um estudo sobre “janelas quebradas” e “tolerância zero”
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Um estudo sobre “Janelas Quebradas” e “Tolerância Zero”1
Edgard da Costa Freitas Neto2
“Quereis prevenir os delitos? Fazei com que as leis sejam
claras, simples, e que toda a força da nação se concentre
em defendê-las, e nenhuma parte dela seja empregada
em destruí-las. Fazei com que as leis favoreçam menos
as classes dos homens que os próprios homens. Fazei
com que todos os homens a temam, e temam só a ela”.
Marquês de Beccaria. Dos Delitos e das Penas3.
1. INTRODUÇÃO 2. A EVOLUÇÃO TEÓRICA 2.1 A INFLUÊNCIA AMBIENTAL NA CRIMINALIDADE 2.2 A DESORDEM COMO FOCO: A “BROKEN WINDOWS THEORY” 3. TOLERÂNCIA ZERO: A EXPERIÊNCIA NOVAIORQUINA 3.1 A PRIMEIRA EXPERIÊNCIA: O METRÔ 3.2 MUDANÇAS OPERACIONAIS DA POLÍCIA DE NOVA YORK 3.3 OS
RESULTADOS ALCANÇADOS E SUA INTERPRETAÇÃO CRÍTICA 4. ABORDAGEM CRÍTICA 5. A ORDEM. BEM JURÍDICO A SER PROTEGIDO? 6. CONCLUSÃO 7. BIBLIOGRAFIA
1. INTRODUÇÃO
Com o recrudescimento do banditismo e da insegurança nas grandes e
médias cidades brasileiras4, a sociedade, em especial após crimes que abalam
a opinião pública, tende a discutir com mais ênfase alternativas e modelos para
fazer frente a este fenômeno.
Neste contexto, a dita Teoria “Broken Windows”5, base do modelo
“Tolerância Zero”, que desde 1993 vem sendo aplicado na cidade de Nova
1 Publicado na Diké – Revista Jurídica do Curso de Direito da UESC, 2007, Ano IX, PP 397/426. ISSN1517-509X 2 Acadêmico do 9º Semestre do Curso de Direito da UESC 3 BECCARIA, Cesare Bonesana, Marchesi de. Dos delitos e das penas. 3 ed. São Paulo, Martins Fontes, 2002 4 BRASIL. Análise comparativa da incidência de homicídios nas regiões metropolitanas. disponível em: http://www.mj.gov.br/senasp/estatisticas/homicidios/estat_homicidios1.htm 5 Janelas Quebradas, em inglês.
York, insere-se como um modelo que oferece um modo de atuação policial
comunitária, com foco na prevenção de pequenos delitos e contravenções
como forma de reverter a influência ambiental nos índices de crimes e na
sensação de insegurança.
O presente artigo apresentará pontos de vista apreendidos ao longo da
leitura de diversas obras que versam sobre o tema - inclusive o artigo que deu
origem ao termo “Broken Windows” - dados estatísticos e as principais críticas
que tal política sofre hodiernamente, de forma a poder subsidiar a discussão de
tão polêmico tema.
2. A EVOLUÇÃO TEÓRICA
2.1 A INFLUÊNCIA AMBIENTAL NA CRIMINALIDADE
O fenômeno do crime vem sendo estudado por cientistas sociais há
muito tempo. Coube a Durkheim (1858-1917) estabelecer a sua normalidade,
ou seja, a constatação de que o crime era um fenômeno normal em qualquer
sociedade humana, sendo inextirpável. Afirma Molina:
O certo é que não devemos confundir o controle da
criminalidade com o seu extermínio. A criminologia
pretende um controle razoável do delito, pois a sua total
erradicação da sociedade é uma meta inviável e
ilegítima. De outro lado, a prevenção razoável do conflito
obriga reflexionar sobre os custos sociais dos meios
empregados para o seu controle. Seria inadmissível
pagar qualquer preço.6
O controle do crime é possível em níveis mínimos. A permissividade
gera seu crescimento, fora de controle, o que se dá geometricamente, podendo
conduzir a sociedade a um estado de Anomia. De outro lado, a aniquilação do
crime só seria possível com a instalação de um Estado totalitário, que
6 MOLINA, Antônio García-Pablos de. Criminologia, p.139
aterrorizasse tanto os criminosos como os homens de bem, o que também é
inaceitável.
As origens do crime são multifatoriais.7 Nenhuma condição, isolada,
determina a conduta criminosa. Mesmo as condições patológicas, em si, não
bastam. Alguns fatores, entretanto, geram condições mais ou menos favoráveis
para as condutas criminosas, sendo capazes de dissuadir grande parte delas,
ou de fomentá-las. Dentre estes fatores, temos, por exemplo, a religião, a força
dos valores morais e a sensação de impunidade8. Como afirma, de maneira
ácida, o filósofo Olavo de Carvalho:
Ora, é de conhecimento público que, entre a mesma
população pobre, por exemplo, das favelas cariocas ou
da periferia paulistana, duas crenças opostas se
disseminaram concorrentemente nas últimas três
décadas: de um lado, o apelo do crime; de outro, a fé
evangélica. Numa população uniformemente pobre, o
número de evangélicos praticantes que delinqüem é
irrisório. Basta esse fato para provar que a correlação
entre pobreza e crime é uma fraude, um sofisma
estatístico da espécie mais intoleravelmente suína que se
pode imaginar. Nenhuma ação humana é determinada
diretamente pela situação econômica, mas pela
interpretação que o agente faz dela, interpretação que
depende de crenças e valores. Estes, por sua vez, vêm
da cultura em torno, cujos agentes criadores pertencem
maciçamente à camada letrada, como por exemplo os
bispos evangélicos e os cientistas sociais. Os bispos
7 MOLINA, Op. Cit., p. 270 8 Em que pese a pobreza ser um fator que pode predispor um indivíduo ao crime, aparentemente não é um fator preponderante, quando comparado, p. ex., com a religião e a força das sanções sociais. Para tanto, pode-se operar o “experimento imaginário” proposto por Weber para verificar o grau de importância de determinado fator. A pobreza, por exemplo, assola países relativamente pacíficos, como a Índia, sem causar uma epidemia de crimes. Da mesma maneira, o banditismo se instalou primeiro nas grandes cidades – onde a qualidade de vida cresceu nos últimos trinta anos – atingindo as pequenas e médias cidades com seus tentáculos, como as cidades fronteiriças do Centro-Oeste brasileiro ou as regiões produtoras de maconha do Vale do Rio São Francisco, no Nordeste.
ensinam que, mesmo para o pobre, o crime é um pecado.
Os cientistas sociais, que os criminosos, agindo em razão
da pobreza, são sempre menos condenáveis do que os
ricos e capitalistas que (também por uma correlação
geral mágica) criaram a pobreza e são por isso os
verdadeiros culpados de todos os crimes. Essas duas
crenças disputam a alma da população pobre. Não é
preciso dizer qual delas estimula à vida honesta, qual à
prática do crime9.
A Escola Sociológica de Chicago, fundada na década de 1920, e de
onde se ramifica boa parte da moderna sociologia criminal norte-americana, foi
a pioneira no estudo da influência do ambiente das cidades na gênese do
crime e do criminoso10, estudando a maneira como as diversas circunstâncias
físicas e culturais de uma cidade podem criar um ambiente fértil, ou não, para o
florescimento do crime.
2.2 A DESORDEM COMO FOCO: A “BROKEN WINDOWS THEORY”
Em Março de 1982, James Q. Wilson, professor das Universidades de
Harvard e Chicago, e George L. Kelling, professor pesquisador também na
Universidade de Harvard, publicaram na Revista “The Atlantic Monthly” um
artigo, intitulado “Broken Windows: The Police and neighborhood safety”11.
Neste artigo eles defenderam a teoria de que ambientes onde a
desordem impere estariam mais suscetíveis a maiores índices de
criminalidade.
Através de uma analogia – as janelas quebradas de uma fábrica – eles
discorreram sobre como a desordem pode influir na rápida decadência de uma
comunidade. Uma janela quebrada e deixada assim serviria como sinal
9 CARVALHO, Olavo de. “Experimento Sociológico”. Diário do Comércio. São Paulo, 22/05/2006. Disponível em http://net.dcomercio.com.br/WebSearch/v.asp?TxtId=143320 10 MOLINA. Op. Cit, p. 272 11 WILSON, James Q.; KELLING, George L. Broken Windows: the police and neighborhood safety. The Atlantic Monthly, March 1982. Disponível em: http://www.manhattan-institute.org/pdf/_atlantic_monthly-broken_windows.pdf
inequívoco de que ninguém ligaria para as demais, e que quebrar as outras
janelas nada custa. Da mesma maneira o lixo acumulado, terrenos baldios,
prédios e automóveis abandonados, crianças e adolescentes sem o controle
dos familiares e adultos da vizinhança serviriam como elementos inequívocos
da decadência da vizinhança.
O pensamento de Wilson e Kelling foi influenciado pelas experiências de
Philip Zimbardo, psicologista da Universidade de Stanford, que em 1969
realizou experiências em duas localidades diferentes usando os mesmos
princípios da Teoria das “Janelas Quebradas”.12. Zimbardo abandonou dois
carros sem placas no Bronx, em Nova York, e em Palo Alto, Califórnia. O
primeiro carro foi abandonado no Bronx, com o capô aberto. Em cerca de dez
minutos pessoas da vizinhança começaram a desmontar partes do carro, a
começar pelo motor. Aproximadamente 24 horas depois, todas as peças de
valor já haviam sido levadas, e a depredação aleatória começou13. O outro
carro, abandonado fechado na Califórnia, permaneceu intocado por mais de
uma semana. Zimbardo então arrebentou o pára-brisa com um martelo. Em
poucas horas o mesmo fenômeno do Bronx se repetiu, e por fim o carro foi
virado14.
Tradicionalmente, as famílias, numa comunidade, servem como “freios”
ao comportamento dos indivíduos. Elementos perniciosos isolados terminam
sendo repelidos quanto mais fortes os laços de amizade e confiança que unem
as famílias daquela comunidade. No passado, os vizinhos costumavam cuidar
dos filhos uns dos outros e tomavam conta das casas. Vigiavam estranhos e
não hesitavam em avisar à polícia quando criminosos se instalassem na
localidade.
O que a licenciosidade com a desordem faz é “quebrar” esta estabilidade
comunitária, afrouxando os laços que ligam as famílias e isolando-as pelo
medo de represálias e descrédito das forças da lei e da ordem. 12 WILSON; KELLING. Op. Cit. p.03 13 Zimbardo notou, também, que os vândalos eram todos brancos, limpos e bem vestidos. 14 Novamente, Zimbardo notou, os vândalos eram brancos e bem vestidos, o que afastava a idéia de que o vandalismo seria uma exclusividade de pobres e negros. Ele provou que o vandalismo pode ocorrer onde quer que as barreiras sociais sejam enfraquecidas por sinais de que “ninguém liga”. WILSON; KELLING, Op. Cit. loc. Cit.
Os sinais externos de decadência de uma comunidade serviriam como
um farol, como um “porto seguro” para que desordeiros, punguistas,
arrombadores e receptadores, dependentes químicos de álcool e drogas (e
junto com estes, traficantes), pedintes agressivos, prostitutas e rufiões se
instalem naquela vizinhança, fazendo com que muitas famílias abandonem o
bairro ou permaneçam reclusas em suas casas, em silêncio, com medo de
represálias e gradativamente perdendo influência sobre suas crianças e jovens.
Segundo os autores, o policiamento constante, ostensivo
(preferencialmente a pé), visando a criação de laços entre a comunidade e o
policial; a atuação do policial como solucionador de conflitos na comunidade,
um elemento cuja atuação sirva para lidar com problemas da comunidade que
estejam ao seu alcance institucional ou mesmo simbólico de autoridade (como
repelir desordeiros, moderar brigas familiares, expulsar ou desbaratar
traficantes e gangues juvenis) ajudaria a prevenir ou fazer regredir o índice de
crimes e a sensação de medo nesta dada comunidade. Para tanto, os policiais
de rua deveriam poder contar com certo grau de discricionariedade que lhe
permita flexibilidade para agir de acordo com a realidade do problema.
3. TOLERÂNCIA ZERO: A EXPERIÊNCIA NOVAIORQUINA
A cidade de Nova York, maior cidade dos Estados Unidos, viveu nos
anos 70 e 80 uma escalada de violência que lhe valeu o título de “Cidade mais
insegura da América”15. Já em 1973 o clima de insegurança era tal que
um policial nova-iorquino explicou a Luiz Fernando
Mercadante, correspondente de VEJA, que, numa cidade
com 300.000 viciados, a maioria sem dinheiro para
sustentar o vício, ser ou não assaltado é apenas uma
questão de sorte.16
15 BRATTON, William J. Crime is Down in New York City: Blame the police. In DENNIS, Norman (org). Zero Tolerance: Policing a Free Society Choice in Welfare No. 35. The IEA Health and Welfare Unit. Londres, 2005, p. 29. disponível em: http://www.civitas.org.uk/pdf/cw35.pdf 16 Assalto! Assalto! Assalto! Revista Veja, nº 228. 10 de janeiro de 1973. disponível em: http://vejaonline.abril.uol.com.br/notitia/servlet/newstorm.ns.presentation.NavigationServlet?publicationCode=1&pageCode=1269&textCode=117455
Em 1990 a cidade registrou 2.262 homicídios, 3.126 estupros e mais de
100.000 roubos17. Guerras de gangues de narcotraficantes de crack irrompiam,
com tiroteios diários
As pichações não eram reprimidas. As gangues se
proliferavam. Permitia-se que os sem-teto ocupassem
espaços públicos, como metrôs, parques e praças, e lá
fizessem suas necessidades. Não se os obrigava a
recolherem-se aos abrigos públicos. Além disso, eles
passavam a mendigar de maneira cada vez mais
agressiva e ameaçadora. Pequenos delitos como
ingressar no metrô sem o pagamento da passagem,
pulando a catraca, quase não eram mais reprimidos.
Tudo isso levava a um aumento constante da
criminalidade.18
A atuação da polícia se baseava na fórmula R3: Resposta rápida,
Patrulhamento aleatório e Investigação Reativa19. Era a chamada “Era
Profissional”, inaugurada nos anos 70, com a instalação do sistema de
chamada 91120, a qual se baseava na premissa de que a polícia pouco podia
para prevenir o crime, devendo, pois, direcionar seus esforços na investigação
dos crimes ocorridos e identificação dos autores.
Tal sistema pouco pôde contra o aumento da violência, visto que
dependia majoritariamente da chamada de um cidadão após o fato criminoso,
ou com a sorte de uma patrulha motorizada estar no lugar certo e na hora
17 NEW YORK POLICE DEPARTAMENT. CompStat Report. Volume 14, nº 7, disponível em http://www.nyc.gov/html/nypd/pdf/chfdept/cscity.pdf 18 RUBIN, Daniel Sperb. Janelas quebradas, tolerância zero e criminalidade . Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 62, fev. 2003. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3730 19 R3, em inglês: Rapid Response, Random Patrol and Reactive Investigation. In BRATTON. Op. Cit. p 30 20 Importante salientar que, aparentemente, o sistema de segurança pública no Estado da Bahia se apóia nesta fórmula, através do sistema 190 da Polícia Militar, também responsável pelo patrulhamento das ruas, e da polícia civil como polícia científica, responsável por investigar e prender criminosos. Nos Estados Unidos uma única Instituição cuida do policiamento ordinário, ao passo que a Constituição Federal do Brasil, em seu Art. 144, §§ 4º e 5º divide estas atribuições em duas organizações independentes entre si.
certa. Tal circunstância não contemplava a chamada cifra negra21 dos delitos.
Wilson e Kelling já haviam chamado a atenção para a deficiência deste tipo de
abordagem policial, alertando que, à medida que o cidadão chama a polícia e
esta se revela incapaz de impedir a repetição do fato criminoso, sua tendência,
com o tempo, é a de parar de telefonar22.
3.1 A PRIMEIRA EXPERIÊNCIA: O METRÔ
Neste contexto, os nova-iorquinos elegeram prefeito Rudolph Giuliani,
um republicano conservador de origem ítalo-americana, promotor de justiça de
carreira que fez fama perseguindo capos da Máfia Italiana de Nova York e
criminosos de colarinho branco nos anos 80 Giuliani fora influenciado pelo
artigo de Wilson e Kelling, e sua plataforma era a de “retomar” as ruas e
espaços públicos de Nova York para os cidadãos. Ele contratou William
Bratton, então superintendente da Polícia Metropolitana de Boston, para
comandar a Autoridade de Trânsito da Polícia de Nova York, com a missão de
resolver o problema do metrô, que havia se tornado uma verdadeira “terra de
ninguém” por conta da desordem:
Bratton imediatamente identificou os três principais
problemas do metrô: passageiros que pulavam a catraca
e não pagavam a passagem, desordem e crime.
O não pagamento da passagem havia se tornado
epidêmico. O prejuízo da municipalidade girava em torno
de oitenta milhões de dólares por ano. Os desordeiros
simplesmente pulavam as catracas. Aqueles que
pagavam sentiam que estavam entrando em um local
onde não havia lei e a desordem imperava e começavam
a se perguntar se valia a pena continuar respeitando a
lei.
21 O termo “cifra negra” ou “cifra oculta” se refere aos crimes dos quais não existem registros, seja por que a vítima não prestou queixa, seja por que nunca foram descobertos. 22 WILSON; KELLING. Op. Cit. p 04
A desordem só fazia crescer. Pichações, mendicância
agressiva e vandalismo criavam um clima propício à
criminalidade.
A criminalidade no metrô aumentava e tornava-se mais
violenta, com a proliferação de gangues juvenis, cada vez
mais usando armas de fogo e simplesmente assaltando
as pessoas.23
Identificando o não pagamento das passagens como a principal “janela
quebrada” do metrô24, Bratton iniciou uma campanha de prisão em massa de
puladores de catraca, realizando operações surpresa alternadamente nas
estações e posicionando agentes à paisana nas madrugadas, para surpreender
os puladores de catraca mesmo em momentos de pouco movimento.
Apesar do ceticismo original quanto à eficácia de se diminuir a
insegurança no metrô reprimindo uma pequena contravenção como o não-
pagamento das passagens, a política funcionou. Muitos dos presos por
pularem a catraca, ao serem revistados, foram autuados também por porte
ilegal de armas ou de drogas. Alguns possuíam mandados de prisão expedidos
contra si, foragidos da justiça. O índice de crimes e a sensação de insegurança
no metrô diminuíram drasticamente.25
3.2 MUDANÇAS OPERACIONAIS DA POLÍCIA DE NOVA YORK
Em 1994 William Bratton tornou-se Comissário de Polícia da Cidade de
Nova York26 e, juntamente com George Kelling, e a chancela política do
prefeito Giuliani, iniciou um ambicioso projeto de reforma estrutural na
corporação, com vistas da implementação da política “Tolerância Zero” em toda
a cidade.
23 RUBIN, Op. Cit. 24 RUBIN, Op. Cit. 25 SMITH, Dennis C; BRATTON, William J. Performance management in New York City: Compstat and the revolution in Police Management. p. 23. disponível em http://www.rockinst.org/publications/federalism/QuickerBetterCheaperChapter16.pdf 26 Ele seria o equivalente a um Secretário de Segurança Pública. Nos EUA a gestão policial é municipalizada.
Inicialmente, a Corregedoria foi fortalecida27, o que resultou na expulsão
de policiais envolvidos com corrupção e com laços com quadrilhas. Em
substituição a estes policiais, 2.000 recrutas foram admitidos em 1994.
Unidades especiais de repressão ao tráfico foram criadas, e sobre estas a
Corregedoria tinha um programa ainda mais rígido de vigilância, visto que o
mercado ilegal de narcóticos possui o maior potencial corruptor dentre todos os
outros.
Sob a orientação de Bratton foi instalado o COMPSTAT28, um sistema
computadorizado integrado para todas as delegacias29 e viaturas, atualizado
diariamente. A existência do COMPSTAT permite à polícia confeccionar
mapas de crimes na cidade, podendo identificar com clareza as áreas de maior
ocorrência de crimes e, assim, adaptar táticas e estratégias com rapidez e
eficiência.
Desde então os chefes das 76 delegacias de Nova York se reúnem de
três em três dias com o Coordenador Geral para avaliar e discutir os resultados
do COMPSTAT, definir estratégias e metas de redução de delitos nas áreas de
sua jurisdição, as quais, uma vez não cumpridas, podem acarretar na
substituição da chefia.
Para adequar-se à filosofia contida na Teoria das Janelas Quebradas e
do Policiamento comunitário, a estratégia da Polícia mudou. Ao invés da
filosofia R3 da “Era Profissional”, entrou em cena a filosofia P3: Parceria com a
Comunidade, Resolução de Problemas e Prevenção30.
Dentre outras mudanças, a estrutura da Polícia, rigidamente hierárquica,
segundo um modelo para-militar31, sofreu um processo de descentralização,
permitindo que os chefes de cada delegacia obtivessem certo grau de
autonomia que lhes permitisse controlar melhor seus oficiais em campo e
27 BRATTON; Op. Cit. p. 39 28 Acrônimo para COMPuter STATistics 29 O termo original em inglês é “Precinct”, literalmente, “Jurisdição”. Para facilitar a compreensão, entretanto, utilizaremos aqui o termo “Delegacia”. 30 Em inglês, P3: Partnership, Problem Solving, Prevention. In BRATTON. Op. Cit. p.32 31 Similar ao das milícias estaduais no Brasil.
melhorando sua capacidade de responder de maneira dinâmica às mudanças
nos padrões da criminalidade dentro de sua jurisdição.
3.3 RESULTADOS ALCANÇADOS E SUA INTERPRETAÇÃO CRÍTICA
No contexto destas mudanças, entre 1990 e 1998 Nova York teve um
declínio de 70% no número de homicídios, 60% no índice de roubos, 50% no
número de ofensas violentas (agressões, estupros, ameaças) e de cerca de
60% em crimes contra propriedades32.
Hoje Nova York possui o menor índice de crime entre as 25 maiores
cidades norte americanas, e se encontra atualmente em 49º lugar no índice de
crime do FBI33.
A razão desta queda é motivo de controvérsia. Alguns estudos34
apontam a aplicação prática das premissas da Broken Windows Theory como
responsável pela queda no índice de criminalidade.
Outros autores são mais céticos na interpretação dos resultados.
Bernard Harcourt e Jens Ludwig35, por exemplo, apresentam os resultados de
uma pesquisa chamada MTO – Move to Opportunity – onde 4.200 famílias que
viviam em abrigos públicos, conhecidos por altos índices de violência e
32 KELLING, George L.; SOUSA, William H, Jr. Do Police Matter? An analysis of the impact of New York City’s Police reform. Civic Report No. 22. The Manhattan Institute for Policy Research. 2001. disponível em: http://www.manhattan-institute.org/pdf/cr_22.pdf 33 Disponível em http://www.fbi.gov/filelink.html?file=/ucr/05cius/data/documents/05tbl08.xls 34 Cf. KELLING; SOUSA. Op Cit.; DENNIS, Norman (org.). Zero Tolerance: policing a free society. Choice in Welfare No. 35. The IEA Health and Welfare Unit. Londres, 2005. disponível em: http://www.civitas.org.uk/pdf/cw35.pdf ; CORMAN, Hope; MOCAN, Naci. Carrots, sticks, and broken windows. The journal of law and economics, vol. XLVIII. The University of Chicago.pp 235-266, 2005. Disponível em: http://www.journals.uchicago.edu/JLE/journal/issues/v48n1/480102/480102.web.pdf ; Concorda, em parte, LEVITT, Steven, D. Understanding Why Crime Fell in the 1990s: Four Factors that Explain the Decline and Six that Do Not. Journal of Economic Perspectives—Volume 18, número 1— 2004—p. 163/190. Disponível em http://dss.ucsd.edu/~sscroggi/Econ1/LevittCrimeInThe90s18JEP163_2004.pdf . Levitt não concorda que as mudanças na abordagem policial em direção à manutenção da ordem tenham surtido um efeito de forma geral nos índices de criminalidade, mas concorda que o aumento no índice de encarceramento e o aumento do tamanho da força policial (em Nova York, o efetivo aumentou 45% desde o início dos anos 90, o triplo da média nacional) tenham tido efeito significativo sobre a violência. 35 HARCOURT, Bernard E.; LUDWIG, Jens. Broken Windows: New Evidence from New York City and a Five-City Social Experiment. The University of Chicago Law Review. Ano 73, nº 271. pp. 271-320, 2006. Disponível em: http://lawreview.uchicago.edu/issues/archive/v73/winter/14.Harcourt.pdf
desordem receberam auxílio em forma de vouchers para se mudarem para
bairros considerados “menos desordenados”. Os resultados da pesquisa
demonstram que não houve impacto negativo significativo nos índices de
criminalidade entre indivíduos que se mudaram.
Harcourt e Ludwig também questionam o nexo causal entre o índice de
prisões por contravenções e pequenos delitos e o índice de crimes
demonstrado nas pesquisas de Kelling e Sousa, demonstrando a fragilidade de
experimentos baseados numa única cidade36. Eles fizeram uma tabela
comparativa entre as vitórias de campeonato do time de beisebol New York
Yankees, o mais popular da cidade, e o índice de homicídios, encontrando uma
relação inversamente proporcional entre os dados. Eles concluem afirmando
que a relação entre o incremento da manutenção da ordem e a diminuição de
crimes graves não restou provada empiricamente37.
Os autores, entretanto, concordam, com base no estudo de Levitt38, que
o incremento nos gastos e o incremento da atividade policial nos chamados
“hot spots” (áreas com maior registro de atividade criminal) tem, de fato o
condão de afetar negativamente os índices de crimes:
Fora, talvez, de alguns departamentos universitários de
sociologia e de algumas cafeterias de Berkeley, a noção
de que “a polícia importa” [no combate ao crime] é (ou
deveria ser), largamente aceita. A questão chave,
científica e política, por trás da análise de Kelling e Sousa
reside em se o foco policial em crimes menores e
desordem produz uma mais destacada redução em
crimes violentos que se o foco estiver diretamente nos
crimes violentos. Nossa análise não produz nenhuma
evidência empírica para suportar a visão de que mudar a
polícia em direção de crimes menores e desordem pode 36 Kelling e Sousa realizaram seus experimentos comparando índices das jurisdições de seis delegacias de características diferentes, como o bairro pobre de Flatbush e o bairro artístico e universitário de Greenwich Village, como se cada jurisdição de delegacia representasse uma “mini-cidade”, ao invés de tomar a cidade de Nova York como um todo. 37 Em que pese, de outro lado, também não ter sido negada. 38 HARCOURT; LUDWIG. Op. Cit. p. 44
melhorar a eficiência dos gastos policiais e reduzir crimes
violentos.39
Kelling e Sousa40, todavia, argumentam que as explicações alternativas
à “Tolerância Zero” para a diminuição da criminalidade (como o declínio do
consumo de crack, a diminuição do número de jovens supostamente
indesejados em função da legalização do aborto em 197341, a melhoria da
economia e mesmo a falsificação estatística) tampouco podem ser provadas
empiricamente.
Os autores atestam, por exemplo, que as jurisdições dentro da cidade
Nova York por eles estudadas possuem características geográficas, urbanas,
econômicas, de natalidade, mortalidade e migração e mesmo composições
étnicas e culturais bastante díspares, sendo que o único fator comum em todas
foi o aumento das detenções e abordagem por atos de desordem, crimes
menores ou contravenções, decorrentes do aumento de policiais nas ruas e da
aplicação prática da Teoria “Broken Windows”. Em todas estas comunidades
diferentes o estudo revelou um decréscimo significativo e proporcionalmente
bastante similar na ocorrência de crimes violentos.
Assim, não é possível separar o incremento da atividade policial
decorrente da “Tolerância Zero”, do resultado geral da diminuição dos crimes
violentos como um todo na cidade, havendo, portanto, uma relação direta entre
o aumento da manutenção da ordem com a diminuição dos crimes violentos.
Se o controle de armas, declínio da cultura de drogas e melhoria da economia
têm o condão de interferir nos índices de crime, a depender do contexto local, a
atuação da polícia é capaz de moldar a direção e potencializar o efeito deste
impacto42.
39 HARCOURT; LUDWIG. Op. Cit. p. 45. Tradução nossa. 40 KELLING; SOUSA. Op. Cit. 41 A geração nascida em após 1973 atingiria os 16 anos a partir de 1989. DONAHUE e LEVITT argumentam, no artigo “The impact of legalized abort on crime” que o aborto legalizado impediu que um grande número de crianças indesejadas chegasse à adolescência no final dos anos 80 e início dos 90, o que pressionou para baixo o índice de crimes. DONAHUE, John J, III; LEVITT, Steven D. The impact of legalized abort on crime. Quarterly Journal of Economics. Vol. CXVI. Massachusetts, 2ed. 2001. Disponível em http://pricetheory.uchicago.edu/levitt/Papers/DonohueLevittTheImpactOfLegalized2001.pdf 42 KELLING; SOUSA. Op. Cit. p. 19
4. ABORDAGEM CRÍTICA
Um dos principais críticos da “Teoria das Janelas Quebradas” é o
sociólogo francês Loïc Wacquant. Em seu livro As prisões da miséria43,
Wacquant traça uma severa crítica tanto à Teoria das “Janelas Quebradas” e à
política “Tolerância Zero”, as quais reputa como sendo políticas de controle
social racistas e segregacionistas, destinada a combater os pobres:
A penalidade neoliberal apresenta o seguinte paradoxo:
pretende remediar com um "mais Estado" policial e
penitenciário o "menos Estado" econômico e social que é
a própria causa da escalada generalizada da insegurança
objetiva e subjetiva em todos os países, tanto do Primeiro
como do Segundo Mundo.44
O sociólogo se utiliza, na sua análise, do pressuposto marxistas da
pretensa “luta de classes” – a qual seria “o motor da história”. Wacquant crê
que o conjunto de teoria e prática aplicada em Nova York seriam somente uma
reação do estado “neoliberal” para cercar e excluir a pobreza por meio da ação
policial, ou seja, um exemplo de luta de classes, em que as “Classes
Dominantes” utilizam o direito penal para controlar e oprimir as “Classes
Dominadas”.
Wacquant cita casos de racial profilling e violência excessiva por parte
da polícia, como a tortura de Abner Louima45 e o assassinato de Amadou
Diallo46, e atribui a desproporção entre brancos, latinos e negros no sistema
correcional47 a um racismo institucional. Cita também o que considera um
43 WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 2001 44 WACQUANT. Op. Cit. p.07 45 Louima, um imigrante haitiano, foi preso em 1997, durante uma briga de rua, acusado de haver, na confusão, agredido um policial. Louima foi torturado durante a noite, ficando internado por dois meses. A repercussão do caso lançou acusações de racismo contra a polícia. 46 Diallo foi morto em 1999 por 4 policiais. Levou 41 tiros, após ser confundido com um estuprador que estava sendo perseguido. Os policiais alegaram legítima defesa putativa, tendo confundido a carteira que ele sacou após ser ordenado parar com uma arma. Os quatro foram absolvidos pelo Tribunal do Júri. 47 Estes dois últimos constituem a maioria dos detentos do país, apesar de serem minorias étnicas
excessivo número de reclamações civis sobre a conduta policial protocolizadas
junto ao Civilian Complaint Review Board :
De fato, os incidentes com a polícia se multiplicaram
desde a implantação da política de "qualidade de vida",
uma vez que o número de queixas feitas diante do
Civilian Complaint Review Board de Nova York aumentou
bruscamente em 60% entre 1992 e 1994. A grande
maioria dessas queixas diz respeito a "incidentes por
ocasião de patrulhas de rotina" – em oposição às
operações de polícia judiciária -, cujas vítimas são
residentes negros e latinos em três quartos dos casos.
Só os afro-americanos realizaram 53% das queixas, ao
passo que representam apenas 20% da população da
cidade. E 80% dos requerimentos contra violências e
abusos por parte dos policiais foram registrados em
apenas 21 dos 76 distritos entre os mais pobres da
cidade48
Wacquant também alega que a fórmula de policiamento ostensivo e
prevenção de delitos inserido no tolerância zero ”exclui comodamente a
criminalidade de ‘colarinho branco’ ou institucional”49. As críticas de Wacquant,
entretanto, têm mais fundamento na retórica ideológica antiliberal que
propriamente nos fatos. Asseveram Kelling e Sousa:
Ademais, pouca evidência sustenta as críticas de que o
incremento das ações de manutenção da ordem conduz
a um aumento de reclamações de cidadãos contra a
Polícia. Após um aumento inicial de reclamações entre
1994 e 1995 o número de reclamações de fato diminuiu
pelo resto da década – de 5.618 em 1995 para 4.903 em
1999. Esta diminuição ocorreu apesar do fato de o
48 WACQUANT. Op. Cit. p.30 49 Idem. Dissecando a “tolerância zero”. Le Monde Diplomatique. Junho, 2002. Disponível em http://diplo.uol.com.br/2002-06,a336
número de oficiais nas ruas ter crescido no mesmo
período de tempo (de 30.524 em 1994 para 39.642 em
1999)50
A idéia de que a “Tolerância Zero” seria uma abordagem criminal da
pobreza, estritamente o incremento do estado policial face ao esvaziamento do
estado social também não se sustenta. Num período de cerca de 7 anos o
governo Giuliani retirou cerca de 700.000 pessoas da Assistência Social, ao
passo que, pelo menos nos dois últimos anos de seu mandato a cidade gerou
cerca de 100.000 vagas de trabalho por ano51. Ademais, não é o estado dos
indivíduos o alvo da ação policial, mas a sua conduta.
Também, curial ressaltar que, quando o projeto “Tolerância Zero” foi
inicialmente aplicado no metrô, o incremento da segurança gerado pela retirada
de circulação de vândalos, baderneiros, viciados e assaltantes dos vagões e
estações não beneficiou senão os usuários do sistema, em sua vasta maioria
composta por trabalhadores de classe média baixa ou pobres.
Igualmente, o aumento do policiamento em bairros como, por exemplo, o
Harlem, famoso pelas guerras entre gangues de traficantes de crack, de fato
pôde ser comprovado no aumento do número de negros e hispânicos presos.
Entretanto, não se pode olvidar que negros e hispânicos constituíam, também,
a maior parte das vítimas de crimes violentos. O aumento da segurança e da
ordem no Harlem significou, para os habitantes deste bairro, uma expansão
das perspectivas de futuro, diminuição no número de homicídios, agressões,
ameaças, arrombamentos, um aumento no valor dos imóveis e novos
investimentos, que geram emprego e renda52. Como afirmam Kelling e Bratton:
Cidadãos, independentemente de classe social e origem
étnica, em geral concordam em o quê constitui
50 KELLING; SOUSA. Op. Cit. p.19. Tradução nossa. 51 GIULIANI, Rudolph. Entrevista à Academy of Achievement em 3 de maio de 2003. Disponível em: http://www.achievement.org/autodoc/page/giu0int-4 52 Cf. GOTHELF, Eldad. The Economic Redevelopment of Harlem: A Snapshot in Time. Tese de mestrado em Planejamento Urbano, Universidade de Columbia. 2004. Disponível em http://www.urban.columbia.edu/people/alumni/2004thesis_pdf/EGothelfThesis.pdf . 48 KELLING, George L.; BRATTON, William J. Taking back the streets. City Journal. Verão de 1994. disponível em http://www.city-journal.org/article01.php?aid=1428 . Tradução nossa.
desordem, e eles querem que algo seja feito contra ela.
Regras de civilidade não são impedimentos para o
pluralismo e diversidade. Ao contrário, civilidade é uma
condição necessária para a tolerância53.
Já a discricionariedade do policial de rua é um requisito necessário e
delicado para a manutenção da ordem. Deve haver uma certa margem de
possibilidade interpretativa nas leis para que a polícia possa lidar com
indivíduos que pertubem a paz de uma determinada comunidade. Esta margem
– que não deve ser grande o suficiente para implicar em incriminações vagas e
indeterminadas54 – garante ao policial a possibilidade de exercer autoridade
sobre situações de desordem, sem que fique desmoralizado ou se torne ele
mesmo um elemento pernicioso para a ordem na comunidade. E mais, como
afirmam Wilson e Kelling
[ Há a esperança de que ] com seleção, treino e
supervisão o policial será inculcado com um senso claro
do que é o limite de sua autoridade discricionária. Este
limite, grosso modo, é esse, a polícia existe para regular
o comportamento, e não para manter a pureza étnica ou
racial de uma comunidade55.
A abordagem de Wacquant, de outro lado, comunga com os princípios
que regem a Criminologia dita “Crítica”, que prega a tutela penal somente para
os campos tidos como prioritários para a comunidade (aparentemente
confundida aí com o Estado), como a criminalidade financeira e econômica,
crimes contra o meio ambiente, a organização do trabalho e crimes contra a
saúde pública56.
54 A Suprema Corte dos EUA julgou inconstitucionais algumas leis estaduais consideradas excessivamente vagas na tipificação dos delitos relacionados a desordem e vadiagem 55 WILSON; KELLING. Op Cit. p.07 56 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 5ed. Rio de Janeiro. Revan. 2001. p.37
A inversão das prioridades, e a conseqüente incompatibilidade entre os
primados da Teoria “Broken Windows” com a dita “Criminologia Crítica” é óbvia.
Enquanto esta crê que somente as condutas que afetam, de fato,
primordialmente ao poder do Estado (o Estado entendido como representante
dos interesses da coletividade) devem ser protegidas, aquela põe como valor
fundamental a segurança e o bem estar dos indivíduos que compõem a
estrutura da sociedade. Como assevera o filósofo Olavo de Carvalho
Ora, um sujeito com a cabeça cheia de intenções
criminosas, mas armado apenas de talão de cheques não
representa senão um perigo virtual e de longo prazo:
para efetivar suas intenções ele tem de contatar, recrutar,
equipar e treinar um esquadrão de pés-de-chinelo, o que
não se faz em dois dias, e, para complicar as coisas, tem
de fazer tudo isso por vias indiretas, por interpostas
pessoas, para manter oculta sua respeitável identidade.
Quem está nas ruas assaltando e matando, quem
representa o perigo imediato para a população, são pés-
de-chinelo armados de granadas e metralhadoras, e não
os colarinhos-brancos que os contrataram dez ou doze
anos atrás. Em segundo lugar, é absolutamente
impossível que quadrilhas a soldo de algum ricaço não
tenham, depois de tanto tempo de exercício profissional,
adquirido autonomia financeira para dispensar seus
antigos patrões e operar por conta própria. Terceiro, se a
polícia prende um colarinho-branco, os pés-de-chinelo
que trabalhavam para ele vão imediatamente pedir
emprego a outro empresário do crime — exatamente
como os esbirros da Máfia trocavam de famiglia em caso
de morte ou prisão do seu capo — ou então
estabelecem-se por conta própria, de modo que,
saneadas as classes altas, a vida do povão das ruas
continuará um inferno.57
5. A ORDEM. BEM JURÍDICO A SER PROTEGIDO?
O advento das escolas ditas críticas, amparadas na ideologia marxista –
ou em resquícios dela – retirou a noção de ordem como um bem jurídico a ser
protegido pelo Direito Penal. O relativismo cultural que se instalou a partir da
metade do século XX, com o afastamento da moral não somente das
pesquisas como da interpretação e análise científica, utilizou-se do fato, por
exemplo, de que o crime é uma definição social para nivelar e igualar as
condutas: Matar uma criança ou amamentá-la seriam ações de igual valor,
sendo crime ou virtude de acordo com a ideologia do momento.
As propostas de descriminalização de condutas vêm ganhando
terreno58. A maior parte das contravenções penais já não são reprimidas, ou o
são de maneira esporádica, somente quando o agente policial, de maneira
fortuita, efetua um flagrante aleatório. Todo cidadão, entretanto, tem o direito
ao sossego e à tranquilidade e ao usufruto de seus bens. É uma regra básica
da vida em sociedade.
Por um corolário do princípio da lesividade – a vedação de proibição de
condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico – interpretado à luz
do Princípio da Intervenção Mínima – adotado como critério pelas escolas
críticas e pela práxis estratégica policial – não haveria bem jurídico nenhum
ofendido em, por exemplo, adolescentes em algazarras e gestos obscenos
57 CARVALHO, Olavo de. O Imbecil coletivo: atualidades inculturais brasileiras. 5 ed. Rio de Janeiro, Faculdade da Cidade Editora e Academia Brasileira de Filosofia,. 1997. p. 141. Para compreender com mais profundidade a natureza e as conseqüências desta maneira de encarar a sociedade, cf. CARVALHO, Olavo de. A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra & Antônio Gramsci. Rio, IAL & Stella Caymmi, 3 ed. 1994 disponível em: http://www.olavodecarvalho.org/livros/neindex.htm 58 Exemplar, neste contexto, a Lei 11.343/06, que facilitará a estratégia do tráfico de entorpecentes de distribuir pequenas quantidades para os traficantes, de modo que estes, detidos, recebam sua “admoestação verbal” e retornem às ruas.
num bairro residencial. Falta lesividade, visto que moral e bons costumes não
deveriam ser casos de polícia59.
Entretanto, como sabiamente asseveram Wilson e Kelling
O desejo de ‘descriminalizar’ comportamentos de má
reputação que ‘não ferem ninguém’ removem a última
sanção que a polícia pode empregar para manter a
ordem na vizinhança, e isso, pensamos, é um engano.
Prender um simples bêbado ou um vadio que não feriram
ninguém identificável parece injusto, e numa certa
medida o é. Mas falhar em fazer alguma coisa contra uns
vinte bêbados ou uma centena de vadios pode destruir
uma comunidade. Uma regra particular que parece fazer
sentido neste caso em particular não faz sentido quando
é feita de regra universal aplicada em todos os
casos.Não faz sentido pois falha em levar em conta a
relação entre uma janela quebrada e não reparada e uma
centena de janelas quebradas. Claro, agências outras
que não a polícia podem atender aos problemas
causados por bêbados e doentes mentais, mas em
muitas comunidades – especialmente onde o movimento
de ‘desinstitucionalização’ é forte – elas não podem
nada60.
À guisa de comparação cumpre ressaltar, por exemplo, que a lei
7.643/87 estabelece em seu Art. 1º que "fica proibida a pesca, ou qualquer
forma de molestamento intencional, de toda espécie de cetáceo nas águas
jurisdicionais brasileiras". Como, na visão penal crítica, ataques contra o meio
ambiente são passíveis da intervenção da esfera penal do Estado, entramos
num paradoxo, em que o molestamento intencional de seres humanos deixa de
59 BATISTA. Op. Cit.p. 94 60 WILSON; KELLING. Op. Cit.p.09
ser reprimido, por não ser o sossego e a ordem bens jurídicos a serem
protegidos – dada a vagueza da definição – ao passo em que o molestamento
intencional de baleias é passível de dois a cinco anos de reclusão.
6. CONCLUSÃO
A discussão sobre segurança pública tem tido espaço constante no
contexto político brasileiro graças ao agravamento do banditismo e a sensação
de que o país caminha, aparentemente, para a anomia. Nestas circunstâncias,
o modelo oferecido pela Teoria “Broken Windows” pode vir a ter papel
substancial neste debate.
O banditismo associado ao tráfico de entorpecentes está no cerne da
violência no Brasil. Em que pese quadrilhas terem existido antes deste
fenômeno, nunca nenhuma atingiu o grau de organização atingido pelo
Comando Vermelho e pelo Primeiro Comando da Capital.
O Comando Vermelho, mais antigo dos grandes grupos criminosos,
surgiu nos idos dos anos 70. Em virtude dos ataques de grupos terroristas de
orientação comunista contra instituições bancárias, em 1969 o assalto a
bancos foi enquadrado no Art. 27 da Lei de Segurança Nacional vigente61.
Esta circunstância permitiu que terroristas treinados cumprissem pena
em conjunto com criminosos comuns. Iniciou-se então um processo de
doutrinamento destes em técnicas de guerrilha urbana, comando, planejamento
e tática. O objetivo dos terroristas era, possivelmente, o de utilizar o dito
subproletariado (Lumpenproletariat) na revolução socialista que planejavam62.
Ao longo dos anos 80, em especial no primeiro governo de Leonel
Brizola, o Estado ausentou a polícia dos morros cariocas63. Os quadrilheiros
organizados tiveram então o que seus professores terroristas não tiveram:
sossego por parte das autoridades. Aproveitaram o absenteísmo oficial das 61 AMORIM, Carlos. Comando Vermelho: A história secreta do crime organizado. 5 ed. Rio de Janeiro, Record, 1995 62 CARVALHO, Olavo de. A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra & Antônio Gramsci. Apêndice 1. Rio, IAL & Stella Caymmi, 3 ed. 1994. disponível em: http://www.olavodecarvalho.org/livros/neesquerdas.htm 63 AMORIM. Op Cit. p.149
forças da lei e da ordem para imporem, por meio da intimidação, seu próprio
sistema de leis e ordem àquelas comunidades.
A abordagem policial à criminalidade militarizada foi também militar.
Exemplar a descrição do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) da Polícia
Militar carioca
O BOPE não foi preparado para enfrentar os desafios da
segurança pública. Foi concebido e adestrado para ser
uma máquina de guerra. Não foi preparado para lidar
com cidadãos e controlar infratores, mas para invadir
territórios inimigos64
As incursões da Polícia têm caráter meramente reativas e temporárias. A
polícia não reassume os morros, senão por breves momentos, retirando-se
uma vez neutralizado o alvo específico, numa circunstância já explicada pelo
insuspeito Hobsbawm
Em primeiro lugar, um bando representa algo com o qual
o sistema local precisa estabelecer um modus vivendi.
Onde não existe nenhum mecanismo regular e eficiente para a manutenção da ordem pública – e isto ocorre por definição nas áreas em que floresce o
banditismo – não há muita utilidade em se invocar a
proteção das autoridades, tanto mais que tais apelos
provocarão o envio de uma força expedicionária armada,
que arrasará a economia da aldeia ainda mais que os
bandidos65.
64 SOARES, L. E.; BATISTA, A.; PIMENTEL, R. Elite da Tropa. Rio de Janeiro. Objetiva, 2006. p.08. Este livro é pródigo em exemplos do dia-a-dia da insegurança urbana na cidade do Rio de Janeiro 65 HOBSBAWM, Eric. Bandidos apud AMORIM, Op. Cit.p.261. Grifo nosso.
Na esteira do tráfico de entorpecentes a violência conquista agora as
cidades médias66, em especial as fronteiriças e que ficam às margens das
principais rotas de transporte de narcóticos.
Enquanto isso, na maior parte do Brasil as polícias continuam apegadas
ao modelo R3 abandonado em Nova York desde o início dos anos 90.
Continuam a se limitar a reagir às ocorrências, a não construir laços com as
comunidades e sequer entre si, a permitir que o medo silencie os cidadãos e
que a burocracia, a falta de pessoal e material comprometam as investigações.
A “Broken Windows Theory” não propõe a instalação de um Estado
policial perseguidor dos pobres. Não se criminaliza o estado pessoal, mas a
conduta individual. Consertar as janelas quebradas não significar erigir “vilas
Potemkin” para mascarar a pobreza. A violência e a desordem aprofundam as
dificuldades por que passam os pobres, e não significam “gritos” de liberdade,
mas senão a sujeição dos cidadãos ordeiros e honestos ao arbítrio de uns
poucos quadrilheiros.
Não existem muitas alternativas para a situação Brasileira. Todas
passam por, no mínimo, reconquistar as ruas – inclusive e principalmente das
favelas – para os cidadãos e, conseqüentemente, negá-las para o banditismo.
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