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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ
JOSÉ JACIR VICTOVOSKI
CONTRIBUINDO PARA UMA TEORIA GERAL DOS PROCESSOS COLETIVOS
Rio de Janeiro 2008
JOSÉ JACIR VICTOVOSKI
CONTRIBUINDO PARA UMA TEORIA GERAL DOS PROCESSOS COLETIVOS
Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito, pela Universidade Estácio de Sá.
Orientador: Prof. Dr. Rogério José Bento Soares do Nascimento
Rio de Janeiro 2008
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
A dissertação
CONTRIBUINDO PARA UMA TEORIA GERAL DOS PROCESSOS COLETIVOS
elaborada por
JOSÉ JACIR VICTOVOSKI
e aprovada por todos os membros da Banca Examinadora foi aceita pelo Programa de Pós-
Graduação em Direito como requisito parcial à obtenção do título de
MESTRE EM DIREITO
Rio de Janeiro, xx de xxxx de 2008.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________ Prof. Dr. Rogério José Bento Soares do Nascimento
Presidente Universidade Estácio de Sá
__________________________________________
Prof. Dr. ........ Universidade Estácio de Sá
__________________________________________
Prof. Dr. Universidade.......
Dedico esta dissertação a minha mãe e meus
irmãos, que sempre me deram apoio nas escolhas
profissionais que fiz na vida. E de modo especial,
a minha esposa Gisele, ao Léo e minha filha
Bianca.
AGRADECIMENTOS
Inicialmente, agradeço os ensinamentos de meu orientador, Professor Dr. Rogério José
Bento Soares do Nascimento, que muito contribuíram para a elaboração desta dissertação e que,
acredito, jamais serão esquecidos.
Aos demais professores da Universidade Estácio de Sá, que me fizeram compreender o
Direito de um modo até então ignorado.
Aos colegas e amigos de mestrado pelas memoráveis horas de convivência e aprendizado.
E, principalmente, a minha esposa Gisele, ao Léo e minha filha Bianca pela compreensão
dispensada nas infindáveis horas de afastamento, bem como, pela tolerância diante da habitual
desatenção originária da preocupação para concretizar com o máximo de qualidade possível a
presente pesquisa.
RESUMO
A presente dissertação, desenvolvida na área de concentração do Curso de Mestrado da Universidade Estácio de Sá – Direito Público e Evolução Social – na linha de pesquisa Acesso à Justiça e Efetividade do Processo, tem como objetivo examinar se é ou não necessária a elaboração de uma Teoria Geral dos Processos Coletivos, diferenciada da clássica e tradicional Teoria Geral do Processo Civil, como veículo para uma maior efetividade na garantia dos direitos fundamentais, ou se a realização de adaptações e ajustes, visando manter os processos individuais e os coletivos dentro de uma ótica unitária do processo civil já são suficientes. Parte do reconhecimento de que o século XX foi marcado por diversas e significativas transformações sociais e que motivaram alterações na política, na forma de organização social e no Direito. Entre as mudanças no Direito, destaca-se o surgimento dos chamados novos direitos, entre os quais estão os direitos coletivos lato sensu, considerados típicos das sociedades contemporâneas, o que obrigou os Estados a promover adaptações legislativas e a criação de novos instrumentos processuais, capazes de garantir a tutela jurisdicional dos mesmos. No Brasil, as mudanças legislativas constituem o chamado microssistema processual coletivo, considerado sofisticado e de vanguarda, voltado para a tutela jurisdicional dos direitos coletivos. O microssistema processual coletivo apresenta normas, princípios e institutos próprios, mesmo porque, os mecanismos apresentados pelo processo civil clássico, de cunho individualista, não foram pensados para a resolução de conflitos de ordem coletiva. O aprofundamento teórico da investigação realizada baseou-se em pesquisa bibliográfica, consistindo na análise da legislação vigente, doutrinas e artigos jurídicos, sendo utilizado o método dedutivo. Foi constatado que os institutos, normas e determinados princípios do processo civil clássico mostram-se incompatíveis para a tutela de qualquer outra modalidade de direito que não os de natureza intersubjetiva. Há uma notória inaptidão do processo civil clássico quando aplicado na resolução de conflitos coletivos, visto que as fórmulas e padrões herdados do processo civil individualista não possibilitam ao processo coletivo desempenhar o papel que lhe é cabível em um cenário de Estado Democrático de Direito, o qual congrega entre outros valores primordiais, a garantia de acesso coletivo à justiça e de efetivação ou concretização dos direitos, culminando na transformação da realidade social.
Palavras-chave - Ações Coletivas, Processos Coletivos, Teoria Geral dos Processos Coletivos.
ABSTRACT
The present dissertation was developed in area of concentration of Course – Public Right and Human Evolution – in line of research Access to Justice and Effectiveness Process, the objective is examine if is or not necessary the elaboration of the General Theory of Collective Processes, to act as transmitter for greater effectiveness in guarantee of basic rights, or if the realization of adaptation and adjustments, seeking, keep the individual processes and the collectives within the optics unitarian Civil Procedure are already sufficient. Part of recognition that XX century was marked for differents and significant social transformations and that motivated alterations in politics, in the form of social organisation and the Right. Between the changes in Right, detached the emergence of called news rights, among wich are the collectives rights lato sensu, considered typical of contemporary societies, which forced States to promote legislative adaptations and the creation of the news instruments procedural, capable to guarantees the tutelage jurisdiction the same. In Brazil, the legislative changes, establish the called collective procedural microsystem, considered sophisticated and forefront, face the jurisdiction tutelage of the collectives rights. The collective procedural microsystem present norms principles and own institutes, just because, the mechanism presented for classic civil proceedings, stamp of individualistic, were not thought for the resolution the conflicts of collective order. The deepening theoretical of scientific research based in bibliographic research, consisting in analysis effective, doctrine and juridical articles, being used the deductive method. Was found that the institutes, norms and certain principles of classic civil procedure manifest, incompatible for the tutelage any other modality the Right than the intersubjective nature. There are a notorious inaptness of classic civil procedure when applied in resolution of the collectives conflicts, since the forms and model get by the individualist civil procedure do not enables to collective procedure to play the part it is appropriate in a scenery the Democratic State of Right, which congregate among others primordial values, the guaranty of collective access to justice and effect or accomplishment rights, culminating in transforming of social reality.
Keywords - Collectives Actions, Collectives Processes, General Theory of Collective Processes.
ABREVIATURAS
CF – Constituição Federal
CPC – Código de Processo Civil
CDC – Código de Defesa do Consumidor
LACP – Lei da Ação Civil Pública
LAP – Lei da Ação Popular
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................................... 11
CAPÍTULO I
1 DIREITOS COLETIVOS E TUTELA JURISDICIONAL ............................................................... 14
1.1 O IDEÁRIO JURÍDICO DO ESTADO MODERNO E A TUTELA PROCESSUAL DOS DIREITOS COLETIVOS .......................................................................................................................................... 14
1.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS, DIREITOS DO HOMEM E DIREITOS HUMANOS: DELIMITAÇÃO CONCEITUAL E DEFINIÇÃO TERMINOLÓGICA............................................... 23
1.3 DIREITOS FUNDAMENTAIS: ASPECTOS HISTÓRICOS, A PROBLEMÁTICA DAS DIMENSÕES E OS DIREITOS COLETIVOS................................................................................................. 26
1.4 AS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS E O SURGIMENTO DE NOVOS DIREITOS.............. 34
1.5 OS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS E OS DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS ENQUANTO DIMENSÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS .............................................................. 36
1.5.1 Direitos e interesses coletivos stricto sensu............................................................................................. 41
1.5.2 Direitos e interesses difusos........................................................................................................................... 43
1.5.3 Direitos e interesses individuais homogêneos ........................................................................................ 46
1.6 DIREITOS VERSUS INTERESSES .............................................................................................................. 49
1.7 A SUMMA DIVISIO E OS DIREITOS COLETIVOS ............................................................................ 52
1.8 A NATUREZA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS, AÇÕES E PROCESSOS COLETIVOS .................................................................................................................................................................. 55
9
CAPÍTULO II
2 PROCESSOS COLETIVOS.............................................................................................................................. 59
2.1 O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL NO ÂMBITO DA TUTELA COLETIVA......................... 60
2.2 O MICROSSISTEMA PROCESSUAL COLETIVO.............................................................................. 62
2.3 A ORIGEM DAS AÇÕES COLETIVAS E O MODELO ADOTADO NO BRASIL ............... 66
2.4 AS AÇÕES COLETIVAS ENQUANTO MECANISMO DE ACESSO À JUSTIÇA .............. 74
2.5 AS AÇÕES COLETIVAS ENQUANTO MECANISMO DE ECONOMIA PROCESSUAL 79
2.6 AS AÇÕES COLETIVAS ENQUANTO MECANISMO DE EDUCAÇÃO E EFETIVAÇÃO DE DIREITOS ............................................................................................................................................................... 80
2.7 ASPECTOS DESTACADOS DAS AÇÕES COLETIVAS BRASILEIRAS ................................ 83
2.7.1 Ação Popular....................................................................................................................................................... 84
2.7.2 Ação Civil Pública............................................................................................................................................. 87
2.7.3 Mandado de Segurança Coletivo ................................................................................................................. 90
2.7.4 Ação Coletiva ou Ação Civil Coletiva........................................................................................................ 94
2.8 OS ANTEPROJETOS DE CÓDIGO BRASILEIRO DE PROCESSOS COLETIVOS ............ 99
CAPÍTULO III
3 UMA TEORIA GERAL DOS PROCESSOS COLETIVOS ........................................................... 104
3.1 CONDIÇÕES DA AÇÃO ................................................................................................................................ 106
3.2 LITISPENDÊNCIA ............................................................................................................................................ 113
3.2.1 Litispendência entre ações coletivas ........................................................................................................ 114
3.2.2 Litispendência entre ações coletivas e ações individuais................................................................. 116
3.3 CONEXÃO E CONTINÊNCIA..................................................................................................................... 124
3.4 SENTENÇA E COISA JULGADA.............................................................................................................. 129
3.4.1 A coisa julgada nos casos de intervenção do interessado no processo ...................................... 135
10
3.4.2 Os efeitos da sentença oriundos das ações coletivas e os direitos individualmente considerados ................................................................................................................................................................. 137
3.4.3 A concomitância de ações coletivas e individuais e a coisa julgada ........................................... 138
3.4.4 O modelo de extensão da coisa julgada adota no Brasil e a contraposição com o processo tradicional ...................................................................................................................................................................... 140
3.5 LIQUIDAÇÃO E CUMPRIMENTO DA SENTENÇA....................................................................... 142
3.6 A JURISDIÇÃO NOS PROCESSOS COLETIVOS ............................................................................. 146
3.7 PRINCÍPIOS DA TUTELA JURISDICIONAL COLETIVA ........................................................... 151
3.7.1 Princípio do acesso à justiça....................................................................................................................... 151
3.7.2 Princípio da universalidade da jurisdição ............................................................................................. 153
3.7.3 Princípio da participação ............................................................................................................................. 154
3.7.4 Princípio da economia processual ............................................................................................................ 154
3.7.5 Princípio da instrumentalidade das formas........................................................................................... 155
3.7.6 Princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional coletiva ............................................... 157
3.8 DA NECESSIDADE DE UMA TEORIA GERAL ESPECÍFICA PARA OS PROCESSOS COLETIVOS ................................................................................................................................................................ 158
CONCLUSÃO ............................................................................................................................................................ 164
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................................ 168
INTRODUÇÃO
As últimas décadas do século XIX e todo o século XX foram marcados por significativas
transformações sociais, originárias de fatores e eventos que incluem o agigantamento industrial,
os avanços tecnológico e científico, a globalização da economia, as massificações de produtos,
serviços e dos meios de comunicação, e de acontecimentos com proporções globais,
notadamente, as duas guerras mundiais.
Tais mudanças sociais, que motivaram alterações na política e na própria forma de
organização social, também atingiram o Direito, sendo apontadas enquanto fontes de origem dos
denominados direitos coletivos, típicos da sociedade contemporânea, e que incluem os
amplamente difundidos direitos do consumidor e direitos de proteção e preservação do meio
ambiente.
Por direitos de ordem coletiva, compreendidos com abrangência lato sensu, entendem-se
aqueles originários de ameaças ou efetivas lesões que atingem de forma concomitante conjuntos
determinados ou indeterminados de pessoas.
Ocorre que, inicialmente, o Direito Processual Civil brasileiro não foi pensado para tutelar
tais direitos, eis que concebido sob a influência das teorias que fundamentaram o direito privado,
com filiação nos princípios do positivismo jurídico, cenário em que o Direito é vinculado à figura
da lei e que em prol da segurança jurídica busca estabelecer a priori as conseqüências da conduta
humana.
12
Assim, o clássico Direito Processual Civil não poderia apresentar-se de outro modo, senão
voltado para a solução dos litígios de evidenciada natureza individual. E para garantir que as
decisões judiciais sejam efetivamente norteadas pelos preceitos jurídicos do chamado direito
material, as normas processuais não poderiam ser arquitetadas sem uma sólida base formalista,
objetivando impedir a ambigüidade.
Tendo em vista este cenário e para garantir minimamente a tutela jurisdicional dos
direitos coletivos, notadamente os direitos difusos, coletivos stricto sensu e individuais
homogêneos, diversas criações e modificações legislativas foram efetivadas nas últimas décadas
do século XX, alterando substancialmente o sistema processual pátrio, e que culminou na
organização de um verdadeiro micro ou subsistema processual coletivo, sem prejuízo da
manutenção e até mesmo aprimoramento da legislação atinente ao processo civil clássico, voltado
para a solução dos conflitos de natureza individual.
O chamado microssistema processual coletivo existente no Brasil é considerado rico,
sofisticado e de vanguarda no contexto internacional, o que faz pensar que o mesmo é autônomo
em relação ao Direito Processual Civil tradicional, na medida em que observa normas, princípios
e institutos fundamentais próprios. No que tange aos institutos do processo civil clássico, de
cunho individual, cumpre observar a disparidade apresentada pelos mesmos quando inseridos em
âmbito processual coletivo, mesmo porque, não foram pensados para vigorar nesta seara e
resolver litígios cujos titulares do direito são dezenas, centenas, milhares e, por vezes, até milhões
de pessoas.
E são estes dois fatores que têm motivado entendimentos que ora defendem a idéia de que
no Brasil o Direito Processual Coletivo já constitui um novo ramo do direito processual, com
objeto e método próprios, e ora sustentam a necessidade de elaboração de uma teoria geral
específica para o mesmo.
E é justamente a análise do segundo entendimento que será realizada na presente
dissertação, no sentido de saber se, de modo efetivo, o Brasil já possui elementos que lhe
possibilitam elaborar uma Teoria Geral dos Processos Coletivos, bem como, até que ponto tal
elaboração torna-se necessária por influir em aspectos da tutela jurisdicional coletiva, incluindo o
13
acesso à justiça, a efetivação dos direitos e o papel desempenhando pelos processos coletivos no
Estado Democrático de Direito.
A pesquisa justifica-se na medida em que se constata que a tutela jurisdicional coletiva é
considerada fenômeno recente e apresenta-se permeada de problemas operacionais diversos e
discussões intermináveis que resultam, justamente, das inaptidões e incongruências encontradas
em institutos processuais aplicados nos processos coletivos, os quais foram projetados para
vigorar em processos de tríade individualista e que compreende para fins de formação da relação
processual, os elementos autor (cuja legitimidade ativa lhe é atribuída por ser o titular do direito
lesado ou ameaçado de lesão), réu e Estado-juiz.
Por conseguinte, cumpre saber se tais disparidades demandam de modo efetivo a
elaboração de uma teoria específica e que necessariamente desencadeará na formação de um
novo ramo do direito processual, ou se os conceitos e institutos do tradicional Direito Processual
Civil permitem adequações que lhes tornem aptos a vigorar em ambientes de tutela jurisdicional
coletiva.
A relevância da pesquisa encontra-se na atualidade do tema e o método utilizado é o
dedutivo, sendo que a mesma apresenta adequação com a área de concentração do curso – Direito
Público e Evolução Social – e considera a linha de pesquisa Acesso à Justiça e Efetividade do
Processo.
Para obtenção das conclusões, a pesquisa está dividida em três capítulos, sendo que o
primeiro inclui abordagens sobre o pensamento jurídico moderno e a nova realidade social, o
nascimento e evolução dos direitos fundamentais, os fatores sociais que motivaram o surgimento
de novos direitos, e os diretos coletivos na condição de direitos de terceira dimensão; o segundo
inclui uma análise da legislação brasileira elaborada para garantir a tutela jurisdicional dos
direitos coletivos, a origem das ações coletivas e o modelo adotado no Brasil, as ações coletivas
enquanto mecanismo de acesso à justiça, de economia processual, de concretização de direitos e
de educação social, e uma síntese dos principais aspectos que envolvem as ações coletivas
brasileiras; e, por fim, o terceiro trata de uma análise de diversos institutos e princípios do direito
processual, bem como, o que pensa a especializada doutrina brasileira sobre a possibilidade e até
mesmo necessidade de elaboração de uma teoria geral específica para os processos coletivos.
CAPÍTULO I
1 DIREITOS COLETIVOS E TUTELA JURISDICIONAL
Pelo fato de apresentar os primeiros registros a partir do século XI, a Inglaterra é apontada
pela doutrina especializada como sendo o nascedouro das ações coletivas. Contudo, em que pese
apresentar acontecimentos que motivaram discussões de assuntos coletivos no período medieval,
somente no século XVII o assunto passou a receber a devida atenção do Direito, quando juristas
deram início a justificação e teorização da matéria.
Mas é no século XX que o mundo se deparara com diversas transformações sociais, e que
são apontadas enquanto causadoras de ameaças ou efetivas lesões a direitos de grupos
determinados ou não de pessoas, a ponto de muitos direitos coletivos ou “direitos de massas”
serem considerados típicos das sociedades contemporâneas.
Neste primeiro capítulo da dissertação, é elaborada uma análise do pensamento jurídico
ocidental a partir do século XVII e de que modo tal forma de interpretar e aplicar o Direito se
comportou e se comporta diante destas transformações sociais e dos direitos de ordem coletiva, o
que inclui uma definição das categorias e espécies de direitos coletivos, e de como os mesmos se
inserem no conjunto dos direitos fundamentais.
1.1 O IDEÁRIO JURÍDICO DO ESTADO MODERNO E A TUTELA PROCESSUAL DOS DIREITOS COLETIVOS
15
A moderna cultura jurídica nasceu na Europa Ocidental entre os séculos XVII e XIX,
produto do capitalismo, da organização social burguesa, da projeção doutrinária liberal-
individualista e da centralização estatal como forma de consolidação política. Com o nascimento
da cultura jurídica moderna, a monarquia absolutista e a burguesia suplantaram a ordenação
medieval, caracterizada pelas instituições corporativas e pela pluralidade dos sistemas jurídicos.1
Esta explicação de Wolkmer sintetiza o rompimento que há nos países ocidentais,
efetivado no século XVIII, concernente às formas de Direito até então concebidas, sendo que um
novo cenário jurídico passa a ser implementado e suas diretrizes aceitas até os dias atuais, em que
pese ser objeto de constantes e severas críticas, tendo em vista as diversas mudanças ocorridas na
sociedade a partir do século XIX e intensificadas no século XX, conforme ver-se-á neste
trabalho.
Para maior clareza, cumpre esclarecer, de início, que não será explicitada nesta pesquisa a
evolução histórica pela qual passou o Estado. A abordagem recai sobre o positivismo jurídico e
sua influência na seara processual, considerando a pertinência que há entre o tema e o objeto da
presente pesquisa, o qual remonta aos chamados novos direitos, típicos das sociedades
contemporâneas.
Não dá para falar de positivismo jurídico sem mencionar que Thomas Hobbes é apontado
como sendo o pai ou precursor na elaboração da teoria.2 Também não dá para falar de
positivismo jurídico sem fazer um contraponto com o direito natural, isto porque, a expressão
positivismo jurídico deriva da locução direito positivo, a qual apresenta enquanto idéia síntese,
tudo aquilo que se contrapõe ao que se entende por direito natural.3
Segundo Bobbio, por direito positivo compreende-se o direito posto pelo Estado e que se
torna conhecido por meio de uma declaração de vontade do legislador, enquanto que o direito
natural torna-se conhecido por meio da razão, uma vez que deriva da natureza das coisas. Tendo
1 WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução aos fundamentos de uma teoria dos “novos” direitos. In: WOLKMER, Antonio Carlos; LEITE, José Rubens Morato (org.). Os “novos” direitos no Brasil: natureza e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 1. 2 LEAL, Mônia Clarissa Henning. Estado de direito. In: BARRETO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 287. 3 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bibi e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006, p. 15.
16
como base diversos estudos realizados, Bobbio apresenta os seguintes critérios de distinção entre
o direito natural e o direito positivo: a) o direito natural tem validade em qualquer lugar, enquanto
que o direito positivo tem validade no lugar em que é estabelecido (critério da
universalidade/particularidade); b) ao contrário do direito positivo, o direito natural é imutável
(critério da imutabilidade/mutabilidade); c) o direito natural tem como fonte a natureza das
coisas, enquanto que o direito positivo tem na função legislativa do Estado a sua fonte exclusiva
(critério natura-potestas populus); d) o direito natural é conhecido por meio da razão, o positivo
através de uma declaração de vontade alheia (critério ratio-voluntas); e) no direito natural seus
comportamentos são bons ou maus por si mesmos, no direito positivo são indiferentes, ou seja,
justo é aquilo que é ordenado, injusto o que é vetado; f) e, por fim, no direito natural se
estabelece aquilo que é bom, no direito positivo aquilo que é útil.4
Ao longo da história, mais precisamente da época clássica e Idade Média, Bobbio relata
que houve uma co-existência entre o direito natural e o direito positivo, situação que perdurou até
o final do século XVIII. A época clássica caracterizou-se pela não superioridade do direito
natural sobre o direito positivo, sendo o direito natural concebido na condição de direito comum,
e o positivo como direito especial ou particular, baseando-se no princípio de que o direito
particular prevalece sobre o geral. Desse modo, sempre que entre ambos ocorresse um conflito, o
direito positivo prevalecia sobre o natural. A partir da Idade Média ocorreu uma inversão e o
direito natural passou a ser considerado superior ao positivo, já que o primeiro passou a ser visto
“[...] não mais como simples direito comum, mas como norma fundada na própria vontade de
Deus e por este participada à razão humana ou, como diz São Paulo, como a lei escrita por Deus
no coração dos homens.” Bobbio conclui esclarecendo que é desta concepção de direito natural
enquanto um direito de inspiração cristã que derivou a tendência no pensamento jusnaturalista de
considerá-lo superior ao direito positivo.5
Conforme já observado, esta co-existência do direito natural e do direito positivo somente
perdurou até o final do século XVIII, isto porque, é neste momento da história que surgiu o
chamado positivismo jurídico, rompendo com a concepção até então existente, no sentido de
considerar enquanto direito, no mesmo sentido, o direito natural e direito positivo. A partir deste
4 BOBBIO, 2006, p. 25. 5 Ibidem, p. 21-23.
17
momento, segundo esclarece Bobbio, o direito positivo passa a ser considerado como direito em
sentido próprio, o que significa dizer que por obra do positivismo jurídico,
[...] ocorre a redução de todo o direito a direito positivo, e o direito natural é excluído da categoria do direito: o direito positivo é direito, o direito natural não é direito. A partir deste momento o acréscimo do adjetivo ‘positivo’ ao termo ‘direito’ torna-se um pleonasmo mesmo porque, se quisermos usar uma fórmula sintética, o positivismo jurídico é aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo.6
Para Thomas Hobbes, o direito natural não era dotado de caráter coercitivo sobre a atitude
do homem. Sob esta ótica e na análise dos contratos, por exemplo, Hobbes concluiu que se uma
das partes cumprisse o que havia sido pactuado, não teria qualquer garantia de que a outra iria
promover o adimplemento da contraprestação, posto que “[...] os vínculos das palavras são
demasiados fracos para refrear a ambição, a avareza, a cólera e outras paixões dos homens, se não
houver o medo de algum poder coercitivo.”7
Na opinião do autor, a ausência de um poder comum, dotado de soberania, capaz de
manter o respeito mútuo, torna a vida uma guerra de todos os homens contra todos os homens.
Com a inexistência de um poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça. Por
conseguinte, neste estado de natureza, cada homem é governado por sua própria razão, “[...] não
havendo nada, de que possa lançar mão, que não possa servir-lhe de ajuda para a preservação de
sua vida contra seus inimigos, segue-se daqui que numa tal condição todo homem tem direito a
todas as coisas, incluindo os corpos dos outros.”8
Desse modo, para Thomas Hobbes, enquanto o homem tivesse direito sobre todas as
coisas não poderia haver segurança, mesmo para aquele considerado forte e sábio. Com efeito, o
medo e a guerra permanentes somente deixariam de existir num Estado civil, dotado de soberania
e com poder de coerção sobre os homens.9 E como se expressaria tal autoridade soberana? Por
meio da regra ou medidas comuns, assim teorizando o autor:
6 BOBBIO, 2006, p. 26. 7 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3. ed. São Paulo: Editor Victor Civita, 1983, p. 82. 8 Ibidem, p. 75-78. 9 Ibidem, p. 78.
18
Assim, compete à mesma autoridade soberana apresentar regras ou medidas comuns, e declarar de público quais as que fazem o indivíduo saber o que deve chamar seu, e o que é alheio; o que é justo e o que é injusto; o que é honesto e o que é desonesto, o que bom e o que mau, em suma, o que se deve fazer ou evitar no dia-a-dia.10
Hobbes ainda complementa que tais regras ou medidas costumam ser chamadas leis civis,
consideradas os mandamentos daquele que exerce a autoridade soberana. Ou seja, nas palavras do
autor, leis civis “[...] nada mais são do que os mandamentos daquele que está investido no poder
soberano da Cidade, para controle das ações futuras dos cidadãos.”11
É importante mencionar, parafraseando Bobbio, que a origem desta concepção de direito,
que passa a não aceitar outro direito senão aquele posto pelo Estado, está ligada à formação do
Estado Moderno. O fim da Idade Média marca a dissolução de uma sociedade pluralista
(sociedade medieval), constituída por agrupamentos sociais que possuíam ordenamentos jurídicos
próprios e onde o direito era considerado fenômeno social, produzido pela sociedade civil e não
pelo Estado. Com o Estado Moderno, o Estado passa a concentrar em si todos os poderes,
incluindo o poder exclusivo de criação do direito.12
Trata-se do nascimento do chamado Estado de Direito, o qual, segundo observação de
Leal, é originário da Idade Moderna e constituído em forma de variante do Estado Moderno, o
qual sucedeu o período feudal. A autora complementa que a principal característica do Estado de
Direito encontra-se no fato de estar “[...] pautado e vinculado à figura da lei [...]”, com a lei
constituindo os limites e o fundamento necessário de todas as suas ações. 13
Desse modo, o que se construiu na modernidade foi uma estrutura de poder centralizada,
caracterizada pela soberania do Estado, e uma ciência jurídica fundada na norma, técnico-
formalista, com o Direito expressando o que está na lei escrita.14 Em outras palavras, pode-se
dizer que a dogmática jurídica do Estado Moderno buscou estabelecer a priori as respostas aos
problemas originários da sociedade, a partir de uma decisão política cujos efeitos são de
observância obrigatória.
10 HOBBES, Thomas. De Cive: elementos filosóficos a respeito do cidadão. Tradução de Ingeborg Soler. Petrópolis: Vozes, 1993, p.105. 11 Ibidem, p. 105. 12 BOBBIO, 2006, p. 27. 13 LEAL, M. C. H., op. cit., p. 288. 14 WOLKMER, op. cit., p. 2.
19
Para Barzotto o positivismo jurídico “[...] representa a tentativa de compreender o Direito
como um fenômeno social objetivo.” Ou seja, para o positivismo não há outras fontes do Direito
além das fontes sociais e nem a existência de juízos morais particulares, e o Direito nada mais é
do que um sistema de normas e poderes, oriundo de atos de vontade identificados socialmente,
ou, em outras palavras, que no cenário positivista “[...] o Direito é um conjunto de normas que
nasce de decisões no interior da sociedade, sejam elas costumeiras, legislativas ou judiciais (...) O
mundo é caos, e não há uma natureza humana ou natureza das coisas, ou um bem objetivo que
possa ser assumido como fonte de normas.”15
Barzotto ainda observa que com o a priori do positivismo buscou-se prever por meio de
normas as conseqüências jurídicas da conduta humana, objetivando garantir segurança à
sociedade. Com o Direito sendo identificado como um conjunto de normas, sua aplicação não
poderia dar-se de outro modo, senão atrelada ao formalismo, baseada na observância de regras
claras e evidentes, único meio tido como necessário para evitar a ambigüidade dos princípios
jurídicos. Neste modo de pensar o Direito, a separação dos poderes também é apontada como
elemento que visa incrementar a segurança na sociedade, já que só é Direito aquilo que for criado
pelo Parlamento.16
Antes da implementação do positivismo jurídico, em razão da co-existência de direitos, ao
resolver um litígio o julgador não estava obrigado a escolher de modo exclusivo as normas de
direito natural ou de direito positivo. A liberdade permitia escolher entre uma regra de costume,
um critério eqüitativo (obtenção da regra do próprio caso em análise, segundo os princípios da
razão natural) ou efetiva aplicação das normas elaboradas pelos juristas, já que todas eram
consideradas do mesmo nível. Com o positivismo jurídico, esta faculdade é retirada do juiz,
sendo-lhe imposta a obrigação de somente aplicar as normas instituídas pelo Estado, considerado
o criador exclusivo do direito.17
15 BARZOTTO, Luiz Fernando. Positivismo jurídico. In: BARRETO, Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 643. 16 Ibidem, p. 644. 17 BOBBIO, 2006, p. 28-29.
20
Para Bittar, a partir do direito positivo, todas as experiências de reflexão sobre o Direito
culminam na idéia de validade, enquanto consagração conceitual daquilo que se entende por
ordem. Para ter validade a norma deverá entrar regularmente no sistema jurídico, o que inclui a
observância da forma, do rito, do momento, do modo, da hierarquia, da estrutura e da lógica de
produção prevista para vigorar no respectivo ordenamento jurídico que a produz. O autor observa
que ser válida não significa que a norma é verdadeira ou falsa, mas que se encontra de acordo
com os procedimentos previstos para sua criação. Desse modo, a validade “[...] não submete a
norma ao juízo do certo ou do errado, mas sim ao juízo jurídico, propriamente dito, ou seja, ao
juízo da existência ou não (pertinência a um sistema formal) para um determinado ordenamento
jurídico.”18
Característica do positivismo jurídico são as codificações sendo que a primeira ocorreu na
França em 1804 com o Código Civil francês, chamado Código de Napoleão. As codificações,
alerta Cordeiro, foram essencialmente redutoras e simplificadoras, e evidenciam uma atitude
positivista e formalista, já que buscavam (e ainda buscam) apreender e desenvolver o Direito por
meio de “[...] quadros mentais disponíveis, num apriorismo teorético típico do idealismo.”19
Outra característica é o individualismo, posto que a cultura jurídica moderna passou a
conceber o ser humano enquanto entidade abstrata e autônoma, indivisa ou indivisível. Leal
pondera que foi com a sociedade moderna que o indivíduo ganhou os contornos que até hoje lhes
são empregados, se contrapondo às conotações do ser humano medieval e que estava
indissociavelmente ligado à comunidade a que pertencia, constituindo uma entidade homogênea e
unitária. A cultura jurídica moderna, portanto, foi pensada e preparada para resolver litígios
individuais ou intersubjetivos.20
Porém, por expressar os fenômenos históricos de cada época, vinculado às relações
sociais e às necessidades humanas, o Direito do século XX sofreu os impactos provenientes das
transformações sociais e de fatores até então desconsiderados pela ciência jurídica. Na verdade, já
18 BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 181. 19 CORDEIRO, António Menezes. Apresentação. In: CANARIS, Claus - Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Tradução de Fundação Calouste Gulbenklan. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. XII. 20 LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 26-27.
21
no século XIX há registros de que o ideal almejado com o Código Civil francês (Código de
Napoleão), no sentido de buscar na lei todas as soluções para as ocorrências da vida social,
apresentava desajustes entre o que estava codificado e as novas tendências da vida. Segundo
Reale, a todo instante “[...] apareciam problemas de que os legisladores do Código Civil não
haviam cogitado. Por mais que os intérpretes forcejassem em extrair dos textos uma solução para
vida, a vida sempre deixava um resto.”21
No século XX, as mudanças sociais oriundas dos processos de industrialização, da
globalização, dos avanços tecnológicos e do incremento das comunicações, combinadas com
acontecimentos de proporções globais, a exemplo das guerras mundiais e da bomba atômica,
resultaram no surgimento de novos direitos fundamentais, dentre os quais se destacam os direitos
de ordem coletiva (aqui entendidos em sentido amplo), bem como, deram início a um processo
que Bittar classifica de contestação de valores, de despontar de novas idéias, de um renovar dos
modos e práticas sociopolítico-jurídicas. Por conseguinte, complementa o autor, [...] a teoria jurídica passa a se ocupar de problematizar questões de fundo real, social, econômico, de um modo cada vez mais intenso, e será a própria mudança dos hábitos, costumes, valores, economia e política neste período que haverá de demonstrar o quanto o real problema do direito neste momento deixa de ser a justificação da ordem pela validade (garantida por uma ciência pura do direito), e passa a ser a possibilidade de produzir efeitos num campo real cada vez mais coalhado de problemas eficaciais.22
Conferindo destaque à segunda guerra mundial, registra-se a partir de Barroso que a
decadência do positivismo é associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha,
isto porque, tais movimentos políticos e militares chegaram ao poder sem ferir a legalidade
vigente e promoveram barbáries em nome da lei. Neste sentido, para fins de execução de atos
contra outros povos, o autor complementa que os principais acusados de Nuremberg “[...]
invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente.”23
21 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 281. 22 BITTAR, op. cit., p. 92-186. 23 BARROSO, Luis Roberto. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: SILVA, Virgílio Afonso da (org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 278.
22
No que tange ao direito processual do século XX, tendo em vista este novo cenário social
e levando em consideração os novos direitos fundamentais, notadamente os de ordem coletiva,
evidentemente que demandou uma necessária mudança de paradigma, mesmo porque, o direito
processual civil clássico não foi pensado para solucionar demandas cujos interesses pertencem a
uma coletividade de pessoas que, muitas vezes, assim como ocorre com os direitos e interesses
difusos, nem mesmo pode ser determinada.
A mudança de paradigma tornou-se necessária porque a ciência do processo civil nasceu
sob a influência de uma projeção doutrinária liberal-individualista, cujas regras e princípios
foram pensados para vigorar em um cenário onde só haveria conflitos de natureza individual ou
de ordem privada das partes. Neste sentido Silva complementa que a ciência do processo civil
nascera “[...] irremediavelmente comprometida com os ideais do liberalismo político do século
XIX [...]”.24
Por conseguinte, para atender a esta nova realidade, segundo Venturi, há a necessidade de
“[...] superação dos velhos e já insatisfatórios esquemas técnicos, absolutamente inoperantes
quanto à afirmação dos chamados novos direitos, em especial dos direitos meta-individuais.”25
Por esta razão no segundo capítulo desta dissertação serão apresentadas e analisadas as principais
mudanças já realizadas no Brasil visando superar os esquemas do processo civil clássico,
considerados sem aptidão quando aplicados em ambientes de tutela jurisdicional coletiva, de
natureza constitucional.
Por oportuno, adianta-se que o chamado microssistema processual coletivo se apresenta
com evidenciado objetivo de abrir o sistema jurídico, tendo em vista o presente momento
histórico, no qual se preconiza a aplicação dos princípios e normas constitucionais, mediante uma
mínima intervenção legislativa. Neste sentido, cita-se como exemplo o art. 83 do CDC, o qual
dispõe que para a defesa dos direitos e interesses protegidos por tal código, são admissíveis todas
as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela. Ou seja, trata-se de uma
24 SILVA, Ovídio Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 164. 25 VENTURI, Elton. Processo civil coletivo: a tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil, perspectivas de um código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 32.
23
disposição aberta e que torna mais importante o exercício da função jurisdicional, a qual deverá
estar pautada de forma irrestrita na busca da concretização dos direitos.
Antes, porém, cumpre delinear uma análise dos direitos fundamentais, com ênfase aos
chamados direitos ou interesses de terceira dimensão, e que são objetos das ações de natureza
coletiva.
1.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS, DIREITOS DO HOMEM E DIREITOS HUMANOS: DELIMITAÇÃO CONCEITUAL E DEFINIÇÃO TERMINOLÓGICA
Podem as expressões direitos humanos, direitos do homem e direitos fundamentais ser
usadas indiferentemente? Esta pergunta elaborada por Bonavides visa demonstrar que ainda há na
literatura jurídica, uma certa promiscuidade na utilização de terminologias diferenciadas para
conceituar direitos fundamentais.26 Neste mesmo sentido Sarlet adverte que tanto na doutrina
quanto no direito positivo constitucional ou internacional, outras expressões são largamente
utilizadas, todas objetivando conceituar direitos fundamentais. Entre as expressões estão direitos
humanos, direitos do homem, direitos subjetivos públicos, liberdades públicas, direitos
individuais, liberdades fundamentais e direitos humanos fundamentais.27
Autores que buscam uma definição terminológica para direitos humanos fazem a mesma
observação de Bonavides e Sarlet, que tratam de direitos fundamentais. Fernandez observa que há
na teoria dos direitos humanos uma imprecisão do tipo terminológico, posto que ao longo da
história e na atualidade sempre foram utilizadas expressões como direitos naturais, direitos
individuais, direitos do homem, direitos do cidadão e do trabalhador, direitos fundamentais,
direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais e liberdades públicas. Para Fernandez a
expressão que lhe parece mais adequada e que melhor delimita a situação teórica dos direitos
humanos seria direitos fundamentais do homem.28
26 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 515. 27 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 29. 28 FERNANDEZ, Eusébio. Teoria de la justicia y derechos humanos. Madrid: Debate, 1991, p. 78.
24
Em que pese a utilização de termos diversos na condição de sinônimos, há uma distinção
habitualmente empregada para conceituar de forma diferenciada as terminologias. Na doutrina
internacional, Canotilho apresenta os direitos fundamentais enquanto direitos incorporados na
ordem jurídica positiva dos direitos considerados naturais e inalienáveis do indivíduo. Contudo,
acerca da positivação, o autor esclarece que não basta qualquer positivação, sendo necessário
assinalar que tais direitos apresentam dimensão de direito fundamentais, colocados no lugar
cimeiro das fontes do direito, qual seja, as normas constitucionais. Sem esta positivação jurídica,
complementa o autor, “[...] os direitos do homem são esperanças, aspirações, ideais, impulsos,
ou, até, por vezes, mera retórica política, mas não direitos protegidos sob a forma de normas,
(regras e princípios) de direito constitucional (Grundrechts-normen).”29
Quanto aos direitos do homem, Canotilho entende que os mesmos representam os direitos
válidos para todos os povos e em todos os tempos, apresentando, portanto, uma dimensão
jusnaturalista e caráter de universalidade.30
Neste mesmo sentido manifesta-se Alexy, autor que reconhece a relação estreita que há
entre direitos do homem e direitos fundamentais, porém, considera que os direitos do homem
distinguem-se de outros direitos pelo fato de apresentar de forma combinada cinco características
que lhes são peculiares. Para Alexy tais direitos são universais, morais, fundamentais,
preferenciais e abstratos. Em síntese, são considerados universais porque competem a todos os
seres humanos, independentemente do país em que habitam; morais porque têm caráter
suprapositivo; fundamentais porque têm prioridade em todos os graus do sistema jurídico;
preferenciais porque devem ser respeitados, protegidos e fomentados pelo direito positivo; e
abstratos porque devem ser respeitados independentemente de positivação.31
A estreita relação de que fala Alexy, envolvendo os direitos do homem e direitos
fundamentais, é percebida quando estes são analisados pelo autor. Segundo Alexy, direitos
fundamentais nada mais são do que os mesmos direitos do homem, porém, codificados
29 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. [s.d.] Coimbra: Livraria Almedina, p. 375. 30 Ibidem, p. 391. 31 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 45-48.
25
constitucionalmente, ou seja, a partir do nomento que passam a integrar o texto de uma
Constituição os direitos do homem são “transformados” em direitos fundamentais.32
No Brasil, as distinções empregadas doutrinariamente não diferem das apresentadas por
Canotilho e Alexy, no sentido de que os direitos fundamentais contemplam os direitos do ser
humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional de determinado Estado,
enquanto os direitos do homem são apresentados com conotação marcadamente jusnaturalista, no
sentido de direitos naturais ainda não positivados em âmbito constitucional.33
No que tange a expressão direitos humanos, Sarlet entende que a mesma guarda relação
com os tratados de direito internacional, por fazer referência ao reconhecimento do ser humano
como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, com
aspiração de validade universal ou internacional.34
Portanto, mesmo havendo o emprego de terminologias diversas para expressar a mesma
idéia, direitos fundamentais, direitos do homem e direitos humanos apresentam significados
diversos. Entretanto, Sarlet adverte que reconhecer as diferenças não significa desconsiderar a
íntima relação que há, principalmente, entre os direitos humanos e os direitos fundamentais,
posto que a maior parte das Constituições do segundo pós-guerra estabeleceu os direitos
fundamentais inspiradas tanto na Declaração Universal de 1948, quanto nos diversos documentos
internacionais e regionais que a sucederam.35
Nesta dissertação iremos nos ater aos direitos fundamentais, com origem e
desenvolvimento nas constituições em que foram reconhecidos e assegurados, sendo que tais
direitos, em síntese, correspondem às necessidades e interesses materiais primários das pessoas,
sendo garantia de tutela isonômica e que objetiva realizar, ao menos de forma tendente, a
igualdade substancial entre todos.36
32 ALEXY, op. cit., p. 49. 33 SARLET, op. cit., p. 31. 34 Ibidem, p. 33. 35 Ibidem, p. 33. 36 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 815.
26
1.3 DIREITOS FUNDAMENTAIS: ASPECTOS HISTÓRICOS, A PROBLEMÁTICA DAS DIMENSÕES E OS DIREITOS COLETIVOS
A evolução histórica e social de reconhecimento dos diretos fundamentais, embora tenha
raízes ainda mais remotas, apresenta as concepções e inspirações jusnaturalistas dos séculos XVII
e XVIII como marco histórico inicial, as quais consistiam na tese de que o homem, pelo simples
fato de existir, possui direitos naturais inalienáveis, que antecedem qualquer sociedade política,
com caráter de universalidade e como forma de expressão de sua condição humana.37
O reconhecimento e afirmação dos direitos fundamentais representam uma conquista da
sociedade moderna ocidental, pelo fato de ser fruto de reivindicações geradas em situações de
injustiça e violações de bens fundamentais e elementares do ser humano.38 Sarlet apresenta a
evolução histórica de tais direitos em três etapas, até o devido reconhecimento nas primeiras
constituições escritas, sendo que a primeira etapa é considerada a pré-história e se estende até o
século XVI, com as principais idéias legadas pela religião e filosofia no mundo antigo, as quais,
posteriormente, influenciaram o pensamento jusnaturalista. Segundo Sarlet, de modo especial,
“[...] os valores da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade dos homens
encontram suas raízes na filosofia clássica, especialmente greco-romana, e no pensamento
cristão.”39
A segunda etapa, considerada intermediária, teve início no século XVI e corresponde ao
período de elaboração da doutrina jusnaturalista e da afirmação dos direitos naturais do homem, a
qual atinge o ponto culminante de desenvolvimento nos séculos XVII e XVIII por meio das
doutrinas contratualistas. Segundo Lafer, Thomas Hobbes (1588-1679) e posteriormente John
Locke (1632-1704) lançaram as bases do pensamento individualista e do jusnaturalismo
iluminista do século XVIII, por meio da concepção de que os homens têm o poder de organizar o
Estado e a sociedade de acordo com sua razão e vontade, o que culminou no constitucionalismo e
no reconhecimento de direitos fundamentais dos indivíduos.40
37 SARLET, op. cit., p. 64. 38 WOLKMER, op. cit., p. 4. 39 SARLET, op. cit., p. 37-39. 40 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 122-123.
27
Por fim, a terceira etapa, denominada etapa de constitucionalização dos direitos, ocorreu
nos anos de 1776 e 1789, com as respectivas Declaração da Virgínia e Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão originária da França (Virginia Bill of Rights, 12-6-1776; e Déclaration des
Droits de I’Homme et du Citoyen, 26-8-1789), frutos das Revoluções Americana e Francesa, por
meio das quais ocorreu o fortalecimento da tese jusnaturalista, posto que direitos civis e políticos
saíram da abstração e foram positivados na Constituição Norte-Americana de 1787 e nas
Constituições Francesas de 1791 e 1793, concretizando reivindicações com origens históricas,
concernentes à liberdade e à dignidade humana.41
Portanto, denota-se que no período que antecedeu as Revoluções Norte-Americana e
Francesa, os direitos civis e políticos positivados nas referidas constituições, já haviam surgido
abstratamente e se afirmado como formas de proteção do indivíduo em face do poder soberano do
Estado absolutista. Representavam por meio do reconhecimento da liberdade religiosa e de
opinião, segundo Lafer, “[...] a emancipação do poder político das tradicionais peias do poder
religioso e através da liberdade de iniciativa econômica a emancipação do poder econômico dos
indivíduos do jugo e do arbítrio do poder político.”42
A partir das primeiras constitucionalizações dos direitos fundamentais, a análise da
evolução dos mesmos no Ocidente passa impreterivelmente pela classificação elaborada por
Marshall, a qual, segundo adverte Wolkmer “[...] tornou-se referencial paradigmático enquanto
processo evolutivo de fases históricas dos direitos no Ocidente”43, e vem sendo utilizada pelos
demais autores que debatem o assunto. Para Marshall, que utilizou a Inglaterra como cenário para
desenvolver a classificação, a cidadania representa um status concedido a todos os membros que
integram uma comunidade, e seu conceito é dividido em três partes ou elementos, chamados de
civil, político e social.44
Para o autor, o elemento civil teria se formado no século XVIII, sendo composto pelos
direitos necessários à liberdade individual, isto é, liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa,
pensamento e fé, direito à propriedade, de concluir contratos válidos e direito à justiça. Ao
41 CANOTILHO, op. cit., p. 378. 42 LAFER, op. cit., p. 126. 43 WOLKMER, op. cit., p. 5. 44 MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Tradução de Meton Porto Gadelha. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p. 63-70.
28
elemento político é atribuído o século XIX como período de formação, sendo composto pelo
direito de participar no exercício do poder político, na condição de membro de um organismo
investido de autoridade política ou como eleitor de tal membro. Quanto aos direitos sociais, que
teriam se formado no século XX, Marshall considera o que vai desde o direito a um mínimo de
bem-estar econômico e segurança, até o direito de participar na herança social e levar a vida de
um ser civilizado, de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade.45
Das tipologias apresentadas por Marshall, dois aspectos devem ser considerados. O
primeiro diz respeito à forma como o autor elaborou a classificação, considerando o surgimento
dos direitos por meio de fases ou gerações.
Contudo, esta não é a única forma de entender a evolução dos direitos humanos e
fundamentais. A expressão gerações, segundo Sarlet, “[...] pode ensejar a falsa impressão da
substituição gradativa de uma geração por outra, razão pela qual há quem prefira o termo
‘dimensões’ dos direitos fundamentais [...]”46. O reconhecimento progressivo de novos direitos
fundamentais, acrescenta o autor, tem o caráter de um processo cumulativo, de
complementaridade e não de alternância. No mesmo sentido de Sarlet argumenta Bonavides, para
quem o termo geração representa um equívoco de linguagem, posto que “[...] o vocábulo
‘dimensão’ substitui, com vantagem lógica e qualitativa, o termo ‘geração’, caso este último
venha a induzir apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das
gerações antecedentes, o que não é verdade.”47 Igualmente é a crítica de Brandão, para quem a
evolução apresentada por meio de gerações não contribui para a compreensão dos “novos”
direitos vigentes na atualidade e nem deixa perceber que a partir de determinado momento
histórico eles não poderão ser vistos na forma de gerações “[...] pois o nascimento de direitos
novos ocorre com velocidade e intensidade tal que já não é possível compartimentalizá-los em
momentos estanques.”48 No presente trabalho nos filiamos ao entendimento de que o termo
dimensão representa com mais propriedade o acúmulo de novos direitos e não um processo de
alternância dos já existentes.
45 MARSHALL, op. cit., p. 10. 46 SARLET, op. cit., p. 47. 47 BONAVIDES, op. cit., p. 571-572. 48 BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: “novos” direitos e acesso à justiça. 2. ed. Florianópolis: OAB/SC, 2006, p. 152.
29
O segundo aspecto a ser analisado, diz respeito à utilização da clássica reflexão e
classificação de Marshall para fins de reprodução, atualização e complementação, sendo que
outras tipologias foram elaboradas ao longo da história. Nos termos já explanados, Marshall parte
do conceito de cidadania para elaborar a clássica tipologia, e apresenta os direitos divididos entre
direitos civis, políticos e sociais. Na contemporaneidade esta reflexão foi complementa e os
direitos fundamentais são apresentados em classificações mais abrangentes, que atingem a quarta
e até a quinta dimensões.
Os direitos de primeira dimensão compreendem os direitos políticos, que congregam os
direitos de votar e ser votado; e os direitos civis, notadamente os direitos individuais de liberdade,
igualdade, propriedade, segurança e resistência à opressão do Estado, considerados atributos
naturais, inerentes à individualidade, inalienáveis e imprescritíveis. Posteriormente ao século
XVIII a liberdade de natureza individual foi complementada pelas denominadas liberdades de
expressão coletiva, e que incluem liberdade de imprensa, de manifestação, de reunião e de
associação. São direitos que Bobbio sintetiza chamando de direitos de liberdade ou um não-agir
do Estado, demarcando o espaço entre Estado e não-Estado. Por este motivo também são
considerados liberdades públicas negativas ou direitos negativos.49
Os direitos fundamentais de primeira dimensão encontram fundamento no contratualismo
de inspiração individualista, e origem no racionalismo iluminista, no liberalismo, no capitalismo
concorrencial e na hegemonia da classe burguesa, que alcança o poder por meio das Revoluções
Norte-Americana e Francesa.50 Para Sarlet os direitos fundamentais, ao menos no âmbito de
reconhecimento nas primeiras constituições escritas, são o produto do pensamento liberal-
burguês do século XVIII, de cunho individualista, afirmando-se como direitos do indivíduo frente
à atuação do Estado. Segundo o autor, Os direitos fundamentais da primeira dimensão encontram suas raízes especialmente na doutrina iluminista e jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII (nomes como Hobbes, Locke, Rousseau e Kant), segundo a qual, a finalidade precípua do Estado consiste na realização da liberdade do indivíduo, bem como nas revoluções políticas do final do século XVIII, que marcaram o início da positivação das reivindicações burguesas nas primeiras Constituições escritas do mundo ocidental.51
49 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 6. 50 WOLKMER, op. cit., p. 7. 51 SARLET, op. cit., p. 48.
30
Os direitos sociais e políticos foram os primeiros a constar em normas constitucionais nos
períodos que sucederam as Revoluções Americana e Francesa, mais precisamente nos séculos
XVIII e XIX, proclamados nas Declarações de Direitos da Virgínia (1776) e Francesa (1789),
positivados na Constituição Norte-Americana de 1787 e nas Constituições Francesas de 1791 e
1793, inaugurando a fase do constitucionalismo político clássico, consolidando-se ao longo da
história em projeção de universalidade, a ponto de não ser digna de ser chamada de constituição o
documento que não os reconheça em toda a extensão.52
Os direitos de segunda dimensão, que dominaram o século XX, do mesmo modo que os
direitos de primeira dimensão dominaram o século XIX53, são os direitos sociais, econômicos e
culturais, fundados em uma ação positiva do Estado, ao contrário do que ocorre com os direitos
de primeira dimensão que requerem um não-agir do Estado. Por conseguinte, não são exercidos
contra o Estado, mas exigem que este os garanta e conceda a todos os indivíduos. Como bem
esclarece Lafer são os direitos previstos pelo welfare state, considerados créditos do indivíduo
em relação à coletividade, entre os quais estão o direito ao trabalho, à saúde e à educação, e que
“[...] têm como sujeito passivo o Estado porque, na interação entre governantes e governados, foi
a coletividade que assumiu a responsabilidade de atende-los.”54
Para corroborar o ensinamento de Lafer, cumpre trazer à colação, por oportuno, os
argumentos de Cappelletti: Tipicamente, os direitos sociais pedem para sua execução a intervenção ativa do estado, freqüentemente prolongada no tempo. Diversamente dos direitos tradicionais, para cuja proteção requer-se apenas que o estado não permita sua violação, os direitos sociais – como direito à assistência médica e social, à habitação, ao trabalho – não podem ser simplesmente “atribuídos” ao indivíduo. Exigem eles, ao contrário, permanente ação do estado, com vistas a financiar subsídios, remover barreiras sociais e econômicas, para, enfim, promover a realização dos programas sociais, fundamentos desses direitos e das expectativas por eles legitimadas. 55
A princípio, os direitos de segunda dimensão diferem dos direitos de terceira dimensão no
aspecto da titularidade. Enquanto nestes o titular é a coletividade, nos direitos de segunda
dimensão, a exemplo do que ocorre com os de primeira dimensão, o titular continua sendo o
52 BONAVIDES, op. cit., p. 563. 53 Ibidem., p. 564. 54 LAFER, op. cit., p. 127. 55 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1999, p. 41.
31
homem em sua individualidade. Contudo, Mancuso apresenta os seguintes exemplos de direitos
sociais positivados: reserva de empregos públicos para deficientes físicos (CF, art. 37, VIII),
reserva de cotas para mulheres nos partidos políticos (Lei 9.504/97), e percentuais de participação
de afrodescendentes, mulheres e pessoas portadoras de deficiência nas contratações de empresas
portadoras de serviços, bem como de técnicos e consultores no âmbito de projetos desenvolvidos
em parceria com organismos internacionais (Decreto Federal 4.228/02). Nestes casos, argumenta
o autor, existindo recusa ou oferta insatisfatória do número necessário, parece cogitável a
utilização de ação coletiva, à semelhança do que vem sendo admitido nos casos de
desatendimento de políticas públicas.56
Os direitos de segunda dimensão são historicamente originários do processo de
industrialização e dos impasses socioeconômicos que ocorreram na sociedade ocidental nos
séculos XIX e XX. Para Leal,
[...] precisamos considerar o impacto da revolução industrial no âmbito dos movimentos políticos do final do século XVIII e ao longo do século XIX e, com ela, a situação da classe operária e de novas outras categorias sociais, revelando a exposição de seres humanos a situações indignas de sobrevivência, sendo exploradas pelos donos do capital e passando profundas necessidades, o que faz irromper problemas sociais ainda não vislumbrados pela modernidade contemporânea.57
Quanto à positivação constitucional, são consideradas as principais fontes legais
institucionalizadoras dos direitos sociais, a Constituição Mexicana de 1917, a Constituição Alemã
de Weimar de 1919, a Constituição Espanhola de 1931 e o Texto Constitucional Brasileiro de
1934. No ano de 1966, em Assembléia Geral das Nações Unidas, foi editado o Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, contemplando, entre outros, o direito
das pessoas gozarem de condições de trabalho justas e favoráveis, com remuneração mínima e
sem discriminações; existência decente para o trabalhador e sua família; descanso e lazer; direito
à previdência social e seguro social; e proteção das crianças e adolescentes em face da exploração
econômica.58
56 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação popular: proteção do erário, do patrimônio público, da moralidade administrativa e do meio ambiente. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 32-33. 57 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 39. 58 Ibidem, p. 42.
32
Portanto, também estão incluídos nos direitos de segunda dimensão as denominadas
liberdades sociais, e que contemplam a liberdade de sindicalização, o direito de greve e os
direitos fundamentais dos trabalhadores, entre os quais estão o direito de férias, de repouso
semanal remunerado, de um salário mínimo e de limitação da jornada de trabalho.59
Já os direitos de terceira dimensão são originários das últimas décadas do século XX, não
destinados à proteção dos interesses específicos de um único indivíduo, de forma individualizada,
mas de uma categoria ou grupo de pessoas, como a família, o povo, a nação, as coletividades
regionais ou étnicas e a própria humanidade.60
Ao tratar dos direitos de terceira dimensão, Wolkmer chama a atenção para a diferença
que há entre as interpretações adotadas pelos doutrinadores brasileiros, sendo que a primeira
caracteriza uma interpretação abrangente acerca dos direitos de solidariedade ou fraternidade.61
Não há dúvidas de que são as duas guerras mundiais vivenciadas no século XX, os principais
fatores que ocasionaram o surgimento de tais direitos e, principalmente, com o caráter
apresentado pelos mesmos. Conforme observa Leal, destacando a Segunda Guerra Mundial, a
luta nos campos de batalha da Europa e do Ocidente se desenvolveu contra os modelos de
Estados de Terror de natureza fascista e nazista, denunciando as violações de Direitos Humanos
ocorridas em campos de concentração, com o massacre de milhões de grupos étnicos e
religiosos.62
Por conseguinte, surgiram preocupações com os direitos da solidariedade, e que têm como
destinatário o gênero humano, de titularidade coletiva, o que inclui, entre outros, o direito à
autodeterminação dos povos, o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio
ambiente, o direito à comunicação e o direito ao patrimônio comum da humanidade.63 Para
Bonavides, os direitos de terceira dimensão são dotados de altíssimo teor de humanismo e
universalidade, cristalizados no fim do século XX, enquanto direitos que não se destinam à
proteção dos interesses de um único indivíduo, de um grupo ou de determinado Estado. Segundo
59 SARLET, op. cit., p. 50. 60 Ibidem, p. 131. 61 WOLKMER, op. cit., p. 9. 62 LEAL, R. G., op. cit., p. 43. 63 LAFER, op. cit., p. 131.
33
o autor, “Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de
sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta.”64
No que tange a positivação, é oportuna a observação de Sarlet quando diz que é preciso
reconhecer que, salvo poucas exceções, a maior parte dos direitos relacionados a fraternidade ou
solidariedade não encontrou reconhecimento no âmbito do direito constitucional, estando em fase
de consagração no âmbito do direito internacional, por meio da assinatura de tratados e outros
documentos transnacionais.65
A segunda interpretação é considerada específica dos direitos transindividuais, também
chamados difusos e coletivos lato sensu, tese que é defendida por Oliveira Jr., no sentido de que
direitos de terceira dimensão são todos aqueles que aglutinam os direitos de titularidade coletiva
e difusa, a exemplo dos amplamente citados direito ambiental e direito do consumidor, mas sem
prejuízo de outros que vem sendo considerados da mesma categoria, especificamente abordados
em momento oportuno desta dissertação.66
Os direitos de quarta dimensão, por sua vez, têm o reconhecimento de existência
encontrada em Bobbio, quando o autor expressamente os reconhece afirmando que há novas
exigências “[...] que só poderiam chamar-se de direitos de quarta geração, referentes aos efeitos
cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio
genético de cada indivíduo.”67 Neste sentido, direitos de quarta dimensão são considerados os
direitos referentes à biotecnologia, à bioética e à regulação da engenharia genética, vinculados
com a vida humana, a exemplo da reprodução humana assistida, aborto, eutanásia, cirurgias intra-
uterinas, transplantes de órgãos, engenharia genética e contracepção. Para Wolkmer tais direitos
são de natureza polêmica, complexa e interdisciplinar, e vêm merecendo a atenção de médicos,
juristas, biólogos, filósofos, teólogos, psicólogos, sociólogos, humanistas e profissionais da
saúde.68
64 BONAVIDES, op. cit., p. 569. 65 SARLET, op. cit., p. 51. 66 OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades de. Teoria jurídica e novos direitos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000, p. 86. 67 BOBBIO, 1992, p. 6. 68 WOLKMER, op. cit., p. 12.
34
Contudo, é importante observar que Bonavides elenca, enquanto direitos de quarta
dimensão, o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo, os quais o
autor considera imprescindíveis para tornar legítima e possível a globalização política. Para
Bonavides, os direitos de quarta dimensão culminam a objetividade dos direitos de segunda e
terceira dimensões, e absorvem a subjetividade dos direitos individuais, ou seja, os direitos de
primeira dimensão.
Este enfoque atribuído aos direitos de quarta dimensão, representa uma interpretação
contrária a globalização da política neoliberal, extraída da globalização econômica, que segundo
Bonavides, faz parte da “[...] estratégia mesma de formulação do futuro em proveito das
hegemonias supranacionais já esboçadas no presente.” Ainda, segundo o autor, há uma única
política de globalização que interessa aos povos da periferia, a qual está radicada na teoria dos
direitos fundamentais, sendo que a quarta dimensão de direitos corresponde à derradeira fase de
institucionalização do Estado social.69
Por fim, nos direitos de quinta dimensão, estão incluídos os novos direitos originários das
tecnologias de informação (internet), do ciberespaço e da realidade virtual. O marco histórico de
surgimento destes novos direitos são as últimas décadas do século XX e o início do século XXI,
período que marca a transição da sociedade industrial para a era virtual.70
1.4 AS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS E O SURGIMENTO DE NOVOS DIREITOS
O estudo dos direitos fundamentais no Ocidente está diretamente ligado à história, sendo
que a evolução dos mesmos confunde-se com a história da condição humana, e o
desenvolvimento desta nos diversos modelos e ciclos econômicos, políticos e culturais
vivenciados ao longo de mais de quatro séculos. Leal complementa que em etapas históricas
claramente identificadas, os direitos humanos e fundamentais foram sendo ampliados,
69 BONAVIDES, op. cit., p. 571-572. 70 WOLKMER, op. cit., p. 15-16.
35
acumulando-se em forma de gerações ou dimensões, primeira no campo político e em seguida no
plano jurídico.71
De extrema clareza é o entendimento de Bobbio, para quem os direitos fundamentais são
direitos históricos, nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas,
a partir de determinadas circunstancias, caracterizadas por lutas em defesa de liberdades.
Segundo o autor, os direitos nascem quando devem ou podem nascer.72 Neste mesmo sentido,
Leal complementa que os direitos são produtos da história, “[...] nascidos de lutas pela
preservação da liberdade e pela implementação da igualdade, suas possibilidades estão sempre
em aberto, bastando dizer respeito à natureza humana e sua capacidade de expansão e
realização.”73
A análise das tipologias ou classificações elaboradas, evidencia que não são estanques os
direitos humanos e fundamentais, assim considerados neste início de século XXI, e as mudanças
futuras que ocorrerem na sociedade certamente irão provocar o surgimento de outros, hoje
inexistentes e, portanto, ainda não contemplados.
Porém, segundo apropriada observação de Sarlet, verifica-se que muitos dos novos
direitos em processo de reivindicação e desenvolvimento, correspondem a deduções do princípio
da dignidade da pessoa humana, vinculados à idéia de liberdade e proteção da vida, contra
ingerências do Estado e particulares. Por conseguinte, poderiam enquadrar-se na categoria dos
direitos de primeira dimensão, “[...] evidenciando assim a permanente atualidade dos direitos de
liberdade, ainda que com nova roupagem e adaptados às exigências do homem
contemporâneo.”74
A constatação de Sarlet não é isolada. Na mesma esteira Brandão argumenta que os
direitos individuais assegurados na primeira geração de direitos, tendo em vista a realidade
política contemporânea, já não correspondem aos mesmos direitos individuais vigentes em
nossos dias. Um exemplo citado pelo autor e que guarda grande pertinência com o presente
trabalho são os direitos individuais homogêneos, devidamente conceituados alhures. Tais direitos
71 LEAL, R. G., op. cit., p. 33. 72 BOBBIO, 1992, p. 5-6. 73 LEAL, R. G., op. cit., p. 45. 74 SARLET, op. cit., p. 52.
36
que continuam sendo individuais, mas que recebem na seara processual coletiva tratamento de
direitos coletivos, não foram reconhecidos inicialmente com esta conotação, de forma que,
segundo o autor, “[...] já não se pode mais enunciá-las como integrantes da primeira ou da
segunda geração de direitos.”75
Portanto, a partir de Brandão, conclui-se que por novos direitos devem ser entendidos
aqueles que nasceram e nascem dos típicos conflitos da sociedade contemporânea, como aqueles
que são considerados novos em razão de sua configuração, “[...] e não no momento de seu
enunciado, quando já não mais guardam qualquer correspondência com sua origem.”76
1.5 OS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS E OS DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS ENQUANTO DIMENSÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Paradoxal, heterogêneo e globalizado: estes são três adjetivos que podem ser utilizados
para caracterizar o mundo a partir das últimas décadas do século XIX e todo o período do século
XX, tendo como base, a diversas transformações vivenciadas pela sociedade e que resultaram no
surgimento de novos direitos fundamentais, dentre os quais, os direitos de ordem coletiva (com
conotação lato sensu), figurando como exemplos típicos, os direitos de proteção e defesa do
consumidor e os direitos à proteção e preservação do meio ambiente, sem prejuízo de outros
surgidos nas últimas décadas, como direitos de gênero, direitos da criança, direitos do idoso,
direitos dos deficientes físico e mental, direitos das minorias e os novos direitos da
personalidade.77
Ao destacar os direitos de proteção e defesa do consumidor, cumpre observar que relações
de consumo sempre existiram na história de qualquer país. Contudo, o fenômeno que extrapolou
as relações de consumo da esfera individual e atingiu a esfera coletiva, é originário,
principalmente, dos processos de industrialização que multiplicaram os níveis produtivos de bens
e dos avanços tecnológicos e científicos aplicados ao setor de produção, e que interferiram
75 BRANDÃO, op. cit., p. 153. 76 Ibidem, p. 156. 77 WOLKMER, op. cit., p. 11-12.
37
profundamente nas práticas sociais, fazendo surgir um mercado de massas com possibilidade de
acesso aos bens e serviços disponibilizados à sociedade.78
No século XX a estrutura social foi alterada e a sociedade passou a ser dominada pela
operação das organizações de grande porte, sendo que estas efetivamente determinam as
condições da vida social contemporânea. O mundo passou de uma sociedade de indivíduos para
uma sociedade de organizações.79 No que tange a produção de bens e serviços, tais organizações
de grande porte formam o que Delmas-Marty chama de “o reino das multinacionais”, fenômeno
resultante da liberalização do comércio internacional pelas aberturas das trocas exteriores após os
anos sessenta, e ampliada nas últimas décadas do século XX e início do século XXI.80
Na contemporaneidade, com o incremento das comunicações de massa, os consumidores
se encontram em constante processo de sedução, chamados por meio de possibilidades
rotineiramente ampliadas a viver novas e não apreciadas aventuras e experiências. É neste sentido
que argumenta Bauman, concluindo que: Nessa mudança de disposição, são ajudados e favorecidos por um mercado inteiramente organizado em torno da procura do consumidor e vigorosamente interessado em manter essa procura permanentemente insatisfeita, prevenindo, assim, a ossificação de quaisquer hábitos adquiridos, e excitando o apetite dos consumidores para sensações cada vez mais intensas e sempre novas experiências.81
Portanto, o agigantamento da indústria, aliado ao avanço tecnológico, científico e outras
formas de transformação social, motivaram o surgimento de lesões a direitos na esfera das
relações de consumo, que atingem de uma só vez, conjuntos determinados ou indeterminados de
pessoas, inibindo ou até mesmo impedindo a tutela dos mesmos no âmbito intersubjetivo, diante
da impossibilidade de divisão do objeto, a exemplo do que ocorre com os interesses difusos e
coletivos stricto sensu. Nos termos observados por Cappelletti, no que tange ao consumo,
78 FORTUNY, María Alejandra. O direito do consumidor: a emergência de um novo paradigma no direito moderno. In: WOLKMER, Antonio Carlos; LEITE, José Rubens Morato (org.). Os “novos” direitos no Brasil: natureza e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 152-153. 79 FISS, Owen. Um novo processo civil: Estudos norte-americanos sobre juridição, constituição e sociedade. Tradução de Carlos Alberto de Salles, Daniel Porto Godinho da Silva e Melina de Medeiros Rós. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 50. 80 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um direito mundial. Tradução de Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, p. 134. 81 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 23.
38
[...] basta que um produto apresente um defeito mínimo, e já milhares ou milhões de consumidores sofrerão um dano. O produto, causante de tal prejuízo, não é somente violador de um direito individual, não está em confronto com uma outra pessoa, ou, no máximo, duas, três, cinco outras pessoas, mas é tipicamente produtor de um dano de massa.82
Na esfera dos direitos à proteção e preservação do meio ambiente, falando
especificamente do Brasil, as agressões ao ecossistema provocaram ao longo da história uma
série de situações desalentadoras. Entre os exemplos citados por Milaré estão as manchas de
desertificação em diferentes pontos do país, a corriqueira mortandade de peixes, a intensa carga
de poluentes lançada diuturnamente por grandes empresas e a constante intoxicação pelo uso
desmedido de agrotóxicos, sendo que tais situações sempre constituíram grave problema de saúde
pública. Para o autor, a causa dos problemas ambientais não é outra senão o processo de
desenvolvimento econômico, que “[...] vem-se realizando, basicamente, às custas dos recursos
naturais vitais, provocando a deterioração das condições ambientais em ritmo e escala até então
desconhecidos [...]”.83
Sem prejuízo dos problemas apontados por Milaré, cumpre registrar que a Segunda
Guerra Mundial (1945-1950) possui expressiva responsabilidade pelo impulso no crescimento de
direitos e interesses ambientais com cunho coletivo. Esclarecedora é a referência efetuada por
Wolkmer, no sentido de que a explosão das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, a
mutilação e o extermínio de vidas humanas, a destruição ambiental e os danos causados à
natureza pelo desenvolvimento tecnológico, desencadearam a criação de instrumentos normativos
no âmbito internacional.84
Portanto, este novo cenário social mundial fez surgir uma nova categoria de direitos
fundamentais, de cunho coletivo e desse modo tutelados. O sentido atribuído à expressão direitos
coletivos possui, neste caso, uma conotação abrangente, em sentido lato, apresentando como
principal característica o fato de transcender o âmbito do direito estritamente individual e
pertencer a grupos, classes ou categorias de pessoas. No Brasil duas categorias são encontradas: a
categoria dos direitos coletivos transindividuais, formada pelos direitos difusos e coletivos stricto
sensu, considerados essencialmente coletivos; e a categoria dos direitos individuais homogêneos,
82 CAPPELLETTI, Mauro. Tutela dos interesses difusos. AJURIS, 1985, vol. 33, p. 171. 83 MILARÉ, Edis. Tutela jurídica do meio ambiente. Revista dos Tribunais, 1986, vol. 605, p. 20. 84 WOLKMER, op. cit., p. 10.
39
considerados acidentalmente coletivos ou processualmente coletivos, e que, na verdade, não
passam de direitos subjetivos individuais complexos, com titular determinado e materialmente
divisíveis, porém tutelados coletivamente em razão da relevância social apresentada.85
Contudo as duas categorias podem ser consideradas direitos fundamentais de terceira
dimensão, pelo fato de pertencer a uma coletividade que estará em juízo requerendo a respectiva
tutela jurisdicional pelo regime da substituição processual. É importante ressaltar que ao
conceituar os direitos coletivos (em sentido lato), o CDC não faz a mesma distinção elaborada
doutrinariamente (a exemplo de Zavascki)86, no sentido de que há duas categorias de tais direitos.
Neste raciocínio, Pinho observa que o CDC, em seu art. 81, parágrafo único, “[...] ao definir e
distinguir três modalidades do que chama de direitos transindividuais (ou metaindividuais, ou
ainda coletivos em sentido amplo), refere-se a direitos difusos (inciso I), coletivos (inciso II) e
individuais homogêneos (inciso III).”87 Portanto, na legislação brasileira, as três modalidades de
direitos coletivos são apresentadas indistintamente, todas consideradas transindividuais.
Na atualidade, os direitos transindividuais e os individuais homogêneos estão
devidamente conceituados no Código de Defesa do Consumidor. Segundo Watanabe, o legislador
preferiu defini-los “[...] para evitar que dúvidas e discussões doutrinárias, que ainda persistem a
respeito dessas categorias jurídicas, possam impedir ou retardar a efetiva tutela dos interesses ou
direitos [...]”.88 Contudo, diante de uma situação concreta, é comum a falta de consenso entre
doutrina e jurisprudência, notadamente, quando a distinção conceitual envolve interesse coletivo
em sentido estrito e interesse individual homogêneo.89
É importante ressaltar que antes do advento do CDC (datado de 11.9.90), já existiam
questionamentos acerca da acepção técnica dos termos coletivo e difuso. Obviamente não se
85 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. A natureza jurídica do direito individual homogêneo e sua tutela pelo ministério público como forma de acesso à justiça. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 33. 86 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 42. 87 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Teoria geral do processo civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2007, p. 324. 88 WATANABE, Kazuo. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. In: Ada Pellegrini Grinover [et al.]. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 800. 89 DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação civil pública. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 50.
40
falava em direitos individuais homogêneos, já que esta categoria somente foi incorporada ao
cenário jurídico nacional com o próprio CDC (art. 81, parágrafo único, inciso III)90.
Em artigo datado de 1984, falando especificamente dos interesses difusos, Barbosa
Moreira chamava a atenção para o fato da expressão “interesses difusos”, não ter adquirido até
aquele momento um sentido preciso na linguagem jurídica, sendo utilizado para designar figuras
heterogêneas. Contudo, o autor delineava características que acompanham os interesses difusos
até os dias atuais, a exemplo da indeterminação (ou difícil ou até mesmo impossível
determinação) do grupo de pessoas interessadas, da ausência entre as pessoas interessadas de
ligação por vínculo jurídico definido, e do não pertencimento a uma pessoa isolada, isto é, o bem
referenciado é indivisível, não podendo ser atribuídas quotas individuais para cada um dos
interessados, sendo que a satisfação de um implica a satisfação de todos, assim como a lesão de
um constitui lesão de toda a coletividade. Segundo Barbosa Moreira, Pode trata-se, por exemplo, dos habitantes de determinada região, dos consumidores de certo produto, das pessoas que vivem sob tais ou quais condições sócio-econômicas, ou que se sujeitem às conseqüências deste ou daquele empreendimento público ou privado, e assim por diante.91
Até o advento do CDC, a lição de Barbosa Moreira foi o norte para muitos outros juristas
brasileiros, a exemplo de Barbi que no ano de 1988, ao tratar dos novos “interesses difusos”,
argumentava que tais valores econômicos, históricos ou estéticos passaram a ser considerados
interesses dos cidadãos, merecedores de proteção jurídica especial por meio de normas de Direito
Material, “[...] constituindo o que a moderna doutrina denomina interesses difusos, interesses
coletivos, direitos coletivos, etc.” O autor que assumia a despretensão em definir tais direitos e
interesses, dada a fase de imprecisão em que ainda se encontravam (frisa-se que o artigo foi
publicado a apenas dois anos de antecedência do advento do CDC), preferia seguir
expressamente a lição de Barbosa Moreira, que os caracterizou a partir de duas notas essenciais,
sendo a primeira relativa aos sujeitos e a segunda ao objeto.92
90 PINHO, 2002, p. 11. 91 MOREIRA, José Carlos Barbosa. A legitimação para a defesa dos ‘interesses difusos’ no direito brasileiro. AJURIS, 1984, vol. 32, p. 81. 92 BARBI, Celso Agrícola. Mandado de segurança na constituição de 1988. Revista dos Tribunais, 1988, vol. 635, p. 21.
41
Em artigo também datado de 1984, Grinover observava que diversos conflitos surgidos na
sociedade poderiam ser resolvidos macroscopicamente, pelo fato de envolverem ao mesmo
tempo “um feixe de relações jurídicas”, e não apenas microscopicamente ou individualmente,
como era hábito do Judiciário. Grinover não apresentava dúvidas de que a sociedade estava
diante de interesses metaindividuais, supra-individuais ou coletivos. Porém, ao mesmo tempo,
apresentava a seguinte ponderação: “Mas já é ambígua e contraditória a própria terminologia que
acompanha o objeto de nosso estudo: interesses coletivos, interesses difusos, interesses
superindividuais. É preciso distinguir.”93
Para a autora, por interesses coletivos (certamente fazendo referencia aos interesses
coletivos em sentido stricto sensu), entendia-se os interesses comuns a uma coletividade de
pessoas e apenas a elas, repousando sobre um vínculo jurídico definido que os congrega. Entre os
exemplos citados estão a sociedade comercial, o condomínio e a família, que podem em
determinadas situações apresentar interesses comuns, nascidos justamente da relação jurídica
base que congrega seus componentes. Já os interesses difusos eram caracterizados pela
inexistência de relação-base bem definida, “[...] reduzindo-se o vínculo entre as pessoas a fatores
conjunturais ou extremamente genéricos, a dados de fato freqüentemente acidentais e mutáveis
[...]”94
Da análise de Barbosa Moreira e Grinover, é fácil concluir que as acepções técnicas que
começaram a ser construídas doutrinariamente, restaram por prevalecer no momento de formular
o CDC, posto que no mesmo, conforme já mencionado, o legislador optou por definir as
categorias, evitando novas dúvidas e discussões doutrinárias, as quais a seguir serão analisadas,
juntamente com os critérios que compõem cada modalidade de direito ou interesse.
1.5.1 Direitos e interesses coletivos stricto sensu
93 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências na tutela jurisdicional dos interesses difusos. AJURIS, 1984, vol. 31, p. 81. 94 Ibidem, p. 81-82.
42
O conceito de direitos coletivos lato sensu, com conotação mais abrangente, refere-se aos
direitos transindividuais, contemplando os direitos coletivos stricto sensu e os direitos difusos,
considerados essencialmente coletivos. Contudo, o que nos interessa neste momento é o conceito
que guarda relação com os direitos e interesses coletivos stricto sensu, ou seja, aqueles
referenciados pelo artigo 81, parágrafo único, inciso II do CDC, e que compreendem os direitos e
interesses transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de
pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.
Do dispositivo do CDC são extraídos os critérios considerados necessários para a
configuração de tais interesses, sendo que o primeiro critério a ser observado diz respeito à
indivisibilidade do objeto, o que significa dizer que na presença de direitos coletivos stricto
sensu, não há possibilidade de satisfação isolada de apenas uma pessoa do grupo, categoria ou
classe, nem defesa de um sem defesa do outro. A satisfação de um dos membros exige a
satisfação de todos.95
O segundo critério guarda relação com a titularidade das pessoas, que deve pertencer ao
grupo, categoria ou classe. Se a titularidade pertencer a apenas uma ou poucas pessoas do
coletivo, de forma individualizada, não há que se falar em lesão de natureza coletiva stricto
sensu. O grupo, categoria ou classe não precisa estar organizado para promover judicialmente a
defesa do direito lesado ou ameaçado. Neste sentido, esclarece Watanabe: Mesmo sem organização, os interesses ou direitos “coletivos”, pelo fato de serem de natureza indivisível, apresentam identidade tal que, independentemente de sua harmonização formal ou amalgamação pela reunião de seus titulares em torno de uma entidade representativa, passam a formar uma só unidade, tornando-se perfeitamente viável, e mesmo desejável, a sua proteção jurisdicional em forma molecular.96
De qualquer modo, se existir, a organização somente estará presente no primeiro caso
apresentado pelo dispositivo do CDC, ou seja, quando o grupo, categoria ou classe de pessoas
titulares do direito ou interesse, estiver ligado entre si por uma relação jurídica base. Quando tal
relação se der com a parte contrária, inexistirá organização, a exemplo do que ocorre com alunos
de uma escola que discutem o aumento abusivo de mensalidades, proprietários de veículos que
95 SAAD, Eduardo Gabriel. Comentários ao código de defesa do consumidor. 3. ed. São Paulo: LTr, 1998, p. 571. 96 WATANABE, 2004, p. 805.
43
discutem determinado imposto e contratantes de um plano de saúde que questionam o valor das
mensalidades cobradas.97
Considerando que a titularidade pertence ao grupo, categoria ou classe, as pessoas que o
compõe devem ser determináveis, sendo que a determinabilidade pode ser verificada por meio da
relação jurídica base que as une ou por meio do vínculo jurídico que as liga à parte contrária. No
primeiro caso cita-se como exemplo, amparando-se em Watanabe, os membros de uma
associação de classe ou os acionistas de uma mesma sociedade, e no segundo, os contribuintes de
um mesmo tributo ou os contratantes de um determinado seguro com o mesmo segurador.98
Por fim, cumpre observar a relação jurídica base, considerado o terceiro critério que
possibilita caracterizar a existência de direitos coletivos stricto sensu. O elo ou relação jurídica
que une um determinado número de pessoas de forma coletiva, conforme esclarece Baziloni,
“[...] deve preexistir à lesão, que é do grupo, categoria ou classe e não nascer com ela, e não ser
individualmente de nenhum de seus componentes.”99 Portanto, a relação jurídica base não se
confunde com a relação jurídica originária da lesão ou ameaça de lesão ao direito, posto que
aquela deve ser preexistente a ocorrência do fato que gerou o interesse a ser tutelado.100
1.5.2 Direitos e interesses difusos
A partir do CDC, são considerados difusos os direitos e interesses transindividuais de
natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de
fato (art. 81, parágrafo único, inciso I). Do dispositivo do CDC são extraídos os requisitos
necessários à devida caracterização de um direito ou interesse difuso, sendo: a indivisibilidade do
bem jurídico, número indeterminado ou indeterminável de pessoas na condição de titulares, e
ligação comum originária da mesma circunstância de fato. Ou seja, há lesão a direitos difusos
97 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 63. 98 WATANABE, 2004, p. 805. 99 BAZILONI, Nilton Luiz de Freitas. A coisa julgada nas ações coletivas. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 55. 100 WATANABE, 2004, p. 804.
44
quando é atingido um número indeterminado de pessoas, as quais não têm entre si qualquer
relação jurídica base a uni-las na lesão (há apenas uma mesma circunstância de fato) e o bem
jurídico atingido é indivisível (atingida uma pessoa, todas estarão atingidas).101
Quanto a indivisibilidade, significa dizer que na presença de interesses difusos não há
possibilidade de distribuição de quotas da pretensão entre as pessoas que a compartilham, de
forma que “[...] o sucesso da ação compensará todos os envolvidos, e não somente aquele que se
tenha investido em paladino da comunidade; do mesmo modo, o fracasso da investida judicial
frustrará, a um tempo, os autores da ação e os cidadãos que perfilhavam o mesmo
entendimento.”102 A indivisibilidade, portanto, compõe a própria pretensão ou interesse
compartilhado coletivamente.
No que tange às pessoas lesadas, Mazzilli entende que os direitos difusos compreendem
grupos menos determinados, isto é, melhor do que a utilização do termo indeterminado seria a
utilização da expressão pessoas indetermináveis. Segundo o autor, os direitos difusos são como
“[...] um feixe ou conjunto de interesses individuais, de objeto indivisível, compartilhados por
pessoas indetermináveis, que se encontram unidas por circunstâncias de fato conexas.”103
De qualquer modo, é característica dos direitos difusos, a impossibilidade de afirmação
precisa dos indivíduos. Embora os interesses sejam comuns, em razão da abrangência do grupo,
“[...] não se pode afirmar, com precisão, a quem pertençam, tampouco a parcela destinada a cada
um dos integrantes desse grupo indeterminado.”104 Um dos principais fatores responsáveis pela
indeterminação é a inexistência de vínculo jurídico entre as pessoas afetadas, sendo que a
agregação da pretensão ocorre de forma ocasional, a exemplo do que acontece com consumidores
que adquirem um determinado produto de grande consumo distribuído nacionalmente, visto que a
aquisição pode se dar em qualquer um dos Estados da Federação, tornando praticamente
impossível a identificação dos indivíduos.
101 BAZILONI, op. cit., p. 55. 102 MANCUSO, 2004, p. 98-99. 103 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 50-51. 104 VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Ação civil pública. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 47.
45
Portanto, ao contrário do que ocorre com os direitos coletivos stricto sensu, que exige
ligação das pessoas que formam o grupo, categoria ou classe por meio de uma relação jurídica
base (entre si ou com a parte contrária), nos direitos difusos basta a ligação por meio de uma
circunstância de fato. Isto é, nos direitos coletivos stricto sensu há o efetivo exercício coletivo de
interesses coletivos, por meio de grupos, categorias ou classes, evidenciando a existência de
vínculo prévio entre os indivíduos, enquanto que nos direitos e interesses difusos basta uma
mesma circunstância de fato.105
Ainda, cumpre destacar outras características apresentadas pelos direitos e interesses
difusos, as quais não decorrem de forma direta do que reza o dispositivo do CDC. A primeira
característica diz respeito a sua intensa litigiosidade interna, a qual, segundo esclarece Mancuso,
deriva basicamente da circunstância de que todas essas pretensões metaindividuais não têm por
base um vínculo jurídico definido, mas situações de fato, contingentes, por vezes até ocasionais.
Significa dizer que os interesses difusos não envolvem controvérsias atinentes a situações
jurídicas definidas, mas de litígios que têm por causa verdadeiras escolhas políticas, tornando as
alternativas ilimitadas, posto que o favorecimento de uma posição melindrará os integrantes da
outra106. Os exemplos citados por Grinover acerca do assunto são de extrema clareza: O interesse à contenção dos custos de produção e dos preços contrapõe-se à criação de novos postos de trabalho, à duração dos bens colocados no comércio, etc. O interesse à preservação das belezas naturais contrapõe-se ao interesse da industria edilícia, ou à destinação de áreas verdes a outras finalidades; o interesse ao transporte automobilístico não poluente e barato contrapõe-se ao interesse por um determinado tipo de combustível; o interesse à informação correta e completa contrapõe-se ao interesse político em manter um mínimo de controle sobre os meios de comunicação de massa, etc.107
Diante de um interesse difuso, não há um parâmetro jurídico que permita um julgamento
axiológico sobre a posição certa ou errada, não restando ao Judiciário outra alternativa senão
avaliar os interesses opostos e optar pelo que melhor atinja, naquele momento, a finalidade
pública.108
Por fim, cumpre observar que os interesses difusos encontram-se em constante transição
ou mutação no tempo e no espaço, sendo que tal característica decorre da ausência de um vínculo
105 MANCUSO, 2004, p. 82-93. 106 Ibidem, p. 101-103. 107 GRINOVER, 1984, p. 83. 108 MANCUSO, 2004, p. 103.
46
jurídico básico entre os interessados e da presença de situações contingenciais, repentinas,
imprevisíveis, que podem desaparecer e reaparecer em outro período. Inúmeros são os exemplos
citados, entre os quais, referidos por Mancuso, estão a possibilidade de aprovação de licença para
construção de fábricas poluidoras, experiências com hormônios em rebanho visando apressar o
processo de engorda e plantações de sementes agrícolas geneticamente modificadas. Em todas as
situações, adverte o autor, “[...] verifica-se que é efêmera a duração do interesse difuso daí
decorrente: deve ele ser tutelado prontamente, antes que se altere a situação de fato que o
originara.”109
Portanto, passado o momento do fato, alteram-se os interesses difusos por ele ensejados.
Contudo, certamente, novos interesses em outras circunstâncias substituirão os anteriores,
ensejando a mobilização dos interessados contrários às atividades desenvolvidas naquele
momento específico, da mesma forma que o mesmo interesse pode nascer em outro tempo e
espaço, a exemplo do que ocorre no Brasil, nos dias atuais, com a constante construção de
hidrelétricas.
1.5.3 Direitos e interesses individuais homogêneos
Os direitos e interesses individuais homogêneos são individuais na origem, mas tutelados
coletivamente. Em razão da relevância social apresentada, são tratados pela lei como direitos e
interesses coletivos. Esta é a análise formulada por Pinho, que buscou na teoria geral do direito
civil a natureza jurídica dos direitos individuais homogêneos, concluindo que o mesmo é espécie
do gênero direito subjetivo, mais precisamente, “direito subjetivo individual complexo”. Segundo
o autor,
É um direito individual porque diz respeito às necessidades, aos anseios de uma única pessoa; ao mesmo tempo é complexo, porque essas necessidades são as mesmas de todo um grupo de pessoas, fazendo nascer, destarte, a relevância social da questão. Distingue-se ele, desse modo, do direito subjetivo individual simples, que se refere apenas a uma pessoa, considerada em perspectiva individual e isolada, sem pontos comuns a outras.110
109 MANCUSO, 2004, p. 106-107. 110 PINHO, 2002, p. 14-33.
47
Portanto, os direitos e interesses individuais homogêneos não são coletivos na essência. O
caráter coletivo somente está presente na forma de exercê-lo, diante da impossibilidade de um
feixe de interesses individuais transformar-se em interesse coletivo. Mancuso esclarece que é a
tutela processual de tais interesses que pode e até deve ser coletiva, já que o CPC prevê
expressamente que a formação de litisconsórcio ativo deve ser evitada quando o número de
autores for muito numeroso. Para Mancuso, Está claro que a vera noção de “interesse coletivo” requer mais do que uma simples adição de interesses individuais. Sempre se pode fazer coletivamente o que já antes se poderia fazer a título individual; todavia, uma simples alteração no modo do exercício não pode mudar a essência dos interesses agrupados, que permanecem de natureza individual.111
De forma sucinta, e porque não dizer precária e defeituosa112, o CDC conceitua os
interesses ou direitos individuais homogêneos, como sendo aqueles decorrentes de origem
comum. Na esteira do disposto no CDC, mas de forma aprimorada, Zavascki conceitua direitos
individuais homogêneos como sendo “[...] os direitos subjetivos pertencentes a titulares diversos,
mas oriundos da mesma causa fática ou jurídica, o que lhes confere grau de afinidade suficiente
para permitir a sua tutela jurisdicional de forma conjunta.”113 Em razão da pertinência cumpre
destacar também o conceito elaborado por Pinho a partir de estudo aprofundado sobre o tema,
concluindo que direitos individuais homogêneos são “[...] espécie do gênero direito subjetivo,
qualificando-o como um direito subjetivo individual complexo (dotado de relevância social
obtida a partir de uma origem comum), relativo, divisível, e imbuído de reflexo patrimonial, na
esfera individual de cada lesado.”114
É considerado relativo porque não é oponível erga omnes, mas somente contra o causador
do dano, e imbuído de reflexo patrimonial na maioria dos casos porque foi introduzido pelo CDC,
no qual predomina esta modalidade de direito.115
111 MANCUSO, 2004, p. 51-54. 112 PINHO, 2007, p. 307. 113 ZAVASCKI, op. cit., p. 43. 114 PINHO, 2007, p. 312. 115 Idem, 2002, p. 38.
48
Da análise dos conceitos, conclui-se que dois são os requisitos indispensáveis para
caracterizar e possibilitar o tratamento coletivo de direitos individuais: a homogeneidade do
direito e a origem comum do mesmo. Quanto ao primeiro requisito, o que possibilita o pedido de
tutela coletiva é a prevalência de questões comuns sobre as individuais. Do contrário, Grinover
adverte: “Prevalecendo as questões individuais sobre as comuns, os direitos individuais seriam
heterogêneos e o pedido de tutela coletiva se tornaria juridicamente impossível.”116
No que tange a origem comum, Pinho esclarece que a mesma encontra-se presente quando
o direito de um indivíduo é semelhante ao de vários outros, sendo que todos os direitos são
decorrentes de uma mesma origem. Por conseguinte, origem comum é entendida como uma
circunstância que estabelece o ponto de contato entre os indivíduos que integram aquele
agrupamento social. Com propriedade o autor complementa que é da origem comum que surge a
extensão social do direito, “[...] pois se diversas pessoas se encontram na mesma situação
jurídica, automaticamente aquela situação passa a produzir efeitos numa coletividade, obrigando
o ordenamento jurídico a tutelar o direito como coletivo lato sensu.”117
Portanto, nos direitos individuais homogêneos basta a ligação das pessoas por meio de
uma circunstância de fato ou de direito, ao contrário do que ocorre com os direitos coletivos
stricto sensu, posto que nestes as pessoas que formam o grupo, categoria ou classe deverão estar
ligadas entre si ou com a parte contrária por meio de uma relação jurídica base.
Nos direitos individuais homogêneos os titulares são determinados ou determináveis e o
objeto da pretensão deve ser divisível, sendo que a divisibilidade pode ser apontada como a
principal característica de diferenciação destes com os direitos difusos e coletivos stricto sensu.
Na verdade, os interesses individuais homogêneos nada mais são que direitos individuais que
foram lesados em decorrência da mesma origem (origem comum). Desse modo, para diferenciar
um direito difuso ou um direito coletivo stricto sensu de um direito individual homogêneo, basta
verificar se, no caso concreto, uma pessoa individualmente pode pleitear a tutela e se a
procedência do pedido beneficiará terceiro.118
116 GRINOVER, Ada Pellegrini. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. In: Ada Pellegrini Grinover [et al.]. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 864. 117 PINHO, 2002, p. 37-38. 118 BAZILONI, op. cit., p. 56.
49
No confronto específico entre direitos individuais homogêneos e direitos difusos, a
possibilidade de determinar os titulares do direito também apresenta-se como imprescindível
critério de distinção. Ambos devem ter por base uma circunstância fática específica, porém
naqueles os titulares são determinados ou determináveis, enquanto nestes os titulares são
indeterminados.119
Desse modo, diante do preenchimento dos requisitos caracterizadores, os direitos
individuais homogêneos possibilitam a tutela coletiva, proporcionando benefícios para as partes e
para o Judiciário. Neste sentido, Mendes complementa que os direitos individuais “[...] são vistos,
por vezes, como passageiros de segunda classe, ou até indesejáveis, dentro desse meio
instrumental que é a tutela judicial coletiva.” Porém, segundo o autor, o estigma não passa de
preconceito e resistência diante dos novos instrumentos processuais, sendo que a tutela coletiva
dos direitos individuais homogêneos é garantia de economia processual, representa medida
necessária para desafogar o Judiciário, permite e amplia o acesso à Justiça, e salvaguarda o
princípio da igualdade da lei ao resolver molecularmente causas que seriam repetitivas e que
estariam fadadas a julgamentos de teor variado, se apreciadas de modo singular.120
1.6 DIREITOS VERSUS INTERESSES
Na presente pesquisa não serão apresentados extensos comentários acerca de todos os
sentidos terminológicos atribuídos a expressão “interesse”, a exemplo das acepções laica e
técnica, compreendendo no segundo aspecto, os interesses social, geral e público, mesmo porque,
parafraseando Mancuso, conclui-se que “[...] as diferenças seriam tão sutis que, na prática, não
haveria contribuição relevante para o exame da problemática dos interesses metaindividuais.”121
A análise se restringe ao sentido da expressão no campo jurídico, buscando saber porque o
legislador brasileiro optou por estabelecer igualdade entre as terminologias interesses e direitos.
119 PINHO, 2007, p. 306. 120 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas no direito comparado e nacional. In: MARINONI, Luiz Guilherme (coord.). Coleção temas atuais de direito processual civil, vol. 4. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 220-221. 121 MANCUSO, 2004, p. 36.
50
No sistema jurídico, a partir das concepções liberais-individualistas da cultura jurídica
moderna, o termo direito é utilizado apenas no âmbito dos interesses juridicamente protegidos,
com valoração ética-normativa, projetada sobre o direito individual e cujo titular deve ser um
indivíduo devidamente identificado (legitimado). Desse modo, Morais complementa que o “[...]
direito seria aquele fato juridicamente definido para o qual temos uma titularidade e um sujeito
definidos, além de um objeto perfeitamente delimitado, ou seja, identifica-se com a noção de
direito subjetivo.” Concernente à relação entre direito e interesse, segundo o mesmo autor, há
uma vinculação entre ambos, na qual a preponderância do direito acarreta uma negação do
interesse, isto é, a hegemonia do direito subjetivo implica a desqualificação do interesse,
enquanto portador de alguma relevância jurídica.122
Entretanto, o legislador brasileiro ao definir as categorias jurídicas tuteladas coletivamente
no sistema normativo, optou por empregar os termos interesses e direitos de forma isonômica, na
condição de sinônimos. E é com esta conotação que a doutrina especializada no estudo dos
direitos coletivos vem reconhecendo as duas expressões, concluindo que não há diferença entre
as mesmas. Segundo entendimento de Watanabe, os interesses assumem status de direitos a partir
do momento em que passam a ser amparadas pelo sistema normativo, “[...] desaparecendo
qualquer razão prática, e mesmo teórica, para a busca de uma diferenciação ontológica entre
eles.”123
Desse modo, Ferreira observa que o legislador brasileiro preferiu não dar margem a
ocorrência de intermináveis discussões que certamente seriam travadas juridicamente, no sentido
de saber se determinada situação concreta configuraria (ou não) direito subjetivo, a partir da
clássica definição de interesse juridicamente protegido, colocando no mesmo patamar as duas
expressões, ambas com o mesmo significado semântico.124
A clássica definição de que fala o autor, conceitua os direitos subjetivos enquanto
interesses juridicamente protegidos a partir dos seguintes elementos: utilidade, vantagem ou
proveito assegurado pelo direito ao respectivo titular; e a ação ou proteção jurisdicional de tal
122 MORAIS, J. L. B. Do direito social aos interesses transindividuais: o estado e o direito na ordem contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 109. 123 WATANABE, 2004, p. 800. 124 FERREIRA, Rony. Coisa julgada nas ações coletivas: restrição do artigo 16 da lei de ação civil pública. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2004, p. 55-56.
51
direito, como forma de garanti-lo. A partir deste raciocínio, Ráo complementa que o conteúdo do
direito “[...] sempre se caracteriza como um bem, material ou moral, que considerado em si
representa um valor e, considerado em relação ao beneficiário, subjetivamente, constitui um
interesse, ao qual a ação se junta para protegê-lo.”125
Neste mesmo sentido, e considerando o aspecto subjetivo de que fala Ráo, Carneluti
argumenta que o interesse representa uma relação que tem por finalidade a satisfação de uma
necessidade, envolvendo a parte que experimenta a necessidade e determinado bem que é capaz
de satisfazê-la, por meio da utilidade apresentada. Carnelutti exemplifica suas argüições do
seguinte modo: A relação entre o ente que experimenta a necessidade e o ente que é capaz de a satisfazer é o interesse. O interesse é, pois, a utilidade específica de um ente para outro ente. O pão é sempre um bem, e por isso tem sempre utilidade, mas não tem interesse para quem não tem fome, nem pensa vir a tê-la. Um ente é objeto de interesse na medida em que uma pessoa pense que lhe possa servir, do contrário, é indiferente.126
Resta evidenciado, portanto, a partir dos conceitos citados, originários da clássica
definição que contempla o direito subjetivo enquanto interesse juridicamente protegido, que há
uma convergência no sentido de identificar no interesse uma relação entre uma ou mais pessoas e
determinado bem que lhes seja útil, pelo fato de suprir-lhes uma necessidade. Neste contexto, a
expressão “bem” equivale a tudo o que serve moral ou materialmente ao ser humano, estando
sempre, portanto, na condição de objeto do interesse.127
Ocorre que alguns dos novos direitos, sobretudo os de natureza difusa, não permitem a
exata identificação da pessoa lesada, o que poderia comprometer a tutela jurisdicional do mesmo
a partir da visão clássica do direito subjetivo, que apresenta enquanto idéia central uma rigorosa
individualização e atribuição do poder subjetivo a uma determinada pessoa ou ente jurídico.
Desse modo, Ferreira esclarece que o ordenamento jurídico brasileiro, “[...] ao perceber que os
interesses de outrora se modificaram e assumiram novas características e novos titulares,
125 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 4. ed. vol. 2, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 548. 126 CARNELUTTI, Francesco. Teoria geral do direito. Tradução de Antonio Carlos Ferreira. São Paulo: Lejus, 2000, p. 89-90. 127 FERREIRA, op. cit., p. 51-53.
52
abandona a fórmula clássica ligada ao conceito de interesse subjetivo, para estender a proteção
jurisdicional a toda e qualquer pretensão juridicamente relevante.”128
O legislador brasileiro ao se deparar com a realidade imposta pelas pretensões coletivas,
comuns a toda a coletividade e não imputáveis a ninguém, não as qualificou na condição de
direitos subjetivos, posto não apresentarem os requisitos necessários segundo as fórmulas ou
padrões por estes descritos. Para Venturi a não qualificação de pretensões coletivas como efetivos
direitos subjetivos deriva de justificativas de ordem subjetiva, em virtude de ser impossível
imputar uma titularidade individual e exclusiva a certas pretensões pertinentes a todo corpo social
ou parcela deste; e de ordem objetiva, em razão da natureza das pretensões meta-individuais,
marcadamente extrapatrimoniais, na medida em que não são economicamente apropriáveis por
ninguém, individualmente.129
Por fim, é importante observar que antes do CDC, a própria Constituição Federal já
empregava o termo interesses no patamar de direitos, ao permitir que sindicatos, entidades de
classe ou associação impetrem mandado de segurança coletivo em defesa dos interesses de seus
membros ou associados; e ao legitimar o Ministério Público para promover inquérito civil e ação
civil pública para proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros
interesses difusos e coletivos (CF, art. 6º, LXX, b; art. 129, III).
1.7 A SUMMA DIVISIO E OS DIREITOS COLETIVOS
A divisão entre direito público e direito privado, elaborada pelos romanos, é considerada a
primeira divisão da história da Ciência do Direito. A dicotomia remonta à summa divisio
encontrada em Ulpiano e, posteriormente, em Justiniano, por meio da qual parte-se do princípio
de que há direito público quando o objetivo visado pelo Direito tem no interesse geral a sua
finalidade imediata, e direito privado, quando o Direito busca atingir o que é pertinente ao
interesse individual de cada um, a partir do critério do conteúdo ou objeto da relação jurídica.130
128 FERREIRA, op. cit., p. 56. 129 VENTURI, op. cit., p. 45. 130 REALE, op. cit., p. 339-340.
53
Embora ainda existam autores que defendam a importância da divisão para o Direito, a
exemplo de Reale que expressamente deixa consignado que “[...] a distinção ainda se impõe,
embora com uma alteração fundamental na teoria romana, que levava em conta apenas o
elemento do interesse da coletividade ou dos particulares [...]”131, vem predominando o
entendimento de que não há mais razões para justificar a existência da dicotomia nos sistemas
jurídicos, tendo em vista as diversas transformações sociais que ocorreram nos últimos séculos e
que atingiram o direito de forma substancial e que deram origem a uma sociedade de “massas”,
resultando em constantes demandas coletivas. Por conseguinte, a summa divisio impede a
classificação dos direitos coletivos em uma de suas categorias tradicionais.
Há que considerar também que a própria função jurisdicional, na forma tradicional,
permanecendo baseada na dicotomia dos conceitos público-privado, apresenta dificuldades de ser
exercida no Estado Contemporâneo, tendo em vista as demandas coletivas.132
A insuficiência da tradicional dicotomia apresenta-se notória. A base de tal constatação
também é atribuída ao reconhecimento de que os dois termos apresentam interação constante,
impedindo que sejam compartimentados de modo estanque. Esta é a análise de Mancuso, que
complementa a reflexão argumentando que a constatação é evidenciada pela análise das
expressões “coletivo”, “geral” e “público”, as quais não são noções abstratas e apresentam
significação a partir da síntese dos interesses individuais nelas agrupados, ou seja, um interesse é
considerado metaindividual quando ultrapassa o círculo de atributividade individual e
corresponde à síntese dos valores predominantes num determinado segmento ou categoria social.
Ainda, segundo Mancuso, [...] a realidade é muito complexa e seus elementos estão constantemente interagindo, de modo que não se pode enquadrar todo esse fenômeno em dois compartimentos estanques: público e privado. O “temido” terceiro termo de há muito está presente na sociedade, formado de elementos que depassam esse binômio. Há, portanto, uma zona cinzenta entre aqueles dois pólos [...].133
131 REALE, op. cit., p. 340. 132 CAPPELLETTI, 1985, p.173. 133 MANCUSO, 2004, p. 44-45.
54
Pinho ratifica este entendimento, refletindo que “[...] encontra-se superada a dicotomia
direito público – direito privado, em razão da idéia de unidade do ordenamento jurídico, de modo
a significar na atualidade, uma distinção meramente quantitativa.” Para o autor, na atualidade não
há que se falar em institutos público/privado, mas em institutos onde prevalecem interesses
individuais ou da coletividade, não afastando a presença de ambos. Ou seja, as esferas público-
privado deixaram de ser intangíveis, e a dicotomia perde a razão de ser, mesmo porque, todas as
normas devem ser interpretadas sob a luz dos valores constitucionais.134
Os direitos coletivos lato sensu são considerados uma categoria intermediária entre o
interesse particular e o interesse público. Despojados de sua carga de egoísmo, os interesses
individuais formam um novo ente, chamado interesse coletivo, e que encontra seu lugar a meio
caminho entre os interesses particulares e o interesse público.135
Na análise de Saldanha, esse fenômeno ocorre porque nas sociedades de massificação
padronizada dos séculos XX e XXI houve uma perda da distinção entre as duas dimensões, ou
mais precisamente, “o sacrifício da dimensão privada”. E o problema decorre principalmente
(sem prejuízo de fatores como aumento das populações, avanço desenfreado da tecnologia
hegemônica e saturação das formas urbanas) da onipresença do poder público que atinge com
elevado número de decisões todos os setores da vida pessoal; e do incremento das comunicações
que habitualmente reduzem o indivíduo, por exemplo, às proporções de consumidor, ameaçando
a preservação da privacidade.136
No momento Contemporâneo, Saldanha observa que o cidadão individualizado deixou de
contestar as ações e decisões políticas do Estado, como ocorreu no tempo da Revolução Francesa,
sendo que a defesa dos interesses individuais e coletivos vem sendo executada pelo viés da
substituição, papel assumido pelos partidos políticos, grupos de pressão, sindicatos e associações.
Em lugar do indivíduo estão as associações, representantes das coletividades.137
Portanto, a summa divisio apresenta-se superada pela realidade social Contemporânea, da
qual emergiram novos interesses não classificáveis em nenhuma das categorias tradicionais. São
134 PINHO, 2002, p. 182. 135 MANCUSO, 2004, p. 57. 136 SALDANHA, Nelson. O jardim e a praça: ensaio sobre o lado privado e o lado público da vida social e histórica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1986, p. 25-31. 137 Ibidem, p. 30.
55
interesses coletivos, de titularidade coletiva, e que revelam inadequada a tradicional concepção
de iniciativa processual monopolizada nas mãos do titular do direito subjetivo. A summa divisio
mostra-se impotente frente a interesses que são, ao mesmo tempo, de todos e de ninguém.138
1.8 A NATUREZA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS, AÇÕES E PROCESSOS COLETIVOS
A Constituição Federal de 1988 representa um marco na história da tutela jurisdicional
dos interesses e direitos coletivos no Brasil, por ser a primeira Constituição do País a elevar a
tutela coletiva ao patamar constitucional, garantindo a inafastabilidade de apreciação pelo Poder
Judiciário de lesão ou ameaça a direito individual ou coletivo (CF, art. 5º, XXXV).
As Constituições anteriores nada falavam sobre direitos coletivos, se limitando, a partir da
Constituição de 1934, a trazer disposições sobre direitos e garantias individuais, manifestando os
fundamentos da cultura jurídica moderna de cunho liberal-individualista. Portanto, a partir de
1988, o direito constitucional de ação deixa de estar voltado apenas para a tutela individual,
consistindo em clara inovação em relação ao direito anterior.139
No texto constitucional, a legitimidade para defender direitos nas esferas judicial e
extrajudicial, além de ser mantida na tradicional forma individual, foi estendida para as entidades
associativas, as quais podem representar coletivamente seus filiados. Tal legitimidade também foi
conferida aos sindicatos para defender direitos e interesses individuais ou coletivos da respectiva
categoria, ao mesmo tempo em que o Ministério Público recebeu autorização para promover
inquérito civil e ação civil pública para proteção do patrimônio público e social, do meio
ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (CF, art. 5º, XXI; art. 8º, III e art. 129, III).
Assim, resta evidenciado que sem prejuízo das inovações relacionadas aos direitos
fundamentais, a Constituição da República também inovou em relação às garantias fundamentais.
138 GRINOVER, Ada Pellegrini. A tutela jurisdicional dos interesses difusos. Revista Forense, 1979, vol. 268, p. 71. 139 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas nos países ibero-americanos: situação atual, código modelo e perspectivas. In: PRADO, Geraldo Luiz Mascarenhas (coord.). Acesso à justiça e efetividade do processo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005, p. 7.
56
Ou seja, manteve no nível constitucional as ações populares, elevou ao mesmo patamar as ações
civis públicas e criou as ações de mandado de segurança coletivo, todas consideradas neste caso,
enquanto garantias, meios de defesa, meios de tornar efetivo, de proteger ou salvaguardar direitos
coletivos. Segundo Bonavides, sem as garantias os direitos fundamentais cairiam no vazio das
esferas abstratas, ou perderiam o fio institucional de contato com a realidade concreta. Para o
autor, A garantia constitucional é, por conseguinte, a mais alta das garantias de um ordenamento jurídico, ficando acima das garantias legais ordinárias, em razão da superioridade hierárquica das regras da Constituição, perante as quais se curvam, tanto o legislador comum, como os titulares de qualquer dos Poderes, obrigados ao respeito e acatamento de direitos que a norma suprema protege.140
Tais garantias demonstram que o legislador constituinte preocupou-se em fazer constar na
Constituição da República, os mecanismos jurídicos necessários para proporcionar o devido
acesso à justiça quando o direito tutelado extrapola a esfera meramente individual, e atinge
grupos, categorias ou classes de pessoas, determinadas ou não.
Sem as garantias constitucionais de acesso coletivo à justiça e de tutela coletiva de
direitos, a República estaria feriando um dos princípios básicos do Estado Democrático de
Direito, qual seja, o princípio que garante um sistema de direitos fundamentais, formado pelos
direitos individuais, sociais, culturais e, evidentemente, coletivos. Além de ferir este princípio,
por conseguinte, estaria descaracterizando o próprio Estado Democrático de Direito, que visa em
sua configuração, levando em conta os elementos que os compõem, superar os conceitos de
Estado Democrático e Estado de Direito, mediante a criação de um conceito novo, “[...] na
medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo.”141
Segundo Venturi as garantias constitucionais de tutela coletiva se coadunam com os
princípios do Estado Democrático de Direito, os quais se justificam pela efetiva e constante busca
de transformação da realidade social, exigindo um rompimento com as concepções herdadas do
Estado liberal-individualista. Por conseguinte, adverte o autor, a ostentação de Estado
Democrático de Direito não será alcançada pelo simples fato de assim estar previsto na
Constituição ou porque esta é a vontade de seu povo, eis que neste cenário, a democracia “[...]
140 BONAVIDES, op. cit., p. 524-533. 141 SILVA, José Afonso da. O estado democrático de direito. Revista dois Tribunais, 1988, vol. 635, p. 11-12.
57
não tem um sentido simplesmente formal, como no Estado Liberal, mas precisamente substancial
e se pauta pela efetivação dos direitos fundamentais e pela preservação da dignidade da pessoa
humana.”142
Assim, as ações coletivas passam a ser vistas como condição de existência e prevalência
da democracia, rompendo com barreiras de acesso à justiça, mediante o emprego de tratamento
diferenciado às mais diversas questões processuais, tais como a legitimação ativa por meio da
substituição e a extensão subjetiva da eficácia da coisa julgada, neste último caso, superando em
absoluto as tradicionais e individualistas disposições do Código de Processo Civil.143
Almeida complementa que “[...] não existe efetivamente Estado Democrático de Direito
sem instrumentos eficazes de tutela dos interesses e direitos coletivos.” Para o autor, os processos
coletivos são vias potencializadas de prestação da tutela jurisdicional, sendo um dos
mecanizamos utilizados pelo Judiciário para cumprir sua função constitucional no Estado
Democrático de Direito, contribuindo para transformar a realidade social mediante a
concretização de direitos, objetivando uma “[...] sociedade mais justa, humana, solidária e livre
dos preconceitos que impedem a efetivação de uma ordem constitucional adequadamente
democrática.”144
Utilizando-se de ações coletivas, por meio de uma única decisão o Judiciário compõe
litígios que demandariam nas mais diversas situações, uma infinidade de ações individuais e, por
conseguinte, uma infinidade de sentenças também individuais. Desse modo, evidencia-se que por
meio da substituição processual, há um efetivo aumento do acesso à função jurisdicional do
Estado, incluindo neste processo as pessoas que por razões econômicas deixariam de exercer seus
direitos. Logo, torna-se fácil concluir que por meio das ações e dos processos coletivos, ocorre
uma notória aproximação do Poder Judiciário dos princípios e pressupostos democráticos
estabelecidos na Constituição da República.
Parafraseando Almeida, pode-se concluir que as ações e o processo coletivo têm natureza
constitucional, pertencendo ao chamado direito processual constitucional, do qual faz parte o
142 VENTURI, op. cit., p. 97. 143 Ibidem, p. 102. 144 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 144.
58
conjunto de disposições constitucionais que, entre outras questões, estabelece regras e estipula
quais ações são cabíeis para requerer tutela jurisdicional quando determinados direitos são
lesados ou ameaçados de lesão, in casu, os direitos coletivos.145
Para a tutela de tais direitos, a Constituição da República prevê, entre outras, as seguintes
garantias: o mandado de segurança coletivo (CF, art. 5º, LXX); a ação popular (CF, art. 5º,
LXXIII); e a ação civil pública (CF, art. 129, III), todas adiante detalhadas, juntamente com a
ação coletiva ou ação civil coletiva, inserida no cenário jurídico nacional no ano de 1990 com o
Código de Defesa do Consumidor.
Para maior clareza, é importante destacar que o citado direito processual constitucional
(no sentido processo-Constituição) não se confunde com o direito constitucional processual (no
sentido Constituição-processo). Enquanto este, segundo Dinamarco, contempla a tutela
constitucional do processo e os princípios que devem regê-lo; o primeiro alberga o controle da
constitucionalidade das leis e dos atos administrativos, bem como, a preservação das garantias
oferecidas pela Constituição e “[...] toda a idéia de instrumentalidade processual em si mesma,
que apresenta o processo como sistema estabelecido para a realização da ordem jurídica,
constitucional inclusive.”146
Neste contexto, as ações coletivas aparecem enquanto mecanismos de indispensável
existência no ordenamento jurídico, eis que representam garantias de preservação e efetiva
fruição dos direitos coletivos que a ordem constitucional vigente entende que, neste momento
histórico, devem ser cultuados.
145 ALMEIDA, op. cit., p. 18. 146 DIMARACO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 27.
CAPÍTULO II
2 PROCESSOS COLETIVOS
No primeiro capítulo restou demonstrado que no século XX eclodiu o surgimento dos
denominados novos direitos, entre os quais os direitos fundamentais de cunho coletivo (em
sentido lato), originários de fatores como os processos de industrialização, da globalização, dos
avanços tecnológicos e do incremento das comunicações, os quais motivaram o processo de
massificação social e passaram a provocar ameaças ou efetivas lesões a direitos e interesses que
atingem de uma só vez, conjuntos determinados ou indeterminados de pessoas, exigindo uma
tutela jurisdicional diferenciada da tutela tradicional, de cunho intersubjetivo.
Neste segundo capítulo, cumpre tecer uma análise acerca da legislação brasileira e das
influências sofridas no momento de pensar a tutela jurisdicional coletiva, mesmo porque, a
legislação processual até então existente não foi organizada com mecanismos contempladores dos
direitos coletivos, eis que elaborada sob as influências dos princípios liberais-individualistas.
A análise inclui uma abordagem das ações coletivas enquanto mecanismos de acesso à
justiça, de economia processual, de educação social e de concretização de direitos, bem como, de
aspectos envolvendo as principais ações coletivas e da perspectiva de um Código Brasileiro de
Processos Coletivos.
60
2.1 O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL NO ÂMBITO DA TUTELA COLETIVA
O Código de Processo Civil brasileiro foi estruturado sob a influência da tradicional e
clássica divisão da tutela jurisdicional, e que compreende a tutela de conhecimento, a tutela de
execução e a tutela cautelar, mantendo os fundamentos da teoria da ação do processo individual,
objeto central dos estudos do processo nos éculos XIX e em parte do século XX, a partir dos
princípios e fundamentos do direito privado. A ciência do processo civil, adverte Adamovich, foi
construída com base em uma filiação positivista.147
Dinamarco também destaca que há um descompasso entre o sistema processual civil e a
ordem constitucional, isto porque, o primeiro foi implantado sob a égide autoritária do Estado
Novo e sobreviveu à redemocratização de 1946 e ao regime militar de 1964, permanecendo na
nova ordem constitucional. Assim, com exceção de determinadas leis especiais, “[...] o
significado maior da evolução havida de 1939 para cá, é de ser creditado ao trabalho da doutrina
(especialmente, dos processual-constitucionalistas, em sua atitude rigorosamente
instrumentalista) e ao bom senso dos juízes.”148
A entrega da prestação jurisdicional por meio do atual Código de Processo Civil, ocorre a
partir de um repertório instrumental atravancador, intrincado e retrógrado, e que encontra-se
voltado quase que exclusivamente, segundo prudente complementação de Santos, aos interesses
individuais e de preservação da propriedade privada, mantendo conservada a concepção burguesa
alicerçada na remota era da Queda da Bastilha.149
Desse modo, o Código de Processo Civil brasileiro apresenta disposições defasadas no
que tange aos direitos de ordem coletiva, e visa tutelar, tão somente, prestações jurisdicionais nos
casos de ameaça ou lesão a direitos subjetivos individuais, remetendo a legitimidade ativa ao 147 ADAMOVICH, Eduardo Henrique Raymundo Von. A justiça geométrica e o anteprojeto de código de processos coletivos: elementos para uma justificativa hostórico-filosófica, ou por uma visão atual do alcance e da função criadora da jurisdição coletiva. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (coord.). Direito processual coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 55. 148 DINAMARCO, C. R., op. cit., p. 43. 149 SANTOS, Dorival Moreira dos. Anteprojeto do código brasileiro de processo civil coletivo: inovações na prática processual em busca da efetividade. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro;
61
próprio detentor do direito lesado, sendo esta, inclusive, uma das condições indispensáveis para
possibilitar o efetivo exercício do direito de ação.150 Ao receber a petição inicial e constatar a
ausência de tal condição (legitimidade ativa), o CPC autoriza o juiz a rechaçar de imediato a
pretensão do postulante por meio do indeferimento da inicial, o que provoca a extinção do
processo sem resolução do mérito.151 Somente em casos excepcionais e mediante autorização
legal, um terceiro poderá em nome próprio, pleitear direito alheio, pelo regime da substituição
processual.152
Portanto, o Código de Processo Civil não é um instrumento voltado para a tutela de
interesses coletivos, pelo simples fato de não apresentar mecanismos adequados para tal
finalidade. Em meio aos dispositivos processuais, raras são as exceções que podem ser citadas
como exemplos de instrumentos com cunho de tutela coletiva. Conforme observa Zavascki, entre
as exceções está a fórmula tradicional do litisconsórcio ativo, “[...] ainda assim sujeito, quanto ao
número de litisconsortes, a limitação indispensável para não comprometer a defesa do réu e a
rápida solução do litígio (art. 46, § único).”153
O instituto do litisconsórcio ativo, passivo ou misto, é exemplo típico do processo civil
individualista, pelo fato de significar uma mera cumulação de demandas singulares. Segundo
complementação de Mendes, Diante de fatos com repercussão sobre grupos pequenos, o litisconsórcio pode, por certo, representar um meio viável e econômico para a resolução da lide. Mas, diante da massificação moderna, na qual os conflitos e as questões jurídicas e fáticas envolvem milhares ou milhões de pessoas, clara é a incapacidade do fenômeno litisconsorcial para a efetivação da prestação jurisdicional no âmbito coletivo.154
Contudo, diversas modificações legislativas aprovadas paralelamente ao Código de
Processo Civil a partir de 1985 (algumas modificações atingiram o próprio Código de Processo),
alteraram substancialmente o sistema processual, permitindo concluir que o processo civil já não
WATANABE, Kazuo (coord.). Direito processual coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 39. 150 CPC, art. 3º. Para propor ou contestar ação é necessário ter interesse e legitimidade. 151 CPC, art. 295. A petição inicial será indeferida: II – quando a parte for manifestamente ilegítima. 152 CPC, art 6º. Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei. 153 ZAVASCKI, op. cit., p. 18. 154 MENDES, 2002, p. 24.
62
se limita a solucionar conflitos de interesses individualizados, por meio da prestação da tutela
jurisdicional na modalidade clássica.
2.2 O MICROSSISTEMA PROCESSUAL COLETIVO
Portanto, sem prejuízo das alterações legislativas que atingiram o próprio Código de
Processo Civil, simultaneamente foi aprovado no Brasil um conjunto de regras que vem sendo
caracterizado de micro, mini ou subsistema processual coletivo, aplicado aos processos judiciais
que tramitam na condição de processos coletivos, os quais são entendidos enquanto mecanismo
de defesa dos interesses de uma pluralidade de pessoas, mediante um ou mais legitimados
extraordinários, que estarão em nome próprio defendendo os interesses ou direitos alheios.155
Assim, da mesma forma que o direito civil passou por uma transição, de um referencial
individual para o coletivo, “[...] o direito processual também não se manteve inerte às profundas
mudanças sociais que se vêm manifestando no mundo moderno.”156
Na reflexão de Zavascki, o primeiro passo em direção à formalização da tutela
jurisdicional de interesses transindividuais, mediante previsão em texto legislativo, ocorreu no
Brasil por meio da Lei da Ação Popular (Lei 4.717 de 29.06.1965). Na análise do autor, “[...] a
ação popular representa, em nosso sistema, além de uma quebra de paradigmas, o instrumento
precursor e pioneiro de defesa jurisdicional de interesses difusos da sociedade, mediante a
legitimação ativa dos cidadãos, pela técnica da substituição processual.”157
No ano seguinte ao advento da Lei da Ação Popular, isto é, no ano de 1966, Meirelles
chamava a atenção para a característica de representatividade coletiva apresentada por tal
diploma legal: É um instrumento de defesa dos interesses da coletividade, utilizável por qualquer de seus membros. Por ela não se amparam direitos próprios , mas sim direitos da comunidade. O beneficiário direto e imediato desta ação não é o autor; é o povo, titular
155 MENDES, 2002, p. 24. 156 PINHO, 2002, p. 41. 157 ZAVASCKI, op. cit., p. 84-88.
63
do direito subjetivo ao governo honesto. O cidadão a promove em nome da coletividade, no uso de uma prerrogativa cívica que a Constituição lhe outorga (art. 141, § 38).158
Há, no entanto, registros anteriores a 1965, de legislações que possibilitavam a defesa de
direitos coletivos por meio da substituição processual. Dinamarco cita a Lei 1.134 de 14.06.1950,
a qual facultava às associações que congregavam funcionários ou empregados de empresas
industriais da União, dos Estados, dos Municípios e entidades autárquicas, a representação
coletiva ou individual de seus associados, nas esferas administrativa e judicial.159 Mendes cita o
antigo Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 4.215 de 24.04.1963), o qual
possibilitava que a entidade representasse os interesses gerais e individuais da classe dos
advogados, relacionados ao exercício da profissão, em juízo e fora dele. Também registra que a
Constituição da República de 1934 possibilitava que qualquer cidadão, na condição de parte
legítima, pleiteasse a declaração de nulidade ou anulação de atos lesivos ao patrimônio da União,
dos Estados e Municípios, disposição que no ano de 1965 foi regulamentada por meio da Lei da
Ação Popular, sendo que neste período, o País não mais se encontrava sob a égide da
Constituição de 1934, mas sim, da Constituição de 1946.160
Contudo, em que pese a importância de tais registros históricos, e que por mérito devem
ser consignados, é prudente observar que nenhum deles apresentava, mesmo sendo considerados
a partir do direito material os instrumentos pioneiros de tutela de interesses transindividuais,
regras inovadoras que permitam defini-los como marco histórico da regulamentação processual
coletiva, no que tange ao aspecto processual, posto que a aplicação de todos, inclusive da Ação
Popular, encontravam-se ligados às disposições do Código de Processo Civil.161
Somente no ano de 1985 com a Lei 7.347/85, denominada Lei da Ação Civil Pública, os
interesses transindividuais passaram a receber tutela processual diferenciada. Segundo Grinover,
os interesses ligados ao meio ambiente e ao consumidor, receberam tutela diferenciada “[...] por
158 MEIRELLES, Hely Lopes. Ação popular e sua lei regulamentar. Revista dos Tribunais, 1966, vol. 369, p. 14. 159 DINAMARCO, P. da S., op. cit., p. 36. 160 MENDES, 2002, p. 192. 161 BRANDÃO, op. cit., p. 195-196.
64
intermédio de princípios e regras que, de um lado, rompiam com a estrutura individualista do
processo civil brasileiro e, de outro, acabaram influindo no Código de Processo Civil.”162
A Lei 7.347/85 não criou regras de comportamento para as pessoas, no sentido de normas
jurídicas materiais. A mesma contém apenas regras procedimentais, a exemplo de competência,
legitimidade, atuação do Ministério Público e efeitos da sentença. É uma lei que depende das
normas de direito material para que possa ter vida.163
É importante consignar que antes do advento da Lei da Ação Civil Pública, a Lei
6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, conferiu de forma pioneira no
País, legitimidade exclusiva ao Ministério Público para a propositura de ações requerendo
condenações por responsabilidade civil e penal, oriundas de danos causados ao meio ambiente.
Todavia, a exemplo da Lei da Ação Popular, a Lei 6.938/81 também não possui força suficiente
para retirar da Lei da Ação Civil Pública o caráter de marco histórico na implementação de
tutelas processuais diferenciadas, atinentes aos processos coletivos.
Inicialmente, apenas interesses ligados ao meio ambiente e consumidores eram tutelados
pela Lei 7.347/85. A partir de 1988, a Constituição Federal estendeu a proteção coletiva a
qualquer interesse difuso ou coletivo, sem limitar o objeto do processo.164 Atualmente, suas
disposições também são aplicadas nas ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais
causados à ordem urbanística, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e
paisagístico, e nos casos de infração da ordem econômica e da economia popular.
Após a Lei da Ação Civil Pública, outras leis foram promulgadas objetivando
regulamentar a tutela de interesses transindividuais, tais como a Lei 7.853, de 24.10.89, que
dispõe sobre a proteção de interesses de pessoas portadoras de deficiência; Lei 8.069, de
13.07.90, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente; Lei 8.078, de 11.09.90, que instituiu
o Código de Defesa do Consumidor; Lei 8,429, de 02.06.92, que dispõe sobre a probidade na
162 GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual coletivo. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (coord.). Direito processual coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 11. 163 DINAMARCO, P. da S., op. cit., p. 47. 164 CF, art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.
65
administração pública; Lei 8.884, de 11.06.94, que versa sobre a ordem econômica; e Lei 10.741,
de 01.10.03, que tutela interesses de pessoas idosas e é denominada Estatuto do Idoso.165
Além da legislação infraconstitucional, a Constituição Federal de 1988 também representa
um marco na história da tutela jurisdicional coletiva no Brasil, por ser a primeira Constituição do
País a elevar a tutela coletiva ao patamar constitucional, garantindo a inafastabilidade de
apreciação pelo Poder Judiciário de lesão ou ameaça a direito individual ou coletivo. No campo
das garantias fundamentais, a ação popular foi mantida no texto constitucional, a ação civil
pública foi elevada ao mesmo patamar, e o mandado de segurança coletivo, até então inexistente,
foi instituído na esfera constitucional do país.166
Entretanto, de todas as inovações introduzidas na legislação brasileira nas últimas décadas
do século XX e primeiros anos do século XXI, a fim de garantir proteção aos direitos coletivos e
viés jurídico adequado para pleitear tais direitos perante o Judiciário, merece destaque a Lei
8.078, de 11.09.90. Mendes observa que o Código de Defesa do Consumidor é o diploma legal
que apresenta hoje toda a estrutura para o processamento das ações coletivas, na medida em que
“[...] encontra aplicabilidade não apenas para os processos relacionados com a proteção do
consumidor em juízo, mas, também, em geral, para a defesa dos direitos e interesses difusos,
coletivos e individuais homogêneos.”167
Enquanto não se tem no Brasil uma legislação própria e codificada, o que possivelmente
ocorrerá com a instituição do Código Brasileiro de Processos Coletivos, o Código de Defesa do
Consumidor é aplicado na condição de instrumento principal, pois regula os mais diversos
aspectos da tutela jurisdicional coletiva, a ponto de representar no cenário jurídico brasileiro o
modelo estrutural para as ações coletivas. Conforme observa Mendes, Regulou, assim, o Código de Defesa do Consumidor, os aspectos mais importantes da tutela jurisdicional coletiva, desde a problemática da competência e da legitimação até a da execução, passando pela coisa julgada e os seus efeitos, além da questão da litispendência e das definições conceituais pertinentes aos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.168
165 ZAVASCKI, op. cit., p. 19. 166 MENDES, 2005, p. 8. 167 Ibidem, p. 8. 168 Ibidem, p. 9.
66
Na condição de norma estruturante da tutela coletiva, as disposições do CDC encontram
aplicabilidade nos processos relacionados com a proteção do consumidor em juízo e, de modo
geral, em todos os processos de defesa de direitos e interesses transindividuais e individuais
homogêneos. Sempre que o CDC for omisso em relação a determinada disposição de ordem
processual, devem ser aplicadas as regras da Lei da Ação Civil Pública e do Código de Processo
Civil (CDC, art. 90).
No que tange a aplicação da LACP e do CPC, cumpre observar que a mesma deve ocorrer
de forma subsidiária, permitindo concluir, por oportuno, que ambos os diplomas não poderão
contrariar as disposições do CDC e que a aplicação deste deve ser prioritária. Todavia, o CDC
não esclarece qual das leis tem prioridade na complementação de suas próprias lacunas. Neste
caso, Saad faz a seguinte interpretação: “[...] extraímos a lição de que o intérprete deve socorrer-
se, em primeiro lugar, da Lei n. 7.347 por ser ela uma lei especial que hospeda prescrições
dedicadas ao consumidor.”169 Portanto, somente nos casos em que a LACP for omissa, é que
haverá aplicação do CPC.
Assim, o CDC complementa o conjunto de normas existentes no País, por meio do qual se
denota que o Brasil possui um verdadeiro microssistema de processos coletivos. Segundo
Zavascki, todo o cabedal normativo brasileiro não deixa dúvidas de que o nosso sistema
processual possui um verdadeiro subsistema específico, rico e sofisticado, aparelhado para
atender os conflitos coletivos, típicos da sociedade moderna.170 Neste mesmo sentido pondera
Leonel, argumentando que nas últimas duas décadas o processo civil brasileiro assumiu lugar de
vanguarda no contexto internacional, sendo que um dos motivos é o tratamento conferido para as
crises de direito material envolvendo situações que extrapolam a esfera individual de cada vítima
do dano.171
2.3 A ORIGEM DAS AÇÕES COLETIVAS E O MODELO ADOTADO NO BRASIL
169 SAAD, op. cit., p. 603. 170 ZAVASCKI, op. cit., p. 39. 171 LEONEL, Ricardo de Barros. Causa de pedir e pedido nos processos coletivos: uma nova equação para a estabilização da demanda. In: GRINOVER, Ada Pellegrini Grinover; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (coord.). Direito processual coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 144.
67
O direito inglês, nos países com sistema jurídico da common law, é indicado como
nascedouro do instituto da class action, com finalidade de tutela coletiva de interesses e
direitos.172 Embora o século XVII seja apontado como o período em que são encontrados os
antecedentes da moderna ação coletiva, considerando que foi neste século que os Tribunais de
Eqüidade ingleses (Courts of Chancery) passaram a admitir o bill of peace, um modelo de
demanda que rompia com o princípio que exigia a participação de todos os interessados no
processo, permitindo que na ação individual o autor requeresse que o provimento englobasse os
direitos de todos os demais envolvidos no litígio173, muitos séculos antes a Inglaterra já havia
registrado acontecimentos que são indicados como verdadeiros exemplos de ações coletivas.
Contudo, Mendes esclarece que no período medieval as ações de grupo “[...] não eram objeto de
discussão, justificação ou teorização, razão pela qual se pode dizer que o emprego e
admissibilidade das mesmas eram realizados de modo inconsciente.”174
Na verdade, as discussões e questionamentos é que somente começaram a surgir no século
XVII, sendo que experiências já haviam sido constatadas em períodos anteriores. Desse modo,
torna-se oportuno trazer a colação outra observação de Mendes acerca do momento em que os
primeiros litígios coletivos surgiram na história do Direito: O brotar do debate ensejou, para alguns historiadores, a falsa compreensão de que apenas no século XVII estivessem surgindo os primitivos casos de litígio coletivo, quando, na realidade, as ações de grupo estavam, quase quinhentos anos depois, apenas mais evidentes, tendo em vista as reservas e defesas que foram respectivamente lançadas sobre si.175
Stephen Yeazell, citado por Mendes, aponta um acontecimento de 1199 como sendo o
pioneiro dos litígios coletivos, quando um pároco ajuizou ação versando sobre o direito a
determinadas oferendas e serviços, sendo que em juízo poucas pessoas teriam constituído o pólo
passivo, as quais responderiam por todas as demais que se encontravam em idêntica situação.176
Contudo, Leal cita Edward Peters, autor que teria elaborado uma revisão crítica da obra de
Yeazell, e concluído que o primeiro caso de ação coletiva teria ocorrido em 1179, quando aldeões
172 Neste sentido: TUCCI, José Rogério Cruz e. “Class Action” e mandado de segurança coletivo. São Paulo: Saraiva. 1990, p. 11; MENDES, 2005, p. 43; ZAVASCKI, 2006, p. 29. 173 LEAL, M. F. M., 1998, p. 22-23. 174 MENDES, 2002, p. 44. 175 Ibidem, p. 46. 176 Ibidem, p. 43.
68
reivindicaram o fim da condição de servos, ajuizando ação contra seus senhores, o abade e os
clérigos de Santa Genoveva, em Paris.177
O segundo caso teria ocorrido no século XIII, quando três aldeões de Helpingham
ajuizaram ação contra as comunidades residentes nas cidades de Donington e Bykere, exigindo
que os demandados os assistissem na reparação de diques, restando evidenciado que a defesa
atingia interesse de toda a comunidade de Helpingham, de modo coletivo, extrapolando a esfera
meramente individual.178
O terceiro caso que se tem registro ocorreu no século XIII, enquanto nos séculos XIV e
XV, as ações coletivas tornaram-se mais freqüentes, sem que houvesse, conforme já mencionado,
debate sobre as diversas questões que envolvem a matéria processual, a exemplo da legitimidade
de algumas pessoas para defender o direito das coletividades representadas. Na explicação de
Leal, na ação coletiva medieval não havia questionamento acerca da representação de direitos
alheios, porque o direito material era “mais ou menos” compartilhado indistintamente pela
comunidade. Neste sentido, o autor da ação sempre representava uma coletividade, e não um
conjunto de indivíduos. Para Leal, essa ação medieval “[...] guarda semelhança com a ação para
defesa de direitos difusos contemporânea, pois, também, nesse caso, trata-se da tutela do direito
de uma entidade unitária (a comunidade), que necessita de um representante para efeito judicial
(ACDD).”179
Nos séculos XVI e XVII há uma diminuição no número de processos coletivos na
Inglaterra, em contrapartida, é no final do século XVII que surgem as primeiras dúvidas e
questionamentos envolvendo tais litígios, culminando no desencadeamento das primeiras
teorias.180 Portanto, a partir desta breve análise elaborada a partir de Leal e Mendes, conclui-se
que o que deve ser atribuído ao século XVII é o início do debate e elaboração das primeiras
teorias sobre litígios coletivos, e não o nascimento das ações coletivas na história do Direito,
considerando os casos registrados no período medieval, a partir do século XI.
177 LEAL, M. F. M., 1998, p. 21. 178 MENDES, 2002, p. 44. 179 LEAL, M. F. M., 1998, p. 24. 180 MENDES, 2002, p. 44-46.
69
Da experiência do Direito inglês, são originárias as modernas ações de classe (class
actions), aperfeiçoadas em outros países, objetivando disponibilizar ao Estado os mecanismos
considerados necessários para a promoção da tutela de direitos coletivos. O aperfeiçoamento
ocorreu de forma acentuada nas últimas três décadas do século XX em razão das diversas
transformações vivenciadas pela sociedade, as quais passaram a provocar lesões a direitos que
exorbitam a esfera individual, a exemplo dos amplamente citados direitos de proteção e defesa do
consumidor e os direitos à proteção e preservação do meio ambiente.181
Entre os demais países que instituíram em sua legislação disposições específicas acerca
das ações coletivas (a exemplo da própria Inglaterra, Itália, Alemanha, França e Espanha)182, o
sistema jurídico norte-americano é considerado o mais avançado em termos de aperfeiçoamento,
especialmente a partir de 1938 com a edição da Rule 23 (Regra 23) das Federal Rules of Civil
Procedure, e de sua reforma no ano de 1966. Segundo Gidi, a reforma de 1966 foi necessária em
razão dos problemas apresentados pela versão original de 1938, considerada incompleta e
destinada ao insucesso. Segundo o autor, a redação “[...] era confusa, complexa e
demasiadamente abstrata, em total dessintonia com a realidade prática e a cultura jurídica
americana moderna, principalmente no que se refere às hipóteses de cabimento.”183
Todas as mudanças envolvendo ações coletivas registradas no Direito norte-americano e
nos sistemas jurídicos de outros países, são consideradas por Cappelletti e Garth uma verdadeira
“revolução” dentro do processo civil, isto porque, argumentam os autores,
A concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a proteção dos direitos difusos. O processo era visto apenas como um assunto entre duas partes, que se destinava à solução de uma controvérsia entre essas mesmas partes a respeito de seus próprios interesses individuais. Direitos que pertencessem a um grupo, ao público em geral ou a um segmento do público não se enquadravam bem nesse esquema. As regras determinantes da legitimidade, as normas de procedimento e a atuação dos juízes não eram destinadas a facilitar as demandas por interesses difusos intentadas por particulares.184
181 ZAVASCKI, op. cit., p. 32-33. 182 MENDES, 2002, p. 43. 183 GIDI, Antonio. A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos: as ações coletivas em uma perspectiva comparada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 55. 184 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988, p. 49-50.
70
Para Adamovich, a retomada no século XX do desenvolvimento teórico dos antigos
modelos de ações coletivas, colocaram em cheque a ciência do processo que mantinha filiação
filosófica positivista, de cunho individualista e instrumental de direito privado. Os movimentos
sociais de reivindicação dos direitos coletivos tomaram impulso nos Estados Unidos da América,
inicialmente relacionados aos direitos trabalhistas e posteriormente aos direitos das minorias e
dos consumidores, estes relacionados às transformações sociais da pós-modernidade.185
E é justamente o modelo do sistema norte-americano que o legislador brasileiro adotou
para disciplinar e aperfeiçoar com maior rigor as ações e os processos coletivos, a ponto de o
Brasil ser considerado, entre os países da civil law, o pioneiro na criação e implementação dos
processos coletivos, e o legislador brasileiro ser apontado como o verdadeiro protagonista da
“revolução” mencionada por Cappelletti e Garth.186
No aspecto técnico, para fins de comparação com os requisitos exigidos na atualidade
para a propositura de ações coletivas no Direito brasileiro, cumpre destacar que a Rule 23 norte-
americana apresenta pré-requisitos ou requisitos vestibulares para qualquer ação de classe, no
sentido de que um ou mais membros de uma classe possam processar ou ser processados como
partes, representando todos os demais, sendo: a) a classe representada na ação deve ser tão
numerosa que a reunião de todos os membros em litisconsórcio ativo verifica-se impraticável; b)
que existam questões de direito ou de fato comuns à classe; c) que as pretensões e defesas sejam
típicas da classe; d) e que as partes representativas protegerão de forma justa e adequada os
interesses da classe.187 Além destes requisitos, Mendes cita um quinto requisito, considerado
implícito ou decorrente, no sentido de que também é necessária a existência de uma classe
identificável, e que possibilite, por exemplo, verificar se todos os indivíduos representados
podem ou não ser considerados seus membros.188
Sem prejuízo destes requisitos, para que possa existir processo coletivo, a Rule 23
apresenta outras exigências, divididas entre as ações possíveis. O dispositivo pertinente a
primeira categoria de ação - b(1) - divide-se em dois – b(1)(A) e b(1)(B) – sendo que a primeira
185 ADAMOVICH, op. cit., p. 55. 186 Neste sentido: GRINOVER, 2007, p. 11; e ZAVASCKI, op. cit., p. 37. 187 GRINOVER, Ada Pellegrini. Da class action for damages à ação de classe brasileira: os requisitos de admissibilidade. In: MILARÉ, Edis (coord.). Ação civil pública: Lei 7.347/1985 – 15 anos. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 22. 188 MENDES, 2002, p. 74-75.
71
subcategoria de ação – b(1)(A) - se assemelha ao litisconsórcio necessário previsto no CPC
brasileiro189. Segundo Leal, o exemplo clássico é aquele em que o Judiciário requer o
litisconsórcio necessário, “[...] mas as partes são muito numerosas para integrarem a relação
processual. Nesse caso, a saída é a fórmula representativa da ação coletiva, dispensando-se o
consentimento daqueles que não fazem parte (formalmente) do processo.”190
Na primeira modalidade ou subcategoria de ação, normalmente se quer que a parte
contrária cumpra uma determinação de fazer ou não fazer algo, sendo cabíveis providências de
natureza constitutiva, mandamental ou condenatória de fazer ou não fazer. Após ajuizada e
admitida uma class action com fundamento no dispositivo b(1)(A) da Regra 23, a decisão atinge
todos os membros da classe, não podendo qualquer interessado solicitar a sua exclusão, sendo,
portanto, atingido pelos efeitos da coisa julgada.191
A segunda subcategoria de ação – b(1)(B) – leva em consideração, conforme esclarece
Mendes, “[...] o risco de julgamentos, proferidos em benefício de indivíduos membros da classe,
que estariam, na prática, dispondo dos interesses de outros integrantes da classe, que não são
partes no processo, ou prejudicando substancialmente ou impedindo a capacidade de proteção dos
seus interesses.” É o que ocorre, segundo o mesmo autor, nos casos de distribuição de dividendos
em razão de liquidação de sociedade ou em virtude de rateio falimentar. O caráter da segunda
subcategoria de ação também é obrigatório, não sendo possível requerer exclusão individual.192
A segunda categoria de class action – b(2) – contempla os casos de pedidos de
condenação de fazer ou não fazer, ou provimentos declaratórios ou mandamentais, também no
sentido de fazer ou não fazer. Leal esclarece que estes provimentos decorrem de um direito
difuso (transindividualidade material) ou de um direito individual tratado coletivamente
(transindividualidade processual), posto que a decisão judicial e a coisa julgada beneficiarão ou
prejudicarão todos os membros da classe envolvida, a exemplo de uma ação que requer a uma
escola, o estabelecimento de quota de matrícula para determinado número de estudantes
189 CPC, art. 47. Há litisconsórcio necessário, quando, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes; caso em que a eficácia da sentença dependerá da citação de todos os litisconsortes no processo. 190 LEAL, M. F. M., 1998, p. 156. 191 MENDES, 2002, p. 86-87. 192 Ibidem, p. 88.
72
segregados pelo fato de constituir uma minoria racial.193 A segunda categoria de class action não
contempla direitos indenizatórios e a maioria dos litígios tem natureza constitucional (direitos
fundamentais) ou civil, a exemplo de casos de discriminação racial, religiosa e sexual, ou, até
mesmo, no âmbito do direito comercial ou do consumidor.194
Por fim, a terceira categoria de class action – b(3) - denominada class action for damages,
não apresenta caráter de obrigatoriedade (admite o opt out) e pode ser utilizada por classes que
desejam efetuar pedidos condenatórios por danos materiais, oriundos de responsabilidade civil,
sofridos individualmente, mas que permitem tratamento coletivo.195 O ajuizamento desta
categoria de ação exige que além dos requisitos comuns a todas as ações de classe norte-
americanas, sejam observados dois requisitos adicionais e específicos, sendo: a) as questões de
direito e de fato comuns devem prevalecer sobre as questões de direito ou de fato individuais; b)
a tutela coletiva, no âmbito da justiça e eficácia da sentença, deve ser superior a tutela
individual.196
Grinover conclui que a class action for damages não existia nas Regras Federais de 1938
e pode ser considerada a grande novidade acrescentada no ano de 1966. Para a autora, O espírito geral da regra está informado pelo princípio do acesso à justiça, que no sistema norte-americano se desdobra em duas vertentes: a de facilitar o tratamento processual de causas pulverizadas, que seriam individualmente muito pequenas, e a de obter a maior eficácia possível das decisões judiciárias. E, ainda, mantém-se aderente aos objetivos de resguardar a economia de tempo, esforços e despesas e de assegurar a uniformidade das decisões.197
Portanto, a partir desta breve análise das class actions norte-americanas, é possível
elaborar uma relação das mesmas com o que há previsto no ordenamento jurídico brasileiro. A
duas primeiras categorias de ações - b(1) e b(2) -, sendo que a primeira categoria se subdivide em
duas subcategorias – b(1)(A) e b(1)(B) –, correspondem às ações previstas no Brasil para a defesa
de interesses difusos e coletivos stricto sensu, enquanto que a terceira categoria – b(3) -
193 LEAL, M. F. M., 1998, p. 157-158. 194 MENDES, 2002, p. 89. 195 LEAL, M. F. M., 1998, p. 159. 196 GRINOVER, 2002, p. 24. 197 Ibidem, p. 23-24.
73
corresponde à ação utilizada para a defesa coletiva de interesses individuais homogêneos, para
fins de reparação de danos individualmente sofridos.198
Conforme expressado no capítulo anterior, no Brasil duas categorias de direitos materiais
são tuteladas coletivamente: a categoria dos direitos coletivos transindividuais, formada pelos
direitos difusos e coletivos stricto sensu; e a categoria dos direitos individuais homogêneos.
Desse modo, Zavascki reflete que se há distinção e são inconfundíveis as categorias de direitos
coletivos, também devem ser distintos os instrumentos para tutelá-los em juízo, no que tange,
principalmente, aos modos e limites da legitimação ativa e à natureza das providências adotadas a
partir do que está sendo postulado. O autor considera equivocada o que chama de suposição
largamente difundida, no sentido de que “[...] a ação civil pública, criada pela Lei 7.347, de 1985,
e destinada a tutelar direitos transindividuais, pode ser também indiscriminada e integralmente
utilizada para a tutela de direitos individuais.”199
Por conseguinte, a partir desta reflexão, no microssistema processual coletivo do Direito
brasileiro, os instrumentos processuais adequados para tutelar direitos transindividuais (difusos e
coletivos stricto sensu) são as ações civis públicas e a ação popular, enquanto que os direitos
individuais homogêneos devem ser tutelados por meio das ações civis coletivas, nelas incluído o
mandado de segurança coletivo.200 Neste mesmo sentido Pinho esclarece que com a criação da
ação coletiva ou ação civil coletiva, foi resolvido um problema até então existente, relacionando
ao cabimento ou não da ação civil pública para a defesa de direito individual homogêneo. Para o
autor, nos dias atuais deve-se utilizar a ação civil pública para a tutela de direitos difusos e
coletivos, e a ação coletiva para a defesa do direito individual homogêneo.201
Contudo, não comungam desta conclusão autores como Grinover, que em razão do
disposto no artigo 21202 da Lei da Ação Civil Pública entende que esta deve ser aplicada na tutela
de qualquer direito coletivo, incluindo os individuais homogêneos203; Saad que expressamente
deixa consignado que a ação civil pública destina-se à defesa de direitos e interesses difusos,
198 GRINOVER, 2002, p. 23. 199 ZAVASCKI, op. cit., p. 56-57. 200 Ibidem, p. 58. 201 PINHO, 2002, p. 47. 202 LACP, art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor. 203 GRINOVER, Ada Pellegrini. Processo civil contemporâneo. Curitiba: Juruá, 1994, p. 38.
74
coletivos e individuais homogêneos204; e Dinamarco, para quem, inicialmente, a ação civil
pública não podia ser utilizada para a defesa dos interesses individuais homogêneos, até que CDC
possibilitou a tutela de tais direitos por meio deste viés jurídico, desde que os direitos ou
interesses sejam oriundos das relações de consumo.205
2.4 AS AÇÕES COLETIVAS ENQUANTO MECANISMO DE ACESSO À JUSTIÇA
A expressão acesso à justiça, na análise de Cappelletti e Garth, não é de fácil definição.
Porém, segundo os mesmos autores, serve para determinar duas finalidades básicas dentro de um
sistema jurídico. A primeira consiste na idéia de que o sistema deve garantir acesso igualitário a
todos os membros da sociedade; e a segunda que o acesso não deve ser apenas formal, no sentido
de poder propor ou contestar uma ação, mas sim, que produza resultados justos, nos aspectos
individual e social.206
Portanto, a expressão acesso à justiça representa mais e não se confunde com a simples
possibilidade de acesso ao judiciário, também chamado de acesso formal, por meio do qual é
garantido o direito de propor e contestar ações. Cappelletti e Garth deixam claro que tal direito
deve estar acompanhado da certeza de que o processo trará resultados justos para as partes e para
a sociedade, mediante a efetiva materialização de direitos.
Cappelletti e Garth também destacam que, muito embora o conceito de acesso à justiça
seja objeto de estudo há vários séculos, os movimentos de reforma dos sistemas legais nos países
Ocidentais, visando à efetividade do acesso e soluções práticas para os problemas existentes,
somente tiveram início na década de sessenta, sendo que os três momentos desencadeados para
tal finalidade são chamados pelos autores de primeira, segunda e terceira “ondas renovatórias”.
Em síntese, a primeira “onda” enveredou esforços para incrementar a devida assistência
judiciária aos pobres, tendo em vista os inadequados esquemas de assistência existentes nos
204 SAAD, op. cit., p. 612. 205 DINAMARCO, P. da S., op. cit., p. 59. 206 CAPPELLETTI, GARTH, op. cit., p. 8.
75
países Ocidentais; a segunda preocupou-se com a tutela jurisdicional dos direitos e interesses
difusos (o que podemos estender para todas as modalidades de direitos coletivos); e a terceira
tratou e ainda trata do próprio conceito de acesso à justiça, que entre outras questões, busca
pensar a advocacia judicial e extrajudicial (a exemplo do que se tem no Brasil com as
experiências de juízo arbitral e mediação), centrando a atenção no conjunto das instituições e
mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados, visando além do processamento de ações, a
prevenção de disputas.
Considerando que objeto de pesquisa desta dissertação são os processos coletivos, nossa
abordagem recairá sobre a segunda “onda” renovatória, a qual tratou, justamente, da
representação dos interesses difusos/coletivos em juízo, incluída enquanto parte integrante dos
problemas a serem pensados para melhorar o acesso à justiça. Neste cenário, os autores destacam
que o conceito de acesso à justiça sofreu as influências das transformações sociais ocorridas no
século XX, período no qual, as ações e relacionamentos saíram da esfera individual para atingir
um caráter coletivo, deixando para trás a idéia formalista e individualista do Direito herdada do
Estado de Direito liberal-burguês, típica dos séculos XVIII e XIX. Desse modo, o pensamento
individualista cedeu espaço para uma concepção social ou coletiva do Direito, a qual é
imprescindível para possibilitar acesso às coletividades lesadas em seus interesses.207
Diante desta nova realidade jurídica, os sistemas jurídicos passaram a desenvolver
mecanismos necessários e facilitadores de acesso à justiça e que contemplassem as coletividades,
a exemplo do que ocorreu no Brasil com o chamado microssistema processual coletivo. Tais
mecanismos se tornaram necessários porque a fragmentação de um dano sofrido por cada um dos
lesados é, muitas vezes, demasiadamente pequeno para justificar o custo econômico, psicológico
e de tempo exigidos por uma ação individual. Ou seja, enquanto o dano global pode ser de
significativa expressão social e econômica, o fragmento individual pode ser irrisório208.
No Brasil, Mendes ratifica e apresenta ponderações que vão ao encontro das apresentadas
por Cappelletti e Cappelletti e Garth. Para o autor brasileiro, se os danos resultantes de lesões que
atingem coletividades são de pequena expressão econômica, quando considerados
separadamente, ocorre um desestímulo para o ajuizamento de ações individuais, evidenciando
207 CAPPELLETTI, GARTH, op. cit., p. 9-10. 208 CAPPELLETTI, 1999, p. 59.
76
fragilidade e deficiência no que tange ao acesso à justiça. Daí a importância da existência de
instrumentos processuais adequados para a tutela de direitos e interesses coletivos, isto porque, se
considerados globalmente, as lesões de pequena expressão individual passam a apresentar
relevância econômica, o que estimula a repetição e perpetuação de práticas ilegais e lesivas. Por
conseguinte, argumenta Mendes, [...] tendem a se beneficiar, ao invés de serem devidamente sancionados, os fabricantes de produtos defeituosos de reduzido valor, os entes públicos que cobram tributos indevidos ou não concedem os direitos funcionais cabíveis e os consumidores que realizam negócios abusivamente, apenas para citar alguns exemplos.209
No cenário custo-benefício, a partir do ponto de vista individual, duas questões são
apontadas por Mendes para deixar evidenciada a importância das ações coletivas no que tange ao
acesso à justiça. A primeira considera pessoas lesadas com condições econômicas para custear
despesas processuais e honorários advocatícios, mas que poderão ter uma contra partida igual ou
inferior aos valores despendidos para requerer a tutela jurisdicional. A segunda considera pessoas
desprovidas de tais condições, e que terão gastos excessivos com tempo e dinheiro
(principalmente custas processuais e honorários advocatícios), em detrimento, muitas vezes, da
subsistência própria e/ou da família.210
Com a cumulação de demandas, há uma substancial alteração da situação, entre as quais
se destacam o próprio valor econômico da causa que passa a ser de grande relevância, o interesse
de bons profissionais para patrocinar a demanda, e a existência de recursos necessários para a
propositura e colheita de provas. Desse modo, Mendes complementa que as ações coletivas, “[...]
se bem estruturadas, podem ser, portanto, um efetivo instrumento para o aperfeiçoamento do
acesso à Justiça, eliminando os entraves relacionados com os custos processuais e o desequilíbrio
entre as partes.”211
Além dos obstáculos financeiros que inibem ou impedem o custeio de uma demanda
individual, Cappelletti e Garth ainda destacam a diferença de poder que normalmente há entre os
indivíduos e a contraparte, e que resulta de fatores como diferença econômica, de “capacidade
jurídica” pessoal (principalmente informação) e de organização. Quanto ao poder econômico, os
209 MENDES, 2002, p. 30. 210 Ibidem, p. 30-31. 211 Ibidem, p. 31.
77
autores ressaltam que pessoas ou organizações que possuem recursos financeiros consideráveis a
serem utilizados têm vantagens óbvias ao propor ou defender demandas.212 Entre as vantagens
estão a possibilidade de pagar para litigar e de suportar a demora de um litígio, fatores que se
transformam em arma poderosa já que esta parte terá condições de investir mais do que a outra e,
por conseguinte, apresentar seus argumentos com mais eficiência.
Quanto aos obstáculos de “capacidade jurídica” pessoal, destaca-se neste trabalho o poder
de informação. A partir de uma pesquisa desenvolvida na Austrália Cappelletti e Garth
esclarecem que pessoas que procurariam um advogado para comprar uma casa ou requerer o
divórcio, “[...] dificilmente intentariam um processo contra uma empresa cuja fábrica esteja
expelindo fumaça e poluindo a atmosfera.”213 Este exemplo é de extrema clareza para demonstrar
que a carência de informação das pessoas também é obstáculo a ser superado no aspecto acesso à
justiça a partir de direitos e interesses metaindividuais.
Em razão das condições econômicas em que estão inseridas, da diferença de educação
recebida, do meio e status social, muitas pessoas não conseguem perceber questões mínimas que
estão ao seu redor, a exemplo da própria existência de um direito juridicamente exigível ou da
correta maneira de ajuizar uma demanda.
A partir de outro estudo, realizado em Quebeque, os autores destacam que ainda há uma
grande desconfiança que recai sobre os advogados, especialmente nas classes menos favorecidas,
sem contar o desconhecimento acerca dos procedimentos e do receio de enfrentar o formalismo e
ambientes que intimidam, considerando que tribunais, juízes e advogados são figuras tidas como
opressoras e, por conseguinte, “[...] fazem com que o litigante se sinta perdido, um prisioneiro
num mundo estranho.”214
Galanter, citado por Cappelletti e Garth, desenvolveu uma distinção entre os chamados
“litigantes eventuais” e os “litigantes habituais”, a partir da freqüência com que estão em juízo
litigando, concluindo que os litigantes habituais, a exemplo das empresas e organizações de
grande porte, que frequentemente estão envolvidas com processos, terminam por adquirir
numerosas vantagens que podem ser usadas em desfavor daquelas pessoas que têm contato
212 CAPPELLETTI, GARTH, op. cit., p. 21. 213 Ibidem, p. 24. 214 Ibidem, p. 24.
78
isolado e pouco freqüente com o sistema judicial, e que formam o conjunto dos chamados
litigantes eventuais, a exemplo das pessoas físicas e jurídicas de pequeno porte e poder
econômico. Em razão da pertinência, cumpre trazer à colação as vantagens apresentadas pelo
autor: 1) maior experiência com o Direito possibilita-lhes melhor planejamento do litígio; 2) o litigante habitual tem economia de escala, porque tem mais casos; 3) o litigante habitual tem oportunidades de desenvolver relações informações com os membros da instância decisora; 4) ele pode diluir os riscos da demanda por maior número de casos; 5) pode testar estratégias com determinados casos, de modo a garantir expectativa mais favorável em relação a casos futuros.215
Portanto, não há dúvidas de que as vantagens detidas pelos litigantes habituais lhes
proporcionam maior eficiência nos processos, ao contrário do que ocorre com o litigante
eventual, individualmente considerado. Por conseguinte, Cappelletti e Garth concluem que tais
desigualdades podem ser atacadas se os indivíduos encontrarem maneiras de agregar suas causas
e desenvolver estratégias de longo prazo, que possam de forma efetiva fazer frente a estes
desequilíbrios de poder.216
Todos os obstáculos apresentados, sem prejuízo de outros existentes, são suficientes para
demonstrar que as ações coletivas são mecanismos de efetivo acesso à justiça, não apenas no
sentido formal, mas, principalmente, no sentido de concretização de direitos. As desigualdades
que existem quando o interessado encontra-se sozinho, diminuem ou deixam de existir quando
um legitimado extraordinário com melhor preparo técnico e econômico, postula em nome da
coletividade.
Com efeito, a substituição processual exerce um papel fundamental no cenário processual
coletivo, considerando as inúmeras práticas ilegais que nem mesmo chegariam ao conhecimento
do Judiciário por meio da iniciativa individual, permitindo a perpetuação de práticas abusivas em
detrimento do cidadão lesado, e que na maioria das vezes, se encontra em explícita desvantagem
econômica, política, de informação, de estratégia e de organização perante empresas e
organizações de grande porte.
215 CAPPELLETTI, GARTH, op. cit., p. 25. 216 Ibidem, p. 25.
79
2.5 AS AÇÕES COLETIVAS ENQUANTO MECANISMO DE ECONOMIA PROCESSUAL
Além de todas as vantagens resultantes da facilitação do acesso à justiça, as ações
coletivas também são mecanismos que proporcionam efetiva economia processual. Trata-se de
uma conclusão de ordem lógica resultante da possibilidade de resolver por meio de uma única
ação coletiva e, por conseguinte, por meio de apenas um processo e de uma decisão, questões que
demandariam uma multiplicidade que pode atingir milhares ou até milhões de ações individuais.
Por isso a necessidade não só da existência, mas do real e efetivo funcionamento dos
processos coletivos nos ordenamentos jurídicos de cada Estado. Neste sentido, Mendes
complementa que a inexistência ou deficiente funcionamento de tais processos, enseja uma
multiplicação desnecessária de ações individuais, motivando o agravamento da sobrecarga do
Judiciário. Para o autor, são litígios que guardam enorme semelhança e que seriam decididos de
modo mecânico pelos juízes, “[...] através do que se convencionou chamar de sentenças-padrão
ou repetitivas, vulgarizando-se a nobre função de julgar.”217
Na análise que faz sobre a class action ou ações coletivas norte-americanas, enquanto
instrumentos de tutela coletiva dos direitos, Gidi observa que as ações coletivas promovem
economia de tempo e dinheiro para todos os sujeitos do processo, ou seja, o grupo-autor, o réu e o
Judiciário. Gidi salienta que para o grupo-autor a economia é manifesta eis que o custo individual
de litigar em diversos processos é reduzido a apenas uma controvérsia coletiva, sendo que o
mesmo acontece com o réu que não precisará enfrentar as despesas de inúmeras ações individuais
relacionadas à mesma controvérsia, enquanto que o Judiciário “[...] se desembaraça de uma
grande quantidade de processos repetitivos.”218
Portanto, conclui-se que a inadequada solução de conflitos coletivos também é
responsável pelo número excessivo de processos que tramitam nas mais diversas instâncias do
Poder Judiciário, comprometendo a qualidade da prestação jurisdicional.219
217 MENDES, 2002, p. 33-34. 218 GIDI, 2007, p. 26. 219 MENDES, 2002, p. 34.
80
Por fim, ressalta-se que nesta modalidade de processo o entendimento do que seja
economia processual, no sentido de preconizar a realização mínima de atividades processuais
com o máximo de resultado na atuação do direito, encontra uma intensidade infinitamente
superior àquela encontrada nos processos de ordem individual, e onde a conotação se restringe a
questões de ordem prática, como indeferimento da inicial quando ausentes os requisitos legais,
denegação de provas inúteis, coibição de incidentes irrelevantes para a causa, permissão de
cumulação de ações conexas, possibilidade de julgamento antecipado da lide e saneamento do
processo antes de ingressar na fase probatória ou de instrução.
2.6 AS AÇÕES COLETIVAS ENQUANTO MECANISMO DE EDUCAÇÃO E EFETIVAÇÃO DE DIREITOS
Nas últimas décadas do século XX a expressão “instrumentalidade do processo” passou a
ser amplamente difundida no cenário jurídico nacional. A expressão aplicada a todas as
modalidades de processos judiciais, é traduzida na idéia de que o direito processual deve ser
concebido enquanto instrumento de concretização ou efetividade do direito material e realização
de justiça.
A conclusão de que o processo é instrumento de concretização ou efetivação de direitos
resulta da evolução pela qual passou o direito processual nos últimos tempos. Até a metade do
século XIX viveu-se a chamada fase do sincretismo jurídico, a qual era caracterizada pela
confusão entre os ordenamentos substancial e processual, ou seja, o direito processual não
apresentava autonomia e era considerado ligado ao direito material.220
Na metade do século XIX iniciou-se uma fase de questionamentos e rompimento. O
primeiro questionamento recaiu sobre o conceito civilista de ação e permitiu concluir que o
mesmo é de direito processual e não material, como se pensava. Segundo Dinamarco “[...] a
220 Segundo Dinamarco, “Tinha-se, até então a remansosa tranqüilidade de uma visão plana do ordenamento jurídico, onde a ação era definida como o direito subjetivo lesado (ou: o resultado da lesão ao direito subjetivo), a jurisdição como sistema de tutela aos direitos, o processo como mera sucessão de atos (procedimento); incluíam a ação no sistema de exercício dos direitos (...) e o processo era tido como conjunto de formas para esse exercício, sob a condução pouco participativa do juiz.” (DINAMARCO, C. R., op. cit., p. 18).
81
celeuma provocada por essas afirmações revolucionárias (...) acabou gerando reações em cadeia,
que chegaram até a plena consciência da autonomia não só da ação, mas dela e dos demais
institutos processuais.”221
Contudo, é importante deixar consignado que nesta segunda fase faltou o que Lenza
chama de postura crítica. O tecnicismo aflorou no processo, o qual era visto como mero
instrumento de solução da pretensão de direito material, não existindo preocupação com a justiça
das decisões e com o resultado prático das mesmas, no sentido de efetivação ou concretização do
direito. A busca de solidificação do direito processual distanciou as duas ciências,
supervalorizando a técnica.222
De qualquer modo, na segunda fase de evolução restou evidenciada a autonomia do
direito processual em relação ao direito material, e a ciência processual foi efetivamente
desenvolvida com objeto e método próprios. Foram construídas categorias, conceitos e princípios
fundamentais, até se chegar, em meados do século XX, à terceira fase da evolução ou, conforme
Dinamarco, “[...] terceiro momento metodológico do direito processual, caracterizado pela
consciência da instrumentalidade [...]”.223
Portanto, a terceira fase da evolução do direito processual ou terceiro momento
metodológico é caracterizado pela instrumentalidade do processo. Porém, para uma perfeita
compreensão do que representa a propalada expressão, tornou-se necessária a identificação das
finalidades ou escopos do processo neste terceiro momento evolutivo, isto porque, conforme
acrescenta Dinamarco, responsável no Brasil pela elaboração de tais escopos, é vaga e pouco
acrescenta ao conhecimento do processo, “[...] a usual afirmação de que ele é um instrumento,
enquanto não acompanhada da indicação dos objetivos a serem alcançados mediante o seu
emprego.”224
Desse modo para o autor, os objetivos ou escopos do processo se dividem em político,
social e jurídico. Em síntese, os escopos políticos contemplam o propósito de promoção da
autoridade ou poder do Estado. Contudo, para evitar arbitrariedades na atuação do Estado, os
221 DINAMARCO, C. R., op. cit., p. 18. 222 LENZA, Pedro. Teoria geral da ação civil pública. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 117-120. 223 DINAMARCO, C. R., op. cit., p. 22. 224 Ibidem, p. 181.
82
objetivos também incluem a promoção da liberdade e participação dos indivíduos, visando, em
sendo necessário, limitar a autoridade ou poder que lhe é conferida. Os escopos sociais
contemplam a idéia de pacificação, no sentido de resolução de conflitos, bem como, a promoção
da educação ou conscientização da sociedade, no que tange a seus direitos e obrigações. E, por
fim, os escopos jurídicos contemplam o propósito de concretização dos objetivos traçados pelo
ordenamento jurídico, incluindo aqueles previstos na Constituição da República para a efetivação
do Estado Democrático de Direito, posto que, para Dinamarco, “[...] o processo precisa refletir as
bases do regime democrático, nela proclamados; ele é, por assim dizer, o microcosmos
democrático do Estado-de-direito [...]”.225
Nos processos coletivos, o escopo jurídico de concretização dos direitos materiais e o
escopo social que tem por finalidade promover a educação, de acordo com Gidi, se dá pela
atuação do Estado na análise e julgamento de casos concretos, cujos objetos são ilícitos coletivos.
Neste sentido arremata o autor: “O principal fator de estímulo à prática de ilícitos de pequeno
valor contra um grupo de pessoas em uma sociedade desprovida da tutela coletiva de direitos é a
sua alta lucratividade associada à certeza de impunidade.”226
As conclusões de Gidi resultam da constatação de que quando há ausência de controle
estatal diante de danos considerados relativamente pequenos, que não justificam os custos
financeiros com a propositura de uma ação, em razão de fatores que incluem a falta de tipificação
do crime ou regulamentação por alguma entidade governamental, ocorre um estímulo para a
pessoa intencionada a violar direitos alheios, mesmo porque, previamente, já sabe que estará
imune de qualquer punição.227
Desse modo, as ações coletivas apresentam-se como forma de concretização do direito
material, com o Judiciário conhecendo e resolvendo por meio de um único processo coletivo
todos os litígios que seriam individuais ou que nem mesmo seriam levados ao seu conhecimento,
fazendo com que o autor do delito coletivo responda pela totalidade do prejuízo causado na
sociedade.228
225 DINAMARCO, C. R., op. cit., p. 27-181-197. 226 GIDI, 2007, p. 33. 227 Ibidem, p. 33. 228 Ibidem, p. 34.
83
Nem sempre a atuação administrativa produz o mesmo efeito, considerando que em
determinadas situações a aplicação de multas pode resultar incompatível com o lucro obtido
através de prejuízos coletivos, sem esquecer que os membros do grupo não serão ressarcidos.
Assim Gidi conclui que “Se essa pessoa estiver em posição de poder violar o direito de inúmeras
pessoas, de forma a somar todos os inúmeros pequenos prejuízos do grupo violado, ela pode
contar com a inércia dos lesados e obter, ilícita e impunemente, um lucro extremamente alto.”229
A educação almejada enquanto escopo social, nada mais é do que uma conseqüência
resultante da punição que atinge a parte que praticou a conduta ilícita e que foi levada ao
conhecimento do Judiciário por meio de ação coletiva, servindo de alerta e desmotivação para
toda a sociedade, fazendo com que outros infratores se sintam desencorajados e não pratiquem
condutas que irão lesar direitos e interesses de uma coletividade que, muitas vezes, encontra-se
indefesa e em situação de vulnerabilidade.230
2.7 ASPECTOS DESTACADOS DAS AÇÕES COLETIVAS BRASILEIRAS
A análise de aspectos destacados apresentada neste trabalho se restringe a Ação Popular, a
Ação Civil Pública, a Ação Coletiva ou Civil Coletiva e ao Mandado de Segurança Coletivo,
sendo que as duas primeiras são apontadas enquanto viés jurídico adequado para a tutela de
direitos difusos e coletivos stricto sensu, e as últimas indicadas para a tutela de direitos
individuais homogêneos231, em que pese a opinião contrária de autores já citados, a exemplo de
Grinover, Saad e Dinamarco, que entendem ser possível a tutela de interesses individuais
homogêneos oriundos de relações de consumo por meio de ação civil pública. Na análise de cada
ação, busca-se destacar os respectivos campos de aplicação, legitimidade ativa, competência e
breves notas acerca dos efeitos das decisões, já que este assunto será abordado em tópico
específico no terceiro capítulo.
229 GIDI, 2007, p. 33. 230 Ibidem, p. 36. 231 ZAVASCKI, op. cit., p. 56.
84
Cumpre relembrar, mesmo que em apertada síntese, que as ações coletivas têm natureza
constitucional e pertencem ao chamado direito processual constitucional e que dispõe de um
conjunto de normas constitucionais, as quais, entre outras questões, estipulam quais ações são
cabíeis para requerer tutela jurisdicional quando determinados direitos são lesados ou ameaçados
de lesão, no caso em análise, os direitos coletivos.
2.7.1 Ação Popular
A Ação Popular foi introduzida no constitucionalismo brasileiro no ano de 1934 e ao
longo de mais de setenta anos de existência o rol de entidades cujo patrimônio fica sujeito à sua
tutela sofreu mudança significativa. Inicialmente, a Constituição da República considerava
tutelável apenas os patrimônios da União, Estados e Municípios (art. 113, inc. 38), enquanto que
a Constituição de 1946 acrescentou as entidades autárquicas e as sociedades de economia mista
(art. 141, § 38). As Constituições de 1967 (art. 150, § 31) e 1969 (art. 153, § 31), por sua vez,
fizeram referência genérica aos atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas, exemplo que foi
seguido pelo legislador Constituinte de 1988 (art. 5º, inc. LXXIII), ao considerar tutelável por
meio da Ação Popular todos os atos lesivos ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado
participe, bem como, os atos lesivos à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao
patrimônio histórico e cultural.232
A regulamentação do dispositivo constitucional encontra-se na Lei 4.717 de 29.06.1965, a
qual detalha o rol das entidades cujo patrimônio fica sujeito à tutela da ação popular, amplia o
sentido da expressão patrimônio público233 e descreve os atos considerados nulos.234
232 ZAVASCKI, op. cit., p. 83-84. 233 De acordo com o art. 1º, § 1º da Lei 4.717/65, consideram-se patrimônio público para os fins referidos neste artigo, os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico. 234 Conforme o art. 2º da Lei 4.717/65, são nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior 1º, nos casos de incompetência, vício de forma, ilegalidade do objeto, inexistência dos motivos e desvio de finalidade. No art. 4º são descritos outros atos e situações contratuais considerados nulos, enquanto que o art. 3º dispõe que os atos lesivos ao patrimônio, cujos vícios não estejam compreendidos nas especificações dos artigos 2º e 4º, são passíveis de anulação, nos termos das respectivas prescrições legais.
85
No que tange ao ingresso em juízo, a Constituição da República remete a qualquer
cidadão a legitimidade ativa para a propositura de Ação Popular, legitimidade que, aliás,
manteve-se inalterada desde a introdução da garantia constitucional na Constituição de 1934,
sendo que a prova da cidadania é efetuada por meio de título eleitoral ou por outro documento a
ele correspondente (Lei 4.717/65, art. 1º, § 3º). Desse modo, resta evidenciado que a Ação
Popular tem por fundamento o direito político do cidadão, que além de participar do processo de
escolha dos governantes, tem o direito de lhes fiscalizar os atos de administração e requerer a
invalidação dos mesmos quando se revelarem lesivos ao patrimônio público, à moralidade
administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.235
Após a propositura da ação, é facultado a qualquer cidadão habilitar-se como litisconsorte
ou assistente do autor (Lei 4.717/65, art. 6º, § 5º), e nos casos de desistência do autor deverão ser
publicados editais assegurando a qualquer cidadão ou a representante do Ministério Público, o
direito de promover o prosseguimento da ação (Lei 4.717/65, art. 9º).
Quanto à competência, a Lei 4.717/65 dispõe em seu art. 5º que conforme a origem do ato
impugnado, é competente para conhecer da ação, processá-la e julgá-la o juiz que, de acordo com
a organização judiciária de cada Estado, o for para as causas que interessem à União, ao Distrito
Federal, ao Estado ou ao Município. Portanto, a partir da origem do ato impugnado, a causa deve
ser proposta no foro que, segundo as normas de organização judiciária, corresponde ao ente
político interessado. Assim, tratando-se de ação que objetiva anular ato emanado de Estado-
federado ou Município, a competência recairá sobre a Vara da Fazenda Pública, excetuando-se
outras especificações da lei de organização judiciária local, mesmo porque, no Brasil, nem todas
as comarcas possuem tais juízos especializados.236
Tratando-se de ação que envolve ato da União, a ação será proposta na seção judiciária
competente da Justiça Federal, a partir dos critérios estabelecidos pela Constituição Federal,
podendo ser a seção de domicílio do autor, aquela em que houver ocorrido o ato ou fato que
originou a demanda, aquela onde está situada a coisa ou, ainda, no Distrito Federal (CF, art. 109,
§ 2º).
235 MEIRELLES, 1966, p. 15. 236 MANCUSO, 2003, p. 199.
86
Ainda, o § 1º do art. 5º da Lei 4.717/65, dispõe sobre a competência quando o ato ou
omissão lesiva for imputado a ente paraestatal, ou seja, pessoas jurídicas criadas ou mantidas pela
União, Distrito Federal, Estados e Municípios, a exemplo das empresas públicas, autarquias,
sociedades de economia mista e ente subvencionado. Nesses casos, o critério aplicado segue a
disposição do caput do art. 5º, e o foro competente é o mesmo do ente político que mantém,
subvenciona ou tem interesse patrimonial no ente paraestatal sobre o qual recai a atribuição de
prática de ato ou omissão lesiva.237
Por fim, cumpre observar que nos casos em que o pleito interessar simultaneamente a
mais de um nível de governo, isto é, à União e a qualquer outra pessoa ou entidade, será
competente o juízo das causas da União, se houver; e quando interessar simultaneamente ao
Estado e ao Município será competente o juízo das causas do Estado, se houver (Lei 4.717/65,
art. 5º, § 2º).
Quanto aos efeitos da sentença, cumpre analisar o disposto pela Lei 4.717/65 em seu art.
18, no sentido de que a sentença terá eficácia de coisa julgada oponível erga omnes, exceto se a
ação tiver sido julgada improcedente por deficiência de prova. Neste caso, qualquer cidadão
poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova. Segundo
Mancuso também são aplicados aos efeitos da sentença, porque aplicáveis à ação popular, mercê
do disposto no art. 117 do CDC e do art. 1º da LACP, os artigos 81, 82, 95 e 103 do CDC. Por
conseguinte, esclarece o mesmo autor, fazem coisa julgada material erga omnes as sentenças de
procedência e as de improcedência do pedido, neste último caso, se as pretensões tiverem sido
rejeitadas por serem infundadas no mérito, avaliação que deve ser alcançada após instrução
probatória satisfatória.238
Portanto, resultando a improcedência do pedido da insuficiência de provas, é possível a
propositura de uma segunda ação popular por iniciativa de qualquer cidadão (inclusive o mesmo
que havia intentado a primeira ação), apresentado o mesmo objeto e a mesma causa de pedir.
Entretanto, para não incorrer no mesmo erro da primeira, a segunda ação terá que vir instruída
com novos meios probatórios.239
237 MANCUSO, 2003, p. 199. 238 Ibidem, p. 299. 239 Ibidem, p. 301.
87
No próximo capitulo o assunto coisa julgada ou efeitos da sentença será estudado com
maior profundidade, incluindo o detalhamento do modelo de coisa julgada adotado no Brasil para
os processos coletivos (coisa julgada pro et contra e coisa julgada secundum eventum litis com
extensão in utilibus).
2.7.2 Ação Civil Pública
A ação civil pública destinava-se, quando de seu advento em 1985, a regular as ações de
responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados ao meio ambiente, aos consumidores
e a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. Em 1988 a
Constituição da República estendeu sua aplicação a qualquer outro dano a interesse difuso ou
coletivo (CF, art. 129, inc. III), e no ano de 2001, a aplicabilidade passou a contemplar os casos
de infração da ordem econômica, da economia popular e da ordem urbanística (Lei 7.347/85, art.
1º, incs. I, II, IV, V e VI).
A legitimidade para a propositura da Ação Civil Pública principal ou cautelar, quando da
origem da lei no ano de 1985, era conferida ao Ministério Público, à União, Estados-federados,
Municípios, autarquias, empresas públicas, fundações ou sociedades de economia mista e
associações. Além da manutenção destes legitimados, no ano de 2007 foram incluídos a
Defensoria Pública e o Distrito Federal (Lei 11.448/07). Cumpre observar que as associações
somente podem propor Ação Civil Pública se estiverem constituídas há pelo menos um ano e
incluam entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à
ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e
paisagístico (Lei 7.347/85, art. 5º, incs. I-V, alíneas a e b). O lapso temporal de um ano poderá
ser dispensado pelo juiz quando entender que há manifesto interesse social evidenciado pela
dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido (Lei
7.347/85, art. 5º, § 4°).
Após a propositura da ação, é facultado ao Poder Público e a outras associações
legitimadas na lei, a habilitar-se como litisconsortes de qualquer das partes (Lei 7.347/85, art. 5º,
88
§ 2º), e nos casos de desistência do autor por motivo infundado ou abandono da ação por
associação que se encontra no pólo ativo, o Ministério Público ou qualquer outro legitimado
poderá assumir a titularidade e garantir o prosseguimento do processo (Lei 7.347/85, art. 5º, § 3º).
Ainda, tratando-se especificamente do Ministério Público, deverá o órgão atuar de forma
obrigatória na condição de fiscal da lei, sempre que não estiver atuando enquanto parte no
processo (Lei 7.347/85, art. 5º, § 1º), bem como, é facultado aos Ministérios Públicos da União,
do Distrito Federal e dos Estados a formação de litisconsórcio para atuar na defesa de todos os
direitos e interesses tutelados pela LACP (Lei 7.347/85, art. 5º, § 5º).
Resta evidenciado, portanto, a exemplo do que ocorre com as demais ações coletivas, que
a legitimidade ativa na ação civil pública é conferida em regime extraordinário ou de substituição
processual, isto porque, adverte Zavascki, considerando a natureza transindividual dos interesses
tutelados, não há como imaginar uma hipótese de legitimidade ativa ordinária conforme preceitua
o CPC, no sentido de atribuir legitimidade pessoal para quem se afirma titular do direito
material.240
No regime de substituição pessoal o autor da ação defende em seu nome próprio, direitos
cuja titularidade pertence à coletividade. No capítulo seguinte, em momento oportuno, a natureza
da legitimidade nas ações coletivas será melhor abordada.
Quanto à competência para propositura, tramitação e julgamento da ação civil pública,
dois dispositivos legais devem ser analisados. O primeiro é o art. 2º da LACP, o qual remete para
o foro do local onde ocorrer o dano e, no respectivo foro, ao juízo sobre o qual recai a
competência funcional. O segundo é o art. 93 do CDC, o qual dispõe que ressalvada a
competência da Justiça Federal, é competente o foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o
dano, quando for de âmbito local (art. 93, inc. I); e o foro da Capital do Estado ou no Distrito
Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional (art. 93, inc. II).
O problema é que tanto a LACP quanto o CDC apresentam outros dois dispositivos que
tornam controvertida a interpretação e o debate sobre a matéria competência no âmbito da ação
civil pública e de outras ações de natureza coletiva. No primeiro estatuto, o art. 21 prevê que são
240 ZAVASCKI, op. cit., p. 76.
89
aplicados à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os
dispositivos do Título III – Da Defesa do Consumidor em Juízo – do CDC. Este por sua vez,
prevê no art. 90 que são aplicadas às ações de que trata o Título III as normas do CPC e da
LACP.
Na avaliação de Mendes o legislador teria “andado melhor” se tivesse revogado
expressamente o art. 2º da LACP. Não o fazendo, “[...] cabe ao aplicador do direito decidir sobre
a subsistência ou não do mencionado comando.”241 E a decisão, pelos entendimentos
apresentados na doutrina especializada, aponta para o caminho da aplicação do art. 93 do CDC
em detrimento do art. 2º da LACP242.
Assim, como regra geral, ressalvando-se em qualquer caso a competência da Justiça
Federal, sendo de âmbito local, a ação civil pública deverá ser proposta no foro do local onde
ocorreu ou deva ocorrer o dano, sendo entendido por dano de âmbito local, segundo Grinover,
aquele que se apresenta mais restrito, “[...] em razão da circulação limitada de produtos ou da
prestação de serviços circunscritos, os quais atingirão pessoas residentes num determinado
local.”243 Sendo o dano de âmbito regional ou nacional, a ação deverá ser proposta no foro da
Capital dos Estados ou no foro do Distrito Federal, de forma concorrente.
No Brasil há quem defenda, a exemplo de Grinover, que a competência para o dano de
âmbito nacional deveria ser exclusiva do Distrito Federal. A idéia seria facilitar para o réu o
exercício do direito de defesa, já que a competência concorrente entre a capital de um Estado e o
Distrito Federal poderá obrigá-lo a litigar em local longínquo de sua sede, pela mera opção do
autor coletivo. Contudo, a própria autora reconhece que esta não vem sendo a posição da
jurisprudência e da doutrina especializada.244 Neste sentido é a manifestação de Mendes que
apresenta entre outros motivos o fato de o art. 93, II do CDC não autorizar a interpretação que se
pretende fazer, sendo que o conectivo “ou” é alusivo à competência concorrente, na forma já
manifestada pelo STJ245. E ainda argumenta:
241 MENDES, 2002, p. 231. 242 GRINOVER, 2004, p. 874. 243 Ibidem, p. 878. 244 Ibidem, p. 878. 245 O autor cita decisão do STJ (Conflito de Competência 17.533, Segunda Seção, DJU 30.10.2000, p. 120) no qual o Tribunal entende que não há exclusividade do foro do Distrito Federal para o julgamento de ação civil pública de âmbito nacional. (MENDES, 2002, p. 238).
90
A designação de um único foro, num país com oito milhões e quinhentos mil quilômetros quadrados e contingente populacional de cerca de 170 milhões de habitantes, representaria, sim, barreira intransponível, desestímulo ou medida encarecedora , para que a maioria das entidades espalhadas pelo Brasil afora pudesse ajuizar a respectiva ação.246
Por fim, acerca dos efeitos da sentença proferida na ação civil pública, remetemos o leitor
para a análise delineada sobre a matéria no terceiro capítulo desta dissertação, tendo em vista,
principalmente, as diferenças apresentadas pelo CDC quando leva em consideração o objeto da
ação, que pode ser de natureza difusa, coletiva stricto sensu ou individual homogênea.
2.7.3 Mandado de Segurança Coletivo
O mandado de segurança coletivo nasceu com a Constituição da República de 1988 (art.
5º, LXX). Porém, muito antes, seu perfil original já se prestava à tutela de direitos coletivos por
meio de determinados mecanismos jurídicos, entre os quais a Lei 4.215/63 (revogada em 1994
pela Lei 8.906), que habilitava a Ordem dos Advogados do Brasil a representar os interesses da
classe dos advogados e os individuais, relacionados com o exercício da profissão, em juízo ou
fora dele (art. 1º, parágrafo único). A Consolidação das Leis do Trabalho de 1946, também
possibilitava aos sindicatos o direito de representar os interesses gerais da respectiva categoria ou
profissão liberal ou os interesses individuais dos associados relativos à atividade ou profissão
exercida, nas esferas administrativa e judicial (art. 513).247
Em 1988, a Constituição passou a possibilitar expressamente que partido político com
representação no Congresso Nacional, organização sindical e entidade de classe ou associação,
desde que legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, impetrem mandado
de segurança coletivo em defesa dos interesses de seus membros ou associados (CF, art, 5º, inc.
LXX, a e b). O mandado de segurança na forma individual já integrava o constitucionalismo
nacional desde 1934 (exceto pela Constituição de 1937), visando proteger direito líquido e certo
246 MENDES, 2002, p. 238. 247 ZAVASCKI, op. cit., p. 208-209.
91
quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de
pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público (CF, art. 5º, inc. LXIX).
Apesar da omissão da Constituição, o Ministério Público também é parte legítima para
propor mandado de segurança nas formas individual ou coletiva, desde que a iniciativa diga
respeito à sua atividade funcional. Exemplo neste sentido é encontrado no art. 201, inc. IX do
Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual dispõe que compete ao Ministério Público impetrar
mandado de segurança, de injunção e habeas corpus, em qualquer juízo, instância ou tribunal, na
defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis afetos à criança e ao adolescente.248
Conforme já mencionado, por tratar-se de ação coletiva, no mandado de segurança
coletivo a legitimidade ativa também é conferida em regime de substituição processual ou
extraordinária, isto porque o substituto buscará por meio de uma única demanda, a tutela de
direitos ou interesses pertencentes há várias pessoas, membros ou associados do partido político,
organização sindical, entidade de classe ou associação. Zavascki complementa que o mandado de
segurança coletivo enseja proteção coletiva a um conjunto de direitos líquidos e certos, violados
ou ameaçados por atos de autoridade pública. Em outras palavras, acrescenta o autor, “[...]
transformou-se o mandado de segurança em instrumento para tutela coletiva de direitos. Assim, o
mandado de segurança coletivo é um mandado de segurança, mas é também uma ação coletiva, e
isso faz uma enorme diferença.”249
Quanto à finalidade da ação, a Constituição da República dispõe que a mesma é cabível
para a defesa dos interesses dos membros ou associados da organização sindical, entidade de
classe ou associação, o que permite concluir que este viés jurídico é adequado para a tutela de
direitos subjetivos individuais, conformados na categoria de direitos individuais homogêneos.
Porém, no texto constitucional não há limites quanto à natureza dos direitos tuteláveis
pelos partidos políticos. De conseguinte, a princípio, não se poderia impedir que os partidos
políticos tutelem direitos difusos e coletivos stricto sensu, desde que presentes os requisitos
considerados imprescindíveis, relacionados ao direito líquido e certo e à legitimação, sendo esta
248 BAZILONI, op. cit., p. 133. 249 ZAVASCKI, op. cit., p. 206.
92
relacionada à pertinência entre o direito tutelado e os fins institucionais do impetrante.250 Mesmo
não encontrando o mesmo entendimento no Superior Tribunal de Justiça251, Zavascki faz defesa
desta tese com fundamento na inexistência de limitação no texto constitucional, que entende não
ser uma omissão desatenta, e na natureza do partido político que não tem razão existencial
idêntica à dos sindicatos e entidades de classe. Enquanto estes têm objetivos voltados para dentro
de si mesmos, visando atender interesses de associados, os partidos políticos visam objetivos
externos, que só em situações remotas estão relacionados a interesses específicos de seus filiados.
Segundo complementa o autor,
É natural, portanto, e apropriado à natureza dessas entidades, que, ao legitimá-las para impetrar segurança, o constituinte tenha estabelecido como objeto da demanda a defesa de interesses dos próprios associados, limitação inteiramente compatível como o móvel associativo. O que ocorre nos partidos políticos, entretanto, é um fenômeno associativo completamente diferente. Os partidos políticos não têm como razão de ser a satisfação de interesses ou necessidades particulares de seus filiados, não são eles o objeto das atividades partidárias.252
Sem prejuízo do entendimento que conclui pela possibilidade de partido político impetrar
mandado de segurança coletivo e tutelar direitos transindividuais (difusos e coletivos em sentido
estrito), contrariando a idéia de que mandado de segurança coletivo destina-se, tão somente, para
a tutela de direitos individuais homogêneos dos membros ou associados dos entes
constitucionalmente legitimados, pode ocorrer determinadas circunstâncias que permitam
organizações sindicais, entidades de classe ou associações, tutelar por este mesmo viés jurídico,
interesses com caráter transindividual. Exemplo citado é o do concurso público, cujo edital
exclua a participação de membros de determinada classe ou categoria profissional. Neste caso a
respectiva entidade poderá impugnar judicialmente o ato impetrando mandado de segurança
coletivo, ação que apresenta características de verdadeira tutela de direito transindividual, posto
que os benefícios da decisão atingirão não só seus membros ou associados, mas todos os
membros da classe ou categoria.253
250 ZAVASCKI, op. cit., p. 209. 251 O autor cita decisão do STJ, na qual o Tribunal entende que a exemplos dos sindicatos e das associações, os partidos políticos só podem impetrar mandado de segurança coletivo em assuntos integrantes de seus fins sociais em nome de seus filiados, quando autorizados por lei ou por seus estatutos. (ZAVASCKI, 2006, p. 211). 252 Ibidem, p. 212-213. 253 Ibidem, p. 210.
93
Por fim, no que tange a legitimidade, cumpre observar que por meio da Súmula 629, o
STF pacificou o entendimento de que a impetração de mandado de segurança coletivo por
entidade de classe em favor dos associados independe da autorização destes. E por meio da
Súmula 630, o Supremo Tribunal manifestou entendimento no sentido de que a entidade de classe
tem legitimação para o mandado de segurança ainda quando a pretensão veiculada interesse
apenas a uma parte da respectiva categoria.
Quanto a competência, para o julgamento do mandado de segurança a definição se dá pela
categoria funcional da autoridade coatora e pela sede funcional da mesma, não importando a
natureza do ato impugnado. As situações em que a competência é originariamente atribuída ao
STF e STJ encontram-se previstas na CF (art. 102, inc. I, d e art. 105, inc. I, b, respectivamente),
da mesma forma que encontra-se na CF a competência originária atribuída aos Tribunais
Regionais Federais e aos juízes federais (art. 108, inc. I, c e art. 109, inc. VIII, respectivamente).
Conforme esclarece Meirelles os mandados de segurança contra atos de autoridades federais não
indicadas em normas especiais devem ser julgados pelas Varas da Justiça Federal, nos limites de
sua jurisdição territorial e com recurso para o respectivo TRF.254
Tratando-se de autoridades estaduais ou municipais, o juízo competente será o da
respectiva comarca na qual se encontra a sede da autoridade coatora, segundo as normas de
organização judiciária de cada Estado, que podem instituir juízos privativos para ações
envolvendo a Fazenda Pública. Após a instituição dos mesmos, adverte Meirelles, “[...] o juízo
competente para mandado de segurança será sempre dessas Varas, conforme o ato impugnado
provenha de autoridade federal, estadual ou municipal, ou de seus delegados, por outorga legal,
concessão ou permissão administrativa.”255
No que tange aos efeitos da sentença proferida em sede de mandado de segurança
coletivo, cumpre ressaltar inicialmente que a Constituição apenas inovou no aspecto da
legitimidade ativa, o que vem permitindo concluir que o procedimento aplicado a tais ações
continua sendo o procedimento comum da Lei 1.533/51, e que regula o mandado de segurança na
forma individual. Por conseguinte, a análise dos efeitos da sentença deveria passar pelo que
254 MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, “hábeas data”. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 68. 255 Ibidem, p. 69-70.
94
dispõe o art. 16 da mencionada lei, o qual prevê que o pedido de mandado de segurança poderá
ser renovado se a decisão denegatória não lhe houver apreciado o mérito.
Porém, considerando que o mandado de segurança coletivo é uma garantia constitucional
destinada a tutela de direitos individuais homogêneos; e considerando o entendimento que
preconiza a aplicação das disposições do CDC em todos os processos de defesa de interesses
difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos, não se restringindo, portanto, aos
litígios oriundos de relações de consumo256, é possível concluir que a disposição a ser observada
e que incide sobre os efeitos da sentença no mandado de segurança coletivo, é aquela encontrada
no art. 103, inc. III do CDC, a qual prevê que a sentença somente faz coisa julgada no caso de
procedência do pedido, visando beneficiar todas as vítimas e seus sucessores.
Conforme análise efetuada em momento oportuno do próximo capítulo, ver-se-á que nos
casos de direitos individuais homogêneos, mesmo quando o pedido for julgado improcedente
após análise de mérito, é possível a repropositura de ação com idêntico pedido e causa de pedir,
possibilidade que, aliás, vem recebendo críticas da doutrina nacional especializada.
2.7.4 Ação Coletiva ou Ação Civil Coletiva
Os direitos individuais homogêneos foram incorporados ao cenário jurídico nacional no
ano de 1990, com o advento do Código de Defesa do Consumidor (art. 81, parágrafo único, inc.
III). Ao mesmo tempo o legislador inseriu no contexto jurídico a chamada ação coletiva (também
denominada ação civil coletiva) que, tecnicamente falando, é destinada à tutela de tais direitos
(CDC, art. 91 e seguintes).257
Portanto, a finalidade da ação civil coletiva é a tutela de direitos individuais homogêneos,
cujo conceito já foi objeto de análise no primeiro capítulo desta dissertação, tornando-se
necessário nesse momento, apenas relembrar que o caráter coletivo dos mesmos somente está
256 MENDES, 2005, p. 9. 257 PINHO, 2002, p. 11-48.
95
presente na forma de exercê-los. Na origem são direitos individuais, oriundos de uma mesma
causa fática ou jurídica.
Antes do advento do CDC, a legislação brasileira já previa no CPC uma forma de defesa
conjunta de direitos subjetivos, por meio de um único processo. Pelo instituto do litisconsórcio
ativo facultativo, duas ou mais pessoas já poderiam litigar no mesmo processo sempre que, por
exemplo, os direitos ou as obrigações derivassem do mesmo fundamento de fato ou de direito ou
ocorresse afinidade de questões por um ponto comum de fato ou de direito (art. 46, incs. I e IV,
respectivamente). Na verdade, por este viés jurídico, que permanece vigendo, o que existe é uma
mera cumulação de causas, que poderiam estar sendo propostas separadamente.258
Porém, a propositura de ação judicial na forma do litisconsórcio ativo facultativo, adverte
Zavascki, nem sempre é recomendada para todas as situações, tanto que o próprio CPC dispõe
que o juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, quando este
comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa. Segundo o mesmo autor, a
utilidade do litisconsórcio ativo facultativo é extremamente escassa. O mecanismo jurídico serve
aos propósitos de celeridade e eficiência do processo, porém, somente pode ser utilizado quando
se tratar de litisconsórcio de reduzida amplitude. Do contrário, conforme reconhece o próprio
CPC, a utilização torna-se inviável do ponto de vista prático.259
Considerando que no mundo contemporâneo ocorrem com habitualidade fatos típicos de
massa, relacionados a um número expressivo de pessoas, a exemplo de desastres, relações de
consumo, litígios envolvendo funcionários, empregados, aposentados, contribuintes, idosos,
crianças, deficientes e investidores, torna-se sensato não trata-los como questões puramente
individuais, mesmo que a situação possa ser fracionada.260 Daí a importância da inserção das
ações civis coletivas no contexto jurídico nacional, com a missão de dar solução a litígios que, a
partir de uma mesma situação fática ou jurídica, atingem grande quantidade de direitos
subjetivos.
258 ZAVASCKI, op. cit., p. 158. 259 Ibidem, p. 161. 260 MENDES, 2002, p. 221.
96
No que tange à legitimidade ativa para fins de propositura de ação coletiva ou ação civil
coletiva, há atribuição de forma concorrente ao Ministério Público, à União, Estados, Municípios
e Distrito Federal, entidades e órgãos da administração pública direta ou indireta, ainda que sem
personalidade jurídica, e associações legalmente constituídas há pelos menos um ano (CDC, art.
82, incs. I, II, III e IV).
A análise da legitimidade tem início pelas associações, entidades e órgãos da
administração pública direta ou indireta. Para estas, o CDC (art. 82, inc. III) exige que a
constituição seja especificamente destinada à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo
próprio CDC, enquanto que para as associações, exige que incluam entre seus fins institucionais a
defesa dos interesses e direitos protegidos pelo CDC. Porém, ao contrário do que possa parecer,
cumpre observar que a ação civil coletiva não é instrumento jurídico aplicado apenas na tutela de
direitos individuais homogêneos decorrentes de relações de consumo. Segundo Zavascki, pensar
que a aplicação é restritiva a tais direitos, embora freqüentemente apareçam posicionamentos
neste sentido, até mesmo na jurisprudência, mesmo que de forma implícita, é fazer “[...] uma
interpretação reducionista das variadas hipóteses legais de legitimação para demandas coletivas,
restringindo-as às do art. 82, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor.” Desse modo,
conclui-se que a associação está legitimada a promover ações civis coletivas para a tutela de
qualquer outro direito subjetivo de seus filiados, “[...] desde que tais direitos guardem relação de
pertinência material com os fins institucionais da associação, fins esses que, afinal de contas,
constituíram o móvel propulsor da própria filiação.”261
O mesmo ocorre com as entidades e órgãos da administração pública direta ou indireta,
sendo necessário para fins de propositura de ação civil coletiva, a existência de um elo de
vinculação entre o objeto da demanda e os fins institucionais do demandante, exigência que,
aliás, encontra-se atrelada ao interesse de agir.262
É importante destacar também, nesta mesma linha de raciocínio, que as relações de
consumo não são as únicas responsáveis pela provocação de danos aos direitos individuais
homogêneos. A partir de Venturi conclui-se que um dano ambiental, como derramamento de
substancia tóxica em rio ou mar que lesiona pescadores, habitantes ribeirinhos ou turistas; um 261 ZAVASCKI, op. cit., p. 176-177. 262 Ibidem, p. 174.
97
dano de natureza civil, decorrente da infringência do princípio da boa-fé contratual; ou de
natureza tributária, decorrente da cobrança de tributos criados ou aumentados ilegal ou
inconstitucionalmente, podem gerar uma responsabilidade civil subjetiva ou objetiva e, por
conseguinte, possibilitar o ajuizamento de ação civil coletiva.263
Contudo, assunto que continua chamando a atenção no aspecto legitimidade nas ações
coletivas é a atuação do Ministério Público. Nota-se que o órgão encontra-se no rol dos
legitimados pelo art. 82 do CDC (art. 82, inc. I), porém o texto constitucional apresenta redação
que, inicialmente, fez com que o intérprete concluísse pela inconstitucionalidade de tal
dispositivo. Esta observação de Mendes parte da análise do art. 129 da CF, que enumera entre as
atribuições institucionais do Ministério Público a promoção de inquérito civil e de ação civil
pública para proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses
difusos e coletivos (art. 129, inc. III). Considerando que este dispositivo nada menciona acerca da
legitimidade do Ministério Público quando a ação tem por objeto direitos individuais
homogêneos, estavam presentes para o intérprete todos os requisitos necessários para o início de
uma discussão que, inclusive, debatia “[...] a própria constitucionalidade e alcance do art. 82 do
Código de Defesa do Consumidor, na medida em que dispõe sobre a legitimação do Ministério
Público para a defesa dos interesses coletivos stricto sensu, sem afastar desse rol os direitos
fincados no inciso III, do art. 81, da Lei 8.078/90.”264
Mendes ainda relata que diante do texto constitucional, parte da jurisprudência concluiu
pelo afastamento da atuação do Ministério Público quando o objeto da ação tratava sobre direitos
individuais homogêneos.265 Entretanto, com o tempo, doutrina e jurisprudência passaram a
aceitar a atuação do Ministério Público, tendo em vista a existência de interesses e direitos
individuais homogêneos que assumiam verdadeira dimensão social, a partir das proporções
atingidas, da relevância do bem jurídico e da condição das pessoas afetadas. O fundamento
constitucional para tal aceitação encontra-se no caput do art. 127 da Constituição da República, o
263 VANTURI, op. cit., p. 76. 264 MENDES, 2002, p. 247. 265 O autor cita decisão da 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em julgamento proferido em 23.05.1995, no qual concluiu pela ilegitimidade do Ministério Público quando a ação tem por objetivo proteger direitos individuais disponíveis. (MENDES, 2002, p. 247).
98
qual incumbe ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos
interesses sociais e individuais disponíveis.266
Registra-se ainda, acerca da legitimidade do Ministério Público para a defesa de direito
individual homogêneo, o aprofundado e esclarecedor estudo elaborado por Pinho. Sobre o tema,
Pinho analisa os aspectos doutrinários, a partir de autores especializados como Kazuo Watanabe,
Rodolfo de Camargo Mancuso, Teori Albino Zavascki, José Marcelo Menezes Vigliar,
Gianpaolo Poggio Smanio, Antonio Gidi, Hugo Nigro Mazzilli e Nelson Nery Júnior; os aspectos
jurisprudenciais e a influência do Direito norte-americano nas ações coletivas brasileiras, para
concluir a partir da conjugação destes três vetores, que os mesmos possuem dimensão
constitucional, e que mesmo a Constituição não sendo totalmente clara quanto a possibilidade do
Ministério Público tutelar direito individual homogêneo através de ação coletiva, lhe parece que
“[...] isto exsurge de forma clara a partir de uma interpretação teleológica e sistemática da Carta,
sempre tendo como perspectiva principal a defesa dos interesses sociais, num contexto civil-
constitucional e processual voltado ao acesso à justiça.”267
Desse modo, Pinho conclui que independentemente da modalidade da ação coletiva,
poderá o Ministério Público ser parte, podendo tutelar todo e qualquer direito coletivo, o que
inclui o individual homogêneo, utilizando-se da ação coletiva neste caso, e da ação civil pública
para os direitos difusos e coletivos stricto sensu. Por conseguinte, complementa o autor, Não haveria assim espaço para divergências acerca da legitimação do Ministério Público, o que hoje é extremamente penoso e custoso à sociedade, eis que ao invés de se examinar o mérito da causa, passam-se anos discutindo-se se o Ministério Público teria ou não legitimidade para aquela demanda.268
Por fim, resta fazer menção a competência para fins de propositura, tramitação e
julgamento das ações civis coletivas. O assunto encontra-se regulado pelo art. 93 do CDC, o qual,
em síntese, dispõe que ressalvando-se em qualquer caso a competência da Justiça Federal, sendo
o dano de âmbito local, a ação deverá ser proposta no foro do local onde o mesmo ocorreu ou
deva ocorrer, sendo de âmbito regional ou nacional, a competência é considerada concorrente
entre o foro da Capital dos Estados e o foro do Distrito Federal. De qualquer modo, remetemos o
266 MENDES, 2002, p. 248. 267 PINHO, 2002, p. 78-101. 268 Ibidem, p. 212.
99
leitor para o estudo realizado neste trabalho acerca da competência para fins de propositura de
ação civil pública, onde a matéria encontra-se delineada com maior profundidade.
2.8 OS ANTEPROJETOS DE CÓDIGO BRASILEIRO DE PROCESSOS COLETIVOS
Neste trabalho não será elaborada uma análise sistematizada de todos os artigos que
integram os Anteprojetos de Código Brasileiro de Processos Coletivos, mas, tão somente,
discorrer sobre a real necessidade de um código específico e da importância do mesmo para o
sistema jurídico nacional.
Conforme já mencionado quando da análise do microssistema processual coletivo
existente no Brasil, o Código de Defesa do Consumidor representa, segundo Mendes, “[...] o
modelo estrutural para as ações coletivas no Brasil [...]”, sendo aplicado em todos os processos de
defesa de interesses difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos, não limitando-se,
portanto, aos processos de proteção e defesa do consumidor.269 O CDC é o diploma legal que
regula no Brasil os principais aspectos relacionados aos processos coletivos, dentre os quais, se
destacam a competência, legitimação, litispendência, efeitos da coisa julgada e execução das
sentenças proferidas nos mesmos.
E foi justamente a legislação brasileira que compõe o chamado microssistema processual
coletivo, principalmente o CDC, que serviu de base normativa para a elaboração no ano de 2002
e aprovação no ano de 2004, do Código Modelo de Processos Coletivos para os países ibero-
americanos, a partir de uma iniciativa do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual, sendo
que juristas brasileiros270 participaram da comissão que elaborou e da comissão que revisou o
Anteprojeto, visando transformá-lo em Projeto para fins de aprovação.271
269 MENDES, 2005, p. 9. 270 O autor esclarece que formaram a comissão nomeada em 2002 os juristas brasileiros Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe e Antonio Gidi; e que da comissão revisora do Anteprojeto participaram Ada Pellegrini Grinover, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, Antonio Gidi e Kazuo Watanabe, entre outros juristas dos países ibero-americanos. (MENDES, 2005, p. 4). 271 Ibidem, p. 4.
100
Para Mendes o Código Modelo de Processos Coletivos do Instituto Ibero-Americano de
Direito Processual representa um novo marco para o direito processual coletivo no âmbito dos
países ibero-americanos, para os quais o Código-Tipo é considerado fonte de inspiração, servindo
inclusive, como parâmetro para repensar e aperfeiçoar o sistema brasileiro. Segundo o autor, foi
justamente a edição do Código Modelo que reavivou no Brasil a vontade de se avançar e
aprimorar as normas pertinentes à tutela coletiva, tanto que após o seu advento, Ada Pellegrini
Grinover elaborou a primeira versão brasileira do Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos
Coletivos, trabalho que foi desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação da Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo – USP.272
Após a elaboração da primeira versão do Anteprojeto brasileiro, outros estudos foram
desencadeados visando apresentar sugestões e propostas para a sua melhoria, dentre os quais,
estão os estudos dos Programas de Pós-Graduação stricto sensu das Faculdades de Direito das
Universidades do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, e Estácio de Sá – Unesa. Mendes
complementa que os estudos realizados no Rio de Janeiro acabaram reestruturando o texto
original, culminando na apresentação de um verdadeiro substitutivo ao Anteprojeto.273
Por conseguinte, após a elaboração, dois Anteprojetos foram encaminhados ao Ministério
da Justiça, sendo um originário do Instituto Brasileiro de Direito Processual - IBDP, que assumiu
a proposta originária do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo; e outro dos Programas de Pós-Graduação stricto sensu das Faculdades de Direito das
Universidades do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, e Estácio de Sá – Unesa. Segundo Lenza, os
Anteprojetos ainda se encontram no Ministério da Justiça para análise e encaminhamentos.274
De qualquer modo, os debates sobre as propostas ainda não cessaram no Brasil, e o
objetivo geral é transformar o Anteprojeto em projeto e encaminhá-lo para análise e aprovação do
Congresso Nacional.275
272 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. O anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos: visão geral e pontos sensíveis. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (coord.). Direito processual coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 17. 273 Ibidem, p. 17. 274 LENZA, op. cit., p. 420. 275 MENDES, 2007, p. 17.
101
A pergunta que deve ser feita sobre a proposta e possibilidade futura de se ter no Brasil
um código específico para os processos coletivos, caminha no sentido de saber qual a necessidade
e importância deste instrumento processual dentro do contexto jurídico nacional. Venturi entende
que há preocupações de ordem técnica e política que depõem contra a idéia do Código, e aponta
inicialmente, enquanto fundamento, o fato de estarmos em uma época de descodificações, na qual
se preconiza a aplicação dos princípios e normas constitucionais e uma intervenção legislativa
mínima, visando abrir o sistema jurídico “[...] para a pluralidade e multiplicidade de fatores que
sobre ele atuam dinamicamente, através do emprego de conceitos jurídicos vagos ou
indeterminados como forma de fomentar uma necessária integração heterogênea do Direito
[...]”.276
Entre outros fatores indicados pelo autor estão a hipercomplexidade que envolve os
direitos meta-individuais, naturalmente inseridos em uma conjuntura multidisciplinar; e a pouca
experiência doutrinária e judicial relacionada com a tutela de tais direitos, e que pode gerar com o
Código uma sensação de fechamento sistemático. Desse modo, para Venturi, a tutela jurisdicional
brasileira só tem a ganhar se permanecer sob uma ótica unitária do processo civil, desde que
revista segundo um novo modelo que corrija certas distorções (a exemplo de questões atinentes a
competência e extensão da coisa julgada) e que esteja baseada “[..] na aposta da adequada
preparação técnica, cultural e estrutural dos operadores do sistema jurídico, sem a qual nenhuma
inovação legislativa tem condição de implementar as reformas a que se propõe.”277
Contudo, não parece ser este o entendimento que hodiernamente vem prevalecendo na
doutrina brasileira especializada, e ao qual nos filamos. Uma argumentação elaborada por Santos
ajuda-nos a refletir sobre o tema. Segundo o autor ainda é muito forte a influência do direito
individual na prestação da tutela jurisdicional, em detrimento da coletividade. Processos que
envolvem direitos coletivos (em sentido lato sensu) são decididos sob a luz de princípios e regras
do direito individual, resultando em justiça incompleta, justiça distorcida e, até mesmo, em
injustiça. Por tudo isso, o autor conclui que existe no País um ponto de encruzilhada, qual seja,
continuar se asfixiando neste instrumental jurídico atravancador e retrógrado, voltado para
interesses privados, de cunho individualista, ou assumir o comando de uma “locomotiva”
276 VENTURI, op. cit., p. 35. 277 Ibidem, p. 35.
102
moderna, veloz e segura, chamada Código Brasileiro de Processo Coletivo. Santos entende que
este Código irá trazer em seu universo “[...] uma composição integrada por dispositivos afinados
com a nova realidade jurídica, suficientes a amparar a sociedade como um todo e,
conseqüentemente, abriga-la sob o manto sereno da autêntica justiça distributiva [...]”.278
Tudo revela, portanto, que a idéia principal da codificação é superar as dificuldades e
insuficiências apresentadas pelo atual sistema de tutela coletiva. Já foi apontado que sem prejuízo
de outras leis esparsas (LACP e LAP) o CDC apresenta o modelo estrutural para as ações
coletivas no Brasil, sendo aplicado em todos os processos de natureza coletiva, regulando
diversas questões de cunho processual. Porém, segundo analisa Santos, todos os diplomas legais
ressentem-se de normas processuais adequadas a dar efetividade aos direitos coletivos
materialmente tutelados, sendo que o próprio CDC é predominante de direito material, limitado
na prática forense por não estar em conformidade com as normas processuais individualmente
existentes, “[...] obrigando os juízes a autênticos exercícios jurídicos ‘contorcionistas’ à instrução
dos processos coletivos satisfatoriamente.”279
Portanto, todo o trabalho de elaborar e propor um Anteprojeto de Código Brasileiro de
Processos Coletivos, para que seja transformado em Projeto aprovado no Congresso Nacional,
objetiva fortalecer e desenvolver a legislação do direito processual coletivo, a partir da qual, se
espera, a melhoria de aceso à justiça, mais economia processual e judicial, e a garantia de
isonomia e equilíbrio entre as partes no processo, sendo que todos estes benefícios processuais,
concernentes à tutela dos direitos coletivos, são traduzidos em qualificação da prestação
jurisdicional.280
Dentro deste conjunto de benefícios, destaca-se o acesso à justiça, já que um Código
específico poderá popularizar o uso das ações coletivas e, por conseguinte, dar visibilidade social
a grupos e categorias que (ainda) não estão devidamente representados nos poderes políticos do
Estado. Parafraseando Leal, é possível concluir que o Anteprojeto representa de forma efetiva, a
278 SANTOS, D. M. dos., op. cit., p. 39. 279 Ibidem, p. 40. 280 MENDES, 2007, p. 17.
103
esperança de ligação entre dois mundos: o mundo real e o mundo das normas de acesso à
cidadania e do Estado Democrático de Direito.281
281 LEAL, Márcio Flávio Mafra. Anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos: aspectos políticos, econômicos e jurídicos. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (coord.). Direito processual coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 77.
CAPÍTULO III
3 UMA TEORIA GERAL DOS PROCESSOS COLETIVOS
Nos capítulos anteriores, restou evidenciado que as transformações sociais ocorridas nos
dois últimos séculos, originárias da evolução tecnológica, pesquisas científicas, globalização da
economia, agigantamento industrial, produção e comunicação massificada, entre diversos outros
fatores, motivaram a ocorrência de lesões a direitos e interesses que extrapolam a esfera
individual das pessoas, e atingem de forma concomitante conjuntos determinados ou
indeterminados de indivíduos, inibindo e até impedindo a tutela dos mesmos no âmbito
individual, tendo em vista a impossibilidade de divisão do objeto tutelado.
Este novo cenário social mundial fez surgir uma nova categoria de direitos fundamentais,
classificados enquanto direitos de terceira dimensão, de cunho coletivo, o que obrigou os Estados
(a exemplo do Brasil) a promover a criação e adaptações normativas voltadas para as ações e
processos coletivos, as quais vêm garantindo minimamente o exercício jurisdicional diante desta
nova modalidade de demanda, mesmo que em muitos casos de modo inapropriado, considerando
que diversos institutos do processo civil tradicional vêm sendo aplicados de forma deslocada
dentro de um cenário para o qual não foi pensado.
Conforme já anotado, as mudanças legislativas voltadas para a tutela dos direitos
coletivos são consideradas por Cappelletti e Garth uma verdadeira revolução dentro do processo
civil, posto que, até então, o processo somente tratava de assuntos entre duas partes, visando
105
solucionar controvérsias de natureza individual. Por conseguinte, os direitos pertencentes a
coletividades de pessoas ou público em geral ficavam a margem do modelo jurisdicional.282
No Brasil a Constituição Federal de 1988 representa um marco na história da tutela dos
direitos e interesses coletivos, isto porque, foi a primeira Constituição brasileira a garantir
expressamente que o Poder Judiciário não deixará de apreciar as lesões ou ameaças a direitos e
interesses afetos às coletividades de pessoas, sem prejuízo da inafastabilidade de apreciação das
lesões ou ameaças aos direitos individuais. Porém, muito antes do advento da atual Constituição
da República, o Brasil já havia dado início à elaboração de normas que hoje constituem o
chamado microssistema processual coletivo, e que é aplicado aos processos judiciais que
tramitam na condição de processos coletivos.
Tal aprimoramento legislativo se fez necessário porque o modelo do processo civil
clássico, que segundo Adamovich é originário de estudos que tiveram como tema central a teoria
da ação, em uma perspectiva individual, a partir de ferramental oriundo do direito privado, não
foi pensado para dar solução aos conflitos de outra natureza.283 O modelo de solução de
controvérsias até então existente, observa Fiss, é composto por uma tríade altamente
individualista, onde uma ação judicial é visualizada “[...] como um conflito entre dois indivíduos,
o autor da ação e o réu, e um terceiro situado entre as duas partes, como um árbitro imparcial,
para observar e decidir quem está certo e declarar o que deve ser feito.”284
Conforme anotado no capítulo anterior, a história legislativa dos processos coletivos no
Brasil teve início nas décadas de 50 e 60. Grinover observa que até os dias atuais, passado um
período que totaliza mais de cinqüenta anos de experiências, de inúmeros estudos doutrinários
sobre a matéria, de eventos especificamente organizados para debater o tema, de cursos
universitários, de graduação e pós-graduação, acredita-se que o País está preparado para dar um
novo e importante passo rumo à elaboração de uma Teoria Geral dos Processos Coletivos. Este
entendimento, complementa a autora, resulta da análise dos diversos mecanismos que atribuem
autonomia aos processos coletivos, “[...] na medida em que observa seus próprios princípios e
282 CAPPELLETTI, GARTH, op. cit., p. 49-50. 283 ADAMOVICH, op. cit., p. 55. 284 FISS, op. cit., p. 48.
106
seus institutos fundamentais, distintos dos princípios e institutos do direito processual
individual.”285
Para melhor fundamentar este entendimento, cumpre elaborar uma análise de diversos
institutos e princípios que envolvem os processos judiciais, de modo comparativo entre processos
coletivos e o processo civil clássico.
3.1 CONDIÇÕES DA AÇÃO
O clássico modelo de aferição das condições de admissibilidade das ações em juízo,
voltado para a tutela de conflitos intersubjetivos, não se coaduna com o modelo proposto para a
tutela jurisdicional coletiva. Estampada no art. 3º combinado com o art. 267, VI do CPC, a
concepção clássica do processo civil exige para propor ou contestar qualquer ação judicial, as
condições de interesse processual, legitimidade para agir e possibilidade jurídica do pedido, sob
pena de indeferimento da petição inicial (art. 295, II, III e parágrafo único, III) e conseqüente
extinção do processo sem resolução de mérito (art. 267, caput c/c 267, VI do CPC).
Quanto à primeira condição, na acepção clássica, traz-se a colação ensinamento de Greco
Filho, o qual esclarece que o termo interesse processual é empregado para definir a necessidade
de requerer a intervenção jurisdicional do Estado na solução de um litígio que tem por objeto
uma pretensão de direito material violado ou ameaçado. Assim, interesse processual caracteriza-
se pela necessidade de requerer o exercício da função jurisdicional, diante da impossibilidade de
obtenção do resultado pretendido por meio extraprocessual. Neste sentido, Greco Filho ainda
complementa que faltará o interesse processual “[...] se a via jurisdicional não for indispensável,
como, por exemplo, se o mesmo resultado puder ser alcançado por meio de um negócio jurídico
sem a participação do Judiciário.”286
A acepção clássica ou postura tradicional do interesse processual deriva da concepção
romana de ação, no sentido de que esta consistia em perseguir em juízo o que pertencia ao autor 285 GRINOVER, 2007, p. 11. 286 GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 19. ed., vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 82-83.
107
da ação, titular do direito violado. Tratava-se de um meio de proteção de um bem diretamente
afetado a uma pessoa, caracterizando a proteção de uma situação jurídica individual.287
Dinamarco também observa que a preocupação com o interesse de agir evidencia um sinal
de visão privatista do sistema processual, “[...] como se toda pretensão deduzida em juízo fosse
procedente e fosse uma verdade a invariável presença da lesão [...]”. Para o autor, esta idéia faz
parte da teoria civilista da ação e é incompatível com as posturas metodológicas
contemporâneas.288
Exemplo explícito de incompatibilidade ocorre nas ações coletivas. Segundo Mancuso,
diante da impossibilidade de restringir a tutela só aos direitos subjetivos e do enfraquecimento da
personificação do interesse, com caráter direto e pessoal, nasce na tutela coletiva o
reconhecimento de um novo tipo de interesse processual, surgido a partir de dados objetivos. O
autor cita como referência as ações populares e determinadas ações de classe, as quais “[...] têm-
se por relevantes e suficientes para caracterizar o interesse de agir, certos fatos objetivos como a
condição de eleitor ou de cidadão, ou o fato de habitar certa região ou de pertencer a certa etnia,
ou de ser contribuinte de certo imposto.”289
Trata-se da chamada presunção de existência do interesse processual, que encontra-se
presente em qualquer demanda coletiva e que, segundo Venturi, decorre da autorização conferida
a todas as entidades referidas no art. 5º da LACP e no art. 82 do CDC para a propositura de ações
coletivas ou, antes mesmo do advento de tais diplomas legais, quando o legislador implementou
“[...] o sistema de tutela jurisdicional coletiva para a defesa de direitos até então ignorados ou
desprotegidos na via judiciária, em decorrência dos múltiplos obstáculos do acesso à justiça [...].”
A partir desta presunção, o autor complementa que caberia exclusivamente ao demandado
demonstrar no processo coletivo que não se trata de pedido com tal natureza, sendo esta a única
hipótese de não incidência da tutela coletiva por ausência de interesse processual.290
Portanto, pode-se concluir parafraseando Mancuso, que parece ter chegado o momento de
uma nova ruptura no processo civil. Diante de ações de natureza coletiva o interesse processual
287 MANCUSO, 2004, p. 165-166. 288 DINAMARCO, C. R., op. cit., p. 53. 289 MANCUSO, 2004, p. 167. 290 VENTURI, op. cit., p. 229-232.
108
não deve ser buscado na mera aferição da necessidade ou indispensabilidade de se recorrer ao
Judiciário, conforme ocorre na postura tradicional da teoria da ação, mas na relevância social do
interesse a ser tutelado. Para o autor é nessa linha que se pode reconhecer interesse de agir em
tema de interesses difusos, no sentido de que “[...] não importa que seja indeterminado seu titular;
o que conta é o fato de que o interesse em questão é socialmente relevante e, como tal, digno de
proteção jurisdicional.” Mancuso direciona este entendimento aos interesses difusos, podendo,
perfeitamente, ser aplicado aos demais direitos e interesses coletivos.291
A segunda condição de admissibilidade da ação trata da legitimidade para agir, a qual, na
concepção clássica da teoria da ação, é atribuída àquele que detém a titularidade do interesse
contido na pretensão. Nesta seara Greco Filho esclarece que somente podem demandar aqueles
que forem sujeitos da relação jurídica de direito material trazida a juízo, isto é, cada um deve
propor as ações relativas aos seus direitos. O autor ainda exemplifica que quem pode propor ação
de cobrança de um crédito é o credor, quem pode propor ação de despejo é o locador, e quem
pode pleitear reparação de dano é somente aquele que o sofreu. Trata-se, portanto, da chamada
legitimidade ativa ordinária.292
Nas ações intersubjetivas resolvidas por meio das disposições do processo civil clássico, o
direito de ação pode ser comparado a um patrimônio. A partir do chamado Princípio Dispositivo
o titular do direito pode ou não exercer o direito de ação293, exercer o direito de ação e não
requerer tudo o que tem direito294, exercer o direito de ação e no curso do processo pedir a
desistência da mesma ou, ainda, exercer o direito de ação e no curso do processo renunciar ao
direito que fundamenta o pedido, caso não se trate de direitos indisponíveis. Para Leal tais
faculdades expressam o individualismo processual, por meio do qual o direito de agir é visto
como uma propriedade privada. E considerando que na maioria das vezes em âmbito processual
individual as ações se relacionam à obrigações de ordem pessoal ou decorrentes de direitos reais,
291 MANCUSO, 2004, p. 168. 292 GRECO FILHO, op. cit., p. 79. 293 CPC, art. 2º. Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e formais legais. 294 CPC, art. 128. O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte.
109
“[...] acentua-se mais ainda o direito de postular como um corolário do jus disponendi desse
indivíduo proprietário e autônomo.”295
Por outro lado, nos processos de ordem coletiva, tendo em vista a natureza transindividual
dos direitos tutelados, a legitimidade ativa é conferida em regime extraordinário ou de
substituição processual, considerando que nestes casos nem há condições para imaginar uma
hipótese de legitimidade ativa ordinária conforme preceitua o CPC, no sentido de atribuir
legitimidade pessoal para quem se diz titular do direito material.296 Para maior clareza, cumpre
colacionar entendimento de Nery Junior, o qual argumenta que “[...] pensar em legitimação para
a causa como instituto ligado ao direito material individual a ser discutido em juízo, não pode ter
esse mesmo enfoque quando se fala em direitos difusos, cujo titular do direito material é
indeterminável.”297
O modelo de legitimação é um dos principais pontos apontados para evidenciar o quanto o
acesso à justiça difere entre os processos coletivos e os processos de cunho individual. Neste
sentido, Grinover ressalta que no processo civil individual a legitimação obedece a esquemas
rígidos (combinação com o interesse de agir e com a possibilidade jurídica do pedido), enquanto
que no processo coletivo ocorre uma abertura de tais esquemas, “[...] prevendo a titularidade da
ação por parte do denominado ‘representante adequado’, portador em juízo de interesses e
direitos de grupos, categorias, classes de pessoas.”298
No Brasil há autores, a exemplo de Watanabe, que defendem a teoria de que mesmo nas
ações coletivas há legitimação ordinária, considerando que tal legitimação decorre de atribuição
constitucional ou legal e porque não há um único legitimado ordinário para propô-las.299 Leal
contesta tal entendimento e considera a polêmica de pouca repercussão prática. Para o autor, “[...]
nem mesmo nas ações coletivas do direito anglo-americano, em que o indivíduo lesado pode
representar os demais, o direito individual do autor se confunde com o direito alheio, embora
295 LEAL, M. F. M., 1998, p. 37. 296 ZAVASCKI, 2006, p. 76. 297 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 114. 298 GRINOVER, 2007, p. 12. 299 WATANABE, 2004, p. 815.
110
tenham o mesmo fundamento.” Leal ainda complementa que se a legitimação fosse ordinária, as
ações não seriam coletivas.300
No mesmo sentido, Mendes observa que a doutrina não é uníssona em relação à
classificação da legitimação pertinente à tutela coletiva, sendo que três posições podem ser
consideradas: a) a que considera a legitimação ordinária; b) a que considerada a legitimação
autônoma; c) e a que considerada a legitimação extraordinária. Segundo análise do autor, vem
prevalecendo na jurisprudência o entendimento de que a legitimação é extraordinária, porém,
observa que a primeira posição (legitimação ordinária) pode em parte ser aceita, desde que o
legislador passe a admitir que o próprio indivíduo lesado, na qualidade de integrante da classe
atingida, atue na condição de legitimado, propondo ações coletivas. Dessa forma, argumenta
Mendes,
[...] estaria ele também defendendo um interesse próprio, embora comum ou coligado com o de outras pessoas integrantes de uma coletividade, grupo, classe ou categoria. Poderia, assim, ser considerada como uma legitimação composta, na qual estariam presentes o interesse próprio conjugado com o alheio.301
Por oportuno, também traz-se à colação entendimento de Dinamarco, o qual observa que
embora a doutrina não seja pacífica acerca da natureza da legitimidade para fins de propositura
das ações coletivas, em especial da ação civil pública, afirmando por vezes tratar-se de
legitimidade ordinária autônoma e por vezes de legitimidade anômala, parece mais adequado
dizer que se trata de legitimidade extraordinária ou de substituição processual, já que ninguém
nega que o interesse sob análise judicial não é do próprio autor da demanda coletiva. Para
Dinamarco,
O interesse poderá pertencer a pessoas determinadas ou indetermináveis, mas sempre pertencerá a terceiros que não fazem parte da relação processual. E é isso que importa para caracterizar a legitimidade como extraordinária, pois alguém será substituto processual sempre que a lei autorizar essa pessoa a ajuizar uma demanda em nome próprio para defender direito alheio [...].302
300 LEAL, M. F. M., 1998, p.125-126. 301 MENDES, 2002, p. 241-244. 302 DINAMARCO, P. da S., op. cit., p. 203-204.
111
Portanto, prevalece o entendimento de que nas ações coletivas, ao contrário do que ocorre
nas ações de cunho individual, a legitimação ativa é extraordinária ou de substituição processual,
resultante da autorização constitucional e legal conferida à terceiros, para que estes demandem e
defendam em nome próprio, direito que no todo ou em parte não lhe pertençam.
É evidente que a legitimidade para cada modalidade de ação é concorrente ou, como
prefere Barbosa Moreira, concorrente e disjuntiva. Significa dizer, utilizando as palavras do
autor, que é concorrente porque os legitimados “[...] ficam habilitados a agir em juízo, na defesa
do interesse comum, quer isoladamente, quer mediante a formação de um litisconsórcio
voluntário.”303 Ou seja, por motivos óbvios, não precisa que todos os legitimados atuem ao
mesmo tempo e na mesma ação, na condição de autores. E é disjuntiva porque quando um dos
legitimados propõe uma ação coletiva, o outro não poderá intentar uma nova ação com o mesmo
objeto e causa de pedir, sob pena de configurar o instituto da litispendência, conforme será
demonstrado em ocasião oportuna.
É importante mencionar também, mesmo que brevemente, a importância da adoção do
modelo de legitimação extraordinária, tendo em vista o grau de independência que é atribuído ao
substituto. Neste sentido Fiss pondera que uma vez que o grupo é considerado vítima, se torna
claro que quem fala em seu favor não precisa e nem poderia ser uma das vítimas. O substituto do
grupo deve tomar uma posição desafiadora do status quo, agindo com coragem e firmeza. A
partir do Direito norte-americano, Fiss cita como exemplo uma ação desafiando a administração
de um presídio, situação em que os indivíduos se encontram em uma posição de exposição e
vulnerabilidade, “[...] que é uma crueldade insistir, como alguns juízes fizeram certa feita, em que
o representante era um membro individual do grupo que foi tratado com brutalidade por
carcereiros, por exemplo.”304
Por fim, cumpre analisar a possibilidade jurídica do pedido, na condição de terceira
condição da ação. No modelo clássico, o direito de ação pressupõe que o seu exercício visa obter
303 MOREIRA, op. cit., p. 83. 304 FISS, op. cit., p. 52.
112
uma providência jurisdicional, cuja pretensão, em abstrato, encontra-se tutelada ou regulada pelo
direito objetivo.305
Nas ações coletivas, a possibilidade jurídica do pedido deve assumir, segundo Venturi,
uma feição verdadeiramente universal, na medida em que tais ações admitem todo e qualquer tipo
de pedido, desde que considerado adequado para a tutela dos direitos e interesses meta-
individuais. Este entendimento decorre do que preconiza o art. 83306 do CDC e, por conseguinte,
na avaliação do autor, reputa-se intolerável “[...] quaisquer denegações de apreciação de
pretensões deduzidas por via de ações coletivas, seja em virtude da matéria envolvida, de sua
pretensa disponibilidade¸ ou de eventuais discussões que possam ser travadas no campo
doutrinário [...]”.307
Portanto, da análise das condições de admissibilidade da ação, de forma comparativa entre
a teoria clássica e a tutela jurisdicional coletiva, é possível concluir que os modelos não se
coadunam. Nenhuma das condições pode assumir nas demandas coletivas o mesmo perfil
organizado para vigorar no contexto das demandas individuais, onde prepondera o interesse das
partes em demonstrar suas próprias razões e obter um resultado favorável na solução da lide e,
somente indiretamente, o interesse do Estado na obtenção da pacificação social.308
Trata-se, portanto, de objetivos que se opõem àqueles traçados para a tutela coletiva.
Nesta, o processo visa disseminar e otimizar a prestação jurisdicional, anulando as barreiras de
acesso à justiça. Conforme complementa Venturi, neste cenário o processo coletivo,
[...] passa a ser compreendido como instrumento que almeja não apenas a pacificação, mas sobretudo a inclusão social, na exata medida em que viabiliza a efetiva atuação dos direitos individuais e sociais imprescindíveis à garantia da dignidade da pessoa humana, valor primeiro e último do Estado Democrático de Direito.309
305 SANTOS, Moacir Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 25. ed., vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 178. 306 CDC, art. 83. Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este Código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela. 307 VENTURI, op. cit., p. 263. 308 Ibidem, p. 260. 309 Ibidem, p. 260.
113
Desse modo, resta evidenciado que os conceitos originários das condições de
admissibilidade da ação, a partir da teoria clássica, perdem sentido no âmbito processual coletivo.
Aliás, conforme já assinalava Grinover no ano de 1979, na seara da tutela coletiva o próprio
conceito de ação deve ser modificado. Aqui, o direito de ação deixa de ser compreendido
enquanto mera faculdade de requerer a tutela jurisdicional do Estado diante de um litígio, cuja
pretensão encontra-se abstratamente tutelada pelo direito material, e transforma-se “[...] em meio
de participação política, numa noção aberta de ordenamento jurídico, em contraposição à fechada
rigidez que deriva das situações substanciais tradicionais.”310
3.2 LITISPENDÊNCIA
O instituto processual da litispendência tem por objetivo impedir que tramitem ações
idênticas de forma concomitante nos Órgãos do Poder Judiciário, sendo consideradas idênticas
para efeitos de configuração do instituto, a partir do que dispõe o processo civil clássico, as ações
que contenham as mesmas partes, o mesmo pedido e a mesma causa de pedir. Diante da
comprovação de litispendência, o CPC orienta para a extinção do processo ajuizado
subseqüentemente ao original, sem resolução do mérito (art. 301, §§ 2º e 3º c/c art. 267, V do
CPC).
Na seara processual coletiva seria possível ocorrer duas formas de litispendência: a
primeira entre ações coletivas entre si (ação civil pública, mandado de segurança coletivo, ação
popular, ação civil coletiva, etc.); e a segunda entre ações coletivas e ações individuais. Porém,
nesta segunda hipótese, o CDC expressamente declara a sua inexistência, regulamentação que
aparentemente transmite simplicidade, mas que, na prática, tem apresentado implicações.
Para facilitar a exposição sobre o assunto, cumpre iniciar a análise da litispendência em
âmbito processual coletivo a partir da primeira hipótese ventilada.
310 GRINOVER, 1979, p. 70.
114
3.2.1 Litispendência entre ações coletivas
A litispendência entre ações coletivas entre si, na avaliação de Mancuso, traz
complicações maiores do que a concomitância entre ações coletivas e individuais, posto que nesta
hipótese “[...] a inexistência de litispendência fica mais evidente, e o manejo concomitante é
menos complexo [...]”. Para o autor, na litispendência entre ações coletivas os perigos redobram
em razão da projeção da coisa julgada nos planos lógico e prático, exigindo, por conseguinte, a
inexistência de contradição.311
A análise da litispendência na seara processual coletiva passa impreterivelmente pela
abordagem da forma de legitimidade ativa estabelecida para fins de propositura das ações
coletivas. Tal abordagem torna-se necessária na medida em que ainda vigora no Brasil o
entendimento de que inexiste litispendência entre ações coletivas, propostas por diferentes
entidades legitimadas, mesmo que tais ações apresentem idênticos pedidos e idêntica causa de
pedir.312
Com esta forma de tratamento conferida às ações coletivas que se repetem judicialmente,
é evidente que dificilmente haverá constatação de litispendência, já que outro legitimado poderá a
qualquer momento propor uma nova ação com o mesmo pedido e mesma causa de pedir, sem que
esta ação subseqüente seja considerada idêntica à primeira.
Resta evidenciado, portanto, que este tratamento segue ipsis litteris e de forma
equivocada, a lógica estabelecida pelo CPC para funcionar dentro de um sistema processual
individual, no qual é possível apurar que uma ação é idêntica à outra por meio dos elementos
partes, pedido e causa de pedir. Por conseguinte, nos processos coletivos, partindo da citada idéia
de que inexiste litispendência, basta que uma das partes não seja idêntica à outra, mesmo que
311 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A concomitância entre ações de natureza coletiva. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (coord.). Direito processual coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 164. 312 Venturi cita decisão do TRF-1ª Região, na qual o Tribunal manifestou-se no sentido de que diante de diferentes autores, não há litispendência entre ação civil pública e ação popular. (VENTURI, op. cit., p. 341).
115
presente no rol dos legitimados ativos para propor ação igual àquela que encontra-se tramitando,
para que seja descartada a litispendência.313
Para demonstrar que tal entendimento é equivocado, diversas situações hipotéticas podem
ser apresentadas. Para fins ilustrativos, e amparando-se em Mancuso, cita-se o exemplo do
mandado de segurança coletivo impetrado por um dos legitimados na CF para assegurar o direito
líquido e certo dos advogados de sustentarem oralmente nos Tribunais antes do voto do Relator.
Pelo fato de esse interesse coletivo abranger toda a categoria profissional, não há espaço para
uma segunda ação coletiva, ainda que manejada por outro legitimado ativo. Neste caso, o autor
argumenta que a rigor, “[...] essa segunda ação coletiva seria repetitiva (...) caracterizando a falta
de interesse de agir, na medida que desnecessária e, a bem dizer, inútil.”314 Idêntico argumento é
apresentado por outros autores brasileiros, a exemplo de Grinover315 e de Mendes316.
As teses ora apresentadas decorrem do entendimento de que a aferição da litispendência
nos processos coletivos não deve reger-se pela análise de quem formalmente se apresenta como
autor, mas sim pela análise de quem é qualificado juridicamente na condição de detentor da
legitimidade ativa.317
Para maior clareza colaciona-se esclarecedor ensinamento de Marinoni e Arenhart, no
sentido de que os legitimados para as ações coletivas,
[...] não agem em defesa de direito próprio, mas sim alheio (legitimação extraordinária), pertencente à coletividade ou a certo grupo de pessoas. O sujeito material do processo, portanto, permanece sendo o mesmo, ainda que distintos os legitimados ‘formais’ para a ação. As ações são, por isso, iguais, havendo litispendência desde que sejam uniformes a causa de pedir e o pedido.318
Outro fator que deve ser observado e que Mendes trata com propriedade, diz respeito à
indivisibilidade apresentada pelos interesses difusos e coletivos stricto sensu enquanto
característica fundamental. A indivisibilidade que acarreta a impossibilidade de fracionamento do
313 VENTURI, op. cit., p. 330. 314 MANCUSO, 2007, p. 166. 315 GRINOVER, 2004, p. 940. 316 MENDES, 2002, p. 260. 317 VENTURI, op. cit., p. 331. 318 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual de processo de conhecimento: a tutela jurisdicional através do processo de conhecimento. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 789.
116
objeto da ação determina, por conseguinte, um tratamento e uma solução uniformes para o litígio.
Do contrário inúmeras decisões judiciais diversas ou contraditórias poderiam estabelecer padrões
de conduta incompatíveis, a exemplo de uma permissão e de uma proibição para o mesmo caso.
Por estas razões, conforme já mencionado, diante da identidade de pedido e causa de pedir, o
autor manifesta-se pela presença da litispendência, mesmo que diversos os autores legitimados.319
Portanto, o tratamento que deve ser conferido em caso de repetição de ações coletivas,
mesmo que de diferentes espécies (ação civil pública, ação popular, mandado de segurança
coletivo, etc.) e intentadas por diferentes entidades legitimadas, não pode ser o mesmo que
hodiernamente encontra-se no CPC, e que foi pensado para vigorar em um ambiente de ações
individuais.
Ao permitir que tramitem ao mesmo tempo mais de uma ação coletiva com idêntico
objeto e causa de pedir, ocorre um desvirtuamento da própria lógica e ideologia do sistema
processual coletivo, principalmente quando é levado em consideração a abrangência erga omnes
ou ultra partes de seus julgamentos.320
Por fim, é importante mencionar que diante da litispendência entre ações coletivas, a
dúvida sobre a fixação do foro e juízes competentes deve-se resolver pelo critério da prevenção.
Por oportuno, observa-se que a prevenção, neste caso, não segue os critérios estabelecidos pelo
CPC, no sentido de considerar prevento o juiz que despachou em primeiro lugar321 ou o juízo no
qual ocorreu a primeira citação válida322, conforme trate-se de mesma competência territorial ou
não, mas sim, o critério estabelecido pelo parágrafo único do art. 2º da LACP, o qual dispõe que
será considerado prevento o foro no qual ocorreu a propositura da primeira ação dentre as quais a
litispendência é atribuída.323
3.2.2 Litispendência entre ações coletivas e ações individuais
319 MENDES, 2002, p. 260. 320 VENTURI, op. cit., p. 334. 321 CPC, art. 106. Correndo em separado ações conexas perante juízes que têm a mesma competência territorial, considera-se prevento aquele que despachou em primeiro lugar. 322 CPC, art. 219. A citação válida torna prevento o juízo, induz litispendência e faz litigiosa a coisa (...). 323 MANCUSO, 2007, p. 171.
117
Na análise da litispendência entre ações coletivas e ações individuais, cumpre ressaltar,
inicialmente, que ao contrário do que ocorre com a litispendência de ações coletivas entre si que
não recebem qualquer forma diferenciada de tratamento legislativo, esta modalidade recebe
tratamento legal específico em âmbito processual coletivo. Por conseguinte, além das disposições
do CPC, o julgador deverá observar em primeiro plano o que prevê o art. 104 do CDC, o qual
dispõe em sua primeira parte que as ações coletivas, previstas nos incisos I e II do parágrafo
único do art. 81 do CDC, não induzem litispendência para as ações individuais.
Todavia, cumpre observar que o art. 104 do CDC apenas menciona a não incidência de
litispendência entre ações coletivas e individuais, nos casos dos incisos I e II do artigo 81 do
CDC, excluindo o inciso III que trata das ações que tutelam direitos individuais homogêneos. A
interpretação que vem sendo atribuída ao artigo aponta para um explícito erro de remissão, o
qual, inclusive, pode causar equívocos para quem o interpreta. O fundamento para tal
entendimento resulta do disposto no art. 103, § 2º do CDC, o qual prevê que a coisa julgada
material de uma ação coletiva que tem por objeto direitos individuais homogêneos, não incide
sobre indivíduos que não figuraram como litisconsortes na mesma, sendo-lhes lícito proporem
individualmente as respectivas ações de indenização. Com efeito, conclui-se que se em tais casos
não incide coisa julgada, da mesma forma não deve incidir litispendência, já que os dois institutos
apresentam natureza similar. Assim, entende-se que o artigo deva ser aplicado a todas as
categorias de ações coletivas, o que inclui, portanto, o inciso III do art. 81 do CDC.324
Concernente ao objetivo do art. 104 do CDC dentro do cenário processual coletivo,
conclui-se a partir da cristalina redação apresentada pelo mesmo, que nada mais é do que impedir
a indução de litispendência entre ações coletivas e ações individuais que apresentem o mesmo
pedido e, evidentemente, sejam oriundas da mesma causa de pedir.
É notório que a litispendência nos processos coletivos, segundo menção já realizada,
exerce a mesma função que lhe é peculiar na esfera do processo civil tradicional, ou seja, impedir
que o mesmo ou outro juiz processe e decida um processo idêntico a outro que encontra-se
tramitando. Todavia, segundo pondera Venturi, se a lógica da litispendência na seara do processo
individual está relacionada a um modelo que comporta a apresentação da pretensão individual por
324 VENTURI, op. cit., p. 346.
118
uma única vez, no âmbito das ações coletivas há que se atentar para o fato de que seus
proponentes (legitimados que atuam em regime extraordinário ou de substituição processual),
“[...] agem muitas vezes sem que os titulares das pretensões deduzidas sequer tenham
conhecimento da propositura da demanda, não ficando, por isso, impedidos de buscar proteção
jurisdicional pela via individual.”325
Logo, a hipótese de coexistência de ações coletivas e individuais é possível e aceito no
âmbito das ações coletivas. Conforme complementa o mesmo autor, a necessidade de criar
mecanismos adequados para a tutela jurisdicional dos chamados direitos coletivos, em sentido
lato sensu, levou o Brasil a editar uma legislação específica, não no intuito de sobrepô-la ao
sistema do processo civil tradicional, mas no de somá-la a esse. Entretanto, argumenta Venturi,
“[...] para que tal soma fosse viável, idealizou-se uma verdadeira fusão entre os sistemas de tutela
individual e coletiva, sendo estabelecidas, nesse objetivo, algumas regras de convivência
necessariamente observáveis para que a almejada interação sistemática ocorresse.” O autor ainda
complementa que uma das “regras de convivência” estabelecida encontra-se nos incisos e
parágrafos do art. 103 do CDC, a partir da qual, jamais haverá prejuízo às pretensões individuais
de acesso à justiça por aqueles que não tenham intervindo na ação coletiva na qualidade de
litisconsortes.326
Os argumentos de Venturi resultam do que prevê o § 3º do art. 103 do CDC, o qual faz
expressa referência às ações de indenização por danos pessoalmente sofridos e propostas
individualmente, e que, combinado com a redação do art. 104 do mesmo CDC, permite concluir
que antes ou após a propositura de uma ação coletiva, é permitido ao integrante da coletividade,
grupo, categoria, classe ou nas lesões a direitos individuais homogêneos, propor ação individual
com o mesmo pedido da ação coletiva, tema que será abordado em momento oportuno.
Há, contudo, outras questões contraditórias envolvendo a exclusão da litispendência entre
ações coletivas e ações individuais. A análise inicia pelas implicações envolvendo a matéria
quando concomitantemente tramitam ações coletivas e individuais em defesa de direitos difusos e
coletivos stricto sensu. Analisando tais situações, Grinover apresenta entendimento que permite
concluir que nestes casos, mesmo sem a existência do art. 104, incisos I e II, do CDC, o instituto 325 VENTURI, op. cit., p. 329. 326 Ibidem, p. 344.
119
da litispendência não poderia ser aplicado entre ações coletivas e individuais, isto porque, falta
um dos requisitos elencados pelo CPC para a devida configuração do instituto. Para a autora as
ações não são idênticas porque aqui “[...] o objeto dos processos é inquestionavelmente diverso,
consistindo nas ações coletivas na reparação ao bem indivisivelmente considerado, ou na
obrigação de fazer ou não fazer, enquanto as ações individuais tendem ao ressarcimento
pessoal.”327
Desse modo, a partir dos argumentos delineados por Grinover, seria possível concluir que
em se tratando de concomitância entre ações coletivas e ações individuais, cujo objeto são
direitos difusos ou coletivos stricto sensu, a própria natureza da matéria não permite incidir a
litispendência, tendo em vista a ausência do mesmo objeto, considerado requisito para
caracterizar a presença do instituto.
Ocorre que na hipótese apresentada pela autora, resta evidenciado que a pretensão
individual não apresenta o mesmo objetivo pretendido na ação coletiva, não havendo identidade
entre o objeto de uma e de outra. Todavia, nem sempre é possível identificar com a mesma
facilidade se as pretensões individuais deduzidas em juízo são efetivamente individuais.
Neste sentido, Watanabe adverte que não são todas as situações que permitem perceber se
a relação jurídica de direito material a que faz referência a ação individual, admite a formulação
de vários pedidos individuais da mesma espécie, “[...] ou se, acaso, pela sua natureza e
peculiaridade, é ela de natureza incindível, de modo que, em princípio, são inadmissíveis
postulações individuais.”328
O mesmo autor apresenta diversos exemplos práticos que permitem compreender melhor
os próprios argumentos. Para maior clareza, imagine-se que uma ação de cunho coletivo é
proposta por um dos legitimados extraordinários objetivando a cessação de determinada poluição
ambiental praticada por indústria, e que atinge, portanto, direitos difusos. Concomitantemente,
uma das vítimas propõe ação individual reclamando indenização por danos individualmente
sofridos, em razão da mesma poluição combatida na ação coletiva. Neste caso, é inegável que a
327 GRINOVER, 2004, p. 942. 328 WATANABE, Kazuo. Relação entre demanda coletiva e demandas individuais. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (coord.). Direito processual coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 156.
120
pretensão individual é própria e inconfundível com a pretensão coletiva, sendo perfeitamente
compatível a tramitação de ambas. Porém, se na ação individual o autor (ou até mesmo outros
autores) veiculasse a pretensão de cessação da poluição, teria escopo coincidente com a ação
coletiva. Neste segundo caso, Watanabe esclarece que a ação individual teria esta conotação
apenas no sentido de que é proposta por um único indivíduo, mas a pretensão é de alcance
coletivo por beneficiar todas as pessoas que se encontram na mesma situação do autor individual,
sendo, portanto, suficiente, mesmo que de origem individual. Por fim, arremata o autor:
A conclusão de que impõe, à vista dessas considerações, é no sentido de que as ações individuais que veiculem a mesma pretensão da ação coletiva ou de uma outra ação individual como o mesmo escopo são inadmissíveis por significarem um bis in idem, que poderá dar origem a conflitos práticos, e não apenas lógicos, de julgados, o que o nosso ordenamento jurídico não tolera (daí os institutos da litispendência e da coisa julgada).329
Há, entretanto, outros posicionamentos mais críticos acerca da matéria ventilada,
principalmente quando envolve ações individuais e coletivas cujo objeto são direitos difusos e
coletivos stricto sensu, e que, em razão de sua pertinência, são trazidos ao presente trabalho. Em
que pese a redação cristalina do CDC excluindo a litispendência e dos diversos entendimentos
doutrinários acerca do assunto, Mendes é enfático ao dizer que a hipótese do art. 104 do CDC,
“[...] só é possível de aplicação em relação aos direitos ou interesses individuais homogêneos,
estes, sim, plenamente divisíveis.” Entende o autor que a indivisibilidade apresentada pelos
interesses difusos e coletivos stricto sensu enquanto característica fundamental, acarretam a
impossibilidade de fracionamento do objeto da ação e, por conseguinte, determinam tratamento e
solução uniformes para o litígio.
Do contrário inúmeras decisões judiciais diversas ou contraditórias poderiam estabelecer
padrões de conduta incompatíveis. Por conseguinte, o autor conclui que o que parece “[...]
inadmissível, em sede de interesses difusos e coletivos, é a possibilidade ventilada pelo art. 104,
de cabimento e coexistência de ações coletivas e individuais, como se o objeto em questão
estivesse sujeito ao desmembramento.”330
329 WATANABE, 2007, p. 157. 330 MENDES, 2002, p. 261.
121
Neste mesmo sentido, Watanabe pondera que a solução que seria mais apropriada, é
aquela que proíbe demandas individuais referidas a uma relação jurídica global incindível.
Porém, o autor complementa que “[...] a suspensão dos processos individuais poderá, em termos
práticos, produzir efeitos bem próximos da proibição, se efetivamente for aplicada pelo juiz da
causa.”331 E, sabemos, a proibição é contrária ao direito constitucional que assegura acesso ao
Judiciário e à justiça (princípio da inafastabilidade).332
Mesmo defendendo a idéia de que o art. 104 do CDC somente “[...] é passível de
aplicação em relação aos direitos ou interesses individuais homogêneos [...]”, Mendes argumenta
que, ainda nesta situação, o dispositivo merece severa crítica, a qual, ao que parece, tem como
pressuposto uma valorização das ações coletivas em detrimento das ações individuais. Mendes
observa que a experiência do Direito Comparado utiliza dois sistemas de vinculação dos
indivíduos ao processo coletivo: o primeiro de inclusão, no qual os interessados deverão requerer
o seu ingresso até determinado momento; e o segundo de exclusão, pelo qual os membros
ausentes devem solicitar o desacoplamento do litígio coletivo, dentro de um prazo fixado pelo
juiz.333
Ocorre que no Brasil o CDC não adotou nenhum dos dois métodos. Para Mendes o
sistema de exclusão se mostra mais eficiente, no sentido de garantir tratamento coletivo para
questões comuns, efetiva economia processual, acesso à justiça e fortalecimento das ações
coletivas. Por conseguinte, sem o direito ou obrigação de exclusão, os interesses menores acabam
minando o sentido das ações coletivas. Para o autor,
A realidade dos últimos anos fala por si só: embora tenham sido ajuizadas ações coletivas, nenhuma delas foi capaz de conter a verdadeira sangria de ações individuais que foram ajuizadas (...) em praticamente todos os casos mencionados, foram centenas e milhares de processos individuais instaurados, sem que as ações coletivas tenham de fato cumprido seu papel.334
O autor conclui que o correto equacionamento do problema apresentado pela
litispendência entre ações coletivas e ações individuais, oriundas de direitos individuais
331 WATANABE, 2007, p. 160. 332 CF, art. 5º, XXXV – A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. 333 MENDES, 2002, p. 261. 334 Ibidem, p. 261-262.
122
homogêneos, seria o estabelecimento de um efetivo sistema de exclusão, acompanhado do
controle de representatividade adequada, medida que lhe parece essencial para que a tutela
coletiva alcance seus objetivos.335
Não é, porém, esta situação que pode ser considerada “a ideal” que vigora no Brasil, já
que o País apenas adotou a possibilidade de ingresso do interessado no processo na condição de
litisconsorte, cuja análise será efetuada em momento oportuno, juntamente com os efeitos da
coisa julgada em sede de ações coletivas.
No que tange a litispendência entre ações coletivas e ações individuais que tutelam
direitos individuais homogêneos, vigora uma situação diferente daquela encontrada nas ações de
defesa de direitos difusos e coletivos stricto sensu, onde o objeto do processo coletivo é diferente
do objeto da ação individual. Grinover complementa que nos direitos individuais homogêneos o
que se tem é uma ação coletiva que visa a reparação dos indivíduos pessoalmente lesados, cujo
objeto do processo é a condenação genérica, visando indenizar as vítimas pelos danos que lhes
foram causados. Para a autora o pedido da ação coletiva já contém os pedidos individuais,
formulados nas distintas ações reparatórias, no que respeita ao reconhecimento do dever de
indenizar. E mais. Segundo Grinover em se tratando de direitos individuais homogêneos há
identidade de sujeitos ativos entre as ações coletivas e as ações individuais, sendo que tal
identidade resulta “[...] da circunstância de que o legitimado à ação coletiva é o adequado
representante de todos os membros da classe, sendo portador, em juízo, dos interesses de cada
um e de todos.” Desse modo, para a autora, o que “talvez” exista nesta hipótese é uma nova
espécie de continência, considerando que o legitimado ativo para a ação coletiva abrange todos
seus titulares, a identidade de causa de pedir é evidente, e o objeto da ação coletiva é mais amplo
e abrange o das ações individuais.336
Outra sugestão da autora, diante da impossibilidade de reunião dos processos, a partir
desta “nova espécie de continência”, seria então, de forma alternativa, a suspensão dos processos
individuais pelas regras da prejudicialidade, ou seja, mediante aplicação do que dispõe o art. 265,
335 MENDES, 2002, p. 262. 336 GRINOVER, 2004, p. 944.
123
IV, a, do CPC337, todas as ações individuais ficariam suspensas pelo período de um ano, prazo
previsto no art. 265, § 5º, do CPC. Decorrido este período, complementa Grinover, “[...] as ações
individuais de responsabilidade civil deverão retomar seu curso, numa fiel aplicação dos
dispositivos do estatuto processual civil.”338
Doutrinariamente, tal proposição recebe opiniões contrárias, e a principal delas vem de
Gidi, que entende, inicialmente, não haver continência entre as ações coletivas e ações
individuais que tutelam direitos individuais homogêneos, pela simples razão de que
conjuntamente, é inviável comparar os elementos objetivos que as compõem, isto é, as partes, o
pedido e a causa de pedir. Também não dá para reconhecer, segundo Gidi, a existência das regras
de prejudicialidade entre as ações, primeiro porque a decisão da ação coletiva não poderá
interferir (nem para beneficiar e nem para prejudicar) no andamento e decisão da ação proposta
individualmente, caso o autor desta decida mantê-la tramitando, mesmo com a possibilidade de
suspendê-la conforme lhe faculta o art. 104 do CDC; e segundo porque não dá para reconhecer as
regras de prejudicialidade entre as ações coletivas e as ações individuais processadas, pelo fato de
que as partes não são as mesmas.339
Desse modo, quanto à suspensão ex officio do processo individual proposta por Grinover,
consubstanciada na idéia de prejudicialidade entre as ações, Gidi conclui que “[...] não se poder
constranger o consumidor a ter o seu processo compulsória e inelutavelmente suspenso, contra a
sua vontade (...) para, ao depois, vê-lo compulsória e inelutavelmente retomar o seu curso
[...]”.340 Assim, o que deve ocorrer é a manutenção dos dois ou mais processos, e para evitar
decisões contraditórias, orienta-se pela adoção do instituto da conexão, conforme será
evidenciado adiante.
Portanto, dos argumentos apresentados na análise da litispendência, tanto entre ações
coletivas entre si e ações coletivas e ações individuais, resta evidenciado que o instituto precisa
ser adequado aos princípios, finalidades e características dos processos coletivos. Neste sentido
argumenta Mendes, alertando que sob a ótica do processo civil clássico, a litispendência é um
337 Entre outros motivos apresentados, prevê o citado dispositivo do CPC que suspende-se o processo quando este depender do julgamento de outra causa. 338 GRINOVER, 2004, p. 946. 339 GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 210. 340 Ibidem, p. 210.
124
instituto que está intimamente relacionado à condição de parte no processo, enquanto que nos
processos coletivos, as partes, no pólo ativo, agem em defesa de interesses alheios, na forma de
legitimação extraordinária ou de substituição processual.341
Trata-se, portanto, de um instituto que foi pensado e organizado para vigorar no âmbito
do processo individual, onde se compreende por parte a pessoa que for sujeita da relação jurídica
de direito material trazida a juízo e onde a lógica da litispendência está arquitetada para receber a
pretensão individual em uma única oportunidade, ao contrário da lógica pensada para as ações
coletivas, que em razão de certas peculiaridades permite, expressamente, a concomitância de
ações coletivas e individuais.
Porém, esta lógica, resultante do que disciplina o art. 104 do CDC, tem provocado
embaraços à justiça. Entre os diversos autores que chamam a atenção para este fato está
Watanabe, que complementa o argumento esclarecendo que os embaraços resultam da repetição
absurda de demandas coletivas e de pseudodemandas individuais, “[...] cuja admissão, em vez de
representar uma garantia de acesso à justiça, está se constituindo em verdadeira denegação da
justiça devido à reprodução, em vários juízos do País, de contradição prática de julgados [...]”.342
Desse modo conclui-se que, a exemplo do que ocorre com as condições de
admissibilidade da ação, a partir da teoria clássica, perdem sentido no âmbito processual coletivo
as disposições relacionadas à litispendência, ao ponto de podermos considerar, parafraseando
Venturi, que a aplicação do instituto na esfera processual coletiva é digna de perplexidade, tendo
em vista, principalmente, as constantes e relevantes dúvidas que recaem sobre a matéria.343
Este é, portanto, mais um exemplo que demonstra a necessidade de criação de uma Teoria
Geral dos Processos Coletivos, com institutos pensados para vigorar dentro de uma nova
realidade processual que, definitivamente, não se coaduna com a realidade do processo civil
individual.
3.3 CONEXÃO E CONTINÊNCIA 341 MENDES, 2002, p. 258. 342 WATANABE, 2007, p. 160. 343 VENTURI, op. cit., p. 328.
125
Os institutos da conexão e continência são originários do princípio da economia
processual, o qual preconiza a realização mínima de atividades processuais, com o máximo de
resultado na atuação do direito.
A conexão no processo civil clássico resulta da identidade de objeto ou da causa de pedir,
presente em duas ou mais ações, enquanto que a continência resulta da identidade das partes e da
causa de pedir, mas o objeto de uma das ações, por ser mais amplo, abrange o das outras. As
identidades mencionadas fazem com que as ações conexas e continentes sejam conhecidas e
decididas pelo mesmo juiz.
Na seara privada, a conexão e a continência proporcionam para as partes as vantagens de
menor onerosidade e maior celeridade na tramitação e julgamento do processo, já que o mesmo
juiz realizará de forma concomitante, atos que são comuns para os processos. No que tange a
ordem pública, os institutos são importantes porque evitam sentenças contraditórias,
considerando que todas as ações conexas e continentes serão julgadas pelo mesmo juiz.344
A exemplo do que ocorre com a litispendência, a presença da conexão nas demandas
coletivas também pode ser verificada de duas formas distintas, sendo a primeira entre ações
coletivas entre si; e a segunda entre ações coletivas e ações individuais. Todavia, ao contrário do
que ocorre com a litispendência, pelo menos na segunda hipótese, em razão do disposto no art.
104 do CDC, não há tratamento legal específico para o instituto da conexão na esfera processual
coletiva, restando, por conseguinte, a necessidade de aplicação subsidiária do que dispõe o CPC
acerca da matéria, tendo em vista o que prevê o art. 90 do CDC.345
Do mesmo modo não há na esfera processual coletiva tratamento específico para o
instituto da continência, que ao contrário do que ocorre com a conexão, somente pode ser
constatado entre ações coletivas entre si. A impossibilidade de continência entre uma ação
coletiva e outra individual, resulta da ausência de identidade de partes, considerado requisito
necessário para a configuração do instituto, já que o interessado individualmente considerado não
possui no Direito brasileiro, legitimidade para propor uma ação coletiva.
344 SANTOS, M. A., op. cit., p. 264. 345 CDC, art. 90. Aplicam-se às ações previstas neste Título as normas do Código de Processo Civil e da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições.
126
Contudo, nunca é o bastante chamar a atenção para o fato de que o tratamento destes
temas no CPC visa contemplar uma jurisdição individual, envolvendo interesse pessoal das
partes. Logo, acautela Mancuso, “[...] não se podem transplantar, sic et simpliciter, aqueles
elementos para ambiente processual bem diverso, como é o da jurisdição coletiva, onde se cuida
de interesses metaindividuais, concernentes a sujeitos indeterminados, sendo indivisível o objeto
litigioso.”346
No que tange a ocorrência de conexão e continência entre ações coletivas, Venturi
argumenta que “[...] não será pelo fato de se tratar de demandas nominalmente distintas (ação
civil pública, ação popular, mandado de segurança coletivo, ação de improbidade administrativa,
etc.) [...]” que deixará de existir as relações entre todas elas e, conseqüentemente, a reunião
perante o mesmo juízo prevento. Este entendimento de Venturi resulta, além de decisões oriundas
de Órgãos do Judiciário347, do disposto no parágrafo único do artigo 2º da LACP348, o qual
estabelece o critério a ser adotado para fins de reunião de processos coletivos idênticos ou
similares. Para o autor esta regra da LACP “[...] pertence ao microssistema de tutela coletiva e,
portanto, aplicável a todas as hipóteses de conexão ou continência entre quaisquer ações
coletivas, ainda que de espécies diferentes.”349
Visando evidenciar a possibilidade de ocorrer conexão e continência entre ações
coletivas, mesmo que de origens diferentes, busca-se em Mazzilli dois exemplos práticos. No
primeiro, de conexão, o autor diz que é possível uma associação civil propor ação civil pública
visando o encerramento das atividades de uma empresa que polui, e, paralelamente, o Ministério
Público propor outra ação civil pública contra a mesma empresa, visando obter condenação na
obrigação de fazer, no sentido de colocar um filtro adequado na chaminé da fábrica. Neste caso,
as ações apresentam identidade na causa de pedir, porém, com pedidos diversos, caracterizando a
conexidade.
346 MANCUSO, 2007, p. 167. 347 O autor cita decisão do TRF-1ª Região, 1ª Seção (DJU 22.3.1999), na qual o Tribunal manifestou-se no sentido de que entre uma ação civil pública e uma ação popular, não se recusa a conexão em função dos nomes com que sejam rotuladas. (VENTURI, op. cit., p. 340). 348 LACP, art. 2º, parágrafo único – A propositura da ação prevenirá do juízo para todas as ações posteriormente intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto. 349 VENTURI, op. cit., p. 340.
127
No segundo, adaptando-se o exemplo para o instituto da continência, imagine-se que uma
associação civil propõe ação civil pública visando o fechamento de uma empresa que polui, e
simultaneamente o Ministério Público ajuíza outra ação civil pública, também visando, por
idêntico motivo, o fechamento da mesma empresa, porém, acrescentando o pedido de
indenização pelos danos já causados. Neste caso, a causa de pedir é a mesma, contudo, o pedido
da segunda é mais abrangente do que a primeira, caracterizando, por conseguinte, o instituto da
continência.350
No segundo exemplo, que trata da continência, já foi mencionado que a identidade das
partes também é requisito exigido pelo CPC para a configuração do instituto. Sobre este assunto,
remetemos o leitor para o estudo da litispendência, onde o tema já foi abordado com maior
profundidade, no sentido de esclarecer qual o entendimento que predomina quando diferentes
legitimados para ações coletivas ajuízam ações idênticas ou assemelhadas. Contudo, cumpre
relembrar, mesmo que de forma breve, o esclarecedor ensinamento de Marinoni e Arenhart, no
sentido de que nestes casos os legitimados não agem em defesa de direito próprio, mas sim de
direito alheio, sendo que o sujeito material do processo permanece sendo o mesmo, ainda que
distintos os legitimados formais.351 Desse modo, os autores devem ser considerados iguais para
efeitos de litispendência e continência.
Quanto à hipótese de conexão entre ações coletivas e individuais, a própria inexistência de
litispendência entre tais ações, vedada pelo art. 104 do CDC, reforça a ocorrência do instituto na
esfera processual coletiva. Para Venturi, a reunião de processos coletivos e individuais, cuja
identidade apresenta-se parcial, é considerada medida salutar, na medida em que favorece a
efetividade da tutela jurisdicional, viabiliza o processamento e julgamento simultâneo das
demandas conexas, e afasta aquilo que para o autor é, talvez, o “[...] mais grave problema
enfrentado pelo sistema de tutela coletiva, qual seja, o da contradição lógica entre os
julgamentos.”352
Embora a legislação que compõe o microssistema processual coletivo nada ventile sobre a
possibilidade de conexão entre ações individuais e coletivas, já que o parágrafo único do art. 2º
350 MAZZILLI, op. cit., p. 229. 351 MARINONI, ARENHART, op. cit., p. 789. 352 VENTURI, op. cit., p. 360.
128
da LACP apenas faz menção ao critério de reunião das ações coletivas entre si quando guardem
relação de pertinência objetiva, uma interpretação sistemática e teleológica permite concluir que
esta solução é plenamente viável diante da aplicação subsidiária do disposto no CPC, o qual
regula, mesmo que dentro de um universo de ações individuais, a reunião de ações conexas.353
Considerando, portanto, as diversas possibilidades de conexão, continência ou
litispendência no âmbito processual coletivo, torna-se importante que no momento de propor uma
ação coletiva, seus elementos objetivos (pedido e causa de pedir) estejam devidamente fixados ou
fixados com exatidão, isto porque, complementa Watanabe, são esses dados que irão determinar
o legitimado passivo da ação, a correta fixação da abrangência da demanda e, o que mais nos
interessa neste momento, “[...] se, no caso concreto, ocorre mera conexidade entre as diversas
ações coletivas ou, ao contrário, se trata de caso de litispendência ou até mesmo de coisa julgada
a obstar o prosseguimento das ações posteriores.”354
Por fim, cumpre efetuar uma análise acerca do critério que deve ser empregado pelo
Judiciário para reunir ações conexas ou continentes. Já foi mencionado que a presença dos
institutos entre ações coletivas entre si, mesmo que nominalmente distintas, deve resultar na
reunião dos processos perante o mesmo juízo, no caso, o juízo prevento, e que este entendimento
resulta do disposto no parágrafo único do artigo 2º da LACP, o qual deixa consignado de forma
expressa que a simples propositura de uma ação (entenda-se coletiva) prevenirá a jurisdição do
juízo para todas as outras ações coletivas posteriormente intentadas com mesma causa de pedir
ou mesmo pedido.
Portanto, a LACP nada menciona sobre o critério a ser utilizado quando a conexão ocorre
entre ações coletivas e individuais. Todavia, o entendimento que vem sendo atribuído à hipótese,
aponta para a aplicação do mesmo critério estabelecido para a reunião de ações coletivas, no
sentido de que as ações devam ser reunidas perante o juízo prevento, porém, com uma diferença
substancial. Aqui, segundo Venturi, são as ações individuais que deverão migrar para o juízo no
qual tramita a ação coletiva, tendo em vista a natureza absoluta da competência das ações
coletivas em detrimento da natureza relativa da competência do juízo das ações individuais,
mesmo que esta seja precedente àquela. Neste sentido complementa o autor: 353 VENTURI, op. cit., p. 360-361. 354 WATANABE, 2004, p. 807-808.
129
Desta forma, apesar da eventual precedência do processamento de ações individuais em relação a uma ação coletiva que lhes seja objetivamente pertinente, é o juízo da demanda coletiva (fixado pelo local do dano, recorde-se) que atrai todas as individuais para fins de julgamento simultâneo [...].355
Desse modo, restam demonstrados os principais problemas que afetam os institutos da
conexão e da continência na esfera processual coletiva, oriundos, principalmente, da ausência de
regulamentação específica, o que obriga os Órgãos do Judiciário a aplicar as disposições do CPC,
e que foram pensadas para vigorara em um cenário de ações individuais e que envolve meros
interesses pessoais das partes.
Há que se levar em consideração as significativas diferenças que há entre os objetos de
uma ação coletiva e de uma ação individual. Para estas foram arquitetados conceitos de
conexidade e continência extremamente rígidos, e que em razão de todos os fatores já
apresentados, dificultam a identificação dos processos coletivos, embaraçando a necessária
reunião dos mesmos.356
3.4 SENTENÇA E COISA JULGADA
De todos os institutos processuais, sem qualquer margem de dúvida, encontra-se em lugar
de destaque a falta de conformidade que há entre os postulados dos efeitos da sentença na seara
do processo civil tradicional e aqueles encontrados no âmbito processual coletivo, tendo em vista
a completa falta de compatibilidade entre as lógicas de um e de outro processo.
Inicialmente, é importante relembrar que no modelo do processo civil clássico, a sentença
somente estende seus efeitos, após atingir o status de coisa julgada, a aqueles que são
considerados partes do processo, não beneficiando e nem prejudicando terceiros.357 Tratam-se
dos chamados limites subjetivos da coisa julgada que, conforme evidencia o próprio dispositivo
355 VENTURI, op. cit., p. 362. 356 GRINOVER, 2007, p. 13. 357 CPC, art. 472. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros (...).
130
do CPC, não podem ultrapassar aqueles que são considerados partes do processo, ou seja, as
pessoas que pedem a tutela jurisdicional (autores) e aquelas contra quem os pedidos são
formulados (réus).358
A análise de quem é considerado parte no processo civil tradicional faz retomar, mesmo
que brevemente, o estudo já elaborado acerca das legitimidades ativa e passiva dentro deste
mesmo cenário, em cuja ótica, somente serão partes aqueles que detiverem a condição de
legitimados ativos e passivos. Neste sentido esclarece Santos:
[...] o autor deverá ser titular do interesse que se contém na sua pretensão com relação ao réu. Assim, à legitimação para agir em relação ao réu deverá corresponder à legitimação para contradizer deste em relação àquele. Ali, legitimação ativa; aqui, legitimação passiva.359
Portanto, a exemplo dos demais institutos, no Código de Processo Civil brasileiro a coisa
julgada também está inserida em um universo de litígios individuais, posto que filiada ao sistema
processual romanístico, no qual o interesse de agir era pessoal, conferido de modo exclusivo ao
respectivo titular do direito tutelado.360
Logo, não é difícil perceber que a lógica da coisa julgada na seara do processo clássico
não pode ser a mesma aplicada aos processos coletivos, onde os legitimados ativos atuam, em
nome próprio, na condição de substitutos processuais dos verdadeiros titulares dos direitos ou
interesses pleiteados judicialmente. Trata-se da já abordada legitimidade extraordinária, por meio
da qual um substituto processual devidamente autorizado pela CF ou lei, estará em juízo
defendendo interesse de terceiros e que não fazem parte da relação processual.
Para Venturi, numa concepção de prestação jurisdicional que recai sobre direitos
individuais, é logicamente aceitável que a decisão não possa estender seus efeitos a terceiros,
nem para prejudicar nem para beneficiar, mesmo porque, trata-se de um julgamento alheio e em
linha de princípio, terceiros não teriam vinculação direta com a relação jurídica de direito
material discutida judicialmente. Contudo, no âmbito da tutela coletiva que incide sobre
pretensões indivisíveis, complementa o autor,
358 SANTOS, M. A., op. cit., p. 356. 359 Ibidem, p. 179. 360 MANCUSO, 2003, p. 295-296.
131
[...] a titularidade supra-individual do direito referente a pessoas que não têm condições de comparecer pessoalmente ao procedimento judicial torna, a um só tempo, extremamente ambígua a própria conceituação de terceiros e absolutamente insatisfatória a fórmula do confinamento da coisa julgada às partes.361
Por conseguinte, parafraseando Gidi, anota-se que os limites da coisa julgada são
considerados um dos elementos mais importantes em uma legislação processual coletiva, isto
porque, ao mesmo tempo em que se deve promover um fim para as controvérsias coletivas, “[...]
deve-se reconhecer que os interesses de pessoas ausentes estão em jogo e devem ser
protegidos.”362 É por isso que ao disciplinar os efeitos da sentença dentro dos processos coletivos,
o legislador brasileiro deixou expressamente consignado que produzirá efeitos erga omnes a
sentença que tiver por objeto os direitos difusos e individuais homogêneos; e efeitos ultra partes
a sentença que tiver por objeto os direitos coletivos stricto sensu.363
Da leitura dos incisos I, II e III do artigo 103 do CDC, verifica-se que o legislador tratou
de modo diverso os efeitos da coisa julgada quando o objeto da ação são direitos difusos ou
coletivos stricto sensu e quando o objeto é direito individual homogêneo. Assim, para facilitar a
explanação e conseqüente compreensão acerca do assunto, tendo em vista as peculiaridades
apresentadas em cada caso, cumpre analisar, inicialmente, os efeitos nas duas primeiras
categorias citadas e, por fim, os efeitos quando a tutela recai sobre direitos individuais
homogêneos.
Analisando os incisos I e II do art. 103 do CDC, observa-se que a única diferença que há
em termos de redação entre os mesmos, encontra-se nas expressões erga omnes, que é aplicada
aos direitos difusos, e ultra partes quando a coisa julgada atinge direitos coletivos em sentido
estrito. A título de observação, cumpre mencionar que até o advento do CDC, a expressão erga
361 VENTURI, op. cit., p. 382. 362 GIDI, 2007, p. 282. 363 CDC, art. 103. Nas ações coletivas de que trata este Código, a sentença fará coisa julgada: I – erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, valendo-se de prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art.81; II – ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar de hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81; III – erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81.
132
omnes era indistintamente utilizada para fazer referencia à incidência da coisa julgada em
qualquer ação coletiva, independentemente de tutelar direito difuso ou coletivo stricto sensu.364
A partir de Mendes constata-se inicialmente que nos dois casos a extensão decorre da
indivisibilidade do objeto, na medida em que não poderá haver fracionamento em relação aos
interessados. O autor complementa que em relação aos direitos coletivos em sentido estrito, o
dispositivo do CDC (também em função da indivisibilidade), não limitou os efeitos aos
associados ou filiados, mas a todo o grupo, categoria ou classe. Do contrário, complementa
Mendes, “[...] os interesses seriam divisíveis e qualificáveis como individuais homogêneos,
recebendo tratamento diverso, ainda que, para fins de propositura da ação, haja organização
identificável com grupo, categoria ou classe.”365
Portanto, a expressão ultra partes significa que a coisa julgada da sentença somente
abrange os integrantes do grupo, categoria ou classe titular do respectivo direito ou interesse
coletivo, objeto da decisão. A utilização de tal expressão, adverte Venturi, foi utilizada a partir de
dois aspectos: primeiro para diferenciar-se de erga omnes, que é empregada em um cenário de
pessoas indeterminadas ou indetermináveis (tendo em vista a natureza dos direitos difusos),
enquanto que ultra partes está inserida em universo de pessoas determinadas ou determináveis,
posto que ligadas a grupos, categorias ou classes, caracterizando, por conseguinte, os direitos
coletivos stricto sensu; e segundo, conforme já mencionado a partir de Mendes, para esclarecer
que os beneficiários da tutela jurisdicional são todos os que, embora não ligados formalmente à
entidade de classe representativa, pudessem ser considerados “[...] integrantes do mesmo grupo,
pela identidade do regime jurídico comungado por todos os seus componentes.”366
Contudo, Gidi chama a atenção para o fato de que, ontologicamente, a distinção
empregada pelo CDC efetivamente não existe. Segundo o autor, os incisos do art. 103 do CDC
“[...] poderiam ter sido redigidos de duas formas dogmaticamente indiferentes, no que diz com as
expressões latinas empregadas (erga omnes ou ultra partes), que acarretariam, inelutavelmente, a
mesma e uma única interpretação.”367
364 VENTURI, op. cit., p. 390. 365 MENDES, 2002, p. 263. 366 VENTURI, op. cit., p. 390. 367 GIDI, 2007, p. 108.
133
Em que pese a existência dessa discussão, o aspecto mais importante a ser analisado
acerca do assunto, guarda relação com a coisa julgada material e com a coisa julgada formal,
tendo em vista as exceções apresentadas pelos incisos I e II e do art. 103 do CDC, os quais,
expressamente, ressalvam os efeitos erga omnes e ultra partes, se o pedido for julgado
improcedente por falta de provas. Da cristalina redação apresentada pelos dispositivos, fácil é
concluir que somente nos casos em que o processo for extinto sob fundamento de que o conjunto
probatório é insuficiente, torna-se possível a qualquer legitimado (autores ideológicos) intentar
outra ação com idêntico fundamento, desde que, evidentemente, apresente novas provas para não
incorrer no mesmo erro. Resultando a improcedência do pedido de fatos infundados, segundo
avaliação alcançada pelo Judiciário após pertinente e adequada instrução probatória dos autos, a
coisa julgada também produzirá efeitos erga omnes e ultra partes. Neste sentido, Ferreira observa
que havendo decisão de improcedência do pedido por qualquer outro motivo que não seja
insuficiência de prova,
[...] ocorrerá coisa julgada material, mas limitada aos autores ideológicos. Sendo assim, nenhum outro co-legitimado poderá propor nova ação coletiva sobre o mesmo fato, com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, proibição essa que, entretanto, não atinge os interesses individuais dos integrantes da coletividade, aos quais é permitido o ajuizamento de ações individuais para resguardar esses interesses [...].368
No Brasil, há autores que entendem necessário que o juiz deixe devidamente consignado
na sentença, que o motivo da improcedência do pedido é, efetivamente, a insuficiência de provas.
Neste sentido Mancuso argumenta que em tais casos é dever do juiz “[...] consignar
expressamente essa circunstância no dispositivo do julgado [...]”, já que este é um critério legal
especialíssimo que derroga do sistema comum e, para sua incidência, exige que o próprio
julgador esclareça que está julgando conforme o estado do processo.369
Deste modo, levando em consideração esta análise, a incidência ou não da coisa julgada
nas ações coletivas que têm por objeto direitos difusos ou coletivos em sentido estrito, dependeria
necessariamente de afirmação expressa na decisão, no sentido de esclarecer se a improcedência
do pedido resulta ou não da insuficiência de provas. Significa dizer que se o juiz afirmasse na
fundamentação e dispositivo da sentença que a decisão resulta de insuficiência de provas, não
368 FERREIRA, op. cit., p. 112. 369 MANCUSO, 2003, p. 308-309.
134
haveria incidência de coisa julgada; do contrário, se afirmasse que a improcedência resulta de
suficiente conjunto probatório, haveria incidência de coisa julgada.370
Gidi critica este entendimento, considerando que em muitos casos o juiz não tem como
saber se alguma prova relevante não lhe foi apresentada. Por esta razão, propõe o autor: “[...] se a
qualquer momento depois da decisão uma nova prova for descoberta que possa alterar a decisão
do caso, a ação coletiva poderá ser reproposta.” Gidi entende que esta interpretação é imperativa
para que a norma seja efetiva “[...] e não seja indevidamente limitada por uma exigência que não
está na lei nem deriva do bom senso.”371
Portanto, duas propostas são apresentadas. A primeira sugere que o juiz explicite na
própria sentença se a rejeição é ou não oriunda de insuficiência de provas; e a segunda no sentido
de aceitar que uma nova prova possibilite ao juiz modificar o resultado da primeira ação coletiva,
desde que, obviamente, uma nova prova lhe seja apresentada.
No que tange aos direitos individuais homogêneos, o CDC também determina que a
sentença faz coisa julgada erga omnes, porém, apenas no caso de procedência do pedido para
beneficiar todas as vítimas e seus sucessores. Com efeito, no que tange a tais direitos, o CDC
apresenta uma diferença substancial em relação ao modelo adotado para os direitos
essencialmente coletivos.
Conforme já analisado, tratando-se dos direitos difusos e coletivos em sentido estrito, o
CDC expressamente ressalva dos efeitos erga omnes e ultra partes oriundos da sentença,
respectivamente, se o pedido for julgado improcedente por falta de provas, o que possibilita a
qualquer legitimado intentar outra ação com idêntico fundamento, desde que munido de novos
meios probatórios.
Ao disciplinar os direitos individuais homogêneos, o CDC não apresenta a mesma
ressalva. Por conseguinte, esclarecem Wambier e Wambier, tenha ou não a sentença decorrido de
insuficiência de provas, “[...] não gera eficácia vinculativa para os outros legitimados de que fala
370 VENTURI, op. cit., p. 387. 371 GIDI, 2007, p. 285-286.
135
o art. 82, que poderão repropor a ação coletiva para a defesa dos direitos individuais
homogêneos.”372
O sistema adotado pelo legislador é motivo de crítica da doutrina especializada. Para
Mendes “[...] o julgamento contrário à parte que efetuou a defesa coletiva não produzirá efeitos
erga omnes, o que merece ser criticado, pois viola o princípio da isonomia.” O autor ainda
complementa que é desproporcional a diferenciação dos efeitos, posto que no julgamento dos
direitos individuais homogêneos não é levado em consideração motivo significativo, como a falta
ou insuficiência de provas, a exemplo do sistema adotado para os direitos difusos e coletivos em
sentido estrito (CDC, art. 103, incs. I e II).373
Neste mesmo sentido argumenta Gidi, sendo enfático ao afirmar que “Não há qualquer
justificativa para essa diferenciação: andou mal o legislador brasileiro em distinguir situações por
tudo semelhantes.”374 Portanto, nenhuma reserva foi apresentada pelo legislador, e qualquer que
seja o motivo do julgamento contrário à parte que efetuou a defesa coletiva, não haverá efeitos
erga omnes e, logo, a mesma ação coletiva poderá ser novamente ajuizada.
3.4.1 A coisa julgada nos casos de intervenção do interessado no processo
No sistema dos processos coletivos adotado no Brasil, após a propositura de ação civil
coletiva, deve ocorrer a publicação de edital em órgão oficial, possibilitando aos interessados a
intervenção no processo na condição de litisconsortes375. Esta sistemática, conforme alerta
Venturi, somente faz referencia às ações que visam a tutela de direitos com origem comum, ou
seja, direitos individuais homogêneos, entendimento que resulta da leitura do art. 103, § 2º do
372 WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Anotações sobre a liquidação e a execução das sentenças coletivas. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (coord.). Direito processual coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 263. 373 MENDES, 2002, p. 263. 374 GIDI, 2007, p. 287. 375 CDC, art. 94. Proposta a ação, será publicado edital no órgão oficial, a fim de que os interessados possam intervir no processo como litisconsortes, sem prejuízo de ampla divulgação pelos meios de comunicação social por parte dos órgãos de defesa do consumidor.
136
CDC376. Contudo, o autor opina pela publicação de edital em qualquer ação de natureza coletiva,
mesmo que originalmente tutelem direitos essencialmente coletivos, como são os difusos e os
coletivos stricto sensu.377
Esta conclusão parece ser a mais correta, tendo em vista os entendimentos encontrados na
doutrina especializada e que opinam pela aplicabilidade das disposições do CDC na proteção de
qualquer direito coletivo (difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos), e não
apenas nos processos relacionados com a proteção do consumidor em juízo.378
Com a sistemática do CDC, o legislador brasileiro optou pelo caminho inverso daquele
adotado pelo modelo norte-americano, no qual, uma vez aceita a class action for damages pelo
Judiciário, os possíveis titulares dos direitos subjetivos são dela notificados. Após a notificação,
vigora o critério do opt out, por meio do qual as vítimas que não optarem pela exclusão serão
automaticamente abrangidos pelos efeitos da sentença, não havendo, portanto, a necessidade de
anuência expressa.379 Aqui, esclarece Grinover, o legislador deixou de lado as intimações
pessoais, impraticáveis e até impossíveis na hipótese de ação coletiva, tendo em vista a
indeterminação das vítimas e de seus sucessores no momento de propositura da ação.380
Evidentemente que o fato de ingressar no processo na condição de litisconsorte trará para
o interessado/litisconsorte certas conseqüências que não atingem aqueles interessados que
optaram pela não intervenção, sendo que a principal delas está justamente relacionada aos limites
subjetivos da coisa julgada. Levando-se em consideração o fato de ter o Brasil adotado o modelo
de extensão secundum eventum litis, a sentença favorável beneficiará a todos os interessados,
incluindo aqueles que não estão atuando como litisconsorte no processo coletivo. Porém, se a
sentença rejeitar a demanda pelo mérito, somente aqueles que não intervieram no processo na
condição de litisconsortes, poderão propor individualmente suas respectivas ações reparatórias.
Para maior clareza colaciona-se explicação apresentada por Grinover, sintetizada nos
seguintes termos: a) o interessado não intervém no processo coletivo e será igualmente
376 CDC, art. 103, § 2º. Na hipótese prevista no inciso III, em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem intervido no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título individual. 377 VENTURI, op. cit., p. 395. 378 MENDES, 2005, p. 8. 379 ZAVASCKI, op. cit., p. 170-171. 380 GRINOVER, 2004, p. 881-883.
137
beneficiado pela decisão quando o pedido for julgado procedente. E sendo a demanda rejeitada
(improcedência após análise do mérito), ainda poderá o interessado ingressar em juízo com ação
individual de responsabilidade civil, pleiteando a respectiva reparação (CDC, art. 103, § 2º); b)
porém, se o interessado intervém no processo a título de litisconsorte, será normalmente colhido
pela coisa julgada, favorável ou desfavorável, não podendo, neste último caso, renovar a ação a
título individual para pleitear a respectiva reparação.381
No que tange aos efeitos da sentença sobre os direitos individualmente considerados, bem
como, o tratamento que deve se adotado quando há coisa julgada em ação coletiva e há ações
individuais tramitando, para maior clareza, cumpre efetuar análise em tópicos separados, para o
fim de facilitar, por conseguinte, a compreensão acerca dos assuntos.
3.4.2 Os efeitos da sentença oriundos das ações coletivas e os direitos individualmente
considerados
O art. 103, § 1º do CDC, dispõe que os efeitos da coisa julgada previstos no inciso I do
mesmo artigo, o qual faz referência aos direitos difusos; e previstos no inciso II, também do
mesmo artigo, e que faz referencia aos direitos coletivos stricto sensu, não prejudicarão os
direitos e interesses dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe. Embora
atinentes apenas aos direitos difusos e coletivos stricto sensu ̧Gidi esclarece que a regra do § 1º
do art. 103 do CDC, é a mesma para os direitos individuais homogêneos, salvo, em qualquer
caso, se o membro da coletividade (conforme já estudado no item anterior) optou por ingressar no
processo na condição de litisconsorte, entendimento que, conforme já explanado, resulta do
disposto no art. 103, § 2º do CDC.382
Para esclarecer o assunto, Gidi ensina que de acordo com a redação do § 1º do art. 103 do
CDC, “[...] a sentença coletiva vinculará todos os membros do grupo, mas essa decisão não
poderá prejudicar os seus direitos individuais.” O autor complementa que se a ação coletiva for
381 GRINOVER, 2004, p. 882. 382 GIDI, 2007, p. 284.
138
procedente, todos os integrantes da coletividade serão beneficiados pela decisão. Porém, se a
mesma for improcedente, os membros do grupo não serão atingidos pelos efeitos da sentença em
suas esferas individuais e poderão propor as ações respectivas, requerendo proteção aos direitos
individualmente considerados.383
Portanto, o legislador brasileiro ressalvou dos efeitos da coisa julgada, oriunda de
decisões proferidas em ações coletivas, os prejuízos a direitos e interesses individuais dos
integrantes da coletividade, grupo, categoria ou classe substituída no pleito judicial. Com efeito,
mesmo que o pedido tenha sido julgado improcedente após análise do mérito, e não, somente,
pela mera insuficiência de provas, os integrantes da coletividade poderão promover ações
pessoais, de natureza individual, requerendo reparação por danos sofridos.
3.4.3 A concomitância de ações coletivas e individuais e a coisa julgada
Já restou amplamente estudado nesta pesquisa que no cenário processual coletivo não há
indução de litispendência entre ações coletivas e ações individuais, devendo o Judiciário, nestes
casos, aplicar o instituto da conexão. Por conseguinte, cumpre saber de que forma o
microssistema dos processos coletivos regulamenta o assunto, buscando elucidar, principalmente,
o efeito das decisões proferidas nas ações coletivas em relação às ações propostas
individualmente.
Inicialmente, é importante esclarecer que a concomitância pode resultar da propositura de
uma ação individual antes do ajuizamento da ação coletiva, como pode resultar de uma
propositura posterior ao pleito coletivo. Em qualquer das hipóteses, o autor da ação individual
deverá ser cientificado da existência de uma ação coletiva conexa e, querendo, requeira no prazo
de trinta dias a contar da data da ciência, a suspensão do processo proposto individualmente.384
383 GIDI, 2007, p. 283. 384 CDC, art. 104. As ações coletivas previstas nos incisos I e II do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes e ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva.
139
Segundo Venturi, a intimação deverá ser instruída, por exemplo, com informações acerca
do autor da ação coletiva, dos pedidos e da causa de pedir, da fase processual em que se encontra
e das provas já produzidas pelas partes, enfim, “[...] dados que possam influenciar na decisão do
autor individual de prosseguir com sua demanda ou suspendê-la, apostando no êxito da
empreitada coletiva.”385
O mesmo autor ainda esclarece que este regime de suspensão deve ser único para todas as
hipóteses de concomitância entre ações individuais e coletivas, não importando o objeto que deu
origem à ação. Ao mesmo tempo, arrola os escopos da suspensão, dentre as quais estão economia
processual a partir do menor número de ações tramitando, evitar contradição entre julgados
individuais e coletivos e aproveitar a condenação genérica obtida na demanda coletiva para fins
de liquidações e execuções individuais subseqüentes.386
A decisão do autor individual de prosseguir ou não com a respectiva ação proposta, lhe
trará conseqüências que implicam, justamente, no fato de ficar ou não sujeito aos efeitos da
decisão proferida no âmbito da demanda coletiva, isto porque, nos termos do art. 104 do CDC, os
efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes previstos no art. 103 do CDC, não
beneficiarão os autores das ações individuais se não for requerida por estes a suspensão do
processo individual no prazo de trinta dias, a contar da cientificação já mencionada.
Para maior clareza, busca-se em Grinover explicação didaticamente elaborada sobre o
assunto. Primeiro o autor individual pode optar em dar prosseguimento à ação individual,
situação que o deixará excluído dos efeitos da sentença que vier a ser proferida na ação coletiva,
mesmo que ela seja favorável e produza efeitos erga omnes ou ultra partes. Assim, mantendo em
curso a ação individual, o autor assume os riscos do resultado desfavorável. Trata-se, portanto, de
uma verdadeira exceção apresentada pelo CDC ao princípio geral da extensão subjetiva do
julgado, in utilibus, por meio do qual se entende que as decisões nos processos coletivos não
poderão prejudicar os direitos individuais dos membros do grupo que estão sendo substituídos
por meio de um legitimado extraordinário.
385 VENTURI, op. cit., p. 351. 386 Ibidem, p. 359.
140
Segundo, se o autor preferir, poderá requerer a suspensão do processo individual. Nesse
caso será beneficiado pela coisa julgada favorável originária da ação coletiva. Todavia, sendo
esta improcedente, Grinover complementa que “[...] o processo individual retomará seu curso,
podendo ainda o autor ver acolhida sua demanda individual. Tudo coerentemente com os critérios
da extensão subjetiva do julgado secundum eventum litis adotados pelo Código.”387
3.4.4 O modelo de extensão da coisa julgada adota no Brasil e a contraposição com o processo
tradicional
Ante todo o exposto, constata-se que a solução empregada no Brasil para os efeitos da
coisa julgada, segundo Gidi, é considerada complexa pelo fato de envolver “[...] tanto a coisa
julgada pro et contra como a coisa julgada secundum eventum litis com extensão in utilibus para
a esfera individual dos membros do grupo.”388
É pro et contra porque em todos os processos coletivos, havendo a análise de mérito pelo
Judiciário e a decisão entender que há procedência no pedido, é inaceitável que idêntica ação
coletiva seja novamente aforada. Ao mesmo tempo, com exceção das ações que versam sobre
direitos individuais homogêneos em que haverá efeito erga omnes somente nos casos de
procedência do pedido, os legitimados nas ações coletivas brasileiras têm apenas uma
oportunidade para propor uma ação coletiva, salvo evidentemente, os casos de declaração de
improcedência por insuficiência de provas, aplicados aos direitos difusos e coletivos stricto
sensu.
Portanto, com exceção dos direitos individuais homogêneos, nos demais casos se a ação
coletiva for julgada improcedente após análise de mérito, o direito estará perdido e a
possibilidade de repetir a mesma ação coletiva estará definitivamente precluso. Neste caso,
387 GRINOVER, 2004, p. 942-943. 388 GIDI, 2007, p. 283.
141
segundo complementa Gidi, a coisa julgada coletiva forma-se erga omnes independentemente do
resultado da demanda, ou seja, é pro et contra.389
Também é secundum eventum litis porque depende do resultado do julgamento.390
Significa dizer que nos casos em que a ação tem por objeto direitos difusos e coletivos stricto
sensu, sendo a sentença desfavorável ao pedido fundamentada na falta ou insuficiência de provas,
é possível ao mesmo autor coletivo ou outro legitimado coletivo propor ação idêntica àquela já
decidida sem apreciação de mérito. Tratando-se de direitos individuais homogêneos em qualquer
hipótese de improcedência do pedido uma nova ação com mesmo objeto e causa de pedir poderá
ser ajuizada.
E é com extensão in utilibus porque as decisões nos processos coletivos não poderão
prejudicar os direitos individuais dos membros do grupo que estão sendo substituídos por meio
de um legitimado extraordinário. Com efeito, se a ação coletiva for julgada procedente, todos os
membros do grupo serão beneficiados pela sentença coletiva. Porém, sendo improcedente, os
membros da coletividade não serão atingidos pelos efeitos da sentença em suas esferas
individuais e poderão propor as respectivas ações individuais visando a proteção de seus
direitos.391
Portanto, o modelo de extensão subjetiva da coisa julgada adotado para os processos
coletivos no direito brasileiro em nada se coaduna com o modelo empregado no processo civil
clássico. Enquanto neste modelo os limites subjetivos da coisa julgada não podem ultrapassar
aqueles que são partes do processo (legitimado ativo e passivo), nem para beneficiar, nem para
prejudicar terceiros, nos processos coletivos os efeitos são estendidos a todo e qualquer
interessado (efeito erga omnes e ultra partes), mesmo que não figure na condição de autor na
ação coletiva, tendo em vista que nestes casos, a legitimidade é conferida em regime
extraordinário ou por substituição processual.
389 GIDI, 2007, p. 283. 390 MENDES, 2002, p. 263. 391 GIDI, 2007, p. 283.
142
Acerca da coisa julgada, tudo o que vem sendo empregado nos processos coletivos, a
exemplo da coisa julgada pro et contra e coisa julgada secundum eventum litis com extensão in
utilibus, não encontra semelhança com o sistema empregado no processo civil tradicional, de
cunho individualista. Por conseguinte, o modelo de coisa julgada que recai sobre as ações
coletivas, se equipara aos demais elementos já citados e estudados nesta pesquisa, os quais
justificam a possibilidade e necessidade de elaboração de uma Teoria Geral específica para os
Processos Coletivos.
3.5 LIQUIDAÇÃO E CUMPRIMENTO DA SENTENÇA
Outra característica peculiar dos processos coletivos é divisão dos mesmos em duas fases
cognitivas, não encontrando similaridade em qualquer outro instituto do processo civil
tradicional. A primeira fase é constituída pela análise do objeto da ação coletiva, recaindo sobre
questões fáticas e jurídicas comuns à universalidade dos direitos tutelados, enquanto que a
segunda é destinada para a análise específica das situações individuais de cada um dos
interessados lesados individualmente, caso o pedido formulado na ação coletiva (analisado na
primeira fase) seja julgado procedente.
Por oportuno, cumpre observar que o CDC apenas disciplina a liquidação de sentença
para os processos que tratam de direitos individuais homogêneos. Contudo, Wambier e Wambier
advertem que os dispositivos do CDC também são aplicáveis à liquidação de sentenças cujos
processos versam sobre direitos difusos e coletivos stricto sensu, isto porque, entendem os
autores,
[...] a liquidação de sentença e a execução das condenações havidas em ações coletivas sempre serão feitas individualmente, ressalvada apenas a hipótese de reversão para o fundo de direitos difusos, única hipótese em que se pode falar de liquidação propriamente coletiva. Nos outros casos, trata-se de liquidação da sentença coletiva e não de liquidação coletiva da sentença.392
392 WAMBIER, WAMBIER, op. cit., p. 272.
143
Os autores citam o exemplo de uma ação coletiva de direitos difusos relativos à poluição
ambiental. As eventuais vítimas com pretensões individuais decorrentes de tal dano (causados à
saúde, por exemplo), deverão promover a respectiva liquidação individual, com a prova do nexo
causal e do dano sofrido.393
Este entendimento não se mostra tranqüilo dentre os autores que se dedicam ao estudo e
aprimoramento das ações e processos coletivos. Leal apresenta opinião contrária àqueles que
concluem pela possibilidade de vítimas e sucessores promoverem a liquidação e execução da
sentença quando a decisão recai sobre direitos difusos. Tratando-se de direitos coletivos stricto
sensu o autor não vê problemas já que, em sua maioria, os mesmos são materialmente
individuais. Porém, quando o objeto são direitos difusos, Leal entende que “[...] não há direitos
individuais em jogo [...]”.
Ao exemplificar com um hipotético dano ambiental, conclui que, nestes casos, aquele que
se diz titular do direito individual terá de apelar para o direito civil clássico já que o juiz “[...]
pedirá o rol de danos (morais, à propriedade ou à saúde) e a conexão com a poluição e aí não se
trata mais de liquidação, mas de ação ordinária de danos.”394
O questionamento do autor é pertinente já que os direitos difusos e coletivos stricto sensu
têm natureza indivisível, ou seja, em se ratando de direitos difusos, conforme já mencionado, não
haveria possibilidade de distribuição de quotas da pretensão entre as pessoas que a compartilham,
posto que nas ações que discutem tais direitos, o objeto não está sujeito ao desmembramento.
Tratando-se de direitos coletivos stricto sensu, do mesmo modo, não haveria possibilidade de
satisfação isolada de apenas uma pessoa do grupo, categoria ou classe, nem defesa de um sem
defesa do outro. Com efeito, a satisfação de um dos membros exige a satisfação de todos.
Desse modo, nos parece que quem deveria promover a liquidação e execução nos casos de
direitos difusos e coletivos stricto sensu seriam os legitimados coletivos, enquanto que nos casos
de direitos individuais homogêneos os dois atos poderiam ser feitos a título individual ou pelos
legitimados coletivos, conforme dispõe o CDC.
393 WAMBIER, WAMBIER, op. cit., p. 277. 394 LEAL, M. F. M., 2007, p. 74.
144
Contudo, não parece ser este o entendimento que vem predominando, posto que em caso
de procedência do pedido a sentença proferida na primeira fase de cognição deverá ser sempre
genérica e seus efeitos estendidos a toda coletividade de maneira uniforme (efeito erga omnes ou
ultra partes), correspondendo a uma sentença certa, porém ilíquida.395 Quanto ao cumprimento
de tal decisão, deverá ocorrer o ajuizamento de uma nova demanda, que Zavascki detalha do
seguinte modo: o cumprimento é dividido em duas fases distintas, sendo a da liquidação,
destinada a complementar a atividade cognitiva e onde é apurado o que é devido para cada
interessado; e a da execução, “[...] em que serão promovidas as atividades práticas destinadas a
satisfazer, efetivamente, o direito lesado, mediante a entrega da prestação devida ao seu titular
(ou, se for o caso, aos seus sucessores).”396
Assim, por meio dos processos de liquidação, esclarece Grinover, “[...] ocorrerá uma
verdadeira habilitação das vítimas e sucessores, capaz de transformar a condenação pelos
prejuízos globalmente causados do art. 95 em indenizações pelos danos individualmente
sofridos.”397
Na chamada fase de liquidação não mais se discute se o réu tem ou não o dever de
indenizar as vítimas ou cumprir outra determinação compatível com o caso, mas sim, apurar
aquilo que é devido para cada liquidante a partir dos danos sofridos. A estes, incumbe o dever de
provar a existência de dano pessoal, o nexo causal com o dano globalmente provocado e o que ou
o quantum lhe é devido, sendo uma fase necessariamente personalizada e divisível.398
É importante consignar que no art. 100 do CDC, o legislador trabalhou com a hipótese de
a sentença condenatória não ser objeto de liquidação pelas vítimas ou o número de liquidantes ser
em número incompatível com a gravidade do dano. Grinover cita como exemplo as relações de
consumo com danos globalmente ponderáveis, porém, insignificantes em sua individualidade.
Neste caso, o prejuízo pode ser de nenhuma importância para cada consumidor lesado, os quais
poderão optar por não se habilitar em processo de liquidação. Desse modo, decorrido o prazo de
um ano sem habilitações ou se neste período a quantidade das habilitações realizadas forem
395 GRINOVER, 2004, p. 886. 396 ZAVASCKI, op. cit., p. 192. 397 Ibidem, p. 192. 398 GRINOVER, 2004, p. 886-887.
145
consideradas inferior à gravidade do dano, os mesmos legitimados coletivos poderão promover a
liquidação e posterior execução da indenização devida.399
Das redações apresentadas pelos dispositivos do CDC, principalmente o art. 100,
Wambier e Wambier concluem que os legitimados do art. 82 do CDC somente poderão promover
a liquidação e posterior execução se houver decorrido o lapso temporal de um ano sem iniciativa
dos interessados. Assim, “[...] só ‘nasce’ a legitimação para o pedido de liquidação e para
posterior execução, se não tiver ocorrido iniciativa dos interessados.” Ainda ressaltam que faltará
legitimidade para os autores coletivos requerer a liquidação antes do fim do prazo estabelecido
pelo CDC.400
O entendimento de que os legitimados coletivos devem esperar a iniciativa dos
interessados (individualmente considerados), se coaduna as conclusões apresentadas por
Grinover, no sentido de que a indenização destinada ao Fundo criado pela LACP é residual no
sistema brasileiro, “[...] só podendo destinar-se ao Fundo se não houver habilitantes em número
compatível com a gravidade do dano.”401
Tratando especificamente da execução promovida pelos legitimados coletivos, cujos
objetos executados são indenizações individualizadas, em seu art. 98 o CDC observa que o
pedido de cumprimento da decisão abrange as vítimas que já têm suas respectivas indenizações
fixadas na sentença de liquidação. Contudo, não haverá prejuízo para o ajuizamento de outras
execuções, cujas liquidações foram concluídas posteriormente aos pedidos de execução já
formulados.
Por fim, é importante mencionar que também é possível a presença em um mesmo
processo da chamada fluid recovery do Direito norte-americano, isto é, uma reparação fluida, a
qual se dá quando vítimas promovem liquidações por danos pessoalmente sofridos, em número
incompatível com a gravidade do dano, e ao mesmo tempo, qualquer legitimado coletivo
promove a liquidação para fins de apuração do prejuízo globalmente causado.
399 GRINOVER, 2004, p. 893. 400 WAMBIER, WAMBIER, op. cit., p 274. 401 GRINOVER, 2004, p. 894.
146
Neste caso, o resíduo dos valores que não forem destinados às vítimas individualmente
consideradas a partir das respectivas habilitações, liquidações e execuções, levando-se em
consideração o valor global do prejuízo, deverá ser revertido a um fundo gerido por um Conselho
Federal ou por Conselhos Estaduais, sendo que tais recursos têm por finalidade a proteção dos
bens e valores da coletividade lesada (Lei 7.347/85, art. 13).402
3.6 A JURISDIÇÃO NOS PROCESSOS COLETIVOS
A análise dos institutos processuais efetuada nesta dissertação demonstra as significativas
diferenças apresentadas pelos mesmos quando inseridos em processos civis de cunho
tradicional/individual e quando inseridos em processo de tutela jurisdicional coletiva. Logo, uma
sucinta reflexão já permite concluir que a própria jurisdição no âmbito processual coletivo, do
mesmo modo, não apresenta o mesmo caráter apresentado na seara processual clássica. Aliás,
conforme anota Salles, as ações coletivas têm marcado no Brasil uma significativa transformação
das funções judiciais.403
Os processos coletivos resultam de conflitos coletivos e, por conseguinte, exigem um
tratamento jurisdicional diferenciado daquele projetado para vigorar em um ambiente de litígios
individuais. Neste sentido, diversos aspectos devem ser avaliados, sendo que o primeiro guarda
relação com o caráter de universalidade da jurisdição.
Os processos coletivos representam no Estado Contemporâneo, viés jurídico adequado
para a população, coletivamente pensada, submeter novas causas aos tribunais, as quais, em razão
de entraves seculares, resultantes, por exemplo, do excesso de despesas processuais, do
desequilíbrio entre as partes e da contra partida, muitas vezes, inferior ao investimento
402 GRINOVER, 2004, p. 895. 403 SALLES, Carlos Alberto. Apresentação geral: por uma nova abordagem do Direito Processual Civil. In: FISS, Owen. Um novo processo civil: estudos norte-americanos sobre juridição, constituição e sociedade. Tradução de Carlos Alberto de Salles, Daniel Porto Godinho da Silva e Melina de Medeiros Rós. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 7.
147
psicológico, financeiro e de tempo realizados, considerados individualmente, certamente não
seriam levadas ao conhecimento do Judiciário por meio do processo individual.404
No processo civil clássico, de cunho individualista, a universalidade da jurisdição tem
alcance restrito, limitando-se a garantir que todos os conflitos de interesses levados ao
conhecimento do Judiciário recebam resposta jurisdicional adequada. Nos processos coletivos,
conforme complementa Grinover, a universalidade está ligada ao acesso à justiça, no sentido de
que tal acesso “[...] deve ser garantido a um número cada vez maior de pessoas, amparando um
número cada vez maior de causas.”405
Portanto, esta característica da jurisdição nos processos coletivos resulta do adequado
tratamento coletivo de direitos e interesses que extrapolam a esfera individual das pessoas, e
atingem ao mesmo tempo grupos, classes e categorias, abrindo espaço para a efetiva
universalidade da jurisdição.
Outro aspecto a ser destacado na jurisdição processual coletiva diz respeito ao
afastamento da subjetividade, também contrariando o que se constata no processo civil clássico,
onde o papel pacificador da jurisdição se restringe aos litigantes, no intuito de eliminar o conflito
intersubjetivo e fazer cumprir o preceito jurídico pertinente ao respectivo caso que está sendo
levado ao conhecimento do Judiciário em busca de uma solução. Nos processos coletivos a
atividade jurisdicional não está voltada para os sujeitos, titulares dos interesses em litígio, mas
sim, a um “[...] plano transcendente do individual e por vezes até do público e do privado.”406
Adamovich complementa que na forma coletiva de processo, a preocupação com as
pessoas não se dá na dimensão intersubjetiva, mas num plano transcendente em que se cogita não
apenas resolver um conflito. Nesta seara, toda a lógica da jurisdição encontra-se pensada e
voltada para a preservação e efetivação de direitos, e não apenas, para fazer cumprir um preceito
normativo.407
404 GRINOVER, 2007, p. 12. 405 Ibidem, p. 12. 406 ADAMOVICH, op. cit., p. 57. 407 Ibidem, p. 57.
148
Por este motivo, o papel criador do juiz no processo coletivo não se restringe ao mesmo
papel desempenhado pelo magistrado no processo civil tradicional. Nos processos coletivos os
provimentos assumem outra dimensão, tendo em vista a significativa complexidade que
acompanha as demandas e que envolvem ao mesmo tempo um número quantificável ou não de
interessados. Por conseguinte, complementa Adamovich, a jurisdição é elevada a outra dimensão
de reflexão, “[...] que não se haverá de supor obviamente resolvida por textos legais de
elaboração lacunosa, defeituosa ou até canhestra.”408
Neste aspecto, cumpre chamar a atenção para o art. 83 do CDC, o qual dispõe que para a
defesa dos direitos e interesses protegidos por este código são admissíveis todas as espécies de
ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela. Para Medina, por meio deste dispositivo
restou positivado o princípio que deve nortear a atuação jurisdicional de todos os direitos
coletivos, no sentido de garantir que tais direitos, quando tutelados pelo viés das ações coletivas,
efetivamente produzam resultados. O autor também complementa que falar em jurisdição
destituída de instrumentos que permitam realizar materialmente o direito, “[...] implicaria reduzir
significativamente sua importância e razão de ser, especialmente se considerar que, na sociedade
moderna, cada vez maior tem sido a preocupação com a materialização dos direitos.”409
O art. 83 do CDC atribui ao juiz na análise de uma ação coletiva, maior liberdade
interpretativa, regra que vai ao encontro dos entendimentos que apontam para a incapacidade de o
legislador regular em leis todas as situações carentes de tutela oriundas na sociedade. Marinoni
observa que embora já tenha constituído ditado vulgarizado, continua presente em nossos dias a
evidência de que o legislador não pode andar na mesma velocidade da evolução social. Por isso,
“[...] o surgimento de novos fatos sociais dá ao juiz legitimidade para construir novos casos e
para reconstruir o significado dos casos já existentes ou simplesmente para atribuir sentido aos
casos concretos.”410
408 ADAMOVICH, op. cit., p. 58. 409 MEDINA, José Miguel Garcia. Sobre os poderes do juiz na atuação executiva dos direitos coletivos: considerações e perspectivas, à luz do anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (coord.). Direito processual coletivo e o anteprojeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 281. 410 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil. 2. ed., vol. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 97.
149
Assim, na elaboração da legislação voltada para a tutela coletiva o Brasil aplicou uma
técnica que cada vez mais vem sendo utilizada pelos legisladores. Trata-se do chamado conceito
vago ou indeterminado, o qual, segundo Wambier e Wambier possibilita a criação de textos
legais adaptáveis à realidade contemporânea e à velocidade das transformações sociais. Os
autores complementam que diante de um conceito vago, o papel dos juízes se torna muito mais
importante, considerando o fato de que em tais situações encontram-se inseridos em uma lógica
que contraria a idéia que embasava a dogmática jurídica clássica, “[...] no sentido de que a
solução para a grande maioria dos problemas sociais estaria no texto da lei, que deveria, portanto,
ser claro e minucioso e vincular o juiz de forma absoluta e direta.”411
É evidente que esta atividade criativa do juiz não pode ser realizada sem parâmetros. E
neste ponto chegamos àquele que, sem dúvidas, pode ser apontado como o principal aspecto
atinente à jurisdição no âmbito das ações coletivas. Na análise e julgamento de processos com
esta natureza, deve o juiz pautar o exercício jurisdicional como sendo parte integrante de todo o
esforço empregado pelo Estado, para o fim de realização prática dos objetivos apontados na
Constituição da República, ditos essenciais para a efetiva concretização de um Estado
Democrático de Direito (CF, arts. 1º e 3º, entre outros).412
E isto não ocorre, como bem observa Marinoni, porque o juiz deixa de tutelar
exclusivamente os direitos individuais e passa a proteger direitos coletivos, mas, sobretudo, “[...]
porque a jurisdição toma o seu lugar para a efetivação da democracia, que necessita de técnicas
de participação ‘direta’ para poder construir uma sociedade mais justa.” Portanto, segundo o
autor, não basta compreender e conformar a lei de acordo com as normas constitucionais (o que,
aliás, devem fazer todos os juízes diante de qualquer processo a ser julgado), concluindo que o
autor tem um direito que deve ser tutelado. Cabe à jurisdição “[...] dar tutela aos direitos, e não
apenas dizer quais direitos merecem proteção.”413
E dar tutela a um direito, segundo Marinoni, significa outorgar-lhe proteção, não
admitindo a sentença como mecanismo suficiente para o juiz se desincumbir do seu dever de
prestar a tutela jurisdicional. Neste ponto, relembra-se a já citada conclusão de Medina, no
411 WAMBIER, WAMBIER, op. cit., 278. 412 MEDINA, op. cit., p. 282. 413 MARINONI, op. cit., p. 116.
150
sentido de que o art. 83 do CDC deve nortear toda atuação jurisdicional dos direitos coletivos, a
fim de garantir que tais direitos efetivamente produzam resultados, posto que, na sociedade
hodierna, os direitos devem ser materializados.
Portanto, é deste modo que deve se pensada e exercida a função jurisdicional nas ações de
cunho coletivo. Enquanto o modelo tradicional de solução de conflitos visa manter o status quo
dentro de uma visão individualista, o modelo de jurisdição coletiva tem a tarefa de efetivar os
valores constitucionais e principalmente, promover alterações no status quo.414 Neste Sentido
Fiss observa que o clássico modo de solução de controvérsias descreve um universo
sociologicamente empobrecido, isto porque, não concede espaço para a manifestação de
entidades, como internos de um presídio ou pacientes de um hospital, bem como, não reconhece a
existência de grupos que transcendem instituições, a exemplo das minorias raciais e deficientes
mentais, entre tantos outros grupos tão familiares aos processos judiciais contemporâneos. Por
conseguinte, Fiss conclui sua crítica argüindo que “[...] no âmbito dessa história, o mundo é
composto exclusivamente por indivíduos.”415
Esta manifestação evidencia a preocupação do autor norte-americano com as minorias e
com o descompasso que há entre o processo civil tradicional e as novas demandas sociais,
principalmente as dotadas de cunho coletivo. Para Fiss encontra-se obsoleta a idéia de uma
estrutura processual tripartite, representada pelo ícone da Justiça segurando a balança. E a
exemplo dos demais autores já citados, Fiss também é enfático ao afirmar que a função do juiz
“[...] é conferir significado concreto e aplicação aos valores constitucionais.”416
Assim, diante de todo o exposto, é possível concluir que a jurisdição no âmbito processual
coletivo deve ser pautada e condicionada pelo princípio democrático417, no sentido de garantir
viés jurídico adequado para o efetivo acesso das coletividades à justiça e servir de instrumento
para a concretização de direitos fundamentais e de valores constitucionais atinentes às
coletividades.
414 SALLES, op. cit., p. 9. 415 FISS, op. cit., p. 108. 416 Ibidem, p. 36-64. 417 VENTURI, op. cit., p. 99.
151
3.7 PRINCÍPIOS DA TUTELA JURISDICIONAL COLETIVA
Os institutos processuais analisados evidenciam as abissais diferenças que há entre os
mesmos quando inseridos no âmbito do processo civil tradicional, de cunho individual, e quando
inseridos no âmbito processual coletivo.
Além dos institutos, cumpre trazer à colação determinados princípios processuais, os
quais demonstram que os processos coletivos já detêm uma gama de princípios próprios, total ou
parcialmente distintos daqueles aplicados ao direito processual civil clássico, corroborando a tese
de que o Brasil está preparado para a elaboração de uma Teoria Geral dos Processos Coletivos.
Antes, porém, é importante mencionar que a idéia de uma Teoria Geral dos Processos
Coletivos não elimina para esta seara, a incidência dos demais princípios processuais,
notadamente os de origem constitucional, aplicados a todos os ramos do processo e que permitem
a elaboração da Teoria Geral do Processo.418 Ou seja, além de observar princípios que lhes são
peculiares, os processos coletivos também são norteados pelo direito constitucional processual,
entendido como o “[...] conjunto de normas e princípios processuais, de natureza essencialmente
constitucional, estabelecido na Constituição, para tutelar a essência e o espírito do direito
processual.”419 Entre tais princípios destacam-se, entre outros, os princípios do devido processo
legal, do juiz natural, do contraditório, da ampla defesa, da publicidade dos atos processuais e da
motivação das decisões judiciais.
3.7.1 Princípio do acesso à justiça
O tema acesso à justiça já foi conceituado e abordado com maior profundidade no
Capítulo II deste trabalho. Aqui, para evitar prolixidade, cumpre observar que sem prejuízo dos
fatores que atingem qualquer modalidade de processo, a exemplo da sobrecarga dos tribunais, da
418 GRINOVER, 2007, p. 12. 419 ALMEIDA, op. cit., p. 33.
152
morosidade dos processos, do valor elevado das despesas, da burocratização e complicação dos
procedimentos, nos danos de ordem coletiva outros fatores devem ser considerados, os quais
inibem e até impedem o exercício individual do direito de ação.
Por isso, a nova realidade jurídica presente no âmbito dos processos coletivos exigiu que
mecanismos diferenciados e facilitadores do acesso à justiça fossem pensados e efetivados,
rompendo com as concepções e estruturas puramente individualísticas do processo
jurisdicional,420 a exemplo do que ocorre no Brasil com o microssistema processual coletivo.
Entre os fatores de inibição ou impedimento, citados por Cappelletti, está o desinteresse
da pessoa lesada em promover uma ação individual, posto que muitas vezes a fragmentação do
dano sofrido por dezenas, centenas, milhares e até milhões de pessoas, o torna demasiadamente
pequeno para justificar, por exemplo, o custo econômico, psicológico e de perda de tempo
despendidos em uma demanda judicial. Enquanto o dano total pode ser enorme, o fragmento
pode ser irrisório. Outro fator apontado pelo autor é a diferença de poder econômico, de
informação e de organização da parte contrária, que normalmente é maior do que aquele
apresentado pelo indivíduo.421
Estes exemplos evidenciam que o conceito de acesso à justiça sofreu as influências das
transformações sociais ocorridas no século XX, período em que as ações e relacionamentos
saíram da esfera individual para atingir um caráter coletivo, obrigando os juristas a pensar o
acesso para além de um contexto restrito “do indivíduo”, e atingir uma concepção coletiva do
Direito.422
Portanto, o acesso à justiça assume, segundo Grinover, “[...] feição própria e peculiar no
processo coletivo.” A autora conclui que no processo individual o princípio somente diz respeito
ao cidadão, visando a solução de um litígio que se limita ao círculo das pessoas interessadas,
enquanto que no processo coletivo transmuda-se para um princípio de interesse de uma
coletividade, que muitas vezes, nem mesmo pode ser mensurada.423
420 CAPPELLETTI, 1999, p. 59. 421 Ibidem, p. 59. 422 CAPPELLETTI, GARTH, op. cit., p. 9-10. 423 GRINOVER, 2007, p. 12.
153
Por conseguinte, a legitimação extraordinária exerce um papel fundamental no cenário
processual coletivo, considerando as inúmeras práticas ilegais que nem mesmo seriam levadas ao
conhecimento do Judiciário por meio da iniciativa individual, permitindo a perpetuação de
práticas abusivas em detrimento do cidadão lesado, e que na maioria das vezes, se encontra em
explícita desvantagem econômica, política, de informação, de estratégia e de organização perante
empresas e organizações de grande porte.
3.7.2 Princípio da universalidade da jurisdição
De certa forma, este princípio já foi objeto de estudo quando da análise da jurisdição no
âmbito da tutela jurisdicional coletiva, na qual foi mencionado que a universalidade da jurisdição
nos processos coletivos apresenta características peculiares, diferenciadas das encontradas no
processo civil clássico, que, em síntese, se limita a garantir resposta jurisdicional adequada aos
conflitos intersubjetivos levados ao conhecimento do Judiciário.424
Para não repetir tudo o que já foi mencionado, cumpre apenas relembrar a partir de
Grinover, que nos processos coletivos a universalidade está ligada ao acesso à justiça, no sentido
de que tal acesso deva ser estendido a um número cada vez maior de pessoas, o que inclui um
número cada vez maior de causas.425 A dimensão distinta da universalidade da jurisdição nos
processos coletivos é garantir às coletividades a efetiva oportunidade de submeter aos tribunais as
causas que, individualmente, permaneceriam no anonimato, tendo em vista os fatores já
explicitados a partir de Cappelletti.
Portanto, é garantindo tratamento coletivo aos interesses tansindividuais que efetivamente
haverá acesso à justiça e, por conseguinte, um caminho judiciário viável para a universalidade da
jurisdição.426
424 GRINOVER, 2007, p. 12. 425 Ibidem, p. 12. 426 Ibidem, p. 12.
154
3.7.3 Princípio da participação
No processo civil tradicional a possibilidade de participação no processo é garantida às
partes (autor e réu) através do princípio constitucional do contraditório, que nada mais é, segundo
Marinoni, “[..] do que o direito que confere às partes a possibilidade de atuar no processo com o
objetivo de obter uma tutela jurisdicional favorável.”427 Portanto, na lógica do processo civil
tradicional as partes participam “no processo” objetivando influir no convencimento do juiz por
meio dos argumentos e provas produzidos durante a tramitação do feito.
Na lógica processual coletiva, a participação não se faz apenas “no processo”, o que é
possível por meio da intervenção dos interessados na condição de litisconsortes dos autores que
atuam na forma da legitimação extraordinária ou por substituição processual. Nos processos
coletivos os interessados atuam mais “pelo processo”, já que estarão em juízo em quantidade
muitas vezes imensurável, sendo substituídos pelo “representante adequado”, usando aqui as
palavras de Grinover.428
Portanto, o princípio da participação no processo coletivo garante que as coletividades
acessem a justiça de forma efetiva, mesmo que não atuem na condição de autores ou
litisconsortes, e estejam em juízo, tão somente, por intermédio dos legitimados ativos, de acordo
com a respectiva modalidade de ação coletiva proposta.429
3.7.4 Princípio da economia processual
A economia processual nos processos coletivos resulta de uma conclusão de ordem
lógica, considerando que por meio desta modalidade de processo o Judiciário poderá resolver
427 MARINONI, op. cit., p. 270. 428 GRINOVER, 2007, p. 13. 429 Ibidem, p. 12-13.
155
através de uma única ação coletiva que é levada ao seu conhecimento, litígios que demandariam
dezenas, centenas, milhares e até milhões de ações individuais.
No segundo capítulo desta dissertação já restou demonstrado a partir de Mendes, que a
inexistência ou deficiente funcionamento dos processos coletivos enseja uma multiplicação
desnecessária de ações individuais, acarretando agravamento na sobrecarga do Judiciário e
incentivo a produção de decisões padronizadas ou repetitivas, típicas de um trabalho mecânico.430
Gidi também observa que as ações coletivas promovem economia de tempo e dinheiro
para todos os envolvidos no processo. Para o grupo-autor a economia é manifesta em razão do
custo individual que cada autor teria se a ação fosse promovida na forma individual. Da mesma
forma o réu que não precisará enfrentar as despesas de inúmeras ações individuais relacionadas à
mesma controvérsia, enquanto que o Judiciário resolverá por meio de um único processo
coletivo, um ou mais litígios que demandariam grandes quantidades de processos repetitivos.431
Portanto, nos processos coletivos a economia processual apresenta uma intensidade
infinitamente superior àquela encontrada nos processos de ordem individual, onde a conotação se
restringe à questões de ordem prática, como indeferimento da inicial quando ausentes os
requisitos de admissibilidade, denegação de provas inúteis, coibição de incidentes irrelevantes
para a causa, permissão de cumulação de ações conexas, possibilidade de julgamento antecipado
da lide e saneamento do processo antes de ingressar na fase probatória ou de instrução.
3.7.5 Princípio da instrumentalidade das formas
Para falar da instrumentalidade das formas nos processos coletivos, cumpre, por oportuno,
novamente mencionar o art. 83 do CDC, já referido na análise da jurisdição em tais processos.
Tal dispositivo demonstra que a sistemática processual adotada pelo CDC, e aplicada a todas as
ações coletivas, busca conduzir a uma satisfação plena dos direitos coletivos, compreendidos em
sentido lato sensu. Para tanto, segundo análise de Venturi, os legitimados podem se utilizar de 430 MENDES, 2002, p. 33-34.
156
qualquer ação considerada idônea para a consecução do direito pleiteado, assim como os
magistrados estão autorizados a inovar nos provimentos concedidos. Por conseguinte, conclui o
autor, “[...] incentiva o dispositivo analisado a criatividade tanto por parte daqueles que buscam a
tutela como daqueles imbuídos da função de prestá-la em nome do Estado.”432
De forma bastante resumida, a partir de Dinamarco, é possível atribuir ao princípio da
instrumentalidade das formas o seguinte sentido: as formas dos atos processuais constituem
instrumento que está a serviço dos objetivos.433 E é por isso que o CDC, enquanto diploma legal
que apresenta toda a estrutura para o processamento das ações coletivas, oferece ao magistrado a
possibilidade de se utilizar de qualquer provimento que julgar necessário para garantir efetividade
ou materialização dos direitos tutelados.
Este é, portanto, o princípio que deve nortear a atuação do Judiciário na análise e
julgamento de processos que tutelam direitos coletivos. Para Venturi a liberdade interpretativa
atribuída aos juízes foi pensada em prol da efetividade, da proteção mais adequada possível dos
direitos metaindividuais, “[...] mediante o emprego das técnicas e procedimentos mais idôneos
para propiciar a tão almejada efetividade da prestação jurisdicional.”434
O mesmo autor ainda apresenta exemplos a partir de fatos que vêm sendo constatados na
quotidiana prática jurisdicional, concluindo que a instrumentalidade desejada para os processos
coletivos não se coaduna com as inaceitáveis decisões que extinguem ações coletivas sem
apreciar o mérito, fundamentadas em falta de legitimação ativa ou de interesse processual dos
autores, sem que o Judiciário busque (ou ao menos tente) suprir a carência constatada. E
complementa destacando que a assustadora freqüência com a qual o Poder Judiciário nega-se a
analisar um conflito meta-individual, apegando-se ao formalismo das tradicionais lições da
Teoria Geral do Processo Civil, notadamente ao tratamento conferido às condições da ação
idealizadas por Liebman para filtrar o acesso à justiça, revela “[...] um verdadeiro
431 GIDI, 2007, p. 26. 432 VENTURI, op. cit., p. 152-153. 433 DINAMARCO, C. R., op. cit., p. 325. 434 VENTURI, op. cit., p. 154.
157
amesquinhamento da função jurisdicional, vital à sobrevivência do Estado Democrático de
Direito.”435
3.7.6 Princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional coletiva
Seguindo exemplo dos demais princípios já apresentados, o princípio constitucional da
inafastabilidade da prestação jurisdicional apresenta nos processos coletivos contornos
diferenciados daqueles encontrados na esfera processual individual.
O princípio que decorre do art. 5º, inc. XXXV da CF, e que prevê a impossibilidade de
exclusão por meio de lei da apreciação do Poder Judiciário de qualquer lesão ou ameaça a direito,
ocupa nos processos coletivos um sentido mais ativo e de investigação, objetivando a plena
efetivação das tutelas jurisdicionais.436
Segundo Venturi a garantia constitucional da inafastabilidade deve ser reinterpretada a
partir de uma alteração paradigmática, “[..] traduzida na efetividade da tutela preventiva e
repressiva de quaisquer danos provocados a direitos individuais e meta-individuais, através de
todos os instrumentos adequados [...]”. O autor complementa que esta nova interpretação visa
incumbir ao Poder Judiciário não só a garantia de acesso formal à justiça, mas sobretudo, afirmar
os direitos meta-individuais mediante o contínuo manuseio do processo coletivo.437
Portanto, na seara dos processos coletivos, a inafastabilidade da prestação jurisdicional
inclui além da possibilidade de acesso formal, a certeza de que haverá efetividade tanto na
resolução dos conflitos, como na entrega da respectiva tutela preventiva e repressiva, garantindo
de forma plena a necessária materialização dos direitos.
435 O autor fundamenta este entendimento em pesquisa de campo sobre a ação civil pública, coordenada entre 1996 e 1999 por Paulo César Pinheiro Carneiro, por meio da qual constatou que o número de extinções sem julgamento do mérito é praticamente quatro vezes superior ao número de pedidos julgados improcedentes, e que o número significativo de extinções decorreu ou do reconhecimento da ilegitimidade (50%), ou de perda de objeto (27,77%). (VENTURI, op. cit., p. 154). 436 VENTURI, op. cit., p. 136. 437 Ibidem, p. 136.
158
3.8 DA NECESSIDADE DE UMA TEORIA GERAL ESPECÍFICA PARA OS PROCESSOS COLETIVOS
A idéia de que o Brasil encontra-se preparado para avançar na seara processual coletiva e
elaborar uma Teoria Geral dos Processos Coletivos, decorre de duas diretrizes básicas. A
primeira não evidencia uma real necessidade de elaboração de tal teoria, no sentido literal do
termo, mas uma conclusão lógica e que resulta do significativo avanço pelo qual passou nos
últimos anos, o conjunto de normas brasileiras (regras e princípios) atinentes às ações e processos
coletivos.
Parece ser uníssona na doutrina especializada do País, a exemplo da já citada observação
de Zavascki, o entendimento de que todo o cabedal normativo construído no Brasil ao longo de
várias décadas caracteriza no sistema processual um subsistema específico, rico e sofisticado, e
que aparelha o Judiciário na tutela dos conflitos coletivos, oriundos da sociedade moderna.438 Por
conseguinte, facilmente são encontradas afirmações que sustentam a tese de que o País possui na
atualidade, um efetivo direito processual de tutela de conflitos coletivos, o qual caminha de forma
paralela ao tradicional e clássico direito processual de tutela de conflitos interindividuais.439
E é justamente a qualidade do aparato normativo voltado para a tutela dos direitos
coletivos (em sentido lato sensu), que aparece em um primeiro momento enquanto fundamento
para a defesa da tese de que o Brasil já está preparado para elaborar uma Teoria Geral dos
Processos Coletivos. Neste sentido e para maior clareza, é importante colacionar a análise
elaborada por Grinover acerca de tal compreensão:
Vinte anos de experiência de aplicação da Lei da Ação Civil Pública, quinze de Código de Defesa do Consumidor, numerosos estudos doutrinários sobre a matéria, cursos universitários, de graduação e pós-graduação, sobre processos coletivos, inúmeros eventos sobre o tema, tudo autoriza o Brasil a dar um novo rumo à elaboração de uma Teoria Geral dos Processos Coletivos [...].440
438 ZAVASCKI, op. cit., p. 39. 439 ALMEIDA, op. cit., p. 17. 440 GRINOVER, 2007, p. 11.
159
A autora ainda complementa que esta compreensão resulta do entendimento de que o
Brasil já possui um efetivo e novo ramo da ciência processual, “[...] autônomo na medida em que
observa seus próprios princípios e seus institutos fundamentais, distintos dos princípios e
institutos do direito processual individual.”441
Almeida é outro autor que defende a idéia de que o Direito Processual Coletivo do País
constitui um novo ramo do direito processual, sendo que tal entendimento resulta da constatação
de que o direito processual coletivo já detém objeto e método próprios. O que interessa para o
presente trabalho de pesquisa é o direito processual que o autor denomina “direito processual
coletivo comum”, o qual “[...] tem como objeto material a tutela de direito coletivo lesado ou
ameaçado de lesão em decorrência de conflitos coletivos que ocorrem no mundo da concretude -
é a tutela de direito coletivo subjetivo [...]”.442
Juntamente com o avanço que atingiu o conjunto de normas aplicadas às ações e
processos coletivos, e que deverá ser melhorado com a futura aprovação do Código Brasileiro de
Processos Coletivos, há a segunda diretriz que fundamenta a idéia de uma teoria geral específica,
não menos e talvez mais importante do que a primeira.
A segunda concepção resulta da constatação de que a Teoria Geral do Processo aplicada
aos processos tradicionais de natureza cível, elaborada sob a influência individualista e formalista
do Estado de Direito e positivismo jurídico, não se coaduna com os processos coletivos, a ponto
de se tornar obsoleta perante estes, utilizando neste argumento as palavras do norte-americano
Fiss.443 Para corroborar este entendimento, cumpre trazer a colação a explanação de Nery Junior:
[...] os institutos ortodoxos do processo civil não podem se aplicar aos direitos transindividuais, porquanto o processo civil foi idealizado como ciência em meados do século passado, notavelmente influenciado pelos princípios liberais do individualismo que caracterizam as grandes codificações do século XIX.444
441 GRINOVER, 2007, p. 11. 442 O autor esclarece a diferença que há entre o que denomina direito processual coletivo comum e direito processual coletivo especial. Pelo primeiro, o autor entende ser o direito processual que tutela os direitos coletivos subjetivos, em sentido amplo ou lato sensu, o qual é objeto da presente dissertação, e pelo segundo, entende ser o direito processual que tem como objeto material o controle abstrato da constitucionalidade. É, segundo o autor, “[...] a tutela jurisdicional exclusivamente de direito objetivo, mais precisamente de interesse coletivo objetivo legítimo.” (ALMEIDA, op. cit., p. 614). 443 FISS, op. cit., p. 36. 444 NERY JUNIOR, op. cit., p. 114.
160
A análise elaborada neste capítulo acerca das condições da ação e de diversos institutos
processuais evidencia que a elaboração de uma teoria geral específica já pode ser considerada
uma verdadeira necessidade do sistema jurídico nacional, mesmo porque, o Brasil precisa
aprimorar os diversos mecanismos atinentes a esta seara jurisdicional, sempre objetivando
qualificar os aspectos da efetividade dos processos coletivos e da ampliação do acesso à justiça.
Opinam neste sentido, a exemplo da já citada Grinover, autores como Brandão, Almeida e
Santos. Para Brandão, a criação de uma teoria geral própria resulta de uma necessidade urgente,
“[...] que mais do que ser diversa da teoria geral do Processo Civil, deve levar em conta a
especificidade dos instrumentos processuais que constituem seu objeto.” E ainda, complementa o
autor:
Assim, mais adequado dizer que deverá fundar-se a nova teoria numa perspectiva ampliativa, no sentido de construir conceitos abertos para a efetivação dos instrumentos, abandonando a concepção e a postura de conceitos limitativos e rígidos que, por vezes, servem mais para restringir o âmbito de atuação do instrumento, como ocorre, por exemplo com as condições da ação no Processo Civil.445
Conforme já analisado nesta dissertação, no Estado Democrático de Direito o Direito
deixa de ser um mero instrumento de resolução de conflitos e assume um papel de transformador
da realidade social, de onde decorre a necessidade de um efetivo rompimento com muitas
concepções herdadas do Estado liberal-individualista. E é justamente em razão deste
entendimento atribuído ao Direito no Estado Democrático que na defesa de uma Teoria Geral dos
Processos Coletivos, Almeida argumenta:
Somente uma nova postura interpretativa com uma teoria geral própria para o direito processual coletivo poderá fazer com que o direito processual cumpra a sua verdadeira função social como instrumento de realização de justiça e de transformação positiva da realidade social.446
E ainda reitera o mesmo autor:
[...] de nada adianta a criação de instrumentos poderosos, como as ações coletivas e a própria coisa julgada coletiva, se o instrumento formal existente de viabilização de uma e de outra não é capaz de dar efetividade a esses novos institutos, seja pela falta de princípios ou de regras interpretativas específicas, seja pela inexistência de estudos que
445 BRANDÃO, op. cit., p. 302-303. 446 ALMEIDA, op. cit., p. 29.
161
desenvolvam a concepção de tutela jurisdicional coletiva por intermédio de método e objeto próprios.447
Para Santos o fato de saber que o Direito Processual Civil foi concebido para promover a
defesa de direitos individuais, faz pensar as bases teóricas e principiológicas da tutela
jurisdicional coletiva, no sentido de que há a necessidade de elaboração de uma teoria processual
própria para as ações coletivas, adequada ao novo instrumental processual e às características dos
novos direitos tutelados,
[...] buscando, assim, contribuir para o desenvolvimento de um pensamento jurídico processual coletivo e alertar para a necessidade de que sejam fincadas, desde já, as bases para uma futura elaboração científica de um Direito Processual Coletivo, ramo autônomo da Ciência do Direito Processual que se dedicará ao estudo da tutela jurisdicional dos direitos coletivamente considerados.448
Contudo, mesmo resultando de argumentos que demonstram tratar-se de uma verdadeira
necessidade para o sistema processual brasileiro, a idéia de elaboração de uma teoria geral
própria para os processos coletivos não é uníssona na doutrina especializada do País. Neste
sentido, ao tempo em que reconhece os consideráveis avanços produzidos na prática forense e
nos campos legislativo e doutrinário, e defende a elaboração de um Código Brasileiro específico
para os Processos Coletivos, com o propósito de acabar com os problemas que ainda persistem na
prestação da tutela jurisdicional coletiva, Leonel discorda das posições que consideram os
processos coletivos enquanto ramo distinto do direito processual. Em seus argumentos, pondera o
autor:
Aceitamos a ponderação de que a tutela jurisdicional dos interesses metaindividuais, de fato, apresenta peculiaridades que devem contar com regulamentação própria. Mas as vigas mestras para a compreensão do processo civil (seja ele individual ou coletivo) encontram-se assentadas na doutrina tradicional, bem como no nosso Código de Processo Civil.449
Leonel também conclui que o processo coletivo permite a adequação dos conceitos e
institutos do processo civil clássico, no sentido de que o trabalho já elaborado deve ser
447 ALMEIDA, op. cit., p. 29. 448 SANTOS, Christianine Chaves. Ações coletivas & coisa julgada. Curitiba: Juruá, 2006, p. 20-21. 449 LEONEL, op. cit., p. 144.
162
aproveitado e modernizado, “[...] adaptando-se às exigências da atualidade e dos conflitos
coletivos.”450
Venturi é outro autor que depõe contra uma teoria geral específica, argumentando que o
ideal é a permanência de uma ótica unitária do processo civil, desde que revista para corrigir as
distorções apresentadas pela teoria clássica, concluindo que as pretensões de autonomização do
Direito Processual Coletivo parece soar descontextualizada.451
No entanto, parece ser contraditória a opinião do mesmo autor quando deixa consignado
que muitas das perplexidades encontradas na prestação jurisdicional coletiva, resultam da
resistência em se considerar o modelo processual coletivo diferente do processo civil clássico e
da “insistência estéril” de tentar transpor ao sistema de proteção meta-individuais “[...] as
mesmas premissas nas quais se funda o sistema processual de tutela dos direitos individuais.”
Ainda observa que questões como a representatividade do autor, a legitimidade ativa, o interesse
de agir e a indisponibilidade do uso da tutela coletiva, demonstram a disparidade existente entre
os princípios da tutela coletiva e os critérios de aferição das demandas coletivas, viciados pelo
formalismo resultante da cultura enraizada nos critérios de aferição das ações individuais. E por
fim, ressalta que enquanto se tratar o processo coletivo a partir dos mesmos paradigmas que
regem o processo de cunho individual, “[...] não se conseguirá extrair do sistema de tutela
coletiva seu real sentido e alcance, tornando inviável a própria convivência entre as ações
individuais e coletivas.”452
Com o devido respeito que merecem as opiniões ora transcritas, não nos parece ser este o
melhor entendimento que deve receber a matéria, isto porque, conforme argumentos já
esboçados, os institutos do processo civil clássico mostram-se incompatíveis para tutelar qualquer
outra modalidade de direito que não os de natureza intersubjetiva. Trata-se, portanto, de um
equívoco apresentando por tais doutrinadores, equívoco que, segundo Brandão “[...] se espraia
para a interpretação dos modernos institutos colocados à disposição dos operadores jurídicos
quando se faz necessário interpretar os dispositivos legais que os consagram.”453
450 LEONEL, op. cit., p. 145. 451 VENTURI, op. cit., p. 36. 452 Ibidem, p. 20-24. 453 BRANDÃO, op. cit., p. 225.
163
Neste mesmo sentido, ao tempo em que chama a atenção para a notória inaptidão do
processo civil clássico quando aplicado na resolução de conflitos coletivos, Santos observa que a
posição inicialmente assumida pela doutrina, no sentido de promover adaptações e corrigir
distorções nos conceitos, princípios e técnicas seculares do processo civil, visando aplicá-lo em
âmbito processual coletivo, resulta de dois aspectos: o primeiro da constatação de que os
primeiros estudiosos a se depararem com os problemas da tutela jurisdicional coletiva, foram
justamente, “[...] os cientistas do Direito Processual Civil, onde ser natural que pretendessem
resolver esses problemas a partir das estruturas do processo civil [...]”; e o segundo, da concepção
de que o Direito Processual Civil seria dotado de universalidade, estando apto a fornecer “[...]
solução para as lides oriundas das mais diversas áreas do direito material.”454
Portanto, não restam dúvidas de que há uma efetiva necessidade de se ter no Brasil uma
Teoria Geral dos Processos Coletivos, visto que as fórmulas e padrões herdados do velho e
individualista processo civil não possibilitam ao processo coletivo desempenhar o papel que lhe é
cabível em um cenário de Estado Democrático de Direito, o qual congrega entre outros valores
primordiais, a garantia de acesso coletivo à justiça e de efetivação ou concretização dos direitos,
culminando na transformação da realidade social.
Uma teoria geral específica servirá de base e estratégia para promover a difusão do estudo
e debate dos instrumentos destinados à tutela dos interesses e direitos coletivos, que nem mesmo
aparece na maioria dos currículos universitários, potencializando, por conseguinte, o uso das
ações coletivas e a qualificação do acesso à justiça e da prestação jurisdicional nesta seara, que
apesar dos avanços, ainda apresenta dificuldades e insuficiências.
Com a difusão do conhecimento de tal teoria, o Brasil poderá diminuir o número de
práticas ilegais que hodiernamente ocorrem na sociedade e que nem mesmo são levadas ao
conhecimento do Judiciário por meio da iniciativa individual, tendo em vista os diversos fatores
que inibem e até mesmo impedem o consagrado direito de ação, evidenciando um afastamento do
Poder Judiciário dos pressupostos que norteiam uma democracia.
454 SANTOS, C. C, op. cit., p. 220.
CONCLUSÃO
A cultura jurídica ocidental pensada para vigorar a partir do advento do Estado Moderno
nos séculos XVII e XVIII, apresenta características que acompanham o pensamento jurídico até
os dias atuais, entre elas, o individualismo do ser humano e a preocupação voltada para as
questões de ordem privada. Significa dizer que as normas produzidas pelo Estado enquanto
detentor do monopólio de elaboração das mesmas, foram projetadas para vigorar em sociedades
cujos conflitos teriam natureza única, de cunho individualista.
E foi com base nesta perspectiva que o Direito Processual Civil brasileiro foi organizado
para regular a atividade jurisdicional do Estado. O próprio Código de Processo Civil é um
exemplo que evidencia tal conclusão, por ser um instrumento que não apresenta mecanismos para
resolver outros litígios, além daqueles com natureza individual. O instituto do litisconsórcio ativo
que poderia ser apresentado na condição de exceção, não passa de um meio de cumular demandas
individuais e, ainda assim, podendo ser limitado quanto ao número de litisconsortes para não
comprometer a defesa do réu e a rápida solução do litígio.
Ocorre que as transformações sociais ocorridas na sociedade, principalmente no século
XX, originárias do agigantamento industrial, dos avanços tecnológico e científico, da
globalização da economia e das massificações de produtos, serviços e dos meios de comunicação,
entre outros fatores, deram origem aos chamados “conflitos de massa” e que envolvem de forma
concomitante dezenas, centenas, milhares e, por vezes, até milhões de pessoas.
Por conseguinte, o Direito Processual Civil organizado para vigorar em ambiente de
conflitos individuais, não apresenta disposições capazes de garantir a tutela jurisdicional do
165
Estado quando os conflitos que são levados ao seu conhecimento têm origem coletiva (com
conotação lato sensu), tanto que o surgimento destas novas categorias de direitos levou o próprio
Estado a criar um conjunto de regras para possibilitar a prestação jurisdicional em ações de
origem coletiva, a exemplo da Lei da Ação Civil Pública e do Código de Defesa do Consumidor.
Todo o conjunto normativo inserido no sistema jurídico nacional, constitui o que se
convencionou chamar micro ou subsistema processual coletivo, especificamente voltado para os
conflitos coletivos. As disposições de tal sistema conjugadas com a atuação forense, com os
destacados estudos doutrinários e com as sérias pesquisas universitárias realizadas no Brasil nas
últimas décadas, deixa o País em lugar de destaque no cenário das ações e processos coletivos, a
ponto de podermos afirmar que os elementos já produzidos são suficientes para a elaboração de
uma Teoria Geral dos Processos Coletivos.
Sem prejuízo deste fundamento, a necessidade de elaboração de uma teoria geral
específica também resulta (e talvez com maior intensidade) da notória e abissal disparidade que
há entre determinados princípios fundamentais e os institutos do processo civil clássico, de cunho
individual, e os princípios e institutos dos processos coletivos.
Quanto aos institutos, a análise comparativa realizada no terceiro capítulos desta
dissertação, evidencia que nem mesmo as condições da ação do processo civil tradicional podem
ser aplicadas sem ressalvas em âmbito processual coletivo. Enquanto nesta modalidade de
processo o interesse de agir encontra-se na relevância social do direito tutelado, a legitimidade
ativa é conferida em regime extraordinário ou de substituição processual, e a possibilidade
jurídica do pedido assume uma feição universal, visando disseminar o uso das ações coletivas,
agilizar a prestação jurisdicional, facilitar o acesso à justiça e promover inclusão social; na
tradicional Teoria Geral do Processo Civil as condições da ação apresentam-se de forma fechada
e rígida, estando o magistrado autorizado a rechaçar de imediato o exercício do direito de ação e
de acesso formal à justiça, caso inexista a evidenciada necessidade de intervenção jurisdicional,
não houver comunhão entre o autor e o titular do direito lesado ou ameaçado, ou o pedido não
encontre previsão abstrata no ordenamento jurídico.
Os demais institutos analisados e que compreendem a litispendência, conexão,
continência, extensão da coisa julgada, liquidação e cumprimento da sentença, demonstram que
166
há uma evidente perda de sentido quando são extraídos do processo civil clássico e aplicados em
âmbito processual coletivo. A aplicação pura e simples é motivo de intermináveis discussões
doutrinárias, mesmo porque, determinadas situações práticas são dignas de embaraços e
verdadeira perplexidade, a exemplo dos absurdos entendimentos de apontam para a inexistência
de litispendência entre ações coletivas entre si, propostas por diferentes entidades legitimadas,
mas com idênticos pedidos e causa de pedir.
A pesquisa doutrinária realizada nesta dissertação constatou que é elevado o percentual de
ações coletivas que nem mesmo tem o mérito analisado pelo Judiciário, isto porque, os problemas
de ordem processual atraem de tal modo a atenção dos sujeitos do processo, que termina por
desviar o foco daquilo que realmente é importante, evidenciando um notório prejuízo ao direito
que assegura o acesso material à justiça.
O processo coletivo está preso às normas e institutos de uma teoria elaborada sob os
fundamentos individualistas da cultura jurídica moderna, arquitetada para resolver litígios
intersubjetivos, comprometendo, até mesmo, a compreensão de que as ações coletivas têm
natureza constitucional e foram pensadas para garantir a defesa e concretização de direitos
fundamentais, projetados em favor das coletividades.
Com as ações e processos coletivos sendo estudados a partir de uma teoria própria haverá
uma inegável difusão dos mesmos entre aqueles que se dedicam ao aprimoramento e aplicação do
Direito, efetivando em maior número a utilização de seus mecanismos e qualificando os objetivos
almejados com esta forma de prestação jurisdicional, e que incluem a própria facilitação do
acesso à justiça, a promoção de economia processual, a educação social e, principalmente, a
concretização dos direitos.
O rompimento com as concepções herdadas do Estado liberal-individualista é primordial
no Estado Democrático de Direito, cenário em que o processo deve abandonar a concepção de
mero instrumento de resolução de conflitos e assumir o papel de transformador da realidade
social, mesmo porque, apresenta-se enquanto mecanismo a disposição do Estado para a
efetivação dos objetivos fundamentais traçados para o País na Constituição da República.
167
As dificuldades e insuficiências hoje encontradas no processamento das ações coletivas
poderão se superadas com o incremento dos estudos e discussões nos meios universitários, os
quais ainda estudam uma Teoria Geral do Processo Civil que reproduz os conceitos da doutrina
liberal-individualista e que não contempla as diferenças entre os institutos, conceitos e princípios
especificamente aplicados aos processos coletivos.
Portanto, uma Teoria Geral dos Processos Coletivos é fator determinante para a ampliação
do conhecimento e, por conseqüência, para a efetivação dos direitos coletivos e transformação do
status quo¸ função primordial dos processos coletivos no Estado Democrático de Direito. Uma
teoria que apresente institutos menos rígidos do que aqueles encontrados na teoria do processo
civil tradicional, mesmo porque, torna-se necessária neste momento da história a contínua
abertura do sistema jurídico nacional, no qual deve prevalecer uma mínima intervenção
legislativa e o Judiciário deve pautar-se pela aplicação dos princípios e normas constitucionais.
REFERÊNCIAS
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