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0 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS MARIZA MARQUES FERREIRA SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA: POSSIBILIDADE DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL? FRANCA 2011

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

MARIZA MARQUES FERREIRA

SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA:

POSSIBILIDADE DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL?

FRANCA

2011

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MARIZA MARQUES FERREIRA

SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA:

POSSIBILIDADE DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL?

Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do Título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Sistemas Normativos e Fundamentos da Cidadania.

Orientador: Prof. Dr. Luiz Antonio Soares Hentz

FRANCA

2011

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Ferreira, Mariza Marques

Sociedade de economia mista: possibilidade de recuperação

judicial? / Mariza Marques Ferreira. –Franca : [s.n.], 2011

153 f.

Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Estadual

Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais.

Orientador: Luiz Antonio Soares Hentz

1. Direito comercial – Sociedade economia mista. 2. Recupera-

ção judicial. 3 - Possibilidade. I. Título

CDD – 342.22

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MARIZA MARQUES FERREIRA

SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA:

POSSIBILIDADE DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL?

Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Sistemas Normativos e Fundamentos da Cidadania.

BANCA EXAMINADORA

Presidente: _______________________________________________________ Prof. Dr. Luiz Antônio Soares Hentz

1º Examinador: ____________________________________________________ 2º Examinador: ____________________________________________________

Franca, ______de ___________ de 2011.

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Dedico aos meus pais, Hélio e Ângela,

e ao meu querido Marcus.

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AGRADECIMENTOS

O meu mais sincero agradecimento ao Prof. Dr. Luiz Antonio Soares Hentz,

orientador dedicado e paciente, que sempre atendeu com prontidão e extrema

competência aos meus pedidos de ajuda;

Aos Profs. Drs. Paulo Roberto Colombo Arnoldi e Alfredo José dos Santos,

que gentilmente participaram de minha banca de qualificação, contribuindo com

dicas valiosas e indicação de bibliografia.

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FERREIRA, Mariza Marques. Sociedade de Economia Mista: possibilidade de recuperação judicial? 2011. 153 f. Dissertação (Mestrado em Direito Empresarial) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2011.

RESUMO No final do século XIX, com a crise do liberalismo, o Estado passou a interferir na esfera econômica, antes legada à sorte do próprio mercado, inclusive através da criação de empresas estatais. Empresa Estatal é o gênero, do qual fazem parte as espécies empresas públicas, sociedades de economia mista e outras empresas que, não tendo as características da empresas públicas ou sociedades de economia mista, estão submetidas ao controle do Governo. Elas são pessoas jurídicas de direito privado que podem explorar atividade econômica ou prestar determinado serviço público. A recuperação judicial de empresas, inspirada da Reorganization do direito americano, foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro com a Lei nº11.101/2005, com o objetivo de permitir que empresas em situações de crise econômico-financeira possam ser saneadas e continuem em funcionamento, evitando a liquidação definitiva das mesmas. O art. 2º, inciso I, da Lei nº 11.101/2005 exclui as empresas estatais e sociedades de economia mista do seu âmbito de aplicação. Este dispositivo é inconstitucional, pois afronta a previsão do inciso II, do parágrafo 1º do art. 173 da Constituição Federal, que determina que as empresas públicas e sociedades de economia mista que exploram atividade econômica estejam sujeitas ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações comerciais. Assim, as sociedades de economia mista que exploram atividade econômica em regime de concorrência com a iniciativa privada podem se submeter à sistemática de recuperação de empresas prevista na Lei nº 11.101/2005. Para solucionar as incompatibilidades existentes entre a sistemática da Lei nº 11.101/2005 e as especificidades da sociedade de economia mista, deve ser criada uma lei específica para tratar do assunto. Palavras-chave: sociedade de economia mista. recuperação judicial.

possibilidade.

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FERREIRA, Mariza Marques. Society of mixed economy: possibility of reorganization? 2011. 153 p. Dissertation (Master in Business Law) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2011.

ABSTRACT In the late nineteenth century, with the crisis of liberalism, the state began to intervene in the economic sphere, the sort of legacy before the market itself, including through the establishment of state enterprises. State Company is the genus, the species which includes public companies, joint stock companies and other companies, not having the characteristics of public enterprises or joint stock companies, are subject to government control. They are legal entities under private law that can exploit economic activity or provide certain public service. The Reorganization of Companies, inspired by the Reorganization of American law, was introduced into the Brazilian legal system with the Law No. 11.101/2005, in order to allow companies in situations of economic or financial crisis can be reorganized and remain in operation, avoiding the final settlement thereof. Art. 2, paragraph I, of Law No. 11.101/2005 excludes state-owned enterprises and joint stock companies in its scope. This device is unconstitutional because it confronts the forecast section II, paragraph 1 of Art. 173 of the Federal Constitution, which stipulates that public companies and joint stock companies that explore economic activity are subject to special legal regime of private companies, including as to business obligations. Thus, joint stock companies that explore economic activity in competition with the private sector can undergo systematic Corporate Recovery under Law No. 11.101/2005. To resolve the incompatibility between the systematics of Law No. 11.101/2005 and specificities of the society of mixed economy, there should be a specific law to address the issue. Keywords: society of mixed economy. reorganization. possibility.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................ 9

CAPÍTULO 1 A PRESENÇA DO ESTADO NA ATIVIDADE ECONÔMICA............. 14

1.1 A Intervenção Estatal na Economia Privada................................................... 14

1.2 Regramento Legal-Administrativo: Decreto-Lei nº 200/1967......................... 20

1.3 Sociedades de Economia Mista e Função Econômica .................................. 25

1.4 A Questão do Poder de Controle ..................................................................... 41

CAPÍTULO 2 ASPECTOS GERAIS DA LEI Nº 11.101/2005 E A SISTEMÁTICA

DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS .............................................. 45

2.1 Desenvolvimento Histórico .............................................................................. 45

2.2 O Direito Comparado: A Recuperação no Direito Americano....................... 58

2.2.1 Aspectos Gerais da Legislação Concursal Americana..................................... 58

2.2.2 A “Reorganization” do Direito Americano .........................................................65

2.3 Recuperação Extrajudicial e Judicial de Empresas Privadas ....................... 73

2.3.1 Recuperação Extrajudicial................................................................................ 75

2.3.2 Recuperação Judicial ....................................................................................... 84

2.4 A Sistemática de Liquidação Extrajudicial de Segmentos Setoriais.......... 104

CAPÍTULO 3 RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS NAS SOCIEDADES DE

ECONOMIA MISTA.......................................................................... 109

3.1 Proposições Preliminares .............................................................................. 109

3 2 Posições Doutrinárias .................................................................................... 110

3.2.1 Defensores da Impossibilidade de Utilização da Sistemática de Recuperação

de Empresas pela Sociedade de Economia Mista......................................... 110

3.2.2 Defensores da Aplicação da Sistemática de Recuperação de Empresas às

Sociedades de Economia Mista que Exploram Atividade Econômica ........... 115

3 3 A Experiência Italiana ..................................................................................... 121

3.4 A Experiência Americana ............................................................................... 129

3 5 Proposição: Regulação Específica................................................................ 132

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CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................... 146

REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 148

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INTRODUÇÃO

Desde que entrou em vigor em 10 de junho de 2005, a Lei nº 11.101/2005

(Lei de Falência e Recuperação de Empresas) vem sendo objeto de pesquisa de

uma série de estudiosos, que buscam analisá-la sob os seus mais diversos

ângulos. Não obstante, uma faceta pouco explorada, mas não menos importante,

é a que diz respeito à aplicação da sistemática de recuperação de empresas às

empresas estatais.

Em apertada síntese, empresas estatais ou governamentais são, como o

próprio nome indica, empresas criadas pelo Poder Público, através de autorização

de lei específica, composta de patrimônio público ou misto, com personalidade

jurídica de Direito Privado, e com a finalidade de prestar serviços públicos ou

executar atividades econômicas de natureza privada1.

O gênero empresas estatais se divide em duas espécies principais: as

sociedades de economia mista e as empresas públicas, de acordo com a

composição do seu capital, sendo da primeira espécie, quando se tratar de capital

misto (público e privado) e da segunda espécie, quando se tratar de capital

exclusivamente público. Para muitos estudiosos, como Celso Antonio Bandeira de

Melo2, há ainda uma terceira espécie de empresa estatal, que são aquelas que,

muito embora não reúnam os requisitos próprios para serem consideradas

empresas públicas ou sociedades de economia mista, são controladas pelo Poder

Público.

O questionamento que se levanta nesta pesquisa é: a sistemática de

recuperação de empresas, prevista na Lei nº 11.101/2005, aplica-se às

sociedades de economia mista?

À primeira vista, a resposta parece negativa, já que o inciso I, do art. 2º, da

Lei nº 11.101/2005 expressamente exclui do âmbito de aplicação de tal Lei as

empresas públicas e as sociedades de economia mista.

De fato, alguns autores, como Waldo Fazzio Júnior3, preferem uma

interpretação literal do mencionado dispositivo, negando, por conseqüência, a

1 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 360. 2 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009.

3 FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Lei de falência e recuperação de empresas. São Paulo: Atlas, 2008. p. 36-37.

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possibilidade de que as empresas estatais, de qualquer espécie, possam se

submeter às disposições da Lei nº 11.101/2005.

Não obstante, este entendimento não é unânime.

Alguns estudiosos do assunto (em verdade, aqueles que se dispõem a

analisar o problema com um pouco mais de atenção) vêm entendendo que a Lei

de Falência e Recuperação de Empresas somente não se aplica às empresas

governamentais que prestam serviços públicos, sendo aplicável, por outro lado, às

empresas estatais exploradoras de atividade econômica.

Tal entendimento se fundamenta no art. 173, § 1º, II da Constituição

Federal (CF), que dispõe que as empresas públicas, sociedades de economia

mista e suas subsidiárias exploradoras diretas de atividade econômica estão

sujeitas ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos

direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários.

Trata-se, portanto, de um posicionamento oriundo de uma interpretação

sistemática do ordenamento jurídico, à custa de uma interpretação contrária à

literalidade da lei, mais especificamente ao inciso I, do art. 2º, da Lei nº

11.101/2005, que expressamente exclui do âmbito de aplicação da Lei de

Falência e Recuperação de Empresas as empresas governamentais.

Mas há, ainda, outras possibilidades.

Newton de Lucca4, por exemplo, lembra da possibilidade de que seja

criada lei especial para tratar dos procedimentos de liquidação e de recuperação

de empresas estatais. Referido autor sustenta esta posição com base na redação

dada ao art. 2º, pela subemenda apresentada pela Comissão Especial ao Projeto

de Lei nº 4.376 de 1993, que excluía os entes hoje constantes nos incisos do art.

2º da Lei nº 11.101/2005, mencionando, ao final, que ficam os mesmos sujeitos à

lei especial para recuperação ou liquidação judicial de seus ativos.

A atual redação do art. 2º da Lei nº 11.101/2005 não é exatamente a

constante na subemenda acima mencionada, no entanto, a ideia nesta contida

parece ter prevalecido, o que leva o autor acima citado a sustentar a posição de

que será instituída uma lei especial para tratar do assunto. Enquanto tal não

4 LUCCA, Newton de. Teoria geral. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto. (Coord.). Comentários à nova lei de recuperação de empresas e de falências. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 67.

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ocorrer, a teor do que dispõe o art. 197 da Lei de Falência a Recuperação de

Empresas, esta deve ser aplicada de forma subsidiária.

Como se vê, trata-se de uma questão bastante controvertida, que suscita

uma série de interpretações divergentes, muito embora, à primeira vista, a

legislação pareça clara em obstar a aplicação da Lei nº 11.101/2005 às empresas

públicas e sociedades de economia mista.

Daí a importância desta pesquisa, já que a mesma visa fazer uma análise

aprofundada do assunto, buscando conhecer as mais diversas formas de

interpretação da questão, confrontando-as, para, ao final, chegar a conclusão

própria quanto à melhor solução para o problema proposto.

A constatação de que a questão vem sendo tratada das mais diversas

formas, suscitando os mais diversos entendimentos, inclusive à custa de

interpretações contrárias à expressa previsão legal, são fortes indícios que o

assunto é problemático, carecendo de um estudo cuidadoso.

No mais, poucos são os trabalhos que se dedicam ao assunto. Em geral, o

que se vê são breves notas em obras de Direito Administrativo e de Direito

Empresarial, sem maiores delongas. Como exceção há o artigo de Renato

Ventura Ribeiro5, que foi material bastante importante para o desenvolvimento

deste trabalho.

Assim, pretendemos contribuir para o deslinde da controvérsia, ainda que

de forma tímida, sem qualquer pretensão, obviamente, de encontrar solução

definitiva para tão delicado problema.

Buscamos identificar o maior número possível de entendimentos que vem

sendo dados ao assunto, confrontando-os, para, ao final, chegar a uma conclusão

própria.

No mais, também foi objetivo do trabalho fazer uma análise pragmática do

tema, buscando a solução mais adequada à atual realidade econômica e social,

abandonado o plano meramente formal.

Utilizamos a interpretação sistemática do ordenamento jurídico, deixando

de lado a interpretação meramente literal. Além disto, tivemos os princípios como

aliados.

5 RIBEIRO, Renato Ventura. O regime de insolvência das empresas estatais. In: CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; ARAGÃO, Leandro Santos de (Coord.). Direito societário e a nova lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 110-127.

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Fizemos uma análise geral da Lei nº 11.101/2005, inclusive do instituto da

falência, como forma de introdução ao trabalho, no entanto, o objetivo é dar

ênfase ao instituto da recuperação judicial de empresas. Da mesma forma, foi

feita uma análise superficial acerca de todas as espécies de empresas

governamentais, no entanto, o alvo da pesquisa é a sociedade de economia

mista.

A opção pelo estudo do instituto da recuperação de empresas se justifica

pelo pouco tempo de vigência do mesmo. Trata-se de um instituto novo,

introduzido no ordenamento jurídico brasileiro no ano de 2005, com a entrada em

vigor da Lei nº 11.101/2005. Portanto, apesar dos inúmeros trabalhos já

realizados sobre o assunto, constata-se um campo ainda vasto para estudos, o

que justifica a nossa opção por ele.

Já a opção pela análise das sociedades de economia mista, em detrimento

das demais espécies de empresas estatais, se justifica pelo fato de que estas

exercerem atividades próprias de direito privado, o que as aproxima da

possibilidade de se submeterem à sistemática de recuperação de empresas.

O trabalho é dividido em três partes, precedidas pela Introdução e

sucedidas pelas Considerações Finais. Na primeira parte, falamos da presença do

Estado na atividade econômica. Tratamos das empresas governamentais, dando

ênfase às sociedades de economia mista, que é nosso objeto de estudo. Foram

abordados temas como o histórico das sociedades de economia mista, o seu

regime jurídico e as suas atuais tendências.

Na segunda parte, fizemos uma análise geral da Lei nº 11.101/2005,

envolvendo aspectos históricos e de direito comparado, além de uma análise

detida da sistemática de recuperação de empresas, especialmente a judicial.

Na terceira parte, partimos para o enfrentamento do tema propriamente

dito, fazendo um apanhado dos mais diversos posicionamentos encontrados,

confrontando-os, para chegar à nossa própria proposição. Falamos da experiência

italiana e americana no assunto, a fim de buscar inspiração para uma proposição

nacional. Além disto, analisamos o processo legislativo desde a apresentação do

PL nº 4.376/1993 pelo Poder Executivo até a aprovação da Lei nº 11.101/2005,

sempre tendo como foco, obviamente, a questão da aplicação da sistemática de

recuperação de empresas às sociedades de economia mista.

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Por fim, apresentamos as nossas considerações finais, onde optamos pela

disposição em itens, a fim de facilitar o entendimento e sistematização das

conclusões.

Como material de pesquisa foram utilizados livros de doutrina da área

jurídica, nacionais e internacionais. Um outro importante material utilizado foram

os artigos de jornais e revistas, até mesmo da internet. No mais, utilizamos os

Pareceres emitidos durante o processo legislativo da Lei nº 11.101/2005.

O método utilizado foi analítico-dedutivo, já que partimos da uma análise

geral para chegar a uma dedução própria, lançando mão do procedimento

dialético.

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CAPÍTULO 1 A PRESENÇA DO ESTADO NA ATIVIDADE ECONÔMICA

1.1 A Intervenção Estatal na Economia Privada

A passagem do século XIX para o século XX foi marcada por mudanças

significativas na relação existente entre o Estado e a atividade econômica. A

pretensão de crescimento e desenvolvimento econômico, adotada por uma série

de países ocidentais, fez que com que fosse assumido papel ativo dentro do

campo das relações econômicas, antes legado à sorte do próprio mercado.

Com efeito, vigorava o regime liberal1, que, segundo Eros Roberto Grau2,

pregava a não interferência do Estado na “ordem natural” da economia, que

deveria reger-se pelas próprias forças do mercado. Havia uma liberdade

econômica absoluta, sendo a livre concorrência o mais significativo critério de

organização e definição dos vencedores na disputa econômica. Ao Estado cabia,

fundamentalmente, a função de produção do direito e segurança.

No entanto, no final do século XIX, em razão da ineficiência do princípio da

livre iniciativa, que acabou, contraditoriamente, aniquilando os valores da

competição em razão da concentração do poder econômico nas mãos de poucos

agentes econômicos (os mais fortes), esta concepção perde força.3 Na verdade,

cede espaço para o momento neoconcorrencial ou “intervencionista”, no qual,

1 Diz Paulo Henrique Rocha Scott acerca do liberalismo: “O liberalismo, tão essencial à caracterização do Estado ocidental moderno, nasceu como uma nova visão global do mundo, advinda da conjugação do racionalismo dos séculos XVII e XVIII – das diretrizes racionalistas que situaram o homem no centro da sociedade, levando-o a se opor contra o absolutismo – com o liberalismo econômico de Adam Smith, tornando-se a expressão revolucionária de uma ética individualista voltada para a noção de liberdade plena e servindo de elemento essencial à composição da nova estrutura social empregada na satisfação das necessidades econômicas cotidianas do homem moderno: a estrutura capitalista. Segundo as regras do pensamento econômico liberal, o Estado deveria assumir os deveres de legislar, gerir o próprio patrimônio, prover às suas despesas, proteger a sociedade da invasão e violência externa, proteger um membro da sociedade da opressão do outro, garantir o rigor na administração da justiça, erigir e manter certas obras e serviços que, necessários sob o ponto de vista da sociedade, jamais conseguiriam, em razão da sua natureza, compensar economicamente os esforços empreendidos por um particular ou grupo de particulares. Como conseqüência dessa visão, a organização estatal se manteve afastada do universo dos indivíduos, da sua plena liberdade econômica.” SCOTT, Paulo Henrique Rocha. Direito constitucional econômico: estado e normalização da economia. Porto Alegre: Fabris, 2000. p. 40.

2 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 18.

3 De acordo com Scott: “Afastando-se, portanto, dos padrões do liberalismo clássico, o Estado, em nome dos interesses intermitentes de grupos privados com menor poder econômico, passou a enfrentar os grandes agrupamentos de produtores, modificando-os, sempre que sua evolução, o exercício de sua liberdade, colocasse em risco as leis naturais do mercado: as liberdades de iniciativa, de contratar e de concorrer.” SCOTT, op. cit., p. 47.

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ainda segundo Eros Grau, o modo de atuar do Estado passa por alterações,

deixando o objetivo inicial de constituição e preservação do modo de produção

social capitalista para assumir o de substituição e compensação do mercado.

A doutrina econômica socialista também colaborou nesta superação do

Estado liberal puro, já que pregava a ideia de propriedade coletiva dos meios de

produção e de detenção, pelo Estado, de poderes para direção e administração

empresarial. Foi em razão dos influxos desta ideologia que surgiu um novo perfil

de organização socioeconômica estatal: o Estado Social.

Desde o final da Primeira Guerra Mundial, já se observava, em vários

países da Europa, uma tendência de intervenção estatal no domínio econômico,

visando não só a correção das falhas do mercado, mas também a sua ordenação

e humanização, no sentido de realizar determinadas finalidades públicas e de

concretizar um modelo estatal de todas as classes e não apenas de uma elite.

Segundo Paulo Henrique Rocha Scott4, a partir do final da década de 50, a

atuação estatal muda de rumo e passa a buscar a promoção de uma economia do

bem-estar social, reformulando a visão clássica baseada no princípio de

ordenação natural das relações de mercado.

No Brasil, a nova tendência do Estado moderno também foi adotada,

tendo, inclusive, sido acolhida pela ordem constitucional.

A partir da década de 30, inspirado por um sentimento nacionalista, voltado

para a conquista da autossuficiência nacional e do fortalecimento da economia

interna, o Estado brasileiro passa a buscar o ajuste da economia nacional ao

panorama internacional, valendo-se do intervencionismo. Este sentimento acabou

desaguando na promulgação da Constituição Federal de 1934, que foi inspirada

na famosa Constituição Mexicana de 1917 e na Alemã de 1919.

A Constituição de 1934 se mostrou solidária à causa das classes

trabalhadoras e buscou conjugar princípios-regras que despertassem um

sentimento nacional de solidariedade capaz de intensificar e aperfeiçoar a

produção econômica.

No entanto, a sua vigência foi bastante curta, pois o golpe de Estado

acontecido em 1937 instituiu um novo regime autoritário, o Estado Novo. Neste

4 SCOTT, Paulo Henrique Rocha. Direito constitucional econômico: estado e normalização da economia. Porto Alegre: Fabris, 2000. p. 56.

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mesmo ano foi promulgada nova Constituição, com princípios bastante diversos

dos constantes na anterior.

A Constituição Federal de 1937 estabeleceu a descentralização

econômica, autorizando a intervenção do Estado apenas de maneira indireta. O

seu papel era de mero coordenador dos agentes econômicos. Qualquer ação

interventiva somente poderia ser praticada quando realmente necessária à defesa

do interesse nacional.

Somente em 28 de fevereiro de 1945, às vésperas da promulgação da

nova Constituição que estava por vir, foi instituída a alteração da Lei

Constitucional nº 9, que criou o Conselho de Economia Nacional, com uma função

planejadora. A sua atribuição era propiciar condições para a criação de institutos

de pesquisa que racionalizassem a organização e a administração da indústria.

Em 1946 foi promulgada uma nova Constituição, baseada em princípios

muito semelhantes aos que nortearam a Constituição de 1934. Optou-se por uma

ordem econômica baseada na livre iniciativa e concorrência, sem deixar de lado o

ideal de realização da justiça social. O Estado assumiu o importante papel de

distribuidor das riquezas produzidas no país.

Esta Constituição também valorizou muito a ideia de planejamento, que

estava presente em vários dispositivos constitucionais, como no art. 205, que

instituía o Conselho Nacional de Economia, cuja finalidade era estudar a vida

econômica do país e sugerir ao poder competente as providências que se

mostravam necessárias.

Em 1967, o Brasil assistiu à promulgação de uma nova Constituição,

menos intervencionista que a de 1946. Exemplo disto estava no art. 163, que

previa o seguinte: “Às empresas privadas compete preferencialmente, com

estímulo e apoio do Estado, organizar e explorar as atividades econômicas”.

Como se vê, a preferência de atuação na esfera econômica foi dada à iniciativa

privada, cabendo ao Estado o papel de apoiador. Sua atuação seria limitada à

correção das imperfeições do mercado e na organização de setores econômicos

estratégicos que não poderiam ser desenvolvidos pela iniciativa privada.

Muito embora a Constituição de 1967 tenha extinguido o Conselho

Nacional de Economia, o regime por ela instituído também tinha o planejamento

como base, ou melhor, como dever do Estado.

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A atual Constituição Federal brasileira dedica um Título inteiro, o Título VII,

para tratar da Ordem Econômica e Financeira. Nele há uma busca pela

harmonização entre princípios de forças políticas liberais e tradicionais e

aspirações populares. Para constatar esta proposição, basta observar o art. 170,

que elenca uma série de princípios, uns mais afeitos ao ideal liberal (como

propriedade privada e livre concorrência) e outros ao ideal popular (como função

social da propriedade e busca do pleno emprego). Segundo Paulo Henrique

Rocha Scott “[...] não seria errado caracterizar a economia brasileira como sendo

de natureza capitalista e, não obstante isso, voltada à construção de um modelo

de Estado social.”5

Na nova ordem constitucional, o Estado assume papel mais ativo no

processo econômico.

A intervenção estatal pode se dar de duas formas: sob a forma legislativa,

na qual o Estado se utiliza do complexo normativo para fixar os objetivos a serem

alcançados pela iniciativa privada; e sob a forma administrativa, que é

concretizada, basicamente, pelo exercício direto da atividade econômica pelo

Estado ou pelo controle e direção da atividade econômica da iniciativa privada6.

O que nos interessa neste estudo é a forma administrativa de intervenção

estatal.

No entanto, a exploração de atividade econômica pelo Estado, de maneira

direta, não é permitida atualmente de forma indiscriminada, já que o caput do art.

173 da Constituição Federal7 a limita para os casos de imperativos de segurança

nacional ou de relevante interesse coletivo. Ou seja, o Estado somente pode

explorar diretamente qualquer atividade econômica quando se tratar de uma das

hipóteses previstas no mencionado dispositivo constitucional.

A preferência para exploração da atividade econômica é da iniciativa

privada, cabendo ao Poder Público uma atuação residual, apenas quando esta se

fizer realmente necessária e interessante ao bem comum. O Estado não pode e

nem deve competir com os agentes econômicos da iniciativa privada, devendo 5 SCOTT, Paulo Henrique Rocha. Direito constitucional econômico: estado e normalização da economia. Porto Alegre: Fabris, 2000. p. 93.

6 TOJAL, Sebastião Botto de Barros. O estado e a empresa estatal – controle: fiscalização ou poder de dominação? 1987. 272 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1987.

7 Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direita de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

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18

atuar apenas quando esta não se mostrar capaz de atender à demanda do

mercado em obras, produtos e serviços.8

Ao Estado, conforme determinação do art. 174 da CF, cabe a atribuição de

agente normativo e regulador da atividade econômica, através do exercício da

função de fiscalização, incentivo e planejamento.

O Poder Público pode atuar na ordem econômica por vários meios, como

por exemplo, através da repressão ao abuso de poder econômico, do

tabelamento de preços e da criação de empresas estatais, que é o que nos

interessa neste trabalho.

Celso Antonio Bandeira de Mello9 observa que, já há algum tempo, a

participação do Estado na vida social e econômica vem se intensificando, não

através processos tradicionais, como as autarquias e concessões aos

particulares, mas sim por meio de pessoas de direito privado alimentadas por

recursos públicos, por várias razões. Uma delas é a de que os novos

empreendimentos estatais não mais se configuram em serviços públicos

propriamente ditos, mas, pelo contrário, respondem a um propósito de assumir

certas atividades industriais e mercantis.

Ainda segundo o autor referido acima, o Poder Público passou a adotar

processos de ação próprios das sociedades comerciais, visando atingir a

eficiência das mesmas, constituindo-se à semelhança delas para a prestação dos

mais variados serviços.

O fato é que, tanto para a prestação de serviços públicos quanto para o

desempenho de atividades econômicas, o Estado acolheu o sistema próprio do

direito privado. Em alguns casos, com vistas a obter maior eficiência, em outros, 8 No livro “Regime Jurídico da Empresa Estatal no Brasil”, Newton de Lucca observa a proliferação de empresas estatais não só em caráter suplementar: “A presença do Estado na economia brasileira hoje é tão significativa que seria até despiciendo – para não dizer estultice – mostrar que sua postura, nos diversos setores, não terá sido, positivamente, a de quem exerceu a sua atividade “suplementar” somente naqueles setores nos quais a livre iniciativa não poderia atuar com eficácia. Não só a presença estatal espraiou-se por quase todos os segmentos da economia nacional, concorrentemente com a iniciativa privada (e sufocando frequentemente esta última), como também, nas vezes em que interveio exercendo atividade “suplementar” (e, portanto, dentro dos limites constitucionais), dificilmente terá se preocupado em operar com lucro apenas para preservar o estímulo à iniciativa privada para que esta viesse ocupar aquele espaço por ele preenchido somente a título “suplementar”. LUCCA, Newton de. Regime jurídico da empresa estatal no Brasil. São Paulo: Tese, 1986. p. 35-36. Ressalte-se que esta obra foi escrita sob a égide da Constituição Federal de 1.967, que, no entanto, também previa uma atuação do Estado na atividade econômica apenas de maneira suplementar, motivo pelo qual as observações de Newton de Lucca ainda se mostram atuais.

9 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 87.

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19

pela própria natureza peculiar da atividade, que não se compatibilizaria com outro

meio de ação.

É desta constatação que surge o problema proposto neste trabalho. Se o

Estado acolheu o sistema próprio do direito privado, quer dizer, então, que deve

se submeter às regras do direito privado, tais quais os demais agentes

econômicos? Se a resposta for positiva, há que se admitir que a sistemática de

recuperação de empresas lhe é aplicável. No entanto, a solução deste problema

não é assim tão simples, e será tratada com mais minúcias na terceira parte do

trabalho.

Newton de Lucca10, citando George Vedel, diz que o Estado moderno foi

pouco criativo ao expropriar dos capitalistas as suas experiências e fórmulas,

tendo feito a opção por explorar a atividade econômica por meio de empresas. Ou

seja, não diretamente pelas pessoas jurídicas de direito público interno, porque

suas estruturas se mostravam menos ágeis do que as utilizadas pelos

particulares. Não obstante, Lucca questiona: “A escolha, pelo Estado, das formas

jurídicas de direito privado para a sua atuação – sociedades comerciais, em

especial – ofereceria alguma dificuldade de adequação entre os interesses

estatais e o direito próprio daquelas sociedades?” E a sua resposta é: “A resposta

só poderá, evidentemente, ser afirmativa.”

De fato, o problema proposto neste trabalho (possibilidade de recuperação

judicial das sociedades de economia mista) evidencia uma das dificuldades

mencionadas pela doutrina analisada.

Em países como o Brasil, o Estado se viu na contingência de acelerar o

desenvolvimento de certos setores econômicos de vital importância, passando a

constituir empresas com esta finalidade, tanto para suprir áreas não supridas ou

insuficientemente supridas pela iniciativa privada, quanto para atuar

exclusivamente em áreas estratégicas.

Essa a razão de certa proliferação de empresas estatais num passado

ainda recente.

Empresa Estatal é o gênero, do qual fazem parte as espécies empresas

públicas, sociedades de economia mista e outras empresas que, não tendo as

características da empresas públicas ou sociedades de economia mista, estão

10 LUCCA, Newton de. Regime jurídico da empresa estatal no Brasil. São Paulo: Tese, 1986. p. 30.

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submetidas ao controle do Governo11. Limitamo-nos ao estudo das empresas

públicas e sociedades de economia, aprofundando um pouco mais a abordagem

em relação a essa última, e ignorando a existência da terceira espécie por não

registrar interesse no deslinde do problema proposto.

1.2 Regramento Legal-Administrativo: Decreto-Lei nº 200/1967

O Decreto-lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, dispõe sobre a

organização da Administração Federal, estabelece diretrizes para a Reforma

Administrativa, além de conter outras providências. Foi editado durante o governo

do Presidente Castello Branco, e continua em pleno vigor, já que não houve

revogação expressa.

Segundo Hely Lopes Meirelles12, a organização da administração

corresponde à estruturação legal de suas entidades (pessoas jurídicas públicas

ou privadas) e órgãos (entes despersonalizados cuja função é a realização das

atividades da entidade a que pertencem), que serão os responsáveis pelo

desempenho das funções, através dos chamados agentes públicos, que são

pessoas físicas. Isto se faz, normalmente, por leis e excepcionalmente por

decretos e outras espécies de normas inferiores, conforme a matéria a ser

regulamentada.

É no art. 4º do Decreto-lei nº 200 que a Administração Federal é dividida

em Administração Direta e Indireta. Segundo o inciso I do art. 4º, a Administração

Direta se constitui dos serviços integrados na estrutura administrativa da

Presidência da República e dos Ministérios; segundo o inciso II, a Administração

Indireta compreende quatro categorias de entidades, todas dotadas de

personalidade jurídica própria, quais sejam: autarquias, empresas públicas,

sociedades de economia mista e fundações públicas. Em cada nível de

Administração, o conjunto dessas entidades personalizadas forma a

Administração Indireta. Portanto, há Administração Indireta Federal, Estadual e

Municipal.

11 Alguns autores de Direito Administrativo não admitem a divisão das empresas estatais em três espécies, limitando esta divisão às empresas públicas e sociedades de economia mista. Hely Lopes Meirelles é uns dos que aceitam a divisão tripartite. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 360.

12 Ibid., p. 63.

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Celso Antonio Bandeira de Mello13 critica o Decreto-lei nº 200/1967,

observando que ele incluiu na Administração Indireta entidades de atuação alheia

à função administrativa. As empresas públicas e sociedades de economia mista,

como se verá mais adiante, são pessoas jurídicas de direito privado, que atuam

por meio de atos de direito privado e no exercício de missão não pública, porque

nem sempre prestam serviço público, podendo se limitar à exploração de

atividade econômica. Lembre-se que o alvo do estudo é justamente a sociedade

de economia mista.

Se assim o é, tem-se que o critério distintivo entre Administração Direta e

Indireta é unicamente o da pessoa do sujeito atuante e não a natureza da

atividade por ele desenvolvida. Portanto, para caracterizar Administração Pública

basta o fato de ser exercida pelo Estado ou por entidade governamental, ainda

que não se trate de entidade totalmente constituída por fundos públicos.14

13 MELLO, Celso Antonio Bandeira. Prestação de serviços públicos e administração indireta. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1979. p. 32.

14 Ibid. Para ilustrar sua constatação, Celso Antonio Bandeira de Mello cita o seguinte exemplo: “Tanto foi este o critério adotado que atividade indiscutivelmente administrativa se viu excluída da noção de administração indireta fornecida pelo decreto-lei n. 200: referimo-nos ao serviço público concedido a particulares. Com efeito: a concessão de serviço público, isto é, o serviço estatal e administrativo por definição (às vezes até mesmo constitucionalmente previsto como exclusivo da União – salvo concessão ou autorização) não encontrou lugar na indigitada classificação do decreto-lei da Reforma Administrativa Federal. Quer dizer: o desempenho de serviço público, segundo o diploma em causa, não é administração indireta, mas é atividade federal descentralizada (art. 10, § 1º, letra “c” do decreto-lei)!!!”.

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Cada entidade da Administração Indireta vincula-se a um órgão da

Administração Direta, cuja área de competência tenha afinidade com sua atuação

específica, sendo este o responsável pelo controle administrativo da entidade. No

âmbito federal, a vinculação se dá com o Ministério em cuja área de competência

estiver enquadrada a sua principal atividade, conforme prevê o parágrafo único do

art. 4º do Decreto-lei nº 200/1967. Trata-se de supervisão ministerial, cujos

objetivos e formas de atuação estão previstos no art. 26 do Decreto-lei nº 200.15

Uma das características da Administração Indireta é a especificidade das

atribuições de cada entidade. Há, por exemplo, entidades que se dedicam ao

fornecimento de água, à preservação do patrimônio cultural, aos correios e

telégrafos, dentre tantas outras atribuições.

Para o desempenho de suas competências, o ente da Administração

Indireta é dotado de patrimônio, pessoal e estrutura administrativa próprios.

15 Diz o art. 26 do Decreto-lei n. 200/67: ”No que se refere à Administração Indireta, a supervisão ministerial visará a assegurar, essencialmente: I - A realização dos objetivos fixados nos atos de constituição da entidade. II - A harmonia com a política e a programação do Governo no setor de atuação da entidade. III - A eficiência administrativa. IV - A autonomia administrativa, operacional e financeira da entidade. Parágrafo único. A supervisão exercer-se-á mediante adoção das seguintes medidas, além de outras estabelecidas em regulamento: a) indicação ou nomeação pelo Ministro ou, se for o caso, eleição dos dirigentes da entidade, conforme sua natureza jurídica; b) designação, pelo Ministro dos representantes do Governo Federal nas Assembléias Gerais e órgãos de administração ou controle da entidade; c) recebimento sistemático de relatórios, boletins, balancetes, balanços e informações que permitam ao Ministro acompanhar as atividades da entidade e a execução do orçamento-programa e da programação financeira aprovados pelo Governo; d) aprovação anual da proposta de orçamento-programa e da programação financeira da entidade, no caso de autarquia; e) aprovação de contas, relatórios e balanços, diretamente ou através dos representantes ministeriais nas Assembléias e órgãos de administração ou controle; f) fixação, em níveis compatíveis com os critérios de operação econômica, das despesas de pessoal e de administração; g) fixação de critérios para gastos de publicidade, divulgação e relações públicas; h) realização de auditoria e avaliação periódica de rendimento e produtividade; i) intervenção, por motivo de interesse público.”

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O próprio Decreto em comento, em seu art. 5º, define cada um dos entes

da Administração Indireta, de forma bastante objetiva.16

Interessa sobremaneira a regulamentação das empresas públicas e

sociedades de economia mista – as chamadas empresas estatais.

No dizer de Hely Lopes Meirelles17, empresas estatais são pessoas

jurídicas de direito privado, criadas por autorização legal específica, com

patrimônio público ou misto, com a finalidade de prestar serviço público ou de

executar atividade econômica de natureza privada. Da definição extrai-se dois

importantes aspectos das empresas estatais: (a) o patrimônio pode ser público ou

misto, o que indica a principal diferença entre a empresa pública e a sociedade de

economia mista; (b) a empresa estatal pode ter por finalidade a prestação de um

serviço público ou a execução de atividade econômica de natureza privada,

diferenciação vital para o deslinde do problema proposto.

Com efeito, o patrimônio das empresas públicas é constituído

exclusivamente com recursos públicos, ao passo que o das sociedades de

economia mista conta com recursos públicos e particulares; daí a denominação

“economia mista”.

Em ambos os casos (empresas públicas e sociedades de economia mista),

admite-se o auferimento de resultado econômico (lucro), muito embora não deva

ser a obtenção de lucro o objetivo principal da empresa estatal. Lembre-se que

por disposição constitucional (art. 173, caput), a exploração de atividade

econômica pelo Estado somente tem lugar quando haja relevante interesse

16 Diz art. 5º do Decreto-lei nº 200/67: “Art. 5º Para os fins desta lei, considera-se: I - Autarquia - o serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada. II - Empresa Pública - a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criado por lei para a exploração de atividade econômica que o Governo seja levado a exercer por força de contingência ou de conveniência administrativa podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito. (Redação dada pelo Decreto-Lei nº 900, de 1969). III - Sociedade de Economia Mista - a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, criada por lei para a exploração de atividade econômica, sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União ou a entidade da Administração Indireta. (Redação dada pelo Decreto-Lei nº 900, de 1969). IV - Fundação Pública - a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, criada em virtude de autorização legislativa, para o desenvolvimento de atividades que não exijam execução por órgãos ou entidades de direito público, com autonomia administrativa, patrimônio próprio gerido pelos respectivos órgãos de direção, e funcionamento custeado por recursos da União e de outras fontes. (Incluído pela Lei nº 7.596, de 1987)

17 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 360.

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coletivo ou quando seja imprescindível à segurança nacional. Destarte, a

finalidade principal da empresa estatal deve ser o atendimento ao interesse

público ou aos imperativos de segurança nacional que autorizaram a sua criação,

ficando o lucro em segundo plano. Isso tanto quando se tratar de empresa estatal

prestadora de serviço público, tanto quando exercente de atividade econômica de

natureza privada.

Newton de Lucca, no entanto, questiona a compatibilidade entre o lucro

empresarial e o caráter suplementar do Estado na atividade econômica. Para ele,

é difícil conciliar a ideia de que o Estado, quando exerce atividade econômica,

deva ter o objetivo de lucro, ”com a disposição constitucional que condiciona essa

atividade econômica suplmentar do Estado à inexistência de exploração pelos

particulares”18.

No item 2.3 será tratada a sociedade de economia, que é objeto precípuo

de estudo, com mais minúcias. Não obstante, não podemos olvidar de que a

empresa pública é também uma forma de atuação do Estado no âmbito

econômico. Ela apenas não será objeto de detalhamento dada a limitação

imposta ao estudo, qual seja a análise da possibilidade de utilização da

sistemática vigente de recuperação de empresas pela sociedade de economia

mista.

O art. 6º do Decreto nº 200/1967 elenca os princípios fundamentais a

serem observados pela Administração Federal no desempenho de suas

atividades, que são: planejamento, coordenação, descentralização, delegação de

competência e controle.

Quanto ao primeiro princípio, tem-se que a ação governamental deve

obedecer a planejamento que vise a promover o desenvolvimento econômico e

social do país e a segurança nacional (art. 7º), buscando elaborar e atualizar

plano geral de governo; programas gerais, setoriais e regionais, de duração

plurianual; orçamento-programa anual; e programação financeira de desembolso.

Assim, todas as atividades da Administração Federal devem ser objeto de

permanente coordenação, em todos os níveis da administração.

Há que se observar, também, a descentralização, ou seja, a execução das

atividades da Administração Federal deverá ser amplamente descentralizada,

18 LUCCA, Newton de. Regime jurídico da empresa estatal no Brasil. São Paulo: Tese, 1986. p. 34.

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tanto dentro da própria Administração Federal, quanto da Administração Federal

para as unidades federadas e para a órbita privada.

A descentralização será alcançada por meio de delegação de competência,

com o objetivo de assegurar maior rapidez e objetividade às decisões, que serão,

então, tomadas nas proximidades dos fatos, pessoas ou problemas a atender.

Por fim, o controle das atividades da Administração Federal, que deverá

ser exercido em todos os níveis e órgãos, especialmente em relação à execução

de programas e observância de normas, e à aplicação do dinheiro público e da

guarda dos bens da União.

A supervisão de todo e qualquer órgão da Administração Direta ou Indireta

cabe ao Ministro de Estado competente, ou ao próprio presidente da República

quando se tratar de órgão de constituição da Presidência ou de assessoramento

direto do presidente. Os órgãos estão elencados no art. 32 do Decreto-lei nº

200/1967.

1.3 Sociedades de Economia Mista e Função Econômica

Waldemar Martins Ferreira19 observou que nos primeiros anos do século

XX o Estado brasileiro começou a se infiltrar em sociedades anônimas, como

sócio, tornando misto o capital público com o particular, em situação tal que

implica na preponderância do poder de controle em favor do Estado.

O objetivo do Estado era não só o de percepção de lucro, como qualquer

outro acionista, mas também o de aproveitar-se da estrutura da empresa privada

para realizar alguns de seus fins, eis que o seu deficiente aparelho burocrático

não vinha se mostrando satisfatório.

Foi após a Primeira Guerra Mundial que, no Brasil, as coletividades

públicas passaram a manter relações mais íntimas com a sociedade anônima

que, até então, era fórmula exclusiva do direito privado. Esta perdeu o seu caráter

exclusivamente privatístico, convertendo-se, também, em fórmula de direito

público.

Surge, então, uma aliança entre o dinheiro público e o capital privado, que

não foi exclusividade brasileira. A ela, na Alemanha, deu-se o nome de gemischte

19 FERREIRA, Waldemar. A sociedade de economia mista em seu aspecto contemporâneo. São Paulo: Max Limonad, 1956. p. 23.

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Wirtschaft, que na França se acolheu e lá se conheceu par ce vacable anjourd’hui

três usité mais dún sens assez sybillin: l’économie miste.

Esta aliança, na maioria das vezes, deu-se por causas fortuitas. Na

Alemanha, por exemplo, em 1931, o Reich viu-se na contingência de adquirir as

ações das companhias de aço e de bancos em crise financeira, o que se passou

também na França. Antes disso, Japão e Inglaterra já tinham vivido experiência

similar.

A Bélgica também assistiu à adoção da sociedade de economia mista por

razões pragmáticas, ou seja, elas não derivaram de estudos doutrinários ou de

preconcebida vontade do legislador, mas sim da necessidade prática, da pressão

dos fatos.

Anota-se que a primeira sociedade anônima conhecida no mundo, e que

também é uma sociedade de economia mista, foi a Companhia das Índias

Orientais, criada na Holanda em 1602. Segundo consta, diversas sociedades

holandesas de navegação, por força e obra do Estado, se uniram com o objetivo

de fazer frente ao Rei de Portugal e Espanha, que dominava a navegação nos

mares que banhavam as Índias Orientais, contando com o apoio e a presença

estatal. O capital foi dividido em parcelas iguais, chamadas de acties (ações),

negociáveis na bolsa de valores de Amsterdã. A responsabilidade dos

subscritores das ações, tal qual ocorre nos dias de hoje, era limitada ao valor

nominal da ação adquirida. Os órgãos de deliberação, administração e

fiscalização ficavam a cargo do Estado.

Como se vê, a primeira sociedade anônima da história surgiu marcada pela

presença de capital estatal na sua composição, o que, nos dias de hoje, parece

um paradoxo. Em sua origem, a sociedade anônima foi muito mais um instituto de

direito público do que de direito privado. A França foi o primeiro país a

regulamentar as sociedades anônimas, no Código de Comércio de 1807,

prevendo que somente poderiam existir com autorização e aprovação do

governo.20

À época, a forma de sociedade anônima era reservada exclusivamente

para as empresas de grande magnitude e que demonstrassem possibilidade de

sucesso, o que as tornava raras. E é justamente com este fato que a França

20 Não se tratava de um simples controle de polícia, mas de um controle de legitimidade e de mérito quanto à sua utilidade e conveniência.

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justificava a ingerência do Estado nas sociedades anônimas, haja vista que,

tratando-se de grandes empresas, era evidente suas importâncias para o país.

Às sociedades de economia mista francesas foi instaurado um regime

especial, distinto das demais sociedades existentes à época (sociedade em nome

coletivo e sociedade em comandita).

A desvinculação da sociedade anônima da figura do Estado aconteceu pela

primeira vez em 1829, na Espanha, quando o Código Comercial Espanhol

regulamentou esta instituição prestigiando o princípio da liberdade, ou seja, não

foi exigida a autorização governamental, o que deveria acontecer apenas quando

a sociedade anônima tivesse de gozar de algum privilégio.

Waldemar Ferreira justifica o fato lembrando que a criação da Companhia

das Índias Orientais e, portanto, da primeira sociedade anônima e sociedade de

economia mista da história, aconteceu durante o estado de guerra entre a

Holanda e a Espanha, estado este que é propício ao desenvolvimento da

economia dirigida. Os Estados Gerais, naquele momento, entenderam que

precisavam dirigir, orientar e fortalecer a economia nacional, pois só assim

poderiam se defender economicamente contra o rei da Espanha. Neste intuito,

não havia outra alternativa que não “[...] amalgamar a economia privada e a

economia pública, aglutinando-as, associando-as intimamente, em autêntica

sociedade de economia mista.”21

Posteriormente, em razão do sucesso espetacular das Companhias das

Índias Orientais, que distribuiu dividendos consideráveis aos seus acionistas, esta

forma de organização empresarial se espalhou pela Europa. Não obstante, o

mesmo Waldemar Ferreira22 adverte que esses primeiros ensaios de economia

mista não lograram sucesso duradouro, basicamente por dois motivos: (1) o

Estado se mostrou muito exigente nas empresas em que penetrou, criando

inúmeras dificuldades para a administração das mesmas; (2) os homens de

negócio acabaram abrindo mão da tutela do Estado, quando perceberam que

podiam organizar-se apenas com subscrições da economia privada.

Newton de Lucca23 diz que a sociedade de economia mista pode ser

conceituada de várias maneiras, de acordo com o enfoque que se dê à ela.

21 FERREIRA, Waldemar. A sociedade de economia mista em seu aspecto contemporâneo. São Paulo: Max Limonad, 1956. p. 41.

22 Ibid., p. 36. 23 LUCCA, Newton de. Regime Jurídico da Empresa Estatal no Brasil. São Paulo: Tese, 1986. p. 99.

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Segundo ele, o conceito contido no inciso III do art. 5º do Decreto-lei nº 200/1967,

não é o mesmo do contido na Lei nº 6.404/1976 e na Lei nº 6.264/1975, que seria

o mais abrangente de todos. O conceito de sociedade de economia mista é

plurívoco, ou seja, há várias noções de sociedade de economia mista, o que

indica a insuficiência de um conceito único. O rótulo “sociedade de economia

mista” não é esclarecedor quanto ao conteúdo do conceito, pois ele pode se

referir a várias noções.24

Do inciso III do art. 5º do Decreto-lei nº 200/1967, acima citado, é

possível extrair as seguintes características da sociedade de economia mista:

personalidade jurídica de direito privado; criação por meio de lei;

destinação para explorar atividade econômica; forma de sociedade

anônima e controle acionário da União ou de entidade da administração

indireta (dela participa o particular e o Estado, sendo que a maioria das ações

deve pertencer ao último).

Se é difícil definir sociedade de economia mista, em um ponto não há

controvérsia entre os estudiosos: neste tipo de sociedade há a participação, lado

a lado, de pessoas públicas e privadas, tanto na constituição do capital quanto na

administração da companhia.

Na sociedade de economia mista o Estado deve despir-se de suas

prerrogativas e privilégios. Segundo Cretella Júnior25 “O Estado acionista, ao

integrar a sociedade de economia mista, desce do pedestal privilegiado em que

se encontra e, revestindo-se de traços privatísticos, fica sob o impacto das

normas jurídicas de direito mercantil”, inclusive do estatuto das sociedades

anônimas.

24 Cretella Júnior diz, a respeito da sociedade de economia mista: “Definimos, em outro trabalho, a sociedade de economia mista como a pessoa jurídica de direito privado na qual as pessoas jurídicas de direito público e particulares conjugam seus esforços para concretizar fins comuns, através da colaboração conjunta, no capital e na direção da empresa, que se estrutura nos moldes congêneres e paralelos do direito privado”. CRETELLA JÚNIOR, José. Administração indireta brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 1980. p. 338.

25 Ibid., p. 338.

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No entanto, por outro lado, pode libertar-se do controle rígido que

geralmente é feito sobre ele.26

Diante desta constatação, cabe mais uma vez questionar: Se, ao compor

sociedade de economia mista, o Estado reveste-se de traços privatísticos e fica sob o

impacto das normas de direito mercantil, será que a Lei nº 11.101/2005 e mais

especificamente a sistemática de recuperação de empresas lhe é aplicável?

O que se observa é uma fusão de aspectos privados e públicos, que atuam

simultaneamente, o que explica a complexidade de seu alcance e significado.

Cretella Júnior27, citando Chazel e Poyet, menciona que “quando não se trata de

atos de comércio, realizados por particulares isolados ou associados, nem de atos

administrativos editados pelo Estado ou pelas sociedades secundárias, estamos

no campo da economia mista”.

Ainda para este autor28, a evolução desta forma especial de sociedade

resulta de uma tentativa de fusão entre duas formas antitéticas de economia, a

individualista + o socialismo estatal e o liberalismo econômico + o socialismo de

Estado.

A função principal desta espécie de empresa estatal varia de acordo com a

sua finalidade, ou seja, se prestadora de serviço público ou se exercente de atividade

econômica. No primeiro caso, a sua função primordial é o interesse social, no

segundo, a obtenção de lucro. Ressalte-se que falamos em função “primordial”, pois

mesmo as sociedades de economia mista prestadoras de serviço público podem

cobrar, segundo a Constituição Federal, uma tarifa que permita a justa remuneração

do capital.

Newton de Lucca29 explica que as sociedades de economia mista podem

ter origens diversas, o que justifica a diversidade de funções de cada uma. Por

exemplo, existem sociedades de economia mista derivadas de empresas

26 José dos Santos Carvalho Filho também coloca com bastante clareza este aspecto da sociedade de economia mista. Confira: “Como os órgãos estatais se encontram presos a uma infinita quantidade de controles, o que provoca sensível lentidão nas atividades que desempenha, essas pessoas administrativas, tendo personalidade de direito privado, embora sob direção institucional do Estado, possibilitam maior versatilidade em sua atuação, quando voltadas para atividades econômicas. O Estado, através delas, se afasta um pouco de seu pedestal como Poder/bem-estar social para assemelhar-se, de certa maneira, a um empresário, que precisa de celeridade e eficiência para atingir seus objetivos.” CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009. p. 472.

27 CRETELLA JÚNIOR, José. Administração indireta brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 342. 28 Ibid., p. 342. 29 LUCCA, Newton de. Regime jurídico da empresa estatal no Brasil. São Paulo: Tese, 1986. p. 116.

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privadas, que sofreram intervenção estatal em razão da má gestão dos

empresários privados, com o propósito de promover a socialização das perdas;

por outro lado, existem as que já foram criadas pelo Estado, sob a justificativa

de que a iniciativa privada não tinha condições de exercer a atividade assumida

pelo Poder Público; e há, ainda, aquelas que exploram serviços públicos sob

regime de permissão ou concessão.

Lucca30, aliás, não se cansa de destacar a contradição para ele existente

entre a configuração estrutural de sociedade anônima da sociedade de

economia mista (sendo, portanto, voltada à produção de lucro, conforme art. 2º

da Lei nº 6.404/1976) e suas funções sociais (porquanto seja órgão da

Administração Pública Indireta). Ou seja, as sociedades de economia mista

adotam a forma de companhias que, por definição legal, têm por objeto a

produção de lucros, embora as empresas estatais não possam, ao menos como

fim imediato, ter finalidade lucrativa. Sem contar que as sociedades de economia

mista somam capital da iniciativa privada que, obviamente, visa lucratividade

quando investido em qualquer tipo de empreendimento. Com efeito, tratam-se

de contradições evidentes.31

30 LUCCA, Newton de. Regime jurídico da empresa estatal no Brasil. São Paulo: Tese, 1986. p. 115. 31 Deste entendimento também comunga Fabio Konder Comparato: “A estrutura da sociedade de economia mista encerra, em si mesma, grave contradição. As companhias exploram, por definição legal, empresas lucrativas. Mas o regime econômico consagrado na Constituição não assina ao Estado, por função, produzir lucro. A legitimidade da ação estatal, ainda e sempre, é o serviço público, a produção de bens e serviços que não podem ser obtidos no regime de exploração privada, de modo eficiente e justo, sem discriminação entre os consumidores, de acordo com o princípio da demanda solvável, como ocorre com a empresa capitalista. A função da empresa estatal não é a geração de receita sob a forma de lucro empresarial, mas a preservação da segurança nacional, ou a organização de setor que não possa ser desenvolvido com eficácia no regime de competição e de liberdade de iniciativa (CF, art. 163). O dilema que se apresenta ao Estado, enquanto acionista controlador, é pois o de perseguir o interesse público antes e acima da exploração lucrativa – o que torna sem sentido a participação societária do capital privado no empreendimento; ou dar lugar ao interesse público apenas quando este se coloca em conflito com o objetivo nacional de produção de lucro – o que infringe o princípio constitucional assinalado.” COMPARATO, Fábio Konder. Aspectos jurídicos da macro-empresa. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1970.

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31

O próprio Newton de Lucca32 indica solução para esses conflitos. Segundo

ele, as contradições são superadas no dia a dia da sociedade de economia mista

pela ação do Estado, que lança mão do seu poder de controle33, fazendo

prevalecer o interesse público sobre o privado.34 Quanto à questão do

investimento privado nas sociedades de economia mista, ressalta o fato de que o

particular, ao investir em empresa estatal, o faz ciente de que a obtenção de lucro

não é sua finalidade precípua, muito embora ela exista. A redução da

lucratividade seria compensada pelo reduzido risco empresarial deste tipo de

empreendimento.

Fato é que as sociedades de economia mista existem, em grande número,

sempre com intuito de lucro na realização do objeto social.35

Um argumento utilizado para justificar a obtenção de lucro pela empresa

estatal, ainda que de maneira “atenuada”, é a proibição de que o Poder Público

faça concorrência desleal para com o particular. Caso não houvesse objetivo de

lucro, haveria possibilidade dos preços praticados pelo Estado serem inferiores

aos praticados pela iniciativa privada. Em última instância, ao menos na teoria, a

empresa estatal deve perseguir resultado lucrativo como forma de preservar e

valorizar a iniciativa privada no respectivo setor produtivo.

Outra dificuldade existente em relação às sociedades de economia mista

diz respeito à determinação do regime jurídico a ser aplicado a elas.36 Não há um

conceito único dessa espécie de empresa estatal, motivo pelo qual, nesta tarefa

de determinar o regime jurídico aplicável, não poderemos nos valer de noções

32 LUCCA, Newton de. Regime jurídico da empresa estatal no Brasil. São Paulo: Tese, 1986. p. 120. 33 Sobre o poder de controle do Estado trataremos com mais minúcias no próximo item. 34 Esta afirmação de Newton de Lucca é importante para o deslinde do problema proposto neste estudo, já que indica que, na análise da possibilidade da utilização da recuperação judicial pela sociedade de economia mista, não se pode perder de vista o interesse público, que deve sempre prevalecer, segundo ele.

35 A possibilidade de obtenção de lucro é também um aspecto a ser analisado na terceira parte do trabalho, quando enfrentaremos o problema proposto propriamente dito, já que este fato aproxima a sociedade de economia mista da empresa privada. Além disto, se a sociedade de economia mista, em regra, pode e deve gerar lucros (inclusive em razão da presença do capital privado em sua composição), quer dizer que ela também pode entrar em estado de crise, o que ocorre quando as despesas são maiores que as receitas, podendo necessitar de um procedimento concursal para sanear-se.

36 Na determinação do Regime Jurídico aplicável está a grande chave para a solução do problema tratado neste estudo. Se o regime aplicável é de direito privado, a sociedade de economia mista pode se valer da recuperação de empresas. Se de direito público, não. No entanto, há ainda a possibilidade de determinação de um regime próprio, situado entre o público e o privado. Tudo isso será tratado detalhadamente na terceira parte do trabalho.

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conceituais. A saída, segundo Newton de Lucca37, está na observação

pragmática. Diz que não há regime jurídico único próprio das sociedades de

economia mista; o que ocorre é que, de acordo com as características de cada

sociedade, pragmaticamente observada em cada situação colocada, aplicar-se-á

um regime jurídico, ora de direito privado e ora de direito público.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro38, para a solução da questão, defende a

necessidade de se fazer distinção precisa entre as empresas estatais que

exercem atividade econômica de natureza privada e as que prestam serviço

público. Assim o faz a Constituição Federal. A exploração direta de atividade

econômica pelo Estado está regulamentada no art. 173 da CF; ali se permite suas

existências quando necessárias aos imperativos de segurança nacional e

relevante interesse coletivo. Mas o aspecto mais destacado do dispositivo está

previsto no § 1º: as sociedades de economia mista que explorem atividade

econômica estão sujeitas ao regime próprio das empresas privadas. Segundo

Maria Sylvia, a primeira conclusão que se extrai do § 1º do art. 173 “[...] é a de

que, quando o Estado, por intermédio dessas empresas, exerce atividade

econômica, reservada preferencialmente ao particular pelo caput do dispositivo,

ele obedece, no silêncio da lei, a normas de direito privado.”39 Portanto, a

aplicação das normas de direito privado seria a regra para as sociedades de

economia mista, ao passo que as de direito público seriam aplicadas apenas

subsidiariamente, como exceção.

Ainda segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro40, a empresa estatal (e

particularmente a sociedade de economia mista) que presta serviço público atua

como concessionária de serviço público, submetendo-se à norma do art. 175 da

CF41, particularmente no que se refere aos deveres perante os usuários, à política

tarifária e à obrigação de manter serviço adequado, devendo obedecer a todos os

princípios que regem a prestação de serviços públicos.42

37 LUCCA, Newton de. Regime jurídico da empresa estatal no Brasil. São Paulo: Tese, 1986. p. 141. 38 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2009. p. 443. 39 Ibid., p. 443. 40 Ibid., p. 444. 41 Diz o art. da Constituição: “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.”

42 Maria Sylvia Zanella Di Pietro resume todas estas informações da seguinte maneira: “A distinção ganha relevo em matéria de interpretação das leis. Quando se trata de atividade econômica exercida pelo Estado com fundamento no artigo 173, que determina a sujeição ao direito privado, este é que se aplicará, no silêncio da norma publicística; por outras palavras, presume-se a aplicação do regime de direito privado, só derrogado por norma expressa, de interpretação restrita.

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Em 1946, na Bélgica, quando da elaboração do anteprojeto de lei orgânica

das pessoas públicas paraestatais43 (nelas incluída a sociedade de economia

mista), decidiu-se que seriam pessoas de direito público, ainda que fossem

formadas por pessoas públicas e privadas e tivessem fim lucrativo. A elas não

seriam aplicadas as regras de direito privado, a não ser que suas leis orgânicas

assim o determinassem e que não houvesse incompatibilidade com a natureza

dessas associações.

De início, as sociedades de economia mista podiam ser minoritárias, nas

quais o Estado não chegava a deter 50% do capital, possuindo, portanto,

participação secundária; ou majoritárias, nas quais o Estado era detentor da

maioria das ações, participando da direção, fiscalização, vigilância e tutela da

sociedade. No entanto, após a reforma administrativa operada pelo Decreto-lei nº

200/1967, o ordenamento jurídico brasileiro passou a admitir apenas sociedades

de economia mista majoritárias, o que pode ser inferido claramente da redação do

inciso III do art. 5º do DL nº 200/1967.

A primeira sociedade de economia mista brasileira foi criada ainda no

período colonial: trata-se do Banco do Brasil.

Assim que se instalou no Brasil, fugindo da invasão de Portugal em 1807

pelas tropas napoleônicas, a Corte Portuguesa, representada pelo Príncipe

Regente, houve por bem fundar o Banco do Brasil. A intenção era a de facilitar a

realização dos fundos para manutenção da Monarquia.

Inicialmente, o fundo de capital do banco seria de dez mil e duzentas

ações, a serem subscritas pela iniciativa privada. Portanto, estava-se diante de

uma sociedade privada por ações, muito embora criada pelo rei. A condição para Quando, porém, o Estado fizer a gestão privada do serviço público, ainda que de natureza comercial ou industrial, aplicam-se, no silêncio da lei, os princípios de direito público, inerentes ao regime jurídico administrativo. [...] Cabe, portanto, ao intérprete, ao aplicar as leis, procurar a exegese que as torne compatíveis com os parâmetros que decorrem dos artigos 173 e 175 da Constituição.” DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2009. p. 444-445. Esta constatação de Maria Sylvia Zanella Di Pietro será de grande valia para o deslinde do problema proposto, pois ela leva à conclusão clara de que a recuperação judicial é aplicável à sociedade de economia mista que explora atividade econômica. Este posicionamento, aliás, é majoritário entre os poucos estudiosos que enfrentam a questão, como se demonstrará na terceira parte do trabalho.

43 Waldemar Ferreira conceitua pessoas públicas paraestatais da seguinte maneira: “[...] pessoas distintas do Estado e criadas pelos poderes públicos para a gestão dos serviços públicos nacionais, em sua organização e em seu funcionamento subtraídas ao conjunto das regras aplicáveis às administrações do Estado.” FERREIRA, Waldemar. A sociedade de economia mista em seu aspecto contemporâneo. São Paulo: Max Limonad, 1956. p. 53.

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34

início do funcionamento do banco era que ao menos cem ações fossem

subscritas. A administração da instituição ficaria a cargo de uma junta de

deputados, eleita pela assembléia geral de acionistas e confirmada por decreto do

Rei. A primeira junta foi nomeada por decreto real.

Em 22 de agosto de 1812 foi publicada uma carta régia através da qual a

Coroa deliberou entrar como acionista principal do banco.44 Não obstante, em

1821 o Príncipe Regente D. João VI retornou com a Corte para Portugal, levando

consigo todo o metal que o banco possuía em seus cofres. Instaurou-se, então,

uma crise, agravada pela independência em 1822, que culminou com a extinção

do banco em 1835.

Em 1853 o Governo Imperial criou um novo Banco do Brasil, com ações

subscritas pelo Governo e pelas Províncias, o que lhe concedeu, desde o início,

natureza de sociedade de economia mista, que é mantida imutável até os dias de

hoje.

Atualmente, no Brasil, a sociedade de economia mista mantém os traços

característicos de sua origem, ou seja: é pessoa jurídica de direito privado,

reveste-se da forma das empresas particulares, admite lucro e integra a

Administração Indireta do Estado.

São criadas com um dos seguintes objetivos: exercer atividade econômica

ou prestar serviço público. Edimur Ferreira de Faria45 diz que a sociedade de

economia mista não pode prestar serviço público, pois, “[...] do contrário, o capital

privado não teria interesse de participar desse ente público, considerando que ele

visa sempre o lucro”. Para o autor, o termo “serviço” utilizado no § 1º do art. 173

do Decreto-lei nº 200/1967 não se refere a serviço público, mas a “[...] atividade

econômica ao lado da atividade de produção e comercialização. Para a prestação

de serviços públicos pelo Poder Público deve ser criada autarquia ou fundação”

44 Segundo Waldemar Ferreira, a Coroa justificou a sua constituição como acionista do Banco do Brasil “[...] querendo auxiliar eficazmente o sobredito Banco, promover o concurso de novos acionistas particulares, assegurando-lhes vantajosos lucros dos seus cabedais no cofre do Banco, para que o fundo capital de um tão útil estabelecimento possa chegar a muito considerável grau de fôrça, de opulência e de crédito, como convém aos importantes fins de sua instituição.” Ibid., p. 90-91.

45 FARIA, Edimur Ferreira. Curso de direito administrativo positivo. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 91.

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35

José dos Santos Carvalho Filho46, por seu turno, diz que o termo “atividade

econômica” contido no art. 173 da CF é na verdade um gênero, do qual são

espécies os serviços públicos e as atividades econômicas em sentido estrito.

Assevera ser preciso observar, ainda, que há distinção entre serviços públicos

não-econômicos e serviços públicos econômicos, sendo estes últimos os que se

situam no âmbito das atividades econômicas.47

No caso de prestação de serviço público, a liberdade operacional da

sociedade de economia mista é ampla; já no caso de exercício de atividade

econômica, a sociedade de economia mista sujeita-se às normas aplicáveis às

empresas privadas congêneres e ao regime tributário comum, sendo dever do

Estado dar preferência e estimular a iniciativa privada no desempenho da

atividade econômica.

Cumpre ressaltar que nem todas as espécies de serviços públicos podem

ser exercidas pelas sociedades de economia mista, mas apenas aqueles que,

mesmo sendo prestados pelo Estado, poderiam o ser pela iniciativa privada.

Excluem-se os serviços próprios do Estado, como por exemplo, segurança

pública, ministração de justiça e defesa da soberania nacional.

Sabe-se ser da essência da sociedade de economia mista ter participação

do poder público e de particulares no seu capital e administração. Nela, conciliam-

se a estrutura de empresa privada com os objetivos de interesse público. Hely

Lopes Meirelles48 diz que vivem “[...] em simbiose o empreendimento particular

com o amparo estatal.” No entanto, ressalta que a participação do particular ou do

poder público não se restringe à participação financeira, pecuniária. Ela pode ser

também técnica, administrativa, científica ou cultural. O essencial é que haja a

associação de elementos do Estado com os dos indivíduos.

Há que se ressalvar que a simples participação do Estado em

empreendimento particular não o torna sociedade de economia mista. A

participação estatal deve ser ativa na vida e realização da empresa.

46 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009. p. 476.

47 A diferenciação entre sociedade de economia mista que presta serviço público e exerce atividade econômica é de vital importância para este estudo, pois, conforme já mencionado acima, muitos são os autores que entendem que a recuperação judicial é aplicável apenas às sociedades de economia mista exercentes de atividade econômica. Se o conceito de José dos Santos Carvalho Filho for tido como válido, a recuperação judicial pode se estender também para as sociedades de economia mista que prestem serviços públicos econômicos.

48 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 371.

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De acordo com o Decreto-lei nº 200/1967, em seu art. 4º, inciso II, alínea

“c”, a sociedade de economia mista terá sempre forma de sociedade anônima.

Trata-se de modelo societário obrigatório. Modesto Carvalhosa49 diz que, na

verdade, a sociedade de economia mista não se configura numa sociedade

anônima, mas sim como uma sociedade sui generis. Seria apenas formalmente

uma sociedade anônima, já que é pessoa jurídica de direito público. Essa posição

não encontra ressonância na doutrina.

Como sociedade anônima, a sociedade de economia mista submete-se ao

regramento da Lei nº 6.404/1976, como, aliás, reza o art. 235: “As sociedades

anônimas de economia mista estão sujeitas a esta Lei, sem prejuízo das

disposições especiais de lei federal.”50 Também no que se refere à fiscalização e

controle pela Comissão de Valores Imobiliários (CVM) quando cabível, consoante

dispõe o § 1º. Daí dizer Modesto Carvalhosa51 que a disposição reveste-se de

extrema importância na medida em que evita que o poder público, invocando o

interesse público, possa tentar transgredir as regras criadas pela CVM.52

Qualquer esfera de governo pode constituir sociedade de economia mista.

Assim, a União, os estados e os municípios53 podem ter suas sociedades de

49 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 4. p. 350.

50 Este dispositivo é mais um indício de que a Lei 11.101/2005, mais especificamente a sistemática de recuperação de empresas, pode ser aplicada à sociedade de economia mista. Ora, se não há óbice a que a Lei das Sociedades Anônimas (típica norma de direito privado) seja aplicada às sociedades de economia mista, pelo contrário, há expressa determinação neste sentido, porque haveria problemas em se aplicar a Lei nº 11.101/2005 às sociedades de economia mista?

51 Ibid., p. 353. 52 Modesto Carvalhosa cita como exemplo o episódio ocorrido nos anos 70 com a Vale do Rio Doce, que teria praticado uma série de graves irregularidades em transações especulativas, tentando justificar estas condutas invocando o inadiável e relevante interesse público. Infelizmente, à época, a CVM se omitiu na apuração dos fatos e o Ministério Público não invocou o dispositivo em questão. Ibid., p. 353.

53 Antes da Constituição Federal promulgada em 1.988 muito se discutia a respeito da necessidade de lei autorizadora para criação de sociedades de economia mista nos âmbitos estaduais e municipais. É que o Decreto-lei nº 200/67 dirige à União, não aos estados e municípios. Com a nova Carta, a celeuma restou superada. Foram incluídos dispositivos (incs. XIX e XX do art. 37) dispondo sobre a necessidade de prévia autorização legislativa, de modo a atingir todas as esferas da administração pública (União, estados e municípios).

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economia mista, criadas sempre por meio de lei específica que autoriza54 o

Estado a associar-se com o particular para instituir sociedade com vistas ao

cumprimento de de determinado objeto. Por lei específica deve-se entender

aquela editada com a finalidade exclusiva de criar a pessoa jurídica. A exigência

constitucional de que a sociedade de economia mista seja autorizada por lei é

inspirada na necessidade de participação do Poder Legislativo no processo de

nascimento dessas pessoas jurídicas, de modo a evitar por parte do Poder

Executivo abuso na criação desses entes da administração descentralizada.

A lei instituidora é que fixa o objetivo da sociedade de economia mista,

objetivo este que sempre deverá ser obedecido.55 Maria Sylvia Zanella Di Pietro56

observa que “[...] se a lei as criou, fixou-lhes determinado objetivo, destinou-lhes

um patrimônio afetado a esse objetivo, não pode a entidade, por sua própria

vontade, usar esse patrimônio para atender a finalidade diversa.”

A criação mediante autorização legal é traço distintivo fundamental das

sociedades de economia mista. O Supremo Tribunal Federal (STF) utiliza-se

desse critério para identificar a natureza da sociedade de economia mista.57

Como para a criação depende-se de lei, também a extinção de sociedade

de economia mista fica na dependência de ato legislativo. Isto significa dizer que o

Poder Executivo, além de não ter poderes para instituir sociedades de economia

mista, também não os tem para dar fim a elas. A justificativa para tanto está na

teoria da simetria, “[...] isto é, se a própria Constituição exige que a autorização

criadora se faça através de lei, é evidente que somente ato desta natureza será

legítimo para extingui-la.”58

54 Observa-se que a lei não cria a sociedade de economia mista, limitando-se a autorizar sua constituição, que se dará por procedimento inerente a qualquer sociedade anônima (estatutos, registro etc.).

55 Diz o art. 237 da Lei nº 6.404/1976: “A companhia de economia mista somente poderá explorar empreendimentos ou exercer as atividades previstas na lei que autorizou a sua constituição”.

56 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2009. p. 448. 57 Diz Odete Medauar: “A instituição mediante autorização de lei configura elemento fundamental à identificação da entidade como sociedade de economia mista. Esse é o entendimento decorrente de acórdãos do STF, exemplificados nos seguintes: RE 91.035, 1979, ementa: “Sociedade de economia mista. Com ela não se confunde a sociedade sob controle acionário do poder público. É a situação especial que o Estado se assegura, através da lei criadora da pessoa jurídica que a caracteriza como sociedade de economia mista”; RE 92.327, 1980, ementa: “Sociedade de economia mista. Ainda quando se trate de sociedade de economia mista estadual, é requisito essencial à sua constituição a criação por lei.” MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006. p. 91

58 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009. p.474.

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Os atos constitutivos devem ser registrados na Junta Comercial, a partir do

que passa a ter existência legal e adquire personalidade jurídica própria (art. 45

do Código Civil). Ressalte-se que a personalidade jurídica da sociedade de

economia mista não se confunde com a do ente da administração direta a que se

vincula (União, estado ou município).59 É sujeito de direitos e encargos por si

própria, realizando atividades e atos no mundo jurídico em seu próprio nome.

As sociedades de economia mista podem instituir subsidiárias, que serão

controladas e geridas por ela, com o objetivo de que se dediquem a um ou mais

dos seus segmentos específicos. A sociedade de economia mista que instituiu a

subsidiária será chamada de primária.

A criação das subsidiárias também depende de autorização legislativa. No

entanto, é possível que a lei autorizadora da empresa primária já autorize, desde

logo, futura instituição de subsidiárias, antecipando o objeto a que se destinarão.

Em regra, a empresa primária contará com a participação de acionistas da

iniciativa privada no capital da subsidiária, mantendo para si a maioria do capital

votante. Pode se dar a existência de subsidiária integral, que é aquela cujo único

acionista é a empresa primária (art. 251 da Lei nº 6.404/1976).

As pessoas contratadas pela sociedade de economia mista para nela

trabalharem são consideradas empregados públicos, sendo regidos pelas regras

da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e estando vinculadas ao Regime

Geral de Previdência Social. A admissão de pessoal nas sociedades de economia

mista depende de prévio concurso público, ante o que dispõe o inc. II do art. 37

da Constituição Federal. O regramento, nesse ponto, segue as normas de direito

público, sem que estejam dispensadas dos rigores da legislação trabalhista

comum.

Os litígios decorrentes da relação de trabalho entre o empregado público e

a sociedade de economia mista serão dirimidas pela Justiça do Trabalho, por

força do disposto no inc. I do art. 117 da Constituição Federal.

Os empregados públicos não podem acumular seus empregos com cargos

ou funções públicas; são equiparados a funcionários públicos para fins penais

59 Este fato também é importante na determinação da possibilidade de utilização da sistemática de recuperação de empresas pela sociedade de economia mista, porque significa que, caso tal seja admitido, a pessoa jurídica de direito público interno não terá qualquer participação no procedimento. Se assim não o fosse, parece-nos que admitir que a sociedade de economia mista se utilizasse da recuperação de empresas seria um tanto quanto absurdo.

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(art. 327 do Código Penal); e são considerados agentes públicos para os fins de

incidência de sanções nas hipóteses de improbidade administrativa, previstas na

Lei nº 8.429/1992.

Os diretores são escolhidos em assembléia geral de acionistas e

geralmente são nomes de confiança do Chefe do Poder Executivo, como

resultado do poder de controle inerente à maioria do capital pertencente ao Poder

Público.

Também é relevante a distinção relativa aos bens que integram o

patrimônio da sociedade de economia mista.

José dos Santos Carvalho Filho60 diz que, a partir do momento em que os

bens que comporão o patrimônio da sociedade de economia mista são

transferidos da esfera da pessoa federativa instituidora, deixam de ser bens

públicos e passam a ser bens privados, não gozando mais das prerrogativas

atribuídas aos primeiros, destacadamente a imprescritibilidade, a

impenhorabilidade e a alienabilidade condicionada.

Esse pensamento não é unânime. Maria Sylvia Zanella Di Pietro61 entende

que os bens das sociedades de economia mista destinados à prestação de

determinado serviço público são bens públicos de uso especial ou com destinação

especial, merecendo gozar de proteção especial. Isto por força dos princípios

constitucionais aplicáveis à administração pública, especialmente o da

continuidade dos serviços públicos. Assim, muito embora a sociedade de

economia mista que presta serviço público tenha personalidade jurídica de direito

60 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009. p. 485.

61 Diz Maria Sylvia sobre o assunto: “Com relação às entidades da Administração Indireta com personalidade de direito privado, grande parte presta serviços públicos; desse modo, a mesma razão que levou o legislador a imprimir regime jurídico publicístico aos bens de uso especial, pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno, tornando-os inalienáveis, imprescritíveis, insuscetíveis de usucapião e de direitos reais, justifica a adoção de idêntico regime para os bens de entidades da Administração Indireta afetados à realização de serviços públicos. É precisamente essa afetação que fundamenta a indisponibilidade desses bens, com todos os demais corolários. [...] É sabido que a Administração Pública está sujeita a uma série de princípios, dentre os quais o da continuidade dos serviços públicos. Se fosse possível às entidades da Administração Indireta, mesmo empresas públicas, sociedades de economia mista e concessionárias de serviços públicos, alienar livremente esses bens, ou se os mesmos pudessem ser penhorados, hipotecados, adquiridos por usucapião, haveria uma interrupção do serviço público.” DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2009. p. 460.

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privado, os seus bens vinculados à prestação de serviços não podem ser objeto

de penhora.62

Essa parece ser também a posição do Supremo Tribunal Federal (STF)63,

que já decidiu no sentido de que os bens das empresas estatais de direito privado

prestadoras de serviço público são impenhoráveis, estando submetidas suas

dívidas ao regime de precatório de que trata o art. 100 da Constituição Federal.64

A administração da sociedade de economia mista se assemelha à das

sociedades anônimas abertas. Por força do disposto no art. 239 da Lei nº

6.404/1976, terá obrigatoriamente Conselho de Administração, além de Diretoria,

consistindo em administração dual tal como nas sociedades anônimas de capital

aberto e nas de capital autorizado (art. 138, § 2º). Cabe à minoria o direito de

eleger pelo menos um dos conselheiros. Os administradores da sociedade de

economia mista terão os mesmos direitos e deveres dos administradores das

sociedades anônimas de capital aberto (parágrafo único do art. 129).

Deve ainda a sociedade de economia mista manter sob permanente

funcionamento seu Conselho Fiscal65; um de seus membros e respectivo suplente

deve ser eleito pelos acionistas minoritários detentores de ações ordinárias, e

outro pelos portadores de ações preferenciais se houver ações dessa classe.66

Afora as especificidades mencionadas, aplicam-se ao Conselho de

Administração e ao Conselho Fiscal todas as demais disposições da Lei nº

6.404/1976 referentes às sociedades anônimas.

1.4 A Questão do Poder de Controle

62 Eis mais um ponto a ser levado em conta na solução do problema proposto neste estudo: a natureza dos bens que compõem o patrimônio da sociedade de economia mista.

63 RE 220906-DF, Relator Min. Mauricio Correa, julgamento: 16-11-200, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Publicação DJ 14-11-2002, PP-00015.

64 Art. 100. “Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para esse fim.”

65 Nas demais sociedades anônimas, o Conselho Fiscal não é obrigatoriamente permanente, conforme art. 16 da Lei 6.404/76: “A companhia terá um Conselho Fiscal e o estatuto disporá sobre o seu funcionamento, de modo permanente ou nos exercícios sociais em que for instalado a pedido dos acionistas.”

66 Diz o art. 240 da Lei 6.404/1976: “O funcionamento do conselho fiscal será permanente nas companhias de economia mista; um dos seus membros, e respectivo suplente, será eleito pelas ações ordinárias minoritárias e outro pelas ações preferenciais, se houver.”

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Como visto, a sociedade de economia mista obrigatoriamente reveste-se

da forma de sociedade anônima e, como tal, sofre incidência das regras relativas

ao poder de controle.

Criada para normatizar o funcionamento orgânico das sociedades

anônimas, a Lei nº 6.404/1976 traz disposições relevantes acerca do poder de

controle. Assim, no art. 116 diz que acionista controlador é a pessoa natural ou

jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de votos, ou sob controle

comum, cujas ações lhe garantem maioria permanente de votos nas assembléias-

gerais podendo, portanto, decidir sozinho sobre as deliberações de competência

deste órgão, como por exemplo, a nomeação dos administradores.

Insta salientar, porém, que a detenção do poder de controle não significa

necessariamente que o controlador detenha a maioria das ações da companhia

com direito de voto. Atuam diversos instrumentos de organização do poder de

controle. Estão à mercê do empreendedor, por exemplo, a emissão de ações

preferenciais (sem direito de voto) no limite legal, qual seja, 50% do total das

ações formadoras do capital da sociedade. Essa atitude excluirá metade dos

sócios das deliberações sociais, sendo que se o empreendedor subscrever algo

como 26% das ações ordinárias já se tornará o controlador da sociedade.

Logo, é de se inferir que os acionistas controladores detêm prerrogativas

bastante amplas. São os responsáveis pela direção e orientação da sociedade.

Assim, o sucesso do empreendimento em muito depende da pessoa do

controlador, não só porque esse decidirá sobre seu destino como também porque

atuará como responsável pela atração ou não de mais investidores, melhorando

sua aceitação perante o Mercado na obtenção de recursos para investimentos.

Existem regras peculiares no que se refere ao poder de controle nesse tipo

de sociedade em que o controlador é o Estado. Assim, o art. 238 da Lei nº

6.404/1976 prevê que a pessoa jurídica que controla sociedade de economia

mista tem os mesmos direitos e responsabilidades do acionista controlador de

companhia comum, remetendo aos arts. 116 e 117. Não obstante, o mesmo

dispositivo (art. 238) ressalta que o controlador de sociedade de economia mista

“[...] poderá orientar as atividades da companhia de modo a atender ao interesse

público que justificou a sua criação.”

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A disposição legal tem sido alvo de críticas. Modesto Carvalhosa67,

comentando-o, diz que “[...] o legislador de 1976, ao procurar regular o que não

era de sua alçada, cometeu erros de técnica jurídica, demonstrando açodamento

no trato do assunto.”

A principal questão que se levanta diz respeito ao emprego do termo

“poderá”, quando se refere à orientação das atividades da sociedade de economia

mista de modo a atender ao interesse público, eis que dá a entender ser uma

faculdade da pessoa do controlador da sociedade de economia mista, quando,

em verdade, trata-se de um dever. Lembre-se que para autorizar a criação de

uma sociedade de economia mista o Estado deve ter razões de interesse geral a

preservar.

Modesto Carvalhosa68 anota, ainda, que este equívoco foi reafirmado na

Exposição de Motivos de 197669: “O Estado não pode ser compelido a compor

prejuízos por ter atendido às razões de Estado. As razões de agir do Poder

Público não podem ser consideradas atos ilícitos e fundamento de ressarcimento

por danos.”70

Portanto, a pessoa jurídica eventualmente controladora da sociedade de

economia deve sempre visar o interesse público. Mais ainda, o interesse público

primário, que consiste no interesse da coletividade, e não o secundário, que se

refere ao interesse do próprio Estado. Disso resulta que a utilização da sociedade

de economia mista para atendimento de interesses do Estado e de seus agentes

configura abuso de poder do controlador. Há, nesse caso, desvio de poder.

No mais, a sociedade de economia mista não pode ter, conforme já

discutido alhures, fim imediato de lucro. O seu objetivo principal deve ser o

atendimento ao interesse público, o que já é de conhecimento do ente privado

que opta por investir na sociedade. Se assim o é, ou seja, se o particular que

investe em sociedade de economia mista tem conhecimento prévio de que o seu

fito principal não é obtenção de lucro, não há que se falar em conflito entre os

interesses do Estado e os interesses dos acionistas minoritários privados. 67 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 4. p. 400.

68 Ibid., p. 400. 69 Ibid. Consta da aludida Exposição de Motivos: “O art. 238 reconhece que o acionista controlador da companhia mista (o Estado, que, por definição, não visa lucro na sua atividade) possa ter razões de agir em detrimento da companhia, hipótese em que deverá compor os prejuízos que causar aos acionistas minoritários.”

70 Ibid., p. 400.

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Assim, o controlador deve ser responsabilizado quando encaminha a

sociedade de economia mista para a prestação de serviços de interesse público

secundário ou para objetivos do mercado.71

Lembra-se que, além dessas duas formas de abuso de poder, o

controlador também incorrerá em conduta condenável quando praticar uma das

ações previstas no art. 117 da Lei nº 6.404/197672, visto que o art. 238, ao tratar

do poder de controle, remete àquele dispositivo.

O parágrafo único do art. 236 da Lei nº 6.404/1976 também trata de

questão relacionada ao poder de controle das sociedades de economia mista,

mais especificamente da hipótese em que o Poder Público adquire o controle de

companhia já em funcionamento por meio de desapropriação. Segundo o

dispositivo, quando tal ocorrer, os demais acionistas terão o direito de pedir, no

prazo de 60 dias contado a partir da publicação da primeira ata da assembléia

geral realizada após a aquisição do controle, o reembolso de suas ações. Não se

71 Por isso, na determinação da possibilidade ou não de utilização da sistemática de recuperação judicial pelas sociedades de economia mista, não se pode perder de vista a defesa dos interesses públicos, pois, se assim não o for, estar-se-á desvirtuando a essência da sociedade de economia mista, o que poderia gerar, até mesmo, a punição do controlador.

72 Art. 117. O acionista controlador responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder. § 1º São modalidades de exercício abusivo de poder: a) orientar a companhia para fim estranho ao objeto social ou lesivo ao interesse nacional, ou levá-la a favorecer outra sociedade, brasileira ou estrangeira, em prejuízo da participação dos acionistas minoritários nos lucros ou no acervo da companhia, ou da economia nacional; b) promover a liquidação de companhia próspera, ou a transformação, incorporação, fusão ou cisão da companhia, com o fim de obter, para si ou para outrem, vantagem indevida, em prejuízo dos demais acionistas, dos que trabalham na empresa ou dos investidores em valores mobiliários emitidos pela companhia; c) promover alteração estatutária, emissão de valores mobiliários ou adoção de políticas ou decisões que não tenham por fim o interesse da companhia e visem a causar prejuízo a acionistas minoritários, aos que trabalham na empresa ou aos investidores em valores mobiliários emitidos pela companhia; d) eleger administrador ou fiscal que sabe inapto, moral ou tecnicamente; e) induzir, ou tentar induzir, administrador ou fiscal a praticar ato ilegal, ou, descumprindo seus deveres definidos nesta Lei e no estatuto, promover, contra o interesse da companhia, sua ratificação pela assembléia-geral; f) contratar com a companhia, diretamente ou através de outrem, ou de sociedade na qual tenha interesse, em condições de favorecimento ou não equitativas; g) aprovar ou fazer aprovar contas irregulares de administradores, por favorecimento pessoal, ou deixar de apurar denúncia que saiba ou devesse saber procedente, ou que justifique fundada suspeita de irregularidade. h) subscrever ações, para os fins do disposto no art. 170, com a realização em bens estranhos ao objeto social da companhia. (Incluída dada pela Lei nº 9.457, de 1997). § 2º No caso da alínea e do § 1º, o administrador ou fiscal que praticar o ato ilegal responde solidariamente com o acionista controlador. § 3º O acionista controlador que exerce cargo de administrador ou fiscal tem também os deveres e responsabilidades próprios do cargo.

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aplica a regra se a companhia já se encontrava sob o controle, direto ou indireto,

de outra pessoa de direito público ou se se tratar de concessionária de serviço

público.

Trata-se de direito dado ao acionista privado de retirar-se da sociedade que

passou ao controle do Poder Público, pois essa, daí em diante, não mais terá

como objetivo primordial a obtenção de lucro.

Vistas essas linhas gerais sobre empresas estatais, importa conhecer as

disposições da recente Lei nº 11.101/2005 acerca da recuperação judicial de

empresas, e decidir sobre a aplicabilidade ou não às sociedades de economia

mista.

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CAPÍTULO 2 ASPECTOS GERAIS DA LEI Nº 11.101/2005 E A SISTEMÁTICA

DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS

2.1 Desenvolvimento Histórico

A primeira manifestação do que se convencionou chamar na modernidade

de direito falimentar se deu no Direito Romano. Naquela época, já se observavam

formas de execução contra devedores insolventes. Inicialmente as execuções

tinham por alvo o próprio corpo do devedor. A Lei das XII Tábuas, datada de 451

a.C., permitia a divisão do corpo do devedor em tantos pedaços quantos fossem

os credores.73 Em razão da evidente crueldade, execuções dessa espécie eram

repudiadas pelos costumes públicos. De fato, na época, a preferência dos

credores era pela venda do devedor como escravo e consequente divisão do

produto da venda entre eles. Havia, ainda, a possibilidade de que o devedor se

tornasse escravo do credor, prestando-lhe serviços nessa qualidade até a

satisfação total da dívida. Era o chamado contrato nexum.

Em qualquer das hipóteses de execução mencionadas, o que se verificava era

o processamento sobre o corpo do devedor, seja através do sacrifício da própria vida

deste ou de sua liberdade, ainda que o mesmo possuísse bens suficientes para saldar

a dívida. A garantia única dos credores era a própria pessoa do devedor. Não

obstante, essa realidade passa a sofrer um processo de gradativa transformação.

O procedimento executório sobre o corpo do devedor deixa de ser permitido e

passa a ceder espaço à execução sobre o patrimônio do devedor.74

73 Tal previsão constava na Tábua Terceira, nº 9, no seguinte sentido: “Se são muitos os credores, é permitido, depois do terceiro dia de feira, dividir o corpo do devedor em tantos pedaços quantos sejam os credores, não importando cortar mais ou menos; se os credores preferirem, poderão vender o devedor a um estrangeiro, além do Tibre.”

74 Obviamente, esta transformação do foco da execução representa um avanço, pois inadmissível o sacrifício da vida e da liberdade como forma de pagamento de dívidas. Tal é inimaginável no atual estágio do Direito, que tanto privilegia, com acerto, o princípio da dignidade da pessoa humana. Em nosso ordenamento prevalece a prisão civil apenas em caso de não pagamento de pensões alimentícias, tendo a prisão do depositário infiel sido considerada ilícita pelo Supremo Tribunal Federal que, em dezembro/2009, editou a Súmula Vinculante nº 25, in verbis: “É ilícita a prisão civil do depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.” A prisão civil do devedor de alimentos prevalece ao argumento de que, no sopesamento dos interesses conflitantes, como ensina Robert Alexy, na sua Teoria dos Direitos Fundamentais, deve prevalecer o do menor alimentado, que tem maior peso neste caso concreto. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 25. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito. Sessão Plenária de 16/12/2009. DJe nº 238 de 23/12/2009, p. 1. DOU de 23/12/2009, p. 1. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=25.NUME. E S.FLSV.&base=baseSumulasVinculantes>. Acesso em: jul. 2011.

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É nessa época, mais especificamente em 428 a.C., que surge a famosa

Lex Paetelia Papiria75, que proibiu expressamente a morte ou venda para

escravização do devedor, como forma de pagamento de dívidas.

A partir dessa nova perspectiva, o Direito Falimentar começa a evoluir. O

pretor Rutilio Rufo instituiu o bonorum venditio, meio através do qual se fazia a

execução forçada das sentenças condenatórias que tinham por base o

pagamento de certa soma em dinheiro.76

Depois, em 737 a. C., foi instituída a Lex Julia Bonorum, que criou a cessio

bonorum, que facultava ao devedor a cessão de seus bens ao credor, que podia

vendê-los separadamente. Com isto, a pessoa do devedor, e consequentemente

a sua capacidade patrimonial, era subtraída das consequências da quebra.

Segundo Rubens Requião, tratava-se de uma modalidade “[...] destinada ao

devedor infeliz, cuja impossibilidade de pagar não advinha de truculência ou

improbidade, mas do infortúnio em seus negócios.”77 Estariam, pois, lançadas as

sementes da falência.

No Direito Romano, o procedimento executório sempre foi marcado por um

caráter repressivo, de cunho marcadamente penal. O devedor era considerado

infame, e sofria uma série de restrições e humilhações.

Já na Idade Média, o Direito Falimentar sofre uma nova mudança de

rumos, dessa vez no que tange à iniciativa da execução que, até então, cabia aos

próprios credores, que dirigiam o concursum creditorum sem qualquer ingerência

externa. Neste estágio, a execução de mão própria foi proibida, e o processo

executório passou a ser feito exclusivamente sob a tutela estatal, seguindo a

rígida disciplina judiciária do Estado.

75 O mestre Carvalho de Mendonça assim dispõe sobre a Lex Paetelia Papiria: “Com o andar dos tempos, esse rigor foi modificado já pela lei Paetelia Paipiria, que, no dizer do grande TITO LIVIO, inaugurou nova éra da liberdade, velut aliud initium libertatis (Historia romana, Liv. VIII, C. XXVIII), já pela influencia do direito pretoriano. Veio, desde então, a execução real sobre os bens do devedor, o systema da execução patrimonial, a qual sómente teve verdadeiro desenvolvimento depois que a Lei AEbutia derrocou as actiones legis, substituindo-as pelo systema formular.” MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de direito comercial brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1937. v. 1. p. 14.

76 Rubens Requião assim caracteriza o bonorum venditio “Com esse sistema os bens do executado eram alienados a uma pessoa, considerada por ficção semelhante ao sucessor-herdeiro, que recebendo-os se obrigava a pagar aos credores, oferecendo-lhes um determinado rateio, em percentual, para satisfação dos créditos.” REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. v. 1. p. 7.

77 Ibid., p. 9.

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À época, o direito falimentar estendia-se tanto ao devedor comercial quanto

ao devedor civil, e prevalecia a discriminação do falido (que era tido como

fraudador e réprobo social) e o caráter penal da falência, já que o falido estava

sujeito à severas medidas penais.78

Já se verificava a divisão entre execução singular, aquela promovida por

apenas um credor, e coletiva, a promovida por vários, que é a precursora do

processo de falência e que prevalecia nas cidades italianas do norte (Florença,

Veneza, Milão e Gênova), em razão da intensidade do comércio ali estabelecido.

O direito francês da época foi fortemente influenciado pelas ideias surgidas

nessas cidades, dado o intenso fluxo de comércio estabelecido entre essas e a

França.79

Um outro marco da história do Direito Falimentar reside na Revolução

Francesa e na promulgação, em 1807, do Código Comercial francês (Code de

Commerce), que consagrou a falência como instituição exclusivamente comercial.

Mas foi com o fim do período napoleônico, mais especificamente em 1832,

sob a inspiração de ideias humanistas e liberais, que a severidade no tratamento

com o devedor faltoso foi diminuída, e a falência assumiu contornos mais

próximos da realidade atual.

No Brasil, em razão do colonialismo, vigorou por muito tempo a legislação

portuguesa. Quando do descobrimento (1500), vigoravam em Portugal, desde

1447, as Ordenações Afonsinas, que passaram, então, a viger no Brasil também.

As Ordenações Afonsinas não cuidavam especificamente da quebra do

comerciante, o que só se verificou nas Ordenações Filipinas, de 1603. No entanto,

elas disciplinavam o concurso de credores, estabelecendo prioridades ao credor

que tomasse a iniciativa da execução, prevendo, ainda, a pena de prisão por

inexistência de bens.

78 Fábio Konder Comparato, em sua obra “Aspectos Jurídicos da Macro-empresa”, assim dispõe: “Como é sabido, a insolvabilidade de um mercador, nos estatutos corporativos medievais, não dava apenas ensejo à apuração de crimes praticados pelo falido. Ela era em si mesma um crime.” COMPARATO, Fábio Konder. Aspectos jurídicos da macro-empresa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970. p. 95.

79 MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de direito comercial brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1937. v. 1. p. 19, anota o seguinte: “A França, nos seculos XVII e XVIII, antes de qualquer outra nação, recebeu dos italianos as leis que estes haviam estabelecido em beneficio do commercio. Foi principalmente por Lyon, diz Renouard, que os costumes commerciaes da Italia se introduziram na França, e que o direito italiano sobre fallencias dominou nos usos do commercio francez até á época em que a ordenança de 1673 os reuniu.”

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Mas isto dura pouco, pois em 1521 as Ordenações Afonsinas dão lugar às

Ordenações Manuelinas, instituídas pelo Rei D. Manoel, o Venturoso, que já

ocupava o trono por ocasião do descobrimento do Brasil. Essas Ordenações

tinham traços medievais, pois permitiam a prisão do devedor até o integral

pagamento da dívida.80 Prevalecia, ainda, o princípio da prioridade do direito do

primeiro exequente.

Em 1603, são instituídas em Portugal as Ordenações Filipinas, sob o

comando de D. Filipe da Espanha, em Portugal conhecido como Filipe I. Nessa

época, Portugal estava submetido ao Reino de Castela. Portanto, muito embora

as Ordenações Filipinas fossem de origem espanhola, foram, igualmente,

aplicadas no Brasil. Trata-se de um período importante da história brasileira, pois

foi nele que ocorreu o florescimento da Colônia e o início da atividade mercantil,

ainda que bastante incipiente. As Ordenações Filipinas consagraram, pela

primeira vez entre nós, a falência dos comerciantes, distinguindo entre os que

caíam em pobreza sem culpa, dolo ou malícia, que não incorriam em penas

criminais, e os que agiam de má-fé e com desonestidade.

Mas foi em 13 de novembro de 1756 que o Brasil assistiu à promulgação

do primeiro instrumento jurídico da sua história deveras relevante no que tange ao

Direito falimentar. Trata-se do Alvará de Marquês de Pombal, que efetivamente

institui no país um autêntico processo de falência, aplicável exclusivamente à

comerciantes, mercadores e homens de negócio.81

80 Quanto ao tema, Rubens Requião faz a seguinte observação: “Tornando-se insolvente o devedor, ou quebrado na linguagem manoelina, não se podia fazer nenhuma diligência, execução ou penhora, no período de um mês. O devedor era preso: “E sendo o devedor condenado por sentença que passe em julgado”- determinava a Ordenação – “faça-se em seus bens execuçam e nom lhe achando bens que bastem para a dita condenaçam, em tal caso deve o dito devedor seer preso e tendo na cadea atee que pague o em que for condenado”. Era-lhe facultado, contudo, fazer a cessão de bens para evitar o encarceramento.” REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. São Paulo: Saraiva, 1995. v. 1. p. 14.

81 Amador Paes de Almeida assim descreveu o procedimento de falência previsto no Alvará de 13 de novembro de 1.756: “Impunha-se ao falido apresentar-se à Junta do Comércio, perante a qual “jurava a verdadeira causa da falência”. Após efetuar a entrega das chaves “dos armazéns das fazendas”, declarava todos os seus bens “móveis e de raiz”, fazendo entrega, na oportunidade, do Livro Diário, no qual deveriam estar lançados todos os assentos de todas as mercadorias, com a discriminação das despesas efetuadas. ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 6. Ultimado o inventário dos bens do falido, seguir-se-ia a publicação de edital, convocando os credores. Do produto da arrecadação, dez por cento eram destinados ao próprio falido para o seu sustento e de sua família, repartindo-se o restante entre os credores. Fraudulenta que fosse a falência, era decretada a prisão do comerciante, seguindo-se-lhe o processamento penal”.

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Tal Alvará tinha nítida influência das Ordenações Francesas e Espanholas,

muito embora como maior simplicidade se comparado a elas.82

O Alvará de Marquês de Pombal vigorou até 24 de junho de 1850, já que

em 25 de junho de 1850 foi promulgada a Lei nº 556, conhecida como Código

Comercial brasileiro, inspirado no Código Comercial francês. Insta salientar que

mesmo com a independência do Brasil em 1822, durante certo período, as leis

portuguesas continuaram a vigorar aqui, por força da lei de 20 de outubro de

1823, que assim o determinou. Vigorou então, por certo período, o Alvará de 18

de agosto de 1769, conhecido como Lei da Boa Razão, que determinava a

aplicação subsidiária das leis das nações civilizadas.

Muito embora o Brasil já tivesse um Código Comercial próprio, em razão

das disposições da Lei da Boa Razão, o Código Comercial francês passou a ser

largamente observado no Brasil, o que explica a grande influência do direito

francês no direito comercial brasileiro, sem olvidarmos a influência italiana, que,

em verdade, também se fazia presente na França. De fato, o direito italiano sobre

falências dominou os usos e costumes do comércio francês até 1673, quando as

Ordenações de Savary os reuniu.

O Código Comercial brasileiro regulamentava a matéria falimentar em sua

Parte III, denominada “Das Quebras”, que englobava do art. 797 ao 913. O

processo falimentar instituído era lento e complicado, desaguando, quase sempre,

na ruína do devedor e no sacrifício dos credores, muito embora estes gozassem

de grande autonomia (ao juiz restava apenas o papel de homologador das

decisões dos credores) e tivessem os seus interesses super-protegidos pela lei.

Tratava-se, portanto, de um processo totalmente ineficiente, tanto que já em 1860

e 1864, surgiram legislações de emergência para regular a falência dos bancos de

circulação e de companhias ou sociedades anônimas.

82 Esta afirmação é de Waldemar Ferreira: “Como se vê, instaurou-se em Portugal originalíssimo e autêntico processo de falência, nítida e acentuadamente mercantil, em juízo comercial, exclusivamente para comerciantes, mercadores ou homens de negócios, sob a influência, por certo, mas com mais simplicidade, e com maior espírito de humanidade, que o das Ordenações do Comércio da França, de 1678, e o das Ordenações da Universidade e Casa de Contratação da Vila de Bilbao, de 1737.” FERREIRA, Waldemar. Tratado de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1965. v. 14. p. 29.

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O fato é que a necessidade de reforma era evidente, o que desaguou na

promulgação da Lei nº 3.065/1879.83

A Lei 3.065, de 06 de maio de 1879, estabeleceu modificações importantes

no Código Comercial brasileiro. A primeira delas foi a introdução do instituto da

concordata preventiva. A segunda foi a instituição da concordata por abandono, o

que se deu através da alteração da redação dos arts. 844 e 845.

Após isto, vieram algumas outras alterações introduzidas pelos Decretos

nº 3.308 e 3.309 de 1864, posteriormente revogados pelo Decreto nº 3.516, de

30 de setembro de 1865, todos de somenos importância para o escopo deste

trabalho.

Aos 15 de novembro de 1889 foi proclamada a República no Brasil, dando

início ao chamado Período Republicano, durante o qual se observou uma intensa

produção legislativa em matéria falimentar. Já em 1890, mais especificamente no

dia 24 de outubro, foi promulgado o Decreto nº 917, conhecido por Lei Carlos

Augusto de Carvalho84, de inspiração suíça, que representou um grande impulso

para o direito falimentar brasileiro, especialmente porque, a partir daí, o estado de

falência passou a ser caracterizado por meio de critérios objetivos, previstos em

lei, como a impontualidade; e porque introduziram em nosso ordenamento os

meios preventivos de decretação da falência, tais como a moratória, a cessão de

bens e o Acordo Preventivo.

Não obstante, apesar dos avanços que representou, o Decreto nº 917/1890

caiu em descrédito, especialmente em razão da dificuldade econômica observada

no país; da autonomia excessiva concedida aos credores; e da prática de fraudes

por parte dos devedores, que viam nos meios preventivos instituídos apenas uma

forma de, indevidamente, livrarem-se da decretação da falência. Diante deste

quadro, os próprios comerciantes, que inicialmente haviam recebido bem a Lei

83 Waldemar Ferreira discorre muito claramente acerca da crise do Código Comercial de 1.850: “Não se mostrou o código, seu regulamento muito menos, adequado às necessidades da prática mercantil brasileira. [...] A crise de 1864, provocada pela quebra do banqueiro Souto, no Rio de Janeiro, mostrou a ineficiência do sistema falimentar brasileiro. De todos os pontos do país reclamava-se legislação nova, que pusesse o crédito mercantil a salvo. Ministro da Justiça, tomou Nabuco de Araújo, em 1º de junho de 1866, a iniciativa de reformar o processo de falência. O de 1850, acolhido pelo comércio com esperanças, demonstrou-se, com o tempo, lento, complicado, dispendioso, a importar sempre na ruína do falido e no sacrifício dos credores.” FERREIRA, Waldemar. A sociedade de economia mista em seu aspecto contemporâneo. São Paulo: Max Limonad, 1956. p. 33-34.

84 Waldemar Ferreira anota que Decreto 917 foi elaborado em apenas 14 (quatorze) dias, já que o Conselheiro Carlos Augusto de Carvalho foi incumbido de realizar a reforma, pelo então Ministro da Justiça Campos Sales, no dia 08 de outubro de 1.890. Ibid., p. 35.

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Carlos Augusto de Carvalho, passaram a levantar-se contra ela. As críticas

vinham também da classe dos advogados. Havia um clamor quase unânime de

que se estabelecesse uma nova lei, que coibisse os abusos que vinham sendo

praticados, a fim de proteger o crédito público e particular.

Visando corrigir as falhas do Decreto nº 917/1890, foi então instituída a Lei

nº 859, de 16 de agosto de 1902 que, não obstante, não logrou o êxito esperado.

As críticas e queixas quanto ao novel diploma legal foram gerais.85 A mais

veemente residia na questão da investidura do síndico, que passou a ser

nomeado pelos juizes a partir de uma lista livremente elaborada pelas juntas

comerciais. Tal causou uma série de escândalos e acabou acarretando a

substituição da Lei pelo Congresso.

Em 17 de dezembro de 1908, entra em vigor no país a Lei nº 2.024/1908,

de autoria do ilustre José Xavier Carvalho de Mendonça, que representou mais

um marco na história do direito falimentar brasileiro. Trata-se de um instrumento

jurídico que reproduziu os êxitos das leis vistas no país até então, especialmente

do Decreto nº 917/1890, expurgando-lhes os defeitos. Com ela, houve uma

simplificação do procedimento falimentar; reforçou-se os princípios da proteção de

credores e devedores de boa-fé; e enfatizou-se as sanções aos fraudadores.

Entretanto, para muitos, em razão da ineficiência do Poder Judiciário da época, a

Lei nº 2.024/1908 não atingiu os objetivos esperados.

Com a finalidade de aperfeiçoar a Lei nº 2.024/1908, em 09 de dezembro

de 1929, foi promulgado o Decreto nº 5.746, que introduziu basicamente duas

alterações no ordenamento: a redução do número de síndicos de três para

apenas um; e a instituição de porcentagem sobre os créditos para a concessão da

concordata.86 Essas disposições perduraram até 1945, quando foi promulgado o

85 Waldemar Ferreira cita a emblemática observação feita por Sá Vianna quanto à nova lei: “Feitas – observou – Sá Vianna – sem plano, sem ordem, sem sistema, sem nexo, admitindo medidas condenadas pelas legislações mais modernas e perfeitas, circunscrevendo as concordatas, quase ao ponto de inutilizar os seus benéficos efeitos, quando para corrigir os abusos que a prática tinha admitido, bastavam apenas medidas complementares da lei em vigor” – ela se mostrou inferior e muito mais danosa que a que reformou.” Sá Vianna apud FERREIRA, Waldemar. A sociedade de economia mista em seu aspecto contemporâneo. São Paulo: Max Limonad, 1956. p. 40.

86 Waldemar Ferreira assim descreveu referido Decreto: “As inovações sugeridas no anteprojeto foram, realmente, relevantes. Não cortaram a tradição do direito falimentar brasileiro. Nem desfiguraram a lei de J. X. Carvalho De Mendonça. Reajustaram-na, ao contrário, às necessidades da prática mercantil forense, mantendo até os mesmos números aos seus artigos. Dominou-as o propósito de melhorar conservando. Sobre-relevam as atinentes à verificação dos créditos e às condições para a propositura da concordata preventiva. Insignes também se

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Decreto-lei nº 7.661 (Lei de Falências e Concordatas), que disciplinou a matéria

falimentar no Brasil até 2005, quando entrou em vigor a atual Lei de Falência e

Recuperação de Empresas.

Quem elaborou o primeiro anteprojeto da Lei de Falências e Concordata foi

Trajano de Miranda Valverde, por incumbência do então Ministro da Justiça Dr.

Francisco Campos. Tal anteprojeto foi publicado no Diário Oficial de 26 de janeiro

de 1940, para receber sugestões. Valverde procurou romper com a tradição,

especialmente no que tangia ao acentuado caráter processual do instituto da

falência que vigorava até então. No mais, o ilustre jurista reformou o instituto da

concordata, retirando-lhe o caráter de contrato para lhe conceder o de “favor

legal”, ou seja, de benefício concedido pelo Estado, através do juiz, ao devedor

infeliz e honesto.87

Posteriormente, quando Francisco Campos deixou o Ministério da

Justiça, foi nomeada uma comissão de juristas para formulação de um novo

anteprojeto, composta pelos professores Joaquim Canuto Mendes de Almeida,

Filadelfo Azevedo, Hahnemann Guimarães, Luís Lopes Coelho, Noé Azevedo e

Silvio Marcondes Machado. O produto do trabalho dessa ilustre comissão foi

publicado no Diário Oficial de 04 de dezembro de 1943, igualmente para

receber sugestões.

Este segundo anteprojeto, com exceção da parte penal, que sofreu

significativas reformulações, baseou-se claramente no anteprojeto de Valverde,

acolhendo-lhe as principais e mais importantes ideias.

mostraram as introduzidas nos debates parlamentares, que tornaram mais eficiente o processo falimentar.” FERREIRA, op. cit., p. 47.

87 Valverde assim se manifestou quanto ao projeto: “Havíamos consolidado no anteprojeto idéias amadurecidas no estudo do instituto e no trato diuturno da matéria. Sem substituir os princípios gerais que, desde o Dce. nº 917, de 1890, dirigem o sistema falimentar brasileiro, rompíamos, entretanto, em pontos importantes, com a tradição acentuando o caráter processual do instituto, estendendo-o à concordata, preventiva ou suspensiva da falência.” VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à lei de falências. Rio de Janeiro: 1999. v. 1. p. 11.

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Registra a doutrina que Valverde ficou extremamente magoado com a

referida Comissão, pois muito embora o seu anteprojeto tenha sido o fundamento

do anteprojeto por ela apresentado, posteriormente convertido no Decreto-lei nº

7.661/1945, na Exposição de motivos deste não foi feita qualquer menção à sua

obra ou pessoa.88

A entrada em vigor do Decreto-lei nº 7.661/1945 trouxe muitas inovações

ao direito concursal pátrio, no entanto, elas não foram muito bem recebidas por

alguns estudiosos. Waldemar Ferreira89, por exemplo, o chama de “regime

autoritário”, chegando a dizer que ele tem espírito fascista. A principal crítica feita

pelo mestre reside na proteção que a Lei de Falências e Concordatas dispensava

ao devedor, em detrimento dos credores.

Diante disto, não demorou muito para que a necessidade de reforma

surgisse. O Prof. Paulo Fernando Campos Salles de Toledo90, em sua dissertação

de mestrado datada de 1987, já apontava como falhas do Decreto-lei nº

7.661/1945 o fato de o mesmo ter sido feito para o pequeno comerciante em

nome individual; de não separar as noções de empresa e empresário; de não

prever qualquer procedimento tendente à preservação da empresa; e de ser a

concordata preventiva deferida sem o mínimo controle da viabilidade da empresa,

bastando que o devedor preenchesse alguns requisitos formais, sem necessidade

de concordância dos credores.91

88 De fato, Valverde assim se manifesta no seu “Comentários à Lei de Falências”: “Mas, pode-se dizer que, ressalvada a parte penal que o novo anteprojeto refundira totalmente, no mais se alicerçou ele no anterior anteprojeto de 1940, cujas idéias fundamentais esposou. Nenhuma referência, entretanto, na Exposição de Motivos, à fonte das modificações ou alterações, que foram propostas para o regime falimentar brasileiro.” VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à lei de falências. Rio de Janeiro: 1999. v. 1. p. 11. .

89 Vale a pena transcrever trecho da obra de referido autor, o qual demonstra muito claramente a indignação do mesmo com o novo diploma: “A nova lei mostrou-se inexorável contra os credores, restringindo-lhes o exercício de seus direitos creditórios. Não mais lhes é dado intervir no processo liquidatório, elegendo o liquidatário. Nem, tampouco, intervir na concordata, preventiva ou suspensiva da falência, senão em termos que lhes impossibilitam verdadeiramente defender, eficientemente, seus créditos. Institui-se, com evidente espírito fascista, o que impropriamente se tem chamado de concordata de autoridade. Ainda que os credores, unanimemente, se lhe oponham, ao Juiz á dado outorgá-lo. Tudo pode ser isso, menos concordata. [...] a chamada indústria das falências encontrou agora o seu instrumento magnífico e o ambiente mais que propício.” FERREIRA, Waldemar. A sociedade de economia mista em seu aspecto contemporâneo. São Paulo: Max Limonad, 1956. p. 49-50.

90 TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. A empresa em crise no direito francês e americano. 1987. 107 f. Dissertação (Mestrado em Direito Comercial) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1987.

91 REQUIÃO, Rubens. A crise no direito falimentar brasileiro apud TOLEDO, op. cit., p. 3, também fazia esta crítica à concordata preventiva.

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Uma outra crítica veemente feita à antiga Lei de Falências e Concordatas

relacionava-se ao seu acentuado caráter processual, herdado da legislação

italiana, tão criticada neste ponto por Ascarelli.92 Comparato, justamente com

apoio no mestre italiano, também tecia tal crítica com frequência.93

O clamor pela reforma passou a ser fala recorrente entre os juristas, tanto

que, na década de 70, o Ministério da Justiça começou a esboçar alguns

movimentos no sentido de compor uma Comissão para elaborar a reforma da Lei

de Falências e Concordata brasileira. No entanto, somente em 24 de fevereiro de

1938, é que foi nomeado oficialmente, pelo Ministro da Justiça, através da

Portaria nº 0115, um Grupo de Trabalho para oferecer sugestões e elaborar

propostas de documento legislativo disciplinador da matéria concursal. Tal grupo

era composto pelos Drs. Rubens Requião, Antônio Luiz de Souza Rocha, Cláudio

Ferraz de Alvarenga, Antônio de Jesus Marçal Romero Bchara, Albert Farjalla

Bumachar e Alfredo Chicralla Nader, que começaram a trabalhar pouco mais de

um mês após as suas nomeações.

A formação deste grupo marcou o início de uma longa jornada de trabalho

para reformular a regulamentação da matéria concursal no Brasil, jornada essa

que desaguou na sanção da Lei nº 11.101/2005, Lei de Falência e Recuperação

de Empresas, em 09 de fevereiro de 2005, originada do Projeto de Lei nº

4.376/1993. De fato, o panorama político, econômico e social havia sofrido

mudanças significativas, que não foram acompanhadas pela legislação falimentar,

já que não foram feitas reformas atualizadoras no Decreto-lei nº 7.661/1945.

Passamos, então, a contar com uma legislação falimentar descompassada da

92 Nelson Abrão refere-se ao seguinte texto de Ascarelli “[...] notaremos então o acento que, no desenvolvimento de nossa legislação, foi pouco a pouco posto sobre uma consideração sempre mais marcadamente processual do instituto, consideração traduzida legislativamente na acentuação dos poderes do juiz delegado, na desvalorização da comissão de credores, etc. Teremos então ocasião de examinar criticamente esta orientação e, juntamente, a crise do instituto falimentar, em meu entendimento conseqüência desta orientação que acabou por olvidar a peculiaridade dos problemas para a solução dos quais é entendido o instituto.” ABRÃO, Nelson. O novo direito falimentar: nova disciplina jurídica da crise econômica da empresa. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1985. p. 12.

93 São estas as palavras de Comparato: “No enfrentar essa crise, como também assinalou o mestre, a pior solução é persistir na orientação marcadamente processualista que tem prevalecido no direito italiano e também diremos nós, por via de servil imitação, no direito brasileiro. [...] É imperdoável que o legislador do Século XX se deixe deslumbrar pelos ouropéis da moderna processualística, olvidando os problemas especificamente econômicos que a insolvência não deixa de suscitar, mormente quando atinge as grandes empresas.” COMPARATO, Fábio Konder. Aspectos jurídicos da macro-empresa. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1970. p. 107.

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realidade, obsoleta a ponto de demandar a sua completa revogação, não

bastando mais uma simples reforma ou atualização.

Verifica-se que o Decreto-lei nº 7.661/1945 é contemporâneo à

Conferência de Bretton Woods94, realizada em julho de 1944, que instaurou a

nova ordem mundial capitalista do pós-guerra, calcada, principalmente, (a) na

paridade dólar-ouro; (b) baixa movimentação internacional de capitais financeiros;

(c) Fundo Monetário Internacional, no papel de emprestador internacional de

última instância.

Como se vê, tratava-se de um panorama econômico relativamente estável,

de pouca movimentação, o que é totalmente contrário à atual realidade

econômica. Vivia-se numa calmaria que hoje não mais se observa.

Arnoldo Wald95, citando Yves Dunant, menciona que nos anos de 1950 a

1975, os empresários ainda puderam viver num mundo de relativa racionalidade e

previsibilidade, especialmente porque os fatores externos pouco influenciavam na

vida empresarial. No entanto, o que se verifica atualmente é um mundo em veloz

evolução, marcado pelo incremento da tecnologia, economia e das próprias

relações humanas.

Diante disto, parece indubitável que o Decreto-lei nº 7.661/1945, apesar

dos grandes méritos que galgou, tornou-se obsoleto para o atual cenário da

atividade empresarial.

No entanto, convém frisar que a necessidade de reforma da legislação

falimentar não vinha apenas destes novos aspectos macroeconômicos da

economia. As próprias empresas assumiram novas feições que não mais

condiziam com os aspectos da Lei de Falências e Concordatas (Decreto-lei nº

7.661/1945).

Dentre as novas marcas características da empresa moderna podemos

citar: (a) os arranjos societários passaram a ser cada vez mais complexos,

especialmente em razão dos processos de concentração empresarial,

protagonizados pelas fusões e aquisições; (b) os ativos das empresas passaram a

ser compostos cada vez mais por bens intangíveis; (c) as relações produtivas

94 BRASIL. Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. Parecer sobre o PLC nº 71/2003. Relator: Ramez Tebet. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/web/senador/ramez/lei%20de%20recupera%E7%E3o%20de%20empresas.pdf>. Acesso em: 20 out. 2009. P. 17.

95 WALD, Arnoldo. O direito da crise e a nova dogmática. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo, ano 12, v. 43, p. 21-44, 2009.

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passam a ser regidas por relações contratuais mais fluidas; (d) abandono das

formas tradicionais de garantia como a hipoteca e o penhor.

Lidar com a questão da crise econômica da empresa nunca foi tarefa das

mais fáceis. Segundo Nelson Abrão, em obra datada de 1985, mas ainda tão

atual, “[...] a crise econômica do empresário constitui, por infelicidade, um tema de

nosso tempo.”96

No Brasil, um dos grandes críticos quanto à obsolescência da nossa lei

falimentar e proclamador da necessidade de reforma foi o Prof. Rubens Requião,

que, desde há muito, vinha apontando incansavelmente os desacertos do

Decreto-lei nº 7.661/1945.97

Isto demonstra porque a promulgação da Lei nº 11.101/2005 foi tão

comemorada pelos juristas em geral. A reforma era realmente medida que se

impunha.

Mas a necessidade de reforma não visava apenas a questão econômica.

De fato, como bem ressaltou o Senador Ramez Tebet, Relator do projeto de Lei

que deu origem à Lei de Falência e Recuperação de Empresas98, a nova

legislação buscou também atingir um conteúdo social, na medida em que

procurou efetivar a harmonização entre a eficiência econômica e o respeito ao

direito dos mais fracos.

96 Disse o mestre Nelson Abrão: Eu me atreveria a dizer que, das tarefas a empreender para acomodar o ordenamento mercantil à realidade econômica e à exigência dos tempos, a reforma do Direito de quebra e da concordata, é a merecedora de prioridade. Triste merecimento o seu, porque essa prioridade não é alheia ao fato da crise econômica de nosso tempo. Porém, sobretudo, triste merecimento o seu, por se tratar provavelmente do setor do ordenamento mercantil ao qual a resposta legislativa é mais insatisfatória. ABRÃO, Nelson. A continuação do negócio na falência. São Paulo: Leud, 1998. p. 1985. p. 2.

97 Apenas a título de exemplificação, citemos a conferência proferida pelo ilustre Professor no Instituto dos Advogados Brasileiros, no Rio de Janeiro, ainda em 1974: “Muito mais que o Código Civil e do que o Código de Processo, tanto quanto, sem dúvida, o Código penal, se evidencia e se impõe a reforma da lei falimentar. A falência e a concordata, como institutos jurídicos afins, na denúncia de empresários e de juristas, se transformaram em nosso País, pela obsolescência de seus sistemas legais, mais do que nunca, em instrumentos de perfídia e de fraude dos inescrupulosos. “As autoridades permanecem, infelizmente, insensíveis a esse clamor, como se o País, em esplêndida explosão de sua atividade mercantil e capacidade empresarial não necessitasse de modernos e funcionais instrumentos e mecanismos legais e técnicos adequados à tutela do crédito, fator essencial para o seguro desenvolvimento econômico nacional.” REQUIÃO, Rubens apud ABRÃO, op. cit., 1985. p. 179.

98 BRASIL. Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. Parecer sobre o PLC nº 71/2003. Relator: Ramez Tebet. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/web/senador/ramez/lei%20de%20recupera%E7%E3o%20de%20empresas.pdf>. Acesso em: 20 out. 2009. p. 20.

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Foi nessa perspectiva que a Lei nº 11.101/2005 adotou para si, como

fundamento, o princípio da preservação da empresa, prevendo uma gama de

instrumentos voltados a possibilitar a recuperação econômica da empresa em

crise, viabilizando a continuidade de seu processo produtivo.

Sem dúvidas, a principal inovação introduzida no ordenamento jurídico

pátrio pela Lei nº 11.101/2005 foi o instituto da recuperação de empresas judicial

e extrajudicial. Trata-se da expressão máxima do princípio da preservação da

empresa, na medida em que representa um instrumento preventivo da quebra,

buscando solucionar a crise instaurada, a fim de evitar a falência e os prejuízos

que ela acarreta99, que são: a extinção de postos de trabalho, de fontes de

arrecadação tributária, de fornecedores de produtos e serviços, de ente

propiciador de concorrência, dentre outros.

Aliás, ao proclamar o princípio da preservação da empresa, o Brasil

adequou-se à tendência mundial em matéria concursal. Com efeito, os mais

diversos países já reformaram recentemente suas legislações concursais, ou

estão buscando fazê-lo, com observância deste novo paradigma.

A dificuldade de lidar com a crise econômica da empresa não é um

problema exclusivamente brasileiro. Países de todos os níveis de

desenvolvimento vêm engendrando esforços no sentido de criar legislações cada

vez mais eficientes e satisfatórias na solução de crises e, como mencionado, a

preocupação maior é com a preservação da empresa, a fim de que sejam

preservados todos os diversos interesses que em torno dela gravitam.

À título de exemplo, podemos citar o nosso vizinho e parceiro comercial,

membro do Mercosul, Uruguai, que reformulou o seu direito concursal

recentemente, com a promulgação, em 23 de outubro de 2008, da Lei nº

18.387. Os uruguaios, a exemplo dos brasileiros, há muito clamavam por

reformas, pois até a promulgação da Lei nº 18.387/2008 a matéria no país era

regulamentada por uma imbricada rede de leis esparsas que previam

procedimentos extremante antiquados e ineficientes. A necessidade de adoção

99 Sobre a recuperação judicial e extrajudicial de empresa trataremos com mais minúcias no item 2.3, reservado especificamente ao assunto.

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do princípio da preservação da empresa era e continua sendo fala recorrente

dos estudiosos uruguaios.100

Em geral, doutrinadores, advogados, juízes e outros operadores do direito

vêm fazendo um balanço positivo acerca da Lei nº 11.101/2005 e de sua principal

inovação – a recuperação judicial de empresas. Muitos apontam imperfeições que

necessitam de correção, mas poucos são os que criticam veementemente a Lei

de Falência e Recuperação de Empresas.101

Este trabalho tem por objetivo justamente apontar uma das falhas da Lei nº

11.101/2005, que é a exclusão das sociedades de economia mista do seu âmbito

de aplicação, conforme previsto no art. 2º.

2.2 O Direito Comparado: A Recuperação no Direito Americano

2.2.1 Aspectos Gerais da Legislação Concursal Americana

Como se sabe, o Direito brasileiro segue a família do civil law, de origem

romano-germânica, que fundamenta-se em regras de conduta plasmadas em

códigos, entendidos como o conjunto sistemático e harmônico de normas

jurídicas, ou seja, trata-se do direito codificado. Integram também essa família os

países da Europa Continental e os que deles foram colônias e, portanto,

recepcionaram tal sistema. Por outro lado, o direito americano filia-se à família do

common law, também conhecida como direito consuetudinário, de origem inglesa,

100 Vejamos o que disse Luisa Isabel Borgarello sobre o assunto: “Luego de un análisis de los objetivos y principios del derecho concursal expuestos por la doctrina a través del tiempo, prodríamos concluir que em protección y consideración de los numerosos intereses em juego que pugnan por sus derechos cuando la empresa entra em estado de insolvência o cesación de pagos, el objetivo final del derecho concursal es ‘la eliminación de la insolvência para lograr el bien común’ traducido em la conservación de la empresa viable y valiosa para los intereses económicos sociales, aún separada del empresário y em manos de um ‘tercero’. Caso contrario el bien común se traduce em la eliminación del disvalor de la cesación de pagos a través de la liquidación de la empresa intentando conciliar los intereses plurisubjetivos involucrados com el menor perjuicio para las partes.” apud CREIMER, Israel. Concurso: Ley nº 18.387 de 23 de octubre de 2008. Montevidéu: Fundación de Cultura Universitaria, 2009. p. 13.

101 Um dos críticos da Lei nº 11.101/2005, Manoel Justino Bezerra Filho diz que o legislador preocupo-se mais com a recuperação do crédito financeiro do que com as próprias empresas em recuperação. Conclui que a Lei de Falência e Recuperação de Empresas começa a dar sinais de crise, na medida em que, pelo fato de o crédito com garantia real estar em segundo lugar na lista de credores, os bancos já não mais emprestam dinheiro sem esta garantia, o que dificulta sobremaneira o acesso a financiamentos e, em última instância, a própria atividade empresária. BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação e falências comentada. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2005. p. 47.

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cuja característica principal é a menor abstração das normas, se comparada ao

sistema romano-germânico (civil law). Compreende um conjunto de princípios e

regras cuja observância obrigatória deriva de usos e costumes e dos julgados e

decretos das cortes, reconhecendo, reafirmando e dando efetividade a tais usos e

costumes.

Como se vê, existem diferenças estruturais consideráveis entre as duas

famílias do direito mencionadas, o que se reflete diretamente em diferenças no

ordenamento jurídico vigente no âmbito de Brasil e Estados Unidos. No entanto,

não podemos deixar de assinalar que, na prática, se tem observado uma

crescente convergência entre as tradições do direito consuetudinário e as do

direito romano-germânico.102

O fato é que essa divergência de origem não impediu que a legislação

concursal brasileira fosse influenciada pela americana. Aliás, a maneira como a

matéria concursal foi regulamentada nos Estados Unidos vem servindo de

paradigma para as mais diversas legislações ao redor do mundo, especialmente

no que tange à preocupação com a superação da crise e conseqüente

recuperação da empresa.

Como se sabe, os Estados americanos detêm considerável poder

legislativo em várias áreas. No entanto, desde já, convém ressaltar que em

matéria concursal a competência legislativa é Federal, conforme determinação

constitucional.103

A primeira lei americana que tratou da matéria falimentar é datada de 04 de

abril de 1800. Tratava-se de uma lei com âmbito de aplicação bastante limitado, o

que justifica o seu curto tempo de vigência, eis que revogada aos 19 de dezembro

de 1803. A partir de então, se sucederam distintas regulamentações. Após a

102SZTAJN, Rachel; GORGA, Érica C. R. Tradições do direito. In: ZILBERSZTAJN, Décio; SZTAJN, Rachel (Org.). Direito e economia: análise econômica do direito e das obrigações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 149. “Essa tendência é guiada por uma necessidade de adaptação funcional dos institutos originários de uma tradição em outra. Essa tendência é guiada por uma necessidade de adaptação do aparato normativo perante a complexidade dos fenômenos sociais e busca proporcionar aumento de eficiência, através do “empréstimo” dos mecanismos promotores de eficiência de outro sistema (com os custos daí decorrentes). Assim, por exemplo, a tradição de direito consuetudinário vem crescentemente passando por um processo de codificação e criação de leis, ingressando numa age of statutes, enquanto os precedentes judiciais tem ganhado força vinculante nos ordenamentos de tradição de direito romano-germânico, tal como ocorreu com a aprovação da reforma do Judiciário brasileiro em 2004.”

103 O art. I § 8, cl. 4 da Constituição Americana assim dispõe: “The Congress shall have power to [...] establish [...] uniform laws on the subject of Banckruptices throughout the United States.”

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revogação da primeira lei retro mencionada, somente foi editada nova lei para

regulamentar a matéria em 1841, que teve duração ainda mais efêmera, pois fora

considerada inconstitucional e revogada em 1843.

A seguir, destaca-se a lei editada em 1867, como resposta à crise

econômica gerada pela Guerra Civil.104 Tal estatuto vigorou até 1878, quando foi

revogado.

Posteriormente, mais especificamente no dia 1º de julho, como

conseqüência da depressão econômica do fim do século XIX, foi editada a mais

ampla lei americana em direito falimentar: o Bankruptcy Act, de 1898. Tal estatuto

sofreu reformas posteriores, como se verá, no entanto, constitui a base da

legislação concursal americana atual, ou seja, do Título 11 do U.S. Code.

Segundo o Prof. Paulo Fernando Campos Salles de Toledo105, o

Bankruptcy Act de 1898 não introduziu no ordenamento jurídico americano

inovações consideráveis, se comparado às legislações anteriores. No entanto,

representou algum aprimoramento, na medida em que aperfeiçoou o tratamento

dado à administração, precisou o conceito de acts of bankruptcy e facilitou o

chamado discharge.

Entre 1933 e 1937 os Estados Unidos produziram uma legislação voltada

para a reorganização da empresa, como resposta à depressão econômica da

década de 30. Todos os diplomas legais introduzidos significaram alterações no

Bankruptcy Act de 1898 que, não obstante, continuou em vigor. Sucederam-se o

Tacher Report, de 1931, elaborado pelo Solicitor General Tacher. Tal relatório

confirmou a incapacidade do Bankruptcy Act de 1898 para tratar dos novos

problemas da crise e recomendou a elaboração de um novo procedimento

reorganizatório para as empresas. Em 03 de março de 1933, foi promulgada a lei

que dispunha sobre a possibilidade de composição entre devedores individuais e

fazendeiros para com seus credores, os chamados compositions, e de dilações de

prazo para pagamentos, os extension terms. Ademais, tal lei previu um

procedimento de reorganização específico para as companhias de estrada de

104 DASSO, Ariel Àngel. Derecho concursal comparado. Buenos Aires: Legis, 2008. v. 1. p. 621, destaca que: “También em Estados Unidos las reformas de las leyes falimentarias, salvo contadas excepciones, como la de 1978 y la de 1984, han sido consecuencia de crisis económicas. Es normal atribuir las penurias de la economia a las deficiencias de la ley, lo cual constituye um recurso claramente ejemplificado, em el caso de lãs recientes reformas.”

105 TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; ABRÃO, Carlos Henrique. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 8.

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ferro de âmbito interestadual, que posteriormente foi estendido, por lei datada de

07 de junho de 1934, a todas as empresas. Aos 24 de maio de 1937, entrou em

vigor a lei que autorizou o reajustamento de dívidas municipais.

Mas dentre todas as alterações introduzidas, a mais importante, sem

dúvidas, foi o Chandler Act, de 22 de junho 1938. Este instrumento legal

modificou substancialmente o Bankruptcy Act de 1898, pois alterou cada um

de seus artigos (sections), exceto as §§ 75 e 77, e acrescentou os Capítulos

X a XIV. O Chandler Act vigorou por 40 (quarenta) anos, tendo sofrido, neste

período, uma série de alterações, até ser completamente revogado pela atual

lei concursal americana.

Este instrumento legal significou um marco importante na história da

legislação concursal americana, especialmente se considerarmos o aspecto

da reorganização empresarial, que é o que nos interesse neste ponto do

trabalho.

Antes do Chandler Act, a reorganização até estava presente na legislação

americana, já que fora introduzida pelas legislações da década de 30 acima

mencionadas. No entanto, foi somente após o Chandler Act que a reorganização

passou a ser utilizada com frequência, eis que, até então, as leis concursais eram

marcadas por um nítido caráter liquidatário-solutório, ou seja, o que se buscava era

arrecadar os bens do falido, vendê-los e distribuir o produto da venda entre os

credores.

O Chandler Act previa quatro procedimentos reorganizatórios, a saber: o

railroad reorganizations, previsto no Capítulo VIII, que destinava-se às estradas

de ferro; o arrangements, previsto no Capítulo XI, que consistia na possibilidade

de estabelecimento de convênios do devedor com os credores, tanto antes como

depois da decretação da falência, especialmente para as pequenas empresas; o

corporate reorganization, previsto no Capítulo X, destinava-se, ao contrário do

arrangements, à grande empresa, consistindo num procedimento mais complexo;

e o real property arrangements, previsto no Capítulo XII, que limitava-se ao crédito

hipotecário.

Em 1978 sobreveio uma nova lei, com o intuito de renovar o já

envelhecido Chandler Act, após um acirrado e longo debate. O primeiro passo

da reforma foi dado em 1965, quando a Brookings Institutuion, através de uma

comissão composta por juristas e economistas, se propôs a formular um

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estudo acerca do funcionamento da lei falimentar então em vigor, cujo

resultado foi publicado em 1971. Antes mesmo da publicação deste resultado,

em 1970, o Congresso já havia instituído uma Comissão com o intuito de

apresentar um anteprojeto de lei. Simultaneamente, a National Bankruptcy

Conference apresentou um outro anteprojeto de lei, elaborado por advogados e

juízes especialistas em falências.

A nova lei foi finalmente promulgada em 06 de novembro de 1978, pelo

então Presidente James Carter. Trata-se do Bankruptcy Reform Act, dividido em

oito capítulos, numerados de 1 ao 15.106 Tal instrumento jurídico passou a fazer

parte, em sua maioria, do novo Título 11 do U.S. Code vigente, que, juntamente

com o Título 28, regulamenta matéria concursal nos Estados Unidos da América

atualmente.

Posteriormente, se realizaram outras reformas no Bankruptcy Act, das

quais se destacam a Bankruptcy Amendments and Federal Judgeship Act, de

1984; a Bankruptcy Judges, States, Trustees anda Family Farmer Bankruptcy Act,

de 1986; e a Bankruptcy Abuse Prevention and Consumer Protection, de 17 de

outubro de 2005. Essa última tratou dos cartões de crédito, que são um

fenômeno creditício de singular importância nos Estados Unidos, e realizou

modificações significativas a respeito do concurso da pessoa física e da quebra

internacional, incorporando à Bankruptcy o Capítulo 15, que segue os modelos da

Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional

(UNCITRAL107) para procedimentos de quebra com elementos estrangeiros.

Diante disto, tem-se que, atualmente, a matéria concursal nos Estados

Unidos está regulamentada pelos Títulos 11 e 28 do U.S. Code, sendo que o

primeiro conta com nove Capítulos, numerados com números ímpares, à exceção

106 TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; ABRÃO, Carlos Henrique. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 16, assim descreveu a divisão do Bankruptcy Reform Act: “O Capítulo 1 contem disposições gerais, incluindo definições, o 3 refere-se à administração à administração (case administration), o 5 aos credores, ao devedor e ao patrimônio, o 7 disciplina a liquidação, o 9 regula o reajustamento das dívidas de uma municipalidade, o 11 trata da reorganização, o 13 do reajustamento (adjustment) das dívidas de um indivíduo com renda regular, e finalmente o 15 dispõe acerca do U.S. Trustee. Todos esses capítulos integram o título 11 do U.S. Code. O título 28 também sofreu alterações, como novos dispositivos referentes a Bankruptcy ou District Courts e ao United States Trustee. As normas processuais em matéria falimentar são objeto das Bankruptcy Rules, emanadas da Suprema Corte.

107 United Nations Commission on International Trade Law (UNCITRAL).

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do Capítulo 12º. Temos, portanto, os seguintes Capítulos: 1º, 3º, 5º, 7º, 9º, 11º,

12º, 13º e 15º.

O 1º deles é denominado “General provisions” e conta com um artigo

bastante importante, que é o seu art. 1º. Tal dispositivo traz uma série de

definições de vários conceitos ligados ao direito concursal.

O Capítulo 3º é denominado “Case administration” e se dedica aos

aspectos comuns referentes ao início de causas voluntárias, conjuntas e

involuntárias. Além disto, trata das causas acessórias (ancillary).

O Capítulo 5º denomina-se “Creditors, the debtor, and the estate” e dispõe

sobre conceitos importantes comuns à todos os procedimentos relativos aos

credores, devedor e massa concursal.

O Capítulo 7º é denominado “Liquidation” e regula as formas de

pagamento aos credores através da venda (liquidação) do patrimônio do

devedor. Ele é subdividido em cinco subcapítulos: o primeiro denominado

“Officers and administration”, que é onde está previsto o trustee, que se

aproxima do nosso administrador judicial (quem administra, vende e distribui os

bens), e o comitê de credores; o segundo é denominado “Collection,

liquidation, and distribution of the estate”, e, como a própria denominação

indica, trata da arrecadação, liquidação e distribuição dos bens do falido; o

terceiro denominado “Stockbroker liquidation”, se dirigindo, portanto, à

liquidação do “stockbroker”, que equivale ao nosso agente da bolsa de valores;

o quarto denominado “Commodity broker liquidation”, sendo voltado, portanto,

à liquidação dos agentes da bolsa de valores que comercializam matérias

primas; e, por fim, o quinto, denominado “Clearing bank liquidation”, que se

refere à liquidação de um banco membro do Estado, não segurado, ou de uma

corporação organizada sob as regras as seção 25ª do Federal Reserve Act,

que opera, ou opera como, uma organização multilateral de liquidação nos

termos as seção 409 do Federal Deposit Insurance Coporation Improvement

Act de 1991.

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O primeiro efeito da liquidação é a suspensão das ações contra o

devedor, o chamado “automatic stay108”. O último efeito pode ser o chamado

“discharge”, que significa a liberação do devedor de todos os débitos

preexistentes à quebra.109

O Capítulo 9º é denominado “Adjustment of debts of a municipality” e trata

do “ajustamento” de débitos do “municipality”, que, segundo conceito contido no

item 40, da Seção 101, do Capítulo 1 do Título 11, significa uma subdivisão

política, ou órgão público ou ente instrumental do Estado.110 São quatro as

condições para que o ente público possa estar sujeito ao procedimento:

autorização por meio de lei estatal; pressuposto material de insolvência;

possibilidade de proposição de plano de pagamento; e concordância dos credores

que representem a maioria dos créditos que não podem ser integralmente

pagos.111

O Capítulo 11º denomina-se “Reorganization” e dedica-se à salvação do

patrimônio do devedor e ao pagamento dos credores, aplicando-se, com poucas

exceções, à todos os distintos sistemas tratados no Título 11. Trata-se do

Capítulo que mais interessa ao presente tópico do trabalho, já que nos

propusemos a tratar a respeito da recuperação da empresa em crise no direito

americano.112 Por este motivo será tratado com maior profundidade mais adiante.

O Capítulo 12º denomina-se “Adjustment of debts of a family farmer or

fisherman with regular annual income”. Como se vê, trata-se de um Capítulo

108 TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; ABRÃO, Carlos Henrique. Comentários à lei de

recuperação de empresas e falência. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 22, anota que o automatic stay constitui-se numa das proteções fundamentais conferidas pela lei ao devedor e que ele não só paralisa as ações em curso como também veda a instauração de novas. Há exceções ao automatic stay, como, por exemplo, as ações de alimentos e as ações penais, que continuam em andamento normalmente. O mesmo Professor anota, ainda, que o automatic stay pode ser afastado, à pedido da parte interessada, o que será deferido nas hipóteses previstas na subseção “d” da seção 362 do Bankruptcy Code. Trata-se do fenômeno do “relief from the stay”.

109 Ibid., p. 25. Paulo Fernando Campos Salles de Toledo explica que o discharge é também um importante instrumento de proteção ao devedor (na medida em que significa a liberação do devedor das obrigações contraídas antes do início do processo), abrangendo todos os procedimentos previstos no Bankruptcy Code, não se limitando, portanto, aos casos de liquidação. Trata-se de um incentivo para que o devedor não pratique atos desonestos e colabore para os bons resultados do processo concursal. As partes interessadas podem impugná-lo.

110 The term “municipality” mens political subdivision or public agency or instrumentality of a State. 111 DASSO, Ariel Àngel. Derecho concursal comparado. Buenos Aires: Legis, 2008. p. 625. 112 TOLEDO; ABRÃO, op. cit., p. 17, “Na reorganização (reorganization, ou business reorganization) abre-se ao devedor a possibilidade de prosseguir em seus negócios, reestruturando-se e buscando a reabilitação. Os pagamentos são feitos de acordo com um plano apresentado, em princípio, pelo devedor, aprovado pelos credores, e homologado judicialmente.”

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dedicado exclusivamente à empresa agrícola familiar e ao pescador, que criou um

regramento específico para os mesmos. Foi introduzido no Título 11, conforme

mencionado, pela reforma operada em 1986 e constitui o único capítulo com

numeração “par” de tal Título.

O Capítulo 13º é denominado “Adjustment of debts of an individual with

regular income” e trata da recuperação do patrimônio de pessoa física que aufere

crédito com regularidade. Paulo Fernando Campos Salles de Toledo informa que

a lei prevê um procedimento reorganizatório voltado para o indivíduo, não sendo,

portanto, aplicável aos partnerships ou corporation. Neste caso, o devedor

mantém-se na posse de seus bens, até que pague os credores nos prazos e

condições fixados em um plano aprovado em juízo.113

Por fim, o Capítulo 15º, incorporado em 2005, denomina-se “Ancillary and

other cross-border cases”, que trata da quebra internacional, tendo adotado o

modelo recomendado pela UNCITRAL.

Feito este panorama geral do Título 11 do U.S. Code, voltemos ao Capítulo

11 que, conforme já mencionado, é o que nos interessa no presente trabalho, haja

vista que trata da reorganization, instituto que influenciou a nossa recuperação de

empresas.

2.2.2 A “Reorganization” do Direito Americano

A Reorganization foi introduzida no ordenamento jurídico americano em

1978, com a reforma operada no Bankruptcy Act. Até então, os americanos

contavam com quatro procedimentos reorganizatórios (railroad reorganization,

corporate reorganization, arrangement e real property arrangemente) previstos no

Chandler Act e que foram unificados, quase que totalmente, no Capítulo 11 e no

instituto da business reorganization.114

A intenção da unificação foi criar um procedimento único, simplificado, ágil

e flexível, capaz de atender a empresas de todos os portes, mantendo, ao mesmo

tempo, a proteção antes conferida pelo Chandler Act.

113 TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; ABRÃO, Carlos Henrique. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 17.

114 TOLEDO; ABRÃO, op. cit. p. 34, em passagem que cita Arthur Moller e Folrz Jr., registram: “A multiplicidade de opções antes oferecidas dava margem a um grande número de disputas judiciais, cujas soluções advinham muitas vezes quando os processos já haviam chegado a um ponto em que os problemas do devedor estavam para ser resolvidos.”

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A Reorganization, como o próprio nome indica (reorganização), constitui-se

num procedimento que visa dar ao devedor a oportunidade de solucionar os seus

problemas financeiros, sem ter que dispor da totalidade de seus bens e sem ter

que cessar a sua atividade negocial, o que se fará através da elaboração de um

plano, no qual reprogramará o pagamento de suas dívidas.115

Cumprido o plano de reorganização o devedor pode gozar, conforme

ressalta o Prof. Campos Salles de Toledo, de “uma “vida nova”, sem preocupar-se

com as obrigações antes contraídas116 (discharge).

Além do devedor, os credores também se beneficiam com a

Reorganization, pois apesar de estes, em regra, sofrerem perdas, recebem seus

créditos, no mínimo, no valor que receberiam em caso de falência, e têm a

possibilidade de continuar negociando com o devedor, que continuará o seu

processo produtivo, o que não se daria em caso de falência.

Em regra, durante a Reorganization, o devedor permanece na condução

dos negócios (debtor in possession117), sem necessitar de qualquer autorização

para tanto, o que se fazia necessário durante a vigência do Chandler Act e o que

também não ocorre em caso de straight bankruptcy, na qual o devedor é afastado

imediatamente da gestão do seu negócio. Trata-se de uma determinação que visa

dar eficiência à Reorganization, já que o treinamento de um novo administrador é

bastante custoso.

No entanto, eventualmente, o devedor pode ser afastado dos negócios,

sendo nomeado, em seu lugar, o chamado trustee. Tal ocorrerá quando houver

justificativa suficiente, tal como fraude, desonestidade, incompetência ou evidente

má gestão. Ou, ainda, quando assim for do interesse dos credores, acionistas ou

da massa falida. O trustee pode ser afastado da condução do negócio a qualquer

momento antes da confirmação do plano de reorganização, devolvendo-se ao

devedor a posse e administração do seu patrimônio.

115 DASSO, Ariel Àngel. Derecho concursal comparado. Buenos Aires: Legis, 2008. p. 627, assim se manifesta sobre a reorganization: “Su objetivo principal es tener em miras las pespectivas de recuperación, teniendo em cuenta especialmente los medios financieros de que se dispone, incluyendo la emisión de nuevos títulos para la suscripicón por los acreedores y antiguos acionistas.”

116 Ibid., p. 35. 117 11 U.S.C. §§ 1101 (1): “(1) ‘debtor in possession’ means debtor except when a person that has qualified under section 322 of this title is servig as trustee in the case.”

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No entanto, muitas vezes o devedor é mantido na condução dos negócios,

mas o juiz impõe limitações ou condições à sua atuação, conforme prescreve o §

1107 (a) do U.S. Code.118

Na Reorganization, a exemplo do que ocorre com a recuperação judicial de

empresas brasileira, há também a Assembléia de Credores (meeting of creditors),

regulamentada, com brevidade, pelo § 341 (a) do U.S. Code. A disciplina

complementar da matéria é legada à Suprema Corte. Segundo dispõe o § 341 (a)

do U.S. Code119, ela deve ser realizada num prazo razoável120 após a concessão

do order of relief, que corresponde à declaração judicial nos involuntary cases, ou

seja, nos processos requeridos pelos credores, ou ao ajuizamento do pedido, nos

voluntary cases, que são os processos requeridos pelo próprio devedor.

O juiz não participa da Assembléia de Credores121, pois este não deve

assumir atribuições de ordem administrativa durante o procedimento concursal.

Além disto, a ausência do juiz na Assembléia tem o objetivo de resguardar a

independência e imparcialidade deste. O Comitê, caso haja aprovação do

Tribunal, pode ser composto por advogados, contadores e outros agentes que se

mostrarem úteis.

118 11 U.S.C. § 1107 (a): “(a) Subject to any limitations on a trustee serving in a case under this chapter, and to such limitations or conditions as the court prescribes, a debtor in possession shall have all the rights, other than the right to compensation under section 330 of this title, and powers, and shall perform all the functions and duties, except the duties specified in sections 1106(a)(2), (3), and (4) of this title, of a trustee serving in a case under this chapter.”

119 11 U.S.C. § 341 (a): “(a) Within a reasonable time after the order for relief in a case under this title, the United States trustee shall convene and preside at a meeting of creditors.”

120 TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; ABRÃO, Carlos Henrique. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 38, indica como prazo razoável vinte à quarenta dias.

121 U.S.C. § 341 (c): “(c) The court may not preside at, and may not attend, any meeting under this section including any final meeting of creditors. Notwithstanding any local court rule, provision of a State constitution, any otherwise applicable nonbankruptcy law, or any other requirement that representation at the meeting of creditors under subsection (a) be by an attorney, a creditor holding a consumer debt or any representative of the creditor (which may include an entity or an employee of an entity and may be a representative for more than 1 creditor) shall be permitted to appear at and participate in the meeting of creditors in a case under chapter 7 or 13, either alone or in conjunction with na attorney for the creditor. Nothing in this subsection shall be construed to require any creditor to be represented by an attorney at any meeting of creditors.”

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Durante a Assembleia, o devedor prestará declarações e, sob juramento,

responderá às indagações que lhes forem formuladas pelos presentes,

especialmente pelos credores.122 Se for conveniente, é possível que se convoque

uma assembleia dos sócios ou acionistas, conforme faculta o § 341 (b) do U.S.

Code.123

O plano de reorganização pode ser apresentado pelo devedor a

qualquer momento, caso nenhum outro tenha sido aprovado ainda. No entanto,

para gozar do benefício da exclusividade, ou seja, de que nenhum outro plano

possa ser apresentado, o devedor deve apresentá-lo no prazo máximo de 120

dias, a contar da order of relief. Apresentado o plano, este deve ser aceito

pelos credores.

O prazo disponível para aceitação dependerá do tempo gasto pelo devedor

para apresentar o plano. Isto porque o prazo máximo para ambas as ações

(apresentação e aceitação do plano) é de 180 dias. Assim, caso o devedor

apresente o plano em tempo inferior a 120 dias, gozará de um prazo maior para

aceitação deste pelos credores, que corresponderá à subtração do tempo gasto

do tempo total de 180.124 O Prof. Paulo Fernando Campos Salles de Toledo125

exemplifica muito bem essa questão: “Exemplificando: se o devedor apresentar o

plano no 100º dia, terá o prazo de 80 dias para obter a aceitação do plano pelos

credores. Durante esses 180 dias, em virtude do direito de exclusividade, nenhum

outro plano pode ser apresentado”.

122 U.S.C. § 343: “The debtor shall appear and submit to examination under oath at the meeting of

creditors under section 341(a) of this title. Creditors, any indenture trustee, any trustee or examiner in the case, or the United States trustee may examine the debtor. The United States trustee may administer the oath required under this section.”

123 U.S.C. § 341 (b): “(b) The United States trustee may convene a meeting of any equity security holders.”

124 Tudo isto está previsto no § 1121 do U.S. Code. In verbis: “(a) The debtor may file a plan with a petition commencing a voluntary case, or at any time in a voluntary case or na involuntary case. (b) Except as otherwise provided in this section, only the debtor may file a plan until after 120 days after the date of the order for relief under this chapter. (c) Any party in interest, including the debtor, the trustee, a creditors' committee, an equity security holders' committee, a creditor, an equity security holder, or any indenture trustee, may file a plan if and only if - (1) a trustee has been appointed under this chapter; (2) the debtor has not filed a plan before 120 days after the date of the order for relief under this chapter; or (3) the debtor has not filed a plan that has been accepted, before 180 days after the date of the order for relief under this chapter, by each class of claims or interests that is impaired under the plan.”

125 TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; ABRÃO, Carlos Henrique. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 39.

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Curioso notar que tais prazos podem ser alterados pelo juiz, inclusive para

mais126, por pedido feito por qualquer parte interessada, sempre que este julgar

conveniente, o que não se observa na recuperação judicial de empresas

brasileira, cujos prazos são peremptórios.

O direito de exclusividade cessa após escoados os prazos acima

mencionados ou com o afastamento do devedor e nomeação de um trustee. Com

a cessação, qualquer interessado pode apresentar o plano de reorganização,

inclusive o próprio devedor, conforme disposto no § 1121 (c) do U.S. Code. Caso

mais de um plano seja apresentado, a escolha do melhor deles ficará à cargo dos

credores.

Para decidirem acerca da aceitação do plano reorganizatório, obviamente,

os credores, sócios ou acionistas, devem ter conhecimento do teor do mesmo.

Para tanto, além do plano ou de um resumo deste, devem receber um informe

circunstanciado do plano, chamado de disclosure statement. Este documento,

antes de ser encaminhado aos credores, deve ser aprovado pelo juiz, o que não

implica em pré-julgamento.127

Somente depois de receberem o disclosure statement, que deve fornecer

informações adequadas128 no sentido de fornecer as informações necessárias

levando em conta o tipo de destinatário, podem os credores, sócios ou acionistas

manifestarem-se sobre o plano, seja em sentido positivo ou negativo. Muitas

vezes, se faz necessário emitir um disclosure statement diferenciado para cada

126 U.S.C. § 1121 (d): “d)(1) Subject to paragraph (2), on request of a party in interest made within the respective periods specified in subsections (b) and (c) of this section and after notice and a hearing, the court may for cause reduce or increase the 120-day period or the 180-day period referred to in this section.”

127 Tal está previsto no § 1125 (b) do U.S. Code: “(b) An acceptance or rejection of a plan may not be solicited after the commencement of the case under this title from a holder of a claim or interest with respect to such claim or interest, unless, at the time of or before such solicitation, there is transmitted to such holder the plan or a summary of the plan, and a written disclosure statement approved, after notice and a hearing, by the court as containing adequate information. The court may approve a disclosure statement without a valuation of the debtor or an appraisal of the debtor's assets.”

128 O U.S. Code, em seu § 1125, (a) (1) define o que é “informação adequada”: “(a) In this section - (1) "adequate information" means information of a kind, and in sufficient detail, as far as is reasonably practicable in light of the nature and history of the debtor and the condition of the debtor's books and records, including a discussion of the potential material Federal tax consequences of the plan to the debtor, any successor to the debtor, and a hypothetical investor typical of the holders of claims or interests in the case, that would enable such a hypothetical investor of the relevant class to make an informed judgment about the plan, but adequate information need not include such information about any other possible or proposed plan and in determining whether a disclosure statement provides adequate information, the court shall consider the complexity of the case, the benefit of additional information to creditors and other parties in interest, and the cost of providing additional information.”

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classe, a fim de que cada uma possa ter total ciência dos aspectos do plano

reorganizatório.

O plano reorganizatório dirige-se a todos os credores, sócios e acionistas

do devedor. Ele divide-se em classes da maneira mais conveniente para cada

caso concreto, a única restrição é a de que os interesses de todas as classes

sejam tratados de forma similar129, o que não significa que deva existir igualdade

(o Prof. Paulo Fernando Campos Salles de Toledo explica que uma classe pode

ser, por exemplo, paga em dinheiro e a outra em títulos).130 Por outro lado, dentro

de cada classe há que haver um tratamento igual dos credores.

O conteúdo do plano reorganizatório está definido na § 1123 (a) e (b). As

possibilidades são diversas, tais como a venda de toda ou parte da massa

concursal; distribuição da totalidade ou parte dos bens para quem detenha algum

direito sobre eles; e modificação no estatuto da empresa que tenha forma de

sociedade anônima de cláusulas que proíbam a emissão de ações sem direito à

voto.

O sub-parágrafo (a) (5)131 dispõe, de forma exemplificativa, 10 meios

adequados para a execução do plano, como, por exemplo (item A), retenção pelo

devedor de toda ou parte da propriedade da massa.

A aceitação do plano está regulamentada no § 1126, do Título 11, do U.S.

Code. Podem votar todos aqueles que tiverem seus interesses envolvidos, e a

129 11 U.S. C., § 1122 (a): “a) Except as provided in subsection (b) of this section, a plan may place a claim or an interest in a particular class only if such claim or interest is substantially similar to the other claims or interests of such class.”

130 TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. A empresa em crise no direito francês e americano. 1987. 107 f. Dissertação (Mestrado em Direito Comercial) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1987. p. 42.

131 11 U.S.C. § 1123: “(5) provide adequate means for the plan's implementation, such as - (A) retention by the debtor of all or any part of the property of the estate; (B) transfer of all or any part of the property of the estate to one or more entities, whether organized before or after the confirmation of such plan; (C) merger or consolidation of the debtor with one or more persons; (D) sale of all or any part of the property of the estate, either subject to or free of any lien, or the distribution of all or any part of the property of the estate among those having an interest in such property of the estate; (E) satisfaction or modification of any lien; (F) cancellation or modification of any indenture or similar instrument; (G) curing or waiving of any default; (H) extension of a maturity date or a change in an interest rate or other term of outstanding securities; (I) amendment of the debtor's charter; or (J) issuance of securities of the debtor, or of any entity referred to in subparagraph (B) or (C) of this paragraph, for cash, for property, for existing securities, or in exchange for claims or interests, or for any other appropriate purpose.”

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votação se faz por classes. Quanto ao quorum para aceitação do plano, Ariel

Àngel Dasso132 dispõe que o plano é aceito pela classe quando o mesmo recebe

a concordância dos credores que possuem ao menos dois terços do capital e

mais da metade dos créditos de cada classe. A aceitação do plano pelas classes

de interesse, como os acionistas, demanda a concordância de no mínimo dois

terços do montante da classe. As classes não inseridas no plano não podem

interferir na aprovação ou reprovação do mesmo.

O 11 U.S.C. § 11 1129 (b) trata do cram-down, que significa uma exceção

à regra da necessidade de aceitação do plano por todas as classes para

homologação judicial. Pelo cram-down, o juiz tem a faculdade de impor aos

dissidentes a aceitação do plano133, sempre buscando a solução mais justa e

adequada para a hipótese.134 O cram-down tem por objetivo evitar que motivos

pessoais e de caráter não econômico impeçam que um plano justo, apresentado

honestamente, seja recusado. Para tanto, o plano deve ser justo e eqüitativo (fair

and equitable).

132 DASSO, Ariel Angel. Tendências actuales del derecho concursal. Buenos Aires: Ad Hoc, 1999. p. 653.

133 11 U.S.C. § 1129 (b): “(b) (1) Notwithstanding section 510(a) of this title, if all of the applicable requirements of subsection (a) of this section other than paragraph (8) are met with respect to a plan, the court, on request of the proponent of the plan, shall confirm the plan notwithstanding the requirements of such paragraph if the plan does not discriminate unfairly, and is fair and equitable, with respect to each class of claims or interests that is impaired under, and has not accepted, the plan.”

134 DASSO, op. cit., p. 631, assim se manifesta acerca do cram-down: “Se prevê um procedimiento llamado “cramdown”, gracias al cual el proponente del plan puede requerir al juez que el mismo sea homologado igualmente em el caso de que la mayoría no se hubiera obtenido em todas y cada una de las clases.”

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A homologação judicial ocorrerá após a manifestação dos interessados.

Trata-se da confirmation, que depende do preenchimento de todos os requisitos

previstos nos 16 sub-parágrafos do § 1129 (a) do Título 11 do U.S.Code.135 Ariel

Àngel Dasso136 elenca como requisitos mais importantes os que se seguem: (a)

boa-fé (além de contar com o requisito da boa-fé, o plano de reorganização não

pode prever qualquer meio defeso por lei); (b) factibilidade (o plano deve ser

mostrar eficiente, no sentido de realmente evitar a liquidação futura da empresa

ou a necessidade de nova reorganização); (c) pagamento em dinheiro (algumas

classes de credores devem ser pagas em dinheiro (cash), como a dos

empregados); e (d) aceitação por parte dos credores (o plano deve ser aceito por

pelo menos uma classe de credores e cada credor deve receber no mínimo o que

receberia em caso de liquidação da empresa).

Uma vez homologado judicialmente, o plano de reorganização obriga à

todos os que participem das relações jurídicas por ele abrangidas e equacionada,

e impõe-se sobre tudo o que se referir juridicamente ao devedor. As obrigações

anteriores à homologação do plano reorganizatório são extintas, restando ao

devedor apenas as assumidas no plano.

Eis, portanto, os aspectos gerais do procedimento reorganizatório previsto

pela legislação americana e que indubitavelmente influenciaram a nossa

recuperação de empresas, que será melhor detalhada mais adiante. Em verdade,

os institutos concursais estadunidenses vêem influenciando todas as reformas

elaboradas em legislações concursais européias e latino-americanas desde o

século XIX.

135 TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. A empresa em crise no direito francês e

americano. 1987. 107 f. Dissertação (Mestrado em Direito Comercial) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1987. p. 44 (grifo do autor), destaca alguns dos requisitos exigidos para homologação do plano reorganizatório: “[...] (1) deve o plano atender às disposições aplicáveis previstas no capítulo 11; (3) o plano deve ter sido proposto de boa fé e não ofender nenhuma proibição legal; (7) em cada classe, todos os que tiverem claims ou interests devem, ou ter aceitado o plano, ou estar previsto que deverão receber pelo menos o que receberiam em caso de liquidação; (8) com relação às classes: devem estas ter aceitado o plano, ou não ter tido seus direitos alterados; (11) o plano deve ser viável, ou seja, não aparentar que será seguido pela liquidação ou pela necessidade de reorganização do devedor ou seu sucessor, a não ser quando uma ou outra tiverem sido propostas no plano. Este último - § 1129 (1) (11) – é um dos requisitos primordiais do plano, que deve ser fair, equitable e feasible.”

136 DASSO, Ariel Angel. Tendências actuales del derecho concursal. Buenos Aires: Ad Hoc, 1999. p. 654.

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2.3 Recuperação Extrajudicial e Judicial de Empresas Privadas

Não há dúvidas de que a principal inovação trazida pela Lei nº 11.101/2005

é o instituto da recuperação de empresas, judicial e extrajudicial.

Conforme já argumentado, a legislação brasileira precisava se adequar aos

novos paradigmas do direito concursal mundial, consistente na criação de

instrumentos com o intuito de superar as crises e, consequentemente, evitar a

falência. Tudo com vistas à preservação da empresa, o “motor” da vida moderna.

A velha concordata não logrou alcançar este objetivo e, por isto, precisava ser

substituída com urgência.

A recuperação judicial e extrajudicial foram criadas com este intuito137, a

exemplo de várias outras legislações mundo afora. A Reorganization do direito

americano influenciou, e muito, na recuperação de empresas brasileira.

A disciplina jurídica da concordata foi verificada, pela primeira vez, nos

estatutos das cidades italianas da Idade Média. Tratava-se de um meio mais

favorável de se resolver a situação econômica crítica do devedor. Para que a

concordata fosse levada a efeito, bastava a adesão da maioria dos credores. Em

alguns estatutos, exigia-se a intervenção do magistrado para que a concordata

produzisse efeitos e concedia-se aos credores dissidentes o direito de fazerem

oposição a ela. No entanto, uma vez homologada, a concordata se tornava

obrigatória para todos, inclusive para os dissidentes.

No Brasil, a concordata, na modalidade suspensiva (aquele concedida no

decorrer do processo falimentar), foi introduzida no ordenamento jurídico, pela

primeira vez, no Código Comercial de 1850, que continha regras simples acerca

do instituto, mas já exigia, de forma clara, a presença da boa-fé para gozo do

137 O relator do Projeto de Lei que deu origem à Lei de Falência e Recuperação de Empresas, Sem. Ramez Tebet, assim se manifestou em seu Relatório. “Em lugar da atual concordata – um regime ao qual poucas empresas conseguem sobreviver e que tem como desfecho mais freqüente a decretação da falência – criam-se as opções da recuperação extrajudicial e da recuperação judicial. No primeiro caso, propomos um modelo em que não seja compulsória a participação de todos os credores e em que apenas os mais relevantes sejam chamados a renegociar seus créditos, de forma a permitir a reestruturação da empresa sem comprometimento das características, prazos e valores dos créditos pertencentes aos demais credores. Na recuperação judicial, um processo mais formal e realizado sob controle da Justiça, os credores devem formar maioria em torno de um plano de recuperação. Se o plano não for aprovado ou não atingir suas metas de recuperação, aí sim caberá ao juiz decretar a falência”’. BRASIL. Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. Parecer sobre o PLC nº 71/2003. Relator: Ramez Tebet. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/web/senador/ramez/lei%20de%20recupera%E7%E3o%20de%20Empresas.pdf>. Acesso em: 20 out. 2009. p. 20.

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benefício.138 Além da concordata, o Código Comercial previa, também, a

moratória (dilação do prazo para solução das obrigações), de origem romana, que

consistia num benefício ao devedor infeliz e de boa-fé.139 Ela foi abolida em 1902,

pela Lei 859. A concordata preventiva (aquela que era requerida preventivamente,

com vistas a evitar a falência) surgiu no Brasil apenas em 1890, com o Decreto nº

917. Existiam duas formas de concordata preventiva: a judicial e a extrajudicial.

A concordata, tanto suspensiva quanto preventiva, foi regulamentada pela

Lei nº 2.024/1902. Essa última sofreu modificações consideráveis com a reforma

aprovada pelo Decreto nº 5.746/1929, posteriormente revogado pelo Decreto-lei

nº 7.661/1945.

Durante a vigência da revogada Lei de Falências, a concordata era tida

como um “favor legal”, pois bastava o preenchimento dos requisitos legais,

independentemente da vontade dos credores, para que o devedor dela se

utilizasse, tanto para evitar a falência quanto para suspendê-la, caso ela já

estivesse em curso.

Cesare Vivante apud Ecio Perin Junior140, esclarece que a concordata era

uma convenção homologada pelo Tribunal, através da qual os credores

facilitavam ao falido o pagamento dos seus débitos, devolvendo-o a direção de

seus negócios. A “facilitação” ao falido se dava através de remissões parciais

(redução do valor de débitos quirografários) e dilações (prorrogação do prazo para

pagamento das obrigações).

Muitas eram as críticas quanto à concordata, pois ela era constantemente

utilizada por devedores inescrupulosos como instrumento de enriquecimento

indevido.

Os juristas em geral clamavam por uma reformulação urgente do instituto,

requerendo fosse determinada a obrigatoriedade de apresentação de um plano de

138 O art. 848 do Código Comercial de 1.850 assim dispunha: “Art. 848 - Não é licito tratar-se da concordata antes de se acharem satisfeitas todas as formalidades prescritas neste Título e no antecedente: e se for concedida com preterição de alguma das duas disposições, a todo o tempo poderá ser anulada. Não pode dar-se concordata no caso em que o falido for julgado com culpa ou fraudulento, e quando anteriormente tenha sido concedida, será revogada.”

139 A moratória estava prevista no Título VII do Código Comercial, que englobava do art. 898 ao 906. 140 PERIN JUNIOR, Ecio. Curso de direito falimentar e recuperação de empresas. São Paulo: Método, 2006. p. 333.

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viabilidade econômica para fins de concessão do benefício. Só assim, a

concordata atingiria o seu fim de evitar a falência.141

É por este motivo que a criação da recuperação de empresas foi tão

comemorada, pois ela veio ao encontro dos anseios dos estudiosos deste ramo

do direito e dos interesses econômicos e sociais dos empresários e da sociedade

como um todo. Como bem ressalta o Prof. Luiz Antonio Soares Hentz142, não se

trata de mera reforma com alteração apenas de aspectos formais. A Lei nº

11.101/2005 introduziu no contexto econômico-jurídico princípios antes

inexistentes ou pouco valorizados, como o da manutenção da unidade produtiva,

dos empregos e da fonte geradora de tributos, alterando, consideravelmente, a

relação entre credores e devedores.

Neste momento do trabalho, analisaremos detidamente tanto a

recuperação judicial como extrajudicial de empresas privadas. Não entraremos,

ainda, na questão central do trabalho que é a aplicabilidade da recuperação às

sociedades de economia mista, o que está reservado para a terceira parte.

2.3.1 Recuperação Extrajudicial

Além de ter se alinhado à tendência mundial de preservação da empresa, a

Lei nº 11.101/2005 seguiu, ainda, a tendência de desjudicialização dos

procedimentos concursais, com a supressão do poder do juiz, legando aos

credores a tomada de decisão quanto à superação da crise da empresa. Com

isto, pretende-se alcançar melhores possibilidades de solução da crise e redução

dos custos.

A recuperação extrajudicial de empresas está prevista no Capítulo VI da

Lei nº 11.101/2005, abarcando do art. 161 ao art. 167 deste Diploma Legal. Trata-

se de uma inovação importante, na medida em que, conforme ressalta Luiz

141 Ecio Perin Junior faz uma crítica certeira à concordata: “A mera moratória ou redução dos valores devidos aos quirografários sem qualquer compromisso fundamentado e viável de recuperação da empresa nada mais era do que um calote institucionalizado, ou melhor, o prenúncio de uma morte anunciada, o que agravava os prejuízos, principalmente dos credores quirografários, caso não fosse evitada a efetiva insolvência, com conseqüente declaração da falência do devedor.” PERIN JUNIOR, Ecio. Curso de direito falimentar e recuperação de empresas. São Paulo: Método, 2006. p. 334.

142 Cf. HENTZ, Luiz Antonio Soares. Manual de falência e recuperação de empresas. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005. p. 1.

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Antonio Soares Hentz143, prestigia o empresariado nacional ao criar uma disciplina

apropriada à figura informal do acordo ou da transação individual, limitando a

intervenção judicial apenas para a supressão de omissões e desinteresses em

face dos pequenos e médios empresários.

A previsão do instituto da recuperação extrajudicial pela Lei de Falência e

Recuperação de Empresas expressamente privilegiou a adoção de soluções de

mercado, ou seja, sem, ou com intervenção mínima do Poder Judiciário. Essa

intervenção mínima se dá pela homologação judicial do plano de recuperação144,

fato que visa somente dar maior certeza e segurança aos credores e estender os

efeitos do plano a certos credores não signatários, conforme se esclarecerá mais

adiante.

O instituto em comento representa, nitidamente, a superação do

pensamento que dominava o Decreto-lei nº 7.661/1945, pois durante a vigência

deste a convocação extrajudicial de credores para propor-lhes uma renegociação

dos seus créditos representava ato de falência. Caso o devedor não lograsse

êxito em convencer à todos os seus credores, o dissidente ou os dissidentes

poderiam levar a proposta do mesmo ao conhecimento do juiz competente, que,

constatando a prova do fato, poderia decretar a falência do devedor.

O instituto da recuperação extrajudicial é mais flexível já que concede aos

credores maior poder de negociação, ao contrário do que ocorre na recuperação

judicial, quando os credores são obrigados a aceitar a proposta do devedor, se

satisfeitos os requisitos legais.

O que ocorre na recuperação extrajudicial é uma reunião livre e espontânea

de credores e devedor com o intuito de encontrarem juntos uma saída para a crise, o

que se dará através da confecção de um plano de recuperação que, na maioria das

vezes, deverá ser homologado pelo Poder Judiciário.

Luiz Antonio Soares Hentz145 anota ainda que a criação da recuperação

extrajudicial legalizou o que se chamava no jargão jurídico, até então, de

“concordata branca”, utilizada pelas grandes empresas em dificuldades

143 HENTZ, Luiz Antonio Soares. Manual de falência e recuperação de empresas. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005. p. 124.

144 A Lei nº 11.101/2005 não exige, necessariamente, a homologação judicial de acordos particulares firmados entre credores e devedores, até porque o art. 167 estabelece que “O disposto neste Capítulo não implica impossibilidade de realização de outras modalidades de acordo privado entre o devedor e seus credores.”

145 HENTZ, loc. cit. p.128.

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financeiras que desejavam negociar com seus credores sem praticar atos em

nome próprio, o que era possível através da outorga de mandato à um banco de

investimentos, que mediava negociação. A autorização legal para que haja

negociações privadas entre credores e devedores dispensa a intermediação do

agente financeiro.

Para fazer jus à recuperação extrajudicial, o devedor, à teor do que dispõe

o art. 161 da Lei de Falência e Recuperação de Empresas, deve preencher os

requisitos previstos no art. 48 da mesma lei, elencados no caput e nos quatro

incisos deste dispositivo. Estes requisitos são os mesmos exigidos para o

requerimento da recuperação judicial de empresas. Para tanto o devedor: deve

exercer suas atividades há mais de dois anos; não ter falido ou, se o foi, ter suas

responsabilidades declaradas extintas por sentença transitada em julgado; não ter

gozado da recuperação há menos de cinco anos; não ter gozado da recuperação

há menos de oito anos com base no plano especial de recuperação judicial para

Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (art. 70 à 72 da Lei nº

11.101/2005); não ter sido condenado por crime previsto na Lei nº 11.101/2005; e

não ter administrador ou sócio controlador que tenha sido condenado por crime

previsto na Lei nº 11.101/2005.

Cumpridos estes requisitos, desde que não haja nenhum outro

impedimento, como o previsto no § 3º do art. 161146 (existência de pedido de

recuperação judicial pendente; e gozo, há menos de dois anos, da recuperação

judicial ou extrajudicial), o devedor que assim o desejar pode propor e negociar

com seus credores um plano de recuperação extrajudicial.

Mas não são todas as espécies de crédito que estão sujeitas à recuperação

extrajudicial. O plano extrajudicial pode abarcar todos os créditos passíveis de

recuperação judicial, que serão abordados mais adiante, exceto os créditos de

natureza tributária, que em razão da indisponibilidade do direito público não podem

ser negociados, a não ser por meio de lei especial; os derivados da legislação do

trabalho ou decorrentes de acidente de trabalho, que pelos arts. 9º, 444 e 468 da

CLT, são também indisponíveis; os decorrentes do direito de propriedade, previstos

146 § 3º O devedor não poderá requerer a homologação de plano extrajudicial, se estiver pendente pedido de recuperação judicial ou se houver obtido recuperação judicial ou homologação de outro plano de recuperação extrajudicial há menos de 2 (dois) anos.

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no art. 49, § 3º da Lei n° 11.101/2005, e os decorrentes de adiantamento de contrato

de câmbio para exportação, previsto no art. 86 da mesma lei.

Estes credores, independentemente da existência de plano de recuperação

extrajudicial, podem, a qualquer momento, executar os seus créditos.147

O conteúdo do plano de recuperação extrajudicial não sofre restrições

severas, justamente para possibilitar a adoção de soluções de mercado. O que há

são algumas proibições que visam proteger a coletividade de devedores e

credores inescrupulosos que tentar se utilizar do instituto de forma indevida. Uma

das formas de proteção da coletividade reside no § 2º do art. 161, da Lei de

Falência e Recuperação de Empresas, que assim dispõe: “§ 2º O plano não

poderá contemplar o pagamento antecipado de dívidas nem tratamento

desfavorável aos credores que a ele não estejam sujeitos.” Marcos Andrey Souza

entende que este dispositivo não veda o tratamento diferenciado entre os

credores sujeitos ao plano, sendo, para ele, possível o favorecimento de alguns

em detrimento de outros. Segundo tal autor: “A legislação atual é visivelmente

mais flexível neste aspecto. Com efeito, não se percebe no sistema atual o

atendimento à par conditio creditorum com a mesma rigidez do sistema antigo.”148

O que o dispositivo em comento visa é evitar o tratamento diferenciado em

relação aos credores que não foram abrangidos pelo plano de recuperação, o que

se mostra importante, especialmente se levarmos em conta a hipótese prevista no

art. 163 a Lei de Falência e Recuperação de Empresas que, conforme será

melhor esclarecido mais adiante, faz com que o plano abranja credores não

147 No entanto, Marcos Andrey Souza faz uma observação importante quanto à exclusão dos créditos trabalhistas e os previstos no art. 49, § 3º e art. 86 da Lei nº 11.101/2.005 da recuperação extrajudicial: “Tratando-se de débitos de natureza tributária a regra é justificável, tendo em vista o princípio da indisponibilidade do patrimônio público, não podendo ente se sujeitar a negociações privadas [...]. Tratando-se dos demais créditos mencionados no § 1º do art. 161 a situação é bem diferente. O que a nova lei de falências está impedindo é que estes créditos façam parte do plano de recuperação extrajudicial a ser levado para homologação em juiz nos moldes nela preconizados. Não impede, todavia, e nem poderia fazê-lo, que o devedor procure tais credores para propor-lhes negociaçõe5s extrajudiciais. Tanto que o artigo 157, adiante comentado, elucida que o disposto na lei não impede a realização de outros modos de acordo privado. Neste sentido, não só pode, como deve o empresário negociar com seus credores trabalhistas, se houver necessidade, celebrando os acordos devidos, inclusive com interferência do sindicato de classe, se for o caso. Da mesma forma, deve e pode negociar com os credores detentores dos créditos elencados no art. 49, § 3º e art. 86, também em acordos privados regidos pelo Código Civil (confissão de dívida, transação, aditamentos a contratos, dentre outros).” SOUZA, Marcos Andrey. Comentários aos artigos 157 a 167. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord.). Comentários à nova lei de recuperação de empresas e de falências. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 589.

148 Ibid., p. 583.

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signatários do mesmo. Contudo, alguns autores não comungam deste

entendimento. É o caso, por exemplo, de Fábio Ulhoa Coelho que menciona como

requisito da recuperação judicial que “[...] todos os credores sujeitos ao plano

devem receber tratamento paritário, vedado o favorecimento de alguns ou o

desfavorecimento apenas de parte deles [...].”149

Quanto à homologação do plano de recuperação extrajudicial, verificamos

a existência de duas espécies, que são denominadas das mais diversas formas

pelos variados autores. O Prof. Luiz Antonio Soares Hentz150, por exemplo, fala

em plano impositivo e consensual. Ecio Perin Júnior151 fala em homologação

facultativa152 e obrigatória. Marcos Andrey Souza153 se utiliza das denominações

“modalidade de adesão total” e “modalidade de imposição à minoria”.

O que todos querem dizer e diferenciar é o seguinte: credores e devedores

gozam de plena liberdade para negociarem entre si (desde que não se trate de

créditos excluídos da recuperação extrajudicial, previstos no art. 161, § 1º da Lei

nº 11.101/2005), no entanto, nada impede que o respectivo instrumento de

negociação seja levado à homologação judicial (homologação consensual,

facultativa ou de adesão total). Quando assim o for, somente serão atingidos pelo

plano os credores signatários. São três as vantagens que levam as partes a

buscar a homologação neste caso: (a) a constituição de título executivo judicial,

nos termos do § 6º do art. 161 da Lei de Falência e Recuperação de Empresas154;

(b) vedação ao credor signatário de desistir de sua adesão sem a expressa

149 COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova lei de falências e de recuperação de empresas. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 395.

150 HENTZ, Luiz Antonio Soares. Manual de falência e recuperação de empresas. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005. p. 133.

151 PERIN JUNIOR, Ecio. Curso de direito falimentar e recuperação de empresas. São Paulo: Método, 2006. p. 356.

152 Marcos Andrey critica a denominação “homologação facultativa”, pois, para ele, em se tratando da figura jurídica da recuperação extrajudicial, a homologação é sempre obrigatória. Do contrário, não estaríamos diante de uma recuperação extrajudicial regida pelo direito falimentar, mas de mero acordo privado, regido pelo Código Civil. A diferença das espécies de homologação não reside na sua obrigatoriedade ou não, mas sim na extensão dos efeitos que se pretende produzir, se só para os signatários ou também para a minoria dissidente. SOUZA, Marcos Andrey. Comentários aos artigos 157 a 167. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord.). Comentários à nova lei de recuperação de empresas e de falências. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 589.

153 Ibid., p. 581. 154 § 6º A sentença de homologação do plano de recuperação extrajudicial constituirá título executivo judicial, nos termos do art. 584, inciso III do caput, da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil.

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anuência de todos os demais subscritores, nos termos do § 5º do art. 161155; (c)

possibilidade de alienação em hasta pública de filiais ou unidades produtivas

isoladas, quando o acordo constar a providência, conforme art. 166.156 Essa

hipótese de homologação está prevista no art. 162 da Lei nº 11.101/2005.

Por outro lado, há a hipótese prevista no art. 163, que é a chamada de

plano impositivo, homologação obrigatória ou modalidade de imposição à

minoria. Neste caso, o intuito da homologação judicial é vincular todos os

credores abrangidos pelo plano, ainda que os mesmos não sejam signatários.

Para tanto, o plano deve contar com a assinatura dos credores que

representem mais de três quintos de todos os créditos de cada espécie por ele

alcançada.157 Trata-se de uma medida bastante salutar, pois evita a ação

especulativa e oportunista de determinados credores, especialmente pequenos

credores que desejam aproveitar-se da situação de crise para obter vantagens

indevidas, o que pode comprometer a possibilidade de recuperação da empresa

em crise, o que não é nada desejável e nem compatível com o espírito da Lei de

Falência e Recuperação de Empresas.

Mas, para obter a homologação e consequentemente a subsunção da

minoria dissidente ao plano de recuperação, o devedor deve cumprir os requisitos

de ordem geral, previstos no art. 161, e os específicos, previstos no art. 163.

155 § 5º Após a distribuição do pedido de homologação, os credores não poderão desistir da adesão ao plano, salvo com anuência expressa dos demais signatários.

156 Art. 166. Se o plano de recuperação extrajudicial homologado envolver a alienação judicial de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor, o juiz ordenará a sua realização, observado, no que couber, o disposto no art. 142 desta Lei.

157 Sergio Campinho exemplifica claramente esta situação: “Assim, se o devedor desejar, por exemplo, compor com a totalidade de seus credores com garantia real e com a dos quirografários, por traduzirem o montante significativo de suas dívidas, providência necessária ao reerguimento da sua empresa, basta contar com a assinatura de credores que traduzam mais de três quintos de todos os créditos com garantia real e quirografários, porque no caso proposto serão as espécies por ele abrangidas. Se setenta por cento dos primeiros e oitenta por cento dos segundos assinaram o plano, por exemplo, este, uma vez homologado, se estende a todos que nele foram contemplados, inclusive àqueles que não o firmaram. [...] A homologação judicial supre a necessidade da adesão voluntária desse universo reduzido de credores.” CAMPINHO, Sérgio. Falência e recuperação de empresa. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 454.

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O art. 164 da Lei de Falência e Recuperação de Empresas traz o

procedimento da recuperação extrajudicial, caso o plano seja submetido à

homologação, que é bastante simples, se comparado ao da recuperação

judicial.158 As disposições do art. 164 se aplicam tanto à homologação prevista no

art. 162 (homologação consensual, facultativa ou de adesão total), quanto à

prevista no art. 163 (plano impositivo, homologação obrigatória ou modalidade de

imposição à minoria). Não há constituição do Comitê de Credores e nem

Convocação da Assembleia Geral de Credores.

Na hipótese do art. 162, o pedido de recuperação extrajudicial não

demanda maiores formalidades, bastando que o mesmo seja instruído com o

requerimento, a competente justificativa e o instrumento que contenha seus

termos e condições, devidamente subscritos pelos credores que à ele aderiram.

No entanto, na hipótese do art. 163, o requerimento do devedor deve ser instruído

com outros documentos, previstos no § 6º do art. 163 da Lei de Falência e

Recuperação de Empresas.159

Recebido o plano de recuperação extrajudicial160, deve o juiz ordenar a

publicação de edital no órgão oficial e em jornal de grande circulação nacional ou

das localidades da sede e das filiais do devedor, convocando os credores a

158 Marcos Andrey Souza destaca o seguinte: “O procedimento é por demais simplificando, em atendimento às necessidades de celeridade e economia processual. Não possui decisões interlocutórias e outros incidentes processuais, resumindo-se no aforamento, intimação editalícia, informação por carta, impugnação com possibilidade de resposta, decisão e recurso.” SOUZA, Marco Andrey. Comentários aos artigos 157 a 167. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord.). Comentários à nova lei de recuperação de empresas e de falências. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 598.

159 Estes documentos, segundo Sergio Campinho são: “[...] (a) a justificativa do acordo celebrado; (b) seu instrumento que traduza os termos e as condições, com as assinaturas de credores que representem mais de três quintos de todos os créditos de cada espécie por ele abrangidos; (c) a exposição de sua situação patrimonial; (d) as demonstrações contábeis relativas ao último exercício social e as levantadas especialmente para instruir o pedido, confeccionadas com estrita observância da legislação societária aplicável e compostas obrigatoriamente de: (i) balanço patrimonial; (ii) demonstração de resultados acumulados; (iii) demonstração do resultado desde o último exercício social; (iv) relatório gerencial de fluxo de caixa e de sua projeção; (e) os documentos que comprovem os poderes dos subscritores para novar ou transigir, relação nominal completa dos credores, com a indicação do endereço de cada um, a natureza, a classificação e o valor atualizado do crédito, discriminando sua origem, o regime dos respectivos vencimentos e a indicação dos registros contábeis de cada transação pendente.” CAMPINHO, Sérgio. Falência e recuperação de empresa. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 459.

160 Ressalte-se que ao receber a petição inicial, muito embora a legislação falimentar nada preveja neste sentido, pode o juiz, por aplicação subsidiária do art. 284 do CPC, determinar a emenda da mesma, caso constate a sua incompletude ou a falta de algum documento, concedendo ao proponente o prazo de 10 dias para tanto. Por outro lado, conforme mandamento do parágrafo único do art. 284 c/c 195, VI, ambos também do CPC, se o devedor não cumprir a exigência do juiz, pode este indeferir a petição inicial.

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apresentarem suas impugnações, caso haja alguma.161 O prazo para tanto,

conforme § 2º do art. 164, é de 30 (trinta) dias, contados da publicação do edital.

Junto com a impugnação, o devedor deve apresentar a prova de seu crédito. O

teor de tais impugnações é restrito às possibilidades previstas no § 3º do art. 164,

que são: (a) não preenchimento do percentual mínimo exigido para homologação

prevista no art. 163; (b) prática de qualquer dos atos previstos no inciso III do art.

94 ou do art. 130 da própria Lei nº 11.101/2005; (c) descumprimento de requisito

previsto na Lei nº 11.101/2005; (d) descumprimento de qualquer outra exigência

legal. Trata-se de um rol exaustivo, portanto, eventual impugnação somente pode

ser feita se versar sobre alguns destes assuntos.

Caso seja apresentada qualquer impugnação, o devedor tem o direito de se

manifestar sobre ela, no prazo de 5 (cinco) dias, conforme dispõe o § 4º do art. 164.

Mas o legislador não se contentou com a publicação do edital e no § 1º

do art. 164 determinou a comprovação, no mesmo prazo do edital, pelo

devedor, de envio de carta à todos os credores sujeitos ao plano,

domiciliados ou sediados no país, cujo conteúdo deve informar a distribuição

do pedido de homologação, as condições do plano e o prazo para

impugnação. Julgamos saudável essa disposição, pois ela garante que os

credores efetivamente tenham ciência da distribuição do plano, o que não é

alcançado com plenitude apenas com a publicação de edital, muitas vezes

ignorado pelos interessados.

Findos os prazos para apresentação de impugnações e para

manifestação do devedor, os autos devem ser imediatamente encaminhados

ao juiz para apreciação de eventuais impugnações. A decisão judicial deve ser

proferida no prazo de 5 (cinco) dias. A homologação ocorrerá se o juiz entender

que não houve prática de qualquer dos atos previstos no art. 130 da Lei de

Falência e Recuperação de Empresas (§ 5º do art. 164); que não há qualquer

outra irregularidade que recomende a sua rejeição (§ 5º do art. 164); e que não há

simulação de créditos ou vício de representação dos credores que representam o 161 Ressalte-se que o caput do art. 164 da Lei nº 11.101/2.005, fala na convocação de todos os credores do devedor para apresentarem suas impugnações, e não apenas dos credores abrangidos pelo plano. Isto porque, evidentemente, o processo de recuperação extrajudicial interesse à todos eles, já que o rumo da empresa lhes interessa diretamente. Ademais, como determina o § 2º do art. 161, o plano de recuperação extrajudicial não pode contemplar tratamento desfavorável aos credores não sujeitos à ele. Assim, é de interesse deste conhecerem o plano de recuperação, para verificarem se estão sendo lesados em seu direito de tratamento igualitário.

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plano (§ 6º do art. 164). Vê-se, portanto, que o juiz, constatada algumas das

hipóteses mencionadas, pode se negar a homologar o plano, ainda que não tenha

havido qualquer impugnação por parte dos credores. No entanto, convém

ressaltar que, em prestígio ao princípio da economia e celeridade processual,

caso o juiz constate algum vício considerado facilmente sanável, este pode

determinar o seu saneamento, ao invés de rejeitar o plano de pronto, o que

acarretaria perda de todo o trabalho desenvolvido até então e necessidade de se

iniciar um novo procedimento. Em suma, formalismos exacerbados não podem

inviabilizar o procedimento, que pretende ser célere e eficiente.

Da sentença que homologa o plano, conforme § 7º do art. 164, cabe

apelação, sem efeito suspensivo, ou seja, a sentença produz seus efeitos, muito

embora haja recurso pendente de julgamento. Este recurso pode ser proposto tanto

pelo devedor quanto pelos credores. Sergio Campinho162 entende que os credores

que não apresentarem impugnações ao plano de recuperação não estão legitimados

a interpor recurso de apelação contra a sentença que o homologou.

Se for constatada alguma das hipóteses mencionadas acima e,

consequentemente, o plano não for homologado, o devedor poderá, após corrigir

as desconformidades do plano anterior, apresentar um novo plano de

recuperação extrajudicial. Portanto, a rejeição do plano pelo juiz, em hipótese

alguma, acarreta a decretação da falência do devedor, até porque tal seria contra

o espírito na atual lei concursal, que, conforme já exaustivamente mencionado,

visa solucionar as crises das empresas e mantê-las em funcionamento. A

decretação automática da falência neste caso, evidentemente desencorajaria os

devedores a buscar a recuperação extrajudicial.

Em regra, o plano passa a produzir efeitos apenas após a sua homologação,

conforme caput do art. 165.163 No entanto, é possível que a produção de efeitos se

inicie antes da homologação judicial, desde que o plano assim o preveja e desde que

exclusivamente em relação à modificação do valor ou da forma de pagamento dos

credores signatários.164 É o que dispõe o § 1º, do mencionado art. 165. Caso ocorra a

produção antecipada de efeitos e, posteriormente, o plano não for homologado, à teor

162 CAMPINHO, Sérgio. Falência e recuperação de empresa. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 461. 163 A lei fala em homologação e não em trânsito em julgado, até porque eventual recurso a ser interposto não tem efeito suspensivo.

164 Como a produção antecipada de efeitos só pode se dar em relação aos credores signatários, evidentemente não pode ocorrer na hipótese do art. 163.

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do § 2º do mesmo dispositivo, devolve-se aos credores signatários o direito de exigir

seus créditos nas condições originais, deduzidos os valores já efetivamente pagos.

Mister ressaltar que, conforme propugna o § 4º do art. 161 da Lei nº

11.101/2005, o fato de o devedor ter pleiteado a homologação judicial de plano de

recuperação extrajudicial não acarreta a suspensão de direitos, ações ou execuções

dos credores não sujeitos à ele, e nem mesmo significa a proibição de que estes

peçam a decretação da falência do devedor. Por outro lado, numa interpretação à

contrario sensu deste dispositivo, podemos concluir que a distribuição do pedido de

homologação do plano provoca a suspensão das ações e execuções promovidas

pelos credores por ele abrangidos, bem como, impede que estes requeiram a

falência do proponente devedor. Como a lei não especifica o prazo de tal suspensão,

por interpretação analógica ao art. 6º, § 4º, podemos concluir que o prazo de

suspensão deve ser 180 (cento e oitenta) dias. Marcos Andrey Souza165 sugere que,

por precaução e para evitar discussões, o plano preveja como ficarão as ações já

propostas e a hipótese de propositura de medidas futuras.

2.3.2 Recuperação Judicial

Como já exaustivamente ressaltado, a partir da entrada em vigor da Lei nº

11.101/2005, as empresas e sociedades empresárias brasileiras passaram a

contar com um novo instrumento jurídico voltado para a superação das situações

de crise econômico-financeiras, instrumento este que preocupa-se com o

prosseguimento da atividade empresarial, em detrimento da liquidação definitiva

da empresa, o que era fato recorrente durante a vigência do Decreto-lei nº

7.661/1945.166

165 SOUZA, Marco Andrey. Comentários aos artigos 157 a 167. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord.). Comentários à nova lei de recuperação de empresas e de falências. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 587.

166 Convém ressaltar que, apesar de estarmos reiteradamente enaltecendo a importância da recuperação de empresas e do fato de que ela evita a falência, a Lei nº 11.101/2.005 não deixou o instituto da falência em segundo plano. Pelo contrário, ele também sofreu reformulações com vistas a se tornar mais eficiente. Portanto, o ideal da lei não é evitar a falência a todo custo. Na verdade, quando não houver viabilidade econômica, o que se pretende é que se instaure rapidamente o processo falimentar, que deve ser encerrado o mais rápido possível e de maneira a maximizar, no máximo, os ativos da empresa ou sociedade empresarial falida. Não se trata, portanto, de buscar à todo custo o salvamento de toda sorte de empresas. O que se busca é salvar apenas o salvável.

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O fato é que a criação da recuperação judicial de empresas foi muito

festejada por estudiosos, juízes e advogados.167 Não que se trate de um instituto

perfeitamente acabo e indene de defeitos. No entanto, ele representa um passo

importante na história jurídica brasileira, já que se constitui num avanço

significativo se comparado à velha concordata da legislação revogada. Essa,

como já mencionado, tratava-se de um “favor legal”, pois independia, por

completo, da vontade dos credores, buscando proteger apenas e tão somente os

interesses do devedor. Por outro lado, a recuperação tem horizontes mais amplos,

preocupando-se com a utilidade social da empresa, além de possibilitar maior

participação dos credores no seu desenvolvimento. Este caráter de “socialidade” é

bastante nítido no art. 47 da Lei168, que descreve os objetivos da recuperação

Judicial de empresas. Mas o destaque deste dispositivo não é só para

preocupação social da Lei, mas também para a sua preocupação com a

atividade econômica. O Prof. Newton de Lucca169 destaca que a expressão

“estímulo à atividade econômica” não constava na redação original do artigo

em comento, tendo sido incluída com o intuito de deixar clara a preocupação

do legislador com o incremento da atividade empresarial.170

167 Aliás, vale registrar que a Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação dos Advogados de São Paulo e o Instituto dos Advogados de São Paulo, prestaram significativa colaboração aos trabalhos que resultaram na Lei de Falência e Recuperação de Empresas, na medida em que ofereceram subsídios aos legisladores, especialmente ao Dep. Oswaldo Biolchi e aos Senador Ramez Tebet.

168 Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

169 LUCCA, Newton de. Comentários ao artigo 47. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord.). Comentários à nova lei de recuperação de empresas e de falências. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 204.

170 Neste sentido, o Senador Ramez Tebet, em seu Parecer, destaca que a nova legislação buscou efetivar a harmonização entre a eficiência econômica e o respeito ao direito dos mais fracos.

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Para fazer jus à recuperação judicial de empresas, o devedor171 deve

cumprir os requisitos previstos no art. 48 da Lei nº 11.101/2005.172

Também podem requerer a recuperação o cônjuge sobrevivente, os

herdeiros do devedor, o inventariante ou sócio remanescente, conforme

permite o parágrafo único do dispositivo legal mencionado acima. Há que se

ressaltar que estes são os requisitos para que o devedor requeira a

recuperação judicial, ou seja, para que obtenha o processamento do pedido.173

Por outro, para obter a efetiva concessão da recuperação judicial, o devedor

deve cumprir os pressupostos previstos na seção IV da Lei, que serão

comentados mais adiante.

A recuperação judicial é consideravelmente mais ampla que a revogada

concordata. O caput do art. 49 da lei dá conta dessa amplitude, quando frisa que a

mesma se estende a todos os créditos existentes na data do pedido174, ainda que

não vencidos. No entanto, temos que lembrar que o § 3º do mesmo art. 49 dispõe

algumas exceções à abrangência da recuperação. Trata-se da chamada pela

doutrina “trava bancária”. Segundo tal dispositivo, estão excluídos da recuperação

judicial o credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou

171 Por “devedor”, à teor do que dispõe o art. 1º da Lei, há que se entender o empresário individual (pessoa física) e a sociedade empresária (pessoas jurídica).

172 Art. 48. Poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos e que atenda aos seguintes requisitos, cumulativamente: I – não ser falido e, se o foi, estejam declaradas extintas, por sentença transitada em julgado, as responsabilidades daí decorrentes; II – não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial; III – não ter, há menos de 8 (oito) anos, obtido concessão de recuperação judicial com base no plano especial de que trata a Seção V deste Capítulo; IV – não ter sido condenado ou não ter, como administrador ou sócio controlador, pessoa condenada por qualquer dos crimes previstos nesta Lei.

173 LUCCA, Newton de. Comentários ao artigo 47. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord.). Comentários à nova lei de recuperação de empresas e de falências. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 215, destaca que a os pressupostos para requerer a recuperação judicial, no aspecto redacional do dispositivo, são bastante parecidos com os do revogado Decreto-lei nº 7.661/1.945, quando este tratava da concordata preventiva, no entanto o mencionado autor ressalva que, na interpretação dos pressupostos para requerimento da recuperação judicial, há que se levar em conta os modernos princípios insculpidos na nova lei. São estas as suas palavras: “[...] embora a redação seja parecida, ou em alguns casos idêntica à da antiga lei, a análise dos pressupostos merece uma avaliação segundo um prisma diferenciado, eis que os bens jurídicos a serem tutelados não são necessariamente os mesmos, conforme se depreende do disposto no art. 47. No entanto, o mesmo autor pondera que o dispositivo legal em questão não conseguiu atingir integralmente a almejada separação entre empresa e empresário, pois alguns pressupostos ainda estão ligados à pessoa do devedor, como se a recuperação judicial fosse beneficiá-lo exclusivamente.”

174 Por “crédito” não se pode entender única e exclusivamente as obrigações pecuniárias. Esta expressão deve ser entendida em sentido amplo, incluindo, por exemplo, as obrigações de fazer e até mesmo de não fazer.

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imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel

cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou

irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em

contrato de venda com reserva de domínio.

Não obstante, o próprio § 3º acima mencionado proíbe a venda ou retirada,

durante o prazo de suspensão previsto no § 4º do art. 6º da lei, ainda que por

estes credores, de bens de capital essenciais à atividade empresarial.175 Portanto,

no prazo de 180 dias de suspensão das ações e execuções contra o devedor,

este não pode ser desapossado de bens cedidos em garantia fiduciária, desde

que estes sejam instrumentos indispensáveis à manutenção da atividade

econômica do devedor.

175 Eduardo Secchi Munhoz faz clara observação acerca deste dispositivo legal: “Por outro lado, o § 3º do art. 49, ao impedir a venda ou retirada do bem do estabelecimento do devedor, desde que essencial a sua atividade empresarial, procura preservar a integridade do patrimônio do devedor até o exame do plano de recuperação. Trata-se de uma proteção relevante, quase equivalente à que decorre da aplicação do stay period aos créditos em geral. É parcialmente diferente dos efeitos gerais do stay period porque o credor fiduciário poderia mover ação ou execução para cobrar o valor de seu crédito mesmo no curso do prazo de 180 dias contados do deferimento do processamento da recuperação, ficando impedido apenas de vender ou de retirar o bem essencial à atividade da empresa nesse período.” MUNHOZ, Eduardo Secchi. Cessão fiduciária de direitos de crédito e recuperação judicial de empresa. Revista do Advogado, São Paulo, ano 29, n. 10, p. 33-47, set. 2009. Por outro lado, Manoel Justino Bezerra Filho critica o dispositivo, pois entende que o prazo de 180 dias é exíguo e, portanto, insuficiente para que o devedor consiga superar o estado de crise que exigiu o pedido de recuperação. BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação e falências comentada. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2005. p. 136.

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Ademais, o § 4º do art. 49 exclui do âmbito de aplicação da recuperação

judicial a importância referida no inciso II do art. 86176, que são aos créditos

decorrentes de adiantamentos de contratos de câmbio (ACC). Essa exclusão

se justifica pela importância de tal crédito, pelos baixos custos incidentes177, e

se coaduna com o teor da Súmula 307 do Superior Tribunal de Justiça, a qual

enuncia que “[...] a Restituição de Adiantamento de Contrato de Câmbio, na

Falência, deve ser atendida antes de qualquer crédito.” Luis Cláudio Montoro

Mendes178 observa apenas que o privilégio previsto no art. 151 da Lei, para

créditos trabalhistas vencidos nos 3 meses anteriores, até o limite de 5 salários

mínimos por trabalhador, por seu turno, contraria tal Súmula do STF, já que

determina o pagamento de tais créditos trabalhistas “tão logo haja

disponibilidade em caixa”, ou seja, antes mesmos dos créditos decorrente de

ACC. Segundo este mesmo autor, não há ainda decisões que abordem o tema.

A nosso ver, a súmula não deve prevalecer sobre a disposição do art. 151 da

Lei, primeiro por questão de interpretação hierárquica; segundo porque anterior

à Lei nº 11.101/2005, não se coadunando com os princípios e diretrizes

estabelecidos por essa. Portanto, os créditos previstos no art. 151 devem ser

pagos antes mesmo dos previstos no inciso II do art. 86.

Este art. 49 da Lei nº 11.101/2005, especialmente os seus parágrafos 3º, 4º

e 5º, é o que vem gerando mais polêmica quanto ao instituto da recuperação de

176 Art. 86. Proceder-se-á à restituição em dinheiro: [...] II – da importância entregue ao devedor, em moeda corrente nacional, decorrente de adiantamento a contrato de câmbio para exportação, na forma do art. 75, §§ 3º e 4º, da Lei n. 4.728, de 14 de julho de 1965, desde que o prazo total da operação, inclusive eventuais prorrogações, não exceda o previsto nas normas específicas da autoridade competente;

177 Elias Katudjian ressalta que o art. 49 da Lei de Falência e Recuperação de Empresas (antes das mudanças art. 48) sofreu mudanças de última hora, que foram introduzidas “a toque de caixa”, no auge da nefasta ação do mensalão na Câmara dos Deputados, para excluir os créditos dos bancos do alcance da recuperação judicial ou extrajudicial. Segundo o mencionado advogado, integrante da Comissão de Estudos Roger de Carvalho Mange – constituída no Instituto dos Advogados de São Paulo, que elaborou o primeiro anteprojeto da Lei de Falências, foi suprimida a parte final do antigo art. 48 (atual art. 49), que assim dispunha: “[...] podendo ainda o plano prever outras condições de cumprimento do contrato, na forma do art. 50, inciso I”. Esta supressão, para o advogado em questão, representou traição à idéia fundamental da reforma da Lei, inviabilizando a consecucao de seus objetivos. As modificações foram introduzidas sob a falsa justificativa de busca pela redução dos spreads, o que, segundo o advogado em questão, ainda não aconteceu. KATUDIJAN, Elias. Pela (re) inclusão dos créditos excluídos da recuperação. Revista do Advogado, São Paulo, ano 29, n. 10, p. 48-53, set. 2009.

178 MENDES, Luis Cláudio Montoro. O crédito extraconcursal previsto no art. 67 da Lei n 11.101/2005: as características do crédito extraconcursal e sua importância como elemento incentivador da continuidade da empresa. Revista do Advogado, São Paulo, ano 29, n. 10, p. 93-100, set. 2009.

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empresas. A grande crítica que se faz é a de que ele teve exclusivamente o

objetivo de privilegiar o crédito bancário, excluindo-o do processo judicial, o que,

em última instância, pode até mesmo inviabilizar o procedimento de recuperação.

No entanto, por outro lado, há autores que defendem tal dispositivo, como Márcio

Calil de Assumpção e Melhim Namem Chalhub179, para quem a exclusão dos

bens e direitos de crédito objeto de garantia fiduciária do plano de recuperação é

medida que se coaduna com a natureza destes bens e direitos, tendo em vista

que eles não integram o patrimônio do devedor, que já os havia transferido, em

caráter fiduciário, ao credor.

São também excluídos do plano de recuperação judicial, os créditos

constituídos posteriormente ao pedido de recuperação.180 A intenção do legislador

com essa exclusão, visivelmente, foi a de estimular os fornecedores de produtos e

serviços a continuarem o fornecimento dos mesmos, o que possibilita a

continuidade do negócio.181

A exemplo do que ocorria no revogado Decreto-lei nº 7.661/1945, os efeitos

da recuperação judicial não atingem os coobrigados, fiadores e obrigados de

regresso, ou seja, estes não estão sujeitos a eventuais dilações ou moratórias, ou

qualquer outra condição estabelecida no plano de recuperação. É o que

determina o § 1º do art. 49 da Lei.

O § 5º do art. 49 trata dos créditos garantidos pelo penhor, sobre títulos de

crédito, direitos creditórios, aplicações financeiras ou valores mobiliários.182 Em

situação normal, ou seja, não havendo processo de recuperação judicial, vencidos

os direitos do devedor, os terceiros podem efetuar os pagamentos, muitas vezes

179 CHALHUB, Melhim Namem; ASSUMPÇÃO, Márcio Calil de. A propriedade fiduciária e a recuperação de empresas. Revista do Advogado, São Paulo, ano 29, n. 10, p. 135-141, set. 2009.

180 Os créditos decorrentes de obrigações contraídas durante a recuperação judicial são considerados extraconcursais, segundo dispõe o art. 67 e 84 da Lei nº 11.101/2.005. Estes créditos, além de não estarem sujeitos à recuperação, gozam de prioridade de pagamento em relação à ordem estabelecida no art. 83 da Lei, em caso de convolação da recuperação em falência, conforme art. 84.

181 Também corrobora com este objetivo a disposição contida no parágrafo único do art. 67 da Lei, que determina que os créditos quirografários sujeitos à recuperação, pertencentes à fornecedores de bens e serviços que continuarem a provê-los normalmente durante o processo, terão privilégio geral de recebimento, em caso de convolação da recuperação em falência.

182 Marcos Andrey Souza explica muito claramente quais são estes créditos: “Neste caso, o devedor contrai determinada dívida e, em garantia ao cumprimento da obrigação contraída, oferece ao credor determinado papel que documenta um crédito que possui perante terceiro ou que pode ser transformado em dinheiro (valores mobiliários), como ainda outros direitos creditórios que possui.” SOUZA, Marcos Andrey. Comentários aos artigos 48 e 49. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord.). Comentários à nova lei de recuperação de empresas e de falências. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 237.

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para o próprio credor, que abaterá a quantia recebida do crédito que possui

perante o devedor. No entanto, quando estiver em curso processo de

recuperação judicial, o § 5º do art. 49 veda tal prática, ou seja, o credor não pode

ficar com a quantia paga pelo terceiro. Por outro lado, o devedor também não

pode se apossar de tal importância, a menos que renove ou substitua a garantia.

Enquanto tal não ocorrer, a importância deve permanecer depositada em conta

vinculada durante o período de suspensão das ações previsto no § 4º, do art. 6º

da Lei.

Importante ressaltar que o legislador andou bem ao tratar do penhor e da

cessão fiduciária em dispositivos distintos, pois, apesar de ambos serem espécies

de contrato de garantia, há uma distinção fundamental entre eles: no penhor, o

devedor não transfere para o credor a propriedade do bem penhorado, enquanto

que na cessão fiduciária a devedor transmite o direito creditório ao cessionário

fiduciário, demitindo-se da titularidade do direito cedido. No primeiro caso

(penhor), a efetivação alcança-se mediante expropriação judicial do bem, seja na

execução individual ou concursal; no segundo (cessão fiduciária), a efetivação é

alcançada mediante a consolidação da propriedade do bem garantido no

patrimônio do credor.

É no seu art. 50 que a Lei de Falência e Recuperação de Empresas fala

acerca dos meios de recuperação. Tal dispositivo contém dezesseis incisos,

sendo que cada um deles se refere a um “meio” de recuperação. Desde já,

convém frisar que o rol contido em tal dispositivo é meramente exemplificativo, ou

seja, outros meios, ainda que não previstos em tal dispositivo, poderão ser

utilizados pelos credores e devedores. Tal conclusão é facilmente retirada da

expressão “dentre outros”, contida no caput do art. 50 da Lei.

A recuperação judicial possui regramento processual próprio, previsto nos

arts. 51 e 52 e 55 à 59 da Lei nº 11.101/2005. Não obstante, as disposições do

Código de Processo Civil são aplicáveis subsidiariamente aos processos de

recuperação judicial. Ou seja, quando a Lei de Falência e Recuperação de

Empresas for omissa sobre determinada questão processual, deve ser aplicado

ao caso concreto o Código de Processo Civil.

A fim de conferir segurança e credibilidade ao instituto, a Lei, em seu §

4º do art. 52, veda a desistência do pedido de recuperação após o

deferimento de seu processamento, a menos que haja aprovação de tal

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desistência pela assembleia geral de credores. Trata-se, portanto, de

vedação a desistência unilateral. O mérito de eventual desistência não pode

ser submetido à revisão judicial. Ao juiz, em casos como este, cabe apenas o

julgamento de questões relativas às formalidades ligadas à formação da

vontade assemblear.

Num processo de recuperação judicial, assim como ocorre também na

falência, são formados vários autos. Sidnei Agostinho Beneti183, em Direito

Falimentar e a Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas,

coordenado por Luiz Fernando Valente de Paiva, compara este fenômeno a

uma imagem geográfica, onde cada auto representa um rio do processo, que

confluem para uma foz comum. São os possíveis autos de um processo de

recuperação judicial: os autos principais, os autos das habilitações e

impugnações de créditos184, os da apuração de responsabilidades185 e os autos

dos processos incidentais de pedidos de restituição, embargos e ações

revocatórias.

Convém ressaltar que a Lei nº 11.101/2005 prevê duas espécies de

procedimento: o procedimento comum, previsto no art. 55, que se destina às

empresas em geral; e o destinado às microempresas ou empresas de pequeno

porte, que é mais simples, e está regulamentado pelo art. 70 da Lei. São duas as

diferenças fundamentais entre ambos: (a) no procedimento simplificado exige-se

menos documentos; e (b) no procedimento simplificado a recuperação é deferida

diretamente pelo juiz, não sendo necessária a convocação da Assembléia Geral

de Credores para deliberar sobre o plano.

O art. 51 da Lei prescreve quais são as informações que devem ser

mencionadas na petição inicial, bem como os documentos que devem instruí-la.

Relevante notar que o plano de recuperação não precisa ser apresentado com a

183 BENETI. Sidnei Agostinho. O processo da recuperação judicial. In: PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito falimentar e a nova lei de falências e recuperação de empresas: Lei 11.101 de 9 de fevereiro de 2005 e LC. 118 de 9 de fevereiro de 2005. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 233.

184 Nem sempre todos estes autos estarão presentes no processo de recuperação judicial, no entanto, os autos principais e os de habilitações e impugnações são obrigatórios.

185 O art. 187 da Lei determina que se o Ministério Público, após ser intimado da sentença que decreta a falência ou concede a recuperação judicial, constatar o ocorrência de qualquer crime, deve promover imediatamente a competente ação penal ou, se entender necessário, requisitar a abertura de inquérito policial.

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petição inicial. Na verdade, a petição não precisa, sequer, mencionar os meios de

recuperação que serão utilizados.

O Plano será apresentado posteriormente, mais especificamente no

prazo de 60 (sessenta) dias a contar da publicação da decisão que deferir o

processamento da recuperação judicial, conforme determina o art. 53 da Lei.186

As exigências a serem cumpridas no momento da apresentação da

petição inicial não se prestam a fundamentar a concessão do benefício. O que

se faz necessário, nesse momento, é apresentar elementos que possam

embasar o processamento da recuperação. O que o legislador pretendeu é

que, com a petição inicial, fosse apresentado um retrato da empresa, de forma

que o Juízo e os credores pudessem ter a real noção da situação econômico-

financeira da mesma. Portanto, a petição inicial deve demonstrar a

necessidade da recuperação judicial e a viabilidade econômica da mesma. Há

que se ressaltar, no entanto, que, muitas vezes, nem o juiz e nem os credores

tem condições de verificar a veracidade das informações contidas na petição

inicial e seus documentos. Assim sendo, a avaliação, neste ponto, acaba

sendo meramente formal, de cumprimento dos requisitos exigidos, e não de

conteúdo. Até porque, aos credores, sequer é dado impugnar o conteúdo das

informações apresentadas. Estes somente poderão se manifestar acerca do

plano, ocasião em que a recuperação já terá sido deferida. Por outro lado, há

que se ressaltar que caso seja constatado, posteriormente, que o devedor

prestou informações inverídicas na sua petição inicial terá praticado o crime

falimentar previsto no art. 171 da Lei (crime de indução a erro)187, e poderá, ou

melhor, deverá, ser punido por isto.

186 São muitos os autores que criticam este prazo de sessenta dias por considerá-lo exíguo. Esta crítica foi formulada, inclusive, pelos ilustres membros do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) – no curso NOVO DIREITO FALIMENTAR por eles ministrados, quais sejam, Manoel Alonso, Rubens Approbato Machado, José Fernando Mandel, Newton de Lucca, Jairo Saddi, Paulo Fernando Campos Salles de Toledo, Manoel Alonso, Luiz Fernando Valente de Paiva, Manoel Justino Bezerra Filho, Ary Oswaldo Mattos Filho, Luiz Augusto de Souza Queiroz Ferraz, Alfredo Luiz Kugelmans, e Antônio Ruiz Filho. Estas autoridades consideram que um prazo de 120 (cento e vinte) ou 180 (cento e oitenta) dias seria mais adequado, pois possibilitaria a apresentação de um plano mais bem elaborado e factível. ALONSO, Manoel. Comentários ao artigo 50. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord.). Comentários à nova lei de recuperação de empresas e de falências. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 253.

187 Art. 171. Sonegar ou omitir informações ou prestar informações falsas no processo de falência, de recuperação judicial ou de recuperação extrajudicial, com o fim de induzir a erro o juiz, o Ministério Público, os credores, a assembléia-geral de credores, o Comitê ou o administrador judicial: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

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A Lei nº 11.101/2005 teve significativo avanço em relação ao revogado

Decreto-lei nº 7.661/1945, pois este previa, em seu art. 161, que o não

cumprimento das formalidades exigidas para a petição inicial da concordata

preventiva acarretaria a decretação da falência em 24 horas. Felizmente, não

há qualquer previsão neste sentido na Lei de Falência e Recuperação de

Empresas, até porque, se assim o fosse, estaríamos diante de uma afronta aos

princípios que regem a atual legislação. A rigidez da regra contida na

legislação revogada era tão patente que muitos eram os juízes, à época, que

se recusavam a aplicar o art. 161 do Decreto e determinavam, com base no

Código de Processo Civil, a emenda da inicial ou, mantida a desobediência, o

indeferimento da petição inicial. Essa é, aliás, a solução a ser aplicada

atualmente, já que a Lei de Falência e Recuperação de Empresas, não prevê

qualquer outra solução para a situação. Relembre-se que por força do art. 189

da Lei, o Código de Processo Civil é plenamente aplicável aos procedimentos

concursais, naquilo que couber.

Ressalte-se que, nos termos do art. 66 da Lei, após a distribuição do

pedido de recuperação judicial, o devedor fica impedido de alienar ou onerar

bens ou direitos seus, a não ser que o juiz se convença da utilidade de tal ato,

o será deferido apenas após a oitiva do Comitê de Credores.

Estando em ordem a documentação exigida no art. 51 a Lei, o juiz,

conforme determina o art. 52 do mesmo diploma, deferirá o processamento da

recuperação judicial. Não se trata, ainda, da efetiva concessão da

recuperação, pois isto dependerá de uma outra decisão a ser proferida mais

adiante, somente após a aprovação do plano de recuperação. Neste momento

processual (deferimento do processamento da recuperação) não há qualquer

interferência dos credores, tratando-se de ato privativo do juiz, que proferirá

um despacho188, analisando única e exclusivamente o cumprimento dos

requisitos previstos no art. 51 da Lei. A jurisprudência já firmou entendimento

de que este despacho é irrecorrível, pois se trata de mero despacho de

expediente. Aliás, sob a égide do Decreto revogado, o Superior Tribunal de

188 É neste momento e através deste mesmo despacho que o juiz deve determinar a emenda da inicial ou deve decretar o indeferimento da mesma, caso constate que o devedor não instruiu a petição inicial satisfatoriamente, conforme argumentado acima.

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Justiça sumulou a matéria: “Súmula 264: É irrecorrível o ato judicial que

apenas manda processar a concordata preventiva”.

É neste despacho que, conforme determina o inciso I do art. 52 da Lei, o

juiz nomeará o administrador judicial, que deve ser profissional idôneo, de

confiança do juiz, preferencialmente advogado, economista, administrador de

empresas ou contador, ou pessoa jurídica especializada, de acordo com o art.

21 da Lei. Frise-se que a escolha do administrador judicial cabe ao juiz, que

não mais está adstrito à regra de preferência pelos maiores credores, como

ocorria na nomeação do síndico durante a vigência da Lei de Falências e

Concordatas. Os deveres do administrador judicial estão elencados no art. 22

da Lei e são consideráveis. Ele deve agir sob a fiscalização do juiz e, para fins

penais, é equiparado a funcionário público, podendo ter suas condutas

tipificadas de acordo com as regras específicas para estes previstas no Código

Penal. Trata-se, portanto, de uma função relevante e de grande

responsabilidade.

Em regra, no processo de recuperação judicial, o devedor se manterá na

condução do negócio. Ele somente será afastado se configuradas as hipóteses

previstas no art. 64 da Lei, quando o administrador judicial assumirá

temporariamente a administração da atividade empresarial, até que seja

nomeado um gestor pela Assembléia de Credores, conforme prescreve o art.

65, § 1º. Ressalte-se que gestor judicial e administrador judicial terão funções

distintas, pois ao primeiro será conferido poder de gestão, o que não se

observa em relação ao segundo, que tem poder de fiscalização dos negócios,

sob a supervisão do juiz.

Além de nomear o administrador judicial, no despacho de deferimento do

processamento da recuperação judicial, o juiz deverá, também, determinar a

dispensa da apresentação de certidões negativas para que o devedor exerça

suas atividades (inciso II do art. 52). Tal determinação tem por objetivo

possibilitar a regular continuidade do negócio do devedor. Trata-se, portanto,

de medida consentânea com o espírito na atual legislação concursal brasileira.

No entanto, este mesmo dispositivo faz uma ressalva, pois a dispensa não

atinge a possibilidade de o devedor contratar com o poder público ou receber

benefícios ou incentivos fiscais sem a apresentação das referidas certidões.

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É também no despacho em comento que o juiz determina a suspensão

das ações e execuções em curso contra o devedor, conforme determina o

inciso III do art. 52 da Lei (automatic stay do direito americano). Tais ações,

embora suspensas, devem permanecer nos respectivos juízos, não sendo,

portanto, necessário que se envie os respectivos autos para o juízo em que se

processa a recuperação. No entanto, a suspensão em questão não atinge

todas as ações havidas contra o devedor. O próprio inciso III do art. 52, acima

mencionado, dispõe três exceções, ou seja, três espécies de ações que

continuam em andamento mesmo durante o processamento da recuperação

judicial. São elas: as ações que versam sobre pedido de quantia ilíquida (§ 1º

do art. 6º da Lei nº 11.101/2005); as ações de natureza trabalhista, que devem

permanecer da Justiça do Trabalho até apuração do respectivo crédito (§ 2º do

art. 6º); as ações de natureza fiscal (§ 7º do art. 6º); e as ações ou execuções

que versem sobre créditos não sujeitos à recuperação judicial (§§ 3º e 4º do

art. 49).

Assim sendo, tem-se que todas as ações e execuções existentes contra

o devedor postulante da recuperação judicial devem ser suspensas, à exceção

das acima mencionadas, previstas na parte final do inciso III do art. 52. As

exceções são taxativas, ou seja, somente não se suspendem as ações

expressamente previstas na Lei. Se assim o é, tem-se que, até mesmo

eventual ação de falência existente contra o devedor deve ser suspensa. Nem

poderia ser diferente, pois, se assim o fosse, o objetivo do instituto da

recuperação judicial, que é o de evitar a falência, seria totalmente frustrado.

Aliás, ao devedor é dado apresentar pedido de recuperação judicial no prazo

de contestação de processo de falência, conforme dispõe o art. 95 da Lei. Em

verdade, não é permitido ao juiz decretar a falência requerida com base no

inciso I do art. 94189, quando o devedor, no prazo de contestação, apresentar

pedido de recuperação judicial. É o que dispõe o inciso VII do art. 96 da Lei.

A suspensão perdurará pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, dentro

do qual deve o devedor apresentar o plano de recuperação. A finalidade da

189 Art. 94. Será decretada a falência do devedor que: I – sem relevante razão de direito, não paga, no vencimento, obrigação líquida materializada em título ou títulos executivos protestados cuja soma ultrapasse o equivalente a 40 (quarenta) salários-mínimos na data do pedido da falência;

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suspensão, conforme ressalta Eduardo Secchi Munhoz190, é interromper a

corrida individual e desordenada de credores, de modo a evitar a liquidação

precipitada de bens integrantes do patrimônio do devedor, o que acarretaria

perda de valor, na medida em que destrói a valor intangível que decorre da

organização do complexo de bens e de direcionamento ao exercício da

atividade empresarial. Além disto, o mesmo autor ressalta que o prazo de

suspensão atribui maior poder de barganha ao devedor em face dos credores,

já que estes ficam impedidos de cobrarem individualmente, neste período, os

seus créditos.

É responsabilidade do devedor comunicar os juízos onde tramitam as

ações a serem suspensas acerca da determinação da suspensão conforme

dispõe o § 3º do art. 52, sob pena de todos os atos processuais praticados em

tais ações serem tidos como válidos, mesmo após a prolação do despacho de

processamento da recuperação. Para tanto, basta que o devedor apresente

nos respectivos juízos uma petição acompanhada de certidão do Cartório onde

tramita a recuperação com as informações necessárias.

Tendo isto em vista, surge uma questão importante: a suspensão surtirá

efeitos desde a prolação do despacho de processamento ou da data em que o

juízo for informado? Marcos Andrey Souza191 entende que a suspensão das

ações é opes legis e a informação por parte do devedor tem caráter

meramente administrativo. Assim sendo, os efeitos devem ser produzidos

desde a prolação do despacho de processamento, ainda que o devedor seja

desidioso e demore tempo considerável para fazer a comunicação necessária.

No entanto, neste caso, entende o referido autor que o devedor deve ser

sujeitar ao pagamento de eventuais perdas e danos causados por sua demora.

Outro aspecto relevante a ser levado em conta quanto à suspensão das

ações e execuções em curso contra o devedor diz respeito à hipótese de

existência de bens penhorados em determinado processo. Segundo o mesmo

Marcos Andrey Souza192, neste caso, a penhora deve ser mantida ao menos

190 MUNHOZ, Eduardo Secchi. Cessão fiduciária de direitos de crédito e recuperação judicial de empresa. Revista do Advogado, São Paulo, ano 29, n 10, p. 34, set. 2009.

191 SOUZA, Marcos Andrey. Comentários aos artigos 51 ao 54. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord.). Comentários à nova lei de recuperação de empresas e de falências. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 285.

192 Ibid..

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até a aprovação do plano de recuperação, já que caso este não seja aprovado,

a ação prosseguirá normalmente, inclusive com a penhora já constituída.

Além da suspensão das ações e execuções, no despacho de

processamento da recuperação judicial, deve o juiz determinar ao devedor que

apresente contas demonstrativas mensais, enquanto perdurar a recuperação

judicial, sob pena de destituição dos administradores. É o que determina o

inciso IV do art. 52 da Lei.

Por fim, neste mesmo despacho, conforme obriga o inciso V do art. 52, o

juiz determinará a intimação do Ministério Público e a comunicação, através de

carta, às Fazendas Públicas Federal, estaduais e municipais em que o devedor

tiver estabelecimentos.

Uma vez deferido o processamento da recuperação judicial, o juiz

ordenará a expedição de edital, para publicação no órgão oficial, cujo conteúdo

deverá abranger o disposto nos incisos I, II e III do § 1º do art. 52193 da Lei. A

publicação de tal edital poderá ser feita, também, em jornal ou revista de

grande circulação regional ou nacional, ou em qualquer outro periódico de

circulação nacional, desde que o devedor comporte tal publicação, conforme

disposição ao art. 191 da Lei. Evidentemente, tais publicações devem ser

suportadas pelo devedor.

Após o deferimento do processamento da recuperação, a qualquer

momento, os credores podem convocar a assembléia geral, seguindo as regras

previstas no art. 36 da Lei, a fim de constituírem o Comitê de Credores ou de

substituírem os seus membros, conforme § 2º do art. 52. Para tanto, é

necessário a concordância dos credores que representem, no mínimo, 25%

(vinte e cinco por cento) do valor total dos créditos de uma determinada classe

de credores (§ 2º do art. 36), desde que os créditos da mesma estejam sujeitos

à recuperação. Ressalte-se que a convocação da assembléia-geral neste

momento se destina exclusivamente à formação do Comitê de Credores ou à

substituição de seus membros, caso este já esteja formado, não se

193 § 1º O juiz ordenará a expedição de edital, para publicação no órgão oficial, que conterá: I – o resumo do pedido do devedor e da decisão que defere o processamento da recuperação judicial; II – a relação nominal de credores, em que se discrimine o valor atualizado e a classificação de cada crédito; III – a advertência acerca dos prazos para habilitação dos créditos, na forma do art. 7º, § 1º, desta Lei, e para que os credores apresentem objeção ao plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor nos termos do art. 55 desta Lei.

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confundindo com aquela eventualmente convocada para deliberar sobre o

plano de recuperação, que será abordada mais adiante.

O § 4º do art. 52 dispõe que, após o deferimento do processamento da

recuperação judicial, o devedor somente pode desistir do seu pedido se obtiver

a aprovação da desistência na assembléia-geral de credores. Tal disposição

nos leva a crer que, antes do deferimento do processamento, o devedor pode

desistir do pedido de recuperação sem qualquer outra formalidade. Uma crítica

que se faz a este dispositivo diz respeito à desnecessidade de aprovação

unânime da desistência, bastando a concordância da maioria, o que facilita

manipulações por parte do devedor, que pode, por exemplo, realizar

negociações à parte com a maioria de credores, quando sentir que seu plano

de recuperação não será aprovado, obtendo a desistência, o que evitaria a

decretação de sua falência, já que o § 4º do art. 56 da Lei determina a

decretação da falência do devedor quando o plano de recuperação for rejeitado

pela assembléia-geral de credores.

Conforme já mencionado alhures, o plano de recuperação judicial não

precisa, necessariamente, ser apresentado juntamente com a petição inicial. A

Lei confere ao devedor o prazo de 60 (sessenta) dias a contar da publicação

da decisão que deferir o processamento para fazê-lo. Trata-se de prazo

decadencial que, portanto, não se prorroga caso venha a cair em feriado ou

final de semana. Ademais, este prazo não pode ser elastecido, ainda que com

a concordância de ambas as partes. Se o devedor desobedecer este prazo,

deixando de apresentar o plano de recuperação, terá a sua falência decretada,

como determina o inciso II do art. 73 da Lei.

Também conforme já ressaltado, o art. 50 da Lei elenca,

exemplificativamente, alguns meios de recuperação que podem ser utilizados

pelo devedor. No entanto, é no art. 53 que a Lei de Falência e Recuperação de

Empresas trata das premissas formais do Plano, ou seja, das informações e

documentos que devem acompanhá-lo, são eles: (a) discriminação

pormenorizada dos meios de recuperação a ser empregados e seu resumo194;

(b) demonstração da viabilidade econômica da empresa; (c) laudo econômico-

194 Muito embora haja a exigência de ampla divulgação e descrição, deve ser preservado o segredo de empresa, não sendo o devedor obrigado a revelá-lo, se for o caso.

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financeiro e de avaliação dos bens e ativos do devedor, subscrito por

profissional legalmente habilitado ou empresa especializada.195

Apresentado o plano de recuperação, deve ser publicado novo edital,

desta vez para comunicar aos credores o recebimento do Plano e para fixar-

lhes o prazo para apresentação de objeções acerca do mesmo, observado o

art. 55 da Lei. A expressão “fixando o prazo para manifestação” contida no

mencionado dispositivo poderia levar à conclusão de que o juiz tem

discricionariedade para fixar este prazo. No entanto, não é assim, pois o art. 55

da Lei já o fixou em 30 (trinta) dias a contar da publicação do edital. Assim

sendo, resta ao juiz, apenas, informar este prazo aos credores. Note-se que a

Lei determina apenas a comunicação do recebimento do Plano, não sendo

necessário publicá-lo na íntegra, o que representaria um custo significativo.

Havendo objeção de qualquer credor ao plano de recuperação judicial,

a decisão acerca da subsistência do mesmo caberá à assembléia-geral de

credores, que deve ser convocada pelo juiz, num prazo não superior à 150

(cento e cinquenta) dias, contados do deferimento do processamento da

recuperação judicial, como determina o caput e o § 1º do art. 56 da Lei.

Ressalte-se que ao juiz cabe exclusivamente convocar a assembléia, pois a

decisão quanto ao plano de recuperação deverá ser tomada por ela. Na

mesma assembléia-geral poderão os credores indicar os membros do Comitê

de Credores, caso tal ainda não tenha sido feito, nos moldes do art. 26 da

Lei.

A Assembléia-geral, ao deliberar sobre as objeções apresentadas,

poderá fazer alterações no plano de recuperação, desde que haja

concordância do devedor e desde que as alterações não acarretem diminuição

dos direitos dos credores ausentes (§ 3º do art. 56). Não obstante, caso o

plano de recuperação judicial seja rejeitado pela assembléia-geral de credores,

o juiz decretará a falência do devedor, conforme determina o § 4º do mesmo

art. 56 da Lei. A disposição pode acabar por inibir os credores a apresentarem

objeções, pois isto geraria o risco de rejeição do Plano e de consequente

195 A determinação de que tal laudo seja elaborado por profissional habilitado ou empresa especializada é salutar, pois caso o mesmo fosse elaborado pelo próprio devedor seria, evidentemente, parcial. Ressalte-se que o profissional que elaborá-lo pode ser responsabilizado por eventuais omissões culposas ou fornecimento de informações falsas.

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decretação da falência do devedor, o que, em regra, não é da vontade dos

credores.

Aprovado o Plano pela assembleia ou decorrido o prazo previsto no art.

55 sem que tenha sido apresentada qualquer objeção por parte dos credores, o

devedor deverá providenciar a apresentação de certidões negativas de débitos

tributários, nos termos dos arts. 151196, 205197 e 206198 do Código Tributário

Nacional (CTN). É o que determina o art. 57 da Lei.

A exigência é alvo de duras críticas por parte da doutrina, já que pode

acabar inviabilizando o instituto da recuperação de empresas, pois é intuitivo que

uma empresa em dificuldades financeiras, a ponto de requerer a concessão de

recuperação judicial, acumula passivos tributários consideráveis.199 Além disso,

Julio Kahan Mandel200 ressalta que as empresas têm dificuldades relevantes para

obter tais certidões, mesmo quando estão em dia com suas obrigações tributárias,

já que a Secretaria da Receita Federal não tem uma boa estrutura de

atendimento, e não raro ocorrem lançamentos indevidos, demorando meses para

que o contribuinte consiga agendar o atendimento para obter a Certidão Negativa

de Débito (CND) desejada. O mesmo advogado relembra os resultados de uma

196 Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário: I - moratória; II - o depósito do seu montante integral; III - as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo; IV - a concessão de medida liminar em mandado de segurança. V – a concessão de medida liminar ou de tutela antecipada, em outras espécies de ação judicial; VI – o parcelamento. Parágrafo único. O disposto neste artigo não dispensa o cumprimento das obrigações assessórios dependentes da obrigação principal cujo crédito seja suspenso, ou dela conseqüentes.

197 Art. 205. A lei poderá exigir que a prova da quitação de determinado tributo, quando exigível, seja feita por certidão negativa, expedida à vista de requerimento do interessado, que contenha todas as informações necessárias à identificação de sua pessoa, domicílio fiscal e ramo de negócio ou atividade e indique o período a que se refere o pedido. Parágrafo único. A certidão negativa será sempre expedida nos termos em que tenha sido requerida e será fornecida dentro de 10 (dez) dias da data da entrada do requerimento na repartição.

198 Art. 206. Tem os mesmos efeitos previstos no artigo anterior a certidão de que conste a existência de créditos não vencidos, em curso de cobrança executiva em que tenha sido efetivada a penhora, ou cuja exigibilidade esteja suspensa.

199 BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação e falências comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 167, assim observa: “Ademais, a observação da realidade demonstra que qualquer pessoa, física ou jurídica, que adentre um estado de crise econômico-financeira, suspende, em primeiro lugar, o pagamento dos tributos em geral, para só por último, suspender o pagamento dos fornecedores. Este procedimento é normal, pois a conseqüência da suspensão do pagamento de fornecedores é causa de inviabilização imediata da atividade empresarial, ou mesmo do normal funcionamento de uma simples família.”

200 MANDEL, Julio Kahan. Certidões Negativas Fiscais: polêmicas em face da recuperação judicial de empresas. Revista do Advogado, São Paulo, ano 29, n. 10, p. 84-92, set. 2009.

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pesquisa realizada pela PriceWaterhouseCoppers, cujos resultados foram

publicados no jornal Valor Econômico de 28/06/2006, no qual foram ouvidos 117

grupos empresariais brasileiros, dentre os quais 92,7% informou já ter sofrido

perda ou atraso em algum negócio em virtude da dificuldade de obter a CND.201

Assim sendo, semelhante exigência contraria frontalmente o princípio da

preservação da empresa, pois se mostra praticamente impossível de ser

cumprida.

Diante disto, a jurisprudência a vem afastando, dando continuidade à

recuperação mesmo sem a apresentação das CND’s. Até porque, a Lei de

Falência e Recuperação de Empresas, em momento algum, prevê aplicação de

qualquer penalidade pela não apresentação das CND’s, muito menos a

decretação da falência. Quanto à isto, convém ressaltar que a versão do Projeto

aprovado pela Câmara dos Deputados previa a decretação da quebra pela não

apresentação da Certidão. No entanto, essa disposição foi alterada pelo Senado,

que extinguiu a pena. Ora, se assim o foi, parece bastante claro que a intenção do

legislador e da sociedade foi a de não permitir a quebra do devedor por não

apresentação das Certidões exigidas pelo art. 57 da Lei.

Com base nisto e no princípio da preservação da empresa, a jurisprudência

vem decidindo, inclusive com o apoio do Ministério Público, em seus pareceres,

ser desnecessária a apresentação de CND’s durante o processo de recuperação

judicial.202

Por outro lado, quanto aos débitos tributários, dispõe o art. 68 da Lei sobre

a possibilidade de que as Fazendas Públicas e o Instituto Nacional do Seguro

Social (INSS) – parcelem seus créditos, de acordo com os parâmetros

estabelecidos no Código Tributário Nacional. Trata-se de dispositivo

indispensável, pois sem ele não seria possível qualquer parcelamento quanto a

estes créditos, dado que a Administração Pública só pode fazer aquilo que a Lei

expressamente permite.

201 MANDEL, Julio Kahan. Certidões Negativas Fiscais: polêmicas em face da recuperação judicial

de empresas. Revista do Advogado, São Paulo, ano 29, n. 10, p. 84-92, set. 2009.. 202 Julio Kahan Mandel destaca dois casos emblemáticos em que a apresentação de Certidões foi dispensada: o caso da Parmalat do Brasil S.A. (processo nº 05.068090-0, da 1ª Vara de Falência de São Paulo), cuja decisão foi da lavra do eminente Juiz Dr. Alexandre Alves Lazzarini; e o caso Varig, no qual houve, inclusive, parecer do Subprocurador-Geral da República no sentido de não ser necessária a apresentação da CND, o que foi confirmado pelo STJ. Ibid., p. 85.

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Em regra, a recuperação judicial será concedida após o cumprimento de

todas as formalidades exigidas, e desde que não tenha havido objeções ao plano,

ou, se houveram, for o mesmo aprovado pela assembléia-geral de credores. No

entanto, o § 1º do art. 58 prevê a possibilidade de concessão da recuperação,

ainda que o plano não tenha obtido aprovação da assembleia nos termos do art.

45 da Lei203, desde que cumpridos três requisitos cumulativamente, a saber: ter o

Plano obtido voto favorável de credores que representem mais da metade do

valor de todos os créditos presentes à assembleia, independentemente de

classes; ter o Plano obtido a aprovação de duas classes de credores, nos termos

do art. 45 da Lei, ou caso haja somente duas classes de credores votantes, a

aprovação de pelo menos uma delas; e ter o Plano obtido voto favorável de mais

de 1/3 dos credores da classe que o rejeitar, computados na forma dos §§ 1º e 2º

do art. 45 da Lei. Por fim, há que se ressaltar que para aprovação pelo juiz de

Plano que não obteve a aprovação da assembleia, este não pode implicar em

tratamento diferenciado entre os credores da classe que o houver rejeitado.

A decisão que concede a recuperação judicial constitui título executivo

judicial, podendo ser atacada por qualquer credor e até mesmo pelo Ministério

Público (art. 59, §§ 1º e 2º da Lei), por meio de agravo de instrumento.

Deferido o pedido de recuperação, inicia-se uma nova fase no

procedimento, que é a fase de execução do Plano. O devedor permanecerá em

estado de recuperação por um período de dois anos, após o que o juiz deve

encerrar o processo, por meio de sentença (art. 61).204 A determinação contida no

inciso V do referido art. 61, de que haja comunicação ao Registro Público de

Empresas, é indispensável, pois este órgão precisa retirar a anotação da

203 Neste caso, é o juiz quem deliberará acerca da aprovação do Plano, não tendo este qualquer obrigação de aprová-lo.

204 O art. 63 da Lei prevê o seguinte: “Art. 63. Cumpridas as obrigações vencidas no prazo previsto no caput do art. 61 desta Lei, o juiz decretará por sentença o encerramento da recuperação judicial e determinará: I – o pagamento do saldo de honorários ao administrador judicial, somente podendo efetuar a quitação dessas obrigações mediante prestação de contas, no prazo de 30 (trinta) dias, e aprovação do relatório previsto no inciso III do caput deste artigo; II – a apuração do saldo das custas judiciais a serem recolhidas; III – a apresentação de relatório circunstanciado do administrador judicial, no prazo máximo de 15 (quinze) dias, versando sobre a execução do plano de recuperação pelo devedor; IV- a dissolução do Comitê de Credores e a exoneração do administrador judicial; V – a comunicação ao Registro Público de Empresas para as providências cabíveis.

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recuperação judicial do registro da empresa, anotação esta feita de conformidade

com o que determina o art. 69 da Lei.205

A qualquer momento, em havendo o descumprimento de obrigações

previstas no plano, poderá ocorrer a convolação da recuperação em falência, nos

termos do art. 73 da Lei, tanto por pedido de qualquer dos credores quanto de

ofício pelo juiz, o que acarretará a reconstituição dos créditos e garantias às

condições originalmente contratadas, deduzidos os valores eventualmente pagos

durante a recuperação.

Uma das conseqüências da concessão da recuperação é a novação dos

créditos anteriores ao pedido, conforme dispõe o art. 59 da Lei.

Importante destacar que, transcorrido o prazo de dois anos previsto no art.

61, tendo restado descumprida alguma obrigação prevista no Plano, pode o

respectivo credor requerer a execução específica da mesma ou falência do

devedor (art. 62).

Um dos meios de recuperação, previsto no art. 50, inciso I, é a concessão

de prazos e condições especiais para pagamento das obrigações vencidas e

vincendas. Como se vê, a Lei não fixou qualquer limite de prazo, sendo facultado

às partes acordarem aquele que melhor lhes aprouver. No entanto, há uma

exceção, prevista no art. 54 e seu parágrafo único, que diz respeito aos créditos

trabalhistas. De fato, o caput do mencionado art. 54 proíbe que o plano de

recuperação preveja prazo superior a 01 (um) ano para pagamento dos créditos

derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho,

vencidos até a data do pedido de recuperação judicial. E mais, o parágrafo único

de tal artigo proíbe que o Plano fixe prazo superior a 30 (trinta) dias para o

pagamento, até o limite de 05 (cinco) salários mínimos por trabalhador, dos

créditos de natureza estritamente salarial vencidos nos 03 (três) meses anteriores

ao pedido de recuperação judicial.

Este tratamento diferenciado se justifica pelo caráter alimentar dos créditos

de natureza trabalhista. Ressalte-se que ele refere-se exclusivamente aos

créditos vencidos, não havendo qualquer objeção a que ocorra negociações

205 Art. 69. Em todos os atos, contratos e documentos firmados pelo devedor sujeito ao procedimento de recuperação judicial deverá ser acrescida, após o nome empresarial, a expressão “em recuperação judicial”. Parágrafo único. O juiz determinará ao Registro Público de Empresas a anotação da recuperação judicial no registro correspondente.

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quantos a salários vincendos. Aliás, a redução salarial, compensação de horários

e redução de jornada, mediante acordo ou convenção coletiva, é um dos meios

de recuperação, previsto no inciso VIII do art. 50 da Lei.

2.4 A Sistemática de Liquidação Extrajudicial de Segmentos Setoriais

O art. 197 da Lei nº 11.101/2005206, tem importante previsão no que tange

à sistemática de liquidação extrajudicial de segmentos setoriais, o qual faz

remissão ao Decreto-lei nº 73/1966, à Lei nº 6.024/1974, ao Decreto-lei nº

2.321/1987 e à Lei nº 9.514/1997.

O Decreto-lei nº 73/1966 dispõe sobre o Sistema Nacional de Seguros

Privados, regula as operações de seguros e resseguros e dá outras providências;

a Lei nº 6.024/1974 dispõe sobre a intervenção e a liquidação extrajudicial de

instituições financeiras, e dá outras providências; o Decreto-lei nº 2.321/1987

institui, em defesa das finanças públicas, regime de administração especial

temporária, nas instituições financeiras privadas e públicas não federais, e dá

outras providências; e a Lei nº 9.514/1997 dispõe sobre o Sistema Financeiro

Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências.

Portanto, como se vê, a despeito da promulgação da Lei nº 11.101/2005,

as instituições financeiras, as seguradoras e a entidades de poupança integrantes

do Sistema Financeiro Habitacional (SFH), continuam sujeitas à liquidação

extrajudicial, prevista em legislação própria, devendo, nestes casos, ser aplicada

subsidiariamente a Lei de Falência e Recuperação de Empresas (LFRE).

A LRFE, no mencionado art. 197, deixa bastante claro que as legislações

que tratam da liquidação extrajudicial das instituições financeiras, das

seguradoras e das entidades de poupança integrantes do SFH devem ser

substituídas por outras, mais modernas e mais condizentes com os novos

paradigmas do direito concursal. No entanto, enquanto isto não acontece, elas

continuam em pleno vigor, contando, contudo, com a aplicação subsidiária da Lei

de Falência e Recuperação de Empresas.

206 Art. 197. Enquanto não forem aprovadas as respectivas leis específicas, esta Lei aplica-se subsidiariamente, no que couber, aos regimes previstos no Decreto-lei n. 73, de 21 de novembro de 1966, na Lei n. 6.024, de 13 de março de 1974, no Decreto-lei n. 2.321, de 25 de fevereiro de 1987, e na Lei n. 9.514, de 20 de novembro de 1997.

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Tal conclusão é corroborada pela disposição do inciso II do art. 2º da Lei nº

11.101/2005, que exclui do âmbito de aplicação da mesma as instituições

financeiras públicas ou privadas, as cooperativas de crédito, os consórcios, as

entidades de previdência complementar, as sociedades operadoras de plano de

assistência à saúde, as sociedades seguradoras, as sociedades de capitalização

e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores.

Ora, se essas entidades estão excluídas da aplicação da Lei nº

11.101/2005, de fato, se faz necessária a manutenção da legislação que

regulamenta a liquidação extrajudicial das mesmas, até que outras sejam

elaboradas, eis que inadmissível a total ausência de possibilidade de liquidação.

O Prof. Newton de Lucca207 observa que o Senador Ramez Tebet, em seu

excelente Relatório, não justificou o porquê da exclusão de tais entidades, o que

nos leva a quedar-nos sem qualquer explicação convincente para tal ato.

Especula-se se essa exclusão teria sido feita em razão da peculiaridade do

funcionamento de tais empresas, em função do interesse público nelas envolvido;

ou, ainda, se fora simples opção do legislador, sem que haja qualquer relevância

axiológica para ela. No entanto, não chega a uma conclusão definitiva, se

limitando a aceitar a idéia de que elas estão excluídas da LFRE e de que

merecem regulamentação própria.

No que tange às instituições financeiras e às empresas de administração

de consórcios, Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa208 observa que o legislador

entendeu que este setor da economia merece um tratamento diferenciado, em

razão das circunstâncias especiais das atividades nele desenvolvidas, que são

marcadas por elevado nível de risco, inclusive sistêmico, ou seja, de que uma

quebra produza nefastos efeitos macroeconômicos.

A atenção especial dispensada à questão da insolvência das instituições

financeiras, reservando-lhes a intervenção e liquidação extrajudicial, é antiga na

tradição legislativa brasileira, e já era objeto da Lei nº 1.808/1953, que foi

revogada pela lei atualmente em vigor, qual seja, a Lei nº 6.024/1974.

207 LUCCA, Newton de. Comentários aos artigos 1º ao 6º. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord.). Comentários à nova lei de recuperação de empresas e de falências. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 89.

208 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Das pessoas sujeitas e não sujeitas aos regimes de recuperação de empresas e ao da falência. In: PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito falimentar e a nova lei de falência e recuperação de empresas: Lei 11.101 de 9 de fevereiro de 2005 e LC. 118 de 9 de fevereiro de 2005. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 103.

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A liquidação extrajudicial de instituições financeiras, conforme dispõe o art.

1º da Lei nº 6.024/1974, deve ser efetuada e decretada209 pelo Banco Central do

Brasil, que tem, inclusive, a preferência sobre o Poder Judiciário.

Cumpre ressaltar que a disposição do inciso II, do art. 2º da Lei nº

11.101/2005 não implica na impossibilidade de decretação da falência das

instituições financeiras, até porque a parte final do art. 1º210 da Lei nº 6.024/1953

expressamente prevê tal possibilidade. Se tal ocorrer, o processo falimentar

deverá seguir as regras previstas na Lei de Falência e Recuperação de

Empresas. O que se tem, portanto, é que as instituições financeiras e as

cooperativas de crédito não podem gozar da recuperação judicial e extrajudicial

previstas na LFRE, podendo, no entanto, terem suas falências decretadas, por

exemplo, a pedido de um credor inconformado com a inércia do Banco Central.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa211 critica a exclusão das instituições

financeiras e das empresas de administração de consórcios do âmbito de

aplicabilidade da Lei de Falência e Recuperação de Empresas (especialmente a

segunda), por entender que o risco sistêmico existente na quebra dessas

empresas, em muitos casos, é até inferior ao risco sistêmico de quebra de

empresas de outras naturezas, que não foram excluídas da Lei.

209 A decretação da liquidação extrajudicial das instituições financeiras pelo Banco Central pode se dar de ofício – inciso I do art. 15 da Lei nº 6.024/1.974 – ou a requerimento dos administradores da instituição, se o respectivo estatuto social lhes conferir esta competência, ou por proposta do interventor – inciso II do mesmo art. 15. Neste segundo caso, conforme dispõe o § 2º do art. 15 da Lei nº 6.024/1.974, o Banco Central do Brasil tem, inclusive, a prerrogativa de decidir se os fatos apontados são graves o bastante para justificar a liquidação extrajudicial, podendo optar pela intervenção, caso julgue esta medida suficiente para normalizar os negócios da instituição e para preservar os interesses dos mercados financeiros e de capitais, que devem estar sempre em vista.

210 Art. 1º. As instituições financeiras privadas e as públicas não federais, assim como as cooperativas de crédito, estão sujeitas, nos termos desta Lei, à intervenção ou à liquidação extrajudicial, em ambos os casos efetuada e decretada pelo Banco Central do Brasil, sem prejuízo do disposto nos artigos 137 e 138 do Decreto-lei nº 2627, de 26 de setembro de 1940, ou à falência, nos termos da legislação vigente. (grifo nosso).

211 Argumenta o autor: “Quanto a essas empresa [empresas de administração de consórcios], seu afastamento da nova lei apresenta-se muito mais sem razão ainda do que o caso das instituições financeiras porque não se trata absolutamente de risco sistêmico ou de dano a mercados estratégicos. A quebra de uma grande construtora como aconteceu com a ENCOL foi muito mais traumática do que seria a insolvência da maior empresa de administração de consórcios em funcionamento no Brasil e, nem por isto, as construtoras foram alijadas dos efeitos da nova legislação de recuperação e de falência de empresas. VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Das pessoas sujeitas e não sujeitas aos regimes de recuperação de empresas e ao da falência. In: PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito falimentar e a nova lei de falência e recuperação de empresas: Lei 11.101 de 9 de fevereiro de 2005 e LC. 118 de 9 de fevereiro de 2005. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 107.

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As cooperativas de crédito estão sujeitas às mesma legislação aplicáveis

às instituições financeiras.

Quanto às sociedades seguradoras e de capitalização212, há que se aplicar

o Decreto-lei nº 73/1966, que prevê a intervenção pela Superintendência de

Seguros Privados (SUSEP), bem como um sistema próprio de recuperação

mediante a concessão por aquela autarquia de tratamento técnico e financeiro

excepcional às seguradoras em crise.213 Não obstante, caso nenhuma dessas

providências surta efeitos, a SUSEP pode promover a liquidação voluntária ou

compulsória da sociedade seguradora, conforme art. 97 do Decreto.214

Tal qual ocorre com as instituições financeiras, diante da inércia da SUSEP

em decretar a intervenção ou promover a liquidação das sociedades seguradoras

e de capitalização, qualquer credor poderá requerer a falência das mesmas, no

entanto, a elas, não será aplicável o instituto da recuperação de empresas.

Por seu turno, também possuem regulamentação própria as entidades de

previdência complementar, que sujeitam-se à intervenção e à liquidação

extrajudicial, nos termos dos artigos 44 à 53 da Lei Complementar nº 109/2001.

A intervenção será decretada para resguardar os direitos dos participantes

e assistidos, desde que cumpridos algum ou mais de um dos requisitos previstos

no art. 44 da Lei Complementar nº 109/2001. Ela cessará quando aprovado o

plano de recuperação da entidade pelo órgão competente. No entanto, a

intervenção pode se mostrar inócua e, como conseqüência, pode ser decretada a

liquidação extrajudicial da entidade, se verificada a inviabilidade de sua

recuperação ou a ausência de condição para o seu funcionamento.

O art. 47 da Lei Complementar nº 109 expressamente exclui a

possibilidade de decretação da falência das entidades fechadas de previdência

212 Em verdade, as sociedades de capitalização são regulamentadas pelo Decreto-lei nº 261/1.967. No entanto, este determina que algumas disposições do Decreto-lei 73/1.966, inclusive as que tratam da liquidação, devem ser aplicadas às sociedade de capitalização. É o que dispõe o art. 4º do Decreto-lei nº 261/1.967, in verbis: “Art. 4º As sociedades de capitalização estão sujeitas a disposições idênticas às estabelecidas nos seguintes artigos do Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966, e, quando fôr o caso, seus incisos, alíneas e parágrafos: 7º, 25 a 31, 74 a 77, 84, 87 a 111, 113, 114, 116 a 121.”

213 Art. 89. Em caso de insuficiência de cobertura das reservas técnicas ou de má situação econômico-financeira da Sociedade Seguradora, a critério da SUSEP, poderá esta, além de outras providências cabíveis, inclusive fiscalização especial, nomear, por tempo indeterminado, às expensas da Sociedade Seguradora, um diretor-fiscal com as atribuições e vantagens que lhe forem indicadas pelo CNSP.

214 Art 97. A liquidação voluntária ou compulsória das Sociedades Seguradoras será processada pela SUSEP.

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complementar. No entanto, ainda que assim não fosse, Haroldo Malheiros Duclerc

Verçosa observa que a falência, nestes casos, se mostra incompatível, pois “[...]

entende-se que o liquidante tem o dever de levar o processo até o momento em

que se dá a apuração de todos os bens do ativo e pagamento do passivo

segundo as forças da moeda da massa.”215

Há que se falar, ainda, das sociedades operadoras de planos de saúde,

que estão sujeitas ao controle da Agência Nacional de Saúde Suplementar –

ANS, que, segundo inciso XXXIV da Lei nº 9.961/2000, era a responsável por

proceder à liquidação extrajudicial e autorizar o liquidante a requerer a falência

ou insolvência civil das mesmas. Em verdade, por determinação do caput e do §

1º do art. 23 da Lei 9.656/1998, a falência e a insolvência civil das operadoras

somente podem ser requeridas no curso da liquidação extrajudicial e se forem

verificadas algumas das hipóteses previstas nos incisos do § º do mencionado

art. 23.

No entanto, Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa observa que “[...] não deve

caber à ANS o papel de coveiro de tais entidades, bem como o de zelador do seu

jazigo, pois a função institucional daquela Agência é bem outra.”216

Por fim, ressalte-se a condição das empresas e entidades do Sistema

Financeiro Imobiliário, regulamentadas pela Lei nº 9.514/1997. Quanto à elas

aplica-se o mesmo entendimento já esposado acima de que são passíveis de

falência.

Como se vê, todas essas entidades foram excluídas do âmbito de

aplicação da Lei nº 11.101/2005, tal qual aconteceu com as empresas estatais.

Acontece que elas têm regulamentação própria para os casos de crise e

liquidação, como defendemos dever existir também para as sociedades de

economia mista (terceira parte do trabalho).

215 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Das pessoas sujeitas e não sujeitas aos regimes de

recuperação de empresas e ao da falência. In: PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito falimentar e a nova lei de falência e recuperação de empresas: Lei 11.101 de 9 de fevereiro de 2005 e LC. 118 de 9 de fevereiro de 2005. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 113.

216 Ibid., p. 114.

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CAPÍTULO 3 RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS NAS SOCIEDADES DE

ECONOMIA MISTA

3.1 Proposições Preliminares

Na primeira parte deste trabalho, falamos da presença do Estado na

atividade econômica, especialmente através da constituição de sociedades de

economia mista. Este tipo de empresa estatal foi analisado mais detalhadamente,

com destaques para os tópicos relevantes para o problema proposto.

Na segunda parte, analisamos a sistemática de recuperação de

empresas, também buscando esmiuçar os aspectos da mesma que mais

interessam ao deslinde do problema proposto.

Agora, nesta terceira parte, cabe-nos verificar a compatibilidade entre a

sistemática de recuperação de empresas e as sociedades de economia mista, ou

seja, resta a questão já formulada no título desta dissertação: A sistemática de

recuperação de empresas é aplicável às sociedades de economia mista? Em outras

palavras: A sociedade de economia mista pode valer-se da sistemática de

recuperação de empresas quando encontra-se em situação de crise econômico-

financeira?

É isto que buscaremos responder a partir deste momento.

Conforme já mencionado nas linhas iniciais deste trabalho, são poucos os

autores nacionais que se debruçam sobre o problema. A maioria deles limita-se a

fazer uma interpretação literal do art. 2º, inciso I da Lei nº 11.101/2005, não admitindo

a recuperação de sociedades de economia mista. No entanto, a questão é profunda

e realmente constitui-se num problema jurídico a ser solucionado.

O conflito surge a partir da análise conjunta do parágrafo 1º do art. 173 da

CF com o art. 2º, inciso I da Lei nº 11.101/2005.1

1 Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; [...] Art. 2º. Esta Lei não se aplica a: I – empresa pública ou sociedade de economia mista; [...]

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O art. 2º, inciso I da Lei de Falência e Recuperação de Empresas

expressamente exclui as sociedades de economia mista do seu âmbito de

aplicação, ou seja, não permite que essas se valham de procedimentos

concursais.

No entanto, por outro lado, o inciso II, do parágrafo 1º do art. 173 da CF

determina que as sociedades de economia mista sejam regidas pelas mesmas

normas que regem as empresas privadas, inclusive no que se refere ao direito

comercial.

E então, afinal, pode a sociedade de economia mista valer-se da

sistemática de recuperação de empresas?

Conforme já dito, os autores nacionais divergem no que se refere ao tema.

Passemos, então, a analisar as posições mais expressivas existentes.

3 2 Posições Doutrinárias

3.2.1 Defensores da Impossibilidade de Utilização da Sistemática de Recuperação

de Empresas pela Sociedade de Economia Mista

A grande maioria dos autores consultados entende que a recuperação de

empresas é inaplicável à sociedade de economia mista, por força do disposto no

art. 2º, inciso I da Lei nº 11.101/2005.

No entanto, restam algumas perguntas: Será que tais autores realmente

pensam dessa maneira ou este posicionamento é resultado de uma interpretação

legalista, gramatical e rasa da Lei nº 11.101/2005? Será que os mesmos não

vislumbram qualquer incompatibilidade entre o art. 173, § 1º da CF e art. 2º, inciso

I da Lei nº 11.101/2005 ou simplesmente não tratam do assunto por não achá-lo

oportuno ou importante?

O fato é que o problema existe e precisa ser enfrentado.

A contradição existente entre a disposição constitucional, que determina a

aplicação do regime jurídico das empresas privadas às sociedades de economia

mista exploradoras de atividade econômica, e o dispositivo da lei concursal, que

exclui a sociedade de economia mista de seu âmbito de aplicação, é, a nosso ver,

evidente.

Mas vejamos o que dizem os autores que pensam diferentemente.

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Fábio Ulhoa Coelho2, em seu “Comentários à Nova Lei de Falências e de

Recuperação de Empresas”, expressamente dispõe que a Lei nº 11.101/2005 não

se aplica às sociedades de economia mista, inclusive no que se refere à

sistemática de recuperação de empresas.

Para o autor “A sociedade de economia mista e a empresa pública não

estão em nenhuma hipótese sujeitas à falência, nem podem pleitear a

recuperação judicial.”3

Note-se que o autor faz questão de ser enfático e utiliza a expressão “em

nenhuma hipótese”, excluindo, inclusive, a possibilidade de que ao menos as

sociedades de economia mista que exercem atividade econômica possam se

valer da recuperação de empresas, como pensam alguns estudiosos que serão

citados mais adiante. Ulhoa Coelho ignora por completo o art. 173 da CF.

Comunga deste entendimento Waldo Fazzio Júnior4, que, no entanto,

chega a fazer menção à disposição contida no art. 173, § 1º da CF. Ele admite

que o dispositivo constitucional submete a sociedade de economia mista ao

regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e

obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários, no entanto, segundo ele, a

determinação não abrange o regime de insolvência, que é especial e específico.

Fazzio Júnior5 ainda menciona que submeter as sociedades de economia

mista ao regime falimentar comprometeria os interesses nacionais que gravitam

em torno dela, haja vista que essas empresas necessitam preservar a sua

competitividade por meio da diminuição dos riscos, dentre os quais a insolvência é

o de maior destaque.

Gladston Mamede também não admite a aplicação da sistemática de

recuperação de empresas às sociedades de economia mista. Segundo o autor, “A

tais entidades aplicam-se as regras do Direito Administrativo, no qual se definem

regras específicas sobre o pagamento de dívidas dos entes públicos, inclusive da

Administração Indireta.”6

2 COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova lei de falências e de recuperação de empresas. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 25.

3 Ibid., p. 26. 4 FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Nova lei de falência e recuperação de empresas. São Paulo: Atlas, 2008. p. 36.

5 Ibid., p. 36. 6 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro. São Paulo: Atlas, 2008. p. 17.

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112

Ainda entre autorizados doutrinadores defensores deste posicionamento,

podemos citar Manoel Justino Bezerra Filho, que trata brevemente das “[...] idas e

vindas do legislador no que diz respeito à sociedade de economia mista”7, no

entanto, mantém a interpretação literal do art. 2º, inciso I da Lei nº 11.101/2005,

não admitindo a recuperação de sociedades de economia mista.

Há também aqueles que identificam o problema, no entanto, se abstêm de

apresentar qualquer hipótese de solução, como Mauro Rodrigues Penteado8, que

menciona que o inciso I do art. 2º da Lei nº 11.101/2005 tem sua

constitucionalidade colocada em dúvida diante do art. 173, § 1º da CF, mas se

limita a isto, sem chegar à qualquer conclusão.

Outro autor que se dedicou ao tema foi Daniel da Silva Ulhoa que, não

obstante, tratou especificamente da falência, nada mencionando acerca da

sistemática de recuperação de empresas.9 A despeito disto, vale a pena trazer à

lume as conclusões deste estudioso.

Para ele, as sociedades de economia mista não podem se valer do

processo de falência, sejam elas prestadoras de serviço público ou exploradoras

de atividade econômica.

Ao contrário do que acontece com a maioria dos autores que defendem

essa ideia, o seu posicionamento não se fundamenta na questão da continuidade

dos serviços públicos, já que, para ele, não se deve confundir a titularidade do

serviço público com a entidade que o presta.

A responsabilidade é do ente federativo, a sua execução é que pode ser

delegada a entidades de direito privado. “Sendo assim, a continuidade do serviço

público deve ser garantida pelo ente federativo (União, estado-membro ou

município) titular do respectivo serviço, seja executando-o diretamente, seja

transferindo-o a outra entidade.”10

7 BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação e falências comentada. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2005. p. 52.

8 PENTEADO, Mauro Rodrigues. Direito anterior. Razões de ordem pública para a exclusão de determinadas atividades negociais da falência, da recuperação, ou de ambas. Compatibilização e adaptação da legislação extravagante. In: SOUZA JÚNIOR, Francisco Sátiro de; PITOMBO, Antônio Sérgio de Moraes A. de. (Coord.). Comentários à lei de recuperação de empresas e falências: Lei 11.101/2005: artigo por artigo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2007. p. 106.

9 ULHOA, Daniel da Silva. Falência das sociedades de economia mista: impossibilidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/3745>. Acesso em: 17 fev. 2010. p. 4.

10 Ibid., p. 5.

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113

Daniel da Silva Ulhoa não ignora a disposição do art. 173, parágrafo 1º,

inciso II da CF, mas ressalta que a Constituição Federal somente admite a

exploração direta de atividade econômica pelo Estado quando necessária aos

imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo (caput do art.

173), o que imprime um caráter publicístico às sociedades de economia mista, a

despeito da disposição constitucional. Segundo ele, “o próprio caráter misto do

capital da sociedade de economia mista, por si só, já presuspõe que esta

empresa não pode ser submetida de forma integral ao regime privatístico”11O

conflito público-privado seria da própria essência da sociedade de economia

mista.

Portanto, o autor entende que, no âmbito das sociedades de economia

mista, na disputa entre o regime público e privado, deve prevalecer o público, em

razão da disposição contida no caput do art. 173 da CF. O interesse privado não

pode se sobrepor ao público, o que ocorreria num eventual processo de falência,

que visa, em regra, a satisfação dos credores. Num processo de falência de

sociedade de economia mista os interesses coletivos e imperativos de segurança

nacional seriam afastados por ato do Poder Judiciário para satisfação de um

interesse privado o que, para ele, é inadmissível.

Repita-se que toda a argumentação de Daniel da Silva Ulhoa está voltada

à questão da falência da sociedade de economia mista, e não da recuperação,

que é o nosso objeto de estudo. Não obstante, os argumentos e pontos de vista

levantados pelo autor, especialmente quando ele discute o regime jurídico

aplicável (se público ou privado), colaboram para o deslinde do problema

proposto, o que justifica as menção feita a ele.

Por fim, citemos a peculiar posição de Haroldo Malheiros Duclerc

Verçosa12, um dos poucos estudiosos a tratar com mais cuidado do assunto em

obra de comentários à Lei nº 11.101/2005. Este autor rechaça a possibilidade de

a sociedade de economia mista valer-se da sistemática de recuperação de

empresas (tanto judicial quanto extrajudicial), mas admite que a mesma valha-se

11 ULHOA, Daniel da Silva. Falência das sociedades de economia mista: impossibilidade. Jus

Navigandi, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/3745>. Acesso em: 17 fev. 2010. p. 6.

12 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Das pessoas sujeitas e não sujeitas aos regimes de recuperação de empresas e ao da falência. In: PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito falimentar e a nova lei de falência e recuperação de empresas: Lei 11.101 de 9 de fevereiro de 2005 e LC. 118 de 9 de fevereiro de 2005 São Paulo: Quartier Latin, 2005.

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do procedimento de falência, pois, caso contrário, “[...] impor-se-ia em

conseqüência ao Estado o dever de manter sempre solventes as sociedades de

economia mista, mesmo quando economicamente inviáveis.”13 Por outro lado, em

razão do princípio da moralidade administrativa (art. 5º, inciso LXXIII), o Estado

não pode deixar insolventes os instrumentos dos quais se utiliza para o exercício

do seu papel constitucional. Assim, diante da insolvência de sociedade de

economia mista (e o autor fala também da empresa pública), o Estado deveria

responder subsidiariamente, nada impedindo o requerimento da falência, por

parte dos credores, quando não pagos os créditos.

O fato é que, para Duclerc Verçosa, se o Estado não se interessar mais por

manter solvente uma determinada empresa estatal, os credores não podem

experimentar qualquer prejuízo. E completa: “Neste caso, a falência implicaria na

liquidação do ente, cujo passivo seria inteiramente pago com a venda dos seus

ativos e a complementação do saldo restante a cargo do Estado, subsidiariamente

responsável.”14

Sem contar que em caso de insolvência, em não se admitindo a falência,

os credores iniciariam uma corrida individual para satisfação de seus créditos, o

que acarretaria a satisfação de apenas alguns em detrimentos de todos os outros,

ferindo a igualdade constitucional de todos os credores de sociedades de fins

econômicos.

Neste diapasão, Duclerc Verçosa conclui que a leitura do art. 173,

parágrafo 1º da Constituição Federal “[...] demonstra de forma cabal a

inconstitucionalidade do inciso I do art. 2º da Nova Lei de Recuperação e de

Falência da Empresas.”15

Quanto à impossibilidade de a sociedade de economia mista recorrer ao

sistema de recuperação de empresas, o autor também utiliza-se do princípio

constitucional da moralidade administrativa para justificar-se. Para ele “Haveria

completa incompatibilidade no sentido de utilização de tal favor legal em relação

13 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Das pessoas sujeitas e não sujeitas aos regimes de recuperação de empresas e ao da falência. In: PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito falimentar e a nova lei de falência e recuperação de empresas: Lei 11.101 de 9 de fevereiro de 2005 e LC. 118 de 9 de fevereiro de 2005 São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 100.

14 Ibid., p. 101. 15 Ibid., p. 100.

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ao Estado, seja na qualidade de único titular da empresa, seja na de acionista

legal e obrigatoriamente controlador.”16

Seria possível citarmos ainda uma série de outros estudiosos que

comungam do entendimento de que a sociedade de economia mista não pode se

valer da sistemática de recuperação de empresas, no entanto, isto tornaria o

trabalho repetitivo e não traria qualquer contribuição, dado que os principais

argumentos usualmente utilizados já foram expostos acima.

A nosso ver, os autores mencionados acima, à exceção de Duclerc

Verçosa, tratam o assunto de maneira muito superficial, ignorando o verdadeiro

problema jurídico que a ele subjaz. Como se sabe, a interpretação literal e/ou

gramatical é pobre e, frequentemente, nos leva à conclusões incompatíveis com a

Constituição e com os princípios constitucionais e gerais de direito.

O ordenamento jurídico deve ser interpretado, dentre outros, pelo método

sistemático, de modo a integrar a norma, a Constituição, os princípios e o ideal de

Justiça, o que não foi feito pela maioria dos autores acima citados. Eles

simplesmente ignoraram a disposição do art. 173, parágrafo 1º da CF.

Diante dessas colocações, evidente que discordamos deste ponto de vista.

Passemos, então, a identificar aqueles que defendem a posição de que a

recuperação de empresas é aplicável apenas às sociedades de economia mista

exploradoras de atividade econômica.

3.2.2 Defensores da Aplicação da Sistemática de Recuperação de Empresas às

Sociedades de Economia Mista que Exploram Atividade Econômica

No início deste estudo tivemos o cuidado de diferenciar as sociedades de

economia mista que prestam serviço público das que exercem atividade

econômica, justamente porque a diferenciação nos seria útil neste momento da

exposição.

Alguns autores que serão mencionados mais adiante defendem a posição

de que somente as sociedades de economia mista que exploram atividade

16 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Das pessoas sujeitas e não sujeitas aos regimes de recuperação de empresas e ao da falência. In: PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito falimentar e a nova lei de falência e recuperação de empresas: Lei 11.101 de 9 de fevereiro de 2005 e LC. 118 de 9 de fevereiro de 2005 São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 102.

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econômica podem se valer da sistemática de recuperação de empresas,

excluindo-se aquelas que prestam serviço público.

É o caso, por exemplo, de Renato Ventura Ribeiro17, um dos poucos

autores dentre os pesquisados que escreveu trabalho específico sobre o

problema ora proposto. Nele, o autor dedica-se principalmente à questão da

falência, no entanto, não deixa de mencionar a recuperação de empresas.

Para ele, o art. 2º, inciso I da Lei nº 11.101/2005 é inconstitucional por

contrariar o art. 173, parágrafo 1º, II da Constituição Federal, já que este

determina a sujeição das empresas estatais às leis comerciais aplicáveis às

empresas privadas, inclusive a de falências.18 No entanto, ainda segundo o autor,

este dispositivo constitucional deve ser interpretado restritivamente, como o fez o

Supremo Tribunal Federal19, de modo que as empresas estatais sejam

equiparadas às empresas privadas, inclusive no que se refere ao regime

concursal, somente quando exercerem atividade econômica em sentido estrito e

não quando prestam serviço público.20

A justificativa é a de que o dispositivo constitucional em comento visa

assegurar a livre concorrência, fazendo com que as empresas estatais que

17 RIBEIRO, Renato Ventura. O regime de insolvência da empresas estatais. In: CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; ARAGÃO, Leandro Santos de (Coord.) Direito societário e a nova lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 110-127.

18 A posição de Renato Ventura Ribeiro de que a legislação falimentar está incluída no âmbito do direito comercial é contrária à de Waldo Fazzio Junior que, conforme ressaltado acima, entende que o regime de insolvência é especial, específico.

19 O STF ainda não se decidiu especificamente sobre a matéria (aplicação da sistemática de recuperação de empresas às sociedades de economia mista), no entanto, no julgamento do RE 172.816, que trata da desapropriabilidade, por Estado, de imóvel pertencente à sociedade de economia mista federal, manifestou-se sobre o teor no inciso II, do parágrafo 1º do art. 173 da CF. Disse o Relator, Sr. Ministro Paulo Brossard: “Em verdade, não tem sentido sujeitar a sociedade de economia mista que desempenha serviço público, em regime de exclusividade, aos preceitos dos §§ 1º e 2º, do art. 173, da Constituição, endereçados à entidades mencionadas que exerçam atividade econômica em regime de concorrência, exatamente para que não se beneficiem de vantagens que as empresas privadas que atuam na mesma área não têm; configurar-se-ia tratamento desigual a comprometer a livre concorrência, que se quer preservar”. O Ministro Francisco Rezek, em comentário à este mesmo dispositivo, falou da intenção do constituinte: “evitar que o Estado, ao fazer coisas não necessariamente afetas aos seus serviços, ao lançar-se na aventura empresarial, possa, pelas empresas por ele controladas, concorrer de modo desleal com o setor privado”. Já o Ministro Carlos Velloso disse o seguinte: “Sustento o entendimento de que é possível a distinção entre empresas públicas e sociedades de economia mista que exploram atividade econômica daquelas outras empresas públicas ou sociedades de economia mista que não exploram atividade econômica, as que executam serviços públicos. [...] Sei que é tormentosa essa distinção, na doutrina. Eminentes publicistas não a admitem, com a finalidade de não sujeitar uma empresa pública, ou uma sociedade de economia mista, ao regime jurídico das empresas privadas, tal como está na Constituição, art. 173, § 1º”.

20 RIBEIRO, loc. cit.

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exerçam atividade econômica não tenham privilégios em relação às empresas

privadas que atuem na mesma área ou em área semelhante.

Em outro artigo sobre o assunto, Renato Ventura Ribeiro21 enfatiza a

aplicabilidade da sistemática de recuperação de empresas (tanto judicial como

extrajudicial) às empresas estatais, invocando o importante princípio da função

social da empresa. Segundo ele, a possibilidade de recuperação judicial ou

extrajudicial, pode auxiliar, em muito, empresas públicas e sociedades de

economia mista em dificuldades. Ele reconhece a função social da sociedade de

economia mista, cujo objetivo não é exclusivamente a obtenção de lucro, mas

alerta que a Constituição é clara ao determinar que haja isonomia com o regime

das empresas privadas. E arremata dizendo ser inadmissível que essas empresas

desperdicem recursos públicos, principalmente levando em conta as regras de

conduta e responsabilidade dos administradores, bem como o princípio da

eficiência, introduzido na Administração Pública pela Emenda Constitucional

19/98.

Celso Marcelo de Oliveira comunga deste entendimento, muito embora não

fale especificamente da sistemática de recuperação de empresas, mas apenas de

“regime falimentar”. Para ele a sociedade de economia mista que explora

atividade econômica deve se submeter ao mesmo regime jurídico das empresas

privadas. “Logo, a sociedade de economia mista que explora atividade econômica

submete-se ao regime falimentar.”22

A sua justificativa está na revogação do art. 242 da Lei nº 6.404/197623,

pela Lei nº 10.303/2002, dispositivo que proibia a falência das sociedades de

economia mista.

No mais, justificando a exclusão das prestadoras de serviço público do

âmbito de aplicação do regime falimentar, Oliveira suscita a não submissão

destas ao regime de livre concorrência, sendo que, em caso de insolvência, os

credores devem cobrar a pessoa jurídica de direito público controladora.24

21 RIBEIRO, Renato Ventura. Exclusão das estatais da nova lei é inconstitucional. JusBrasil, [s.l.], 14 fev. 2005. Notícias. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/noticias/1643668/exclusao-das-estatais-da-nova-lei-e-inconstitucional.com.br>. Acesso em: 17 fev. 2010.

22 OLIVEIRA, Celso Marcelo. Comentários à nova lei de falências. São Paulo: Thomson, 2009. p. 94. 23 Art. 242. As companhias de economia mista não estão sujeitas a falências mas os seus bens são penhoráveis e executáveis, e a pessoa jurídica que a controla responde, subsidiariamente, pelas suas obrigações.

24 Celso Marcelo de Oliveira: “Já a sociedade de economia mista prestadora de serviço público não se submete ao regime falimentar, visto que não está sob o regime de livre concorrência.

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Dentre os administrativistas, podemos citar Celso Antônio Bandeira de

Mello25, que, mesmo escrevendo obra de Direito Administrativo, se debruçou

sobre o problema da aplicação da Lei nº 11.101/2005 às empresas estatais,

fazendo o necessário confronto entre o art. 2º desta Lei e o art. 173, § 1º, inciso II

da CF.

Para ele, somente estão excluídas do âmbito de aplicação da Lei nº

11.101/2005 as empresas estatais que prestam serviços públicos, já que o

dispositivo constitucional (art. 173, § 1º, inciso II) se refere expressamente às

exploradoras de atividade econômica. “Logo, a exclusão não pode alcançar estas

últimas, mas pode, sem incidir em inconstitucionalidade, atingir as ‘prestadoras de

serviço público’, obra pública ou atividade pública em gera.”l26

Bandeira de Mello27 tem posicionamento peculiar no que se refere à

responsabilidade subsidiária do Estado para com os créditos de terceiros. Ele

entende que o Estado não deve responder subsidiariamente por tais créditos,

caso fiquem descobertos, pois se assim o fosse estaria concedendo-lhes um

respaldo de que não gozam os credores das empresas privadas.

Por fim, falemos de Newton de Lucca, um dos raros autores que se

dedicou mais detidamente ao problema proposto neste trabalho.

Em seus comentários à Nova Lei de Recuperação de Empresas e de

Falências28, Lucca traz um item inteiro dedicado a tratar do assunto, com o título

“Liquidação de Empresas Estatais: Uma Solução que Ainda Tarda...”29 Para ele, a

exclusão expressa das empresas públicas e sociedades de economia mista do

âmbito de aplicação da lei falimentar (art. 2º, inciso I) fez com que a discussão

Nas sociedades de economia mista, se o patrimônio social não bastar para o pagamento de seus créditos, seus credores poderão cobrá-los da pessoa jurídica de direito público controladora, que responde subsidiariamente por eles por força no art. 242 da Lei das Sociedades Anônimas.” OLIVEIRA, Celso Marcelo. Comentários à nova lei de falências. São Paulo: Thomson, 2009. p. 94.

25 MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 204.

26 Ibid., p. 206. 27 Ibid. 28 LUCCA, Newton de. Teoria Geral. In: LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord.).

Comentários à nova lei de recuperação de empresas e de falências. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 60.

29 Ibid.

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tenha perdido um pouco o interesse, no entanto, alerta “[...] que ainda nos parece

faltar muito para penetrar no verdadeiro âmago do problema.”30

Uma das observações que o autor faz é a de que é preciso que se faça

distinção entre as empresas estatais que prestam serviço público e as que

exercem atividade econômica, já que, segundo ele, não há razões justificáveis

para que uma empresa estatal que explora atividade econômica não se subordine

às mesmas normas da empresas privadas, de acordo com o comando

constitucional do § 1º do art. 173. Ressalte-se que, ao falar de empresas estatais,

Newton de Lucca inclui as empresas públicas, as sociedades de economia mista

e aquelas empresas que, por ausência de preenchimento dos requisitos legais,

não podem ser consideradas empresas estatais ou sociedades de economia

mista, muito embora sejam controladas pelo Pode Público.31

Assim, este autor conclui que quem deveria estar contemplada no inciso I

do art. 2º da Lei nº 11.101/2005 é exclusivamente a empresa estatal prestadora

de serviço público e não a exercente de atividade econômica.

Na sua argumentação, Lucca suscita a questão do art. 242 da Lei nº

6.404/197632, que regulamenta as sociedades por ações. Este dispositivo,

revogado pela Lei nº 10.303/2001, excluía as sociedades de economia mista da

possibilidade de falência, determinando que os seus bens, por outro lado, fossem

penhoráveis e executáveis, sendo a pessoa jurídica controladora responsável

subsidiária por suas obrigações. Segundo o autor, a revogação foi acertada, pois

o dispositivo mostrava-se inconstitucional, por afrontar as disposições do art. 173,

§ 1º da CF.

E pior, o mencionado art. 242 criava uma assimetria injustificável entre as

sociedades de economia mista e as empresas estatais. Explica-se: este

dispositivo referia-se exclusivamente à sociedade de economia mista, portanto,

esta ficava excluída da possibilidade de falência; no entanto, o mesmo não

acontecia com a empresa pública, que não estava abrangida pelo art. 242, mas o

30 LUCCA, Newton de. Teoria Geral. In: LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord.).

Comentários à nova lei de recuperação de empresas e de falências. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 60.

31 Diante desta observação, constatamos que Newton de Lucca comunga do entendimento de autores como Hely Lopes Meirelles, que admite a existência de três espécies de empresa estatal.

32 Art. 242. As companhias de economia mista não estão sujeitas a falência mas os seus bens são penhoráveis e executáveis, e a pessoa jurídica que a controla responde, subsidiariamente pelas suas obrigações.

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estava pelo art. 173, § 1º, da CF, motivo pelo qual deveria ser submetida ao

mesmo regime das empresas privadas. Portanto, durante o período em que

vigorou o art. 242 da Lei nº 6.404/1976 era possível concluir que as empresas

públicas estavam sujeitas à falência, o que não acontecia com as sociedades de

economia mista.

Um verdadeiro contra-senso, já que, em verdade, a sociedade de

economia mista, por ser formada também por capital privado, aproxima-se muito

mais da empresa privada do que a empresa pública, cujo capital é exclusivamente

público.

Diante disto, parece claro que a revogação do art. 242 da Lei nº 6.404/1976

foi realmente acertada.

No entanto, para Lucca, o legislador de 2005 cometeu o mesmo equívoco

quando excluiu as empresas estatais do âmbito de aplicação da Lei de Falência

de Recuperação de Empresas.33

Por este motivo é que o autor faz uma interpretação sistemática do art. 2º,

inciso I da Lei nº 11.101/2005, confrontando-o com a Constituição Federal para,

ao final, concluir que todas as empresas estatais que explorarem atividade

econômica, por atuarem em regime de concorrência com o setor privado, devem

estar sujeitas ao regime falimentar, o que não deve ocorrer em relação às

empresas estatais prestadoras de serviço público.

Lucca justifica a exclusão das estatais que prestam serviços públicos com o

argumento de que não há razões de qualquer natureza (seja ontológica,

axiológica ou de qualquer outra espécie) “[...] para que uma empresa prestadora

33 Mauro Rodrigues Penteado, ao comentar o art. 2º, inciso II da Lei 11.101/2005 (Antonio Sergio Pitombo – Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência), diz que este dispositivo repristinou os efeitos do revogado art. 242 da Lei das S/A. Confira: “Na redação original da Lei das S/A, sob a rubrica “falência e responsabilidade subsidiária”, o art. 242 dispunha que as sociedades de economia mista não se sujeitavam à falência, respondendo subsidiariamente o Poder Público, seu acionista controlador, por suas obrigações. Esse dispositivo foi revogado pelo art. 10 da Lei 10.303, de 31 de outubro de 2001, que promoveu a última reforma da lei das companhias. O dispositivo comentado vem restabelecer a regra original, cabendo observar que sua revogação já fora ensaiada pela Medida Provisória 151, de 15 de março de 1990, mas o Projeto de conversão, traduzido na Lei 8.029, de 12 de abril de 1990, tornou sem efeito a revogação, em razão do veto recebido pelo art. 25. Como se vê, a lei comentada repristina os efeitos do primeiro dispositivo citado.” PENTEADO, Mauro Rodrigues. Direito anterior, Razões de ordem pública para a exclusão de determinadas atividades negociais da falência, da recuperação, ou de ambas. Compatibilização e adaptação da legislação extravagante. In: SOUZA JÚNIOR, Francisco Sátiro de; PITOMBO, Antônio Sérgio de Moraes A. de. (Coord.). Comentários à lei de recuperação de empresas e falências: Lei 11.101/2005: artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 106.

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de serviço público – estatal ou privada – seja tratada da mesma maneira que uma

empresa – também estatal ou privada – exercente de atividade econômica”.34

Segundo ele, o mandamento constitucional de tratamento igualitário refere-

se ao exercício de atividade econômica, ou seja, no mercado, no qual prevalece,

dentre outros, o princípio da livre concorrência.

No entanto, convém ressaltar que, apesar de expor claramente o seu

posicionamento neste sentido, Newton de Lucca35 faz importante observação no

que se refere à possibilidade de criação de lei específica para regulamentar a

matéria. Essa hipótese será tratada com mais minúcias no item 3.5 deste

trabalho.

3 3 A Experiência Italiana

Na Itália, o Estado também intervém na economia mediante a criação de

empresas públicas, que são aquelas cujo capital ou o patrimônio é dado total ou

parcialmente por um ou mais sujeitos públicos. Quando apenas parte do capital é

conferido pelo sujeito público e a quota conferida é majoritária ou, ao menos,

concede ao ente o controle da empresa, temos uma empresa pública em sentido

estrito. Em caso contrário, temos a empresa mista.36

As empresas públicas podem ser criadas diretamente pelo Estado ou outro

ente público ou podem nascer como empresas privadas, posteriormente

adquiridas pelo poder público ou transferidas a ela (nacionalização).

34 LUCCA, Newton de. Teoria Geral. In: LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord.). Comentários à nova lei de recuperação de empresas e de falências. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 65.

35 Ibid., p. 67. 36 VIETTI, Michele. Le linee guida per una disciplina della crisi delle società pubbliche. In: FIMMANÒ, Francesco (Coord.). Le società pubbliche: ordinamento, crisi ed insolvenza. Milano: Giuffrè, 2011. p. 1.

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122

A empresa pública italiana se divide em empresas públicas de produção

(aziende pubbliche di produzione), hipótese em que são financiadas pelo produto

da venda dos bens e serviços que comercializa; e empresas públicas de

fornecimento (aziende pubbliche di erogazione), que prestam serviços, sendo

financiadas por aportes fiscais. No entanto, Michele Vietti37 explica que nem

sempre a diferença entre empresas públicas de produção e de fornecimento é tão

clara, porque pode haver casos intermediários, como aquelas que funcionam em

parte como de produção e em parte como de fornecimento, as chamadas

empresas públicas compostas. Ou então, pode haver aquela que vende os seus

produtos a um preço inferior ao de mercado, financiando a diferença com aportes

fiscais.

Lá as empresas públicas são criadas com diversos objetivos, tais como:

evitar a formação de monopólio privado; assegurar a prestação de serviços de

interesse público que eventualmente não despertem o interesse na iniciativa

privada em prestá-lo; assegurar o controle público sobre a produção de bens e

serviços indispensáveis ou de relevância particular para a segurança nacional;

estimular o desenvolvimento econômico de áreas menos desenvolvidas do

território nacional ou de setores considerados fundamentais, nos quais há

carência de investimento privado; e reduzir o desemprego, absorvendo a mão-de-

obra em excesso.

O fim principal das empresas públicas italianas também não é a obtenção

de lucro. Michele Vietti38 explica que o lucro não é um objetivo, mas um vínculo,

no sentido do que, na busca pela efetivação dos objetivos pelos quais foram

criadas, as empresas públicas devem operar em condições de economicidade

(economicità).

Isto significa que as empresas públicas devem fechar o seu orçamento com

recursos suficientes para assegurar a adequada remuneração do capital investido.

37 “Nella pratica la distinzioni non à sempre netta, poiché possono presentarsi casi intermedi, como

lê istituzioni che operano in parte come aziende di produzione e, in parte, come aziende di erogazione (nel qual caso si parla di aziende pubbliche composte) o che vendono i loro prodotti ad um prezzo inferiore a quello di mercato, finanziando la differenza com entrate di origine fiscale.” VIETTI, Michele. Le linee guida per una disciplina della crisi delle società pubbliche. In: FIMMANÒ, Francesco (Coord.). Le società pubbliche: ordinamento, crisi ed insolvenza. Milano: Giuffrè, 2011. p. 1.

38 Ibid., p. 2.

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123

No entanto, Vietti39 adverte que isso nem sempre acontece, especialmente em

razão da escolha política de vender os produtos e serviços a preços inferiores aos

custos de produção (o chamado preço político), o que leva à consequente perda

no orçamento do ente público proprietário.

Na Itália, tal qual acontece no Brasil, muito se discute acerca da natureza

jurídica e do regime aplicável às empresas públicas. Michele Vietti40 diz que, no

passado, erroneamente se afirmava que a participação do Estado ou da

administração pública numa sociedade de capital poderia transformar a estrutura

da mesma, fazendo surgir um “ente” de direito especial. Nessa linha, a

jurisprudência administrativa chegou a atribuir à sociedade com participação

pública uma conotação publicística. No entanto, repita-se, para ele, a afirmação é

infundada, pois somente se poderia falar em sociedade de direito especial se

houvesse disposição legal específica revogando as instituições do código civil, no

sentido de imprimir-lhe um fim público incompatível com a lucratividade prevista

na lei civil.

Portanto, a sociedade com participação da administração pública e aquela

com capital exclusivamente privado são equiparadas, estando ambas sob a égide

da disciplina comum das sociedades por ações41, já que na Itália não há norma

especial dispondo de maneira diversa.42

Contudo, este discurso não deve ser aplicado em relação à empresa

pública (e mesmo à privada) que desenvolve atividade qualificada como pública

39 VIETTI, Michele. Le linee guida per una disciplina della crisi delle società pubbliche. In:

FIMMANÒ, Francesco (Coord.). Le società pubbliche: ordinamento, crisi ed insolvenza. Milano: Giuffrè, 2011. p. 1.

40 Ibid., p. 11. 41 “Insomma il legislatore há inteso equiparare le società partecipate da uma P.a. a quelle

partecipate esclusivamente da soggetti privati ed infatti nella Relazione al codice civile si legge che << in questi casi è lo Stato che si assoggetta allá legge della società per azioni per assecurare allá própria gestione maggiore snellezza di forme e nuove possibilita realizzatrici. La disciplina comune della società per azioni deve pertanto applicarsi ache alle società com partecipazione dello Stato o di enti pubblici senza accezioni, salvo che norme speciali nos dispongano diversamente.” FIMMANÒ, Francesco. L’ordinamento delle societa` pubbliche tra natura del soggetto e natura dell’attività. In: ______. (Coord.). Le società pubbliche: ordinamento, crisi ed insolvenza. Milano: Giuffrè, 2011. p. 15.

42 Se trouxéssemos esta interpretação para a realidade brasileira (ou seja, as sociedades de que façam parte o Estado permanecem sujeitas às regras do direito comum, caso não haja lei especial dispondo em contrário) esbarraríamos no art. 2º da Lei 11.101/2005, que é lei especial que exclui as sociedades de economia mista e as empresas públicas do seu âmbito de aplicação, o que, então, levaria à conclusão de que as empresas estatais não podem falir e nem se valer da sistemática de recuperação de empresas . Não obstante, não podemos perder de vista que este dispositivo é inconstitucional, por afrontar o art. 173, § 1º da CF.

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ou de interesse público. Neste caso, as controvérsias eventualmente surgidas

deverão ser atribuídas à jurisdição administrativa.

A expansão da criação de empresas públicas, como forma de intervenção

estatal na economia italiana, verificou o seu clímax no curso do século XX,

seguindo a tendência verificada especialmente na Europa. Não obstante, por volta

da década de 80 deste século, as empresas públicas italianas começaram a

passar por um processo de privatização, de um lado em razão dos influxos da

doutrina neoliberalista, de outro, da constatação dos aspectos negativos deste

tipo de intervenção pública na economia, como os custos elevados e pouca

eficiência.

No entanto, ainda sim, nos dias de hoje, a Itália tem muitas empresas

públicas em funcionamento, cuja regulamentação vem suscitando uma série de

problemas jurídicos, inclusive no que se refere à sujeição das mesmas aos

procedimentos concursais.

A propósito, convém fazermos algumas breves observações acerca do

direito concursal italiano.43

A Itália, seguindo a tendência mundial44, também operou reformas recentes

em sua legislação concursal, com vistas a superar o estado geral de crise que se

alastrou mundo afora e que lá não fora diferente. Tal qual aconteceu na maioria

dos países, também para os italianos, o novo protagonista do direito concursal

passou a ser a empresa.

As reformas em questão aconteceram fundamentalmente no ano de 2005,

através do decreto legislativo nº 35, de 14 de março de 2005, convertido em na lei

nº 80, de 14 de maio de 2005, que instaurou uma nova regulamentação para a

concordata preventiva e para a revocatória concursal, além de ter incorporado ao

ordenamento o acordo de reestruturação das dívidas. Este foi o primeiro capítulo

da reforma integral do direito concursal italiano, vigente desde 1942.

Posteriormente, em 09 de janeiro de 2006, o Governo Italiano editou o

decreto legislativo nº 5, dedicado particularmente ao Título III da lei de falências,

que fala da quebra.

43 DASSO, Ariel Àngel. Derecho concursal comparado. Buenos Aires: Legis, 2008. p. 909. 44 A doutrina italiana, já há algum tempo, vinha reclamando reformas no direito concursal, especialmente porque Alemanha e Espanha já as tinha feito. A Itália precisava, então, adequar-se às exigências do âmbito europeu. Por um lado, pregava-se a reformulação da ordem concursal, por outro, a adequação às sentenças da Corte Constitucional.

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Em suma, após as reformas, o direito concursal italiano passou a contar

com dois institutos judiciais: (a) concordata preventiva, prevista no Título III (arts.

160 a 166), que se constitui num processo desenvolvido sob a vigilância da

autoridade judicial e tem por objetivo salvar a empresa, evitando a liquidação45; e

(b) quebra, prevista no Título II (arts. 55 a 159), que continua sendo um

procedimento judicial liquidatório, que pode desencadear no fechamento da

empresa ou na decretação da concordata na quebra, que tem por objetivo a

alienação unitária do complexo empresarial.

Como se vê, subsiste a concordata preventiva e a concordata solutória. Em

ambas, o poder do juiz é reduzido e não há exigência de requisitos subjetivos,

considerados de mérito, que acabavam por condicionar o acesso ao

procedimento, tais como a inscrição no registro ou a contabilidade regular. Há

liberdade para que empresário e credores possam regular, segundo seus

interesses, as soluções que lhes convenham. A atuação judicial deve ser

reservada para resolver controvérsias e para controlar a regularidade do

procedimento.46 A nova regulamentação mantém raízes claramente privatísticas,

proporcionando fórmulas maleáveis de solução para a reestruturação econômica

e financeira, sem perder de vista o elemento inevitável de todos os procedimentos

concursais, qual seja: a satisfação dos credores.

Há, ainda, dois procedimentos administrativos: (a) a liquidação

administrativa forçada (Título V, arts. 194 a 215), voltada para a satisfação dos

interesses dos credores; e a (b) administração extraordinária das grandes

empresas em crise (“Amministrazione straordinaria delle grandi imprese in crisi”),

regulamentada por lei especial, que tanto pode ter objetivo liquidatário-solutório

(alienação da empresa), quanto conservatório (reestruturação da empresa).

Com as reformas, desapareceu a “Amministrazione controllata”

(Administração controlada), que era um procedimento reservado às grandes

empresas.

45 “Su objetivo es la recuperación de la empresa y su consecuencia, la facilitación de

procedimientos para su permanencia em el mercado, aun com desplazamiento del empresário.” DASSO, Ariel Àngel. Derecho concursal comparado. Buenos Aires: Legis, 2008. p. 922.

46 “Subsiste la doble via del concordato preventivo y el concordato en la quiebra (solutorio). El primero está dirigido a evitar la quiebra, el segundo a ponerle fin: ambos están concebidos como procedimientos cuyo resultado estará supeditado a la decisión de los acreedores expuesta con arreglo a la regla de la mayoría.” Ibid., p. 921.

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Feitas essas observações, passemos, então, ao tema da submissão das

empresas públicas aos procedimentos concursais na Itália.

Tal qual acontece no Brasil, lá há dispositivo legal que expressamente

exclui do âmbito de aplicação da lei de falências (abrangendo falências e

concordata preventiva) os entes públicos. Trata-se do art. 1º.47

Acontece que, conforme diz Stefanio Scarafoni, atualmente há uma grande

preocupação em se delimitar a amplitude do conceito de “ente público” (enti

pubblici) contido no dispositivo acima citado. Muito se discute se pode ser incluído

neste conceito, sendo, portanto, excluída da falência, a sociedade que é

prevalentemente ou totalmente de participação pública de48 gestão de serviço

público de relevância econômica. Com efeito, Stefanio Scarafoni diz que não o é,

ou seja, a sociedade de participação pública é distinta do ente público econômico,

ainda que seja totalitária, sendo, portanto, sujeitas à falência.49

O mesmo autor esclarece que o ente público econômico perdeu atualmente

o seu interesse, passando a ser categoria amplamente superada no

ordenamento, que o substituiu quase que completamente por formas de gestão

com características privatísticas, como sociedades comerciais de capital

inteiramente público ou de capital misto (público-privado).50 Isto dificulta

sobremaneira a determinação se estas empresas estão sujeitas aos

procedimentos concursais, pois elas são formalmente de natureza jurídica

privada, mas substancialmente destinadas à gestão de interesses públicos.

47 Art. 1. Sono soggetti alle disposizioni sul fallimento e sul concordato preventivo gli impeditori che esercitano un’attività commerciale, esclusi gli enti pubblici.”

48 Trata-se exatamente do mesmo problema enfrentado no Brasil no que se refere às empresas estatais e, especialmente, às sociedades de economia mista. Elas são pessoas jurídicas de direito privado, no entanto, envolvem interesse público, pois parte do capital é detido pelo poder público e só podem ser criadas para atender à motivos de segurança nacional ou à relevante interesse coletivo (conforme caput do art. 173 da CF).

49 “È anche generalmente diffusa in dottrina – senza, per la verità, che siano espresse particolari motivazioni – l’affermazione che dagli enti pubblici economici debbano essere tenute distinte lê società a partecipazione pubblica, anche totalitária, che restano, invece, soggette al falimento.” SCARAFONI, Stefanio. (Il fallimento delle società in mano pubblica nel settore dei servizi pubblici locali a rilevanza economica. In: FIMMANÒ, Francesco (Coord.) Le società pubbliche: ordinamento, crisi ed insolvenza. Milano: Giuffrè, 2011. p. 308.

50 Ibid., p. 309. “In realtà, la vicenda degli enti pubblici economici há ormai perso notevolmente di interesse, trattandosi di uma categoria giurudica ampiamente superata dall’ordinamento, che li a quase completamente sostituiti com forme di gestione di carattere privatistico, in particolare società commerciali a capitale interamente pubblico od a capitale misto pubblico-privado.”

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Giacomo D’Atorre51 diz que, por longo tempo, prevaleceu no cenário

jurídico italiano um único precedente jurisprudencial acerca do assunto, o qual

determinava a sujeição aos procedimentos concursais das sociedades por ações

concessionárias de serviço público ou a cujo quadro de acionistas participasse um

sócio público. Não obstante, recentemente, surgiram diversos novos

pronunciamentos jurisprudenciais, que têm resolvido a questão de maneira

diferente.

Por exemplo, podemos citar o pronuncimento do Tribunal de S. Maria

Cápua Vetere52, de 09 de janeiro de 2009, que determinou a não sujeição à

falência de uma sociedade que se encontrava sob o controle público, sob o

argumento de que tratava-se de uma sociedade por ações com total participação

pública, titular de serviço de arrecadação diferenciada em âmbito provincial. O

Tribunal partiu da observação de que a tendência é de observação e valorização

dos aspectos substanciais da atividade da sociedade, deixando de lado o aspecto

formal, a veste jurídica assumida pela mesma.

Neste caso específico, para negar a sujeição à falência, o Tribunal levou

em conta os seguintes aspectos: a limitação da autonomia de gestão do

administrador, derivada de previsões estatutárias específicas; a titularidade

exclusiva do poder público sobre o capital social; a ingerência do administrador;

bem como o investimento pelo Estado de recursos financeiros para a realização

dos fins públicos. Segundo a decisão em questão, tudo isso conduziu ao

reconhecimento da natureza pública do sujeito então analisado, o que levou à sua

não submissão às normas falimentares, em obediência do art. 1 da lei de

falências já citado alhures.

Posteriormente, este mesmo Tribunal foi chamado a se pronunciar

novamente a respeito do problema, decretando, mais uma vez, a impossibilidade

da falência do ente. Dessa vez, tratava-se de uma sociedade que geria o serviço

público de transporte na Província de Caserta. Os elementos levados em conta

foram: o desenvolvimento da maior parte das atividades em favor do próprio ente

público; a ausência de vocação comercial; a limitação do poder de gestão do

órgão administrativo e a atribuição ao ente público dos poderes que, geralmente,

51 D’ATTORRE, Giacomo. Società in mano pubblica e procedure concorsuali. In: FIMMANÒ,

Francesco (Coord.). Le società pubbliche: ordinamento, crisi ed insolvenza. Milano: Giuffrè, 2011. p. 329.

52 Ibid., p. 330.

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são concedidos aos sócios pelo direito societário; e a submissão das decisões de

maior relevo ao ente controlador.53

Tal qual a posição de alguns doutrinadores brasileiros, conforme exposto

alhures, também na Itália entende-se que a falência é incompatível com as

sociedades que prestam serviço público, em razão da necessidade de

continuidade deste tipo de serviço, tido como essencial.

Em suma, o que se vê na Itália é o seguinte: durante muito tempo

prevaleceu o entendimento de que a sociedade pública tem natureza privada e,

como tal, se sujeitava à disciplina falimentar, tal qual todos os outros empresários

comerciais. Trata-se da posição tida como privatística. No entanto, mais

recentemente, conforme decisões do Tribunal de S. Maria Capua Vetere citadas

acima, a sociedade de participação pública, independentemente de sua veste

jurídica formal, pode ser reconhecida como de natureza pública, sendo, portanto

impassível de falência, conforme art. 1 da lei de falências. É a chamada corrente

publicística.54

O que se observa é certa similaridade entre o modelo atualmente adotado

na Itália e a corrente defendida por autores como Newton de Lucca de que os

procedimentos concursais são aplicáveis às empresas estatais que exercem

atividade econômica. A diferença é que lá a submissão ou não das empresas em

mãos públicas à sistemática concursal deve ser determinada com a observação

de cada caso concreto, em razão das especificidades da regulamentação dessas

sociedades. No Brasil, por outro lado, há a classificação das empresas estatais

53 Trazendo esta decisão para o contexto brasileiro, mais especificamente para o entendimento de que os procedimentos concursais são aplicáveis às sociedades de economia mista que desenvolvem atividade econômica, notamos certa similaridade. Primeiro, porque as sociedades de economia mista não são formadas por capital exclusivamente público; segundo porque as atividades por ela desenvolvidas são voltadas a produzir produtos e serviços para o mercado; e terceiro, há vocação comercial, até porque, conforme já argumentado em momento anterior, a sociedade de economia mista suporta a produção de lucros, ou melhor, deve produzi-lo, de modo a não gerar concorrência desleal para com as demais empresas privadas e a remunerar o capital investido pela iniciativa privada.

54 “La giurisprudenza e la dotrina, come visto, non esprimono una soluzione unívoca. Da un lato, l’orientamento tradizionale che, ribadendo sempre e comunque la natura privata delle società in mano pubblica, ne afferma l’assoggetamento alla disciplina fallimentare, al pari di tutti gli altri imprenditori commerciali. Dall’altro lato, il contrapposto orientamento, cui sono riconducibili i due provvendimenti del Tribunale di S. Maria Capua Vetere e la pronuncia del Tribunale di Catania, secondo cui laddove allá società a partecipazione pubblica, indipendentemente dalla sua veste giuridica formale, si riconosca natura pubblica, ne deve conseguire necessariamente l’esenzione dal fallimento, secondo quanto dispone l’art. 1, comma 1, 1. fall. per gli enti pubblici.” D’ATTORRE, Giacomo. Società in mano pubblica e procedure concorsuali. In: FIMMANÒ, Francesco (Coord.). Le società pubbliche: ordinamento, crisi ed insolvenza. Milano: Giuffrè, 2011. p. 337.

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em empresas públicas e sociedades de economia mista e em exploradoras de

atividade econômica ou prestadora de serviço público, o que permite uma

categorização a priori das espécies sujeitas à lei concursal.

É certo que até o momento falamos a respeito da possibilidade de falência

da sociedade pública italiano, no entanto, não podemos perder de vista que o

presente estudo tem por foco a sistemática de recuperação judicial de empresas,

que não encontra correspondente na legislação italiana. O instituto italiano que

mais se aproxima da nossa recuperação judicial é a concordata preventiva.

Quanto à submissão das empresas públicas italianas à concordata

preventiva, Giacomo D’Attorre entende não haver qualquer impedimento.

Segundo ele, a submissão a este procedimento concursal não traria qualquer

lesão ao interesse público, especialmente porque a abertura da concordata

preventiva não determina necessariamente a interrupção da atividade da

empresa, nem o desempossamento do devedor, e nem a submissão ao poder do

Tribunal de escolha do adquirente do complexo empresarial.55

3.4 A Experiência Americana

Conforme já dito na primeira parte deste trabalho, nos Estados Unidos não

há empresas estatais regulamentadas da maneira como o há aqui no Brasil. No

entanto, o Capítulo 9 do Título 11 do US Code trata do “Adjustment of debts of a

municipality”.

Por municipality devemos entender uma subdivisão política, ou órgão

público ou ente instrumental do Estado. Uma definição ampla, que nas palavras

55 “Nel caso di concordato preventivo, l’apertura della procedura non determina necessariamente

né l’interruzione dell’attività, nè lo spossessamento del debitore (arg. ex art. 167 1. fall.), né um autônomo potere del tribunale di scelta dell’acquirente del complesso axiendale; tutte questi profili sono disciplinati dal piano ex art. 160 1. fall., redatto dallo stesso debitore limitandosi il ruolo del tribunale al profilo del controllo. In mancanza, pertanto, di uma lesione dell’interesse pubblico nel caso di ammissione allá procesura di concordato preventivo, non sussite motivo per impedire allá società in mano pubblica di avere accesso allá procedura stessa.” D’ATTORRE, Giacomo. Società in mano pubblica e procedure concorsuali. In: FIMMANÒ, Francesco (Coord.). Le società pubbliche: ordinamento, crisi ed insolvenza. Milano: Giuffrè, 2011. p. 357.

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de Stefanio Scarafoni “[...] comprende ‘cities, towns, villages, counties, taxing

districts, municipal utilities, school districts’ ed altre autorità creat dallo stato.”56

Charles Jordan Tabb57 chama o Capítulo 9 de “criatura única”, pois,

diferentemente de todos os outros Capítulos, o Congresso teve que projetá-lo de

modo a harmonizá-lo ao “Tenth Amendment sovereignty of the states”, que

estendeu para o estado o controle da municipalidade. Assim, a liquidação da

municipalidade não está contemplada no Bankruptcy Code, o que requereria ação

legislativa do estado.58

O procedimento do Capítulo 9 tem por objetivo apenas permitir a liquidação

das dívidas e garantir proteção ao ente devedor contra os seus credores,

evitando, assim, a interferência da Corte Federal no exercício da soberania local.

O devedor do Capítulo 9 atua bem distante da Corte e das restrições dos

credores, com garantia do uso da propriedade ou dos rendimentos e do exercício

dos poderes governamentais e políticos.

São quatro as condições para que a municipalidade possa sujeitar-se ao

procedimento do Capítulo 9: autorização por meio de lei estatal59; pressuposto

material de insolvência (o Capítulo 9 é o único capítulo do Código que demanda a

insolvência do devedor)60; possibilidade de proposição de plano de pagamento; e

concordância dos credores que representem a maioria dos créditos que não

podem ser integralmente pagos.61

A condição de que haja autorização por meio de lei estatal foi imposta a fim

de conciliar o poder soberano dos estados americanos de criação e disciplina das

autoridades locais com a submissão das mesmas a um procedimento regulado e

supervisionado por um órgão judiciário federal.

Uma outra preocupação do legislador americano foi em relação à

necessidade de garantir o desenvolvimento da função pública, problema que foi

56 SCARAFONI, Stefanio. Il fallimento delle società in mano pubblica nel settore dei servizi pubblici locali a rilevanza economica. In: FIMMANÒ, Francesco (Coord.). Le società pubbliche: ordinamento, crisi ed insolvenza. Milano: Giuffrè, 2011. p. 309.

57 TABB, Charles Jordan. The law of bankruptcy. New York: Foundation Press, 2009. p. 117. 58 Ibid., p. 116. “Chapter 9 is a unique creature. Unlike in the other caso chapters, Congress hás

had to draft chapter 9 with due accommodation for the Tenth Amendment sovereignty of the states, wich extends to the state controlo f municipalities. Thus, liquidation of a municipality is not contempled by the Bankruptcy Code; liquidation would require action by the state legislature.”

59 “[…] state law must authorize the municipality to be a debtor under chapter 9.” Ibid., p. 116. 60 “A third eligibility requirement is that the municipality must be insolvent. § 901(c) (3). Chapter 9 is

the only Code chapter that requires insolvency of the debtor”. Ibid., p. 117. 61 DASSO, Ariel Àngel. Derecho concursal comparado. Buenos Aires: Legis, 2008. p. 625.

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resolvido através das seguintes previsões: (a) o acesso ao procedimento

concursal somente pode se dar mediante ação voluntária da autoridade que, além

disso, deve ter pretensões de negociação de boa fé62; (b) o procedimento adotado

pode consistir apenas em uma renegociação do débito ou em outra operação

financeira extraordinária, não podendo haver liquidação dos bens da autoridade;

(c) a garantia à autoridade, durante o procedimento, de conservação do uso de

sua propriedade, arrecadação das entradas e provisão das despesas.

O procedimento do “Adjust of debtis of a Municipality” é similar do da

“Reorganization”, prevista no Capítulo 11. Primeiramente, o devedor apresenta

um plano. Em seguida, um despacho de abertura é emitido pela Corte e enviado

aos credores, que votam e podem apresentar objeções, após o que a Corte

realiza uma audiência de confirmação.

Após a instauração do pedido, caso a Corte entenda que o devedor não se

encontra de boa fé, ela pode rejeitar a aplicação do procedimento ao ente.

As lições do direito americano, assim como as do direito italiano, ajudam na

solução do problema proposto neste trabalho, muito embora a realidade em cada

um destes países seja bem distinta da brasileira, já que neles (especialmente nos

Estados Unidos) não há as chamadas no Brasil empresas estatais. Curiosamente,

o procedimento do Capítulo 9 pode ser utilizado, inclusive, pelo Município, o que

parece impraticável no Brasil, onde é discutível até mesmo a possibilidade de

submissão das pessoas jurídicas de direito privado componentes da

Administração Indireta aos procedimentos concursais.

No entanto, muitos princípios utilizados nos Estados Unidos podem ser

aplicados no Brasil, na busca pela solução do problema proposto, tais como:

abrangência restrita à liquidação das dívidas, sem possibilidade de falência da

empresa estatal; não interferência do Poder Judiciário na Administração Pública;

garantia da propriedade e do auferimento de rendimentos, bem como do exercício

dos poderes governamentais e políticos durante o procedimento; manutenção do

desenvolvimento das funções públicas da entidade; e impossibilidade de ocorrer a

liquidação de bens.

62 TABB, Charles Jordan. The law of bankruptcy. New York: Foundation Press, 2009. p. 117:

“The municipality also must desire to effect a plan to adjust its debts, and finally must engage in good faith prepetition negotiations with creditors, unles doing so would be impractical.”

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3 5 Proposição: Regulação Específica

Desde já, esclarecemos que a nossa proposição é a de a sociedade de

economia mista que explora atividade econômica pode ser submetida à

sistemática de recuperação de empresas, devendo, no entanto, ser instituída uma

regulação específica para ela. É claro que, se criada uma norma especial para

tratar do assunto, é plenamente possível que ela trate também das outras

espécies de empresas estatais (empresas públicas e empresas controladas pelo

Poder Público), da falência e da recuperação extrajudicial. No entanto, como o

objeto deste trabalho foi restringido à sociedade de economia e à recuperação

judicial, conforme mencionado na introdução, nos limitaremos a falar apenas

deles.

A proposta de criação de lei específica chegou a ser discutida no

Congresso Nacional durante a tramitação do PL nº 4.376/1993, que deu origem à

Lei nº 11.101/2005, muito embora não tenha sido adotada expressamente. No

entanto, entendemos que a necessidade de instituição de lei especial restou

subentendida, conforme será esclarecido mais adiante. Aliás, na versão original

do PL em questão as empresas públicas e as sociedades de economia mista que

exploram atividade econômica estavam sujeitas aos procedimentos concursais.

Diante dessas constatações, parece válido que façamos uma análise do

histórico da tramitação do PL nº 4.376/1993 no que se refere ao problema

proposto para este trabalho, ou seja, à submissão das empresas estatais a

procedimentos concursais ou, mais especificamente, das sociedades de

economia mista à recuperação de judicial de empresas.

O PL nº 4.376/1993 foi apresentado pelo Poder Executivo durante o

governo do Presidente Itamar Franco, através da Mensagem nº 1.014/1993, com

o objetivo de regular a falência, a concordata preventiva e a recuperação das

empresas que exercem atividade econômica regida pelas leis comerciais e dar

outras providências, tendo sido publicado no Diário do Congresso Nacional no dia

22 de fevereiro de 1994. .

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Na versão original do projeto, o art. 3º previa que as empresas públicas, as

sociedades de economia mista e outras entidades que explorassem atividade

econômica estavam sujeitas à lei que se pretendia sancionar.63

Como se vê, o PL incluía na lei concursal todas as espécies de empresa

estatal, inclusive aquela terceira espécie (empresas que, não sendo empresas

públicas ou sociedades de economia mista, estão sob controle Poder Público) que

não é aceita por todos os doutrinadores, conforme já mencionado alhures. É o

que nos leva a crer o emprego da expressão “outras entidades” que consta em tal

dispositivo.

Além disto, este art. 3º fazia distinção entre empresas estatais prestadoras

de serviço público e exploradoras de atividade econômica, admitindo a submissão

a procedimentos concursais apenas destas últimas, tal qual o faz parte

significativa da doutrina atualmente.

No mais, o artigo em questão permitia, inclusive, a falência das empresas

estatais.

No entanto, este dispositivo não resistiu aos mais de doze anos de

tramitação do PL nº 4.376/1993 no Congresso Nacional (só na Câmara dos

Deputados foram 484 emendas e 5 substitutivos), sendo substituído pelo atual art.

2º da Lei nº 11.101/2005, que exclui as empresas públicas e as sociedades de

economia mista do âmbito de aplicação desta lei.

A crítica a este art. 3º já aparecera no Parecer do relator do Projeto na

Câmara, Deputado Osvaldo Biolchi, publicado aos 03 de dezembro de 1999.

Segundo ele, o PL nº 4.376/1993 trouxe “[...] à discussão uma questão

polêmica, qual seja a de sujeitar a empresa pública, a sociedade de economia

mista e outras entidades estatais que explorem atividade econômica ao processo

falimentar.”64 E completa: “Neste particular, não acreditamos ser possível acolher

a proposta do Poder executivo em seus termos originais.”65

63 Art. 3º. A empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que exploram

atividade econômica ficam sujeitas a esta Lei. 64 BRASIL. Câmara dos Deputados. Parecer sobre o PL nº 4.376/1993. Relator: Osvaldo Biolchi.

Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/dc_20.asp?selCodColecaoCsv=D&Datain=03/12/1999&txpagina=177&txsuplemento=1&altura=650&largura=800 >. Acesso em: 1 maio 2011. p. 184.

65 Ibid.

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134

A Subemenda Substitutiva66 apresentada naquela oportunidade, de

pronto já excluía as empresas públicas da submissão à lei que se pretendia

aprovar, sob o argumento de que o conceito de empresa pública no direito

brasileiro é amplo e abrangente, compreendendo todo ente paraestatal sob o

controle do Estado, o que incluiria autarquias e fundações que, dessa forma,

estariam sujeitas à falência. Isto, segundo Osvaldo Biolchi, dificultaria o

andamento dos processos de recuperação e liquidação, já que a Fazenda

Pública goza de privilégios especiais, como o processamento em varas

especializadas. Argumentou-se, ainda, que as execuções contra autarquias e

fundações devem se processar através de precatório, o que não condiz com as

finalidades do processo concursal.67

Arrematou referido Deputado dizendo que as empresas de direito público

têm natureza peculiar, voltada à prestação de serviços ao contribuinte e ao

usuário, o que é incompatível com institutos específicos do direito privado, como o

são os procedimentos concursais. Para ele, a inclusão destas empresas no

processo concursal “[...] atentaria contra os propósitos de desestatização, porque,

doravante, as empresas que permanecem sob a égide do Estado assim o serão

por razões estratégicas, considerando o interesse público que justifica sua

natureza.”68

66 BRASIL. Câmara dos Deputados. Parecer sobre o PL nº 4.376/1993. Relator: Osvaldo Biolchi.

Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/dc_20.asp?selCodColecaoCsv=D&Datain=03/12/1999&txpagina=177&txsuplemento=1&altura=650&largura=800 >. Acesso em: 1 maio 2011. p. 184.

67 A nosso ver, a justificativa utilizada pelo Deputado Osvaldo Biolchi para excluir as empresas públicas é equivocada, pois o conceito de empresa pública não abrange autarquias e fundações, como mencionado pelo Deputado. Estas são também entes da Administração Indireta, no entanto, não se confundem com empresa pública. Segundo o inciso II, do art. 5º do Decreto-lei nº 200/67, empresa pública é “a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criado por lei para a exploração de atividade econômica que o Governo seja levado a exercer por força de contingência ou de conveniência administrativa podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito”. Por outro lado, segundo o inciso I deste mesmo artigo, autarquia é “o serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada”. E, segundo o inciso IV, fundação pública é “a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, criada em virtude de autorização legislativa, para o desenvolvimento de atividades que não exijam execução por órgãos ou entidades de direito público, com autonomia administrativa, patrimônio próprio gerido pelos respectivos órgãos de direção, e funcionamento custeado por recursos da União e de outras fontes”. Em sendo assim, não há que se confundir autarquias e fundações públicas com empresas públicas. A nosso ver, o originário art. 3º do PL 4.376/1993 se referiu às empresas públicas conforme conceituadas acima, e não às autarquias e fundações.

68 BRASIL, loc. cit..

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135

No mais, o Deputado criticou o uso da expressão “[...] e outras entidades

que exploram atividade econômica”, por ser definição de exagerada amplitude, o

que não é recomendado na boa técnica legislativa.

Quanto à inclusão das sociedades de economia mista no âmbito de

aplicação da lei que se pretendia aprovar, Osvaldo Biolchi mostrou-se igualmente

contrário, mencionando ser preciso, antes, que fossem definidas mais claramente

as responsabilidades dos administradores e as consequências jurídicas que isto

poderia trazer para toda a sociedade. Segundo ele, seria moralmente

questionável que o Estado, detendo poder e recursos para decidir os destinos da

empresa, permitisse a sua insolvência, o que causaria perdas para os credores,

podendo, inclusive, levar-lhes à quebra.69

No mesmo sentido de Osvaldo Biolchi, pensava o Deputado do PPS do

Distrito Federal, Augusto Carvalho, que propôs a Emenda 26/94, que

determinava o acréscimo ao art. 3º do PL da seguinte expressão: “[...] exceto

aquelas cuja totalidade do capital social pertença ao Estado.”70 Sua justificativa

era a de que a decretação da falência ou da concordata de uma empresa

pública com totalidade do capital público significaria decretar a própria falência

do Estado, jogando nas costas da sociedade o ônus pelas más

administrações.71

Por todos estes motivos, é que o Deputado Osvaldo Biolchi excluiu o art. 3º

do PL nº 4.376/1993, em sua forma originária.

69 Diz o Deputado Osvaldo Biolchi: “No plano privado, o proprietário que, possuindo capacidade econômica, venha permitir a bancarrota de seu empreendimento, será inevitavelmente responsabilizado pela sua má gestão”. Ao Estado cabe a responsabilidade de manter eficientes e saneadas suas empresas. Para tal, dispõe de instrumentos suficientes para mantê-las em sintonia com os imperativos de segurança nacional e do interesse público. Não atendidos esses pressupostos, cabe à Administração providenciar a privatização de suas empresas ineficientes, redefinindo seus objetivos ou, até mesmo, promover suas liquidações judiciais, que deverão obedecer a estatuto próprio, diverso do que é o objeto deste Substitutivo”. BRASIL. Câmara dos Deputados. Parecer sobre o PL nº 4.376/1993. Relator: Osvaldo Biolchi. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/dc_20.asp?selCodColecaoCsv=D&Datain=03/12/1999&txpagina=177&txsuplemento=1&altura=650&largura=800>. Acesso em: 1 maio 2011. p. 185.

70 Ibid. 71 Entendemos que, assim como Osvaldo Biolchi, Augusto Carvalho também deixou de considerar o conceito correto de empresa pública. Ora, segundo o inciso II, do art. 5º, do Decreto-lei 200/67, a empresa pública é necessariamente constituída exclusivamente de capital público. Portanto, para cumprir o seu intento, melhor seria que o Deputado tivesse proposto a exclusão da empresa pública do texto do art. 3º do PL 4.376/1993, e não a inclusão da expressão “exceto aquelas cuja totalidade do capital social pertença ao Estado”. Trata-se, a nosso ver, de um grande contrasenso.

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Na Subemenda Substitutiva apresentada na oportunidade, a matéria

passou a ser tratada no art. 2º, tendo sido determinado que as empresas

públicas, assim como outras entidades (instituições financeiras públicas e

privadas, cooperativas de crédito, consórcios, sociedades seguradoras, de

capitalização e outras), ficassem sujeitas a leis complementares para

recuperação ou liquidação judicial de seus ativos. No entanto, § 1º deste artigo

previa que, enquanto não fossem publicadas as leis complementares

respectivas, as empresas previstas no caput ficariam sujeitas à lei que se

pretendia aprovar.72

Como se vê, a intenção não era tolher das empresas públicas73 a

possibilidade de submissão aos procedimentos concursais, mas sim determinar

que fosse aprovada lei complementar específica para tratar do assunto. Até

porque, conforme § 1º, enquanto essa lei não fosse aprovada, as empresas

públicas estariam sujeitas à liquidação judicial. Note-se que este parágrafo nada

fala acerca recuperação.

Na Subemenda, as sociedades de economia mista foram tratadas no art.

1º74, ficando submetidas à aplicação da lei concursal (tanto à falência quanto à

recuperação), independentemente de serem exploradoras de atividade econômica

ou prestadoras de serviço público.75

72 Art. 2º. As empresas públicas, bem como as instituições financeiras públicas e privadas, as cooperativas de crédito, os consórcios, as sociedades seguradoras, de capitalização e outras entidades voltadas para idêntico objeto, ficam sujeitas a leis complementares para recuperação ou liquidação judicial de seus ativos.

§ 1º As empresas relacionadas no caput deste artigo ficam sujeitas à liquidação judicial, nos termos desta lei, até a publicação das respectivas leis complementares”.

73 Acreditamos que, nesta oportunidade, o Deputado Osvaldo Biolchi usou a expressão “empresas públicas” no sentido estrito do inciso II, do art. 5º do Decreto-lei nº 200/1967, pois as sociedades de economia mista foram tratadas no art. 1º da Subemenda. BRASIL. Câmara dos Deputados. Parecer sobre o PL nº 4.376/1993. Relator: Osvaldo Biolchi. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/dc_20.asp?selCodColecaoCsv=D&Datain=03/12/1999&txpagina=177&txsuplemento=1&altura=650&largura=800>. Acesso em: 1 maio 2011.

74 Art. 1º. Esta lei institui e regula a recuperação e a liquidação judicial das sociedades comerciais e civis de fins econômicos, das sociedades de economia mista, das sociedades cooperativas e das pessoas físicas que exerçam atividade econômica em nome próprio e de forma organizada, com objetivo de lucro.

75 Entendemos que a ausência desta distinção significou um retrocesso em relação do texto original do PL, pois não houve observância do que determina o art. 173 da CF.

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Posteriormente (em 1998), a Comissão Especial destinada a proferir

parecer sobre as Emendas de Plenário ao PL nº 4.376/1993, emitiu Parecer

ratificando os arts. 1º e 2º acima mencionados76, acolhendo apenas a emenda

proposta pelo Deputado Jair Meneguelli, e ainda assim de maneira parcial, a fim

de determinar que a lei complementar especial mencionada no § 1º do art. 2º

fosse enviada ao Congresso Nacional pelo Poder Executivo no prazo de 180 dias

a contar da publicação da lei.

Em 1999, foi apresentado novo Parecer da Comissão Especial, que opinou

pela introdução de novas alterações no tratamento da matéria ora em exame.

Dessa vez, sociedade de economia mista e empresa pública foram tratadas de

maneira isonômica, no mesmo dispositivo, o art. 2.77 Ambas ficaram sujeitas à lei

especial, ou seja, tolheu-se da sociedade de economia mista a possibilidade de

valer-se da mesma lei concursal aplicável às empresas privadas, como antes lhe

havia sido garantido. Determinou-se, ademais, que esta lei especial seria aplicável

apenas à empresa estatal que explorasse atividade econômica.

Após isto, as discussões e propostas de emenda ao Projeto se seguiram. O

Deputado Ricardo Fiuza, por exemplo, propôs a emenda 264, de 01 de julho de

200378, que previa a submissão da sociedade de economia mista e da empresa

pública à lei concursal comum, contrariando o último Parecer da Comissão. A

76 “Assim, ratificamos que, com relação ao art. 1º, continuarão sujeitas à recuperação e à liquidação judicial todas as sociedades comerciais – ainda que sejam sociedades civis de fins econômicos -, as sociedades cooperativas, as sociedades de economia mista e as pessoas físicas que exerçam atividades econômicas em nome próprio, de forma organizada e com “animus lucrandi” (que é a intenção de lucrar). [...] Com referência ao caput do art. 2º da Subemenda, decidimos manter uma regra de caráter transitório, na qual buscamos transferir para uma lei especial a tarefa de regular a recuperação e a liquidação judicial das empresas públicas e das instituições financeiras públicas e privadas, cooperativas de crédito, sociedades seguradoras, de capitalização, e dos consórcios, por entendermos que o próprio art. 192 da Constituição Federal assim impõe, além da especificidade que caracteriza estes setores tão complexos da economia brasileira”. BRASIL. Câmara dos Deputados. Parecer sobre o PL nº 4.376/1993. Relator: Osvaldo Biolchi. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/dc_20.asp?selCodColecaoCsv=D&Datain=03/12/1999&txpagina=177&txsuplemento=1&altura=650&largura=800>. Acesso em: 1 maio 2011. p. 498.

77 Art. 2º As empresas públicas e as sociedades de economia mista que tenham por finalidade a exploração de atividade econômica de cunho mercantil ficam sujeitas à lei especial para recuperação ou liquidação de seus ativos.

78 Por esta proposta de emenda, o art. 1º deveria vigorar com a seguinte redação: “Art. 1º Esta lei institui e regula a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência da sociedade empresária, da sociedade simples, da sociedade de economia mista, da empresa pública, do empresário individual, e outras entidades que explorem atividade econômica, conforme definidos na Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, e da pessoas física que exerça atividade econômica em nome próprio e de forma organizada, que doravante serão denominados simplesmente “devedor”. BRASIL, loc. cit.

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sugestão do Deputado era para que se restaurasse o dispositivo original acerca

da matéria, proposto pela comissão do Poder Executivo. A sua justificativa foi a

seguinte: “A exclusão das empresas públicas e outras entidades que exploram

atividade econômica é injustificável, quer em face do artigo 173 da Constituição

Federal, quer em virtude da moderna tendência doutrinária, a que o País aderiu”.

A emenda foi rejeitada.

Aos 22 de julho de 2003 foi proferido Parecer sobre as Emendas de

Plenário ao projeto de lei, no qual o Deputado Osvaldo Biolchi reafirmou que

as empresas públicas e as sociedades de economia mista deveriam ser

mantidas fora do Direito Falimentar, submetendo-se à legislação específica.

Em 30 de julho de 2003, houve reformulação parcial do voto no Parecer

sobre as Emendas de Plenário, na qual o Deputado Osvaldo Biolchi

apresentou algumas alterações em alguns dispositivos, dentre eles os arts. 1º

e 2º que, segundo ele, tiveram sua redação aperfeiçoada para deixar claro

que a lei não abrangeria as sociedades de economia mista e as empresas

públicas.

Na reformulação foi suprimida a menção de que as empresas estatais

seriam reguladas por lei específica, mantendo-se apenas a determinação de

exclusão das mesmas do âmbito da lei falimentar comum.79

79 Nesta subemenda o texto do art. 1º passou a ser o seguinte: Art. 1º Esta lei institui e regula a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência da sociedade empresária, da sociedade simples, do empresário e da pessoa física que exerça atividade econômica em nome próprio e de forma organizada, que doravante serão denominados simplesmente “devedor”. Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica: I – à sociedade cooperativa; II – ao agricultor que explora propriedade rural para fins de subsistência familiar; III – ao artesão, ao que presta serviços ou ao que exerce atividade profissional organizada preponderantemente com o trabalho próprio ou dos membros da família, para fins de subsistência familiar; IV – ao profissional liberal e à sua sociedade civil de trabalho; V – à empresa pública e à sociedade de economia mista.

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Aos 15 de outubro de 2003, foi realizada Sessão Extraordinária

deliberativa, na qual foi aprovada a redação final oferecida pelo relator, Deputado

Osvaldo Biolchi. A matéria ora debate restou tratada no parágrafo único do art.

1º80, no sentido de que a Lei de Falência e Recuperação de Empresas não era

aplicável às sociedades de economia mista e empresas públicas.

O texto foi enviado ao Senado em 23 de outubro de 2003, onde recebeu o

número 71/2003. Nesta Casa, o projeto tramitou inicialmente na Comissão de

Assuntos Econômicos, sob a relatoria do Senador Ramez Tebet.

Lá foram apresentadas 81 emendas, de autoria dos Senadores Paulo

Paim, Garibaldi Alves Filho, Antonio Carlos Valadares, Luca Vânia, César Borges,

Demóstenes Torres, Fernando Bezerra e Rodolpho Tourinho.

O Substitutivo apresentado pelo Senador Ramez Tebet modificou a

estrutura do projeto aprovado na Câmara, deixando-o com 201 artigos e oito

capítulos.

Posteriormente, o PL nº nº 71/2003 passou pela Comissão de Constituição

e Justiça, onde foram apresentadas quatorze emendas, de autoria dos Senadores

Eduardo Suplicy, Antonio Carlos Valadares, Rodolpho Tourinho, Demóstenes

Torres e Tasso Jereissati.

No dia 06 de julho de 2003, o Senado aprovou, em revisão, a redação final

do Substitutivo ao projeto originário da Câmara. O tratamento de mérito da

matéria ora em debate não sofreu alteração, tendo sida mantida a não submissão

das sociedades de economia mista e empresas públicas à lei concursal. Houve

apenas alterações na redação, resultando no texto legal que vigora nos dias de

hoje.81

80 Art. 1º Esta lei institui e regula a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência da sociedade empresária, da sociedade simples e do empresário que exerça profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços, que doravante serão denominados simplesmente “devedor”. Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica: I – à sociedade cooperativa; II – ao agricultor que explore propriedade rural para fins de subsistência familiar; III – ao artesão, ao que presta serviços ou ao que exerce atividade profissional organizada preponderantemente com o trabalho próprio ou dos membros da família, para fins de subsistência familiar; IV – ao profissional liberal e à sua sociedade civil de trabalho; V – à empresa pública e à sociedade de economia mista.

81 Art. 2º Esta lei não se aplica a: I – empresa pública e sociedade de economia mista; [...].

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Como se vê, a matéria em questão neste trabalho foi debatida durante o

processo legislativo e, mesmo assim, acabou sendo regulada, a nosso ver, de

modo inconstitucional.

Com efeito, conforme já dito em várias oportunidades, o inciso II, do § 1º do

art. 173 da CF determina que a empresa pública e sociedade de economia mista

que exploram atividade econômica estejam sujeitas ao regime jurídico próprio das

empresas privadas. Este dispositivo, inclusive, expressamente se refere aos

direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários.

Neste ponto, convém esclarecer que discordamos de Waldo Fazzio

Júnior82, para quem o direito concursal não deve ser incluído no âmbito das

obrigações e direitos comerciais.

Portanto, de acordo com a redação do dispositivo constitucional, parece

restar claro que as sociedades de economia mista e empresas públicas, quando

exploradoras de atividade econômica, devem se submeter ao mesmo regime

concusal as empresas privadas. A Constituição é clara neste sentido. Assim, as

empresas estatais que prestem serviço público não podem ser equiparadas às

empresas privadas, inclusive e especialmente para fins de submissão à

procedimentos concursais.

As justificativas são inúmeras, no entanto, basta invocarmos o princípio da

continuidade do serviço público. Ora, os serviços públicos prestados por estas

empresas são de natureza essencial, não podendo ser cessados, ainda que a

empresa prestadora encontre-se em estado de crise ou até mesmo de

insolvência. Neste caso, a responsabilidade deve ser transmitida ao ente

instituidor da empresa, que tem o dever de manter a prestação do serviço.

Portanto, impossível se falar em falência de empresa estatal prestadora de

serviço público, ainda que se trate de sociedade de economia mista. Nem mesmo

a recuperação judicial ou extrajudicial pode ser admitida, pois, em geral, nestes

procedimentos, as empresas passam a funcionar com algumas restrições, o que é

igualmente incompatível com a prestação de serviços públicos.

No entanto, quando se trata de sociedade de economia mista que explora

atividade econômica, a situação é outra. O comando constitucional é claro no

sentido de equipará-la à empresa privada, até porque ela não pode fazer

82 FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Lei de falências e concordatas comentada. São Paulo: Atlas, 2001.

p. 36.

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concorrência desleal à iniciativa privada, não podendo, portanto, gozar de

privilégios, como a possibilidade de manter-se em pleno funcionamento, muito

embora esteja em situação de crise.

Para manter em funcionamento uma sociedade de economia insolvente,

muito provavelmente seria necessário o aporte de recursos públicos, o que é

inadmissível, pois estar-se-ia privilegiando o acionista particular da sociedade em

detrimento de todos os demais cidadãos.

Na análise do problema, não podemos nunca perder de vista que na

sociedade de economia mista que explora atividade econômica há particulares

envolvidos e que deve haver igualdade na concorrência com as demais empresas

privadas.

Assim, não vislumbramos problemas em permitir que uma sociedade de

economia mista se submeta à procedimento de recuperação judicial, pelo

contrário, isto acabaria por atender ao interesse público, pois poderia resultar no

saneamento da crise da sociedade de economia mista, mantendo-a em

funcionamento de maneira sadia.

Oportuno ressaltar que admitimos que a sociedade de economia mista

obtenha lucro. Em verdade, essa deve ser lucrativa a fim de remunerar o capital

particular nela investido. Caso isso não fosse admitido, restaria sem sentido

discutir acerca da possibilidade de sua submissão à recuperação judicial de

empresas. Explica-se.

A submissão a qualquer procedimento concursal, aí incluída a recuperação

judicial, obviamente pressupõe a existência de crise, já que o seu objetivo é

justamente saneá-la.

Fábio Ulhoa Coelho83 propõe a ideia de que existem três diferentes tipos

de crise: a crise econômica, a financeira e a patrimonial.

A crise econômica consiste na retração dos negócios da sociedade

empresária. Isto ocorrerá quando houver redução no consumo dos produtos ou

serviços oferecidos por ela. Ela pode atingir uma empresa ou um segmento

específico, ou ainda ser uma crise generalizada da economia.

83 COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova lei de falências e de recuperação de empresas.

São Paulo: Saraiva, 2005. p. 24.

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Já a crise financeira se fará presente quando a empresa não possuir caixa

suficiente para honrar suas obrigações. Ulhoa Coelho a chama de crise de

liquidez.

Este tipo de crise pode ocorrer de forma isolada, ou seja, sem que haja

crise econômica e/ou patrimonial, quando, por exemplo, a sociedade empresária,

apesar de obter um faturamento satisfatório, não consegue honrar seus

compromissos por não ter ainda compensado o capital investido anteriormente.

Uma sociedade empresária em crise financeira dará sinais de seu estado

crítico através da impontualidade, ou seja, quando uma empresa mostra-se

atrasada em relação às suas obrigações é bastante provável que a mesma esteja

passando por uma crise de liquidez.

O terceiro tipo de crise é a crise patrimonial. Ela se fará presente quando o

patrimônio ativo da empresa não se mostrar suficiente para cobrir o passivo da

mesma, ou seja, a sociedade empresária possui mais dívidas do que bens em seu

patrimônio. Trata-se do fenômeno da insolvência.

Para um diagnóstico exato da existência de crise o ideal é que haja a

manifestação dos três índices indicativos, que, assim, representariam o seguinte

processo cíclico: em havendo diminuição das vendas (crise econômica) ocorreria

falta de liquidez (crise financeira) o que, consequentemente, acarretaria a

insuficiência de bens, ou seja, insolvência (crise patrimonial).

Assim, a situação de crise de uma empresa inicia-se por um fator

econômico-financeiro, seja ele de ordem interna ou externa, e acaba por culminar

no estado de insolvência, o que, via de regra, leva à instalação de um

procedimento concursal.

Ora, como uma sociedade de economia mista poderia chegar ao estado de

crise financeira (falta de liquidez) se não se admitir que ela tenha sido lucrativa um

dia?

Destarte, repita-se, a sociedade de economia mista que explora atividade

econômica e, portanto, tem por fito a produção de lucros, pode sim necessitar

submeter-se a procedimento de recuperação de judicial, não havendo qualquer

óbice a que o faça.

Vale ressaltar, ainda, que não se trata de submeter o próprio ente público

ao qual a sociedade de economia mista está vinculada (União, Estados, Distrito

Federal e Municípios) ao processo de recuperação, mas apenas a sociedade de

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economia mista que tem vida independente em relação à pessoa jurídica de

direito público que a criou.

Isto estaria de acordo com o princípio da eficiência da Administração

Pública, previsto no art. 37 da CF, já que, conforme mencionado por Renato

Ventura Ribeiro, é inadmissível que as empresas estatais desperdicem recursos

públicos.84

Entretanto, convém frisar que a possibilidade de se submeter a processo

de recuperação judicial deve se restringir às sociedades de economia que

exploram atividade econômica em regime de concorrência com a iniciativa

privada. Quando não houver concorrência, ou seja, quando não houver empresa

privada que também atue na mesma área, não há que se falar em possibilidade

de recuperação, pois qualquer interferência no funcionamento da sociedade

acabaria por atingir o interesse público, que ficaria desprovido, ou mal servido, do

produto produzido pela sociedade em crise.

Portanto, somos do entendimento de que as sociedades de economia

mista podem se submeter à recuperação judicial de empresas quando forem

exploradoras de atividade econômica em regime de concorrência com a iniciativa

privada, podendo ser valer, portanto, das disposições da Lei nº 11.101/2005. No

entanto, isso não afasta a possibilidade, ou melhor, a necessidade de criação de

uma lei específica para regulamentar a matéria.

Muito embora a sociedade de economia mista que explora atividade

econômica deva ser tratada com isonomia em relação à empresa privada, não há

como negar que ela tem características muito próprias, que podem ser

incompatíveis com algumas disposições da Lei nº 11.101/2005.

Como exemplo dessa incompatibilidade, podemos citar as hipóteses em

que a lei determina a convolação da recuperação em falência, como no parágrafo

4º do art. 55.85 Neste caso, ter-se-ia que discutir a possibilidade de falência das

empresas estatais, o que não é objetivo deste trabalho, no entanto, caso se

84 RIBEIRO, Renato Ventura. Exclusão das estatais da nova lei é inconstitucional. JusBrasil, [s.l.], 14 fev. 2005. Notícias. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/noticias/1643668/exclusao-das-estatais-da-nova-lei-e-inconstitucional.com.br>. Acesso em: 17 fev. 2010.

85 Art. 55. Qualquer credor poderá manifestar ao juiz sua objeção ao plano de recuperação judicial no prazo de 30 (trinta) dias contado da publicação da relação de credores de que trata o § 2º do art. 7º desta Lei. [...] § 4º Rejeitado o plano de recuperação pela assembléia-geral de credores, o juiz decretará a falência do devedor.

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entenda pela impossibilidade, os dispositivos que assim determinam não

poderiam ser aplicados à sociedade de economia mista em recuperação.

Há, portanto, necessidade de ajustar o procedimento de recuperação

judicial previsto na Lei de Falência e Recuperação de Empresas às

especificidades da sociedade de economia mista, o que se fará através da criação

de lei especial.

Aliás, muito embora a determinação de criação de lei específica para tratar

do assunto tenha sido retirada do texto legal, não constando expressamente, ela

permanece subentendida. É o que se extrai da análise do processo de tramitação

do PL nº 4.376/1993.

Como dito acima, em 1999, o Parecer da Comissão Especial opinou pelo

tratamento da matéria no art. 2º da Lei, que teria a seguinte redação: “As

empresas públicas e as sociedades de economia mista que tenham por finalidade

a exploração de atividade econômica de cunho mercantil ficam sujeitas à lei

especial para recuperação ou liquidação de seus ativos”. Como se vê,

determinou-se expressamente que ambas (empresa estatal e sociedade de

economia mista) estariam sujeitas à lei especial.

Posteriormente (22 de julho de 2003) o Deputado Osvaldo Biolchi, em Parecer

sobre as Emendas de Plenário ao projeto de lei, reafirmou que as empresas públicas

e as sociedades de economia mista deveriam ser mantidas fora do Direito

Falimentar, submetendo-se à legislação específica. Nesta oportunidade, a redação

proposta no Parecer da Comissão Especial de 1999 foi mantida.

Entretanto, em 30 de julho de 2003 houve reformulação parcial do voto no

Parecer sobre as Emendas de Plenário, tendo sido proposta nova redação para o

referido art. 2º. Segundo o Deputado Osvaldo Biolchi, a reformulação foi feita com

o objetivo de aperfeiçoar a redação do dispositivo para deixar claro que a lei não

abrangeria as sociedades de economia mista e as empresas públicas.

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Na reformulação foi suprimida a menção de que as empresas estatais

seriam reguladas por lei específica, mantendo-se apenas a determinação de

exclusão das mesmas do âmbito da lei falimentar comum.86 Não obstante, não

houve qualquer manifestação dos Deputados no sentido de que não se deveria

mais criar e mencionada lei específica. A única justificativa para a nova redação

foi a de dar mais clareza ao dispositivo, o que nos leva a crer que a determinação

para que se crie lei específica não foi abolida, apenas não consta mais de

maneira expressa.

A redação final proposta pelo Deputado Biolchi foi aprovada em Sessão

Extraordinária realizada em 15 de outubro de 2003, tendo sido remetida ao

Senado, onde sofreu apenas ajustes de redação, tendo o seu conteúdo mantido.

86 Nesta subemenda o texto do art. 1º passou a ser o seguinte: Art. 1º Esta lei institui e regula a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência da sociedade empresária, da sociedade simples, do empresário e da pessoa física que exerça atividade econômica em nome próprio e de forma organizada, que doravante serão denominados simplesmente “devedor”. Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica: I – à sociedade cooperativa; II – ao agricultor que explora propriedade rural para fins de subsistência familiar; III – ao artesão, ao que presta serviços ou ao que exerce atividade profissional organizada preponderantemente com o trabalho próprio ou dos membros da família, para fins de subsistência familiar; IV – ao profissional liberal e à sua sociedade civil de trabalho; V – à empresa pública e à sociedade de economia mista.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Feitas todas as observações necessárias, chegamos às seguintes

conclusões:

1) No final do século XIX, com a crise do liberalismo, o Estado passou a

interferir na esfera econômica, antes legada à sorte do próprio mercado.

Uma dessas formas de intervenção é a criação de empresas estatais,

através das quais o Estado pode atuar diretamente na economia;

2) A Constituição Federal de 1988 limitou a atuação estatal na economia de

maneira direta, permitindo-a apenas nos casos de imperativos de

segurança nacional e de relevante interesse coletivo (art. 173);

3) As limitações constitucionais não impediram a proliferação de empresas

estatais, que hoje são uma realidade muito presente no Brasil;

4) Empresa Estatal é o gênero do qual fazem parte as espécies empresas

públicas, sociedades de economia mista e outras empresas que, não tendo

as características da empresas públicas ou sociedades de economia mista,

estão submetidas ao controle do Governo;

5) As empresas estatais são pessoas jurídicas de direito privado que

podem explorar atividade econômica ou prestar determinado serviço

público;

6) Muito embora a finalidade principal da empresa estatal seja o

atendimento ao interesse público e/ou aos imperativos de segurança

nacional que autorizaram a sua criação, ela pode e deve buscar a

produção de resultado econômico;

7) A sociedade de economia mista tem características peculiares, quais

sejam: é pessoa jurídica de direito privado; depende de lei para sua

criação; destina-se a exploração de atividade econômica; adota

obrigatoriamente forma de sociedade anônima; tem participação acionária

do Estado e da iniciativa privada; o controle acionário deve ser detido pelo

Estado (União, estados e municípios), diretamente ou por meio de

entidades de sua administração indireta;

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8) A recuperação judicial de empresas de que trata a Lei n. 11.101/2005

inspira-se na Reorganization do direito americano, e substituiu o regime de

concordatas previsto no revogado Decreto-lei nº 7.661/1945;

9) O objetivo da recuperação judicial de empresas é permitir que empresas

em situações de crise econômico-financeira possam ser saneadas e

continuem em funcionamento, evitando sua liquidação definitiva com as

consequências inerentes à perda de empregos, de fontes produtoras e

geradoras de tributos;

10) Pelo disposto no inc. I do art. 2º da Lei nº 11.101/2005, as empresas

públicas e sociedades de economia mista estão excluídas do seu âmbito

de aplicação, o que equivaleria a dizer, à primeira vista, que não podem se

utilizar do regime de recuperação de empresas;

11) Conclui-se da análise feita que o inc. I do art. 2º da Lei nº 11.101/2005

é inconstitucional por afronta ao § 1º, II, do art. 173 da Constituição

Federal, na redação dada pela EC n. 19/1998: as empresas públicas e

sociedades de economia mista que exploram atividade econômica estão

sujeitas “ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive

quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e

tributárias”; e

12) Assim, as sociedades de economia mista que exploram atividade

econômica em regime de concorrência com a iniciativa privada podem se

submeter à sistemática de recuperação de empresas prevista na Lei nº

11.101/2005.

Para solucionar as incompatibilidades existentes entre a sistemática da Lei

nº 11.101/2005 e as especificidades da sociedade de economia mista, deve ser

criada uma lei específica para tratar do assunto,o que, aliás, restou subentendido

durante o processo de aprovação da Lei de Falência e Recuperação de Empresas

no Congresso Nacional.

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