universidade estado rio janeiro centro faculdade de...

134
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Faculdade de Serviço Social Clarissa Fernandes do Rêgo Barros As ações afirmativas na UERJ: trajetórias sociais e perspectivas dos estudantes cotistas no desafio do acesso à universidade Rio de Janeiro 2009

Upload: phunganh

Post on 25-Nov-2018

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Faculdade de Serviço Social

Clarissa Fernandes do Rêgo Barros

As ações afirmativas na UERJ: trajetórias sociais e perspectivas dos estudantes cotistas no desafio do acesso à universidade

Rio de Janeiro 2009

Page 2: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

Clarissa Fernandes do Rêgo Barros

As ações afirmativas na UERJ: trajetórias sociais e perspectivas dos estudantes cotistas no desafio do acesso à universidade

Dissertação de mestrado apresentada como

requisito para obtenção de título de Mestre,

ao Programa de Pós-Graduação em Serviço

Social da Universidade do Estado do Rio de

Janeiro. Área de Concentração: Trabalho e

Política Social

Orientadora: Profa. Dra. Alba Tereza Barroso de Castro

Rio de Janeiro 2009

Page 3: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/ CCS/A

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação. _____________________________________ ___________________________ Assinatura Data

B277 Barros, Clarissa Fernandes Rêgo. As ações afirmativas na UERJ: trajetórias sociais e perspectivas dos

estudantes cotistas no desafio do acesso à universidade/ Clarissa Fernandes Rêgo Barros. - 2009.

135 f. Orientadora: Alba Tereza Barroso de Castro. Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro,

Faculdade de Serviço Social. Bibliografia. 1. Serviço social - Teses. 2. Ensino superior – Aspectos sociais –

Rio de Janeiro – Teses. 3. Negros - Política governamental – Rio de Janeiro – Teses. 4. Programas de ação afirmativa – Rio de Janeiro - Teses. I. Castro, Alba Tereza Barroso de. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Serviço Social. III. Título.

CDU 36(815.3)

Page 4: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

Clarissa Fernandes do Rêgo Barros

As ações afirmativas na UERJ: trajetórias sociais e perspectivas dos estudantes cotistas no desafio do acesso à universidade.

Dissertação apresentada, como requisito

parcial para obtenção do título de Mestre, ao

Programa de Pós-Graduação em Serviço

Social, da Universidade do Estado do Rio de

Janeiro. Área de concentração: Trabalho e

Política Social.

Aprovada em 18 de junho de 2009. Banca Examinadora:

____________________________________________________________________________

Profa. Dra. Alba Tereza Barroso de Castro (Orientadora) Faculdade de Serviço Social da UERJ

______________________________________

Profa. Dra. Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço social da UERJ

_________________________________________________ Profa. Dra. Elielma Ayres Machado Faculdade de Pedagogia da UERJ

_________________________________________________ Profa. Dra. Andréia Clepp Salvador Faculdade de Serviço Social da PUC-Rio

Rio de Janeiro 2009

Page 5: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer à Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e em

particular, à Faculdade de Serviço Social, pela oportunidade de realizar esta

pesquisa. Agradeço também à FAPERJ por ter financia do este projeto com a bolsa

de pesquisa durante todo o mestrado, contribuindo também junto à UERJ para que

este projeto fosse apresentado em congressos e seminários.

Em especial, gostaria de demonstrar o meu carinho para toda a equipe de

funcionários da pós-graduação da Faculdade de Serviço Social, que se mostraram

sempre dispostos a me auxiliar em qualquer coisa que eu precisasse, realizando seu

trabalho com muita simpatia, educação e alegria. Muito obrigada Mariana e Rosiléia.

Um agradecimento especial para minha querida mestra e orientadora: a

professora Dra. Alba Tereza Barroso de Castro, que desde o dia em que liguei a

primeira vez para ela, sem mesmo nos conhecermos pessoalmente, abraçou este

projeto com todo carinho e responsabilidade de uma grande educadora, engajada

não só com uma pesquisa, mas com um projeto social.

Aos queridos amigos, que estiveram sempre comigo. Um obrigado especial

para: Juarez, grande amigo desde a graduação, que m e auxiliou na transcrição das

entrevistas, e Tainá grande companheira ao longo do Mestrado. Ao meu querido

sogro, Geraldo do Santos Sarti, pelo apoio e correções. Minhas queridas sogras:

Mirian mãe e Mirian vó, obrigada pelo afeto. Aos meus pais: Ana Claúdia e

Fernando, que mesmo de longe mostraram o apoio necessário para que eu fosse

feliz em qualquer caminho que escolhesse. A minha irmã Cynthia, que me inspira

com sua alegria.

E finalmente, ao amor verdadeiro e grande companheiro: meu marido

Therence Paoliello de Sarti. Nos momentos mais difíceis, mais alegres e sempre na

jornada da vida.

A todos vocês: muito obrigada!

Clarissa F. do Rêgo Barros

Page 6: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

RESUMO

BARROS, Clarissa Fernandes Rêgo. As ações afirmativas na UERJ: trajetórias sociais e perspectivas dos estudantes cotistas no desafio do acesso à universidade. , 2009. 114 f. Dissertação (Mestrado em Política Social) – Faculdade de Serviço Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

A adoção da política de ações afirmativas no Brasil abriu um extenso debate sobre a ausência de investimentos do Estado em políticas universais, as desigualdades raciais, e a própria desmistificação da democracia social como uma hipótese para a racialização das políticas sociais. Os pressupostos deste debate são abordados neste trabalho através da experiência da UERJ, uma das universidades pioneiras a adotar o sistema de cotas no vestibular. Buscando problematizar estes eixos de discussão, e aprofundar questões como: raça, o acesso à universidade e o desafio à permanência, foram realizadas entrevistas com os estudantes cotistas da UERJ. Estas entrevistas descrevem através das trajetórias sociais destes jovens, o perfil das ações afirmativas na universidade, a importância desta política como um direito para o ingresso ao ensino superior, e a dificuldade de permanecer e concluir a graduação.

Palavras chaves: Política de ação afirmativa. Universidade. Educação. Raça.

Page 7: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

ABSTRACT

Since de positive discrimination was adopted in Brazil, the universities won a diferent way to give the access to students. The first university to experiment this politic was UERJ that with the law n o. 4151/2004 reserved 20% of it vacancy in vestibular to black people, 20% for public students and 5% for ethnics minorities and deficient. For the society and the students, the positive discrimination brings a lot of changes related to demystification of social democracy, absence of investments became from State politics and racial unequalits. With this argument, it will be exposed in this dissertation the UERJ case, where w as done a research with cotist students. Using interviews, these students will talk about their life problems before entering in the university and the importance of positive discrimination to get a opportunity to achieve and remain in the university.

Key words: Positive discrimination. University. Education. Race.

Page 8: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

LISTA DE GRÁFICOS E TABELAS

Tabela 2 - Indicadores do ensino superior por categoria administrativa (pública e privada). Estado do Rio de Janeiro.......................................63

Tabela 3 -Taxa de freqüência líquida no ensino superior (18 a 24 anos), segundo cor/raça (1992 a 2005).............................................................67

Tabela 1 -Total de universidades públicas por regiões...........................................72

Tabela 2- Total de universidades com ações afirmativas no Brasil........................72

Tabela 3- Total de universidades com ações afirmativas por enquadramento Público....................................................................................................72

Tabela 1- Número de inscritos por vaga................................................................ 81

Tabela 2- Número de matriculados por tipo de vaga..............................................82

Page 9: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

LISTA DE SIGLAS

ALERJ Assembléia legislativa do Rio de Janeiro

BIRD Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento

C.A Ciclo de Alfabetização

CEPAL Comissão Econômica para a América Latina e Caribe

DPEI Departamento de Projetos Especiais e Inovações

DSEA Departamento de Seleção Acadêmica

EUA Estados Unidos da América

FAPERJ Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro

FHC Fernando Henrique Cardoso

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas

NIESC Núcleo de Informações e Estudos de Conjuntura

ONG Organização Não Governamental

MEC Ministério da Educação

PL Projeto Legislativo

PNAD Pesquisa Nacional Domiciliar

Page 10: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

PNPIR Política Nacional de Promoção de Igualdade Racial

PROINICIAR Programa de Iniciação Acadêmica

PROUNI Programa Universidade para Todos

PUC-RIO Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

PUC-SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PVNC Pré-vestibular para Negros e Carentes

SADE Sistema de Acompanhamento e Desenvolvimento

SR-1 Sub-Reitoria de Graduação

SEPPIR Secretaria Especial de Promoção de Igualdade Racial

UFBA Universidade Federal da Bahia

UENF Universidade Estadual do Norte Fluminense

UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro

UNESCO Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura.

Page 11: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..................................................................................................12 1 TEORIA E HISTÓRIA SOBRE A QUESTÃO RACIAL NO BRASIL................23

1.1 O sentido da escravidão e a construção das estruturas sociais no

Brasil.................................................................................................................25

1.2 Abolição e Pós-Abolição: desigualdades raciais e noções de

Liberdade..........................................................................................................27

1.3 O histórico das ideologias raciais e sua aplicabilidade nas relações sociais brasileiras.............................................................................................35

1.4 Raças e política de cotas no Brasil.................................................................46

2 O HISTÓRICO DA ADOÇÃO DAS POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA

NO BRASIL.. .....................................................................................................55

2.1 Introdução: fronteiras conceituais. .................................................................56

2.2 O dilema da educação e das desigualdades raciais no Brasil.....................62

2.3 As ações afirmativas no Brasil........................................................................68

3 A POLÍTICA DE COTAS NA UERJ...................................................................74

3.1 O histórico da adoção das políticas de cotas na UERJ................................75

3.2 Um balanço dos cinco anos (2003/2007) da política de cotas na

UERJ: análise de dados referentes ao acesso e matricula dos

estudantes cotistas..........................................................................................79

4 TRAJETÓRIAS SOCIAIS: A IMPORTÂNCIA DA POLÍTICA DE COTAS

PARA O ACESSO A UNIVERSIDADE..............................................................87

4.1 Primeiros passos: o inicio da pesquisa e a oficina de cotas.......................88

4.2 Metodologia......................................................................................................90

4.3 Conhecendo o perfil dos entrevistados.........................................................92

4.4 Falas em debate: a análise da política de cotas na UERJ segundo

os estudantes cotistas.....................................................................................96

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................119

REFERÊNCIAS................................................................................................124

ANEXO ............................................................................................................130

Page 12: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 12 -

INTRODUÇÃO:

O tipo sutil e disfarçado, contudo não ineficaz, de discriminação racial no Brasil parece estar intimamente

associado (e em certo sentido é conseqüência) ao baixo nível de mobilização política dos negros brasileiros.

Uma ideologia que nega a discriminação baseada na raça será difícil de ser atacada, mas por este mesmo fato,

não pode ser utilizada para mobilizar os membros do grupo dominante.

Carlos Hasenbalg

O debate em torno das políticas de ações afirmativas nas universidades

brasileiras teve inicio, a partir de 2001, durante o governo FHC, como forma de, em

tese, promover a equidade, debatendo a questão racial como responsável pela falta

de ascensão e mobilidade social dos negros e outras minorias étnicas. Com a

adoção de tais políticas, as cotas passaram a ter grande repercussão no campo da

educação, como um meio de acesso ao ensino superior, visto que, com a exigência

de maior qualificação para o alcance de melhores postos de trabalho no mercado, a

educação passa a ser o requisito básico na disputa por bons salários, e

consequentemente uma oportunidade de mobilidade social.

Nos anos de 1990, anteriormente à adoção das ações afirmativas em 2001,

na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, os pré-vestibulares comunitários

surgiram como uma forma de se conseguir a democratização1 do acesso às

universidades, objetivando vagas no ensino superior através da isenção da taxa de

inscrição no vestibular, e também de bolsas reservadas para estudantes negros e

pobres provenientes destes cursos. As universidades pioneiras a adotarem este tipo

de cotas foram a PUC-SP, a UFBA e a PUC-RIO.

Em 1993 o PVNC – Pré-Vestibular para Negros e Carentes assume uma

postura reivindicativa em relação ao sistema educacional brasileiro, denunciando a

deficiência do ensino público, e culpabilizando as desigualdades sociais a partir da

inoperância do Estado em garantir uma educação de qualidade para a maioria de

negros e pobres que se encontravam na escola pública. Para o PVNC esta seria

uma das maiores razões para a ausência de negros na universidade.

Com a repercussão dos pré-vestibulares comunitários, e a sua atuação

enquanto movimento social a favor das ações afirmativas, o debate das reparações

históricas junto à importância da democratização do acesso ao ensino superior

1 Democratização: Conceito utilizado para caracterizar o alcance aos direitos sociais, tendo como base a

igualdade jurídica e a cidadania como um direito comum a todos.

Page 13: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 13 -

ganham repercussão na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, e em

2002, durante o governo Garotinho, são adotadas cotas em todas as universidades

do Estado através da Lei 30766/20002, que reservava 50% das vagas da

universidade para estudantes de escolas públicas provenientes do SADE – Sistema

de Acompanhamento de Desenvolvimento do Estudante do Ensino Médio; e 40%

das vagas para negros e pardos auto-declarados. Os estudantes auto-declarados

negros poderiam concorrer à reserva de vagas do SADE e também a reserva de

vagas específica para negros, contando com uma porcentagem de 90%, além da

prescrita por lei.

As cotas nas universidades determinaram uma série de reivindicações por

parte dos estudantes não-cotistas que ficaram de fora do vestibular de 2003 em

função da reserva de vagas. Nos setores jurídicos inúmeros processos foram

abertos contra a UERJ, e na sociedade o debate assumiu um caráter público onde a

discussão questionava a qualidade de ensino dos alunos cotistas e a possibilidade

de rebaixamento da excelência acadêmica, a dificuldade de se auto-declarar negro

no Brasil, as notas baixas dos cotistas no vestibular e, sobretudo, a obrigação do

Estado em adotar políticas públicas de caráter universal e não compensatórias para

grupos étnico-sociais particulares, visto que a educação é um problema de todos.

Em 2004, a “nova lei” 4151/2003 é adotada para o vestibular de 2004 na

UERJ, onde novos desafios são colocados para a universidade. A reserva de vagas

foi reduzida de 50% para 45%, divididas em 20% para estudantes de escolas

públicas, 20% para negros e 5% para indígenas e deficientes3. Além de regular o

percentual de vagas, a nova lei garantiu um critério comum a todas as reservas de

vagas: a carência. Todos os estudantes interessados em concorrer ao vestibular

pelas cotas devem comprovar uma renda per capita por pessoa de R$300,00

mensais4. Em função do recorte sócio-econômico, a universidade em parceria com o

Estado se comprometeria a garantir a permanência destes estudantes através de

uma bolsa de estudos cedida no primeiro ano de graduação. (MACHADO, 2004) 5

2 A lei no 30766/2002 regulamentou duas outras leis aprovadas pela Alerj: a lei no 3524/2000 que reservava cotas

para egressos de escolas públicas, e a lei no 3708/2001 que reservava as vagas para negros e pardos. 3 A lei no 5074/2007 garantiu a reserva de vagas para filhos de bombeiros, policiais militares, inspetores de seguranças e administração penitenciária, mortos em combate ou incapacitados em razão de serviço. 4 Atualmente o valor da renda per capita exigida é de R$630,00 por pessoa da família. 5 MACHADO, Elielma Ayres. Desigualdades raciais e ensino superior: um estudo sobre as leis de reserva de vagas para egressos de escolas públicas e cotas para negros pardos e carentes na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2000-2004). Tese de doutorado. UFRJ, dezembro, 2004.

Page 14: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 14 -

Sob estes aspectos, o debate das cotas assumiu novas discussões além das

já expostas desde 2003. A racialização do debate em relação às cotas para negros

engendrou questões como a diversidade cultural existente no Brasil, e o

desvelamento do racismo cotidiano invisível aos olhos do discurso harmônico e

híbrido das relações raciais do país.

Apesar da falta de investimentos por parte do governo federal, a educação

ganhou uma atenção diferenciada, onde a importância do acesso ao ensino superior

determinou a criação de projetos pelo governo em associação com as universidades

particulares como o PROUNI6. Paralelo a isso, as instituições públicas acadêmicas

alegando a autonomia universitária, adotaram um sistema de cotas multifacetado.

Estas questões convergem para um tema comum: a importância das cotas

para o acesso ao ensino superior. Quais são as expectativas e os benefícios

trazidos pela política de cotas ao estudante egresso pela reserva de vagas? Que

tipo de cota é mais privilegiada pelo aluno: a cota para estudantes de escolas

públicas ou as cotas para negros? Os critérios socioeconômicos seriam

responsáveis pela desracialização das políticas de cotas?

Destas questões fundamentais referentes à trajetória social e ao perfil do

estudante cotista da UERJ, se desdobra um outro tema descrito pelo debate da

permanência do estudante cotista na universidade. Após o alcance da oportunidade

e do direito de chegar ao ensino superior, estes estudantes passam a sofrer com

dificuldades cotidianas relacionadas à alimentação, transporte, alojamento, xerox,

relações sociais, e com a própria infra-estrutura da universidade, o que suscita

problemas que convergem a uma questão comum: a ausência de recursos

financeiros do aluno cotista para se manter na universidade. Mesmo com uma bolsa

com o valor de R$190,00, cedida pelo Proiniciar7, um programa responsável pela

iniciação científica dos alunos de graduação da UERJ, os estudantes cotistas

reclamam do baixo valor da bolsa - auxilio para custear os gastos com a

universidade. Esta realidade denuncia o despreparo da universidade em receber um

novo perfil de estudantes, que chegam com novas demandas e exigências

6 PROUNI: Programa Universidade Para Todos, criado pelo presidente Lula durante a gestão Tarso Genro no

Ministério da Educação (2005). O programa garante cotas e bolsas em universidades particulares de todo o país para negros pobres declarados, deficientes físicos, indígenas entre outros grupos sócio culturais. 7 Proiniciar: Programa de iniciação acadêmica da UERJ. Este setor é responsável pelo repasse das bolsas para

os alunos de graduação.

Page 15: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 15 -

fundamentais que contrariam o perfil da maioria dos estudantes no ensino superior

brasileiro.

Para RÊGO BARROS (2007, p.75)8 o pioneirismo da UERJ em políticas que

reservam vagas para negros trouxe não só a transformação do perfil da própria

universidade como também trouxe novos temas e trajetórias a serem discutidas,

além de ter distribuído uniformemente este alunado entre os diferentes cursos de

graduação na universidade. Essa é a importância das cotas raciais, a possibilidade

de ampliar a diversidade na universidade, modificando os atores sociais e os limites

espaciais construídos historicamente.

A incongruência entre a aplicabilidade das cotas e os programas direcionados

à permanência dos estudantes na universidade suscitam reflexões em torno de

como os estudantes driblam as dificuldades financeiras e cotidianas para conseguir

concluir a graduação. Como a trajetória social dos estudantes cotistas interfere em

novas ações para a universidade? Quais seriam as demandas e estratégias dos

alunos cotistas para permanecer na universidade? Será que o estudante cotista

sofre algum tipo de preconceito ou estigma na universidade de forma a interferir no

seu desenvolvimento acadêmico?Que sugestões os cotistas propõem para melhoria

da infra-estrutura da universidade?

A resposta de questões tão específicas referentes ao cotidiano acadêmico

dos estudantes cotistas da UERJ, foram encaminhadas com a participação no grupo

de pesquisa da Faculdade de Serviço Social da UERJ: “Política de Assistência ao

Estudante Cotista da UERJ”9. Durante dois anos foram realizadas entrevistas e

debates com os alunos cotistas na UERJ, a partir de temas sugeridos pelos próprios

estudantes, onde se discutiam a informação sobre as cotas, a importância das cotas,

a trajetória social e escolar destes alunos, a participação nos pré-vestibulares

comunitários, e os problemas diários encontrados na universidade. Por meio de

relatos e trocas de experiências, os cotistas descreviam as estratégias e sugestões

viabilizadas por eles para permanecer na universidade.

Como o objetivo do grupo de pesquisa é estabelecer uma roda de escuta com

estes estudantes, foi solicitado aos alunos o preenchimento de uma ficha pessoal

8 RÊGO BARROS, Clarissa Fernandes do. Raças, etnias e políticas educacionais: reflexões sobre a inclusão

através da reserva de vagas para negros na UERJ. IN: Revista Espaço Pedagógico. Políticas Educacionais e cidadania. Vol. 14. número 2.Editora UPF: Passo Fundo. Jul./Dez 2007. pp. 66/77. 9 Este grupo de pesquisa é coordenado pela Profa. Alba Tereza Barroso de Castro professora da Faculdade de Serviço social da UERJ.

Page 16: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 16 -

com os dados socioeconômico de cada um, o que possibilitou a compreensão e

análise do perfil destes novos estudantes, responsáveis pela ampliação da

diversidade social, econômica e cultural da UERJ.

O envolvimento com a pesquisa viabilizou um encontro direto com o tema e

objeto de estudo desta dissertação – a importância das cotas para o acesso ao

ensino superior, suscitando outras questões que se relacionariam com a dinâmica

da permanência dos estudantes cotistas na universidade, a modificação do perfil dos

alunos da UERJ a partir da chegada de estudantes com um outro perfil

socioeconômico e cultural, e a quebra de alguns paradigmas referentes à questão

racial brasileira por meio da discussão da racialização das políticas de cotas no

ensino superior. O meu objetivo era compreender que tipo de aluno entra pelas

políticas de cotas, que opção de cotas ele escolhe e porque opta por este sistema

para chegar à universidade. A idéia era estudar a política de ação afirmativa além do

discurso racial presente na sociedade, pontuando, desta maneira, a amplitude de

uma política que se define multicultural e contribui para a diversidade na

universidade.

O encontro com a pesquisa:

Nos primeiros momentos de pesquisa, os diálogos estabelecidos com o

movimento de Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC), durante a graduação

ao concluir a monografia, determinaram a caracterização de um perfil racializado do

estudante cotista, onde o beneficio e a importância da democratização do acesso ao

ensino superior se daria para uma maioria de afro-descendentes declarados e

carentes. Nestes estudos iniciais, o discurso dos movimentos sociais que lutavam

pela regulamentação das cotas para negros na universidade, criava uma idéia de

que a maioria dos estudantes cotistas era de negros e pobres conscientes da sua

identidade e cor. Esta afirmação somada ao debate da mídia, em geral centralizada

na visão racialista das ações afirmativas, polemizava as cotas como algo

direcionado apenas aos afro-descendentes, e, consequentemente, como uma

política racista, não universal e excludente.

Esta idéia inicial foi reavaliada por mim a partir do encontro e das entrevistas

com os estudantes cotistas da UERJ. Na primeira sessão de debate, era possível

Page 17: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 17 -

perceber a diversidade referente à cultura, às trajetórias e também à raça e à classe.

O preconceito e o estigma apareciam independentes da cor da pele. Na realidade

ganhavam um rótulo diferente: ser cotista, o que atribuía a descrição das

experiências a multiculturalidade da política. Porém, mesmo diante do preconceito

relacionado ao fato de ser cotista, a questão racial era velada e descrita por poucos

alunos negros, normalmente aqueles que se matricularam em cursos mais elitizados

e diurnos: como direito, jornalismo, sociologia, engenharia, e onde o preconceito

aparecia determinado por raça/classe.

Ao declararem as cotas que tinham recorrido, alguns dos alunos negros

relatavam que, por não conseguirem ingressar pelas cotas de escolas públicas, se

declaravam negros para garantir o acesso à universidade, o que pode significar, que

mesmo reconhecendo-se negros, muitos alunos descrevem como desnecessárias

as cotas raciais, demonstrando, desta forma, a construção e o reconhecimento da

identidade cultural e racial como algo secundário. Um outro ponto que contribui para

desracialização da política de cotas seria o próprio critério socioeconômico, como

fundamental para o acesso a reserva de vagas. Por isso, parto do pressuposto que,

no universo dos alunos que acessam as cotas, os negros são os mais atingidos nas

dificuldades para entrar e permanecer na universidade, tanto em função do

preconceito como também do reconhecimento da sua importância enquanto sujeito

histórico e cidadão de direitos.

A importância da racialização do debate das políticas de cotas na

universidade.

Diante de uma construção identitária híbrida e multicultural como declarou

Gilberto Freyre (2003), as ações afirmativas exemplificadas nas políticas de cotas

determinam a discriminação10 sob um víeis positivo, onde o reconhecimento das

identidades raciais brasileiras beneficiaria os grupos socioculturais excluídos

historicamente. Tal posicionamento é contrariado por autores como Peter Fry (2005,

p.224) que descreve que esta construção social e histórica da raça no Brasil criaria

uma tensão entre as duas taxonomias: brancos e negros.

10

Discriminação vista como diferenciação neste caso.

Page 18: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 18 -

A importância do debate da questão racial e a racialização das cotas, é

colocada em voga, pois ao mesmo tempo em que mantém a estrutura do privilégio

branco e a subordinação não-branca, evita a constituição da raça como princípio da

identidade coletiva e ação política. A eficácia da ideologia racial dominante

manifesta-se na ausência do conflito racial aberto e na desmobilização política dos

negros, fazendo com que os componentes racistas do sistema permaneçam

incontestados, sem a necessidade de recorrer a um alto grau de coerção.

(HASENBALG, 2005, p.255).

Portanto, retomar os alicerces historiográficos durante os períodos da

Abolição e Pós-Abolição (durante o final do século XIX e início do século XX),

permite compreender a dinâmica de produção e trabalho no Brasil sob a lógica

liberal, na qual o negro passa a ser excluído enquanto cidadão e trabalhador livre,

tanto pela condição de ex-escravo, como também pela raiz e matriz racial.

Neste momento a exigência do trabalhador livre é um fator crucial para

alimentar o modelo capitalista nascente no Brasil, onde a absorção dos imigrantes

possibilita uma experiência social diversa, os horizontes culturais diferentes

colocaram os negros e mulatos em desvantagens em face aos imigrantes. Em

conseqüência, a estrutura do operariado incipiente constitui-se permeado pelo

preconceito de cor e pelo etnocentrismo. (IANNI, 2004, p.44).

A existência de horizontes culturais e raciais que justificam as diferenças

étnicas entre brancos, negros e indígenas no Brasil se inseriu na dinâmica do olhar

da sociedade brasileira desde o final do século XIX, a partir de teorias racialistas,

que se responsabilizavam em reescrever e redimensionar a história de dominação

dos povos por meio de modelos raciais classificados como inferiores e superiores.

As teorias racialistas surgidas no século XIX na Europa atribuíam as

diferenças físicas e culturais dos seres humanos a características raciais. Os

diferentes níveis de desenvolvimento entre as sociedades eram explicados pela

ciência a partir da aptidão de cada povo a se adaptar a determinado espaço e

dominá-lo. Com os estudos de Darwin sobre a evolução das espécies, o conceito de

raças humanas ganhou um olhar social e economicista. (RÊGO BARROS, 2007, p.

69). Desta forma, a miscigenação no Brasil ganha um caráter negativo diante da

maioria de negros presentes no país, tornando-se desta forma necessário um

branqueamento da civilização. O negativismo da mestiçagem no Brasil continuará

presente até a geração de 1930, onde Gilberto Freyre sobre uma matriz culturalista

Page 19: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 19 -

e antropológica descreverá a mestiçagem sob aspectos positivos e importantes para

a criação da cultura brasileira, que no caso, possui a mistura racial como

particularidade e singularidade.

Na dinâmica socioeconômica, estas ideologias raciais não se apresentam de

uma forma direta, pois o racismo se coloca velado, descrito não pela origem, e sim

pela marca ou estereótipo (NOGUEIRA, 1983). A identificação do negro como

proletariado – identificação de fato e identificação simbólica, nos planos dos

estereótipos do branco sobre o preto – implicou, inevitavelmente, no início de um

processo lento de diferenciação social dentro do grupo étnico, como resultado da

qualificação da mão de obra no mercado de trabalho, da mobilidade profissional, do

recrutamento de trabalhadores especializados para funções de diversa hierarquia

social. (PINTO, 1998, p.244). Em outras palavras, a posição histórica objetiva e

ocupada pelos negros na sociedade brasileira, diante da ideologia tradicional

predominante de uma sociedade dirigida por brancos, criou obstáculos e barreiras

para ascensão social e econômica dos negros no Brasil.

A compreensão da emergência da questão racial, enquanto uma âncora

importante de problematização da questão social permite o entendimento do motivo

da racialização do discurso das ações afirmativas no Brasil, como um caminho

importante da auto-afirmação do negro enquanto sujeito da história e da sociedade.

Os movimentos sociais que se colocam a favor do debate de cotas ignoram a

cooptação dos segmentos negros na sociedade, onde a imagem da harmonia étnica

e racial como parte de uma concepção ideológica mais ampla da natureza humana

brasileira é associada a um mecanismo de legitimação destinado a dissolver as

tensões, bem como antecipar e controlar certas áreas do conflito racial.

(HASENBALG, 2005, p. 254).

Revisitar a atmosfera dos conflitos sociais no Brasil, problematizando a

questão racial, implica em entender o objetivo da política de ação afirmativa

enquanto uma política de reparação, justiça social, diversidade, que permite o

alcance dos direitos a todos os segmentos sociais e étnicos excluídos

historicamente. A racialização do discurso das cotas se coloca como um caminho de

entendimento da diversidade cultural como algo a ser tratado na sociedade brasileira

e na educação. A democratização do acesso ao ensino superior por meio de reserva

vagas sob requisitos de raça/classe descreve a necessidade da repartição de

espaços ocupados hegemonicamente por uma raça e classe dominante, onde a

Page 20: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 20 -

inversão desta lógica só ocorrerá por meio de uma discriminação positiva, visto que

a desigualdade social possui razões históricas materializadas na questão racial e

social brasileira, impedindo assim, a obtenção da igualdade de direitos de maneira

comum a todos os cidadãos. Neste sentido, as ações afirmativas possuem um

pragmatismo, exigindo do Estado a responsabilidade civil de extinguir o racismo nas

ações cotidianas, nos espaços públicos e privados.

A equidade11 é um conceito fundamental para a compreensão da igualdade

almejada pelas ações afirmativas, na medida em que prevê uma igualdade no

acesso aos direitos, mesmo que a desigualdade momentânea expressa na

discriminação positiva seja necessária para se concretizar a justiça social.

O conjunto das questões até aqui abordadas, justificam a importância do tema

“cotas na universidade” com foco na questão da raça, e apresentam os fundamentos

teóricos e práticos que determinaram a escolha deste tema.

O objetivo geral desta dissertação é verificar a relação entre a racialização do

debate presente na mídia e na sociedade sobre as cotas e a realidade das cotas na

UERJ, no que se refere à importância desta política não só para o acesso dos

estudantes negros, mas também para os carentes, indígenas e estudantes de

escolas públicas às universidades. Dentre os critérios para o ingresso pelas cotas,

os negros podem obter o acesso através das cotas raciais ou das cotas para escola

pública, o que também justifica a compreenssão da racialização para o acesso ao

ensino superior. Como desdobramento deste objetivo, será analisada a

aplicabilidade da política de cotas enquanto um mecanismo de direito, considerando

o direito como uma condição de acesso e permanência dos alunos cotistas na

universidade, em particular a UERJ.

No que se refere aos aspectos metodológicos da dissertação foi realizada

uma pesquisa empírica com entrevistas aos estudantes cotistas participantes na

pesquisa: “Política de Assistência ao Estudante Cotista da UERJ” durante o

semestre de 2008/2 na Faculdade de Serviço Social, buscando responder a lacuna

entre a importância das cotas para o acesso à universidade e a racialização do

debate das políticas de cotas no ensino superior. Com o desenvolvimento da

pesquisa, foi também realizado um estudo sobre as reais possibilidades de

11

Equidade: Conceito que prevê a igualdade não universal, ou seja, em função de desigualdades de determinados grupos sociais, a equidade propõe mecanismos de igualdade por meio de preferências legais a curto prazo.

Page 21: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 21 -

permanência dos estudantes de cotas na universidade por meio da análise de seus

perfis, trajetórias sociais, dificuldades, estratégias de sobrevivência e sugestões para

driblar os desafios cotidianos na universidade.

A importância do acesso ao ensino superior através das políticas de cotas

será descrita e avaliada através de uma pesquisa documental sobre a legislação das

cotas da UERJ, com dados referentes a matricula, evasão, perfil e opção por tipo de

cotas a partir da base de dados da UERJ (SR-1) e do grupo de pesquisa da

Faculdade de Serviço Social: “Política de Assistência ao Estudante Cotista da

UERJ”. Também foi realizado um levantamento teórico e bibliográfico para

problematização do tema e diálogo com as diferentes posições intelectuais sobre as

políticas de cotas na universidade.

Para compreender estas reflexões na prática das políticas de ação afirmativa

na UERJ, as perguntas efetuadas durante as entrevistas realizadas com os

estudantes cotistas12 procuram dissertar sobre a trajetória escolar, a entrada na

universidade, discutindo o porquê do ingresso na universidade pelo sistema de

cotas, que tipo de cotas optou, pontuando o cotidiano acadêmico a partir do

conhecimento dos problemas, estratégias e sugestões em relação à permanência no

ensino superior. O conhecimento da trajetória dos estudantes cotistas permite

descrever a ampliação da política de ação afirmativa na universidade como uma

política multicultural, que além de reconhecer a diversidade das diferentes etnias

brasileiras, demonstra a importancia pragmática desta política como uma

possibilidade real de direito ao ensino superior.

A minha hipótese está, portanto, relacionada a necessidade da racialização

do discurso das políticas de ação afirmativas na universidade como um ponto

polêmico e necessário à abertura do diálogo com a sociedade em relação ao negro,

ao racismo no Brasil, as diferenças raciais, e a reflexão histórica para compreenssão

das desigualdades sociais brasileiras. No entanto, as políticas de ação afirmativa

não viabilizam apenas a vitória do reconhecimento das diferenças etnoculturais na

sociedade, elas de fato problematizam a educação brasileira e discutem a questão

do acesso ao ensino superior como um direito de todos os cidadãos, inclusive os

negros e pobres.

Subjacente ao direito do acesso às universidades se encontra a

12

As perguntas realizadas com os estudantes estão no Anexo desta dissertação

Page 22: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 22 -

problematização da raça enquanto um mecanismo concreto para a democratização

do ensino superior. Por isso, os depoimentos dos cotistas da UERJ são

fundamentais para aferir a amplitude de uma política que procura trabalhar com a

diversidade cultural a partir de critérios econômicos, sociais e raciais, colocando no

universo acadêmico os contrastes e as diferenças existentes em nossa sociedade.

O presente trabalho terá a seguinte estrutura: o primeiro capítulo intitulado

“Teoria e História sobre a questão racial no Brasil” discute, a partir de um esboço

historiográfico e teórico, o sentido da escravidão e a costrução das estruturas sociais

no Brasil, descrevendo as desigualdades raciais,o surgimento das ideologias raciais

e a aplicabilidade destes valores nas relações sociais brasileiras, buscando desta

forma uma relação entre a raça e as políticas de ação afirmativa no Brasil. O

segundo capítulo, intitulado “O Histórico da adoção das Políticas de ação

Afirmativas no Brasil”, problematiza a adoção das ações afirmativas no Brasil,

compreendendo o modelo brasileiro, e a repercussão desta política nas

universidades, entendendo a participação e envolvimento dos movimentos sociais

como responsáveis pela materialização da política ação afirmativa como uma forma

de democratização, e acesso ao ensino superior. No terceiro capítulo: “A Política de

Cotas na UERJ” é realizado um estudo de caso, contextualizando a adoção das

políticas de cotas na UERJ. No quarto capítulo: “Trajetórias sociais: a importância

da política de cotas para o acesso a universidade”, será apresentada a pesquisa

realizada com estudantes cotistas da UERJ, por meio da sistematização das

entrevistas, dos perfis e das trajetórias sociais dos entrevistados. Por fim serão

realizadas as considerações finais do trabalho.

Page 23: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 23 -

CAPÍTULO 1

TEORIA E HISTÓRIA SOBRE A QUESTÃO RACIAL NO BRASIL

Page 24: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 24 -

O objetivo deste capítulo é realizar um perfil histórico das teorias científicas e

sociais que contribuíram ideologicamente para a construção do racismo no Brasil a

partir do século XIX, e que por sua vez, desdobraram-se na questão racial como um

campo de estudo responsável por elucidar as diferenças sociais entre negros e

brancos no Brasil.

Para a compreensão deste tema, o trabalho está dividido em quatro partes. A

primeira, intitulada: “O sentido da escravidão e a construção das estruturas sociais

no Brasil”, procura dissertar sobre as diferentes formas de escravidão,

desenvolvendo uma conceituação sobre este tipo de trabalho, e a justificativa para

uma remodelagem mercantil da escravidão moderna caracterizada pela submissão

da cultura africana como o alicerce do tráfico de escravos para as colônias

ultramarinas européias. Na segunda parte: “Abolição e Pós-Abolição: desigualdades

raciais e noções de liberdade” são aprofundadas novas visões da historiografia para

caracterizar as diferentes noções de liberdade e as relações sociais estabelecidas

durante a Abolição e o período Pós-Abolição. Na terceira parte, buscando preencher

as lacunas do debate e ampliar as discussões referentes às desigualdades sociais

entre negros e brancos no Brasil, são apresentadas e contextualizadas teorias

consideradas construtoras do racismo no Brasil. Por fim, na quarta última parte,

intitulada “Raça e Política de Cotas no Brasil”, estão relacionados os elementos

teorizados, ao longo do capítulo, problematizando a racialização do discurso e a

adoção das políticas de cotas no Brasil.

A análise teórica do racismo, enquanto uma ideologia que se materializa em

práticas cotidianas, auxilia o conhecimento da ausência direta dos conflitos que

denunciam a discriminação racial, o que permite a problematização da questão

racial como um alvo a ser atacado por políticas públicas direcionadas a reduzir as

desigualdades sociais no Brasil.

Page 25: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 25 -

1.1 O sentido da escravidão e a construção das estruturas sociais no Brasil.

A escravidão se denomina como um tipo de trabalho que utiliza a mão de

obra forçada, no qual o trabalhador não possui o direito à liberdade individual, e não

ganha nada em troca por sua força de trabalho. A prática da escravidão, sempre foi

comum entre os mundos oriental e ocidental desde a antiguidade. Neste período da

História, os escravos eram adquiridos por meio de guerras, onde uma civilização

utilizava a outra como motim, ou seja, como o prêmio pela vitória e dominação, sem

que a justificativa de inferioridade entre as civilizações estivesse implícita no conflito

de maneira direta.

Na antiguidade o significado de barbárie e civilização esteve associado às

diferenças entre as culturas ocidentais e orientais, no que se refere às formas de

governo, à religião e também às estruturas sociais e urbanas que se desenvolveram

a partir do crescimento econômico e expansão das sociedades. Desta forma, a idéia

de superioridade e inferioridade adquiria significado por meio da construção de

impérios e dominação.

Ao longo dos processos históricos estes conceitos não se perderam,

ganhando novos significados associados as diferentes relações sociais construídas

entre a Europa e as novas civilizações descobertas na América e na África durante o

século XV, a partir da Expansão Marítima. A idéia de sobrepor os mares

desconhecidos em busca de novas rotas comerciais para a manutenção do

comércio com o Oriente, possibilitou o conhecimento de novas sociedades com

estruturas sociais, organizações e religião diferentes das conhecidas na Europa.

Neste choque cultural, as antigas noções de barbárie e inferioridade foram

retomadas pelos europeus como forma de obter o domínio das terras e riquezas

encontradas no Novo Mundo, e justificar a escravidão destas sociedades.

A diferença da utilização dos escravos na Idade Moderna significou uma

reconceituação da aquisição de mão de obra, que neste caso não abria mão da

guerra para aprisionar e subjugar o indivíduo, o diferencial seria a criação de uma

empresa, transformando esta prática em algo lucrativo e, sobretudo, em um

comércio que fornecia escravos da África para as colônias portuguesas, espanholas

e inglesas, através do domínio de uma civilização sob a outra e que acreditava na

transformação de bárbaros em civilizados.

Page 26: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 26 -

O sistema escravista adotado pelos portugueses no Brasil como forma de

trabalho nos latifúndios agroexportadores, teve inicialmente a participação dos

indígenas, e posteriormente, com a lucratividade do tráfico de escravos, e do

aprofundamento das relações entre África e Portugal, os africanos passaram a ser

trazidos e vendidos no Brasil em grandes quantidades como mercadoria, e assim

inseridos em praticamente todos os setores da sociedade. Apesar da resistência dos

africanos e indígenas à aceitação e imposição ao trabalho, a tática portuguesa

utilizada para evitar associações entre os diferentes povos nativos foi o sistema de

assimilação cultural.13 Por isso, entre os séculos XVI e XVII, a idéia de racismo não

pode ser considerada, pois os mecanismos utilizados pelo colonizador português

para estruturação das relações sociais entre negros, indígenas e europeus não foi

uma perspectiva de diferenciação racial, e sim, de diferenciação cultural, onde a

forma de organização social e as características étnicas descreviam aspectos de

superioridade e inferioridade entre as sociedades.

Durante os séculos XVII e XVIII, o Brasil consolida as relações escravistas,

não só no âmbito da produção e do trabalho, como também no cotidiano da

sociedade. O negro reinventa a cultura africana misturando-a com os diferentes

hábitos e costumes portugueses. A mistura afro-brasileira não é vista com tanta

positividade pelos portugueses, que na dinâmica assimilacionista determina na

pirâmide social, nas instituições e no interior das relações sociais, o esclarecimento

do grupo branco como dominante. Esta dinâmica assimilacionista iniciada na

colonização toma força e ganha novas dimensões com as transformações

econômicas e sociais surgidas a partir do século XIX, criando novas formas de

compreender e justificar a organização social brasileira.

No Brasil, do século XIX, as fazendas passavam a se tornar empresas

(IANNI, 2004, p.18), e o avanço da produção de café possibilitou que os fazendeiros

passassem a conviver com a nova dinâmica do capital. A exigência do trabalhador

livre nas plantações de café criou novas contradições entre escravidão e liberdade.

A incompatibilidade estrutural entre o trabalhador livre e o escravo, no processo de

produção de lucro, determinou a opção do Estado em assinar a Abolição em 1888, e

13

O conceito de assimilação cultural é entendido como uma prática social forçada voltada para neutralização dos hábitos e costumes culturais da sociedade dominada. A sociedade assimilada passa a ser obrigada a seguir os padrões culturais do dominador, assumindo uma nova língua, religião, formas de se vestir e nacionalidade. A assimilação cultural determinou um caminho para inserção de novas culturas à sociedade colonizada, por meio da submissão e aceitação de práticas econômicas, políticas, e sociais ao longo da História.

Page 27: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 27 -

incentivar um vasto programa de imigração. Neste contexto, novas ideologias

racistas são incorporadas na dinâmica do processo de assimilação cultural,

atribuindo ao cotidiano das relações sociais justificativas não apenas étnicas, mas

também raciais. (SCHWARCZ, 2005).

A importância da percepção do conceito de assimilação cultural como alicerce

para a compreensão da submissão cultural dos africanos e indígenas à cultura

portuguesa, possibilita uma discussão em torno das noções de branqueamento e de

democracia racial, consideradas como justificativas ideológicas para a

caracterização do tipo de racismo no Brasil. Para HASENBALG (2005, p.245)14, a

conseqüência da identidade racial fragmentada dos não-brancos e da cooptação de

parte do grupo, as aspirações políticas e econômicas de base racial são

transformadas em projetos individuais de mobilidade ascendente, com o resultado

de que grande parte das energias das pessoas de cor são absorvidas na questão

imediata de conseguir incrementos de bancura. Isto significa que o negro enquanto

sujeito histórico ficou refém das armadilhas culturais e econômicas oriundas do seu

papel enquanto mercadoria e força de trabalho na sociedade.

A condição do negro de ex-escravo somada as construções ideológicas que o

descreviam como inferiores ou menos desenvolvidos culturalmente, reafirmavam a

cultura européia como dominante, e contribuíram para a criação de barreiras a sua

mobilidade social responsáveis pela ausência do conflito social entre brancos e

negros em função da viabilização de uma identidade comum para ambos os grupos

socioculturais. Esta afirmativa possibilita uma crítica à assimilação dos negros e da

cultura negra, que contribui para a criação de uma identidade nacional híbrida,

construída e aceita sem conflitos, como se a sociedade brasileira fosse isenta de

preconceitos e diferenças raciais e culturais.

1.2 Abolição e Pós-Abolição: desigualdades raciais e noções de liberdade.

A noção de liberdade implícita na Abolição (1888), e no período descrito como

Pós-Abolição, possibilita a compreensão a respeito da idéia de uma herança da

escravidão como a justificativa para as desigualdades raciais existentes no Brasil. O

14 HASENBALG, Carlos. Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil. MG: UFMG, Humanitas. 2005.

Page 28: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 28 -

conhecimento dos possíveis alicerces epistemológicos que descrevem o racismo

como uma barreira à mobilidade dos negros no Brasil, determinou uma análise sobre

a história do período de emancipação dos negros15 não apenas como ex-escravos, e

sim, como cidadãos e sujeitos responsáveis por sua liberdade e individualidade. No

entanto, o alcance desta outra idéia de liberdade dissociada da herança da

escravidão, se encontra com obstáculos determinados pela construção de uma

ideologia dominante, caracterizada pelas diferentes formas de conceber o conceito

de mestiçagem, associado ao mito de democracia racial e o ideal de

branqueamento, arquitetados como alicerce da identidade nacional e do

pensamento social brasileiro. 16

O século XIX, para a história brasileira, implicou em uma sucessão de fatos

relacionados à desconstrução do Império e da criação, em 1889, do Estado

republicano. Este condizia com as expectativas do pensamento liberal difundido pela

Inglaterra, na medida em que previa novos pilares de participação política e

econômica, atribuindo à sua estrutura o laissez-faire e o trabalho livre como uma

forma de desenvolver e modernizar o país.

“A implementação do capitalismo em novas bases econômicas e psicossociais

constituiu um episódio de transplantação cultural. Ele não nasceu nem cresceu a

partir da diferenciação interna da ordem econômica preexistente (o sistema

econômico colonial). Mas vinculava-se a um desenvolvimento concomitante de

tendências de absorção cultural, de organização política e crescimento econômico,

que tinha seus suportes materiais ou políticos na economia colonial, sem lançar

nela as suas raízes. Em conseqüência, o salto ocorrido na esfera econômica não

corresponde, geneticamente, a um processo de diferenciação (contínua ou súbita)

das mesmas estruturas econômicas”. (FERNANDES, 1981, p.80)17

A influência da ideologia liberal não foi suficiente para varrer os traços

autoritários da sociedade brasileira e o perfil clientelista das relações sociais. O

Brasil manteve o modelo arcaico de desenvolvimento econômico e também de

instituição da propriedade privada a partir da implementação da Lei de Terras em

1850, que descrevia a posse de terra como uma mercadoria somente acessível por

meio da compra e venda, inviabilizando o modelo de sesmarias e o próprio acesso a

15

Um período que iniciou em 1888 com a Abolição e é considerado como inconcluso até a contemporaneidade por muitos movimentos sociais. 16 Os conceitos de mestiçagem, democracia racial, branqueamento e identidade nacional serão desenvolvidos ao longo do texto. 17 FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. Zahar Editores: SP, 1981.

Page 29: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 29 -

terra à maioria da população, o que garantia a manutenção das relações coloniais

através do domínio político e social dos antigos senhores de engenhos, agora

“coronéis” e senhores do café.

A idéia de abolição, como forma de garantir a liberdade individual e a

igualdade de direitos18, permeava as associações religiosas inglesas desde o final

do século XVII. Esse grupo religioso puritano conhecido como quakers, criou

sociedades abolicionistas que condenavam a escravidão a partir da Bíblia, visto que,

perante Deus todos os homens eram iguais. A pressão provocada por esses

religiosos associados a outras sociedades abolicionistas determinou em 1807, a

aprovação do “Abolition Act” pelo parlamento inglês, onde ficava decretado a

abolição do tráfico de escravos na Inglaterra. No entanto, segundo o historiador José

Murilo de Carvalho (2008, p.16)19, a liberdade que interessava para essas

organizações religiosas era a ‘liberdade da alma’ e não propriamente a ‘liberdade

civil’. Mas as diferenças entre as idéias abolicionistas sob a noção humanista e

política como ocorreu inicialmente na Inglaterra, e posteriormente, nos EUA,

auxiliam na compreensão da construção dos direitos e na iniciativa da interferência

do Estado frente à ação dos ex-escravos para o alcance da propriedade, educação e

direitos políticos.

No Brasil, com a abertura dos portos às nações amigas em 1810, o

sentimento abolicionista britânico era caracterizado pelas propagandas de violência

da escravidão, e eram divulgadas pela impressa em forma de artigos que

denunciavam a atuação do tráfico de escravos na África.

Em 1823 no Brasil, José Bonifácio já alertava sobre a abolição da escravidão

sobre uma frente gradual, ou seja, a escravidão não poderia ser abolida de uma vez

só em todas as regiões do país. Além disso, o sistema de escravidão brasileiro foi

um dos únicos que aceitava a alforria, através da compra da liberdade do escravo

por meio de serviços ou até mesmo de economias salvas pelos próprios escravos a

partir de outras atividades prestadas20. Esta possibilidade de acesso à liberdade

viabilizou um aumento da população de libertos no Brasil, e de um conseqüente

18

Para maior compreensão do texto a liberdade individual é entendida como alcance da autonomia, e o conceito de igualdade como acesso aos direitos. 19 CARVALHO, José Murilo. Em Nome de Deus. In: História da Biblioteca Nacional, no. 32. Ano 3, maio 2008.p.16 20 Estes escravos ficaram conhecidos como escravos de ganho e foram muito retratados pelo pintor francês Jean Baptist Debret como escravos que vendiam laranjas, carregadores de água, entre outras formas de trabalho informal comuns no período imperial (1808/1889)

Page 30: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 30 -

ajustamento destes indivíduos à economia nacional, onde muitos escravos se

inseriam no setor de prestação de serviços ou de profissões liberais, e na maioria

das vezes adquirindo escravos como mão de obra. Como libertos, a expressão da

grande maioria de ex-escravos foi manterem-se em áreas de baixa remuneração.

Apesar da historiografia omitir a participação de muitas resistências à

escravidão, a luta pela liberdade no Brasil se expressou por meio de diferentes

anseios, mas, no que se refere à liberdade individual, e ao alcance da igualdade

civil, a abolição acabou marcada como uma vitória das elites brasileiras pela

assinatura da Lei Áurea em 13 de maio de 1888, pela princesa Isabel. As

organizações abolicionistas no Brasil entendiam a liberdade como uma abertura

para o trabalho livre como forma de preencher as exigências da elite cafeeira

dominante, que diante da adoção da primeira lei que proibia o comércio de escravos

- a Lei Eusébio de Queiroz assinada em 1850 - passou a incentivar junto ao Estado

a implementação do trabalho livre a partir da mão de obra imigrante.

Em função da abolição da escravidão nas ex-colônias espanholas - como o

Peru e a Venezuela em 1854, e da abolição nos EUA por Lincoln em 1865, as

resistências no nordeste e na região norte no Brasil, que se formaram neste período,

incitavam o fim da escravidão por meio de reivindicações que denunciavam a

violência no cativeiro, incentivando a fuga dos escravos como um caminho para o

alcance da liberdade. Lideranças importantes como a de José do Patrocínio,

comprometeram a autoridade senhorial e contribuíram para a própria crise do

escravismo. As fugas coletivas de escravos, a Lei do Ventre Livre, assinada em

1871, que previa a liberdade dos filhos de escravos nascidos a partir desta data, a

Lei dos Sexagenários, em 1885, que libertava os escravos com mais de 60 anos, e a

atuação do movimento abolicionista expresso por uma pequena elite mulata nas

figuras de Antonio Rebouças e Joaquim Nabuco que escreveram respectivamente

as obras: Abolição imediata sem indenização (1883) e O abolicionista (1883),

descreviam a cisão do trabalho escravo em prol da liberdade.

Neste panorama histórico, o primeiro decreto assinado de emancipação dos

escravos foi em 1884 no Ceará. E em 1888, se extinguiu o escravismo no Brasil sob

muita comemoração da liberdade dos escravos pela assinatura da carta de alforria

pela princesa Isabel. A euforia em torno da liberdade determinou a queima de todos

os arquivos sobre a escravidão por Rui Barbosa, como forma de apagar da História

Page 31: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 31 -

do país os longos anos considerados como império de infortúnios, abrindo um novo

momento marcado pelo Brasil do trabalho livre.

Como uma tacada para salvar a crise política geral que assolava o império

português, no século XIX, a escravidão trouxe a liberdade e a visibilidade política do

império, que com seus dias contados, não imaginava perder com este ato o apoio

dos fazendeiros do Vale do Paraíba. Segundo Lilia Schwarcz (2008, p.20)21 estava

inaugurada uma maneira complicada de lidar com a questão dos direitos civis. Sem

a compreensão de que a abolição era o resultado de um movimento coletivo,

permanecíamos atados ao complicado jogo das relações pessoais, suas

contrapressões e deveres: chave do personalismo e do próprio clientelismo. Nova

versão para uma estrutura antiga, em que as relações privadas se impõem sobre a

esfera pública de atuação.

A abolição trouxe outros problemas a serem tratados pelo Estado, na medida

em que a comercialização do café e a racionalização dos negócios relacionados à

agricultura contribuíram para uma reelaboração da fazenda de café nos termos

organizacionais referentes: à terra, ao capital, à técnica e à mão de obra. Segundo

IANNI (2004, p.17),22 a opção pelo preenchimento da mão de obra com base no

trabalhador livre exigida pela reestruturação das fazendas cafeeiras, não esteve

associada à utilização do negro como ex-escravo, e sim, pela adoção do imigrante, o

que levou ao negro a formação de uma reserva de mão de obra.

O motor da economia era acionado pelas plantações de café, que ocupavam

o primeiro lugar no consumo europeu. Nas fazendas do Oeste Paulista a produção

ganhava novas tecnologias para o cultivo e transporte do café. Os senhores do café

investiam em ferrovias, bancos e outras formas de negócio, dirigindo-se muitas

vezes para os centros metropolitanos da época, como São Paulo.

A atmosfera liberal e industrial que se inseria no Brasil no final do século XIX,

acompanhava as mudanças relacionadas à terra como propriedade e também a

novas formas de trabalho surgidas com o fim da escravidão. A inserção dos ex-

cativos no trabalho determinaria um investimento e atualização do escravo,

enquanto trabalhador livre aos novos meios de produção. Nesta nova atmosfera

econômica liberal, a noção de liberdade e cidadania traria perspectivas de inclusão

21

SCHWARCZ, Lilia. A santa e a dádiva. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. No. 32. Ano 3. Maio, 2008.p.20. 22 IANNI, Octavio. Raças e classes sociais no Brasil. SP: Editora Brasiliense, 2004.

Page 32: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 32 -

do ex-cativo à sociedade, onde o trabalho valeria um preço alto capaz de atingir a

propriedade privada.

O Estado brasileiro havia financiado a imigração anteriormente à abolição

como uma alternativa à suposta escassez de mão de obra avaliada como um custo

menor no gasto com a força de trabalho frente à crise escravista e à pressão inglesa

para a adoção do trabalho livre. A entrada de imigrantes se intensificou no período

pós-abolição sob a justificativa de uma incompatibilidade estrutural entre o

trabalhador livre e o ex-escravo.

“Reagiram os grandes fazendeiros sem descartar a possibilidade dos imigrantes de

se tornarem proprietários de pequenas glebas. (...) A fórmula que propunham e que

acabaram implantando era a de que o imigrante deveria conquistar a terra pelo

trabalho”. (MARTINS, 2004, p.32)23

A partir de 1870 os imigrantes começaram a fazer parte das forças produtivas

nas fazendas produtoras de café, descrevendo novas relações econômicas e

também de acesso à propriedade, onde num regime de terras livres o trabalho

deveria ser cativo, e no regime de trabalho livre a terra tinha que ser cativa.

(MARTINS, 2004).

A compreensão da terra como propriedade e fonte de poder no Brasil implica

na valorização do meio rural como fonte de riqueza. O fim da escravidão não foi algo

aceito pelos fazendeiros com naturalidade, e foram criados sistemas para manter o

trabalhador preso à produção por meio do acesso à terra, como os sistemas de

parceria: onde os trabalhadores livres arcavam com as despesas da terra e da

produção e o lucro era dividido pela metade entre colonos e parceiros. Outro sistema

foi o colonato, caracterizado como um regime de base familiar, onde o colono

recebia o encargo de produzir o café e pagar com a colheita uma quantia específica

ao fazendeiro pela utilização da terra.

Estas novas formas de acesso à terra viabilizadas pela compra e pelo

domínio da propriedade, corresponderam as primeiras idéias clientelistas entre

camponeses e fazendeiros, que, com a processualidade histórica, se desdobraram

em relações políticas de poder, de submissão, onde o camponês passará a se

prender à propriedade por meio do trabalho, tendo em vista, a impossibilidade do

mesmo de comprar a terra. Estas relações sociais somadas ao crescimento urbano 23 MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. SP: Editora Hucitec, 2004.

Page 33: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 33 -

e à industrialização determinaram, gradualmente, a desvalorização do campo e do

camponês como força de trabalho perante a adoção de novos meios de produção

para arcar com a agroexportação.

Para IANNI (2004), na medida em que a cultura urbana se desenvolvia com o

fim da escravidão, novas noções de liberdade relacionadas à ordem democrática

surgem, criando uma contradição entre cidade e campo, expressa nitidamente na

preferência de trabalhadores livres aptos ou não a trabalhar frente às novas

exigências da economia brasileira.

Para GOMES (2008, p.2)24, os ex-escravos reagiam à inexistência de políticas

públicas no pós 1888 para incorporar milhares de pessoas a uma sociedade até

então de cidadania restrita por meio do acesso à terra, ao trabalho, e à educação.

Mas o silêncio sobre a integração dos ex-escravos e os limites da cidadania,

misturado à truculência contra a população pobre e urbana, sugere a

institucionalização de um modelo – nem sempre explicito, mas vigente em práticas e

políticas públicas adotadas – de intolerância racial que seria adotada no século XX

pelas elites e pelo poder público do país civilizado.

Segundo GOMES (2008), a grande migração de famílias negras do campo

para as cidades no inicio do século XX reforçou a associação da criminalidade à

raça e à origem social. Numa guinada ideológica, crimes diversos eram atribuídos a

uma suposta natureza da população negra e a sua herança da escravidão, ou seja,

fruto de cidadãos incompletos (em termos raciais e sociais para cientistas da época)

numa nova ordem burguesa, capitalista e urbana.

O escravo é entendido como uma mercadoria, possuindo uma interpretação

econômica, apresentando-se como coisa. A situação de desigualdade posta nas

diferentes classes após o período de Abolição tornam-se heranças diretas do

período escravista, assim como o racismo e a discriminação racial aparecem como

conseqüências inevitáveis do escravismo. A persistência do preconceito e da

discriminação não é ligada ao dinamismo social do período pós-abolição, mas é

interpretada como um atraso cultural, devido ao ritmo desigual da mudança das

varias dimensões do sistema econômico, social e cultural. (HASENBALG, 2005,

p.80). Este tipo de compreensão sobre o escravo no Brasil, colocou a Abolição como

algo incapaz de gerar mudanças políticas, econômicas ou sociais. O escravo passou

24

GOMES, Flávio; ARAÙJO,Carlos Eduardo Moreira. A igualdade que não veio. In: Coleção Gilberto Ferreza. Acervo Instituto Moreira Salles, 2008.p.1/4.

Page 34: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 34 -

a ser interpretado não como um sujeito histórico que assume papéis de lutas e

resistências, e sim, como um componente de um antigo regime que herdou na lógica

da estratificação racial o legado de subordinação.

Em 1970, novas leituras são apresentadas à historiografia25 frente ao

problema da escravidão, buscando um diálogo com as exigências do Movimento

Negro da época. A historicidade das identidades e classificações raciais tornou-se

questão central para o entendimento do processo de emancipação escrava e das

formas como as populações afro-descendentes e as sociedades pós-emancipação

lidaram culturalmente com os significados da memória do cativeiro. (RIOS, 2005,

p.29).26 A escravidão contemporânea não era mais vista como um modelo único

adotado pelos diferentes países europeus, apenas de exploração econômica, isenta

de sujeitos sociais. Ela ganhava forma e particularidades, histórias que se

diferenciavam em resistências, alforrias, e trocas culturais que traziam à América a

diversidade de narrativas e fontes por meio da metodologia comparativa.

Sob o ponto de vista histórico, para o entendimento do pós-abolição, no

século XVIII, as novas noções de liberdade econômica e cidadania política que

começavam a ser engendradas no bojo das revoluções atlânticas tiveram que

conviver com novos desafios econômicos, mas também políticos e culturais –

colocados pela problemática da emancipação.(COOPER, 2005, p.15)27

A emancipação do escravo enquanto cidadão, não abriu brechas para a

construção da cidadania do negro, e sim para manutenção de uma desigualdade

iniciada nos períodos do cativeiro, que ratificou-se por meio de ideologias

legitimadoras do racismo e da discriminação por meio de mitos de uma mestiçagem

positiva que corroborava para a aparência de uma suposta democracia racial.

Subjacente a estes discursos, a idéia de um branqueamento da população por meio

da miscigenação com o maior número de brancos, somados ao desenvolvimento

econômico proveniente da exportação e produção de café, contribuíram para o

incentivo do Estado à imigração européia, e a conseqüente afirmação do negro na

linha da exclusão.

25

A historiografia entende este período como a expansão de estudos que envolvem o individuo e a cultura, onde a História busca interdisciplinaridade com a antropologia cultural e sociologia, sofrendo grande influência da nova escola de História francesa dos Annales. Neste período a história cultural e social ganha força entre os historiadores. Ver: BURKE, Peter. O que é História cultural? Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2008. 26 RIOS, Ana Lugão, Mattos, Hebe. Memórias do cativeiro.Família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 27 COOPER, Frederick, HOLT, Thomas C., SCOTT, Rebecca. Além da escravidão.Investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

Page 35: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 35 -

“A apatia, intolerância e imprevidência da massa predominantemente de cor da

população era um fator crucial no diagnóstico do atraso econômico brasileiro feito

pelas elites. Estas supostas características da classe baixa nativa eram isoladas

das condições históricas que impediam seu acesso à propriedade e sua

socialização na disciplina do mercado de trabalho livre. Consequentemente, a

imigração européia era colocada como a solução, a curto prazo, para o problema

causado pela abolição da escravidão, bem como uma contribuição, a longo prazo,

para o branqueamento da população do país”. (HASENBALG, 2005, p.247)

O entendimento das barreiras à mobilidade social do negro na sociedade não

conseguem ser justificativas somente por meio da compreensão de uma herança da

escravidão. É importante relacionar a noção teórica de estrutura de classes,

estratificação social e racial atribuindo a cada uma destas transformações

significados históricos. Estes três conceitos devem ser definidos para a

compreensão das desigualdades existentes. Para HASENBALG (2005), a

estratificação social implica o processo individual de obtenção do status, bem como

a compreensão e distribuição da desigualdade social. A estrutura de classes de

matriz marxista analisa as classes sociais como elementos fundamentais de estudo

e compreensão das relações sociais organizadas a partir da exploração capitalista.

E a raça enquanto um conceito social e cultural se encontra na interseção da classe

social e da estratificação social para o aprofundamento das dificuldades de

mobilidade social do negro no Brasil.

Esta dinâmica de abordagem cultural das estruturas sociais, políticas e

ideológicas construídas historicamente, justificam a incongruência de nossa

identidade nacional e, sobretudo, a dificuldade do negro de se compreender

enquanto sujeito histórico de seu processo emancipatório, criando assim, um outro

fator responsável pela sua exclusão na sociedade: a questão racial.

1.3 O histórico das ideologias raciais e sua aplicabilidade nas relações

sociais brasileiras.

Trabalhar com conceitos nas ciências sociais implica em duas formas de

abordagem: uma forma analítica – onde um conjunto de fenômenos faz sentido

apenas no corpo da teoria; e a forma nativa – onde o conceito encontra-se

Page 36: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 36 -

relacionado ao sentido do mundo prático. (GUIMARÃES, 2003, p. 95)28. Com base

nestas diferenças conceituais, as ciências sociais entendem a cultura como o

pressuposto da compreensão da vida humana, o que determina a utilização de

alguns conceitos como o de raça, onde as interpretações e utilização excedem o

significado apenas teórico, abrangendo idéias sociais, históricas, e do uso em

práticas cotidianas.

O termo “raça” foi concebido pela Biologia e Antropometria29 durante o século

XIX, para estudar a espécie humana a partir da divisão em subespécies, tal qual o

mundo animal. Porém, esta divisão estaria associada à compreensão das diferenças

entre os seres humanos a partir do desenvolvimento psíquico, intelectual, físico, e de

valores morais presentes na sociedade. Estas subdivisões criaram a idéia de

racismo, que passou a ser utilizada por meio de fundamentações de hierarquias

raciais entre as populações humanas gerando no convívio social ideologias de

diferenças raciais que determinaram práticas cotidianas e visões doutrinárias ao

longo da história. (GUIMARÃES, 2003, p. 96).

O conceito de “raça”, cientificamente, implica em uma construção social, que

na Sociologia, procura estudar as identidades sociais enquanto um campo de cultura

simbólica. A definição da população diferencia-se, portanto, do conceito de etnia que

se encontra relacionado aos lugares geográficos de origem onde demanda a

identificação de um grupo por pertencimento e questões culturais.

A difusão da interpretação social do conceito de raça durante o século XIX

iniciou-se na Europa a partir de estudos científicos que procuraram justificar o

imperialismo e a divisão de classes por meio de análises raciais e estudos descritos

pela eugenia – idéia de pureza das raças. A antropologia e a ciência analisavam os

níveis de desenvolvimento físico por meio de medições de crânios humanos que

deram nomes a três grandes grupos raciais: o negroíde (negros), o caucasoíde

(brancos) e o mongolóide (asiáticos). Dentro destas categorias, as diferentes etnias

e culturas se agrupavam e eram identificadas e analisadas como objetos por autores

como Gobineau e Spencer30.(RÊGO BARROS, 2007, p.69).

28

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Como trabalhar com raça em sociologia? Educação e Pesquisa: São Paulo. V.29, n1, p.93-107. jan. /jun. 2003. 29

Antropometria: ciência precursora da antropologia que se preocupava em estudar as diferenças humanas a partir da medição dos crânios. 30

Hebert Spencer (1820/1903), foi um filósofo inglês e representante do positivismo. Publicou obras como: “Estatística social”, “Sistema de filosofia sintética” e ‘O individuo contra o Estado’ (1884). Em seus estudos

Page 37: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 37 -

Com os estudos de Darwin sobre a evolução das espécies, o conceito de raças

humanas ganhou um olhar social e economicista. Em tempos de imperialismo, os

países europeus transcreveram o olhar empírico darwinista para uma dimensão

social, responsável em analisar a adaptabilidade dos seres humanos e seus níveis

cognitivos, ou seja, o desenvolvimento social já estudado pela antropologia ganhou

um caráter evolutivo, e as raças humanas passaram a adquirir hierarquias de

importância. (RÊGO BARROS, 2007, p.69)

Neste sentido, a raça assumiu um significado histórico e social, ganhando

interpretações diversas que problematizaram a estrutura e organização da

sociedade durante o século XIX, saindo da Europa e ganhando força ideológica em

diferentes partes do mundo.

No Brasil, o desdobramento social do conceito de raça esteve associado as

transformações políticas e econômicas que o país sofria neste período devido ao

crescimento da exportação do café, a crise da escravidão e do próprio império. Para

as elites nacionais da época era importante manter as hierarquias sociais por meio

de definições de critérios diferenciados para se estabelecer a cidadania, e com isso,

a idéia racial, apesar de complexa, acabou fazendo sucesso como justificativa e

estabelecimento das diferenças sociais por meio de estudos científicos e

antropológicos financiados pelo imperador Dom Pedro II.

A Ciência31 entra no Brasil como campo de estudo, no final do século XIX,

como algo experimental baseado em diálogos com a sociologia de Durkheim e Max

Weber. Os adeptos a este campo de estudo, em grande maioria, compunham a

mesma elite que tinha acesso à educação e se formava em faculdades de Direito e

Medicina espalhadas pelo país. As faculdades e institutos se caracterizavam por

espaços dedicados às discussões sobre a sociedade e a política, onde os

acadêmicos construíam os primeiros estudos acerca da compreensão das relações

sociais e das diferenças sociais brasileiras.

As primeiras idéias sobre as diferenças culturais e as justificativas

civilizatórias se concentraram na noção de etnocentrismo32 e de degeneração das

procurava aplicar as idéias do darwinismo social para justificar a divisão de classes e o imperialismo, procurando comprovar que ambos eram fruto da seleção natural. Joseph Arthur de Gobineau (1816/1882) foi um filósofo francês famoso por teorizar as raças no campo dos estudos antropológicos e sociológicos no século XIX. Escreveu a famosa obra “Ensaio sobre as desigualdades das raças humanas” (1885), um dos primeiros trabalhos sobre eugenia e racismo publicados na época. 31 A ciência enquanto campo de estudo da Medicina, Antropologia, Geografia e Direito, foram as primeiras áreas de pesquisa no Brasil durante o século XIX. Para maiores informações ver: SCWARCZ, Lilia. O Espetáculo das Raças. Cientistas, Instituições e Questão racial no Brasil 1870-1930. Sp: Companhia das Letras, 2005. 32 Etnocentrismo: conceito que estabelece a superioridade cultural de uma sociedade sob outra, no que se refere aos aspectos civilizatórios e sócio-culturais.

Page 38: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 38 -

espécies como uma maneira de conceber a civilização européia como uma

sociedade central e superior. E por isso, a viabilização da assimilação cultural foi

determinante para submissão social das sociedades não européias, onde os

portugueses acabaram por impor os hábitos culturais, língua e religião aos indígenas

e africanos como mecanismos de dominação.

O termo raça, introduzido na discussão social, foi concebido para entender as

primeiras noções de cidadania33, onde a análise do tipo físico determinava o grau de

evolução social. Mas antes de estabelecer uma idéia evolucionista das raças

baseada no que conhecemos como darwinismo social, os cientistas estudavam

concepções distintas por meio da idéia de monogenismo e poligenismo. No primeiro

caso, a teoria se aproximava das descrições bíblicas de que apenas um homem

haveria criado a raça humana, enquanto o poligenismo implicava uma idéia de

diferenciação entre espécies humanas, o que gerou um estudo de caso por meio da

frenologia e antropometria, ou seja, um campo de pesquisa que classificava os seres

humanos em graus evolutivos a partir da análise dos crânios. Em termos científicos

ambos os debates suscitaram questões de cunho político cultural e embasaram suas

teorias no evolucionismo por meio da hierarquização dos povos, e da própria raça

humana, criando espécies e aptidões distintas. Mas o aprofundamento do debate

evolucionista se ampliou por meio da inclusão da idéia darwinista associada a

“Teoria da Evolução das Espécies” 34.

“Determinada como darwinismo social ou teoria das raças, essa nova perspectiva

via de forma pessimista a miscigenação, já que acreditava que não se transmitiam

caracteres adquiridos, nem mesmo pelo processo de evolução social. Ou seja, as

raças constituíram fenômenos finais, resultados imutáveis, sendo todo cruzamento,

por princípio, entendido como erro. As decorrências lógicas desse tipo de postulado

eram duas: enaltecer a existência dos tipos puros – e portanto, não sujeitos ao

processo de miscigenação – e compreender a mestiçagem como sinônimo de

degeneração não só racial como social”.(SCHWARCZ,2005, p.5835).

33 A compreensão da cidadania por meio da diferenciação racial se difere da visão dos contratualistas clássicos da política e das teorias a respeito da igualdade civil difundida por John Locke. A idéia de uma hierarquização entre as raças a partir do século XIX surgiu com as teorias evolucionistas, e permitiu a criação de legislações no mundo neocolonialista imperialista para legitimar o domínio europeu na África e na Ásia, e consequentemente classificar o tipo de política e administração a ser utilizada em cada sociedade dominada. 34

Teoria criada pelo cientista inglês Charles Darwin descrita no livro: “A Origem das Espécies”. 35 SCWARCZ, Lilia. O Espetáculo das Raças. Cientistas, Instituições e Questão racial no Brasil 1870-1930. SP: Companhia das Letras, 2005.

Page 39: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 39 -

O darwinismo social se caracterizou como uma teoria que se desdobrou dos

estudos de Charles Darwin, que descrevia a evolução por meio da capacidade das

espécies de adaptação entre a competição do mais forte sob o mais fraco. Tais

conceitos foram utilizados em estudos voltados para a diferença entre os seres

humanos, e acabaram sendo utilizados como justificativas para dominação

imperialista do final do século XIX, a partir de teorias fundamentadas na

superioridade de uma raça sobre outra. As raças humanas eram, portanto,

entendidas como espécies diversas, em sentido de cores, características físicas, tipo

de cabelo, nariz, rosto, e cérebro, associado às regiões de contingentes

predominantes onde se dividiam entre Europa, Ásia e África. O branco, o negro e o

amarelo eram compreendidos como raças puras, e o mestiço era concebido como a

degeneração da raça humana, variando o grau de acordo com a raça predominante

ao qual havia sofrido o entrecruzamento. (SCHWARZ, 2005)

A eugenia, enquanto um conceito associado a purificação das raças, aparecia

legitimando os ‘desvios do progresso ocidental’, visto que a miscigenação enquanto

uma forma degenerativa da espécie criava um ser humano híbrido, no sentido de

inferior e fraco, sem qualidades suficientes para assumir as características dos seus

ancestrais. Desta maneira, o sentido de degeneração voltava-se para a

compreensão das desigualdades sociais, como: a pobreza, as doenças mentais,

características físicas indesejáveis, hábitos culturais, religiões, casamentos inter-

raciais, entre outras práticas sociais e culturais como um reflexo da inferioridade

racial.

No Brasil estas idéias coincidiram com a primeira geração de modernistas do

ano de 187036 que procurou pensar os caminhos do desenvolvimento nacional na

perspectiva de uma nação moderna. Questionava-se a monarquia enquanto um

sistema de governo que negligenciava os anseios da nação, propondo a República

como um governo de todos, e criticava-se a escravidão como um trabalho que

violentava as faculdades humanas e a liberdade exigindo a adoção do trabalho livre.

Porém, a construção de um novo Estado não estabelecia inclusão de novos

cidadãos e o acesso político a todos de forma participativa; por isso, a fusão das

idéias cientificistas ao projeto hegemônico das elites cafeicultoras determinaram

diferentes perspectivas e rearranjos teóricos em pensar uma nação mestiça.

36

A geração de intelectuais de 1870 pode ser caracterizada como o período dos pré-modernistas, representados por Joaquim Nabuco, Silva Jardim, José do Patrocínio e Euclides da Cunha.

Page 40: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 40 -

Pensada inicialmente de forma negativa, a mestiçagem era utilizada para

explicar o atraso do Brasil em relação ao desenvolvimento socioeconômico. A

escravidão dos africanos, também passou a ser justificada de acordo com o

darwinismo social, enraizada nas concepções do monogenismo e da inferioridade da

raça negra propícia apenas para o trabalho. Portanto, a mistura do português com o

africano implicava na degeneração da espécie sob uma ótica negativa, onde seria

necessário o embranquecimento da população por meio do incentivo da imigração

européia. Com a entrada de imigrantes para trabalhar nas lavouras de café, a

ideologia racista ganhava maior atenção, na medida em que os imigrantes eram

visto como uma mão de obra mais qualificada que o ex-escravo, tanto em termos de

especialização para o trabalho como por justificativas raciais de superioridade do

branco em relação ao negro. Esta determinação somada à ausência do

reconhecimento do negro enquanto cidadão, bloqueou os principais canais de

mobilidade social em massa do negro livre, visto que além de sofrer enquanto

trabalhador livre frente à necessidade de ter que admitir um preço para sua força de

trabalho, ele agora deveria competir com uma outra cultura que ideologicamente era

considerada racialmente e intelectualmente mais apta ao trabalho livre.

Page 41: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 41 -

Na imagem de Modesto Brocos37 na famosa tela conhecida como a Redenção

de Cã, a mulher mestiça e a mulher negra agradecem o nascimento da criança

branca sob os olhares do homem branco ao fundo. A obra de Broccos sugere a

ideologia de branqueamento da época, que colaborou com o incentivo à imigração

européia como uma saída para o Brasil degenerado pela mestiçagem.

Buscando uma possibilidade de respostas, alguns intelectuais do final do

século XIX se opunham a idéia de hierarquização das raças e da mestiçagem como

algo negativo à sociedade, como foi o caso do médico Juliano Moreira, e de

intelectuais como Roquete Pinto e Arthur Ramos da primeira geração de

modernistas do século XX. Estes intelectuais atribuíram o atraso do Brasil não a

uma justificativa racial, mas à ausência do Estado no fornecimento de políticas

públicas na área da saúde e educação. Estas políticas não possuíam uma

legitimação no direito, elas eram interpretadas como alternativas à questão social, e,

sobretudo, a aplicação social sob uma via civilizatória e higienista para o controle da

pobreza. Tal iniciativa culminou na Revolta da Vacina em 1904.

A noção de que o problema poderia não ser da nação, determinou que a

identidade nacional passasse a ser pensada de uma forma diferente a partir da

geração de 1930, onde o conceito científico de raça foi substituído pela idéia

culturalista, ou seja, as diferenças raciais não eram encaradas por meio das

diferenças físicas, e sim, pela diversidade cultural, atribuída à contribuição das

diferentes raças à construção da identidade nacional e a sociedade brasileira.

A obra de Gilberto Freyre “Casa Grande e Senzala” é, de todas, a mais

emblemática ao traduzir em suas longas páginas as relações sociais e culturais

entre os negros da senzala e os senhores da casa grande. Descrevendo um

convívio diário que aponta para a construção de uma visão positiva da mestiçagem

por meio de conceito de: hibridismo38.

Segundo Freyre, as influências culturais para a construção e formação da

sociedade patriarcal brasileira foram múltiplas. O negro possui uma contribuição

maior do que a do indígena que foi em maioria assimilado pela igreja e pelos hábitos

cristãos. Ao contrário, os negros passaram a conviver nas intimidades dos senhores,

circulando e atuando no interior das casas grandes e senzalas, onde a cultura negra

37

Modesto Brocos: Redenção de Cã, 1895. Rio de janeiro, Museu nacional de Belas Artes. 38

Hibridismo: conceito criado por Gilberto Freyre que entendia a fusão das três raças - negra, branca e indígena como formadoras da identidade nacional, em uma mistura que criava uma nação híbrida.

Page 42: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 42 -

africana infiltrou e misturou-se à portuguesa nos dialetos, na alimentação e na

criação de muitos filhos de senhores.

“O negro no Brasil, nas suas relações com a cultura e com o tipo de sociedade que

aqui se vem desenvolvendo, deve ser considerado principalmente sob o critério da

história social e econômica. Da antropologia cultural. Daí ser impossível –

insistimos neste ponto – separá-lo da condição degradante de escravos, dentro da

qual abafaram-se nele muitas das melhores tendências criadoras e normais para

acentuarem-se outras, artificiais e até mórbidas. Tornou-se assim o africano um

decidido agente patogênico no seio da sociedade brasileira. Por “inferioridade e

raça’, gritam então sociólogos arianistas. Mas contra esses gritos se levantam as

evidências históricas – as circunstancias de cultura e principalmente econômicas -

dentro das quais se deu o contato do negro com o branco no Brasil. O negro foi

patogênico, mas a serviço do branco, como parte irresponsável de um sistema

articulado por outros”. (FREYRE,2003. p.404)

Nas palavras de FREYRE (2003), a cultura mestiça é positiva e uma criação

tipicamente brasileira, da fusão das três raças. Sendo assim, o fardo do atraso, da

exclusão e da pobreza não são estigmas raciais, mas conseqüência de um sistema

patológico como a escravidão, caracterizada como um sistema degradante.

Pensar a identidade nacional como algo híbrido a partir de uma visão

culturalista, ampliou a idéia de compreender a História do Brasil por meio de outras

interpretações. Autores como: Caio Prado Jr. em Formação do Brasil

Contemporâneo, Sergio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, e a já comentada

obra Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre completavam a tríade de

pensadores e historiadores que após a revolução de 1930 romperam com o ideal

racialista aderindo a influências sociais, econômicas ou culturais para o

entendimento da formação da sociedade brasileira, na tentativa de contribuir para a

construção do novo Estado idealizado no período em que viveram.

Neste cenário, a idéia de ‘democracia racial’ ganha força como uma marca

nacional, descrita no convívio harmônico entre as três raças: branco, negro e

indígena. O conceito de democracia racial contribuiu para construção do mito da

inexistência do preconceito racial no Brasil, e da legitimação de uma bandeira de

igualdade cultural entre as raças, que, em suma, ratificava a hegemonia da raça

branca, na medida em que o hibridismo associado à compreensão da formação da

identidade nacional criava uma atmosfera que abafava os conflitos sociais presentes

Page 43: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 43 -

no interior da sociedade brasileira cuja dominação social e cultural se dava sob uma

maioria branca.

“Após a abolição final, o racismo, a discriminação e a segregação geográfica dos

grupos raciais bloquearam os principais canais de mobilidade social ascendente, de

maneira a perpetuar graves desigualdades raciais e a concentração de negros e

mulatos no extremo inferior da hierarquia social. Se quantidade restrita de

mobilidade social individual foi menos que suficiente para realizar a propalada

democracia racial, vemo-nos levados a perguntar por que afiliação racial não

conseguiu proporcionar o laço coletivo para estimular as demandas dos negros por

mobilidade social grupal e pela diminuição das desigualdades raciais”.

(HASENBALG, 2005, p.233).

De acordo com HASENBALG (2005) a democracia racial não passou de

formas ideológicas que contribuíram para cooptação social através da mobilidade

social controlada dos homens de cor - normalmente de membros mais claros;

associada a formas sutis de ocultamento de divisões raciais. Na realidade, o

preconceito racial segundo o autor, se tornava uma barreira à ascensão social dos

negros e a ela se somava uma ideologia que previa o próprio ocultamento do conflito

entre as diferentes raças. Posteriormente, a partir da década de 1950, a discussão

da ausência do preconceito racial na sociedade se ampliava, já que legalmente o

preconceito e o racismo eram considerados práticas inconstitucionais com a

implementação da Lei Afonso Arinos contra discriminação racial criada em 1951(Lei

no1390/51)39.Em função da ilegitimidade do racismo enquanto prática social, a

discriminação se construía sob os alicerces da classe e do status40 do cidadão, visto

que conforme a democracia racial todos seriam iguais.

Segundo NOGUEIRA (1983)41 que discutiu a “situação racial” no Brasil a

partir de uma metodologia comparativa com os EUA, o preconceito racial se

expressa de duas formas: uma como preconceito de marca e a outra como

preconceito de origem. Dada a historicidade da identidade brasileira enquanto uma

nação híbrida e a dificuldade do entendimento do racismo enquanto uma forma

explícita de expressão, o preconceito de marca conceitualmente implica na

reformulação do preconceito de cor, onde o preconceito racial exerce manifestação

39 Após a Constituição de 1888, foi sancionada a Lei Caó no7716/89) em 1889, penalizando o racismo como crime inafiançável. 40 Conceito utilizado para compreensão do lugar social sob a organização das hierarquias. 41 NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e de origem. In: Tanto preto quanto branco: estudo das relações raciais. SP: T.A Queiroz, 1983.

Page 44: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 44 -

por meio da aparência, dos traços físicos, fisionomia, gestos e sotaque.

Diferentemente, o preconceito de origem se expressa em padrões étnicos bem

definidos, onde o preconceito racial se define enquanto um padrão segregacionista,

o que exemplifica a “situação racial” dos EUA.

Para NOGUEIRA (1983, p.80) o preconceito de marca no Brasil impossibilita

a definição do tipo que se atribui ao grupo discriminador e discriminado, em função

da concepção de branco e não branco, que varia de acordo com o grau de

mestiçagem, de individuo para individuo, de classe para classe e de região para

região. A incongruência dos limites do preconceito de marca, extremamente

marcada pela assimilação, viabiliza a confusão da sua expressão em uma luta de

classes, e consequentemente, evita discuti-lo por receio de que a própria discussão

seja em si racista.

A atmosfera de harmonia étnica e racial42 gerou a ausência do conflito social

na sociedade brasileira sobre o mito da inexistência do mesmo. Este mesmo mito

contribuiu para a dificuldade em discutir o racismo por meio da construção de uma

identidade única para as diferentes culturas que materializaram a História brasileira.

A visão positiva sobre a mestiçagem não alterou a noção de aculturação e

assimilação provocada pela construção de uma sociedade híbrida, fundida em

valores culturais diversos e particulares. A quebra do conceito de raça na Europa

apareceu no século XX com estudos na área de Biologia que possibilitaram

progressos dentro da genética humana através do Projeto Genoma.43

O avanço da genética possibilitou a criação de apenas uma raça: a raça

humana, contrariando as divisões raciais do século XIX. Com esta descoberta, os

diferentes cruzamentos garantiam características fenótipas distintas e não raciais,

tendo em vista que a configuração genética de todos os seres humanos era única.

Contudo, a utilização do conceito de raça prevaleceu, apesar de biologicamente

incorreto; a grande parte das ciências humanas continuou a utilizá-lo como forma de

estudos sociais.

Pensando nas questões abordadas até aqui surgem as seguintes reflexões:

qual seria a importância de mito de democracia racial para as relações raciais

brasileiras? Por que a idéia de racismo no Brasil é camuflada?

42 In: HASENBALG (2005, p.254) 43

O Projeto Genoma teve inicio em 1990. Este projeto realizou um mapeamento do genoma humana por meio do estudo das sequências de DNA. A identificação da seqüência de gens humanos contribui para a descoberta da cura de diversas doenças genéticas, assim como, para o próprio desenvolvimento da ciência e saúde.

Page 45: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 45 -

Estas questões permitem comparar o mito da democracia racial – defendido

culturalmente como uma marca nacional, com experiências históricas que geraram a

segregação racial e desejo coletivo como em países como os EUA e a África do Sul,

onde o racismo e a intolerância determinaram a separação espacial e social de

negros e brancos de forma direta e aberta. No Brasil, o racismo e a discriminação

apesar de existirem, não impedem o convívio aberto de negros e brancos; contudo,

assume uma posição de entrave e mobilidade social, na medida em que a alocação

dos maiores grupos de pobreza se dá entre os negros nas regiões da periferia e

favelas das grandes cidades. A questão não está em negar a pobreza de brancos e

negros, e sim, observar a maneira com que negros e brancos estão sujeitos à

exclusão e à pobreza no Brasil, para então refletir a importância e necessidade de

políticas raciais para a inclusão de negros e diminuição do afastamento social entre

estes grupos étnicos na sociedade. (RÊGO BARROS, 2007, p.72)44.

“A eficácia da ideologia racial dominante manifesta-se na ausência do conflito racial

aberto e na desmobilização política dos negros, fazendo com que os componentes

racistas do sistema permaneçam incontestados, sem necessidade de recorrer a um

alto grau de coerção”. (HASENBALG, 2005, p.255)

A recorrente idéia da cooptação política dos negros têm sido revertida no

novo cenário contemporâneo de políticas públicas. No governo FHC, em 2001, após

a Conferência de Durban contra a Xenofobia e o Racismo Mundial, passaram a ser

adotadas as políticas de ações afirmativas45, como forma de criar novos

mecanismos que garantam a equidade e maior mobilidade social aos negros no

Brasil, materializando oportunidades e melhores chances no mercado trabalho e na

educação.

“As políticas de ação afirmativa cumprem o importante papel de cobrir essas

lacunas, fazendo com que a ocupação das posições do Estado e do mercado de

trabalho, se faça, na medida do possível, em maior harmonia com o caráter plúrimo

da sociedade. Neste sentido, o efeito mais visível dessas políticas, além do

44

RÊGO BARROS, Clarissa Fernandes do. Raças, etnias e políticas educacionais: reflexões sobre a inclusão através da reserva de vagas para negros na UERJ. IN: Revista Espaço pedagógico. Políticas Educacionais e cidadania. Vol. 14. número 2.Editora UPF: Passo Fundo. Jul./Dez 2007. pp. 66/77 45

As políticas de ação afirmativas são políticas sociais voltadas para concretização da igualdade substancial ou material, que procura neutralizar os efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e compleição física. A meta das ações afirmativas é a implementação de uma certa diversidade e de uma maior representatividade dos grupos minoritários nos mais diversos domínios da atividade pública e privada. (GOMES, 2003).

Page 46: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 46 -

estabelecimento da diversidade e representatividade propriamente ditas, é o de

eliminar as barreiras artificiais e invisíveis que emperram o avanço de negros. (...)”.

(GOMES, 2003, p.31)46

Tais políticas estão voltadas para noção de repartição de espaços entre

negros e brancos nos serviços públicos e universidades por meio de ações

afirmativas. Para o alcance e acesso a esta oportunidade, a idéia de identidade

nacional híbrida e uniforme tem sido desconstruída por meio de pressões dos

diferentes movimentos sociais, que passam a entender a identidade nacional como o

reconhecimento das diferenças. A dificuldade de se reconhecer diferente sob o

julgar da mestiçagem tem levado o debate das ações afirmativas, a uma discussão

em torno do racismo que retoma a idéia de cooptação política, demonstrando a

negligência da sociedade em discutir o racismo como um impasse à mobilidade

social dos negros.

Neste sentido, o debate e a aplicabilidade das políticas de ação afirmativas se

tornam imprescindíveis, pois justificam a importância da adoção deste tipo de

política pública como uma reparação histórica, condenando a escravidão como um

crime, e obrigando a sociedade a desvelar o racismo das práticas sociais. Com este

objetivo, as ações afirmativas se caracterizam como um mecanismo para reconhecer

em nossas relações sociais a questão racial como um problema a ser resolvido, a

partir da construção de oportunidades para os negros como um caminho para

equidade e valorização de nossa diversidade.

1.4 Raças e Política de Cotas no Brasil.

O branqueamento no Brasil se caracterizou como uma ideologia construída

para garantir a idéia de purificação das raças e a manutenção do branco enquanto

cor e raça predominante. Esta ideologia previa a mistura das raças ditas inferiores

com o maior número de brancos, o que tendeu a ampliar as categorias raciais, onde

as diferenças físicas descritas pela tonalidade da pele tornavam-se dados sociais

significativos, ou seja, quanto mais claro, mais chances teriam de mobilidade social.

46

GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional das ações afirmativas. IN: SANTOS, Renato Emerson dos Santos, LOBATO, Fátima. (org.). Ações afirmativas. Políticas públicas contra as desigualdades raciais. DP&A: Rio de Janeiro, 2003.

Page 47: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 47 -

Neste sentido, no Brasil a construção do sistema racial não se formou de forma

rígida ou do tipo de casta. A mistura das raças determinou a construção de uma

identidade racial fragmentada e assimilada à identidade do grupo dominante branco,

que em parte controlava o mercado de trabalho, a política e se encarregava de criar

as leis e políticas públicas.

Durante o final do século XIX, o número predominante de negros era visto

como uma justificativa para o atraso econômico. Além disso, a condição histórica da

maioria dos negros como ex-escravos impedia o acesso dos negros libertos à

propriedade e à entrada no mercado de trabalho enquanto trabalhador livre. A

condição do negro enquanto um sujeito fora da linha de mobilidade social é descrita

por HASENBALG (2005, p.248) não apenas a partir da imigração européia como um

incentivo do Estado. Segundo o autor, o branqueamento social ativou o mecanismo

de compensação parcial de status através do qual, as pessoas de cor bem-

sucedidas, em termos educacionais e econômicos, são percebidas e tratadas como

mais claras do que as pessoas de aparência inferior semelhante, mas com status

inferior. A aceitação social implica em transformações do grupo negro de origem em

um grupo de referência negativa, o que intensifica a divisão entre os membros de

grupos de cor e sugere a manifestação do preconceito de negros contra negros.

O branqueamento eliminou o pertencimento racial e a diversidade presente

em nossa sociedade, criando um ambiente favorável à construção do racismo

velado entre os diferentes grupos, justificado e intensificado em relação à classe e à

cor da pele, criando uma atmosfera de cooptação entre os negros e a cultura

dominante branca, caracterizando-a como um objetivo a alcançar como forma de se

reconhecer pertencente à sociedade.

A ideologia de democracia racial reconhecida a partir de 1930, que tornava

favorável a imagem da miscigenação, no entanto, sustentou a ausência de um

conflito racial não declarado, onde o preconceito e a discriminação antes de serem

manifestados contra os negros, passam a ser atribuídos às diferenças de classe, o

que possibilita a compreensão das desigualdades entre negros e brancos não como

fruto ou resultado de considerações raciais, e sim, da classe e da baixa posição

social dos negros. A imagem de uma harmonia étnica e racial como parte de uma

concepção ideológica mais ampla da natureza humana é associada ao mecanismo

de legitimação destinado a dissolver as tensões, bem como antecipar e controlar

certas áreas de conflito social. (HASENBALG, 2005, p. 254)

Page 48: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 48 -

“A estrutura do privilégio do branco e a subordinação não-branca, evita a

constituição da raça como principio de identidade coletiva e ação política. A eficácia

racial dominante manifesta-se na ausência dos negros, fazendo com que os

componentes racistas do sistema permaneçam incontestados, sem necessidade de

recorrer a um alto de grau de coerção”. (HASENBALG, 2005, p.255)

A ausência da compreensão da diversidade racial brasileira e das

manifestações culturais diante da construção de uma identidade cultural híbrida,

acabou por obscurecer a crise interna de um conflito racial não declarado e velado

pelos que cometem e inquestionável por aqueles que sofrem. Porém, esta situação

pode se reverter no esforço do negro em se impor pela cultura e em mostrar sua

capacidade de desenvolvimento cultural nas mesmas proporções do branco. (IANNI,

2004, p.61).

As palavras de IANNI (2004) quando relacionadas à emergência do

movimento negro a partir da década de 1930, caracterizado pela Frente Negra

Brasileira47, vislumbra o inicio da construção do negro enquanto cidadão político de

direitos, questionando o preconceito e racismo não a partir das diferenças culturais,

mas como um obstáculo a ascensão social dos negros48. A racialização do discurso

se caracteriza como algo novo e contemporâneo aos anos de 1990 no Brasil, onde a

relação com o movimento negro americano descreve modelo de discriminação

positiva como um reconhecimento cultural e racial necessário à reparação das

desigualdades entre brancos e negros na sociedade, e assim, raça e cultura passam

a justificar a importância do enfrentamento da questão racial presente na sociedade

brasileira enquanto questão social. Portanto, a tomada da consciência da negritude

esta vinculada à percepção do sistema social e do sistema de classes pelo negro,

onde em relação à processualidade histórica, o negro se enxerga primeiro como ex-

escravo, trabalhador livre e operário, anteriormente a se reconhecer pelo grupo de

cor tendo em vista a dinâmica da construção ideológica da sua identidade cultural e

racial. Asfixiado pela sua condição de raça e de classe (PINTO, 1998, p.245), a

trajetória social do negro no Brasil reivindica uma luta pelo acesso aos direitos e ao

reconhecimento enquanto cidadão.

47 A Frente Negra Brasileira foi criada em 1931 em São Paulo e propunha a discussão em torno da situação dos negros no Brasil reivindicando direitos sociais e políticos através da proposta de uma rede de proteção social jurídica, de assistência, intelectual, artística e do trabalho da gente negra. 48 Para um maior conhecimento da História do Movimento Negro no Rio de Janeiro ver: PINTO, L.A.Costa. O Negro no Rio de Janeiro. Relações de Raça numa Sociedade em Mudança. Editora UFRJ:1998, RJ.

Page 49: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 49 -

Com a adoção da Constituição Cidadã em 1988, o Brasil passa adquirir um

novo perfil referente à noção de cidadania, visto que, no alcance dos direitos

universais se encontra o reconhecimento cultural da diversidade brasileira. No

entanto, a manutenção do sistema político conservador caracterizado por FIORI

(2001)49 como “pacto conservador”50, reforça a hegemonia por parte das elites

dominantes nos anos 1990, contribuindo para a enorme dispersão salarial e a

segmentação do mercado de trabalho responsável, entre outros fatores, pela

formação de um quadro crescente de desigualdade social.

O crescimento das desigualdades sociais no Brasil, estaria desta forma,

relacionada à impotência do Estado em interferir nos interesses ligados à estrutura

fundiária e a monopolização do espaço urbano, no qual residem a acumulação de

capitais, e a desenfreada e desregulada expansão das grandes cidades,

submetendo uma grande parcela da população a um grave estado de marginalidade

com relação ao acesso aos serviços públicos.

Neste cenário, durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995/2003), a

questão racial ganha uma maior atenção em função da orientação dos organizamos

multilaterais (UNESCO e BIRD)51 que passaram a ditar normas e regras para a

política de educação na América Latina. Em resposta à negligência do Estado no

investimento de políticas sociais na área da educação, as reivindicações de

movimentos sociais colocaram em pauta a falta de direitos dos negros sob

justificativas da questão racial e social. Neste mesmo período, as políticas de ações

afirmativas são adotadas como uma forma de reparação das desigualdades

históricas sofridas pelos grupos culturalmente e socialmente excluídos na história do

acesso aos direitos. Como um mecanismo das ações afirmativas, as políticas de

cotas ganham espaço e aplicabilidade na área de educação, precisamente no

ensino superior como forma de garantir o acesso às universidades públicas do país.

A adoção das cotas pelas universidades ganha uma atenção especial em debates

acadêmicos, na mídia e na sociedade civil com posições polêmicas contra e a favor

49

. FIORI. J.L. 60 lições dos 90. Uma década de Neoliberalismo. RJ: Record. 2001. 50 Pacto Conservador: segundo Fiori (2001), esta denominação esta associada ao Brasil agrário e oligárquico cujas políticas se mantiveram intocáveis durante toda a modernização industrial da sociedade brasileira, mesmo depois da política liberal dos anos 1990. 51

A UNESCO: Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura; foi fundada em 16 de novembro de 1945, como uma instituição voltada para criação de estudos e ações na área de educação, cultura conservação de patrimônios históricos e comunicação. O BIRD: Banco Internacional de Desenvolvimento e Reconstrução; é uma das instituições do Banco Mundial que procura realizar empréstimos e assistência para o desenvolvimento de países com rendas médias e antecedentes de crédito.

Page 50: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 50 -

de sua aplicação, através da reserva de vagas para estudante de escolas públicas,

negros pobres declarados, indígenas e deficientes físicos.

Buscando um diálogo com alguns setores da sociedade que procuraram se

posicionar contra ou a favor da PL 73/99 (Lei de Cotas), intelectuais brasileiros

procuraram justificar a implementação das políticas de cotas nas universidades a

partir do “Manifesto em Favor da Lei de Cotas e do Estatuto de Igualdade Racial” (3

de julho de 2006) e do “Manifesto Contra as Cotas Raciais” (30 de maio de 2006).

Ambos os manifestos foram entregues ao Supremo Tribunal de Justiça em Brasília e

publicados nos jornais de grande circulação e internet. No “Manifesto em Favor da

Lei de Cotas e do Estatuto de Igualdade Racial”, como representantes e redatores

assinaram Renato Ferreira, Frei Davi e Renato Emerson dos Santos52 (do

movimento de pré-vestibulares comunitários do Rio de Janeiro – PVNC e Educafro),

e no “Manifesto Contra as Cotas Raciais”, os intelectuais Peter Fry e Yvonne Maggie

(professores titulares do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ) assinaram

também como representantes principais e redatores. A teorização de ambos os

manifestos polemizou o debate em dois segmentos distintos em relação à

interpretação da questão racial brasileira, e por isso, ambos os manifestos possuem

relevância política enquanto documentos oficiais e pioneiros no posicionamento

social e debate em relação às políticas de ação afirmativa nas universidades.

A importância de se discutir a raça como um fator responsável pela

desigualdade brasileira criou dois pólos dicotômicos que descrevem o caminho de

superação das desigualdades sociais e raciais no Brasil através de um discurso

universalista – entendido como a criação de políticas universais que contemplem

todos os cidadãos; e um outro grupo que se coloca a favor de uma política

compensatória de discriminação positiva como forma de reparação das

desigualdades históricas sofridas entre os diferentes grupos étnicos existentes no

Brasil, principalmente, entre brancos e negros.

De acordo com o Manifesto a Favor da Cotas:

“A desigualdade racial no Brasil tem fortes raízes históricas e esta realidade não

será alterada significativamente sem a aplicação de políticas públicas específicas. A

Constituição de 1891 facilitou a reprodução do racismo ao decretar uma igualdade

puramente formal entre todos os cidadãos. A população negra acabava de ser

colocada em uma situação de completa exclusão em termos de acesso a terra, a

52 Renato Emerson dos Santos é pesquisador da UERJ do LPP – Laboratório de Políticas Públicas.

Page 51: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 51 -

instrução e ao mercado de trabalho para competir com os brancos diante de uma

nova realidade econômica que se instalava no país. (...) a ascensão social e

econômica no país passa necessariamente pelo acesso ao ensino superior. (...) A

justiça e o imperativo moral dessa causa encontraram ressonância nos últimos

governos, o que resultou em políticas públicas concretas, dentre elas: a criação do

Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra, de

1995; as primeiras ações afirmativas no âmbito dos Ministérios, em 2001; a criação

da Secretaria Especial para Promoção de Políticas da Igualdade Racial (SEPPIR),

em 2003; e, finalmente, a proposta dos atuais Projetos de Lei que estabelecem

cotas para estudantes negros oriundos da escola pública em todas as

universidades federais brasileiras, e o Estatuto da Igualdade Racial. O PL 73/99 (ou

Lei de Cotas) deve ser compreendido como uma resposta coerente e responsável

do Estado brasileiro”. (trechos)

Conforme descrito no Manifesto a favor das Cotas, a justificativa da

desigualdade racial é histórica, e emerge da necessidade de retomar o conflito como

um instrumento responsável pela reversão da situação de exclusão do negro na

sociedade. Para isso, o Estado deve reconhecer os erros históricos e a construção

de uma identidade nacional voltada para cooptação do negro enquanto sujeito

social, criando políticas públicas voltadas para a valorização da cultura negra. O

reconhecimento da negritude é visto como um instrumento de ação e de tomada de

consciência do negro a partir do conhecimento da sua condição de raça e de classe

na sociedade, onde a justiça enquanto um mecanismo de igualdade é acionada em

função de processos de viabilização de uma discriminação positiva, garantindo o

acesso à universidade como a materialização de uma das propostas voltadas para o

alcance da justiça social.

E por que a universidade é vista como um meio de ascensão social? A

educação superior dentro do sistema mercantil é vista como um meio de

qualificação, uma forma de integração social do indivíduo, um processo de

socialização. A universidade está relacionada à profissionalização, e a cada

profissão dentro do sistema capitalista está vinculado um valor mercantil relacionado

à sociedade e à própria família. Neste sentido, a hierarquia prevalece no mercado de

trabalho e na própria academia, onde os cursos e departamentos estão direcionados

para a valorização do indivíduo no mercado através de diferentes vocações e

objetivos.

Paralelo a idéia de mercado de trabalho, o processo educacional na

universidade garante o conhecimento de si enquanto o sujeito histórico, através do

Page 52: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 52 -

estudo da História, das Ciências Sociais, da Antropologia, o que possibilita ao

estudante um amadurecimento intelectual sobre assuntos diversos como: sociedade,

política, economia e cultura. A diversidade cultural no ensino superior é importante

para a quebra do padrão elitista de dominação cultural presente no cotidiano da

universidade. As políticas de ação afirmativa garantem novas demandas trazidas

pelos estudantes de classe e raças diferenciadas, viabilizando uma transformação

nas relações sociais da universidade, no conhecimento destes grupos étnicos, além

de uma possibilidade de melhores condições no mercado de trabalho.

No entanto, a discriminação positiva e a racialização do discurso em favor dos

negros, em particular, é criticada pelo Manifesto Contra as Cotas, como uma lei

que em si, se responsabiliza em criar uma construção social e histórica da raça no

Brasil baseada numa tensão entre duas taxonomias, onde o continuum de cores é

substituído pela dicotomia negros e brancos. (FRY, 2005, p.224). E desta forma,

segundo os autores deste manifesto, que o principio universalista de direito

constitucional passa a ser atacado e os cidadãos passam a não ser mais encarados

como iguais em relação aos princípios jurídicos.

“O princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos é um fundamento

essencial da República e um dos alicerces sobre o qual repousa a Constituição

brasileira. Este princípio encontra-se ameaçado de extinção por diversos

dispositivos dos projetos de lei de Cotas (PL 73/1999) e do Estatuto da Igualdade

Racial (PL 3.198/2000) que logo serão submetidos a uma decisão final no

Congresso Nacional. (...) Se forem aprovados, a nação brasileira passará a definir

os direitos das pessoas com base na tonalidade da sua pele, pela ‘raça’. A história

já condenou dolorosamente estas tentativas. (...)Transformam classificações

estatísticas gerais (como as do IBGE) em identidades e direitos individuais contra o

preceito da igualdade de todos perante a lei. A adoção de identidades raciais não

deve ser imposta e regulada pelo Estado. Políticas dirigidas a grupos ‘raciais’

estanques em nome da justiça social não eliminam o racismo e podem até produzir

o efeito contrário, dando respaldo legal ao conceito de raça, e possibilitando o

acirramento do conflito e da intolerância. A verdade amplamente reconhecida é que

o principal caminho para o combate à exclusão social é a construção de serviços

públicos universais de qualidade nos setores de educação, saúde e previdência, em

especial a criação de empregos. Essas metas só poderão ser alcançadas pelo

esforço comum de cidadãos de todos os tons de pele contra privilégios odiosos que

limitam o alcance do princípio republicano da igualdade política e jurídica”.(trechos)

Page 53: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 53 -

De acordo com o Manifesto Contra a Lei de Cotas a igualdade jurídica é

afetada a partir da diferenciação racial. Segundo FRY (2005), a democracia racial

não anulou as desigualdades raciais, mas também não produziu um ódio entre

brancos e negros, em função da multiculturalidade, do hibridismo e das ‘raças

misturadas’, já que este gradiente de cores não se encontrava restrito a uma

denominação bipolar. Neste sentido, as cotas representariam uma espécie de

‘racismo às avessas’. (...) Ao introduzir cotas para vagas no ensino superior, o

governo estaria criando e celebrando a existência de duas raças no Brasil, a branca

e a negra. Estas substituiriam as muitas maneiras que o Brasil inventou para se

referir às complexas combinações genéticas. (FRY, 2005, p.243)

Em resposta, o Manifesto a Favor da Cotas coloca:

“Outro argumento muito comum usado por aqueles que são contra as políticas de

inclusão de estudantes negros por intermédio de cotas é que haveria um

acirramento dos conflitos raciais nas universidades. Muito distante desse panorama

alarmista, os casos de racismo que têm surgido após a implementação das cotas

têm sido enfrentados e resolvidos no interior das comunidades acadêmicas, em

geral com transparência e eficácia maiores do que havia antes das cotas. Nesse

sentido, a prática das cotas tem contribuído para combater o clima de impunidade

diante da discriminação racial no meio universitário. Mais ainda, as múltiplas

experiências de cotas em andamento nos últimos 4 anos contribuíram para a

formação de uma rede de especialistas e de uma base de dados acumulada que

facilitará a implementação, a nível nacional, da Lei de Cotas. (...) Os assinantes do

documento não apresentam nenhuma proposta alternativa concreta de inclusão

racial no Brasil, reiterando apenas que somos todos iguais perante a lei e que é

preciso melhorar os serviços públicos até atenderem por igual a todos os

segmentos da sociedade. Essa declaração de princípios universalistas, feita por

membros da elite de uma sociedade multi-étnica e multi-racial com uma história

recente de escravismo e genocídio, parece uma reedição, no século XXI, do

imobilismo subjacente à Constituição da República de 1891: zerou, num toque de

mágica, as desigualdades causadas por séculos de exclusão e racismo, e jogou

para um futuro incerto o dia em que negros e índios poderão ter acesso eqüitativo à

educação, às riquezas, aos bens e aos serviços acumulados pelo Estado brasileiro.

Essa postergação consciente não é convincente. Diante dos dados oficiais recentes

do IBGE e do IPEA que expressam, sem nenhuma dúvida, a nossa dívida histórica

com os negros e os índios, ou adotamos cotas e implementamos o Estatuto, ou

seremos coniventes com a perpetuação da nossa desigualdade étnica e

racial”.(trechos)

Page 54: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 54 -

Conforme foi discutido ao longo deste capítulo, a racialização da Lei de Cotas

não se apresenta como a tentativa de alcançar um privilégio isolado para negros. Ela

em si denuncia e expõe o racismo velado historicamente, e apresenta a importância

do conflito e da ação política para o alcance dos direitos de grupos étnicos

excluídos, determinando como objetivo principal das ações afirmativas a reparação

histórica, a justiça social e a diversidade. Para tal, a raça aparece como um

mecanismo integrador deste grupo social como uma forma de viabilizar a identidade

nacional pluriétnica. O principio da igualdade universal, conforme está estabelecido

na Constituição e leis, já é uma expressão da ideologia racial do branco. Ao

estabelecer a igualdade de todos, e proibir quaisquer barreiras e ódios de raça, o

branco que legisla e governa, toma o dito pelo não dito. Se a lei diz que não há

preconceito, que esta é uma democracia racial, fica, portanto, proibido falar de

preconceito. Há preconceito de não ter preconceito. Discutir preconceito é suscitá-

lo”. (IANNI, 2004, p.131).

A centralização da discussão das cotas na questão racial determinou o seu

próprio entrave enquanto lei, visto que a maioria da sociedade condena uma

discussão aberta do racismo, do preconceito e das desigualdades raciais,

acreditando que não debater estas questões implicaria em não suscitar a existência

de tais práticas sociais. No entanto, a percepção da presença da questão racial

como integrante da questão social está vinculada à racialização do discurso das

políticas públicas, que descreve o alcance dos direitos a partir do reconhecimento

dos diferentes grupos étnicos, e por meio de ações e pressões sociais tem

conseguido vitórias significativas. Resta saber agora, de que maneira a política de

ação afirmativa se coloca a favor da manutenção dos direitos dos beneficiados, no

que se refere ao reconhecimento deste direito, ao acesso ao ensino superior e à

permanência dos estudantes na universidade.

Page 55: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 55 -

CAPÍTULO 2

O HISTÓRICO DA ADOÇÃO DAS POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA

NO BRASIL.

Page 56: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 56 -

2.1 Introdução: fronteiras conceituais

A política social enquanto área de estudo e pesquisa implica em um território

polêmico acerca do seu próprio conceito, na medida em que se coloca em fronteira

com os conceitos de Estado de Bem Estar Social e Seguridade Social.

A idéia de política implica em decisões e escolhas políticas e públicas que

dizem respeito à sociedade como um todo, partindo de um pressuposto moral e

ético. Neste sentido, a política social é entendida como uma política pública de

Estado, responsável por atribuir uma ação embutida de valores com fins sociais, ou

seja, a política social pressupõe a justiça social idealizada em valores de igualdade,

liberdade, fraternidade e solidariedade. Tais valores são entendidos pela sociedade

contemporânea como direitos sociais53 a serem assegurados pelo Estado.

Segundo MARSHALL (1964), a igualdade humana está relacionada com o

conceito de participação integral, entendida como cidadania. As desigualdades

sociais podem ser aceitas desde que a igualdade via cidadania seja reconhecida. A

cidadania é um direito legal a todos os homens de possuir direitos, cabendo ao

Estado assumir a responsabilidade de garanti-los. Para o autor, o conceito de

cidadania é dividido em três tipos de direitos: o civil, o político e o social. O elemento

civil é composto dos direitos da liberdade individual, a liberdade de ir e vir, liberdade

de imprensa, pensamento, fé e o direito à justiça como ferramenta responsável por

validar tal igualdade perante a lei. O elemento político esta relacionado com o direito

de participação política e voto. O elemento social se refere ao direito mínimo de

bem-estar econômico, segurança, acesso aos serviços sociais, ao sistema

educacional e à saúde.

Para a noção de cidadania e direito, é importante perceber o caráter coletivo

da política social, que passa a ser intermediado pelas instituições das sociedades

contemporâneas capitalistas responsáveis por garantir a justiça social. No entanto, o

conceito de justiça social como uma idéia em torno da igualdade varia de acordo

com os mecanismos de ação do Estado; por exemplo, o Estado Social que procura

associar o desenvolvimento industrial ao governo para proteger seus trabalhadores

53 Os direitos sociais são caracterizados como um conjunto de direitos associado aos direitos civis e direitos políticos, e em conjunto, são entendidos como cidadania, ou seja, um valor universal comum a todos os indivíduos nas sociedades capitalistas assegurado pelo Estado. Para maiores esclarecimentos ver MARSHALL, T. Cidadania, Classe Social e Status. Zahar: Rio de Janeiro, 1964.

Page 57: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 57 -

por meio da noção de cidadania, enquanto o Estado de Bem Estar Social criado na

década de 193054, procurou garantir segurança à sociedade como um todo a partir

da modificação das conseqüências das leis de mercado sob o amparo do Estado.

BOBBIO (2004)55 caracteriza o Estado contemporâneo como um Estado de Direito e

um Estado Social, articulado e responsável por garantir as liberdades da sociedade:

pessoal, política e econômica.Se por um lado o Estado de Direito se responsabiliza

pela garantia do status quo, o Estado Social representa uma via por onde a

sociedade passa a ter acesso ao Estado, constituindo a possibilidade da construção

de uma ponte para o bem-estar social.

Dentro da lógica liberal no período do pós-guerra, o Estado do Bem-Estar

Social ganha força nos países capitalistas industrializados como um espaço de

garantia da justiça social através da oferta de serviços sociais à população, ou seja,

o Estado se responsabilizaria por prover: saúde, educação, saneamento básico,

habitação dentre outros direitos.

O Welfare State (Estado de Bem-Estar Social) tornou-se um Estado modelo

das sociedades contemporâneas capitalistas, alterando a sua estrutura prévia com o

objetivo de garantir as necessidades e rendimentos mínimos que um indivíduo

precisa para sobreviver, criando a todos os cidadãos serviços públicos na área de

educação, saúde, segurança, serviço social, seguridade social, independente da

renda ou classe social. A idéia de proteção do Welfare State encontra-se alicerçada

no direito e não na necessidade, cabendo ao Estado proteger a todos por meio de

serviços públicos e leis compensatórias à exploração dos trabalhadores no sistema

capitalista.

Apesar da idéia de proteção ser mais antiga do que a própria noção de direito,

é importante notar que ambos: proteção e direito, a partir dos anos 1970,

começaram a ser questionados. O modelo de Estado de Bem Estar Social entrou em

crise em função do aparecimento de idéias revisionistas que exigiram novos papéis

e funções do Estado, diante da crise econômica dos países capitalistas. Estas novas

idéias exigiam a auto-regulação da economia e do mercado sem a intervenção do

Estado, retomando as antigas idéias liberais do século XIX, na busca pela

54 Refiro-me no texto, à criação do Welfare State nos EUA, como uma alternativa do presidente Roosevelt de reerguer o país a partir do investimento do Estado em políticas sociais e obras públicas para superar a crise de 1929. Em relação ao caso brasileiro, não podemos interpretar o Estado como um Estado de Bem-Estar Social, e sim, como Estado desenvolvimentista, criado a partir de 1950. 55

Ver BOBBIO (2004: 401).

Page 58: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 58 -

desregulação e estabilização econômica por meio das privatizações, determinando o

desmonte do Estado de Bem Estar Social. Nos anos 1990, essas idéias surgem

como uma verdadeira epidemia mundial, traduzindo-se em um pensamento

hegemônico responsável por viabilizar o crescimento econômico e a modernização

tanto nos países centrais quanto na periferia do capitalismo.

As políticas neoliberais aterrissam como uma alternativa à crise capitalista

internacional, dos choques de petróleo ocorridos em, 1973 e 1979. Com a crise

fiscal do Estado, foram realizadas novas estratégias políticas, econômicas e sociais,

com o objetivo de reaver o padrão de acumulação perdido. O Estado retraiu-se do

campo social dando ênfase no econômico, determinando a redução dos gastos

públicos com os direitos e as políticas sociais.

No Brasil, as políticas neoliberais foram adotadas durante o governo

Fernando Henrique Cardoso (1995/2003). A focalização da pobreza e a

subalternidade foram orientações centrais para formulação e operacionalização das

políticas sociais, que contraditoriamente, às conquistas legais provenientes da

Constituição de 1988, tenderam a fragmentar e a dar maior centralidade à política de

assistência social, historicamente, voltada para as camadas sociais pobres e

carentes. Em consonância com as estratégias neoliberais, as políticas sociais

tenderam a dar ênfase ao princípio de equidade com o foco na pobreza. (NETO,

2007, p.21)56

A adoção das ações afirmativas no Brasil esteve relacionada a uma releitura

das desigualdades sociais, onde a exclusão social passou a ser caracterizada não

só por critérios econômicos, mas também interpretada por meio das desigualdades

raciais. A participação dos movimentos sociais a partir dos anos de 1990,

principalmente do Movimento Negro, contribuiu para que as diferenças sociais

sofressem uma alteração nos critérios de entendimento, onde a raça e a classe

apareciam como justificativas para o afastamento socioeconômico entre brancos e

negros na sociedade. O revisionismo da construção da identidade brasileira,

pontuando o branqueamento como um dos responsáveis pela assimilação da cultura

negra na sociedade, determinou a idéia do racismo estrutural como o responsável

pelo vácuo da falta de oportunidades para a população negra.

56

NETO, Antonio Cabral et alli (org.). Pontos e contrapontos da Política Educacional. Liberlivro, Brasília. 2007.

Page 59: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 59 -

“As ações afirmativas se definem como políticas públicas (e privadas) voltadas à

concretização do principio constitucional da igualdade material e à neutralização

dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de origem nacional e de compleição

física. Na sua compreensão, a igualdade deixa de ser simplesmente um principio

jurídico a ser respeitado por todos, e passa a ser um objetivo constitucional a ser

alcançado pelo Estado e pela sociedade”. (GOMES, 2003, p.21)57

Essa nova concepção de política social possui como alvo de ação um

individuo especifico cuja tentativa se encontra na concretização da igualdade

substancial ou material. Portanto, a ação afirmativa é interpretada como uma

discriminação positiva, pois é na idéia de igualdade substantiva que se encontra o

suporte normativo da ação afirmativa, onde o principal elemento é a justiça social.

Como já discutido no capítulo anterior, reconhece-se que a diferença entre os

indivíduos não são mais encaradas como problemas apenas de natureza

econômica, descritos pelo paradigma do modelo liberal, em que essas diferenças

são encaradas como produtos das relações sociais e da própria maneira como a

sociedade se organiza. Neste sentido, a falta de oportunidades não é um problema a

ser resolvido pela ausência de igualdade legal, e sim, pela necessidade de

igualdade substancial, cabendo ao Estado gerir mecanismos que auxiliem os

indivíduos a alcançar condições de disputa eqüitativa no acesso aos diversos

setores e instituições sociais.

No histórico da justificação das ações afirmativas, o país que possui a maior

experiência histórica é a Índia, onde as ações afirmativas foram implementadas no

contexto da colonização inglesa (XIX), e no período de 1950 durante a

independência, foi homologada a lei com o objetivo: 1) de compensação e reparação

das injustiças cometidas no passado por determinado grupo social, 2) igualdade

proporcional com a idéia de criar oportunidades de educação e emprego relativo a

cada grupo social, 3) justiça social, visto que as desigualdades são produto de

grupos sociais específicos (sociedade de castas), e, portanto, passiveis de se tornar

objeto de políticas públicas. (JUNIOR, 2003, p.47)58

57 GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In: SANTOS, Renato Emerson, LOBATO, Fátima, (org.). Ações afirmativas. Políticas Públicas contra as desigualdades raciais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. 58 JUNIOR, João Feres. Aspectos normativos e legais das políticas de ação afirmativa. In: JUNIOR, João Feres, ZONINSEIN, Jonas. (org.). Ações afirmativas e universidade. Experiências comparadas. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006.

Page 60: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 60 -

Nos EUA as políticas de ação afirmativa ganharam espaço a partir dos anos

de 1960, por meio de reivindicações do movimento negro por direitos políticos e o

fim da segregação social oriunda do apartheid criado desde o período de abolição

no final do século XIX. Neste contexto, a justificativa da implementação das ações

afirmativas a partir do presidente americano Lyndon B. Johnson, estiveram

relacionadas à reparação histórica pelos longos anos de exclusão da população

negra americana, e à justiça social Foram criadas políticas públicas direcionadas a

cotas específicas em universidades, empresas e outras instituições responsáveis em

integrar o negro à sociedade, criando desta forma um mecanismo de mobilidade

social.

No processo de integração social, as ações afirmativas enquanto políticas

multiculturais, atribuíram a diversidade como uma outra justificativa a implementação

de políticas sociais de caráter discriminatório. A diversidade aparece como uma

conseqüência das ações afirmativas, na medida em que permite a interação dos

diferentes grupos étnicos no cotidiano das relações sociais.

Nas bases democráticas de uma sociedade multicultural, deve-se levar em

consideração a exigência e a aceitação do reconhecimento de igual valor das

diferentes culturas que a compõem. O desafio que tal sociedade coloca é conseguir

tornar possível a convivência de culturas ou grupos muito variados, atribuindo a esta

convivência um limite democrático que seja respeitoso em relação a essa

diversidade sem tornar-se um simples encontro de interesses divergentes.

(D´ADESKY, 2005)59

No caso do Brasil, a política de ações afirmativas teve forte influência do

modelo americano. Entretanto, as justificativas para aplicação da política estiveram

vinculadas em maior destaque ao argumento de reparação e diversidade, em lugar

do argumento de justiça social. (JUNIOR, 2006, p.55). No que se refere à reparação,

as ações afirmativas aparecem como uma forma compensatória em função da

exclusão histórica sofrida pelos negros ao longo da História.

Para ativistas do movimento negro, compreender a importância deste

reconhecimento implica não só em reclamar a dignidade, mas também o status

deste grupo étnico e cultural. Essas duas formas de reconhecimento estão ligadas,

pois o reconhecimento estruturado na idéia de inferioridade relativa de uma raça,

59 D´ADESKY, Jaques. Pluralismo étnico e multiculturalismo. Racismos e Anti-Racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2005.

Page 61: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 61 -

cultura ou origem étnica, é, ostensivamente, um não reconhecimento do grupo a que

esta pertence. Por isso, o não reconhecimento igual ou universal destes dois níveis:

individual e coletivo, pode ser o pretexto para que grupos que se julgam superiores

explorem, dominem ou excluam as pessoas consideradas como fazendo parte do

grupo subjugado. (D´ADESKY, 2005, p.193).

A noção de multiculturalidade, respeito e reconhecimento às diferenças

ganharam uma ênfase maior no discurso dos movimentos sociais, e na própria

aplicabilidade da política de ações afirmativas, visto que, a idéia de justiça social

demanda um debate maior em torno do investimento do governo em políticas

públicas e sociais, o que se tornou não uma meta, mas uma conseqüência das

ações afirmativas. É importante pensar as ações afirmativas não apenas como um

mecanismo que visa a diversidade social, e sim como uma forma de consolidação

democrática para a crescente harmonia social, tendo em vista que os impactos das

ações afirmativas permitem gerar ganhos distributivos nas oportunidades

educacionais, de trabalho e acumulação de riquezas para negros, indígenas e

grupos étnicos em questão, criando também produtividade na força de trabalho, no

nível de renda e nas oportunidades de investimento. (ZONINSEIS, 2005, p.70)60

As ações afirmativas se caracterizam como um mecanismo de integração

rápido para os grupos etnicamente excluídos das elites políticas e econômicas

brasileiras, criando novas oportunidades, e quebrando estereótipos negativos,

promovendo, desta forma, novas redes sociais responsáveis por diminuir o

distanciamento entre brancos e negros na sociedade.

60

ZONINSEIN, Jonas. Minorias étnicas e a economia política do desenvolvimento: um novo papel para universidades públicas como gerenciadoras da ação afirmativa no Brasil? In: JUNIOR, João Feres, ZONINSEIN, Jonas. (org.). Ações afirmativas e universidade. Experiências comparadas. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006.

Page 62: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 62 -

2.2 O dilema da educação e das desigualdades raciais no Brasil.

Nos anos 1990 com o advento do neoliberalismo, a economia mundial passou

por um período de tecnificação dos modos de produção, provenientes da

informatização como um mecanismo de maior dinamismo à industrialização. Neste

sentido, as universidades se transformaram em pólos técnicos e atrativos para

profissões qualificadas e aptas a gerenciar e trabalhar com as novas exigências de

mercado.

O grande capital internacional exigia qualificação e formação em todos os

postos de trabalho, e consequentemente, no Brasil não foi diferente. Desta forma,

ocorreria um desmonte no investimento feito durante a ditadura militar (1964/1979)

em universidades privadas de formação de cursos técnicos voltados para o mercado

de trabalho criando um possível redirecionamento dos recursos à ampliação de

universidades públicas.

No entanto, a opção feita pelo governo brasileiro no período Collor de forte

crise econômica desde os anos de 1980, foi a desregulação e ausência do Estado

na gerência de gastos na área social, o que determinou a ausência de investimentos

na área da educação, e consequentemente, em universidades públicas. Sob os

mandatos de FHC, a continuidade pela escolha prioritária do ensino privado

determinou que a educação ganhasse destaque no mercado, contribuindo para

piorar a qualidade no ensino público.

A grande autonomia concedida às mantenedoras privadas provocou um

marco expressivo no ensino superior do país através da iniciativa privada, pois

aumentaram as taxas relacionadas à participação das instituições de ensino superior

particulares de 72,9% para 84,1%. Na década de 1990, o índice das instituições de

ensino superior públicas permaneceu estável, mas sem aumento dos investimentos

estatais. Os dados demonstravam ainda que 71% dos alunos matriculados nas

universidades encontravam-se em instituições privadas61. Na ausência das políticas

públicas, a educação assumiu um perfil de graves problemas sem espera de

solução.

61

Revista Carta Capital, 2 de maio de 2005.

Page 63: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 63 -

A tabela de indicadores do ensino superior, apresentada a seguir62 por

categoria (publica e privada) do Estado do Rio de Janeiro em 1991, demonstra este

crescimento das instituições privadas em relação às instituições públicas, com uma

diferença em porcentagem de 9,01% para as instituições públicas e 90,99% para as

instituições privadas. No que se refere às matriculas e ingressantes

respectivamente, os números variam de 27% dos matriculados em instituições

públicas e 73% dos matriculados em instituições privadas, e 22,2% ingressantes em

instituições públicas, e 77,8% ingressantes em instituições privadas. De acordo com

os estudos do INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio

Teixeira, na progressão do crescimento das instituições em nível nacional, em

porcentagem, os dados revelam um crescimento constante e em ritmo crescente do

setor privado no país: mais modesto no período 1991-1996 (6%), toma significativo

impulso no período 1996-2004 (151,6%). O setor público fica praticamente

estagnado, começando o período analisado com 222 instituições, sofre um

decréscimo de –5,04% no período 1991 a 1996, seguido de um crescimento pouco

significativo (6,2%) no período seguinte, chegando a 2004 com 224 instituições.

(INEP, 2006, p.31)

62

RISTOFF, Dilvo, GIOLO, Jaime. Educação superior brasileira 1991-2004 Rio de Janeiro. Brasília. INEP, 2006.

Page 64: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 64 -

A análise da disparidade de investimentos por parte do Estado entre o ensino

superior privado e público, originou uma crise referente ao acesso às universidades

públicas, ditas e encaradas como instituições de excelência, apesar do escasso

plano de recurso e investimentos. Esta lacuna social entre público e privado será

criticada por meio de justificavas em torno da ausência de investimentos do Estado,

também, na educação básica nos setores públicos. A incapacidade dos alunos de

escolas públicas em concorrer em equidade com os alunos de escolas particulares a

uma vaga no vestibular de uma universidade pública questionará a idéia de

democratização do ensino superior a partir de movimentos sociais conhecidos como

pré-vestibulares comunitários.

A não priorização das questões sociais por parte do Estado neoliberal,

contribuiu para o surgimento de formas alternativas de organização da sociedade

civil – descritos por movimentos sociais de recortes específicos, como os pré-

vestibulares comunitários; que reivindicam a baixa qualidade da educação básica e

da escola pública, e a falta de acesso a negros e pobres às universidades públicas.

Estes movimentos sociais se formaram com o objetivo de suprir as deficiências das

políticas públicas voltadas para área social, através de iniciativas particulares

voltadas para o resgate do direito civil e da cidadania. Estas intervenções por parte

da sociedade civil a partir da criação de cursinhos comunitários, manifestações

públicas e criação de estatutos e manifestos, são uma tentativa de minimizar as

imensas desigualdades e exclusões sociais presentes na educação e nas relações

sociais, que mobilizaram diversos grupos sociais preocupados em colocar em prática

o real conceito de democracia, igualdade e justiça social.

Na década de 1990, em quase todas as regiões do Brasil, observou-se uma

grande capilarização social63 dos cursos pré-vestibulares comunitários voltados para

segmentos sociais populares. A difusão desses cursos possui seu embrião no

descontentamento em relação a uma construção desigual e hierarquizada do tecido

social brasileiro. Isentos de pretensões políticas ou partidárias, movidos apenas pela

identificação, como sujeitos de uma causa social, articulam um movimento motivado

pela solidariedade e pelo voluntariado. Em 1993, surge na Baixada Fluminense, com

sede na Igreja Matriz de São João de Meriti, o Pré Vestibular para Negros e

63

Capilarização Social: o termo é aqui utilizado como sinônimo de difusão. Ver: SANTOS, Renato Emerson. Racialidade e novas formas de ação social: o Pré-Vestibular para Negros e Carentes. In: SANTOS, Renato Emerson. (org). Ações Afirmativas. Políticas públicas contra as desigualdades sociais. RJ: DP&A Editora, 2003.

Page 65: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 65 -

Carentes – PVNC, em função do descontentamento de negros e pobres com a

péssima qualidade do ensino médio nesta região de periferia, que eliminava a

possibilidade de acesso dos estudantes da região, em sua maioria negros e

carentes, às universidades.

O Pré-Vestibular para Negros e Carentes inaugurou, no cenário dos

movimentos sociais, uma reivindicação voltada para a denúncia das desigualdades

sociais descritas por meio da raça e da classe. È importante perceber que os

conceitos de raça e classe ganham um significado prático e menos teórico para

estes movimentos; a raça, por exemplo, ganha uma interpretação histórica e social,

e o conceito de classe passa a ser interpretado pela condição social e pelo lugar de

origem representado pelas periferias e comunidades.

“O Pré Vestibular para Negros e Carentes é um movimento de educação popular,

laico e apartidário, que atua no campo da educação, através da capacitação para o

vestibular de estudantes economicamente desfavorecidos em geral e negros (as) em

particular. (...), em caráter geral [é] um movimento de luta contra qualquer forma de

racismo e exclusão, em caráter especifico, uma frente de denúncia, questionamento e

luta pela memória e democratização da educação, através da defesa do Ensino

Público, gratuito, de qualidade, em seus níveis fundamental, médio e superior, nos

âmbitos municipal, estadual e superior”. (Carta de Princípios, 1998)64.

A ação do PVNC esteve pautada na luta pelo acesso à universidade como

uma forma de declarar a elitização econômica e racial no ensino superior brasileiro.

Em sua agenda o esclarecimento para os alunos sobre a importância do

conhecimento da identidade étnica movia o movimento cuja ação se colocava como

anti-racista, na medida em que previa que estes grupos raciais e socioeconômicos

compreendessem que as raízes da exclusão se encontravam nas relações sociais e

não como um problema individual.

De acordo com o censo realizado pelo IBGE, em 2000, o Brasil possuía uma

população de 170 milhões de habitantes, dos quais 91 milhões se classificaram

como brancos (53,7%), 10 milhões como pretos (6,2%), 761 mil como amarelos

(0,4%), 65 milhões como pardos (38,4%) e 734 mil indígenas (0,4%). (IBGE,

2000:37)65

64

Carta de Princípios. PVNC, 1998. Disponível em www.pvnc.org 65

Censo Demográfico 2000. Características Gerais da População. Resultados da Amostra. IBGE, 2000.

Page 66: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 66 -

Em relação aos grupos que se declaram brancos e negros (pretos e pardos),

os dados que demonstram os índices educacionais do Brasil, através do Censo de

2000 referentes às taxas de escolarização por cor ou raça, determinam um

crescimento na freqüência escolar, apesar da presença de disparidades entre os

diferentes grupos de cor.

. A escolarização das crianças de 5 ou 6 anos de idade foi mais acentuada

para os amarelos (81,5%), seguidos dos brancos (74,5%) e ficando abaixo da média

nacional, os pretos, com 66,2% e os pardos, com 69,0%. Esta escolarização para a

população indígena, ainda não atingiu metade das crianças de 5 ou 6 anos de idade,

apresentando uma taxa de apenas 43,6%.

Analisando a freqüência escolar entre 7 e 14 anos, observou-se que, exceto

os indígenas, as demais categorias já atingiram proporções superiores aos 90% de

alunos na escola, tendo os brancos e os amarelos, taxas semelhantes. Na

comparação com o Censo Demográfico de 1991, no que se refere à freqüência

escolar, enfatiza-se entre os pretos e pardos um crescimento de 29,4% e 26,5%,

respectivamente, visto que em 1991 os pretos apresentavam uma freqüência de

71% passando para 91,9% em 2000, e os pardos de 73,7% em 1991 aumentando

para 93,2% em 2000, alcançando os brancos que sofreram pouca variação na

freqüência escolar já descrita por uma média alta de 86,5% em 1991 para 96,2% em

2000.

Segundo o IBGE, a análise dos dados demonstra uma tendência da redução

da freqüência nas escolas e da taxa de escolarização por grupos de cor ou raça em

função da necessidade de inserção de muitos jovens no mercado de trabalho, que

por esta razão, acabam abandonando os estudos no período do Ensino

Fundamental II e no Ensino Médio. Para o grupo de jovens entre 15 e 24 anos de

idade, a escolarização média revelada pelo Censo Demográfico 2000 era de 46,8%.

Para o grupo de brancos, a taxa foi de 48,5%; para os pretos, 42,8%; os amarelos

se destacaram com 62,7% que foi bem acima da média do país; os pardos, 45,4%, e

os indígenas, 40,0%. (Censo IBGE, 2000:44). Em comparação com os dados

apresentados pelo IPEA em 2004, os jovens negros freqüentam muito menos o

ensino médio (34,3%) do que os brancos (56,5%).

Observando os dados apresentados sobre a variação da taxa de

escolarização, é possível destacar uma melhoria relacionada a oportunidades da

educação, mas que, no entanto, não foram suficientes para eliminar as

Page 67: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 67 -

desigualdades educacionais entre brancos e negros. Em um outro estudo realizado

pelo IPEA sobre o acompanhamento das políticas sociais de igualdade racial em

2008, também é possível observar um aumento dos números referente ao acesso

dos negros ao ensino superior em uma pequena porcentagem que caminha em lenta

progressão, mas que ainda não permitiu a redução da lacuna entre brancos e

negros nas universidades como demonstra a tabela a seguir66.

O panorama da crise na educação pública possui um alicerce sólido na

educação básica e tece um caminho confuso e tortuoso até o topo, alcançando as

universidades. O estudante da rede pública enfrenta um problema estrutural do

sistema de ensino, que dificulta o acesso e a disputa igualitária às poucas vagas

oferecidas no ensino superior. O vestibular nivela os estudantes por meio de uma

seleção pautada em conhecimentos adquiridos ao longo da formação do aluno, onde

as camadas menos favorecidas – os estudantes da rede pública, não conseguem

obter a formação necessária para competir com os alunos da rede particular, visto a

situação caótica em que se encontra a educação pública.

O acesso universal fica, portanto, limitado aos estudantes que detêm o poder

de compra do conhecimento, que consequentemente acabam ocupando as vagas

limitadas das universidades públicas e os melhores postos de trabalho na

sociedade, enquanto os negros, indígenas e estudantes de classes baixas, que

necessitam da educação como um direito, se alcançarem o ensino médio sofrem

com uma disputa desigual por falta do conteúdo exigido pelo vestibular e pela

negligência do governo.

66

Esta tabela foi retirada do estudo sobre o acompanhamento e análise das políticas sociais no Brasil/ Igualdade Racial, realizado em 16 de novembro de 2008.

Page 68: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 68 -

O dilema da educação brasileira demonstra a ausência do Estado no

investimento e compromisso com a educação pública de qualidade, o que acaba por

refletir diretamente na adoção de políticas universais para o combate das

desigualdades raciais. Neste sentido, a pressão dos movimentos sociais sobre o

governo para que este mantenha a gerência e participação nas políticas sociais,

contribuiu para a adoção das políticas de ação afirmativa, que possui como um dos

objetivos principais, resolver as desigualdades educacionais entre negros e brancos

no Brasil, porém, no que se refere, ao acesso as universidades, e não, em relação à

educação básica de qualidade.

2.3 As ações afirmativas no Brasil.

O marco histórico responsável pela adoção das políticas de ação afirmativa

no Brasil foi a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial,

Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada na África do Sul em 2001, na cidade de

Durban. Denominada como Conferência de Durban, este encontro se

responsabilizou por definir a agenda das relações raciais, e particularmente, do

Brasil, onde junto à ação de diferentes movimentos sociais, entre eles a marcante

atuação do Movimento Negro brasileiro, o governo se concentrou em ações e

iniciativas voltadas para promoção da igualdade de oportunidade entre brancos e

negros através do acesso a educação, ao mercado de trabalho, ao crédito, ao

serviço de saúde entre outros. (HERINGER, 2006, p.82)67

A percepção de que a falta de oportunidades e a pobreza da maioria dos

negros no Brasil estava relacionada com questões raciais e de classe, proporcionou

uma ação do governo Lula em torno da adoção das ações afirmativas, e a criação

de um ministério de igualdade racial – SEPPIR: Secretaria Especial de Promoção da

Igualdade Racial, em favor de políticas públicas de discriminação positiva visando à

inclusão social de grupos étnicos excluídos. O SEPPIR cumpria as exigências da

Conferência de Durban, já discutida pelo governo de FHC, e no mandato de Lula

67 HERINGER, Rosana. Políticas de promoção de Igualdade racial no Brasil: um balanço do período de 2001-2004. In: JUNIOR, João Feres, ZONINSEIN, Jonas. (org.). Ações afirmativas e universidade. Experiências comparadas. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006.

Page 69: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 69 -

ganhava uma atenção especial, na medida em que o próprio governo traçava um

caminho em torno das políticas sociais a partir de critérios multiculturais.

Neste cenário, o Movimento Negro passou a assumir uma postura

reivindicativa e ganhou um espaço importante na luta pela inclusão social e

reconhecimento identitário, iniciando, desta forma, junto a outros movimentos sociais

voltados para a educação, como os pré-vestibulares comunitários, um debate sobre

a adoção das políticas de cotas como uma forma de garantir a igualdade de

oportunidades, e consequentemente, diminuir as distâncias sociais entre brancos e

negros na sociedade.

As políticas de cotas consistem em um mecanismo das ações afirmativas que

procuram viabilizar a promoção da igualdade jurídica e material, por meio da criação

de oportunidades direcionadas a grupos raciais, sociais e étnicos, excluídos por

questões históricas ou econômicas. Atualmente, a política de cotas está em

processo de votação no Congresso Nacional através da Lei de Cotas (PL73/1999).

Esta lei prevê a reserva de negros, indígenas, deficientes físicos, estudantes de

escolas públicas, entre outros grupos étnicos e socioculturais nas universidades

públicas brasileiras, como um recurso voltado para a ampliação dos direitos, da

cidadania e do acesso à educação, a partir da reserva de vagas.

Em dezembro de 2003, durante o primeiro mandato do governo Lula, o

decreto no 4.886, institui a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial

(PNPIR), considerando que o Governo Federal tem o compromisso de romper com a

fragmentação que marcou a ação estatal de promoção de igualdade racial,

incentivando os diversos segmentos da sociedade e esferas do governo a buscar a

eliminação das desigualdades raciais no Brasil, com ênfase na população negra.

(Art.2º, 2003)68

Além de afirmar o caráter pluriétnico da sociedade brasileira por meio do

reconhecimento das culturas indígena e afro-brasileira como integrante da

nacionalidade e do processo civilizatório nacional, a PNPIR, procurou criar ações

para a defesa destes direitos por meio da implementação curricular da lei no10.639

de obrigatoriedade do ensino em História da África nos currículos escolares, criando

apoio e projetos às comunidades remanescentes de quilombo, e o incentivo à

adoção de política de cotas nas universidades e no mercado de trabalho.

68

Para acesso ao texto integral ver o site: www.planalto.gov.br

Page 70: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 70 -

A não adoção das políticas de ações afirmativas como uma política pública,

tem gerado diferentes formas de aplicação e financiamento da política. Por exemplo,

no que se refere a projetos no campo educacional, ONGs e movimentos sociais

desenvolvem ações em parceria com agências de cooperação internacional como a

Fundação Ford69, que destinou na última década um expressiva parcela de seus

recursos ao combate à discriminação racial e ao fortalecimento das organizações

negras no Brasil. (HERINGER, 2006, p.91).

Apesar dos inúmeros projetos apresentados pelo governo federal no âmbito

da promoção da igualdade racial, o de maior destaque na sociedade civil, sem

dúvida está a política de cotas nas universidades. É importante perceber que no

governo FHC, essa temática começou a ganhar relevância no Ministério de

Educação por meio do Programa Diversidade Para Todos, lançado em 2002. Este

programa ganhou o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), por

ampliar o acesso à educação dos grupos socialmente desfavorecidos, melhorando,

desta forma, os índices educacionais. Entretanto, o programa estava centrado no

repasse de recursos apenas para universidades públicas e privadas que oferecesse

a esses grupos, cursos preparatórios para candidatos ao vestibular. Esta atitude do

governo gerou criticas que levaram ao entrave do programa, que em si, não criou

critérios para estabelecer corretamente o repasse de recursos para os tais cursos

preparatórios.

Em 2003, a partir da aprovação pela ALERJ – Assembléia Legislativa do Rio

de Janeiro, de um programa de reserva de vagas nas universidades estaduais do

Rio de Janeiro para estudantes de escolas públicas e negros auto-declarados, a

UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a UENF – Universidade

Estadual do Norte Fluminense inauguravam em seu vestibular o sistema de cotas.

Após a experiência da UERJ, seguiram o exemplo, a UFBA – Universidade da

Bahia, e UnB – Universidade de Brasília, alegando autonomia universitária para criar

mecanismos de democratização do acesso as vagas da universidade.

O extenso debate em torno das cotas, e, sobretudo, da racialização da

política, determinou por parte do Ministério de Educação sob o mandato de Tarso

Genro outras formas de promover a igualdade racial. Para o ministro que se

colocava contra as cotas nas universidades, alegando a insuficiência do sistema

69

A Fundação Ford é uma entidade americana voltada para produção de pesquisas, e concessão de financiamento e bolsas em programas de promoção de igualdade e redução de pobreza pelo mundo.

Page 71: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 71 -

para garantir o acesso dos grupos excluídos à educação superior, o ministro

procurou apresentar uma proposta que trabalhava com as vagas ociosas das

universidades privadas, que seriam ocupadas por estudantes negros, indígenas,

deficientes físicos e ex-presidiários a partir de 2004. O PROUNI – Programa

Universidade para Todos, foi criado por meio da medida provisória no213 em

10/09/2004, que reservava 25% das vagas disponíveis nas universidades privadas

das 37,5% vagas descritas como ociosas, em função de uma renúncia fiscal que

beneficiaria as universidades privadas que adotassem o programa.

A polêmica gerada pelo PROUNI da manutenção do investimento no ensino

privado em oposição ao ensino público, levantou questões em torno da permanência

da elitização nas universidades públicas, visto que em contraposição às cotas, os

estudantes desfavorecidos encaminhavam-se para as universidades privadas,

enquanto os estudantes que tivessem concluído o ensino médio em escolas

particulares de boa qualidade se dirigiriam às universidades públicas. O fato é que o

PROUNI não eliminou a procura, nem mesmo a implementação das políticas de

cotas nas universidades públicas visto que, este sistema possui um respaldo dos

movimentos sociais. De certa forma, a existência do PROUNI e do sistema de cotas

nas universidades públicas ampliou o leque de oportunidades para os grupos

etnicamente excluídos.

Atualmente, as políticas de ações afirmativas nas universidades ganharam

critérios diversificados, que acompanham os debates internos sobre as exigências

da universidade e também os problemas da região na qual a universidade pública se

insere. Os critérios adotados pelas universidades variam das reservas de vagas por

acréscimo de nota, por cotas ou por acréscimo de vagas, abrangendo um publico

alvo diversificado, dentre eles: indígenas, negros, estudantes de escolas públicas,

filhos de bombeiros, membros dos trabalhadores sem terra, quilombolas, residentes

no interior do estado, deficientes físicos, e por critério de renda, somando um total

de 79 universidades que adotaram as políticas de ações afirmativas, conforme

apresentam as tabelas a seguir.

Page 72: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 72 -

Tabela 1: Total de Universidades públicas por regiões

Regiões Universidades

Estadual Federal Municipal

Centro-Oeste 03 03 02

Nordeste 08 13 0

Norte 01 03 0

Sudeste 09 09 01

Sul 20 06 01 Fonte: Programa Políticas da Cor na Educação Brasileira

Tabela 2: Total de universidades

com ações afirmativas por região no Brasil.

Regiões Total de Universidades

com Ações afirmativas

no Brasil

Centro-Oeste 08

Nordeste 21

Norte 04

Sudeste 19

Sul 27

Total 79 Fonte: Programa Políticas da Cor na Educação Brasileira

Tabela 3: Total de universidade com ações afirmativas por enquadramento

público.

Universidades

Total de

Universidades com

Ações afirmativas no

Brasil

Estadual 41

Federal 34

Municipal 04 Fonte: Programa Políticas da Cor na Educação Brasileira

Page 73: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 73 -

O processo de adoção das políticas de ações afirmativas no Brasil ganhou

maior expressão nas universidades públicas que, no entanto, não possuem o apoio

esperado do governo para gerir tais políticas, visto que em função da economia

neoliberal, as ações do governo têm-se tornado pontuais, principalmente na área

social e, sobretudo, no que se refere ao investimento na educação e no ensino

superior. Por isso, em detrimento da autonomia universitária, a maioria das

universidades públicas com ações afirmativas tem sofrido com a falta de recurso

para manutenção das políticas e da estrutura universitária como um todo.

A UERJ, pioneira na adoção das políticas de cotas para o ingresso de grupos

étnicos e sociais excluídos, passa por problemas referentes à permanência dos

estudantes cotistas, que por conta dos recursos escassos lidam com a ameaça de

não concluir a graduação em função da possível evasão por falta de recursos

financeiros. O discurso racial assume um caráter importante para a continuidade das

políticas de ação afirmativa na universidade, porém a reserva de vagas com critérios

raciais sofre grande pressão da sociedade civil, o que contribui para o

desconhecimento do funcionamento do sistema de cotas na universidade. Neste

universo de disputas ideológicas e de problemas reais no cotidiano da universidade,

as políticas de cotas assumem uma importância para o acesso ao ensino superior, e

por isso descrevem uma experiência de transformação social, através de novas

identidades que levam à universidade uma diversidade cultural por meio de

diferentes trajetórias sociais.

No próximo capitulo discutiremos a experiência da UERJ no histórico da

adoção das políticas de ação afirmativa na universidade, analisando esta

experiência concreta por meio do depoimento dos alunos cotistas, que descrevem

em relatos de vida suas trajetórias sociais até a chegada à universidade.

Page 74: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 74 -

CAPÍTULO 3

A POLÍTICA DE COTAS NA UERJ

Page 75: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 75 -

3.1 Histórico da adoção da política de cotas na UERJ

Diante da percepção do governo federal de que as políticas sociais brasileiras

devem compreender a diversidade cultural que caracteriza a sociedade brasileira, as

políticas de ações afirmativas se inseriram nos setores educacionais por meio da

adoção do sistema de cotas – reserva de vagas. Em 2003, no vestibular da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, foram aplicadas políticas de

cotas, expressa em critérios étnicos, econômicos, e, sobretudo, relacionados a

disparidade da educação básica entre os setores público e privados, onde a

diferença da qualidade de ensino implica em um obstáculo ao acesso à

universidade.

A política de ação afirmativa na UERJ teve caráter pioneiro em relação as

demais universidades públicas do país. A decisão da ALERJ (Assembléia Legislativa

do Rio de Janeiro) através da Lei 3524/2000 aprovada em 28 de dezembro de 2000

estabeleceu a cota de 50% das vagas para estudantes de escolas públicas que

tivessem terminado integralmente os estudos dos Ensinos Fundamental e Médio em

escolas públicas, em cada uma das universidades estaduais (UERJ, UENF70). Em 9

de dezembro de 2001, a ALERJ aprovou uma outra lei referente à democratização

do acesso às universidades: a Lei 3708/2001, destinava a reserva de 40% das

vagas nas duas universidades estaduais do Rio de Janeiro para estudantes negros e

pardos declarados.

“Artigo Primeiro: Fica estabelecida a cota mínima de 40% (quarenta por cento) para

as populações de negros e pardos no preenchimento das vagas relativas aos

cursos de graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na

Universidade estadual do Norte-Fluminense (UENF). Parágrafo Único - Nesta cota

mínima incluídos também os negros e pardos pela lei 3524/2000 (que dispõe sobre

os critérios de seleção e admissão de estudantes de rede pública estadual de

ensino em universidades públicas e estaduais da providência”.71

70

UENF: Universidade Estadual do Norte Fluminense, localizada em Campos. 71 Para acesso ao texto integral, ver site: www.alerj.rj.gov.br Retirado de: MACHADO, Elielma Ayres. Desigualdades raciais e ensino superior: um estudo sobre as “leis de reserva de vagas para egressos de escolas públicas e cotas para negros pardos e carentes” na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2000-2004). Tese de doutorado. UFRJ, dezembro, 2004.

Page 76: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 76 -

Ambas as leis aprovadas descreviam a militância de movimentos sociais e do

movimento negro voltados para o descontentamento das desigualdades sociais e

raciais no Brasil. A urgência do acesso à universidade pública implicava em uma

idéia de democratização da educação aos desfavorecidos, que denunciavam ao

mesmo tempo a crise na educação pública básica de qualidade, e o racismo

enquanto um obstáculo à equidade socioeconômica dos diferentes segmentos

sociais e étnicos existentes em nossa sociedade.

Em 4 de março de 2002, durante a gestão do governador Antony Garotinho,

foram regulamentadas as duas leis que estabeleciam a reserva de 50% das vagas

para estudantes de escolas públicas e 40% para negros e pardos auto-declarados

nas universidades do Estado do Rio de Janeiro por meio da Lei 3766/2002 válida

para o vestibular de 2003. No entanto, os critérios de seleção para o candidato que

entraria por meio da reserva de vagas só foi aprovado por meio do Decreto-Lei

31468, tendo em vista que a organização do vestibular de 2003 já estava sendo

realizada neste período pelos exames de qualificação.

Neste sentido, o concurso foi dividido em dois exames: o SADE (Sistema de

Acompanhamento de Desempenho dos Estudantes do Ensino Médio) voltado para o

preenchimento das vagas reservadas para negros, pardos, e estudantes de escolas

públicas, incluindo todos os candidatos que desejassem participar do sistema de

cotas, e o vestibular comum direcionado às vagas não-reservadas e as direcionadas

a negros e pardos auto-declarados. Buscando completar o programa de políticas de

ações afirmativas na universidade, no inicio de 2003, foi sancionada a Lei 4.061 que

reservava 10% das vagas das universidades estaduais para portadores de

deficiências físicas.

A ausência de critérios definidos levou aos candidatos que concorriam às

vagas reservadas a negros e pardos, por exemplo, a uma reserva de 90% e não de

40% como regulamentava a lei, visto que por meio do vestibular do SADE, os negros

auto-declarados concorriam às vagas reservadas aos estudantes de escolas

públicas e também às vagas reservadas ao vestibular comum.

Além da ausência de critérios, o requisito racial e a reserva de vagas geraram

polêmicas enormes no vestibular de 2003 após a divulgação do resultado do

vestibular. A aplicabilidade do sistema de cotas e a maneira como ele foi conduzido

geraram uma série de processos no campo jurídico que discutiam as notas para

admissão dos candidatos concorrentes à reserva de vagas como inferiores e

Page 77: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 77 -

insuficientes, frente às notas mais altas de candidatos concorrentes a vagas não-

reservadas que foram desclassificados; o mérito acadêmico avaliado como requisito

básico para o acesso à universidade também foi colocado no cerne da discussão. E

o mais polêmico dos pontos foram as cotas raciais atacadas por todos os lados

como algo inadmissível frente a miscigenação da sociedade e também a noção de

igualdade nos termos constitucionais, o que poderia trazer conflitos raciais na

universidade.

O debate acirrado em diferentes posições voltadas para avaliação do sistema

de cotas polemizado na mídia, no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e na

universidade, levou a uma grande pressão social de entidades do movimento negro

e de outros movimentos sociais (como pré-vestibulares comunitários), visando a

reformulação das leis já regulamentadas para uma melhor aplicabilidade do sistema

de cotas no vestibular. Tais movimentos não reivindicavam o fim do sistema de

cotas, pelo contrário, o sistema de cotas viabilizava uma frente de acesso de grupos

excluídos à universidade como um direito adquirido diante de uma maior consciência

social das desigualdades e das diferenças raciais. Neste sentido, em 4 de setembro

de 2003, durante o governo de Rosinha Garotinho, foi aprovada na ALERJ a Lei

4151 que determinava a reserva de 20% das vagas para estudantes de escolas

públicas, 20% para negros e 5% para deficientes físicos e minorias72.

“Artigo 1º: Com vistas à redução das desigualdades étnicas, sociais e econômicas,

deverão as universidades públicas estaduais estabelecer cotas para ingresso nos

cursos de graduação aos seguintes estudantes carentes:

I – oriundos da rede pública de ensino;

II – negros;

III - pessoas com deficiência, nos termos da legislação, e minorias étnicas. (...)

I – 20% (vinte por cento) das vagas para estudantes da rede pública de ensino;

II – 20%(vinte por cento) das vagas para negros;

III – 5% (cinco por cento) para deficientes, nos termos da legislação, e minorias

étnicas”. 73

72

Em 17 de julho de 2007, foi aprovada a Lei 5.074 que permite nos 5% das vagas reservadas para deficientes físicos e indígenas, o ingresso de filhos de policiais civis e militares, bombeiros militares, inspetores de segurança e administração penitenciária mortos em combate ou incapacitados em razão do serviço. Esta lei só foi utilizada a partir do vestibular de 2008. 73 Ver www.alerj.rj.gov.br

Page 78: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 78 -

Nesta “nova lei” ficou determinado que todos os candidatos interessados, só

podiam concorrer a uma das cotas e deviam comprovar a renda máxima por pessoa

de R$300,00 líquidos por pessoa da família.74

Durante o vestibular de 2004, a “nova lei” foi aplicada a partir dos novos

critérios estabelecidos, levando à universidade um novo perfil dos estudantes da

UERJ. Por isso, foi necessário relacionar a esta lei um programa de auxilio à

permanência do estudante cotista na universidade, visando não só o alcance da

oportunidade, mas também possibilitando a este novo aluno a conclusão da

graduação. Neste mesmo ano, por deliberação do Conselho Superior de Ensino,

Pesquisa e Extensão foi criado o Programa de Iniciação Acadêmica – Proiniciar75,

destinado aos estudantes de graduação da UERJ, mas preferencialmente aos

estudantes que ingressaram por meio do sistema de cotas. Conforme a deliberação

no 043/2004, o Proiniciar possui o objetivo de apoiar o estudante nos dois primeiros

períodos de graduação, como uma forma de auxiliar a permanência na universidade

até a conclusão do curso por meio da distribuição de bolsas de iniciação cientifica

acadêmica, atividades extracurriculares, além de um sistema de acompanhamento e

avaliação permanente dos estudantes cotistas sob a responsabilidade do

Departamento de Projetos Especiais e Inovações (DPEI).

Nos anos de 2003 e 2004 foram distribuídas 2.386 bolsas de iniciação

acadêmica aos estudantes cotistas. Tais bolsas são consideradas como uma bolsa-

auxílio, pois todo estudante deve cumprir uma carga horária em atividades

acadêmicas ou em projetos de pesquisa. Os bolsistas podem se inscrever na bolsa

FAPERJ onde realizam atividades de pesquisa atreladas ao projeto de um

orientador/professor da UERJ, ou concorrer a uma bolsa da UERJ, inserindo-se em

atividades extracurriculares oferecidas pelo Proiniciar, divididas em: oficinas,

disciplinas instrumentais e culturais.

O valor inicial da bolsa voltada para permanência do estudante cotista votada

em 2004 era de R$190,00 mensais76. A renovação da bolsa era estabelecida a partir

74 Como este texto trata de uma descrição histórica foi preservado o critério de renda por pessoa inicial. Em 2005, o vestibular estadual modificou o critério de carência para R$ 520,00 reais brutos por pessoa da família. Atualmente, o limite de renda em vigor para estudantes que pretendem concorrer às cotas é de R$630,00 reais por pessoa da família. 75 O Proiniciar está vinculado ao Departamento de Projetos Especiais e Inovações – DPEI, subordinado a Sub-reitoria de Graduação – SR-1. O Proiniciar foi criado em 2004 pela deliberação 043/2004 com o objetivo de oferecer suporte ao estudante cotista na universidade. 76 Os alunos que concorriam à bolsa UERJ recebiam a remuneração de R$190,00; já os bolsistas da FAPERJ ganhavam o equivalente a uma bolsa de iniciação científica R$290,00

Page 79: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 79 -

do comparecimento do aluno às oficinas e disciplinas extracurriculares. O aluno

cotista só recebia a bolsa durante o primeiro ano de graduação, cabendo ao mesmo

a responsabilidade de engajar-se em outras atividades e pesquisas para a

manutenção da bolsa. Atualmente, sob a gestão do governador Sergio Cabral, a

ALERJ aprovou a permanência da bolsa de estudos aos estudantes cotistas durante

todo o período de graduação. Foi realizado também um reajuste do valor bruto da

bolsa, passando para R$250,00.77 Tal modificação acompanha estudos relacionados

à permanência dos estudantes cotistas, que alegam a dificuldade financeira como

um dos maiores obstáculos à conclusão do curso, assunto que discutiremos mais

adiante.

Foi possível identificar neste breve histórico que a adoção da política de cotas

na UERJ trouxe uma nova realidade à universidade. A modificação nos critérios

voltados ao acesso à universidade permitiu uma mudança social e étnica na própria

instituição, que, no entanto, teve que se reestruturar e construir novos critérios

voltados à permanência deste novo estudante caracterizado pela carência

econômica. A seguir entenderemos, a partir de dados gerais da UERJ, esta

mudança, compreendendo também de que forma o critério de classe e a distinção

econômica contribuem para a desracialização do sistema de cotas.

3.2 Um balanço dos cinco anos (2003/2007) da política de cotas na UERJ:

análise de dados referentes ao acesso e matricula dos estudantes cotistas.

Após cinco anos de políticas de cotas na UERJ, a experiência iniciada em

2003 precisou ser avaliada pela instituição a partir de dados estatísticos. Com uma

publicação a partir da editora da própria UERJ, foi lançado por meio da organização

de José Ricardo Campelo Arruda – Sub-diretor da graduação, “Políticas de Ações

Afirmativas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro”78, que em parceria com

docentes e pesquisadores apresentou os primeiros resultados concretos do sistema

de cotas na UERJ, a partir de três variáveis de análise: a exigência da carência

77

A modificação no valor da bolsa e na garantia ao aluno cotista de permanecer com a bolsa até o final do curso de graduação, não permite que o aluno acumule mais de uma bolsa acadêmica, seja ela cientifica ou de extensão. Se o aluno cotista conseguir outra bolsa ele deixa de receber a bolsa auxilio, mas se ele deixar de receber a bolsa de extensão ou cientifica, a lei lhe garante que ele retome o recebimento da bolsa do Proiniciar. 78

ARRUDA, José Ricardo Campelo Arruda (org.), Política de Ações Afirmativas na UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, Rede Sirirus, 2007.

Page 80: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 80 -

socioeconômica para o ingresso no sistema; o aproveitamento do discente a partir

da utilização de coeficiente de rendimento dos diferentes cursos de graduação da

universidade e o índice de evasão dos egressos pelo sistema de cotas.79

A importância na análise destes dados gerais e oficiais permitirá uma

compreensão mais profunda das trajetórias sociais dos cotistas estudados nesta

dissertação, no que se refere à percepção da importância das cotas para o acesso à

universidade, que tipo de cotas é mais procurado, e por meio de uma comparação

dos perfis dos estudantes cotistas apresentados pela UERJ e nesta pesquisa,

identificar a amplitude do sistema de cotas em relação à construção de uma nova

universidade cuja centralidade se encontra na diversidade cultural, étnica e

socioeconômica.

O vestibular da UERJ está dividido em duas fases: o Exame de Qualificação e

o Exame Discursivo. O Exame de Qualificação, compreendido como a primeira fase

do vestibular, consiste em uma prova objetiva de caráter eliminatório para todos os

candidatos: cotistas e não-cotistas cujo objetivo é avaliar os conhecimentos básicos

para o Ensino Médio divididos em: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias,

Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias e Ciências Humanas e suas

Tecnologias. O aluno para seguir na segunda fase deve acertar até 40%. A

pontuação adquirida na primeira fase servirá de bônus na nota da segunda fase.

No Exame Discursivo80, entendido como a segunda fase do vestibular, o

candidato indica a sua escolha de curso e se deseja concorrer às vagas reservadas,

apresentando a sua opção de cota. Nesta etapa o candidato às cotas deve

apresentar uma vasta documentação pessoal, contendo informações sobre: grau de

parentesco, vínculo de trabalho, valor da renda e tipo de Declaração do Imposto de

Renda de cada pessoa que resida na casa onde mora, além de preencher um

formulário socioeconômico. Toda esta documentação é avaliada pelo Departamento

de Projetos Especiais e Inovações (DPEI). O resultado da análise da documentação

é apresentada, podendo caso o processo for indeferido ser recorrido pelo candidato.

79 Os dados do primeiro balanço do sistema de cotas na UERJ tem origem oficial do Departamento de Seleção Acadêmica (DSEA), o Departamento de Projetos Especiais e Inovações Acadêmica (DPEI) e o Departamento de Administração Acadêmica – todos subordinados a Sub-Reitoria de Graduação (SR-1) e o Núcleo de Informação e estudos de Conjuntura (NIESC), responsável pela organização do DataUerj: publicação que reúne as principais informações institucionais da universidade. 80

No Exame Discursivo o candidato realiza três provas: Redação e Língua Portuguesa comum a todos os inscritos, e outra disciplina específica definida a partir da escolha do curso. Vale lembrar que dos 100 pontos da nota da prova, a exigência da nota mínima para aprovação é de 20 pontos.

Page 81: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 81 -

Como verificação do acesso à universidade no período de 2004-2007 sob a

vigência da Lei 4.151/3003, em dados quantitativos e percentuais apresentados pelo

Departamento de Seleção Acadêmica (DSEA) serão destacados a seguir o número

de inscritos por vagas no vestibular da UERJ e o número de matriculados.

Em relação ao número total de candidatos inscritos, o percentual de

candidatos que optaram por cotas em 2004 foi de 24%, passando em 2005 para 9%,

em 2006 10%, e 8% em 2007. Na tabela abaixo estão relacionados o número de

inscritos por tipo de vaga. 81

Tabela 1: Número de Inscritos por Vaga

Vestibular Cotas de

Rede

Pública

Cotas

para

Negros

Cotas para

Deficientes

Físicos e

Indígenas

Total de

inscritos

por cotas

Vagas não

Reservadas

2004 4.331 2.849 67 7.247 22.983

2005 1.745 860 44 2.649 28.241

2006 2.470 1.102 48 3.620 32.500

2007 1.581 753 31 2.365 26.336

Fonte: ARRUDA, José Ricardo Campelo Arruda (org.), Política de Ações Afirmativas na UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, Rede

Sirirus, 2007. p.15.

Os números da Tabela 1, que apresenta os inscritos no vestibular da UERJ

no período de 2004 a 2007, revelam o maior número de candidatos que optaram

pelas cotas de rede pública em relação às cotas para negros e as cotas para

deficiente físico e indígenas. Numa análise dos inscritos por cotas para negros,

podemos destacar um decréscimo no número de candidatos de 2.849 em 2004 para

753 em 2007. Os números também apresentam uma queda no total de inscritos por

cotas de 7.247 candidatos em 2004 para 2.365 candidatos inscritos em 2007.

Porém, o número de inscritos em vagas não-reservadas manteve-se constante.

Em termos percentuais, o quantitativo do total estudantes cotistas

matriculados na UERJ em 2004 foi de 42%, um número bem próximo do definido

pela lei de cotas, em 2005 o número cai para 32%, em 2006 para 31%, e em 2007

81 É importante ressaltar que a legislação prevê a transferência automática das vagas não preenchidas por cotas para as vagas não–reservadas, de forma que a universidade se responsabilizará pelo preenchimento de todas as vagas oferecidas.

Page 82: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 82 -

matriculam-se apenas 24%. A seguir estão detalhados os número de estudantes

matriculados por tipo de cotas e em vagas não-reservadas.

Tabela 2: Número de Matriculados pó tipo de Vaga

Vestibular Cotas de

Rede

Pública

Cotas

para

Negros

Cotas para

deficientes

Físicos e

Indígenas

Total de

matriculados

por cotas

Total de

matriculados

por vagas

não

reservadas

2004 1.206 877 32 2.115 2.978

2005 1.004 595 36 1.635 3.414

2006 1.003 547 34 1.584 3.506

2007 749 390 19 1.158 3.570 Fonte: ARRUDA, José Ricardo Campelo Arruda (org.), Política de Ações Afirmativas na UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, Rede

Sirirus, 2007. p.16

Observando os números da Tabela 2, que demonstra os estudantes

matriculados por cotas e vagas não reservadas, é possível destacar uma queda de

matrículas por cotas de rede pública de 1.206 alunos matriculados em 2004 para

749 alunos matriculados em 2006. O número de matriculados por cotas para negros

também sofreu um decréscimo de 877 alunos matriculados e auto-declarados em

2004, para 390 alunos matriculados e auto-declarados em 2007. Numa comparação

entre alunos matriculados por cotas e os alunos matriculados por vagas não

reservadas, é possível perceber que em 2004 não houve muita diferença entre o

número de matriculados, dos quais 2.115 matricularam-se por cotas e 2.978 por

vagas não reservadas. Mas nos anos seguintes observa-se uma queda no número

de matriculados por cotas, de 2.115 alunos em 2004 para 1.158 alunos matriculados

em 2007. Apesar da queda de mais de metade dos alunos matriculados por cotas,

os números referentes aos alunos matriculados nas vagas não reservadas sofreram

um aumento de 2.978 alunos em 2004 para 3.570 alunos matriculados em 2007.

A queda na matrícula de estudantes cotistas pode estar relacionada à

eliminação durante o processo seletivo por: falta à prova, nota final abaixo da

mínima exigida como critério de aprovação, desistência, falta a qualquer

procedimento de matrícula, problemas de pontuação. No entanto, a queda no

Page 83: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 83 -

número de inscritos possui razões externas relacionadas ao desconhecimento dos

critérios e procedimentos para o acesso pelo sistema de cotas, o que também

justifica uma lacuna em relação à diferença do número de inscritos para cotas de

rede pública e cotas para negros.

Não há como identificar somente a partir dos números o motivo do

decréscimo de candidatos inscritos nas cotas para negros, mas se buscarmos uma

relação entre a dificuldade de percepção de uma identidade étnico cultural frente à

idéia de miscigenação, e a racialização do debate das cotas pela mídia como um

veículo que induz ao desconhecimento da amplitude do sistema de cotas, é possível

destacar segundo SANTOS (2006) 82 um outro motivo descrito como a

desracialização da política de ação afirmativa.

O corte de renda para o acesso às políticas de ação afirmativa na UERJ pode

ser um dos fatores responsáveis pela desracialização, o que significa que a

categoria carente construiu um novo grupo identitário comum a todos os

beneficiários por cotas. Mesmo que a renda se apresente como um critério para o

direito ao sistema de cotas, é importante compreender que as políticas de ação

afirmativas se constroem por meio de políticas diferencialistas como um pressuposto

de conscientização dos diferentes processos de exclusão na sociedade.

“A raça é não apenas uma categoria política necessária para organizar a resistência

ao racismo no Brasil, mas é também categoria analítica indispensável: a única que

revela que as discriminações e desigualdades que a noção de ‘cor’ enseja são

efetivamente raciais e não apenas de classe”. (GUIMARÃES, 2002, p.50)83

A percepção do combate à discriminação racial como um mecanismo de

integração do negro à sociedade de classe é fundamental para uma construção

política da identidade racial, que permite o florescimento de grupos culturais de

afirmação da identidade negra e afro-brasileira preocupados em manifestar-se por

meio dos cabelos afro, da música black, das roupas coloridas, do rap, dos bailes

funk, do conhecimento da História dos afro-descendentes no Brasil, permitindo não

mais a declaração pela cor, e sim, sua identificação de raça enquanto uma definição

social: aceitando-se como negro.

82

SANTOS, Renato Emerson. Política de Cotas raciais nas universidades brasileiras – o caso da UERJ. In: JUNIOR, João Feres, ZONINSEIN, Jonas. (org.). Ações afirmativas e universidade. Experiências comparadas. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006. 83

GUIMARÃES, Sergio Alfredo. Classes, raças e democracia. São Paulo: Editora 34, 2002.

Page 84: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 84 -

Neste sentido, as cotas não devem ser pensadas apenas em relação às

identidades raciais, e sim como parte dos múltiplos processos culturais e sociais

envolvidos na sua construção e manutenção. (PINTO, 2002, p.138)84 Isso significa

que construção da identidade do cotista é um processo que está relacionado com a

sua trajetória, e, por isso, a compreensão do processo de exclusão de forma

diferenciada intensifica o papel político de sua identidade e do próprio direito

enquanto cotista.

Com base na idéia de que a política de cotas trouxe uma diversidade de

identidades à UERJ, a universidade realizou um estudo do perfil socioeconômico

dos estudantes cotistas matriculados no período de 2004 a 2007, a partir de dados

quantitativos percentuais de estudos do Departamento de Seleção Acadêmica

(DSEA)85. A apresentação geral do perfil socioeconômico dos alunos cotistas em

comparação ao perfil socioeconômico dos alunos não cotistas, possibilita uma

compreensão das diferenças étnicas, sociais e econômicas entre os discentes da

universidade. Estes dados serão relacionados com o perfil dos entrevistados na

pesquisa desta dissertação, buscando um aprofundamento, e maior conhecimento

das trajetórias, da importância das cotas para o acesso a universidade, do cotidiano

e do significado da universidade para este novo grupo de alunos identificados como

carentes. 86

Em relação ao trabalho, a análise dos questionários socioeconômicos dos

alunos da UERJ demonstra que 50% dos alunos cotistas e não cotistas nunca

trabalharam, e cerca de 20% dos não cotistas e 30% dos cotistas começaram a

trabalhar com menos de 18 anos. Em 50% de ambos os grupos foi mencionado que

a fonte de renda mais comum é a mesada. No entanto, apesar da pouca diferença o

trabalho é mais comum entre os cotistas.

A maioria dos matriculados na UERJ independente do tipo de vaga se

percebe como negro ou pardo, mas entre os não cotistas encontra-se o maior

percentual dos que se percebem como brancos. Em relação ao gênero dos

84 PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Ação afirmativa, fronteiras raciais e identidades acadêmicas. In: ARRUDA, José Ricardo Campelo Arruda (org.), Política de Ações Afirmativas na UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, Rede Sirirus, 2007 85 Para maiores informações ver: ARRUDA, José Ricardo Campelo Arruda (org.), Política de Ações Afirmativas na UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, Rede Sirirus, 2007.p.24 e 25. 86 O estudo do perfil dos alunos realizado pela UERJ foi feito a partir dos dados do Departamento de Seleção Acadêmica (DSEA), através da ficha socioeconômica preenchida por todos os alunos matriculados por cotas no período de 2004-2007. O estudo de perfil realizado na pesquisa desta dissertação reuniu 11 alunos cadastrados no Proiniciar inscritos para a bolsa auxilio, e também para “Oficina de Cotas” – grupo de pesquisa da faculdade de Serviço Social da UERJ. O texto a seguir pretende comparar os dois estudos.

Page 85: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 85 -

ingressos na universidade, são apresentados números discretos de uma maioria de

mulheres matriculadas.

De acordo com os dados descritos acima e com os dados do perfil

socioeconômico, 80% dos alunos são oriundos de escolas públicas selecionados por

vagas reservadas todos os anos, e mais de 60% são estudantes oriundos de

escolas particulares. Em média, a faixa etária de um estudante cotista é de 21 anos

e do não cotista de 20 anos.

A maioria dos estudantes da UERJ, independente das vagas informou que

moram com os pais em casa própria com dois ou três quartos. Em relação ao

número de veículos 70% dos cotistas declararam não possuir carro, enquanto entre

os não cotistas esta percentagem indica que a maioria possui de um a dois carros.

Quanto à renda familiar, a lei de cotas determina ao cotista o critério de

carência com valores de até cinco salários mínimos, enquanto 80% dos não cotistas

informaram valores de renda mais altas.87 A escolaridade da família de um aluno

cotista se encontra nos níveis fundamental e médio, enquanto do aluno não cotista a

escolaridade dos pais apresentam maiores índices de conclusão do nível superior.

No que se refere a ter computador em casa e acesso a internet, percebeu-se

uma elevação na percentagem no grupo de alunos cotistas. Em 2004, 39% dos

alunos cotistas declararam ter computador em casa, e 69% disseram ter acesso à

internet. Em 2007, esse número cresceu respectivamente para 49% e 79%. Porém,

os não cotistas apresentam este índice em taxas mais altas, visto que ambos: a

internet e o computador, se encontram em casa.

Em relação à existência do número de livros em casa, a diferença entre

cotista e não cotistas é alta, visto que os não cotistas possuem mais de 100 livros

em casa, um percentual três vezes superior aos dos cotistas. Contudo, não foram

apresentadas grandes diferenças em relação ao número de livros lidos ao ano,

mantendo uma média para ambos os grupos de cinco livros lidos ao ano.

A partir do conhecimento das diferenças entre os perfis de cotistas e não

cotistas apresentado pelos dados da UERJ, é possível identificar que a carência ao

mesmo tempo se apresenta como um direito ao acesso à universidade e um

obstáculo à permanência do estudante cotista, visto que a diferença de escolaridade

familiar, o envolvimento com o trabalho, a dependência de transportes públicos, a

87

O calculo do perfil em relação a renda per capita depende do número de pessoas da família.

Page 86: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 86 -

ausência de computadores em casa, falta de livros e acesso à internet evidenciam o

perfil de um aluno que necessita de uma maior utilização das estruturas oferecidas

pela universidade, e de um política de assistência que viabilize os custos deste

aluno na universidade. Porém, a carência não pode se transformar em um estigma

ou pressuposto da construção das políticas de permanência como assistencialistas,

é preciso dialogar com a diversidade existente a partir da política de cotas,

escutando os alunos, suas demandas, dificuldades e sugestões para seus

problemas na universidade.

Buscando identificar a importância da política de cotas não apenas como um

mecanismo de construção racial, mas de difusão da diversidade étnica, cultural,

econômica e social na universidade, foram entrevistados 11 estudantes de cotas de

cursos diferenciados da UERJ. A pesquisa descrita e realizada a seguir demonstra

além do cotidiano e das demandas destes jovens em relação à permanência, a

importância de uma política entendida como direito, destacando de que forma a

política de ação afirmativa na universidade contribui para construção da identidade

sociocultural de cada um destes jovens universitários, que enxergam o acesso à

universidade como um sonho realizado responsável por permitir o alcance de uma

profissão e postos mais qualificados no mercado de trabalho. Longe de minimizarem

a importância da universidade como o berço do conhecimento, estes jovens

acreditam que a oportunidade e direito de chegar à universidade implica na saída da

exclusão intelectual na qual se insere a maioria da população brasileira.

Page 87: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 87 -

CAPÍTULO 4

TRAJETÓRIAS SOCIAIS: A IMPORTÂNCIA DA POLÍTICA DE COTAS

PARA O ACESSO À UNIVERSIDADE.

Page 88: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 88 -

4.1 Primeiros passos: o inicio da pesquisa e a oficina de cotas.

O objetivo deste capítulo é compreender por meio da entrevista com os

alunos cotistas da UERJ a importância das cotas para o acesso à universidade. Para

a compreensão deste tema tão polêmico serão discutidos os aspectos práticos da

política de cotas na universidade, vivenciados pelos cotistas em seu cotidiano na

UERJ, tais como: preconceito, relações raciais, dificuldades, estratégias de

sobrevivência na universidade, entre outros temas direcionados ao longo das

entrevistas e debatidos em diferentes falas.

No entanto, a singularidade desta pesquisa encontra-se na compreensão de

que a política de cotas trouxe à UERJ um perfil diferenciado de alunos dos quais a

universidade não estava acostumada a receber. Como foi discutido no capítulo

anterior, o critério para o acesso às cotas encontra na carência um fator comum a

todas as reservas: rede pública, negros, deficientes físicos e indígenas. Por isso,

para o conhecimento do perfil destes novos alunos, a pesquisa esteve preocupada

em desvendar as trajetórias de vida de cada entrevistado, demonstrando o percurso

realizado pelo aluno até o encontro das cotas como uma porta de acesso à

universidade.

Embora as experiências de vida apresentem aspectos comuns da

individualidade, as histórias em torno da trajetória escolar, da relação com a família,

das dificuldades econômicas até a chegada à universidade, demonstravam pontos

comuns que permitem a discussão das seguintes questões: qual seria a importância

das cotas para o acesso a universidade? Que papel possui a universidade para o

aluno cotista? A política de cotas contribui para a construção de identidades raciais?

A política de cotas une ou segrega os estudantes? A política de cotas trouxe uma

maior diversidade para a universidade?

Buscando um diálogo entre teoria e prática torna-se necessário não só um

estudo profundo do objeto estudado, mas também uma relação onde a pesquisa é

construída a partir de necessidades efetivas dos pesquisadores de compreender

recortes de realidade em que se inserem, objetivando transformá-los em

instrumentos eficazes de interferência nesta mesma realidade. Para estes, os

discursos devem partir das próprias vivências, o lugar onde a vida se dá e às quais a

ciência deve servir. Essa postura inclui preocupações éticas e políticas, pois

Page 89: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 89 -

tenhamos consciência ou não, as ações científicas, mesmo daquelas decorrentes

das denominadas ‘ciências puras’, além de nos constituírem como indivíduos,

participam da formação da cultura em que estamos inseridos. (FERREIRA, 2004,

p.15)88

Entender a realidade do estudante cotista como um pressuposto para o

estudo da importância da política de cotas enquanto um dos mecanismos voltados

não só para o acesso à universidade, mas para a construção da identidade racial e

do combate das desigualdades sociais, significa compreender a trajetória desta

pesquisa.

O interesse por este tema teve início na monografia, onde analisei a história e

a luta dos pré-vestibulares comunitários, enquanto um movimento social voltado

para a democratização do acesso à universidade. Neste período o meu objeto de

estudo foi o PVNC: Pré-Vestibular Comunitário para Negros e Carentes, onde além

de ter trabalhado no movimento como professora de História, pude observar que as

desigualdades sociais são também conseqüência das relações raciais. A exclusão, a

falta de oportunidade e a pobreza denunciavam a situação do negro no Brasil, como

um produto do racismo cujo alicerce se encontrava em uma aliança entre raça e

classe. Somada a esta questão, a crise no ensino público prejudicava o possível e

indeterminado caminho destes jovens à universidade. O estudo da ação do PVNC

possibilitou a compreensão das ações afirmativas como uma política de direitos,

para o alcance de negros e pobres à universidade como um mecanismo de

conscientização política e qualificação para o mercado de trabalho.

A continuidade da pesquisa se deu por meio do encontro com os estudantes

cotistas em 2006, no grupo de pesquisa da Faculdade de Serviço Social da UERJ:

“Política de Assistência aos Estudantes Cotistas da UERJ” coordenado pela

professora Dra. Alba Tereza Barroso de Castro. O grupo de pesquisa se reunia em

rodas de escuta descrita como oficinas. Os estudantes cotistas se escreviam nas

oficinas a partir do Proiniciar como uma das atividades extracurriculares oferecidas

como pré-requisito para o recebimento da bolsa-auxílio.

Nesta oficina foram realizados oito encontros divididos por temas elencados

para discussão e debate de interesse dos estudantes cotistas. Antes da discussão

eram apresentados textos teóricos para subsidiar o debate, que se centralizava na

88

FERREIRA,Ricardo Franklin. Afro-descendente. Identidade em Construção. FAPESP, São Paulo, 2004.

Page 90: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 90 -

experiência e vivência dos cotistas na universidade. Os temas discutidos na oficina

de 2006 foram: 1) Exigências para o recebimento da bolsa e participação na

programação oferecida; 2)O ingresso na universidade pelo sistema de cotas;

3)Discriminação, preconceito e estigmas aos alunos cotistas; 4)Privilégios e

diferenças entre os cursos de graduação; 5)Reflexos em função da ausência de uma

política de assistência aos estudantes cotistas; 6)Estratégias para enfrentar os

problemas na universidade; 7)Trajetória escolar e pré-vestibular comunitários;

8)Como pensamos a universidade: expectativas e realidade.

Nas oficinas um dos eixos centrais dos debates foi a permanência do

estudante cotista na universidade, onde a dificuldade financeira se apresentava

como um critério de acesso e ao mesmo tempo como um obstáculo à conclusão da

graduação, onde o aluno é obrigado a criar estratégias de sobrevivência para se

manter no curso diante da falta de uma política de assistência direcionada a estes

estudantes.

Escutar as experiências dos estudantes cotistas enquanto sujeitos sociais

durante as oficinas, permitiu o detalhamento do objeto desta pesquisa, que se

encontra voltada para a percepção dos processos históricos que envolvem as

relações raciais como um desdobramento das desigualdades e do racismo

estrutural. Esta idéia frente ao engajamento dos movimentos sociais, do movimento

negro e de pré-vestibulares comunitários determinou junto à ação do governo

estadual do Rio de Janeiro a inserção das políticas de ação afirmativa na

universidade, e como pioneira da adoção das políticas de cotas: a UERJ. A raça se

apresenta como uma das razões sociais mais fortes para o debate que norteia as

posições em relação às ações afirmativas na universidade, mas e na prática? Como

estes jovens se apresentam diante da importância das cotas?

4.2 Metodologia

Como a pesquisa esteve voltada para a análise das trajetórias sociais dos

estudantes cotistas, foram elaboradas para sistematização dos dados uma ficha do

entrevistado e um banco de perguntas responsável por nortear as entrevistas

Page 91: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 91 -

realizadas. Para a organização pessoal do pesquisador foi criada uma ficha de

horários para o agendamento das entrevistas. 89

Durante o ano de 2007, o encontro inicial com os estudantes cotistas se deu

por meio da continuidade na pesquisa “Política de Assistência aos Estudantes

Cotistas da UERJ”. Neste momento, a participação nas oficinas se deu de forma

diferenciada da anterior, pois diante da contextualização do problema da pesquisa

foi necessário que houvesse candidatos para participar das entrevistas. Foi por meio

das oficinas que os alunos cotistas começaram a se candidatar às entrevistas

realizadas para a pesquisa desta dissertação.

Ao final de cada encontro os alunos interessados preenchiam a ficha de

horário intitulada: “Trajetórias sociais: uma análise da inclusão sob as

perspectivas dos alunos de cotas da UERJ” informando o horário da entrevista,

além de alguns dados pessoais como telefone, e-mail para qualquer outro contato.

Inscreveram-se para colaborar com a pesquisa desta dissertação vinte alunos, mas

só compareceram às entrevistas onze alunos de cursos variados: direito, psicologia,

serviço social, engenharia. Como o objetivo da entrevista estava voltado para o

conhecimento da trajetória social de cada entrevistado para análise e estudo do

sistema de cotas na perspectiva do acesso e ingresso à universidade, não houve

critério específico para escolha dos entrevistados em relação aos cursos ou

períodos.

Além da ficha de horários e disponibilidades, o aluno preenchia no dia da

entrevista uma ficha de dados pessoais, voltada para a organização das entrevistas

e da notificação de um perfil socioeconômico parcial do aluno como: renda familiar,

vínculo empregatício, escolaridade e número de irmãos. O conhecimento do perfil

socioeconômico detalhado dos entrevistados foi construído por meio das fichas de

cadastro de iniciação acadêmica da Sr1 - Proinicar, onde consta na UERJ toda a

documentação dos alunos de graduação, e em particular, dos estudantes cotistas e

bolsistas da universidade.

A opção metodológica de uma pesquisa qualitativa utilizando entrevistas

permitiu um encontro mais pessoal e aberto com os estudantes cotistas,

proporcionando ao longo deste encontro, debates que discutiam não só as cotas na

UERJ, mas a raça, os tipos de cotas, justificativas para o acesso as cotas, trajetória

89

A ficha do entrevistado, o questionário com as perguntas realizadas durante as entrevistas e a ficha de horário estão no Anexo I.

Page 92: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 92 -

escolar e importância da universidade. Desta maneira os entrevistados se

transformaram em personagens reais, exemplificando por meio de relatos de vidas e

experiências a importância das cotas como acesso não só à universidade, mas

também para a melhoria da condição socioeconômica, familiar e pessoal. Por este

motivo, foram preservados seus verdadeiros nomes como forma de traduzir uma

conquista de direitos.

4.3 Conhecendo o perfil dos entrevistados.

A importância do conhecimento dos perfis como um alicerce da estrutura

metodológica possibilita a construção de um retrato do universo do qual o objeto de

pesquisa se encontra alicerçado. Conhecer quem são os alunos cotistas da UERJ

vislumbra um novo estudante que chega com novas necessidades, trajetórias e

expectativas, modificando a dinâmica da universidade.

A descrição do perfil dos entrevistados está dividida da seguinte forma: idade,

sexo, estado civil, participação em pré-vestibulares, transporte utilizado para chegar

à universidade, gasto semanal com transporte para chegar à universidade, tempo de

percurso para chegar à universidade, alimentação, gasto com alimentação, moradia,

situação de moradia, atividade remunerada, participação na renda familiar, isenção

da taxa de inscrição no vestibular, tipo de cotas que ingressou na UERJ, curso, turno

do curso. O objetivo da apresentação específica do perfil dos entrevistados é

construir uma relação com os dados gerais apresentados e divulgados pela UERJ

descritos no Capítulo III.

Em relação à idade dos entrevistados, nove, ou seja, a maioria se encontra na

faixa etária dos vinte aos trinta anos, um possui trinta e três anos, e um quarenta e

um anos. Deste universo, cinco entrevistados são homens e seis mulheres, onde

dez encontram-se solteiros e apenas um casado. Estes dados se relacionam com a

descrição geral da idade média dos estudantes cotistas apresentado pelo DSEA

(Departamento de Seleção Acadêmica), que se encontram na faixa etária dos 21

anos, com uma diferença pequena, mas significativa, de mulheres que ingressam na

universidade.

Page 93: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 93 -

No que se refere à participação em pré-vestibulares para o ingresso na

universidade, seis declararam ter feito pré-vestibulares gratuitos, dois fizeram pré-

vestibulares pagos, e dois não fizeram pré-vestibulares, preferindo estudar em casa.

Sobre o transporte utilizado para chegar à UERJ, dez dos entrevistados

disseram utilizar o ônibus como transporte diário, onde nesta maioria, um declarou

alternar o ônibus com a van e outro com o metro; apenas um aluno colocou o metro

como transporte principal. O gasto semanal com o transporte para chegar à

universidade varia entre os entrevistados em custos de R$ 30 a 50 reais semanais

para cinco alunos, e de R$ 50 a 100 reais para três alunos, e mais de R$ 100 reais

apenas para dois alunos. No tempo de percurso gasto para chegar à universidade,

seis entrevistados disseram levar de 30 a 60 minutos, e cinco disseram gastar mais

de uma hora.

A comparação do perfil dos entrevistados para pesquisa e o perfil

apresentado pela UERJ, demonstra que os estudantes cotistas não possuem carro;

por isso, estes estudantes enfrentam uma dependência maior do transporte público.

Em função da despesa diária com mais de um tipo de transporte para chegar e sair

da universidade, os cotistas precisam de um auxílio financeiro para reduzir o gasto

com a passagem. O tempo de viagem também é um fator que pode atrapalhar o

desempenho do estudante, já que este leva uma hora ou mais para chegar à

universidade e assistir às aulas.

A alimentação na universidade dividiu os entrevistados da seguinte forma:

cinco declararam alimentar-se em casa, quatro se alimentam diariamente na UERJ

em cantinas e lanchonetes, e dois declararam não se alimentar por falta de recurso.

Sobre o gasto semanal com alimentação, oito entrevistados gastam até R$50 reais

semanais, um gasta mais de R$50 reais e dois não responderam.

O gasto com a alimentação implica na necessidade do estudante de um

tempo maior na universidade, e consequentemente, de uma dependência maior das

estruturas oferecidas pela mesma. De acordo com o perfil geral apresentado pela

UERJ, apesar do número de estudantes cotistas com acesso à internet e

computadores em casa ter crescido, a maioria apesar de possuir acesso à internet

não possui computadores em casa e também não possui livros. Como a renda é um

critério para a reserva de vagas, isto significa que a consulta a livros e computadores

justificam um tempo maior na universidade para estudo e trabalhos, determinando

assim, um gasto semanal alto com alimentação.

Page 94: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 94 -

Em relação à moradia dos entrevistados, nove disseram morar em casa e

dois em apartamento. Ao declararem a situação de moradia, um colocou que mora

por ocupação, um mora de aluguel, dois em casas cedidas por familiares e sete em

casas próprias e quitadas.

Analisando o engajamento em atividades remuneradas, cinco dos

entrevistados declararam não trabalhar, sendo dois por opção e dois por

impossibilidade90, os outros seis declararam trabalhar com vinculo empregatício. No

que se refere à participação na renda familiar, cinco disseram que não trabalham e

os gastos são financiados pela família, dois trabalham e são os únicos responsáveis

por seu sustento ajudando parcialmente na renda familiar, dois trabalham e recebem

ajuda da família, e apenas dois trabalham e são responsáveis pelo sustento da

família.

Os perfis apresentados pela UERJ, mencionam que a maioria dos estudantes

com reserva ou sem reserva de vagas não trabalha dependendo de mesada de

familiares; no entanto, em relação aos cotistas, o percentual de alunos que começa

a trabalhar com 18 anos é maior. Relacionando estes dados com o perfil dos

entrevistados é possível notar, que a maioria dos estudantes cotistas concilia o

trabalho com o estudo como forma de auxiliar a renda familiar. São jovens que

estudam e trabalham desde cedo, e chegam à universidade com novas perspectivas

e interesses.91

Sobre a isenção na taxa do vestibular seis dos entrevistados não pagaram a

inscrição, e cinco pagaram normalmente. Na declaração sobre o tipo de cota que

optou para entrar na universidade, cinco optaram pelas cotas raciais e seis pelas de

rede pública. Dos entrevistados, dois estão cursando Direito, cinco Serviço Social,

três estão no curso de Psicologia e um se encontra no curso de Engenharia

Química. Em relação ao turno dos cursos, quatro estudam à tarde, um de manhã e

seis à noite.

De acordo com o perfil apresentado pela UERJ, as cotas de rede pública

também são as mais procuradas anualmente durante os vestibulares, e os

estudantes cotistas costumam se inscrever em maior número nos cursos voltados

90

Não foi especificado o motivo da impossibilidade ao trabalho devido à falta de registro e descrição nas fichas de notificação dos perfis socioeconômicos dos estudantes cotistas entrevistados. 91 A descrição e trajetória destes novos alunos serão destacadas e aprofundadas com as entrevistas.

Page 95: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 95 -

para área de Ciências Humanas. As justificativas para estas escolhas serão

detalhadas a partir das entrevistas por meio do estudo das trajetórias socais.

No entanto, a posição da UERJ frente à importância da democratização do

acesso à universidade para este grupo de alunos, se vincula ao fato de que não

compete apenas à escola habilitar seus egressos a competir pelas vagas oferecidas.

Embora o acesso à educação básica tenha sido universalizado, o mesmo não

aconteceu com a escola, ou seja, o alargamento da base de oferta da escola básica

provocou uma queda na qualidade da educação oferecida, o que de fato diminui as

chances de muitos estudantes disputarem em equidade as vagas do vestibular. Em

função disso, o resgate da escola pública de excelência depende da definição de

políticas do Estado, que diante da gravidade das desigualdades sociais, viabilizou o

acesso à educação superior por meio de políticas direcionadas ao alargamento da

pirâmide social. (VILLARDI, 2007, p.32)92

As desigualdades educacionais que se manifestam como produto do

desempenho obtido no vestibular, se vinculam a natureza da escola que os

estudantes freqüentaram e as diversas possibilidades de vivência educacional.

Destas vivências, podemos pontuar que a renda familiar contribui para o maior

impacto sobre o desempenho, seguido da escolaridade dos familiares (pai e mãe)

que possui influência direta na continuidade dos estudos deste aluno. Este nível de

desempenho também está relacionado com o ingresso do aluno precocemente no

mercado de trabalho visando o aumento da renda familiar. Além disso, em relação

aos estudantes negros, são sobre eles que as questões sociais se abatem de forma

mais avassaladora. Por isso, as cotas enquanto um mecanismo de democratização

do acesso ao ensino superior se relaciona à carência estabelecendo subgrupos no

interior das políticas de ação afirmativa, pois elas caracterizam o direito a um grupo

de estudantes com perfil específico, e descrito pela exclusão de raça e classe93.

92

VILLARDI, Raquel. Amadei, Stella Maris. Perspectivas de democratização da educação superior – um estudo do sistema de vagas reservadas na UERJ. In: ARRUDA, José Ricardo Campelo Arruda (org.), Política de Ações Afirmativas na UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, Rede Sirirus, 2007 93

È importante perceber, que a idéia de classe discutida ao longo de toda a dissertação assume um sentido conceitual prático, ou seja, ultrapassa a linha teórica definida apenas pela função do individuo no sistema produtivo, adquirindo uma interpretação associada à condição econômica e social.

Page 96: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 96 -

4.4 Falas em debate: a análise da política de cotas na UERJ segundo os

estudantes cotistas.

A interpretação das experiências apresentadas a seguir, parte do universo

individual do entrevistado para elaborar um painel analítico do cotidiano da

universidade e da trajetória social do estudante cotista da UERJ. Para melhor

compreensão das questões suscitadas até aqui, os depoimentos serão

apresentados em temas: 1)Trajetória Escolar; 2)A importância das cotas para o

acesso à universidade; 3)O cotidiano na UERJ: dificuldades e estratégias para

permanência na universidade; 4)Preconceito e relações raciais na universidade; 5)O

papel da universidade na formação do estudante cotista. È possível que ao longo

das falas outros temas sejam abordados, visto que durante as entrevistas as

trajetórias sociais traziam polêmicas que discutiam também o papel da família para a

entrada na universidade, dificuldades financeiras que envolviam a relação do

trabalho com o estudo na escola, qualidade da escola pública e questões referentes

à identidade étnica e auto-declaração.

A Trajetória Escolar:

No universo dos entrevistados a trajetória escolar exemplifica particularidades

do contexto socioeconômico do estudante de baixa renda. Estes estudantes tiveram

a educação básica realizada plenamente em escolas públicas de caráter municipal e

estadual, porém devido a questões internas à estrutura educacional ou a questões

de cunho social, descrevem, em sua trajetória, obstáculos que pareciam

intransponíveis ao acesso à universidade.

Na fala de alguns entrevistados como a cotista Maria de Jesus, do 1º período

da faculdade de Psicologia da UERJ, é possível observar que era comum para ela

alternar os estudos com o trabalho desde o 5º ano do Ensino Fundamental I. A

jornada precoce do trabalho descaracterizou a importância da escola no sentido de

formação, ou seja, o que para uma criança seria o momento de estudo e

responsabilidade se transformou em um espaço apenas de socialização e

brincadeiras diante da necessidade de contribuir na renda familiar. Além disso, esta

dupla jornada de escola e trabalho gera problemas e dificuldades de acompanhar as

aulas e matérias ao longo do ano. O cansaço, a ausência nas aulas contribuem para

Page 97: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 97 -

a má formação do aluno, como também exemplificou Daiana: estudante cotista do 4º

período da Faculdade de Serviço Social.

Eu estudei no colégio público do C.A até a 8ª série, e depois fui para Niterói atrás

de emprego tentando melhorar minhas condições financeiras. Com 15 anos quando

consegui meu primeiro emprego em um consultório odontológico durante o dia,

estudava à noite no período de um ano. Foi um ano muito conturbado. Eu faltava

muita aula, ficava cansada. Eu até fiquei em dependência em uma matéria:

matemática.(Daiana)

Como foi sua formação escolar? Sua trajetória?

Eu trabalhava. Minha mãe era muito pobre e era só ela para cuidar de sete filhos.

Ela tinha separado do meu pai e a situação era complicada. Eu era uma das mais

novas. Ela sempre trabalhou na feira. Então eu sempre a ajudei. Sempre ia à feira

com ela desde pequenininha. Como eu trabalhava de manhã, à tarde eu ia para

escola. Mas eu não tinha muito tempo livre para brincar. Aquilo me fazia falta. Mas

quando eu ia pra escola era uma liberdade. Era como se eu tivesse livre. Aí você já

viu, né?Matava aula abessa! Quando eu era mocinha então!O meu problema é que

eu repeti a 4ª série (5º Ano) várias vezes. Até que eu passei para noite e já estava

com 15 anos. O meu problema era que eu sempre ficava em Matemática. Eu sabia

todas as contas e operações de cabeça, porque eu trabalhava na feira. Só que na

hora de armar eu não conseguia e só colocava o resultado. Hoje, analisando, eu

acredito que o que me dificultou é que eu faltava muito por conta de aproveitar o

tempo para brincar e para sair. (Maria de Jesus)

Outro aspecto da trajetória escolar do estudante cotista, segundo a fala da

estudante Priscila do 10º período da faculdade de Serviço Social, se vincula com a

mudança das políticas de governo provenientes das trocas de prefeituras,

determinando incertezas frente à transferência de custos e investimentos por parte

do Estado e município. Esta situação gera uma crise educacional ocasionada pela

falta de professores, ausência de recursos para merenda escolar, e

consequentemente, problemas estruturais na própria escola, o que para o aluno,

significa uma queda na qualidade de ensino e na sua própria formação escolar.

“Em Campo Grande, no Jardim de Infância Dom Bosco, em 1990, eu participei do

projeto Darcy Ribeiro: o Ginásio Público. O prédio era um CIEP, mas o projeto

funcionava do 5º ao 10º ano. Era uma maneira diferente de educação. No começo

eu adorava! A proposta da escola era que agente ficasse o dia inteiro, além das

disciplinas convencionais, existiam disciplinas de apoio como teatro, horta, línguas,

eram várias oficinas. Tinha laboratório, era toda equipada. Esse projeto foi até o 8º

ano. Assim que o Brizola saiu, entrou o Marcelo Alencar, e ele disse na campanha

Page 98: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 98 -

dele que tudo que era do Brizola ele ia acabar, e acabou. Agente tinha merenda.

Chegava no colégio tomava o café da manhã, tinha as 10hs o lanche, o almoço,

outro lanche e a janta. E quando o Marcelo Alencar entrou, acabou, não tinha mais

dinheiro. Os professores não vinham nunca. A merenda acabou. Só tinha almoço e

olhe lá! Acabou o sistema do 5º ao 10º ano. Uma outra turma que entrou depois da

gente foram as últimas, e a escola voltou a funcionar normal, cheia de turmas.

Acabou com tudo. Tudo era gramadinho bonitinho, com cerquinha. As cerquinhas

foram tudinho embora. Não tinha dinheiro para merenda, não tinha dinheiro para

nada. Antes agente tinha dinheiro. Quem comandava a verba era o governo.

Depois vieram com uma história de que iam mandar dinheiro para diretora e ela que

iria comandar. Acabaram com tudo. Desandou não deu em nada”. (Priscila)

Outra questão importante para os alunos que estudaram em escolas públicas,

que também envolve o debate em torno da qualidade da educação básica são as

greves. Thiago, estudante cotista do 1º período da faculdade de Engenharia

Química, por exemplo, se sentiu prejudicado ao passar por uma longa greve durante

todos os anos do Ensino Médio, ou seja, em um momento preparatório e

fundamental para o vestibular. A estratégia do estudo de forma individual consiste

em um mecanismo para driblar as dificuldades durante a educação básica. No caso

do Thiago, a trajetória escolar no Colégio Pedro II o aproximou de uma realidade

associada à continuidade dos estudos para uma melhor colocação profissional, mas

não o isentou da jornada que concilia o estudo com o trabalho.

Lá no Pedro II funcionava assim, quando você chegava no 3º ano, os alunos que

estudavam de tarde, os professores faziam um aprofundamento, um apoio, como

no caso da manhã. Você chegava mais cedo e fazia exercícios, aprofundava a

matéria e ficava o dia todo no colégio. Nós tivemos greve durante os três anos de

Ensino Médio. No último ano para mim foi a pior, porque a greve ficou durante três

meses. Nós paramos no meio do vestibular e não tinha aulas. Foi aí que a gente se

dedicou mais ainda. Nós tínhamos um grupo de cinco pessoas da nossa turma

muito próximo, um ia fazer História, o outro Economia, eram áreas diferentes, mas

nós decidimos vir todos os dias ao colégio e estudar. Nós íamos para biblioteca

estudar, e combinamos que iríamos nos reunir no final do ano e ver que todos

haviam passado, e teria valido à pena!

Foi uma estratégia em relação à greve. Todo mundo passou?

Todo mundo passou.

Todos vieram para UERJ?

Alguns para UFF, UFRJ, mas todos estão em universidades.

Você sempre trabalhou e estudou? Você ajudava o seu pai?

Sim. Desde o 1º ano. Meu pai trabalha com uma indústria têxtil. Ele é vendedor. Ele

compra da indústria para vender no comércio.

Page 99: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 99 -

Então para você trabalhar durante o período de vestibular foi complicado.

Como você fazia para conciliar o trabalho e o estudo?

Eu trabalhava de manhã com ele e saia um pouco mais cedo para pegar aquele

aprofundamento que eu falei. Eu saia do colégio e voltava para o trabalho. E ficava

estudando até duas ou três horas da manhã.

Você acordava que horas para começar a trabalhar?

Acordava às seis horas da manhã. (Thiago)

Em função da realidade socioeconômica dos entrevistados, muitos

começaram a trabalhar durante os estudos, e alguns acabaram abandonando a

escola antes mesmo de concluírem o Ensino Fundamental II, como o caso de Maria

de Jesus. No entanto, o engajamento nos estudos levou o interesse a tentar fazer

provas de vestibular.

Eu vim para o Rio com 17 anos, nem pensei mais em estudar e casei. Parei de

estudar na 4ª série. Em 1999, já tinha tido todos os meus filhos. Casei com 19 anos.

Todos os filhos foram planejados. Primeiro eu tive dois filhos: um menino e uma

menina. Depois de seis anos, como um acordo, resolvemos ter outro filho. Mas em

1999, eu soube pela minha sobrinha, ou melhor, minha cunhada, que tinha esse

provão do Estado pela Secretaria de Educação, que através de uma lei, você

terminava tanto o 1º como o 2º grau. O 1º grau são seis matérias, e você faz seis

provas de cada matéria. Você passou nelas, acabou. Já sai com o certificado de 1º

grau. Eu pensei: é a minha chance!

Eu investia em material, e comprava livro em sebo ou pegava livro emprestado com

os vizinhos para estudar.

E você trabalhava paralelamente aos estudos?

Eu não trabalhava. Meu marido trabalhava em obra e eu cuidava das crianças. Meu

marido chegava em casa e eu estava estudando. Eu dava uma atenção a ele, fazia

comida e voltava a estudar. Eu estudava de manhã, de tarde e de noite. Eu sentava

para ver televisão e estava estudando, um olho na televisão e outro estudando. E

logo depois eu fui atrás de material que caia no vestibular. (Maria de Jesus)

Alguns entrevistados terminaram o Ensino Médio e começaram a trabalhar,

acreditando que a universidade se encontrava distante de seus objetivos, pois a

maioria precisava auxiliar na renda familiar, ou pensavam em ter autonomia por

meio do trabalho. O fato de ter sofrido uma má formação em função da baixa

qualidade de ensino acabava desestimulando a escolha imediata de uma profissão

melhor através da disputa de vagas no vestibular das universidades públicas logo ao

terminar o Ensino Médio. Neste sentido, o apoio da família seria fundamental neste

Page 100: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 100 -

processo que determina a conclusão do aluno na escola e o caminho para

universidade, o que ocorre em pouquíssimos casos.

Quando você começou a trabalhar?

Olha, no último período da escola técnica eu já estava estagiando. Eu já estava

acostumada a lhe dar com o dinheiro. Em casa o que eu pedia para os meus pais

era alimentação e moradia, o resto eu cobria. O meu pai tem dois filhos – meus

irmãos, e dois filhos fora. Então eu era a mais velha, e eu sempre quis ter as

minhas coisas para dar o menos de despesa possível. (Tatiana)

Eu comecei a trabalhar com dezoito anos. Terminei o segundo grau e fiquei à toa.

Eu morava com a minha irmã. Estudava e fazia pré-vestibular. Aí com dezoito anos

eu fiz um curso de Telemarketing e fui trabalhar. Eu trabalhei seis meses com

Telemarketing, três meses no Mac Donald´s e dez meses em uma fábrica de bolas.

E aí eu entrei na faculdade quando parei de trabalhar.

Na sua família só você tem ensino superior?

Meu pai é pedreiro e minha mãe é domestica. Na minha família a minha irmã é

mestre em Português pela UFF, e fez politécnico pela Estácio, não é uma

faculdade. Já a minha irmã mais nova tem o técnico, e a trancos e barrancos

terminou com 33 anos porque minha irmã mais velha pagou. A minha irmã mais

velha tem essa coisa comigo e com a minha irmã mais nova, porque a diferença de

idade é muito grande, é de 15 anos. Ela sempre incentivou: eu e a minha irmã mais

nova a estudar. Agente ia para UFF quando criança, e ficava lá na casa do

estudante passeando enquanto ela morava lá. (Priscila)

Você sempre soube que queria fazer graduação.

Não. Isso foi só no final do 3º ano que agente ficou sabendo que tinha que fazer

faculdade, eu nem sabia o que era. Hoje não, mas na minha época falavam que

faculdade era para pessoas de elite, com melhor condição e etc. No interior agente

tem mais uma visão de curso técnico. No meu caso o meu pai era da Marinha, e eu

sempre sonhei em ir para Marinha, porque faculdade era uma coisa surreal!

(Daiana)

Embora a escolaridade da família contribua para a continuidade nos estudos,

as entrevistas revelam que o encontro com a universidade se deu como uma

tentativa de superar a insatisfação pessoal no mercado de trabalho cujas funções,

se vinculavam apenas à formação técnica. Neste sentido, a universidade aparece

como uma alternativa a melhores condições de trabalho e uma possibilidade de

melhorar também a condição socioeconômica. Porém, para a maioria destes jovens

a universidade é classificada como um ambiente freqüentado apenas pela elite. Por

isso, torna-se necessário retornar ou reforçar os estudos por meio de pré-

Page 101: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 101 -

vestibulares comunitários ou pré-vestibulares particulares de baixo preço. Voltando a

estudar, ou continuando os estudos, surge a esperança de conseguir alcançar o

sonho do acesso ao ensino superior. As tentativas de entrada no vestibular, em

média, são de três a cinco anos até conseguir passar no exame classificatório, e por

isso, as cotas proporcionam uma oportunidade com grandes chances de vitória.

Nos Correios o trabalho era muito chato e eu ganhava pouco. Aí a minha amiga me

chamou para trabalhar no laboratório, e ganhava mais que os Correios. Mas para

sair dos Correios eu tinha que fazer uma besteira muito grande. Eu chegava em

casa mal humorada discutindo com todo mundo. Resolvi largar os Correios. E fui

para o laboratório. O trabalho era com medicamentos e embalagens, e era direto,

fazia serão sábado e domingo. Em um determinado momento eu comecei a sentir

falta do estudo do ambiente da faculdade, e principalmente, de trabalhar com algo

que me fizesse crescer. E ali eu não vislumbrava crescimento, só se eu fizesse

Engenharia Química ou Farmácia. E eu queria ganhar dinheiro. Então eu pensei:

agora eu vou me dedicar a faculdade. Aí entrei em um cursinho. Fui mandada

embora e com o dinheiro fui me mantendo e estudando. Eu tinha que focar em

alguma coisa. Se eu começasse a trabalhar eu tinha certeza que dependendo do

trabalho eu não ia conseguir me dedicar tanto quanto eu me dediquei para passar.

E passei para Direito. (Tatiana)

A análise da trajetória escolar a partir do depoimento dos estudantes cotista

descreve um caminho de jovens que passaram por muitas dificuldades referentes a

situação socioeconômicas, problemas familiares, questões estruturais da escola

onde estudou, necessidades que os obrigam a assumir uma jornada de trabalho e

responsabilidades cedo. Todas estas experiências de vida contribuíram de uma

maneira geral para a modificação do ritmo de estudos. Esta realidade os afasta de

jovens que vivem apenas para o estudo com responsabilidades comuns de tarefas e

trabalhos escolares. Por isso as cotas possibilitam o acesso ao ensino superior

como uma porta à profissionalização, ou seja, ao requisito fundamental a melhores

colocações no mercado de trabalho, e consequentemente, à tentativa de chegar a

uma nova realidade de convivência com grupos sociais, étnicos e de classes

diferentes.

A importância das políticas de cotas para o acesso a universidade.

O encontro com o sistema de cotas como porta de acesso à universidade é

descrita pelos entrevistados de formas diferenciadas. Da oportunidade ao direito de

Page 102: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 102 -

entrar na universidade, as justificativas para terem optado pelo sistema de cotas se

encontra vinculada a obstáculos surgidos durante a trajetória escolar. A maioria dos

entrevistados confirma que a má qualidade do ensino é determinante para o

fracasso no vestibular; por isso disputar entre iguais, ou seja, entre alunos que

passaram pela mesma situação possibilita uma concorrência favorável e justa,

garantindo por meio de uma média menor o ingresso na universidade.

Na sua opinião, qual é a importância das cotas?

A importância das cotas à curto prazo, até que é valido. Porém, não deveria ser

para sempre. Isso tem que acabar. Eles deveriam oferecer o ensino de qualidade,

antes de entrar na faculdade, para ingressar na universidade o aluno precisa ser

preparado. Quando entramos aqui enfrentamos as mesmas dificuldades que os não

cotistas. (Fernando).

As cotas me ajudaram muito. Como eu te falei, levei cinco anos para entrar. Eu

gosto de enfatizar bem isso. Que sirva de estimulo para outras pessoas. Já que o

governo não nos da um ensino público de base com qualidade. É um caminho para

escaparmos da exclusão intelectual. (Allan)

Me escrevi para UERJ, ENEM, UFRJ. Passei em todas. Na UERJ eu passei com as

cotas, as outras não. Eu entrei por cotas, mas se não fosse por cotas eu acho que

também teria conseguido.

Então por que você se escreveu por cotas?

Por ter estudado em escola pública. Seria uma chance a mais. (Vanderlei)

E por que você resolveu entrar na universidade pelo sistema de cotas?

Porque além de ser um direito meu, digamos, eu me adequo a forma que a lei

prescreveu. Seria uma indenização que o Estado esta me dando pela deficiência do

ensino que ele me deu. (Diego)

Por que você resolveu entrar na universidade pelo sistema de cotas?

Eu resolvi fazer, realmente porque a relação candidato vaga diminuiria. Na época

eu me inscrevi no vestibular normal. Depois é que eu fui perceber que havia surgido

o Sade, e eu vi que eu iria competir apenas com pessoas de escolas públicas. Eu vi

que ia ser mais fácil competir com que não tem professor, não tem isso, ou aquilo.

Um pouco mais fácil do que competir com pessoas que tiveram todas as matérias,

professores. Eu achava que seria um pouco mais fácil entrar pelo Sade e troquei.

Eu fiz a primeira prova: o exame de qualificação no vestibular normal, aí depois eu

fiz pelo Sade. (Priscila)

Page 103: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 103 -

O próprio aluno cotista critica a reserva de vagas como uma alternativa à crise

da educação básica, reconhecendo os problemas da escola pública. Neste sentido,

as cotas para a rede pública legitimam um direito justificado pela falta de

preparação, como uma indenização do governo pelos longos anos de exclusão

intelectual e de falta de investimentos na educação. Por isso, o sistema de cotas

denuncia um problema social, e é possível notar isso na fala dos alunos como uma

maneira de reafirmar que optar pela reserva de vagas não é fruto de uma

incapacidade individual, e sim, de uma situação da maioria dos alunos que estudou

nas escolas públicas.

No entanto, as cotas para negros dividem opiniões e confundem os

entrevistados ao descreverem o que pensam sobre este tipo de reserva de vagas

para o acesso à universidade e a sua importância.

Qual é a importância das cotas na sua opinião?

Eu acho importante, principalmente para quem não teve uma educação para fazer o

vestibular. Mas também não acho que seja isso que vá melhorar a educação,

acabar com o preconceito. Pode até ser que diminua a segregação que existe

dentro da universidade, porque eu acho que diminuiu dentro da UERJ. Em relação

as cotas para negro, no começo eu achava complicado. Com é que as pessoas vão

dizer que são negras? Aí vai acreditar? Tem pessoas que são da minha cor e

acham que são brancas. Sempre disseram que eu era branca. Aí como é que vai

dizer que é negro? (Priscila)

Que tipo de cotas você escolheu?

Primeiramente eu fiz de escola pública e depois eu fiz para negros.

E o que você acha em relação a declaração em ser negro?

Você tem que assumir. Qual é o problema? Sou negra e muito obrigada. Eu nunca

tive dificuldade com isso. Mesmo porque a gente só vê, ou só se percebe o

preconceito quando você quer galgar outras coisas. No seu lugar você não percebe

o preconceito.

Qual a importância das cotas para negros? Você concorda com isso? Ou

acha que só deveria existir cotas de escola pública?

Eu concordo plenamente com as cotas para negros. Não que ele tenha o raciocínio

menor, entendeu? A teoria do branqueamento do Brasil tem todo um contexto

histórico.

Pra começar com os jesuítas que colocaram na cabeça do branco europeu que o

negro era inferior. O negro carregava o estigma do pecado: a redenção de Cã.

Então era amaldiçoado por Deus. E com essa teoria ele usava para dominar. E o

negro não podia fazer nada. Uma pessoa longe da sua pátria, longe da sua família,

tirado da sua nação, dominado totalmente, vendido como escravo, e a maior parte,

morria no caminho. Então mesmo assim, ele não aceitou passivamente. Ainda que,

Page 104: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 104 -

os europeus, ou melhor, os portugueses digam, que o índio tem uma sabedoria e o

negro só servia de força de trabalho. Os próprios intelectuais disseminavam esse

discurso e falavam que o negro era submisso. E o culto afro? Ainda que

disfarçados, eles fingiam que estavam dominados, mas na verdade nunca se

dobraram ou foram dominados. Mas aí essa mentira de que o negro era incapaz e

inferior foi disseminando e entranhando na cabeça das pessoas. (Maria de Jesus)

Qual é a importância das cotas para você?

Muito importante porque eu até brinco com uma música dos Racionais. Ele sempre

fala que o negro desde criança sempre ouve que por ser negro ele deve ser o

melhor. Na escola você tem que ser o melhor porque você é negro. Então como se

cobra muito isso, nós temos que ser o melhor. Porque nós não temos acesso, não

tivemos oportunidade. Na minha família eu sou a única que entrei na faculdade. O

meu pai terminou o 2º grau agora. Então eu sempre tive essa visão de mudar a

condição social, a minha trajetória. Porque se a vida fica muito naquilo ali... A gente

tem que ter metas, metas e mais metas para atingir. (Flávia)

Mesmo declarando-se e reconhecendo-se como negro, a cota para negros

aparece como uma segunda alternativa caso a opção pela cota de rede pública seja

indeferida. De acordo com a fala dos entrevistados, é possível perceber que o

reconhecimento da identidade étnica para a percepção de que a cota para negro

também é um direito como a cota de rede pública, perpassa pela compreensão da

exclusão e das desigualdades sociais como uma relação entre raça e classe,

atribuindo ao conceito de classe a idéia de condição socioeconômica.

O ponto comum entre a fala dos entrevistados é que independente do tipo de

cota, a reserva de vagas é um mecanismo facilitador da entrada destes estudantes à

universidade. No entanto, como já foi apresentado até aqui, a política de ação

afirmativa se responsabiliza por proporcionar uma oportunidade por meio do

reconhecimento das diferenças, e é aí, que entre a teoria e a prática começam a

surgir obstáculos, principalmente no que se refere à permanência dos estudantes

cotistas na universidade.

O cotidiano na universidade: dificuldades e estratégias para permanência na

universidade.

Ao entrar na universidade o estudante cotista se insere em um novo universo,

com novas exigências. A universidade se apresenta por meio de novas amizades,

matérias, professores, o que também determina um novo cotidiano caracterizado por

descobertas, dificuldades e estratégias relacionadas à permanência deste estudante

Page 105: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 105 -

na graduação. O debate da permanência é fundamental diante da descrição de toda

a trajetória apresentada até aqui. A política de cotas permite a ampliação dos

espaços e a integração e convivência de novos grupos sociais e culturais. No

entanto, o estudante cotista apresenta em seu perfil, como critério de acesso às

cotas, a carência econômica e social, o que significa que a própria universidade

deverá se adaptar às novas exigências e necessidades trazidas por este aluno.

Como foi o seu ingresso na universidade? Conta um pouco sobre o seu

cotidiano aqui na UERJ.

Eu venho do trabalho. Eu chego aqui uns vinte minutos meia hora atrasado na aula.

Depois é que eu aterrisso, e aí é que eu caio na realidade. Agente assiste às aulas

e no intervalo tem sempre aquele bate-papo. No primeiro período é aquela coisa.

Vou me adaptando ainda a essa nova realidade. Muita informação. É meio

complicado, nesse sentido. Como eu te disse é uma outra realidade, totalmente

nova.

O que mais te impressiona na universidade?

As possibilidades que a gente tem aqui dentro. O contado com as pessoas, o

conhecimento. É uma oportunidade grande. É difícil administrar.

Você trabalha em que?

Eu trabalho em um escritório de Contabilidade. Na parte fiscal.

Que tipo de dificuldade você tem encontrado na universidade?

Primeiro o horário. O horário não é bom para mim, eu passei na reclassificação, e

havia escolhido à noite, e o horário é de tarde, e a gente não pode mudar isso. No

2º período eu preciso passar para noite para continuar trabalhando. É complicado

porque você tem a matricula à tarde e não pode mudar para noite. Então você se

inscreve nas disciplinas e não pode pegar todas as matérias, porque a prioridade é

de quem estava à noite. Essa é a minha maior dificuldade. (Allan)

E como é o seu cotidiano na universidade?

Geralmente eu chego 12h20min e vou para a sala de informática porque não tenho

computador em casa. Eu chego leio os e-mails e outras coisas que me interessam.

Depois eu vou para sala de aula. A faculdade é um sonho ainda. Eu acho que exige

mais compreensão e tempo para ler os textos. Porque eu sou mãe. Tenho dois

filhos! Um de três e um de 10 meses. A dificuldade é essa, mas em geral eu tenho

as notas na média. (Sandra Regina)

Como é o seu cotidiano na Universidade?

.O meu hábito de escrever é mínimo. Até hoje eu escrevo muito pouco. Pra mim,

era uma dificuldade. Porque eu vejo na universidade que todo mundo escreve

muito, fala muito, tem uma oratória muito boa e eu sou péssima nisso. Para eu

começar a falar em público, eu falava como uma metralhadora. Não dava muito

certo. A entrada em si, a ficha parece que não caiu até hoje. Porque eu levo como

se estivesse no Ensino Médio, mas de uma forma diferente. Por exemplo, a

Page 106: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 106 -

História, você aprende de maneira diferente. Tem uma base, mas não é igual ao

que você aprendeu. È algo mais amplo. O que os professores falam durante as

aulas, não é exatamente o que aprendemos, é algo mais. O que falta é também

esse algo mais no Ensino Médio, para quando a pessoa chegar aqui na

universidade ela saber o que vai encontrar. (Gracileide)

Eu gosto muito da minha turma. São pessoas que estão me incentivando, é uma

turma muito unida, no sentido de ajudar, trazer um livro, de trazer uma questão que

achou na internet e distribui para todo mundo. E eu acho que vale muito, e que

conta muito para o conhecimento e para a aprendizagem é a união. Com relação as

matérias eu tive muita dificuldade da parte histórica, porque quando eu cheguei

aqui descobri que de História eu não entendia nada. Os professores, eu acho que

alguns têm muito interesse, outros poucos. Alguns professores são dedicados,

empenhados e compromissados com que o aluno apreenda, se desenvolva e

cresça. (Daiana)

Na fala de todos os entrevistados, o ingresso na universidade aparece como

um espaço de novidades, possibilidades e trocas de experiências. Neste período a

integração é fundamental para a adaptação do estudante. No entanto, a primeira

dificuldade relatada pelos entrevistados está relacionada às disciplinas e dinâmica

das aulas. As dificuldades instrumentais como: leitura, escrita, desenvolvimento

oratório, se caracterizam como um obstáculo à compreensão e desenvolvimento

destes estudantes nas provas discursivas e trabalhos durante os primeiros períodos

na faculdade. Em geral, os estudantes cotistas entrevistados relatam que muitas

destas dificuldades são provenientes da má formação escolar, porém esta

dificuldade se apresenta apenas como algo referente ao processo de adaptação a

uma nova didática diferente das aulas do Ensino Médio.

Outra dificuldade vinculada à mudança do perfil do aluno que chega a

universidade, se encontra no fato do estudante cotista manter uma jornada dupla de

trabalho e estudo. Muita das vezes a permanência na universidade pode ser afetada

por meio da incompatibilidade de horários, visto que este estudante precisa trabalhar

em função da sua realidade socioeconômica, o que o obriga muita das vezes a dar

preferência, como na escola, ao trabalho do que ao estudo. A jornada de trabalho

também pode ser estendida às responsabilidades com a família. Conciliar o estudo

com os filhos pode atrapalhar a dedicação às leituras, prejudicando a compreensão

e o desenvolvimento durante as aulas.

Page 107: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 107 -

De acordo com a maioria dos entrevistados a dificuldade financeira é o que

mais os prejudica no processo de permanência na universidade. Por isso, para

continuar estudando, o cotista precisa utilizar a estrutura da universidade como

biblioteca, internet, o que determina um gasto maior com xerox, alimentação e

transporte. A Lei 4151/2004, determina ao estudante cotista o recebimento de uma

bolsa-auxílio. Esta bolsa como já discutida anteriormente, é repassada com recursos

da FAPERJ e da UERJ pelo Proiniciar – Programa de Iniciação Acadêmica; no valor

de R$190,0094 para os bolsistas da UERJ. No entanto, segundo os entrevistados os

gastos financeiros ultrapassam o valor da bolsa.

Eu não tinha dinheiro para tirar xérox, tinha que correr atrás de biblioteca. As vezes

eu não tinha dinheiro para comer, ficava azul de fome até chegar em casa. Quando

o dinheiro acabava e eu não tinha como pagar passagem, eu faltava a uma matéria

que já tinha vindo muito, ou alternava quando não tinha dinheiro e pedia para minha

irmã. A primeira pessoa que eu pedia era minha irmã e meu cunhado quando

acabava meus R$190,00, porque o meu pai já sustentava a casa, e eu achava que

deveria procurar outros meios até chegar nele.(Priscila)

Eu tenho muita dificuldade em relação a distancia. Minha casa fica muito longe e vir

para cá não é fácil. Eu tenho que ter dinheiro e as vezes eu não tenho. Eu

economizo, mas texto eu não abro mão. Tem uma amiga que sempre me pede

emprestado texto, mas eu falo: fica para você, porque eu moro longe, e tenho que

estudar para uma prova na segunda, por exemplo, como é que eu fico? Eu não

abro mão de ter os meus textos mesmo que eu não leia. Eu tenho o maior cuidado

com os meus textos. Livros eu não posso comprar. Vai fazer três anos que eu estou

na faculdade e eu só tenho três livros. Não tive dinheiro para comprar. Agora, água,

biscoito, e papel higiênico que não tem nos banheiros eu trago. Tem um ônibus

universitário que eu procuro não perder. Por exemplo, eu combinei de discutir um

texto com a Carol às 16hs para o trabalho de segunda-feira, só que eu não pude vir

porque estava sem dinheiro. Porque para eu vir fora do meu horário eu tenho que

pagar passagem até Niterói, e aí dificulta. Tem esses problemas. Tem dia que eu

não venho porque não tem dinheiro mesmo. Quando venho fazer trabalho e fico o

dia inteiro eu durmo na casa da minha amiga Clara, que pega meus textos e

minhas canetas. Agente vai arrumando do jeito que pode. Ela dá o almoço e eu dou

o refrigerante. (Daiana)

O valor da bolsa-auxílio não corresponde às necessidades do aluno cotista,

que procura estratégias para superar as dificuldades diárias na universidade,

94

Utilizarei este valor, pois no período das entrevistas a bolsa não havia sido ainda reajustada para R$250,00. Portanto as falas expostas se referem ao gasto e valor da bolsa referente aos R$190,00.

Page 108: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 108 -

pedindo dinheiro à família, utilizando o transporte universitário para economizar o

dinheiro da passagem, pedir ajuda aos amigos, além de utilizar a biblioteca para não

comprar livros. Por mais variadas que sejam as estratégias, Gracileide demonstrou

uma outra solução interessante ao descobrir que vender bolsas para as amigas da

faculdade a auxiliaria nos gastos na universidade.

Como você fez para driblar essa questão da dificuldade financeira?

Na verdade, como meu marido trabalha, e eu não estou trabalhando, ele é quem

me ajuda mesmo com a bolsa. Essa bolsa praticamente não dá para quase nada.

Eu fiz um curso de costurar bolsas, e é isso que me ajuda porque eu vendo para as

meninas e estou me virando. Isso me ajuda a me manter na universidade.

E por quanto você vende uma bolsa?

Depende, têm umas mais caras outras mais baratas. Mas em geral o preço é

R$20,00.

Então essa renda te ajuda a se manter: comprar lanche, pagar o xérox de um

texto. Em média quanto fica o seu custo diário na universidade?

O meu custo em média são uns quinze reais por dia. Se eu for comer fora com as

meninas no lanche que agente chama de “pobre”, lá é R$ 1,20. (Gracileide)

O relato dos entrevistados demonstra que não existe por parte da

universidade uma política de assistência voltada para o acompanhamento dos

cotistas. O que existe são programas pontuais, por exemplo, a própria bolsa-auxílio

só é válida durante um ano cujo pré-requisito seria o cumprimento de disciplinas

extracurriculares para o recebimento da bolsa. E este seria um outro ponto muito

discutido pelos entrevistados.

Você tem alguma sugestão de mudança para universidade em relação ao

sistema cotas na UERJ?

A bolsa ser requisito dessa carga horária que tem que ser cumprida. Muitos

querem, mas o perfil do aluno está mudando. Tem aluno que quer participar de uma

aula ou oficina, mas não pode porque tem que trabalhar e largar 17hs. Então é

pensar em um modo que contemple a todos. Pode continuar a ter oficinas, mas

propondo outras atividades para quem não pode. (Flávia)

A percepção da mudança do perfil do aluno pela entrevistada ao descrever a

incompatibilidade dos horários estabelecidos para as oficinas, exemplifica mais uma

dificuldade relacionada à incompreensão das demandas e necessidades dos

estudantes cotistas. A continuidade do recebimento da bolsa ao longo da graduação

Page 109: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 109 -

e o reajuste do valor são mudanças importantes para estes estudantes que

necessitam de recurso financeiro para se manter na universidade.

A precarização da infra-estrutura da UERJ associada à situação financeira

dos alunos cotistas, desencadeia estratégias relativas a alimentação, transporte,

material didático, alojamento. A atuação ineficaz do Estado na inexistência de

investimentos na universidade leva os estudantes a criarem esses mecanismos de

defesa para permanecer na universidade. Isso significa, que as políticas de cotas, ao

interferirem no acesso seletivo à universidade, acionam mecanismos de apoio aos

mais carentes e discriminados, sem, no entanto, romper com as estruturas que

reproduzem as desigualdades. A resposta que estes segmentos e grupos sociais

anseiam não é apenas o ingresso, mas a permanência na universidade. Para isto, é

necessário uma Política de Assistência aos estudantes de cotas com monitoramento

e acompanhamento de suas trajetórias acadêmicas, auxiliando-os com bolsas de

estudo, cursos suplementares, alojamento e alimentação. Seria o mínimo para que

as cotas não resultem em meros arroubos políticos de caráter populista. (CASTRO,

2008, p. 249). 95

Preconceitos e relações raciais na universidade.

O nome cotista para designar o estudante que ingressa na universidade por

meio da reserva de vagas, em si, já pressupõe uma idéia de diferença entre os

demais, muitas vezes encarada como um estigma. As políticas de ação afirmativa

revelam a importância da discriminação positiva como forma de superar as

desigualdades, porém, do reconhecimento das diferenças ao respeito pelas

diferenças, é exigido um processo relacionado à interação entre os indivíduos, ou

seja, a equidade se revela no cotidiano das relações sociais.

Conviver com as diferenças é um exercício de interação, e neste sentido, a

reafirmação da identidade étnica e social aparece como um mecanismo responsável

pela integração de grupos dentro da universidade, ou seja, os grupos se formam por

afinidades relacionadas a manifestações como: raça, classe e cultura. Assim, a

política de cotas contribui para a diversidade cultural, na medida em que predispõe

ao acesso das vagas na universidade indivíduos de diferentes classes, cores, raças,

95 CASTRO, Alba Tereza Barroso. Tendências e contradições da educação pública no Brasil: a crise na universidade e as cotas. In: BROSCHETTI, Ivanete (org.). Política Social no Capitalismo: tendências contemporâneas. São Paulo: Cortez, 2008.

Page 110: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 110 -

histórias e experiências de vida. Neste sentido, dividir os espaços na universidade

não significa segregar ou separar e sim interagir, conviver e conhecer pessoas

diferentes.

A maioria dos entrevistados disse nunca ter sofrido preconceito. Vivenciar o

preconceito na sociedade brasileira é algo velado no cotidiano social e específico de

significados raciais, espaciais e econômicos. È estranho imaginar que em um

universo tão diverso como a universidade as diferenças possam não chegar a se

chocar. Na realidade o preconceito na universidade existe, e também aparece

camuflado para alguns alunos, que apesar de não serem discriminados

negativamente pela raça, por exemplo, sofrem indiretamente o estigma de ser

cotista, carregando em conjunto o preconceito da raça, de cor e de classe.

Durante as entrevistas foi possível perceber que o preconceito em maioria

acontece por parte dos professores, que manifestam a contrariedade em relação ao

sistema de cotas através de comentários ao longo das aulas, que questionam as

notas e o desempenho dos alunos como pressuposto para caracterizar que, em uma

sala de aula cheia os que tiram notas baixas seriam provenientes de cotas.

Você já vivenciou algum tipo de preconceito na universidade?

Eu não vivenciei, mas tem alguns professores que criticam, mas nas palavras deles

eles não sabem quem é ou não cotista. Até porque os cotistas estão tirando notas

altas. E eu também. O preconceito está nele (professor), logo que ele fala uma

palavra você sabe que está se referindo às cotas. È um preconceito bem leve,

escondido. (Vanderlei)

Existe o preconceito com relação aos cotistas de forma explícita ou velada?

De onde parte uma segregação velada é dos professores. Eles não gostam. Alguns

falam abertamente. De alguns professores você percebe que há uma desconfiança,

uma má vontade.

O preconceito é por causa das notas?

Sim. Dos professores basicamente é por causa das notas. (Thiago)

Em relação aos alunos algumas manifestações são tão diretas como a dos

professores. O preconceito e a discriminação aparecem em frases escritas nos

banheiros, ou até mesmo em brincadeiras durante o trote junto aos calouros como

relata Thiago ao contar uma experiência pessoal.

Page 111: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 111 -

Já sofreu algum preconceito na universidade?

Eu não fui vítima, mas agente vê comentários a respeito de cotistas na UERJ.

Agente lê até nos banheiros da UERJ.

Quais são esses comentários?

Aqui não é lugar para cotista. Isso no 8º andar. E também já vi no banheiro da pós-

graduação da UERJ escrito: “cota e lugar de preto não é na universidade”, e uma

suástica nazista. (Diego)

Por parte dos alunos é mais escancarado. Do lado esquerdo e do lado direito, são

lados contrários.

Me explica melhor essa divisão de lado A e lado B. Existe essa diferença entre

os alunos por estes saberem quem é ou não é cotista?

É curioso que o sistema de cotas mudou não só as características dos alunos que

entraram, mas também mudou o perfil geográfico da universidade. Os alunos de

cotas majoritariamente, vêm de um lado: da Zona Norte, da Baixada. Na minha

turma se você perguntar, todo mundo que entrou por cotas é da Zona Norte,

Baixada, São Gonçalo. Os alunos que não entram por cotas estão por aqui pela

Zona Sul, pela Tijuca.

Teve um trote no primeiro dia. Você tinha que subir na mesa e eles te faziam

algumas perguntas do tipo: o que você faz? Onde você mora? As respostas eram

Botafogo, Urca, Gávea, Paracambi. Quando uma menina falou que morava em

Paracambi a maioria riu, e virou piada. Eu me senti mal. Perguntaram: que horas

você acorda para vir para universidade? Ela respondeu às quatro horas da manhã.

Os veteranos começaram a rir porque a garota morava em Paracambi e acordava

às quatro horas da manhã para vir para UERJ. Lá da para ver quem é, e quem não

é cotista claramente a partir dos aspectos físicos, roupa, lugar onde se mora. Tem

como você definir o status social da pessoa. (Thiago)

A integração entre os diferentes grupos na universidade se apresenta como

um obstáculo de imediato aos alunos cotistas e não cotistas. Porém, a proposta de

transformação social na universidade demanda tempo, visto que as ideologias

presentes em nossa sociedade que determinam a prática do preconceito e da

discriminação só serão superadas por meio do convívio social nas relações

cotidianas.

Thiago apresenta um exemplo curioso do preconceito manifestado por meio

de uma segregação que divide os alunos pelo status social, descrita pelo cotista

como “lado A e lado B”. A associação do preconceito espacial é proveniente da

definição dos alunos cotistas a partir do critério de carência socioeconômico. A idéia

de pobreza é caracterizada não só pela questão econômica ou étnica, ela também

assume uma relação com o lugar onde se mora, visto que, o lado A é determinado

Page 112: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 112 -

pelos bairros mais abastados da cidade, e o lado B exemplifica os bairros mais

pobres. O preconceito relacionado ao status social implica na segregação dos

estudantes mais pobres, e representa desta forma, uma maneira mais sutil de

classificar e não interagir com alunos cotistas, que pelo critério da carência

representam um grupo étnico, cultural, econômico e social específico. Desta forma:

ser pobre quer dizer ser cotista.

Diminuir o preconceito e o estigma das cotas representa um desafio, onde o

caminho mais comum encontrado pelo estudante cotista se encontra na reafirmação

de sua identidade racial e cultural. No entanto, o processo de conhecimento étnico

tem promovido grupos radicais na universidade que intensificam a importância do

resgate das tradições históricas e culturais como forma de reforçar e reafirmar a

cultura afro-brasileira. (RÊGO BARROS, 2007)96 A flexibilidade cultural proveniente

de um passado em torno da mestiçagem, gera para alguns estudantes um

desconforto relacionado ao fato da necessidade de ter que assumir um estilo cultural

especifico como o único representante da cultura negra, o que acaba sendo

interpretado por muitos estudantes como um preconceito do negro contra o próprio

negro.

Eu acho que a minha turma é muito heterogênea. Tem pessoas que nunca se viram

na vida ou se falaram. Tem grupos que não fazem a mínima questão de se integrar

com o outro. Mas pessoas que fazem grupos ou movimentos possuem uma postura

mais integradora. Por exemplo, uma menina que é negra, é do movimento, ela esta

querendo formar um grupo que enfoque mais as mulheres, não de uma forma tão

radical. Aí ela falou assim para mim e para uma colega: “eu estou observando

vocês há algum tempo, para um grupo seleto que faz reuniões e discussões em

relação a mulher na faculdade, o sistema de cotas, o preconceito, sobre varias

coisas em relação a mulher negra, sem ser radical demais, nada que proíba você

de usar alisante no seu cabelo”.Geralmente você vê o pessoal do movimento negro

com o cabelo ao natural, com o estilo black power, aquelas roupas étnicas, então o

que eu pude sentir ou visualizar, é que em algum momento ela foi discriminada no

próprio movimento negro por alisar o cabelo. È muito interessante essa forma do

próprio negro discriminar o outro negro. (Tatiana)

Os maiores preconceitos infelizmente, são dos próprios negros. Por exemplo, um

conhecido chamou um amigo para jantar que era negro, e a empregada se recusou

a servir os dois porque o amigo era negro. E ela também era negra. Existe um

96 RÊGO BARROS, Clarissa F. “Raças, etnias e políticas educacionais: reflexões sobre a inclusão através da reserva de vagas para negros na UERJ”. In: Políticas Educacionais e Cidadania. Revista Espaço Pedagógico. Editora UPF. Vol.14, no 2. (jul/dez. 2007).

Page 113: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 113 -

ditado: “o preto não gosta do outro”, mas é um pouco a realidade. Porque se você

vê uma pessoa negra com uma condição social um pouco melhor, elas também são

atingidas diretamente pelo preconceito. O status camufla muito o preconceito.

Ninguém vai tratar a Camila Pitanga como trataria uma outra negra em um

restaurante em Ipanema, muda a condição social e o status da pessoa. Já ocorreu

um comentário entre amigos sobre um casal de amigos negros que estavam na

festa, ela era médica e ele advogado. E disseram: “eles são negros mas são

legais”. Eu não entendi a observação, e perguntei: como assim? Só porque eles

são negros não podem ser legais? O negro não pode ser médico ou engenheiro?

Isso já está no próprio negro. O negro policial, o primeiro cidadão que ele aborda é

o negro. Ele não aborda o cidadão loiro de olhos azuis, ele aborda o negro. (Flavia)

Eu acredito que isso seja uma coisa de família. Na minha família durante as

reuniões era muito a ONU – Organização das Nações Unidas, porque tinha branco,

tinha negro, tinha mestiço, tinha gays, tinha lésbicas, tinha de tudo. Então minha

mãe sempre me ensinou a conviver com a diferença. A minha melhor amiga na

infância era uma menina que tinha um retardamento. Ela era mais velha do que eu

e tinha dificuldade com a fala. Então para mim isso não é diferente. Mas meu ex-

namorado em uma festa de família, eu levei ele, e ele ficou sentado olhando calado

observando, e então veio o comentário: “as festas na sua família são muito inter-

raciais”. Eu perguntei para ele: “como assim Pedro, inter-raciais? Você é racista?”.

Ele falou: “Não, porque a festa lá de casa só tem crioulo”. (Tatiana)

Os estudantes descrevem que o passado histórico do negro o classifica como

inferior aos demais grupos étnicos presentes em nossa sociedade. O binômio de

negro pobre é uma classificação que determina a maioria da sociedade brasileira;

por isso é importante perceber que a racialização das políticas de cotas não

promove a segregação social, elas na realidade denunciam e permitem ao negro,

por meio de uma cota específica, por exemplo, o acesso e o reconhecimento de um

direito negado no cotidiano das relações sociais. Não há como ter naturalidade

diante de um preconceito que se apresenta ideológico para os negros e para a

maioria da sociedade, visto que nas próprias práticas cotidianas os negros ainda se

encontram em um status social inferior. A proposta da reafirmação das identidades

raciais é um caminho necessário, e descrito pelos próprios entrevistados como forma

do auto-conhecimento e de percepção do seu grupo étnico, mesmo que ele assuma

em um primeiro momento uma postura mais radical diante das tradições culturais.

A política de ação afirmativa compreende que a igualdade se encontra no

diferente e na diversidade. Por isso, o reconhecimento do preconceito é necessário

à integração social, e à repartição dos espaços a partir de políticas públicas de

Page 114: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 114 -

discriminação positiva. Este exercício de percepção das diferenças para a sociedade

não é tão simples, visto que desigualdades sociais nunca tiveram cores ou raças,

apenas aspectos econômicos e sociais. Neste sentido, as políticas de cotas na

universidade revelam preconceitos velados, como um mecanismo tortuoso de

quebra das invisibilidades como forma de reafirmação das identidades étnicas.

O papel da universidade na formação do estudante cotista.

De todos os temas já tratados até aqui, a universidade aparece para estes

estudantes como o ponto comum, que permite a superação de todas as dificuldades

encontradas na sociedade. Nas falas dos estudantes cotistas, a universidade

aparece em diferentes expressões que revelam uma questão única para estes

jovens: a oportunidade de melhorar a sua condição de vida a partir da qualificação

profissional. Do mercado de trabalho à realização de um sonho, estes estudantes

justificam o acesso à universidade como um requisito de diferenciação dos demais

de seu grupo étnico e socioeconômico, o que os garante maiores conhecimentos e

uma formação intelectual.

Qual a importância da universidade para você?

A universidade é um sonho que está sendo concretizado aos poucos. Quando eu

estiver formada vai ser um sonho realizado.

Qual é a relação da universidade com o mercado de trabalho?

Por eu ser oriunda de favela e comunidade carente, eu vejo a necessidade do meu

pessoal, do meu povo lá, entendeu? Então eu trabalho como orientadora de criança

e adolescente. De 15 a 18 anos agente fez atividade com as crianças. Eu trabalhei

também no PET, no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. Então eu vejo

as necessidades. Sempre quando eu me vi como assistente social, a identificação

veio de querer mudar o meu meio. Eu pensei; eu vou fazer uma coisa que eu sinta

prazer e também que eu poça mudar a realidade local da minha comunidade.

Depois buscar projetos para comunidade de assistência. Buscar parcerias. O ideal

no primeiro momento foi esse. Eu quero mudar, não quero ficar nisso toda a minha

vida. Nem que meus filhos cresçam dentro de comunidade. Mas se tiver que

crescer vão crescer eu vou dar toda a educação. Para uma criança de comunidade

o caminho do tráfico é muito fácil. Eu não quero isso para os meus filhos. Eu nunca

vivi como uma mulher de bandido. Lá na minha comunidade todo mundo me

conhece como a que estuda e corre atrás dos seus objetivos. Entendeu? Porque

poderia ser a Sandra, tal mulher, namorada do traficante tal. Eu quero viver como

uma pessoa digna, que viveu no caminho certo. Eu quero que os meus filhos

pensem que nem eu e me sigam. Profissionalmente, o meu objetivo é me formar,

juntar uma grana legal e sair de lá. Não por lá ser ruim. Tem problemas diversos. E

eu não quero que meus filhos vivenciem o que eu vivenciei.(Sandra)

Page 115: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 115 -

Qual é a importância da universidade para você?

A universidade para mim, nossa! Vai ser uma porta para me levar a uma melhor

condição social, uma porta para me levar a uma nova condição intelectual. Porque

eu estou aqui para ser um intelectual na sociedade. È esse o papel da universidade

pública, formar muito mais do que mão de obra. Formar os pensadores, as forças

pensantes dessa sociedade. E a universidade vai me transformar nessa força

pensante para sociedade. (Diego)

Qual é a importância da Universidade para você?

Para mim, antigamente era uma mudança de vida. Hoje, eu já não vejo dessa

forma. É mais uma amplitude de conhecimento. Eu estou aqui, mas o que vai

mudar mesmo a minha vida sou eu mesma e as minhas atitudes.

O que você acha da relação da universidade com o mercado de trabalho?

Defasado. Porque não adianta ter só uma graduação. Agora tem que ter mestrado,

pós-doutorado. Antes você ter um segundo grau já era suficiente. Hoje já não é

mais assim. Então a graduação é parte de um processo. Apenas isso, mais nada.

(Gracileide)

Qual é a importância da universidade para você?

Um divisor de águas na minha vida. Eu levei cinco anos para conseguir chegar até

aqui. Eu fiz um investimento. E agora eu estou olhando para o futuro. Eu estou

vivendo o presente e pensando no futuro. Eu vou viver esta profissão. Estar apto

para o mercado de trabalho. Eu espero que a universidade me de essa condição.

(Allan)

Qual é a importância da universidade para você?

Tudo. A profissão, o aprendizado, você conhece outras pessoas, outros universos

diferente daquele que você vive em Campo Grande, um outro mundo. Aprende

outras coisas, e descobre em você mesmo coisas que você nem sabia que poderia

fazer, tentar. Ou aquilo que eu pensava quando era criança parece que vai se

realizando. È muito interessante. Eu adorei. Se eu pudesse faria tudo de

novo!(Priscila)

De acordo com os entrevistados, a universidade é a porta de um mundo novo

com novas descobertas e conhecimentos. O mercado de trabalho é o ponto chave

para melhorar a condição social que, no entanto, não ocorre sem uma melhora da

condição intelectual. O estudante que chega ao ensino superior prevê uma formação

a longo prazo, ou seja, como descreve Gracileide, a graduação é uma parte de um

processo que exige do formando além do curso superior, a pós-graduação como

forma de preencher o perfil de funcionários ultra qualificados exigido pelo mercado

de trabalho.

Page 116: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 116 -

Nesta dinâmica que incitava os entrevistados a refletir sobre a importância da

universidade, foi proposta uma segunda reflexão sobre o sistema de cotas, como

uma mensagem para os estudantes cotistas que estavam chegando, uma pergunta

com o objetivo de subjetivamente relacionar a universidade e o ingresso pelo

sistema de cotas.

Alguma colocação pessoal sobre o sistema de cotas?

O sistema de cotas é um avanço fenomenal dentro do ensino superior no Brasil. E

como eu já disse em encontros passados me dá orgulho em ser brasileiro ao ver

isso. Que as coisas não estão tão perdidas assim, que apesar da desmoralização

política, e das diferenças sociais gritantes, nos temos instrumentos que possam

diminuir essas desigualdades sociais. (Diego)

Qual seria o recado que você deixaria para as pessoas que estão entrando na

universidade através das cotas?

Aproveitem a oportunidade. Porque é a chance. Quem vem de uma escola pública

não tem condição de competir. A escola pública ela é não teoricamente, mas na

prática, ela é um ensino para formar trabalhadores, subalternos. Ela não é

direcionada para intelectualidade. (Maria de Jesus)

Que recado você deixaria para as pessoas que estão entrando para

universidade pelas cotas agora?

Muita fé, muita perseverança, que vai haver muitos obstáculos e perrengues porque

no final você vai conseguir. È importante fazer amigos, não ficar deslocado.

Esquecer que existe preconceito, e você deixa de se socializar por conta disso.

Aproveite tudo que a universidade possa lhe dar, cursos, estágios! È importante

pegar tudo, aprender, para no final ter um resultado positivo. (Priscila)

Qual seria o recado para essas próximas gerações de cotistas?

Quando os cotistas entrarem vão passar pelas mesmas dificuldades que os não

cotistas. Então eles precisam se esforçar bastante porque não entraram

preparados. Só depende de vocês. (Fernando)

A proposta de relacionar a importância da universidade com o ingresso pelo

sistema de cotas, levantou opiniões que revelam o universo particular do estudante

cotista. Neste universo se insere além de uma trajetória repleta de dificuldades, a

esperança de alcançar a universidade como um mecanismo que reverte a condição

de trabalhadores subalternos para profissionais especializados. A chegada na

universidade proporciona novas experiências, que segundo os entrevistados, devem

ser voltadas para o amadurecimento profissional e a aquisição de novos

conhecimentos. Isto significa, que diante de um universo de dificuldades descritas

Page 117: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 117 -

pelas falas já apresentadas, é necessário perceber que o estudante cotista é

também um estudante como os outros. O estigma pelo fato de ser cotista, o

preconceito e a própria questão financeira não devem ser pressupostos para a

evasão deste estudante da universidade. O resultado positivo como propõe a

estudante Priscila, parte da interação dos diferentes grupos étnicos e

socioeconômicos presentes na UERJ, responsáveis por garantir a diversidade na

universidade.

Page 118: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 118 -

Capítulo 5

Considerações Finais.

Page 119: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 119 -

Considerações Finais

A partir dos estudos realizados nesta dissertação, foi possível perceber que a

assim como os Estados Modernos, a sociedade brasileira possui em sua formação e

construção, um histórico de ideologia assimilacionista e etnocêntrica, que se

responsabilizou em sobrepor uma raça sobre outra, por meio de discursos

evolucionistas que justificavam a escravidão, e principalmente, a utilização dos

negros como mão de obra escrava.

A escravidão contribuiu para manutenção das desigualdades sociais e raciais

já estabelecidas desde a colonização. Mas durante o período pós-abolição e ao

longo do século XX, a liberdade dos negros não implicou numa condição de

cidadania e direitos, visto que, teorias em torno do darwinismo social contribuíam

para que ideologicamente o negro continuasse a se sentir inferior na dinâmica das

relações raciais. Estas ideologias relacionadas ao branqueamento e à idéia de uma

possível igualdade a partir da mestiçagem, criaram um ambiente no cotidiano das

relações sociais, uma lacuna que separava os brancos e negros pela raça e pela

classe, onde o negro além de sofrer com a falta de oportunidades e de mobilidade

social, se sujeitava a um racismo velado que contribuía ao mesmo tempo para o não

reconhecimento e negação da sua identidade étnica.

A percepção multicultural da sociedade brasileira criou um ambiente favorável

a revisão e fundamentação destas desigualdades históricas, onde os movimentos

sociais, em particular, o Movimento Negro, tiveram um papel importante no resgate

histórico. No entanto, toda esta idéia e ação em torno da importância do

reconhecimento das diferenças raciais e culturais para o combate das desigualdades

sociais, só se acentuou por meio da adoção das políticas de ação afirmativa.

As políticas de ação afirmativa contrariam o caráter universal das políticas

sociais, mas de certa forma, contribuem para a redução das distâncias sociais entre

os diferentes grupos étnicos de maneira imediata, visto que o objetivo das políticas

de discriminação positiva se encontra na repartição de espaços, procurando desta

maneira, criar um ambiente de interação social, trabalhando no cotidiano das

Page 120: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 120 -

relações sociais: o racismo, e o preconceito por meio da oportunidade para grupos

excluídos.

Porém, apesar da idéia de justiça social, diversidade e reparação histórica

das políticas de ação afirmativa, no Brasil, a idéia de racialização ganhou o cenário

das discussões, determinando como único favorecido apenas os negros, diante de

uma realidade multicultural proposta pela política. A racialização do discurso em

torno das políticas de ação afirmativa gerou uma polêmica sobre a criação de um

suposto movimento que desconstruiria a harmonia racial em que vivia o país a partir

da auto-afirmação da identidade negra, o que de fato não ocorreu. Na viabilização

de uma nova oportunidade por meio de políticas que favorecem os grupos étnicos e

sociais excluídos, a racialização contribuiu para reafirmação das identidades

culturais e raciais existentes no Brasil e nas universidades públicas, construindo uma

teia de diversidades e de projetos que beneficiam a pluralidade nacional.

O debate exposto na mídia sobre a política de cotas nas universidades como

uma ação centralizada na visão racialista, foi colocado mais uma vez em discussão

com a sociedade a partir de uma reportagem de capa, publicada pela Revista Época

no dia 6 de abril de 2009, intitulada: “Cotas: reserva de vagas para negros, índios ou

pobres é uma solução ou cria problemas?”. De acordo com a revista, a política de

cotas é justa quando analisada apenas pela visão social, onde a utilização de

critérios socioeconômicos seria capaz de incluir brancos, negros e pobres,

independente da identidade racial.

A reportagem apresenta exemplos de países como os EUA, África do Sul e

Índia, que possuem em sua história conflitos raciais, e por isso, precisaram das

políticas de ações afirmativas como forma de superar as diferenças étnicas. No caso

brasileiro, a Revista Época apresenta o Brasil como um país isento de conflitos

raciais, pontuando as políticas de cotas raciais como um possível caminho

responsável por reverter este quadro, e por isso, as cotas sociais seriam mais

eficazes para resolver a disparidade educacional entre os diferentes grupos étnicos

e socioeconômicos, retirando do individuo de identidade híbrida a indelicadeza de se

auto-declarar para o acesso a direitos comuns, como: a educação superior.

Diante deste quadro, a reportagem pontua as políticas de cotas como

transitórias, pois a raiz do problema se encontra no investimento da escola de

qualidade; portanto, as políticas sociais devem ter inicio na educação básica.

Page 121: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 121 -

“Não é verdade que os negros não estão entrando na universidade. Se existe

discriminação ela é social, não racial. Ninguém tem preconceito contra o Pelé ou

qualquer negro de elite. A cota é boa para representar a diversidade da sociedade

brasileira. Mas tem de ser para os melhores. O que está me deixando triste é que

vão baixar o nível dos alunos”. (Iloma Becskehazy97, Revista Época: 6 de abril,

2009)98

Determinar as cotas sociais como uma forma mais justa de reservar vagas

nas universidades públicas, ou afirmar que o brasileiro não possui preconceito

contra a minoria negra elitizada é fácil, quando não é elaborada uma análise da

questão social, onde a maioria da população negra se encontra nos bolsões de

pobreza e sujeita a péssima qualidade do ensino público.

O problema da educação básica não tem que ser interpretado como um

problema individual do estudante de escola pública que, por isso, se torna

responsável por desnivelar a educação superior a partir da entrada na universidade

por meio das políticas de cotas. De acordo com a pesquisa realizada nesta

dissertação, o problema racial é uma das expressões da questão social, com

alicerce em raízes históricas que justificam as desigualdades sociais entre negros e

brancos no Brasil, assim como a falta de oportunidades e ausência de direitos entre

ambos os grupos étnicos. Porém, em relação à educação, a condição social somada

à questão racial torna-se mais intensas, não só por meio da falta de escolaridade

dos negros e pobres, mas também, em função da trajetória social que obriga a

maioria deste grupo étnico e social a abandonar a escola antes mesmo de concluí-

la, e entrar no mercado de trabalho mais cedo, em geral, em funções subalternas ou

de formação técnica que ocupa as menores remunerações salariais.

A racialização do debate das cotas pela mídia impede que enxerguemos as

reais demandas e a importância da política de cotas racial, como um mecanismo

não só de reconhecimento de injustiças históricas, mas como uma forma de

viabilizarmos a diversidade racial como algo não meramente ilustrativo, e sim,

prático e presente no cotidiano das relações sociais, como: no mercado de trabalho,

nas universidades, na elite, no poder judiciário, na televisão. A política de cotas

97

Iloma Becskeházy: diretora executiva da Fundação Lemann. Entrevistada pela Revista Época. 98

LOYOLA, Leandro, FERNANDES, Nelito, TELLES, Margarida, LIMA, Francine. Cotas para quê? Reservar vagas para negros e índios ou estudantes pobres nas universidades públicas não resolve uma injustiça histórica – e cria mais problemas. IN: Revista Época. Edição 568. 6 de abril de 2009. pp. 82-89.

Page 122: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 122 -

racial, enquanto um braço das ações afirmativas, materializa a equidade social, e

com isso, permite que no processo de discussão da adoção destas políticas de

caráter de discriminação positiva, desvele o racismo e formas de opressão que

ratificam uma desigualdade histórica.

Segundo a pesquisa e entrevistas realizadas com alguns estudantes cotistas

da UERJ, em relação ao acesso à universidade por meio das políticas de ação

afirmativa, a raça não se encontra como o fator de justificativa principal para a

entrada pelo sistema de cotas. A relação socioeconômica familiar se apresenta

como critério fundamental para o acesso as cotas, contribuindo para a

desracialização da política, onde as cotas raciais passam a se tornar uma segunda

opção, caso o pedido de cotas para estudante de escolas públicas seja indeferido.

Isso não significa que as cotas raciais devam ser extintas ou determinem algum tipo

de segregação entre os alunos cotistas e não cotistas. A questão central para a

desracialização das políticas de cotas é a dificuldade de auto-declaração, ou seja,

do conhecimento da sua identidade étnica. No entanto, independente do tipo de

cotas escolhido pelo aluno, a raça passa a ser de conhecimento do estudante a

partir de movimentos sociais existentes na própria universidade, preocupada não só

com o reconhecimento racial e social, mas também com a criação de novas

dinâmicas capazes de satisfazer o novo perfil de alunos responsáveis, por atribuir a

UERJ, uma nova diversidade caracterizada por novas trajetórias sociais, econômicas

e culturais.

A experiência das políticas de ação afirmativas na UERJ demonstra um

exemplo concreto de que toda política social necessita de financiamento por parte

do governo, o que não seria diferente com as políticas de cotas na universidade.

Apesar dos escassos recursos da UERJ para investir na estrutura e na própria

permanência do estudante cotista, o sonho de acesso à universidade para estes

novos estudantes, possibilitou não só que a lei da bolsa auxílio fosse reestruturada

como direito, mas que na ausência da mesma, os próprios cotistas criassem

estratégias para permanecer e sobreviver na universidade, objetivando terminar os

estudos e alcançar melhores posições no mercado de trabalho.

No processo de interação social no cotidiano da universidade, a relação com

diferentes grupos étnicos contribui para o reconhecimento e auto-afirmação das

diversas identidades, que se apresentam nas relações sociais como: negros,

indígenas, pobres, brancos, suburbanos, entre outras classificações, que se

Page 123: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 123 -

distinguem no universo do estudante cotista, garantindo a amplitude cultural das

políticas de ação afirmativa na universidade.

A análise da importância das políticas de cotas para o acesso à universidade

por meio da observação da trajetória social dos estudantes cotistas da UERJ,

permitiu a compreensão da importância da política de ação afirmativa não só como

um mecanismo de diversidade, mas também de justiça social. Através das falas de

todos os entrevistados a universidade aparece como um caminho para a melhoria da

condição social dos entrevistados e dos estudantes cotistas em geral, por meio do

alcance de uma profissão e da saída da ‘exclusão intelectual’. Neste sentido, a

mobilidade racial aparece camuflada pela justiça social, que por meio da

oportunidade de uma melhor colocação profissional, possibilita a redução das

desigualdades entre brancos e negros na sociedade, visto que a questão social não

se coloca apenas por critérios econômicos, e sim, pela raça e pela condição

socioeconômica.

Page 124: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 124 -

REFERÊNCIAS

ARRUDA, José Ricardo Campelo Arruda (org.), Política de Ações Afirmativas na UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, Rede Sirirus, 2007. BOBBIO, Norberto. MATTEUCCI, Nicola. PASQUINO,Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: UNB : LGE.Vol.I e II 12a ed., 2004. BLOCH, Marc. Apologia da História ou o oficio do historiador. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1997. CANDAU,Vera Maria Ferrão. “Sociedade Multicultural e Educação”. In: CANDAU,Vera.(org). Cultura(s) e educação.Entre o crítico e o pós critico. RJ: DP&A , 2005. CANDAU, Vera Maria Ferrão. “Universidade e diversidade cultural: alguns desafios a partir da experiência da PUC-RIO”. In: PAIVA, Ângela Randolpho. Ação Afirmativa na universidade:reflexão sobre experiências concretas Brasil-Estados Unidos. Rio de Janeiro : PUC, 2004. CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil. O longo caminho. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira,2003. CASTRO, Alba Tereza Barroso. Tendências e contradições da educação pública no Brasil: a crise na universidade e as cotas. In: BROSCHETTI, Ivanete (org.). Política Social no Capitalismo: tendências contemporâneas. São Paulo: Cortez, 2008. COHN, Amélia. “A questão social no Brasil. A difícil construção da cidadania”. In:MOTA, Carlos Guilherme (org). Viagem Incompleta. A experiência brasileira. São Paulo : Senac,2000. COOPER, Frederick, HOLT, Thomas C., SCOTT, Rebecca. Além da escravidão.Investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. COSTA, Tarcisio. “Os anos noventa: o acaso da política e a sacralização do mercado”. In:MOTTA, Carlos Guilherme (org). Viagem Incompleta. A experiência brasileira. São Paulo : Senac, 2000. D´ADESKY, Jaques. Pluralismo étnico e multiculturalismo. Racismos e Anti-Racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2005. FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. São Paulo: Zahar, 1981. FERREIRA, Jorge. DELGADO, Luciana Almeida Neves Delagado. O Brasil Republicano. O tempo da ditadura-Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. V. 4. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2003.

Page 125: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 125 -

FERREIRA, Ricardo Franklin. Afro-descendente. Identidade em Construção. São Paulo: FAPESP, 2004. FIORI, José Luís.60 lições dos 90. Rio de Janeiro : Record, 2001. FIORI, Luís. TAVARES, Maria da Conceição.Desajuste Global e Modernização Conservadora. Rio de Janeiro : Paz e Terra,1993. FREYRE,Gilberto.Casa Grande e Senzala. 47a ed. Rio de Janeiro: Global, 2003. FREIRE, Paulo.Educação e Mudança. 27ed. São Paulo : Paz e Terra, 2003. FRY, Peter. A persistência da raça – Ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África austral. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2005. FRY, Peter e MAGGIE, Yvonne (org.). Divisões perigosas. Políticas raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira 2007. GOMES, Flávio; ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira. A igualdade que não veio. In: Coleção Gilberto Ferreza. Acervo Instituto Moreira Salles, 2008. p.14. GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In: SANTOS, Renato Emerson, LOBATO, Fátima, (org.). Ações afirmativas. Políticas Públicas contra as desigualdades raciais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. Racismo e Anti-Racismo no Brasil. Rio de Janeiro : Editora 34, 1999. ______. Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito. IN: Classes, Raças e Democracia.São Paulo : Editora 34 p. 137-168.

______. Classes, raças e democracia. São Paulo: Editora 34, 2002.

______ Como trabalhar com raça em sociologia? Educação e Pesquisa: São Paulo. V.29, n1, p.93-107. jan. /jun. 2003.

HASENBALG, Carlos. Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil. MG: UFMG, Humanitas. 2005. HERINGER,Rosana. “Ação afirmativa e promoção da igualdade racial no Brasil:o desafio da prática”.In: PAIVA, Ângela Randolpho. Ação Afirmativa na universidade:reflexão sobre experiências concretas Brasil-Estados Unidos. Rio de Janeiro : PUC,2004. ______. Políticas de promoção de Igualdade racial no Brasil: um balanço do período de 2001-2004. In: JUNIOR, João Feres, ZONINSEIN, Jonas. (org.). Ações afirmativas e universidade. Experiências comparadas. Brasília: Universidade de Brasília, 2006.

Page 126: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 126 -

HOLANDA, Sergio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. IANNI, Octavio. Raças e classes sociais no Brasil. São Paulo:Brasiliense, 2004. JUNIOR, Caio Prado. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo : Brasiliense,2000. JUNIOR, João Feres, ZONINSEIN, Jonas. (org.). Ações afirmativas e universidade. Experiências comparadas. Brasília: Universidade de Brasília, 2006. MACHADO, Elielma Ayres, Barcelos, Luiz Cláudio. Relações raciais entre universitários no Rio de Janeiro. Revista Estudos Afro-Asiáticos, ano 23, no 2, 2001. p.1-36. ______. Desigualdades raciais e ensino superior: um estudo sobre as leis de reserva de vagas para egressos de escolas públicas e cotas para negros pardos e carentes na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2000-2004). Tese de doutorado.UFRJ, dezembro, 2004. MARSHALL, T. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro : Zahar, 1964. MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo : Editora Hucitec, 2004. MELLO,João Manuel Cardoso de.MORAES, Fernando A. “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”. In: História da Vida Privada.Contrastes da Intimidade Contemporânea Vol.IV. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. MUNAGA,Kabenguele. “Algumas considerações sobre a diversidade e a identidade negra no Brasil”. In: ADÃO, Jorge Manuel. NASCIMENTO, Graciete Garcia. RAMOS, Marise Nogueira. Diversidade na Educação.Reflexões e Experiências. Brasília: Secretaria de Educação Média e Tecnológica, 2003. NASCIMENTO, Alexandre do. Movimentos sociais, educação e cidadania. Um estudo sobre os cursos Pré Vestibulares Populares. Tese de Mestrado, UERJ,1999. _______. “Movimentos sociais, anti-racismo e educação. Os cursos pré-vestibulares para negros e carentes”. In: BELUCCE & BORGES, Edson (orgs). X Congresso ALADAA-Cultura, Poder e Tecnologia: Ásia, África face à Globalização. Anais. Rio de Janeiro : EDUCAM, 2000. NETO, Antonio Cabral et alli (org.). Pontos e contrapontos da Política Educacional. Liberlivro, Brasília. 2007. NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e de origem. IN:Tanto preto quanto branco: estudo das relações raciais. São Paulo : T.A Queiroz, 1983. PAIXÃO, Marcelo. O justo combate: reflexões sobre relações raciais e desenvolvimento. IN:Observatório da Cidadania. Relatório 2006, número 10. Rio de Janeiro : IBASE. p.59-70.

Page 127: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 127 -

PEIXOTO,Maria do Carmo de Lacerda.(org).Universidade e Democracia.Experiências e alternativas para ampliação do acesso à universidade pública brasileira. Belo Horizonte : UFMG, 2004. PINHEIRO, Paulo Sérgio. “Transição política e não- estado de direito na República”. In: Ignacy Sanchs et alii. Brasil um século de transformações. São Paulo : Companhia das Letras, 2001. PINTO, L.A.Costa. O Negro no Rio de Janeiro. Relações de Raça numa Sociedade em Mudança. Rio de Janeiro : UFRJ:1998. PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Ação afirmativa, fronteiras raciais e identidades acadêmicas. In: ARRUDA, José Ricardo Campelo Arruda (org.), Política de Ações Afirmativas na UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, Rede Sirirus, 2007. PORTO,Marta. “Cultura para o desenvolvimento: um desafio de todos”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org). Cultura e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004. RÊGO BARROS, Clarissa F. “Raças, etnias e políticas educacionais: reflexões sobre a inclusão através da reserva de vagas para negros na UERJ”. In: Políticas Educacionais e Cidadania. Revista Espaço Pedagógico. Editora UPF. Vol.14, no 2. (jul/dez. 2007). ______. “Contextualizando a adoção das políticas de cotas nas universidades: o caso da UERJ”. Revista Historia Agora. Vol. 5, 2008. p1-21. REZENDE, Maria Alice. SANTOS, Rafael. Educação, gênero, pobreza e a pertinência das ações afirmativas. IN: Democracia Viva. Edição Especial. NÚMERO 34.RJ:IBASE. Jan/Mar 2007.p.18-26. RIOS, Ana Lugão, Mattos, Hebe. Memórias do cativeiro. Família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. RISTOFF, Dilvo, GIOLO, Jaime. Educação superior brasileira 1991-2004 Rio de Janeiro. Brasília. INEP, 2006.

SANTOS, Renato Emerson. “Racialidade e novas formas de ação social: o pré-vestibular para negros e carentes”. In: SANTOS, Renato Emerson. LOBATO, Fátima (org). Ações Afirmativas. Políticas públicas contra a desigualdade racial. RJ: DP&A Editora, 2003.

______. Política de Cotas raciais nas universidades brasileiras – o caso da UERJ. In: JUNIOR, João Feres, ZONINSEIN, Jonas. (org.). Ações afirmativas e universidade. Experiências comparadas. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006. SILVA, Fernando Pinheiro. Democracia como caminho:a movimentação do PVNC em busca de uma democracia mais plural. Monografia Departamento de História PUC-Rio. , 2003

Page 128: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 128 -

SILVA, Jailson de Souza. Por que uns e não outros? Caminhada de jovens pobres para universidade. Rio de Janeiro : 7 Letras, 2003.

SILVA, Jailson de Souza. “Identidade, territorial e práticas culturais: a experiência do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré – Ceasm”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org).Cultura e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004. SCWARCZ, Lilia. O Espetáculo das Raças. Cientistas, Instituições e Questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo : Companhia das Letras, 2005. ______. A santa e a dádiva. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. No. 32. Ano 3. Maio, 2008.p.20. SOARES, Laura Tavares Ribeiro. Ajuste neoliberal e desajuste na América Latina. Rio de Janeiro : UFRJ, 1999. REZENDE, Claúdia Barcellos. MAGGIE, Yvonne. Raça como retórica, a construção da diferença. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2007. TANNENBAUM, Frank. Slave and Citzen. Boston: Beacon Press, 1992. TRINDADE, Helgio. “Brasil em perspectiva: conservadorismo liberal e democracia bloqueada”. In: MOTA, Carlos Guilherme.Viagem Incompleta.A Grande Transação.A Experiência Brasileira.Rio de Janeiro : Senac,2000. VILLARDI, Raquel. Amadei, Stella Maris. Perspectivas de democratização da educação superior – um estudo do sistema de vagas reservadas na UERJ. In: ARRUDA, José Ricardo Campelo Arruda (org.). Política de Ações Afirmativas na UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, Rede Sirirus, 2007. ZONINSEIN, Jonas. Minorias étnicas e a economia política do desenvolvimento: um novo papel para universidades públicas como gerenciadoras da ação afirmativa no Brasil? In: JUNIOR, João Feres, ZONINSEIN, Jonas. (org.). Ações afirmativas e universidade. Experiências comparadas. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006. Revistas e Periódicos: Censo Demográfico 2000. Características Gerais da População. Resultados da Amostra. IBGE, 2000. Observatório da Cidadania. Relatório 2006 número 10 – IBASE. Revista Democracia Viva. Edição Especial. Jan/ Mar 2007 – IBASE. Revista Carta Capital, 2 de maio de 2005. “Manifesto em Favor da Lei de Cotas e do Estatuto de Igualdade Racial” (3 de julho

de 2006 – disponível na internet)

Page 129: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 129 -

“Manifesto Contra as Cotas Raciais” (30 de maio de 2006 – disponível na internet) CARVALHO, José Murilo. Em Nome de Deus. História da Biblioteca Nacional, no. 32. Ano 3, Maio 2008.p.16 LOYOLA, Leandro, FERNANDES, Nelito, TELLES, Margarida, LIMA, Francine. Cotas para quê? Reservar vagas para negros e índios ou estudantes pobres nas universidades públicas não resolve uma injustiça histórica – e cria mais problemas. Revista Época. Edição 568. 6 de abril de 2009. p. 82-89. SCHWARCZ, Lilia. A santa e a dádiva. Revista de História da Biblioteca Nacional. No. 32. Ano 3. Maio, 2008.p.20. ZORZETO, Ricardo. A África nos gens do povo brasileiro. Revista Pesquisa Fapesp. Ciência e Tecnologia. no. 34. Abril, 2007 Sites:

IPEA: www.ipea.org.br

IBGE: www.ibge.org.br

INEP: www.inep.org.br

www.planalto.gov.br

Page 130: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 130 -

Anexos

Page 131: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 131 -

FICHA DO ENTREVISTADO

Dados Pessoais:

1. Nome Completo:

2. Endereço Completo:

3. Data de Nascimento:

4. Naturalidade:

5. Escolaridade (Formação básica/ nome da escola (s): pública/ particular

6. Filiação:

7. Irmãos (número):

8. Renda Familiar:

9. Trabalho (nome/ vínculo empregatício/ profissão)

10. Curso de Graduação:

11. Período em curso:

Page 132: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

- 132 -

PERGUNTAS PARA ENTREVISTA

Trajetórias sociais:

1. Como se deu sua formação escolar?

2. Qual foi a importância do pré-vestibular na sua formação escolar?

3. Por que resolveu fazer graduação?

4. Por que a UERJ?

5. Por que resolveu entrar na universidade através do sistema de cotas?

6. Que tipo de cotas escolheu e por quê?

7. Qual é a importância das cotas em sua opinião?

Sobre o ingresso na universidade:

1. Conte um pouco sobre o seu cotidiano na universidade.

2. Que tipo de dificuldades tem tido na universidade?

3. Já vivenciou algum tipo de preconceito na universidade? Qual?

4. Quais são os problemas enfrentados por você na UERJ?

5. Como faz para superá-los?

6. Alguma sugestão para mudanças na universidade?

7. Qual é a importância da universidade para você?

8. Para você, como se dá a relação entre a universidade e o mercado de

trabalho?

9. Colocação pessoal do entrevistado.

Page 133: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

1

Entrevistas para dissertação de mestrado: “Trajetórias sociais: uma análise da inclusão sob

as perspectivas dos alunos de cotas da UERJ”

Por Clarissa F. do Rêgo Barros – Faculdade de Serviço Social UERJ

Se estiver disposto e puder colaborar com esta pesquisa, preencha o quadro abaixo

com os dados solicitados. As entrevistas serão agendadas 4as ou 5as feiras no período da

tarde na sala 8024, dentre os dias escolhidos selecione um e escolha o horário que lhe

convém. Caso não possa nenhum destes dois dias e queira colaborar, preencha o último

quadro de “outras opções”, sugerindo o dia e o horário que entrarei em contato.

FICHA DE HORÁRIOS

Nome

Completo

E-mail e telefone de contato Curso e

período de

graduação

4ª feira

de tarde

(colocar

horário)

5ª feira de

tarde

(colocar

horário)

Outra

sugestão

(coloque

data e

horário)

Sandra

Regina

[email protected]

[email protected]

Serviço

Social

2º Período

27/08/2007

Sala 8024/

18hs

Daiana

Castro

[email protected]

Serviço

Social

4º Período

06/11/2007

Sala

8024/18hs

Vanderlei

C. Rocha

[email protected]

Serviço

Social

2ºPeríodo

18/10/2007

Sala 8024/

18hs

Allan da

Silva

Siqueira

[email protected]

Psicologia

1ºPeríodo

08/11/2007

Sala 8024/

18hs

Fernando

N.

Azevedo

[email protected]

Psicologia

1ºPeríodo

25/10/2007

Sala 8024

/19hs

Page 134: Universidade Estado Rio Janeiro Centro Faculdade de ...flacso.redelivre.org.br/files/2012/07/436.pdf · Fernandes Rêgo Barros. - 2009. ... Marilda Vilella Iamamoto Faculdade de Serviço

2

FICHA DE HORÁRIOS

Nome

Completo

E- mail e telefone de contato Curso e

período de

graduação

4ª feira de

tarde

(colocar

horário)

5ª feira de

tarde

(colocar

horário)

Outra

sugestão

(coloque

data e

horário)

Maria de

Jesus

[email protected]

Psicologia

1º Período

25/10/2007

Sala 8014

18hs

Thiago dos

Santos

Fernandes

[email protected]

Engenharia

Química

1º Período

13/10/2007

Sala 8024

13:30h

17/11/2007

Sala 8024/

15hs

Priscila

Pereira da

Silva

[email protected]

Serviço

Social

10ºPeríodo

03/12/2007

Sala 8024/

16hs

Gracileide

Pereira Mota

da Cruz

[email protected]

Serviço

Social

4ºPeríodo

05/11/2007

Sala 8024/

18hs

Diego

Miguel

Ferreira

Cardoso

[email protected] Direito

2º Período

29/11/2007

Sala

8024/18hs

Tatiana

Moura

Saldanha da

Silva

[email protected] Direito

2º Período

29/11/2007

Sala 8024

18:30h

Flávia

Andréia do

Nascimento

[email protected] Serviço

Social

1º Período

29/11/2007

Sala 8024/

19hs