite?

    11 que nos ensina mais que aos animais da terrae do que os pssaros dos cus nos faz mais sbios?

    12 Ento gritam mas ele no responde,diante da exaltao dos malvados.

    13 Na verdade o discurso vazio Deus no escuta e Shaddai no observa,

    14 muito menos quando dizes que o no observa, que um julgamento est diante dele e tu esperas,

    15 que a sua ira no punenem conhece o excesso da loucura.

    16 Sim, Job para o vazio abre a sua boca,sem conhecimento palavras multiplica.

  • 77um debate sobre o conhecimento de deus

    justia apenas para Job e para um ser humano como ele (35,8). As duas sequnciascentrais aparecem ainda marcadas por outras correspondncias: a referncia curiosaao grito que o ser humano dirige a Deus (34, 28 e 35, 9.12), colocado no centro dasequncia B1 e no centro da sequncia B2, e a declarao final de que Job fala semconhecimento (34, 35 e 35, 16).

    Surpreendentemente, as duas sequncias (B1 e B2) colocam no centro do dis-curso duas perguntas pelas quais Elihu questiona directamente Job sobre a sua com-preenso da justia de Deus e da sua prpria justia.23

    23 Sobre a importncia crucial de uma interrogao no centro da composio cf. R. MEYNET, The Question at the Cen-tre: A Specific Device of Rhetorical Argumentation in Scripture, Rhetorical Argumentation in Biblical Texts. Essays from theLund 2000 Conference, Emory Studies in Early Christianity 8 (eds. A. ERIKSSON T.H. OLBRICHT, W. BELACKER) (Harris-burg, PA 2002) 200-214.

    Sequncia B1: passagem b (34, 36-33)

    16 Portanto, compreende e escuta isto,d ouvidos ao som DAS MINHAS PALAVRAS!

    17 Pode aquele que odeia o direito governar,e se um grande justo condenar?

    18 dizendo a um rei: Malvado!e Inquo aos prncipes?

    Sequncia B2 (35, 2-16)

    2 Isto pensas (ser) o direito?dizer A minha justia maior que a de Deus,

    3 quando dizes o que importa para ti? o que aproveitarei sem o meu pecado?

    4 EU tornar-te-ei PALAVRASe aos teus amigos (que esto) contigo.

    Na sequncia B1, Elihu questiona Job sobre a incoerncia dos seus argumen-tos: se Job estivesse certo, isto , se Deus odiasse o direito, no poderia governar omundo. Se Deus governa porque um justo. Admitir o contrrio um absurdo; o mesmo que querer condenar algum que um grande justo (34, 16-17). Trata-se,por isso, de uma pergunta retrica que pretende evidenciar o absurdo suscitadopelas palavras de Job e sublinhar a certeza de um agir justo de Deus, que Elihu re-conhece como um justo poderoso, imparcial (34, 19), que tudo observa e v (34,21), nomeadamente as obras dos poderosos (34, 25). Na sequncia B2, Elihuchama a ateno de Job para o facto de querer identificar o direito com uma defesada sua justia, principalmente quando toma como medida absoluta a questo doseu proveito (35, 2-3). Estas duas perguntas tornam-se o eixo da dinmica que en-volve toda a parte central: mostrar que as palavras de Job colocam Deus como in-justo e a justia de Job como maior que a de Deus. Ao aparecer como o centro dodiscurso, esta dinmica surge como o nervo vital do conhecimento que Elihu desejamostrar a Job (A1) e da justia que ele deseja dar ao Criador (A2). SegundoElihu, Job pensa que um justo, s porque se considera um inocente, esquecendo

  • 78 lusa maria varela almendra

    que ao sobrepor a declarao do proveito de uma relao com Deus escolha sbiado direito, se situa no mbito de uma perverso, que de modo algum lhe d a prio-ridade de uma justia maior que a de Deus. Declarar que Deus entorta o direito, sporque a sua justia incompreensvel, delimitar-se a uma justia humana que para si mesma; como exprimir um grito de malvado ao qual Deus no responde.Para Elihu, a justia de Deus prevalece sobre a evidncia das vicissitudes dramticasda vida de Job, previstas no prlogo do livro como uma prova gratuidade da suaf (1,9; 2,4-5). Job no pode condenar Deus s porque no se sente recompensadopor todo o bem realizado, porque Deus no lhe responde ou porque no lhe oferecea oportunidade de uma justia onde ele possa aparecer como um vencedor. A justi-a divina tem uma dimenso histrica reconhecida, recordada e contemplada(36,24-25) como magnfica e insondvel (36,2637,24).

    Observao crtica de resultados

    A unidade dos discursos de Elihu

    evidente, ao nvel filolgico e temtico, que o autor deu ao grande discursode Elihu uma forma unitria, na qual depositou o seu contributo no grande debatesugerido pelo conjunto do livro de Job. Esta unidade e contributo aparecem conso-lidados na repetio da raiz yr, que abre e fecha o discurso, traando um percursoentre um fundamentalismo persistente e a genuinidade de uma f que ousa crer emDeus at ao fim, mesmo sem o ver.24 Por isso, se no prlogo satan coloca o dramaem termos de desafio e prova gratuidade da f comparvel de Abrao, com Elihuo drama visto sob a forma de uma avaliao da linguagem do temor/reverncia deDeus, como a nica que pode sustentar a gratuidade da f de Job e do ser humanoprovado, de todos os tempos. As palavras de Job nos discursos de Yhwh demons-tram que Job escolheu o temor de Deus. Ali as suas palavras no so mais as do de-sespero e as de acusao, mas antes de reverncia pela soberania e pelos desgniosimperscrutveis de Deus (42,2-6).

    A energia de uma linguagem sapiencial

    A anlise retrica exibe com clareza que o grande discurso de Elihu todo elerepassado por uma linguagem que, colocada estrategicamente em momentos im-portantes do discurso, acompanha e orienta a dinmica do debate. Esta linguagem

    24 Esta afirmao de unidade no encontra um paralelo na histria da exegese destes captulos. fruto precisamente deuma anlise at ento nunca aplicada a estes discursos: a anlise retrica bblica. Para um estudo ulterior da noo nova de con-texto literrio emergente de uma anlise retrica bblica cf. R. MEYNET, Le vin de la nouvelle alliance. La parabole du vieux etdu neuf (Lc 5,36-39) dans son contexte, Gregorianum 86,1 (2005) 5-27.

  • 79um debate sobre o conhecimento de deus

    traduz um modo de pensamento e de discurso, visvel em alguns termos e imagens,comuns a toda a parte potica do livro de Job e a outros livros de cariz sapiencial,nomeadamente o livro dos Provrbios e de Qohelet. Cite-se a ttulo de exemplo ainsistncia no temor de Deus, no conhecimento, na escuta e na compreen-so, no tema da instruo e da prova, do proveito e da recompensa. A con-fluncia de todas estas linguagens permite entrever a capacidade que a reflexo sapi-encial teve de integrar, num tempo de profundo questionamento, a multiplicidadede linguagens disponveis, sem destruir a sua densidade e acuidade. Nesta capacida-de esconde-se o desejo de encontrar uma linguagem capaz de oferecer uma respostaque, para afirmar um conhecimento da justia de Deus, no precisasse de negar arealidade, por vezes dramtica e incompreensvel, da existncia humana. O grandediscurso de Elihu representa, certamente, um momento importante nesta procura,facto que lhe garante um lugar importante na coerncia do livro de Job.

    A figurao do autor

    A composio dos discursos permite ainda delinear alguns dos traos funda-mentais da personalidade de Elihu sublinhando a sua diversidade em cada uma dassequncias. Elihu percebe a urgncia de defender a justia e a bondade salvadora deDeus, sem ter necessariamente de condenar o ser humano. A linguagem usada atento perdera toda a capacidade de o fazer. Era, por isso, necessrio que um inspira-do e um intercessor desse a conhecer os contornos insondveis da justia divina erestabelecer a relao entre Job e Deus, destruda pelo sofrimento (A1). No entanto,algum que pudesse responder com palavras de sabedoria (B1 e B2). Contudo, al-gum que soubesse adequar a linguagem das certezas (A2a) a uma linguagem capazde sugerir e venerar o mistrio (A2a).25 Por isso, sem se afastar dos seus traos deinspirado e intercessor, sbio e homem de corao, Elihu assume o lugar do poeta etenta, num apelo contemplao do insondvel, defender e dizer o agir e o serjusto de Deus, surpreendentemente indizveis e insondveis. Este percurso singularde figurao, bem delineado na composio, coloca no centro (B1 e B2) a figura dosbio como dinamizadora de todas as outras. Elihu acima de tudo um sbio quese descobre no seu papel de inspirado e de intercessor, uma voz do indizvel quesurpreendentemente aparece na introduo como um homem irado (32,1-6a). Elihu, portanto, uma figura nica no conjunto do livro de Job. No existe uma outrapersonagem com um rosto inconformado e agitado. Esta singularidade fundamen-

    25 Sobre a dimenso potica do discurso de Elihu cf. H.-M. WAHL, Der Gerechte Schpfer, Eine Redaktions-und Theologie-geschichtliche Untersuchung der Elihureden Hiob 32-37 (BZAW 207; Berlin New Yrok 1993), 149-154; C.A. NEWSOM, Eli-hus Sapiential Hymn (Job 36.24-37.13). Genre, Rhetoric and Moral Imagination, Relating to the Text. Interdisciplinary andForm-Critical Insights on the Bible (eds. T.J. SANDOVAL C. MANDOLFO) (Sheffield 2003) 211; K. DELL, The Book of Job as Scep-tical Literature,( New York 1991) 228-233.

  • 80 lusa maria varela almendra

    ta-se, certamente, na funo que Elihu chamado a desempenhar. Integra porm, oconjunto de um dinamismo que envolve igualmente a singularidade de cada umadas outras personagens: satan, a mulher de Job, os trs amigos, Job e at mesmo oprprio Yhwh.

    A direco da mensagem

    A centralidade que o discurso de Elihu atribui justia de Deus (B1 e B2) es-pelha o valor que o autor dedica a esta questo, sublinhando a sua preocupaocom uma justia divina, que sobrepe grande questo da retribuio. Na verdade,Elihu no repete simplesmente a teoria tradicional da retribuio. Elihu defendeapenas a certeza de uma recompensa que assegura a sua interveno livre e compro-metida com a existncia humana.26 Enquanto Job e os amigos associam a justia deDeus a um agir que sabe recompensar o bem e punir o mal, Elihu identifica-a comas dimenses de um agir salvfico que pode admitir a prova (33,12-33). Deus justo porque salva; se prova, tem sempre como objectivo a salvao.27 Mas Elihu vaiainda mais longe, ao opor certeza do agir justo de Deus (36,5-10) o perigo deperverso das recompensas, que impregna Job de um dizer (3435) e de juzos demalvado (36,16-21). Nesta oposio, Elihu deixa bem claro que a verdadeira ques-to a considerar no o sofrimento de Job nem a retribuio divina, mas antes agratuidade da f, sempre, em todas as vicissitudes da vida humana. Elihu o nicoque, no conjunto do livro e do debate, soube perceber os perigos do desafio decla-rado por satan (1,9; 2,3): o de ceder tentao de tomar como medida, para a fem Deus, as suas recompensas e, consequentemente, o proveito da relao com Ele.Por isso, o seu papel no condenar Job mas antes cham-lo a uma f adulta, anica que pode admitir um encontro com Deus (38-42,6) e compreender queDeus justo, no porque se revela justo na sua vida, recompensando o bem que Jobfaz, mas porque intervm na histria com um desgnio absoluto de salvao.

    Se o centro do discurso aparece intensamente imerso num debate sobre a justi-a divina, as partes extremas (A1 e A2) distinguem-se por um forte acento naquiloa que podemos chamar um debate sobre o conhecimento de Deus. Ao nvel dacomposio retrica do texto, este debate aparece dividido em dois grandes mo-mentos: um primeiro, onde se evidencia a fragilidade das certezas do conhecimento

    26 A ideia, bastante comum, de que a posio dos amigos e a de Elihu corresponderiam a dois momentos distintos da re-flexo sapiencial, aparece amplamente contestada por A. BONORA, Retribuzione, Nuovo Dizionario di Teologia Biblica (eds. P.ROSSANO G. RAVASI A. GHIRLANDA) (Torino 1988) 1331.

    27 Cf. Is 45,19-21. Elihu recupera uma viso proftica da justia divina, num determinado momento intensamente asso-ciada a uma interveno salvfica.

  • 81um debate sobre o conhecimento de deus

    (A1. a), e um segundo, onde se afirma a possibilidade extraordinria de um conhe-cimento de Deus que nos vem atravs da contemplao (A2. a). Elihu sugere queas certezas do conhecimento, defendidas pelos amigos, se revelaram incapazes de di-alogar com a existncia de Job e, consequentemente, com o desafio colocado porsatan. A sua principal dificuldade foi a de conciliar o sofrimento inocente com abondade e justia de Deus. Na sua convico de que Deus julga sempre com justiao justo e o malvado, no existe espao para o justo que sofre. A sua absoluta neces-sidade de defender a justia de Deus levou-os a desenvolver um conjunto de teodi-ceias, onde procuram conciliar a justia e a omnipotncia de Deus com a existnciade mal no mundo.28 Tal como os amigos, tambm Job no sabe como reconciliar oseu sofrimento com a sua imagem de um Deus justo. Questiona a sua natureza e oseu governo do mundo, traa-o como algum que age com uma curiosidade malici-osa (7,17-20) e com uma raiva sdica (16,9-14); como um violador da justia(27,2) que usa a sua sabedoria e poder para criar o caos, mais do que a ordem(12,13-25). Neste debate, Elihu entra como aquele que declara que a verdadeiraquesto a de compreender a presena de Deus numa criao e numa histria sur-preendentes de salvao. Esta compreenso nunca poder surgir de certezas ou deconstrues humanas de Deus, onde prevalecer sempre o risco de, para defenderDeus, ter de se condenar injustamente o ser humano, mas sim atravs de uma con-templao do agir insondvel e imperscrutvel de Deus, onde a salvao do ser hu-mano aparece como a prpria realizao de Deus.29 Job pensa poder resolver o seuproblema com um conhecimento de Deus e do seu agir que destrua as barreiras queexistem entre ele e Deus (19, 25-26).30 Elihu sugere-lhe um conhecimento de Deusque respeite a diferena e soberania de Deus, um conhecimento que vem da contem-plao da sua interveno criadora e salvfica na histria (36, 25). Uma contempla-o que no visa uma apropriao do conhecimento de Deus, mas uma abertura aoseu dom, desvelado numa histria humana como um dom de salvao. O Deus queElihu coloca diante de um Job provado um Deus que excede as medidas do seu so-frimento e assume as medidas da sua presena salvfica: um Deus poderoso na suajustia (36, 5), sublime na sua fora e revelao (36, 22) e to grande que imposs-vel dominar pelo conhecimento (36, 26); um Deus que pode ser perscrutado apenaspelo temor, dos que aprenderam, sem o ver, a ser sbios de corao (37, 23-24).

    28 Cf. J.L. CRENSHAW, Introduction: The Shift from Theodicy to Anthropodicy, Theodicy in the Old Testament (ed. J.L.CRENSHAW) (Philadelphia, PA 1983) 1-41; E.W. NICHOLSON, The Limits of Theodicy as a Theme of the Book of Job, Wis-dom in Ancient Israel (eds. J. DAY R.P. GORDON H.G.M. WILLIAMSON) (New York, NY 1995) 71-82.

    29 Esta certamente a instruo de que Elihu fala. 30 Cf. M.P. GALLAGHER, Dive Deeper. The human poetry of Faith (London 2001) 49.

  • 82 lusa maria varela almendra

    Concluso

    Os frutos que se oferecem

    Os argumentos de carcter lingustico, usados frequentemente, num estudo di-acrnico, para defender a fragmentao do livro e a posteridade dos discursos deElihu, aparecem, luz de uma anlise retrica, orientados versus novos horizontesde leitura e compreenso. Esta orientao suscitou um inevitvel confronto com afragilidade de algumas consideraes da exegese moderna, nomeadamente no querespeita personalidade de Elihu e importncia das suas palavras no conjunto dolivro de Job. Fruto de uma anlise demorada sobre a composio, os paralelismos,simetrias, oposies e relaes de identidade, a anlise retrica de Jb 3237 revelou-se como uma etapa indispensvel na exegese do texto. O horizonte no a teimosiaabsolutista ou indiferente, mas a convico de que o principal erro de compreensodo livro de Job, e que persiste at ao momento presente, inicia-se precisamenteaqui, nos discursos de Elihu.31 A composio e interpretao sugerida pe em causaa ideia, amplamente difundida, de que o discurso de Elihu repetitivo e no acres-centa nada ao que foi dito pelos amigos ou ao que ser dito por Yhwh. Esta , cer-tamente, uma entre as ideias mais importantes a ser objecto de disputa na exegeseactual. Dela decorre a compreenso de um debate sapiencial sobre o conhecimentode Deus, com implicaes hermenuticas para o crente de todos os tempos. Dili-gentemente, Elihu focaliza estas implicaes nas nossas linguagens humanas sobreDeus, reduzidas frequentemente a debates e explicaes minados por tendncias de-fensivas, que limitam as dimenses sempre surpreendentes da revelao e nos tor-nam incapazes de viver, em todas as circunstncias da vida, a certeza de uma pre-sena de Deus, que deve coexistir com a insondabilidade do seu conhecimento.

    A reabertura do debate

    A energia peculiar desta compreenso inovada dos discursos de Elihu relanainevitavelmente o debate, que agora se alarga a uma inteligncia mais incisiva dasua relao com as diferentes partes do livro de Job. Na observao crtica de algunsdos resultados deste tipo de anlise refere-se uma ponte importante entre os discur-sos de Elihu e o prlogo, nomeadamente o desafio colocado por satan. Porm, no muito clara, ainda, a sua relao com os chamados discursos de Yhwh (caps. 38,1-42, 6), sobretudo com as declaraes feitas no eplogo em 42, 7-8. Aparentemen-te, a crtica cerrada que Elihu faz s palavras de Job e dos amigos parece encontrarum suporte significativo nas primeiras palavras que Deus dirige a Job: (Quem

    31 Cf. C. WESTERMANN, Der Aufbau des Buches Hiob (Tbingen 1956-21977) 139-140.

  • 83um debate sobre o conhecimento de deus

    esse que obscurece os meus desgnios com palavras sem sentido? 38, 2). Contudo,como concili-la sua declarao final aos amigos (no falaste correctamente demim como fez o meu servo Job 42, 7)?. Os que denunciam a nossa tendncia deprocurar sempre no texto bblico elementos de significado e de transio e as nossasresistncias incessantes aos elementos de repetio e contraste, sugerem que nosabramos transformao das nossas impresses iniciais de desordem literria na re-descoberta de uma lgica onde, com ou sem transio, as palavras falam umas soutras.32

    verdade que Elihu oferece a Job uma resposta, que sabe no ser definitiva.No entanto, uma resposta que considera oportuna e indispensvel. Muitos questi-onaro a validade desta afirmao. Para estes, Elihu no responde verdadeiramentea Job. Porm, se o conjunto da sua argumentao no faz qualquer sentido no con-junto de debate, que dizer da argumentao surpreendente dos discursos de Yhwh(Jb 38-42)? De facto, a argumentao de Elihu corre o risco de cair no mesmo ab-solutismo que ele condena nos amigos. Porm, bem claro que ele nunca condenao grito de Job pelo sentido da sua existncia, mas sim o modo acusador como elegrita, que contradiz a confiana, o conhecimento e o temor de Deus prprias deum justo. Ser sempre um desafio entender a tenso latente no texto bblico.Neste desafio, a anlise retrica bblica a aplicar, certamente, a todo o livro de Job emerge, sem hesitao, como um caminho, tambm ele promissor, para a com-preenso da oportunidade excelente de todas as palavras pronunciadas no livro, deum modo particular as de Job, de Elihu e de Yhwh.

    32 Cf. P. BEAUCHAMP, in R. MEYNET, Rhetorical Analysis. An Introduction to Biblical Rhetoric (JSOTSS 256; Sheffield1998) 11-15.