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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
ELIANA APARECIDA ALBERGONI DE SOUZA
PERCURSOS DE LEITURA: TRABALHANDO COM A LETRA DE CANÇÃO NA
SALA DE AULA
CUIABÁ
2014
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ELIANA APARECIDA ALBERGONI DE SOUZA
PERCURSOS DE LEITURA: TRABALHANDO COM A LETRA DE CANÇÃO NA
SALA DE AULA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso como exigência parcial para obtenção do título de mestre, sob a orientação da professora Dra. Simone de Jesus Padilha.
CUIABÁ
2014
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGUENS
COORDENÇÃO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS
DISSERTAÇÃO APRESENTADA À COORDENAÇÃO DO PROGRAMA DE PÓS-
GRADUAÇÃO MESTRADO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
___________________________________________________________________
Profa. Dra. Marilena Inácio de Souza
Examinadora Externa (UNEMAT)
___________________________________________________________________
Profa. Dra. Célia Maria Domingues da Rocha Reis
Examinadora Interna (UFMT)
___________________________________________________________________
Profa. Dra. Simone de Jesus Padilha
Orientadora (UFMT)
Cuiabá, 26 de março de 2014.
iv
AGRADECIMENTOS
Neste momento, ao considerar a longa jornada deste trabalho, agradeço às
pessoas que me ajudaram:
Aos meus filhos, Maiara, Matheus e Eloáh, razão da minha existência, pela sua
paciência e carinho;
Ao meu marido, José Carlos, pela sua compreensão e ajuda;
Aos professores do Mestrado em Estudos da Linguagens, MEEL UFMT, por toda
a ajuda e colaboração, especialmente as queridas Profas. Maria Rosa Petroni e
Maria Inês Pagliarini Cox;
À CAPES, pelo financiamento parcial desta pesquisa;
À Secretaria Estadual de Educação do Mato Grosso, pela concessão da licença
por um ano, que muito ajudou na finalização do trabalho;
Aos amigos do grupo de pesquisa REBAK - Relendo Bakhtin, pelos momentos de
conversas animadas, de leitura, de companheirismo: Dinaura, Lezinete,
Sebastiana, Rosemary, Anderson, Ruth, Diego, Jefferson, Leila, Renata, Rosenil,
Jean e todos aqueles que passaram pelo grupo e conosco contribuíram;
À amiga Norma Gisele, parceira nas adversidades e nos momentos de alegria;
À coordenadora do Mestrado, professora Divanize, pelo apoio e carinho.
À Professora Célia, pela leitura cuidadosa, atenta e preciosa, que trouxe o ponto
de vista da literatura para o meu trabalho;
À Professora Doutora Marilena Inácio, por ter aceitado ler e contribuir com este
texto, ajudando muito a melhorá-lo;
Aos colegas da Escola Estadual Profa. Zélia Costa de Almeida, pelo apoio e
incentivo, especialmente às diretoras Marli Cecília e Marlene, e à coordenadora
Maria Osvaldita.
À amiga, Shirlei, por todo o tempo passado ao telefone, no Skipe, no chat do
Facebook, discutindo e pensando os conceitos que permearam esta dissertação.
E um agradecimento especial à profa. Simone de Jesus Padilha, que foi muito
mais que orientadora; foi amiga, irmã, colaboradora, cobradora, incentivadora.
Por nunca ter desistido de mim, agradeço-lhe sinceramente.
v
RESUMO
Neste trabalho, tece-se uma reflexão sobre o gênero discursivo “Letra de canção” e
propõe sua utilização em aulas de língua portuguesa, com a finalidade de contribuir
na formação de leitores críticos e autônomos, tal como preconizado pelas
Orientações Curriculares para o ensino médio (OCEM). As reflexões e análises
foram ancoradas na teoria enunciativo-discursiva de abordagem sócio-histórico de
Volochinov e Bakhtin e seu Círculo. Para situar o gênero letra de canção dentro da
teoria bakhtiniana, como gênero poético do discurso, parte-se da conceituação de
Padilha. Os baixos índices de desempenho em leitura dos estudantes brasileiros em
eventos avaliativos como a Prova Brasil e PISA indicam a necessidade de reavaliar
o ensino de leitura bem como a importância de propostas que impliquem em novas
abordagens para os textos que são levados para a sala de aula. As propostas
apresentadas nesta dissertação tentam atender a estas necessidades e são
organizadas a partir das orientações das OCEM sobre leitura. O trabalho em
questão busca visualizar a estrutura, os rastros ideológicos, as condições de
produção e a intenção comunicativa presentes no texto, designados como percursos
de leitura.
Palavras-chave: Leitura; letra de canção; gêneros discursivos.
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ABSTRACT
This paper reflects on the discursive genre "Song lyrics" and proposes its use in
Portuguese Language classes in order to contribute to the formation of critical and
independent readers, as recommended by the Curricular Guidelines for High School
(OCEM). The reflections and analysis were anchored in the enunciative-discursive
theory of socio-historical approach of BAKHTIN ([1929] 2004) and the Circle. To
situate the genre Song lyrics within Bakhtinian theory, as a poetic genre of discourse,
we started from the concepts of Padilha (2005). Low levels of reading performance of
Brazilian students in evaluative events like Prova Brasil and PISA indicate the need
to reevaluate the teaching of reading and the importance of proposals involving new
approaches for the texts that are brought into the classrooms. The proposals
presented in this dissertation attempt to meet these needs and are organized
according to the guidelines of OCEM on reading. The work here suggested of
analysis of song lyrics in the classroom, trying to visualize the structure, the
ideological traces, the conditions of production and the communicative intention in
the text, was designated as pathways in reading.
Keywords: Reading; song lyrics; discursive genres.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................... 8 1 A LINGUAGEM E A IDEOLOGIA NO PENSAMENTO LINGUÍSTICO DE
BAKHTIN E O CÍRCULO .................................................................................. 15
1.1 A LINGUAGEM COMO FENÔMENO DA INTERAÇÃO SOCIAL .................. 16
1.1.1 Os gêneros do discurso ................................................................... 17
1.1.2 As relações dialógicas e o enunciado concreto ............................. 22
1.1.3 O enunciado concreto como unidade da comunicação verbal....... 25
1.1.4 Ideologia ........................................................................................... 29
1.1.5 Entonação expressiva ...................................................................... 32
2 OS GÊNEROS POÉTICOS ............................................................................ 36
2.1 A LETRA DE CANÇÃO ................................................................................... 39
2.1.1 Letra de canção, palavra cantada ou poema? ................................. 42
2.1.2 A letra de canção e a história .......................................................... 49
2.1.3 O direcionamento do discurso nas letras de canção...................... 52
2.2 A LETRA DE CANÇÃO NA ESCOLA ............................................................. 54
2.3 LEITURA ......................................................................................................... 58
2.3.1 Compreendendo os níveis de leitura ............................................... 59
3 PROPONDO PERCURSOS DE LEITURA ...................................................... 64
3.1 LENDO A LETRA DE CANÇÃO “JUDIARIA” ................................................. 66
3.2 UMA LEITURA COMPLEMENTAR ................................................................ 71
3.3 CANTANDO E LENDO SOBRE A LÍNGUA ................................................... 76
3.3.1 Lendo a letra de canção “Língua” ................................................... 80
3.3.2 Lendo a letra de canção “Inclassificáveis” ..................................... 86
3.3.3 Uma aproximação com a variedade linguística da Baixada Cuiabana
................................................................................................................... 91
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 95 REFERÊNCIAS ................................................................................................ 99
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INTRODUÇÃO
Índices provenientes de avaliações nacionais e internacionais têm
mostrado que os estudantes brasileiros estão enfrentando problemas com a
leitura. Ao analisar os dados do Sistema Nacional de Avaliação da Educação
Básica (SAEB, 2001), Rojo concluiu que:
[...] 41% – quase a metade – dos jovens do final do ensino médio apresentam capacidades de leitura abaixo das citadas no relatório para o nível 5, que, por si sós, já são extremamente simples e básicas, além de exercidas sobre textos curtos e muito pouco complexos. Além disso, o relatório admite que apenas 5,35% dos jovens apresentam capacidades de leitura compatíveis com o que seria de esperar ao término do ensino médio (ROJO, 2009, p. 34).
Entre as capacidades descritas no citado nível 5, estão capacidades como:
localizar informações explícitas e implícitas em fragmentos de textos narrativos
simples; fazer inferências, identificar o tema de textos narrativos, poéticos e
informativos; interpretar textos publicitários, entre outros. Diante destas
informações, urge repensar o trabalho de ensino de língua materna e buscar
modos de trabalho que ajudem os estudantes a, de fato, aprender a ler, alcançar
uma leitura autônoma e crítica. Ser capaz de ler criticamente é ferramenta
indispensável para o exercício da cidadania.
Nesse sentido, por meio da presente pesquisa, pretende-se colaborar com
a questão, apresentando percursos de leitura de letras de canção, gênero
discursivo escolhido por sua proximidade com o público destinatário — alunos de
ensino médio do contexto educacional brasileiro. A ênfase das propostas recaiu
sobre a análise dos rastros ideológicos que ajudem a ampliar a compreensão do
leitor sobre o texto e suas implicações sócio-históricas.
Para a elaboração deste trabalho, partiu-se da leitura de documentos
oficiais como as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM), que
pretende ser o balizador para esta etapa da escolarização brasileira. Há ainda
outros dados que foram levados em consideração, como os que são resultantes
de avaliações oficiais, como a Prova Brasil1 e o Exame Nacional do Ensino Médio
1 A Prova Brasil e o SAEB são avaliações para diagnóstico, em larga escala, desenvolvidas pelo INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (MEC). Têm o objetivo de avaliar a qualidade do ensino oferecido pelo sistema educacional brasileiro a partir de testes padronizados e questionários socioeconômicos.
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(ENEM)2, além do PISA3, que formam um quadro do desempenho dos estudantes
brasileiros ao fim do período de três anos do ensino médio. Dialogando com
estes documentos, buscou-se então o embasamento teórico de Bakhtin e o
Círculo sobre gêneros de discurso, ideologia, esferas de produção, enunciado
concreto, entre outros conceitos que alicerçam esta proposta de trabalho com
leitura.
A OCEM, quando trata do conhecimento da literatura, aponta para a
necessidade de se mudar o enfoque tanto do ensino da literatura quanto do ensino
da leitura. Primeiro, estabelece quais são os objetivos do ensino médio:
Para cumprir com esses objetivos, entretanto, não se deve sobrecarregar o aluno com informações sobre épocas, estilos, características de escolas literárias, etc., como até hoje tem ocorrido, apesar de os PCN, principalmente o PCN+, alertarem para o caráter secundário de tais conteúdos: “Para além da memorização mecânica de regras gramaticais ou das características de determinado movimento literário, o aluno deve ter meios para ampliar e articular conhecimentos e competências que [...]” (PCN+, 2002, p. 55). Trata-se, prioritariamente, de for- mar o leitor literário, melhor ainda, de “letrar” literariamente o aluno, fazendo-o apropriar-se daquilo a que tem direito [grifos nosso] (OCEM, 2006, p. 54).
Anteriormente ao trecho citado, o ensino da literatura, no documento OCEM,
está diretamente ligado à formação do pensamento crítico. Mais adiante,
estabelece que é fundamental não se apegar à historicidade da literatura, mas
formar o leitor literário:
Estamos entendendo por experiência literária o contato efetivo com o texto. Só assim será possível experimentar a sensação de estranhamento que a elaboração peculiar do texto literário, pelo uso incomum de linguagem, consegue produzir no leitor, o qual, por sua vez, estimulado, contribui com sua própria visão de mundo para a fruição estética. A experiência construída a partir dessa troca de significados possibilita, pois, a ampliação de horizontes, o questionamento do já dado, o encontro da sensibilidade, a reflexão,
2 O ENEM foi criado em 1998 com o objetivo de avaliar o desempenho do estudante ao fim da educação básica, buscando contribuir para a melhoria da qualidade desse nível de escolaridade. A partir de 2009 passou a ser utilizado também como mecanismo de seleção para o ingresso no ensino superior. 3 O PISA - Programme for International Student Assessment (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) é uma iniciativa internacional de avaliação comparada, aplicada a estudantes na faixa dos 15 anos, idade em que se pressupõe o término da escolaridade básica obrigatória na maioria dos países.
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enfim, um tipo de conhecimento diferente do científico, já que objetivamente não pode ser medido. O prazer estético é, então, compreendido aqui como conhecimento, participação, fruição (OCEM, 2006, p. 55).
Segundo as OCEM, a formação do leitor literário passa pela descoberta da
fruição do texto literário. Mas há ainda a questão da formação da criticidade,
elencada no Inciso III, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN,
1996). O ato de ler, então é visto assim:
O polo da leitura, fluido e variável, configura-se como espaço potencial indispensável no processo de compreensão da criação artística de qualquer natureza, quer essa se manifeste como texto verbal ou não. Por meio da leitura dá-se a concretização de sentidos múltiplos, originados em diferentes lugares e tempos (OCEM, 2006, p.65).
Essa concretização de sentidos requer mais que uma leitura mecânica e
ligeira, há a necessidade de se perceber os sentidos dos textos por meio de um
diálogo que se abra para as várias vozes e para os vários discursos latentes dos
mesmos. Apreender estes sentidos e correlacioná-los ao contexto pode ser uma
possibilidade de definição de leitura crítica e autônoma.
A opção por trabalhar com gêneros discursivos deu-se em parte por ser uma
teoria que embasa a elaboração da OCEM; também pela disponibilidade e
atualidade de textos sobre esta proposta, bem como a participação em grupos de
pesquisa como o Grupo Relendo Bakhtin (REBAK), do Programa de Pós-graduação
em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso. O trabalho
com gêneros discursivos também orienta as escolhas do PNLD – Programa Nacional
do Livro Didático4, que seleciona as coleções que são ofertadas para as escolas
públicas.
Propostas para o ensino através dos gêneros discursivos em sala de aula,
como, por exemplo, as sequências didáticas, foram apresentadas por
pesquisadores brasileiros entre eles Jacqueline Peixoto Barbosa (2001), Vera
Lúcia Cristóvão (2005), Elvira Lopes Nascimento (2009), Adair Vieira Gonçalves 4 O PNLD - Programa Nacional do Livro Didático tem como principal objetivo subsidiar o trabalho pedagógico dos professores por meio da distribuição de coleções de livros didáticos aos alunos da educação básica. Após a avaliação das obras, o Ministério da Educação publica o Guia de Livros Didáticos com resenhas das coleções consideradas aprovadas. O guia é encaminhado às escolas, que escolhem, entre os títulos disponíveis, aqueles que melhor atendem ao seu projeto político pedagógico.
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(2009), entre outros, embasados na Escola de Genebra, de Joaquim Dolz e
Bernard Schneuwly (2004). Não obstante serem propostas interessantes e de
grande importância, em geral, estão mais preocupadas com a escrita (identificação
e reprodução dos gêneros discursivos, escrita, reescrita) e na forma do que na
leitura. Pareceu ser mais oportuno, portanto, ir além da forma, de ensinar o ou falar
sobre o gênero. Para este trabalho, as condições de produção do enunciado e o
que elas apresentam eram essenciais. Esse entendimento está fundamentado na
noção de gênero discursivo, proposta por Bakhtin e o Círculo (2003[1952-1953]).
Bakhtin (2003a, [1952-1953], p. 282) afirma que “a vontade discursiva do
falante se realiza antes de tudo na escolha de um certo gênero de discurso” e a
escolha de compor uma letra de canção pressupõe essa vontade discursiva, a
necessidade do falante de registrar, neste gênero, a partir de sua visão de
mundo, a sociedade em que se situa. Ressalta-se que a composição da letra
pressupõe que, em algum momento, ela será acompanhada da composição de
uma melodia. O gênero discursivo letra de canção é uma das maneiras de se ler
o mundo, de se perceber uma sociedade em seus vários extratos.
Para este trabalho, a escolha deste gênero letra de canção dá-se pela
familiaridade do público, alunos do ensino médio, por ser variado e abundante,
como será melhor apresentado no capítulo 2, e por se entender que letras de
canção fazem parte da história da maioria das pessoas e são capazes de
fazerem aflorar memórias e sentimentos ao serem ouvidas.
Ao se apresentar de forma sucinta a base teórica que fundamentará o
trabalho, bem como a justificativa para a escolha do gênero discursivo letra de
canção, duas questões surgiram para orientar esta pesquisa:
1. Do ponto de vista teórico, o gênero discursivo letra de canção
apresenta-se um bom material para ensinar leitura em língua materna?
2. Como usar a letra de canção para o trabalho em sala de aula de modo a
ajudar na formação de leitores críticos e autônomos?
Em termos metodológicos, esta pesquisa situa-se no âmbito das ciências
humanas, é caráter qualitativo, com enfoque na educação, mais especificamente,
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no trabalho de leitura em sala de aula, pensado para o aluno da escola pública de
ensino médio. A pesquisa nesta área demanda o mesmo rigor científico de outras
áreas, mas não pode perder de vista que: “o objeto das ciências humanas é o ser
expressivo e falante. Esse ser nunca coincide consigo mesmo e por isso é
inesgotável em seu sentido e significado” (BAKHTIN, 2003b [1930-1940], p. 395).
Nesse sentido, considera-se o objeto do campo das ciências humanas
singular em sua manifestação. Ao examinar letras de canção como instrumentos
pedagógicos, além do texto fixado em signos verbais, em capas de discos, livros,
encartes e internet, encontrou-se o texto oral das canções, letras unidas à
melodia, o compositor e o intérprete; a interpretação e o tempo; o ouvinte e o
leitor, os seres “expressivos” e “falantes”.
Para Volochinov e Bakhtin (2004 [1929], p. 112), “não é a atividade mental
que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza a
atividade mental, que a modela e determina sua orientação”. A expressão, ou
enunciado, é fruto da atividade social, das necessidades do meio social:
A estrutura da enunciação e da atividade mental a exprimir são de natureza social. A elaboração estilística da enunciação é de natureza sociológica e a própria cadeia verbal, à qual se reduz em última análise a realidade da língua, é social. Cada elo dessa cadeia é social, assim como toda a dinâmica de sua evolução [grifos do autor] (VOLOCHINOV; BAKHTIN, 2004 [1929], p.122).
A natureza sociológica do enunciado é reafirmada por Volochinov e Bakhtin
(2004 [1929]) quando dizem: “O centro organizador de toda enunciação, de toda
expressão, não é o interior, mas exterior: está situado no meio social que envolve
o indivíduo”. Este discurso, a dissertação, resultante destas interações,
apresentada na forma escrita, é “de certa maneira parte integrante de uma
discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta,
confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais” (VOLOCHINOV;
BAKHTIN, 2004 [1929], p. 112). É, portanto, mais um “elo na cadeia discursiva”.
Inserida no campo das ciências humanas e ancorada nas teorias de
Bakhtin e seu Círculo, esta pesquisa busca encontrar não um objeto desprovido
de substância, que possa ser observado e catalogado e que atenda a uma
finalidade prática. Antes, almeja observar a interação entre sujeitos, entre os
enunciados e a vida que emerge deles. Segundo Souza e Albuquerque:
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O critério que orienta esse tipo de conhecimento é a preocupação com a densidade e a profundidade do que é revelado a partir do encontro do pesquisador e seu outro. O pesquisador do campo das ciências humanas está, portanto, transitando no terreno das descobertas, das revelações, das tomadas de conhecimento, das comunicações, das produções de sentido entre o eu e o outro. (Grifos dos autores) (SOUZA; ALBUQUERQUE, 2012, p. 11).
Ainda sobre a singularidade do objeto de estudo das ciências humanas,
tem-se em Santos (2012, p. 91) que “A especificidade das Ciências Humanas
reside nos sentidos e significados dos outros, os quais são realizados e dados ao
pesquisador apenas sob a forma de textos entendidos como enunciados
concretos”. Neste trabalho, tais enunciados são as letras de canção e os sentidos
que possam ser apreendidos pelo leitor/ouvinte.
Este trabalho se apresenta como uma proposta de reflexão sobre o ensino
de leitura na escola. A apresentação de protótipos de trabalho, aqui chamados de
“percursos de leitura” não se qualifica como forma cristalizada de conhecimentos
ou modo de agir a ser reproduzido, mas um enunciado a ser refratado, de modo
que o objetivo principal, a prática da leitura, seja percebido não como uma
atividade mecânica, mas como a interação entre leitor e projeto discursivo do
autor, mediado pelo texto, neste caso, a letra de canção, que possibilite a eles o
ato de vislumbrar a ideologia de um discurso e seus desdobramentos. Não se
trata de levar o texto para a sala de aula para ser usado como coadjuvante no
ensino, mas, sim, para ser o objeto da análise e, a partir dela, mostrar aos
estudantes os vários níveis de leitura e o quanto se pode apreender da sociedade
e da vida mediante textos.
Apresentam-se, portanto, neste trabalho, duas propostas de percurso de
leitura, cada qual com um corpus distinto de letras de canção e enunciados que
se unem pelo tema e atendem ao conceito teórico explorado.
No primeiro percurso de leitura, a música foi escolhida para atender ao
conceito da entoação e seus desdobramentos de sentido. A letra de canção
Judiaria é de autoria de Lupicínio Rodrigues, que a gravou em LP em 1973. A
seleção desta letra deve-se principalmente por sua regravação por Arnaldo
Antunes, em 2007, em CD e em vídeo numa apresentação na MTV, disponível no
canal youtube, na internet. Temos, portanto, além da letra da canção, o som da
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gravação de Lupicínio, o som e as imagens de vídeo de Antunes. Estes
enunciados compõem o corpus da primeira proposta.
A elaboração do percurso de leitura delineou-se após o exame da letra de
canção e da observação das versões dos dois intérpretes. Neste caso, foi
possível eleger, além de ideologia, o conceito de entoação, dentro do arcabouço
bakhtiniano, para a análise da letra e incorporar a ela o áudio e imagem das
versões, num trabalho semiótico, mais rico e mais interessante para o público do
ensino médio, acostumado a viver entre imagens. A escolha do conceito de
entonação como categoria de análise não foi arbitrária, deu-se pela observação
de sua manifestação no enunciado ‘apresentação em vídeo de Judiaria por
Arnaldo Antunes’.
Para o segundo percurso, o corpus foi formado por três letras que têm por
tema comum a miscigenação na formação da nação brasileira e seu impacto na
língua materna do brasileiro hoje. O propósito é discutir a formação da identidade
linguística do povo brasileiro. O trajeto permite aos alunos perceberem como
falantes da língua portuguesa brasileira, língua oficial falada em quase todo o
território brasileiro, bem como reconhecer a variante falada na região, a Baixada
Cuiabana. O corpus desta atividade é formado pelas seguintes letras de canções:
Língua, de Caetano Veloso; Inclassificáveis, de Arnaldo Antunes e Cuiabano de
chapa e cruz, de Edna Vilarinho. O conceito de ideologia orienta a construção
desse percurso de leitura.
Há que se observar que, nos dois casos, os eventos que originaram a
elaboração dos percursos estão relacionados a canções, e é na letra de canção
que se encontra material para o trabalho. No entanto, partindo da concepção de
enunciado, também se recorre às imagens e às melodias que, junto com as
letras, compõem as canções. Em razão de letra e melodia estarem inter-
relacionadas, é muito interessante que sejam apresentadas conjuntamente em
dado momento do percurso. Também na melodia há rastros ideológicos que
fazem referência a sua produção e circulação.
Ao final de cada percurso, pretendem-se contemplados os seguintes
pontos: uma leitura das letras de canção; uma análise de suas condições de
produção e de circulação; apreensão do projeto discursivo de seus compositores;
reconhecimento dos recursos linguísticos a que os autores recorreram em sua
criação. Articulada à leitura do signo impresso, espera-se que a audição da
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canção e/ou a visualização de um vídeo permita entender a releitura da letra por
diferentes intérpretes e a ideologia subjacente à sua interpretação. Se, ao final
das atividades, os alunos executarem estes passos, terão ultrapassado o nível 5
descrito no SAEB e comentado por Rojo (2009), já citados nesta introdução, e
estarão construindo uma capacidade de leitura que os torne autônomos, quiçá
conscientes de sua autoria no processo de aprendizagem do mundo.
Ao final de cada roteiro de leitura, é sugerido um novo corpus, para análise
como um exercício para a sala de aula, dentro do mesmo tema, um novo
percurso. As demais letras de canção que aparecem nesta dissertação não fazem
parte do corpus das propostas nem são analisadas, são apenas utilizadas como
exemplos ou para elucidar/enfatizar algum conceito.
Crê-se, por fim, que uma das vantagens do ensino de língua materna é a
variedade de materiais que são passíveis de frequentar a sala de aula, já que a
área é a linguagem, uma das condições da vida e dela inseparável.
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1 A LINGUAGEM E A IDEOLOGIA NO PENSAMENTO LINGUÍSTICO DE BAKHTIN E O CÍRCULO
As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios.
VOLOCHINOV; BAKHTIN (1929)
Neste capítulo, apresenta-se a concepção de linguagem que fundamenta,
teoricamente, esta pesquisa. Por se tratar de uma pesquisa qualitativa, que traz
como reflexão principal as práticas de ensino de leitura, nas escolas públicas
brasileiras, tomando por base os resultados de exames padronizados (SAEB,
ENEM) e a própria prática de ensino da autora, a escolha teórica não pode ser
indiferente, pois, para o pesquisador comprometido com a aplicação do seu
trabalho, “a validade da pesquisa irá depender mais da eficácia social que da
precisão da análise” (ROJO, 2005, p. 206).
Na presente pesquisa, a noção de ideologia na letra de canção fundamenta
a proposição do objetivo nela proposto, qual seja, propor um percurso de análise
e leitura da letra de canção para alunos do ensino médio, com enfoque na
construção ideológica. Espera-se, por meio dessa proposta, demonstrar que é
possível utilizar a letra de canção como objeto de ensino favorável à formação de
um leitor crítico e responsivo. Por isso, a abordagem enunciativo-discursiva de
Bakhtin e do Círculo é promissora para respaldar o entendimento do objeto de
análise, letra de canção, e para responder ao objetivo proposto.
Na perspectiva enunciativo-discursiva, a linguagem tem seu fundamento no
uso situado, relacional e valorativo (BAKHTIN, 2003 [1952-1953]). Passam a ter
importância tanto as situações de produção, circulação e recepção dos
textos/discursos quanto o sentido que nelas é forjado, distanciando-se, assim, de
um pensamento linguístico voltado para a forma descontextualizada. A partir
desse entendimento, a unidade de sentido da linguagem é formada por conteúdo,
forma e estilo, acrescidos do contexto extraverbal. A unidade de sentido é
conhecida como enunciado concreto, quando ela adquire relativa estabilidade e
passa a funcionar como referência para a comunicação em determinado contexto
de produção, é nomeado como gênero do discurso.
Neste trabalho, a letra de canção é entendida como um gênero do
discurso. E, para propor o percurso de leitura, considera-se cada letra de canção,
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que compõe o corpus de análise, um enunciado concreto no qual se persegue,
por meio do encaminhamento sugerido, a construção de sentido, com ênfase na
tessitura ideológica das letras. Dessa forma, da concepção de linguagem
enunciativo-discursiva, foram selecionados como conceitos pertinentes para o
trabalho os gêneros do discurso, o enunciado concreto, a ideologia, a entonação
e a compreensão ativa.
1.1 A LINGUAGEM COMO FENÔMENO DA INTERAÇÃO SOCIAL
Em relação à natureza da linguagem, defendida na perspectiva
enunciativo-discursiva, deve-se ressaltar que as produções iniciais de Bakhtin e o
Círculo surgem em um contexto histórico em que as discussões ideológicas mais
marcaram a história da ciência. Eram as primeiras décadas do século XX, na
recém-instaurada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Nesse período, é
prevalente, no pensamento filosófico, psicológico e social, uma ideologia que
atrela o funcionamento social do homem à estrutura de classe (PAES DE
BARROS, 2008).
Inseridos nessa atmosfera social, Bakhtin e o Círculo sustentam que a
origem e o desenvolvimento da linguagem encontram-se na organização
sociopolítica e econômica da sociedade “As relações de produção e a estrutura
sociopolítica que delas diretamente deriva determinam todos os contatos
possíveis entre os indivíduos, todas as formas e os meios de comunicação
verbal” (VOLOCHINOV; BAKHTIN, 2004 [1929], p. 43).
A linguagem resulta da atividade humana coletiva e sua realização e
representação são de índole social. Trata-se de um fenômeno social de interação
verbal que se manifesta através de enunciações que refletem as condições
específicas e as finalidades de cada campo de atividade humana, tanto nos seus
temas quanto nas suas formas. A linguagem acompanha a atividade social
humana e reage de maneira muito sensível a todas as suas flutuações
(VOLOCHINOV; BAKHTIN, 2004 [1929]).
Por sua vez, a linguagem realiza um papel importante na organização da
vida sociopolítica e econômica e na formação dos sistemas ideológicos (a
ciência, a arte, a religião, entre outros). Trata-se de um processo complexo de
inter-relação da linguagem com a vida social. Em função da necessidade de
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comunicação social, a linguagem se concretiza por meio da interação verbal, na
forma de enunciações, no âmbito de contextos sócio-históricos organizados.
É importante destacar que Bakhtin e o Círculo não definem, precisamente,
o conceito de campo de atividade humana. Entende-se que são âmbitos
específicos de relações sociais, com base em Sobral (2009), para quem, os
campos são espaços sociais, históricos e ideológicos de recorte do mundo onde
os sujeitos entram em relações verbais ou não. O autor também compreende que
esses espaços são mais abrangentes que o conceito de instituições em termos
do que o Estado inclui em seu aparato.
Segundo Sobral, na perspectiva do Círculo, o encontro casual de duas
pessoas já é um evento institucional, uma vez que se trata de uma relação social
e histórica que carrega a soma total das relações sociais dessas pessoas, pelo
menos, da família ao Estado. Essa sustentação está baseada no entendimento
de que “a sociedade não pode existir independentemente das relações entre os
sujeitos que dela fazem parte: são precisamente essas relações que a
constituem, seja qual for o ambiente e o grau específico de ‘formalização’ desse
ambiente” (SOBRAL, 2009, p. 121).
Enfim, há um vínculo intrínseco entre o funcionamento da linguagem e as
atividades humanas em espaços sociais e ideológicos. Sendo assim, o
entendimento das formas de enunciações passa pela análise de sua função no
processo de interação nos campos de atuação dos homens (VOLOCHINOV;
BAKHTIN, 2004 [1929]). Bakhtin (2003a [1952-1953]) afirma que, embora as
enunciações sejam individuais, cada campo de atividade humana gera suas
formas estáveis de enunciados ou gêneros do discurso, que conservam uma
memória da comunicação verbal e, por isso, apresenta-se ao autor como
recursos para pensar e dizer em condições específicas desse campo. A noção de
gêneros será tratada na seção seguinte.
1.1.1 Os gêneros do discurso
As primeiras discussões de Bakhtin e do Círculo acerca do conceito de
gêneros de discurso surgem do diálogo com posições formalistas no campo
literário, em que os gêneros eram definidos mecanicamente (MEDVEDEV, 2012
[1928]). Segundo o autor, no pensamento formalista, os elementos de construção
18
da obra eram estudados e definidos a priori, sem relação com os gêneros, que
eram investigados apenas no fim da análise como um composto de esquemas.
Medvedev (2012[1928]) defendia que a análise do todo da obra (no caso,
do enunciado literário) devia começar pela análise do gênero uma vez que este
representa a forma típica dessa constituição literária. Na obra de 1929, em que o
tratamento do conceito de gêneros linguísticos é apenas uma promessa,
Volochinov/Bakhtin assinalam que a caracterização das formas de enunciação
(gêneros) deve apoiar-se sobre uma classificação das formas de comunicação
social forjadas pelas relações sociais nos campos de atividade humana e da vida
(VOLOCHINOV; BAKHTIN, 2004 [1929]).
Segundo Souza (1999), Volochinov/Bakhtin explicam essa interação entre
as formas de comunicação e interação social e os gêneros do discurso, em um
ensaio sobre a estrutura do enunciado, dizendo que, relacionado a uma situação
específica da vida, há sempre um auditório com organização precisa e um
repertório de gêneros apropriados. Em razão de tomar os contornos do perfil que
a comunicação social definiu para ele, o gênero acaba por representar a
dimensão ideológica do tipo, da estrutura, da finalidade e da constituição própria
às relações de comunicação social.
Quando Volochinov e Bakhtin (2004 [1929], p. 45) propõem um caminho
metodológico para estudar as enunciações, a noção de gêneros aparece como
forma de uma totalidade discursiva que organiza e conclui as relações entre a
comunicação social, os temas nela presentes e as condições em que essas
relações acontecem. Mais tarde, Medvedev (2012 [1928]) observa que, em razão
dessa vinculação, os gêneros abrangem apenas alguns aspectos da realidade,
vinculando-se a essa realidade social compreendida por ele, por meio de
princípios de seleção, maneiras de visão, concepção da realidade e modos de
aprofundar e penetrar essa realidade.
Diferentemente de um procedimento mecânico, esse conceito, do ponto de
vista enunciativo-discursivo, é de índole social e histórica. Ele não pode ser
desvinculado da realidade de sua execução no processo de comunicação social e
de interação verbal, em que está duplamente orientado: aos ouvintes e
receptores em conjunto com condições determinadas de realização e percepção;
à vida, pelos seus conteúdos temáticos. Nessa perspectiva, o gênero é um
19
organizador formal em termos estilístico-composicionais da interação verbal no
âmbito de campos de relações sociais.
Bakhtin (2003a [1952-1953]) diz que cada campo de relação social possui
um repertório completo de gêneros do discurso que crescem e diferenciam-se à
medida que se desenvolve e complexifica esse determinado campo. A riqueza e a
variedade dos gêneros são infinitas devido à variedade potencial da at ividade
humana. Os gêneros assumem características próprias das relações
estabelecidas nesses campos, pois estes são seus determinantes
(VOLOCHINOV; BAKHTIN, 2004 [1929]).
Entende-se, portanto, que o gênero não é um esquema formal, mas é um
conjunto de recursos e modos de dominação conceitual e acabamento da
realidade (MEDVEDEV, [1928] 2012). Mas o acabamento referido por Medvedev
não diz respeito a um fim absoluto. Devido à própria noção de linguagem como
interação, o gênero pode até possuir finalização composicional, mas a temática
está sempre em movimento no processo de interação e evolução dos gêneros do
discurso.
Pode-se dizer que os gêneros do discurso funcionam como pontes entre a
vida (os acontecimentos, os problemas) e a linguagem, pois a interação verbal
entre os sujeitos sempre ocorre em determinado gênero.
Nós aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de gênero e, quando ouvimos o discurso alheio, já adivinhamos o seu gênero pelas primeiras palavras [...]. Se os gêneros do discurso não existissem e nós não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir livremente e pela primeira vez cada enunciado, a comunicação discursiva seria quase impossível (BAKHTIN, 2003a [1952-1953], p. 283).
Conforme a citação, na comunicação discursiva real, a linguagem
apresenta-se aos falantes na forma de gêneros, dos quais todos os usuários da
língua possuem um amplo repertório, orais ou escritos, e os dominam do ponto
de vista prático, de maneira segura e hábil, muitas vezes, desconhecendo-os
teoricamente.
[...] nós falamos por gêneros diversos sem suspeitar de sua existência. Até mesmo o bate-papo mais descontraído e livre nós moldamos o nosso discurso por determinadas formas de gênero,
20
às vezes padronizadas e estereotipadas, às vezes mais flexíveis, plásticas, criativas [...] (BAKHTIN, 2003a [1952-1953], p. 282).
Assim, os gêneros são formas de enunciações da mesma maneira que os
meios linguísticos são formas da língua. Entretanto, os gêneros são combinações
das formas da língua, organizadas e integradas em tipos de enunciações.
Segundo Bakhtin, as estruturas da língua e os gêneros chegam à experiência e
consciência dos falantes em conjunto e estreitamente vinculadas. Desse modo,
aprende-se a interagir verbalmente na comunicação social viva com o círculo de
pessoas de que se faz parte, por isso, não são orações ou palavras isoladas que
constituem o discurso, mas enunciações completas.
Deve-se ressaltar, porém, que, para Bakhtin, os gêneros diferem-se,
substancialmente, dos meios linguísticos, no que diz respeito a sua estabilidade e
normatividade para os falantes. Considerando a diversidade de gêneros do
discurso, uns dominam mais alguns tipos, outros dominam menos, a depender
das experiências vivenciadas em um campo de atividade ou outro. Quanto mais
se domina um gênero, mais liberdade se tem para lhe imprimir as características
da situação singular de comunicação e realizar livremente o projeto discursivo
autoral.
No entanto, os gêneros, assim como as estruturas da língua, não são
criados, mas apresentam-se aos falantes como dados e obrigatórios a eles para
uma compreensão mútua. A diferença encontra-se na maior flexibilidade e
facilidade em combiná-los, bem como na possibilidade maior de mudanças. É o
que ocorre, por exemplo, com o trecho do enunciado letra de canção, abaixo, que
se apropria de partes da composição e estilo da forma típica do enunciado receita
culinária, para realização do projeto discursivo do autor.
Os anjos
1. Hoje não dá 2. Hoje não dá 3. Não sei mais o que dizer 4. E nem o que pensar 5. Hoje não dá 6. Hoje não dá 7. A maldade humana agora não tem nome 8. Hoje não dá 9. Pegue duas medidas de estupidez 10. Junte trinta e quatro partes de mentira
21
11. Coloque tudo numa forma 12. Untada previamente 13. Com promessas não cumpridas 14. Adicione a seguir o ódio e a inveja 15. Dez colheres cheias de burrice 16. Mexa tudo e misture bem 17. E não se esqueça antes de levar ao forno temperar 18. Com essência de espírito de porco 19. Duas xícaras de indiferença 20. E um tablete e meio de preguiça [...] (Legião Urbana. CD. Como é que se diz eu te amo. EMI, 2001).
Na letra de canção acima, o autor apropria-se da fase da composição
“modo de preparo” e do estilo da receita e os insere no seu projeto discursivo
com à adequação a sua valoração para a temática da letra. Trata-se, é claro, de
uma enunciação própria de um campo cultural em que o caráter criativo e
singular da linguagem é prevalente, permitindo, assim, uma maior manipulação e
combinação de formas por parte do autor. Ainda nesses casos, não se trata de
uma combinação absolutamente livre, pois, apesar da individualidade e
subjetividade do autor, sua intenção discursiva adapta-se ao gênero escolhido,
desenvolvendo-se em conformidade a essa tipicidade discursiva.
Em suma, no pensamento de Bakhtin e o Círculo, a reflexão acerca do
conceito de gêneros do discurso é feita a partir da compreensão do
funcionamento do enunciado real. O Círculo defende a ideia de que o gênero é a
totalidade típica do enunciado, um todo acabado de sentido e forma. No texto de
1952-1953, os gêneros assumem a forma de um tripé indissociável, abrangendo
conteúdo temático (acontecimentos, problemas), estilo (meios linguísticos) e
forma composicional (disposição do conteúdo e dos meios linguísticos).
É a noção do todo que permite ao falante utilizar o gênero como recursos
para interagir em uma situação específica. Portanto, ele é como ponte fi rmada na
corrente da comunicação discursiva e sua recorrência em situações parecidas ou
semelhantes, no interior de campos de atividade humana ou da vida, permite-lhe
adquirir relativa estabilidade, podendo ser recuperado e util izado como pré-
configuração para o discurso do autor.
Os enunciados dão existência aos gêneros a partir de determinadas
relações na comunicação social no interior de um campo. Estes, por sua vez, são
essenciais para a compreensão daqueles, pois o enunciado ocupa uma posição
22
precisa em relação a um tema específico no interior de um gênero. Há, portanto,
uma relação indissolúvel entre os dois conceitos na qual o enunciado assume o
caráter de reação-resposta a outros enunciados, conforme pretende-se
demonstrar na próxima seção.
1.1.2 As relações dialógicas e o enunciado concreto
A vida social do homem implica sua inserção em atividades de interação
organizada em determinados espaços sócio-históricos de atuação humana a
partir das quais o indivíduo desenvolve a capacidade de interação sígnica como
produzir, interpretar e compreender textos e linguagens. Por sua vez, a interação
sígnica permite-lhe sua sociabilidade.
A sociabilidade do homem, isto é, a consciência do mundo, do outro e de si
mesmo, dá-se na diferença em que o “eu-para-mim” se constitui a partir do “eu-
para-os-outros” (BAKHTIN, 2010 [1919-1924]). Nesse sentido, o homem social
não apenas conhece ou desconhece as coisas do mundo, as compreende, as
interpreta, as valora, ou seja, ele pensa o mundo do ponto de vista da
necessidade de instauração de um lugar a partir do qual ele responde ao outro.
Como parte constitutiva da sociabilidade humana, da mesma forma que o
sujeito, a linguagem é relacional e alteritária. A concepção enunciat ivo-discursiva
ancora-se num pensamento concreto assentado na relação entre sujeitos, que se
dá em um movimento de alternância na cadeia de comunicação discursiva.
A relação é a pedra-angular na perspectiva enunciativo-discursiva. Em
virtude de a formação ser de índole social, aprende-se a falar com os familiares e,
desse convívio, apreendem-se as primeiras noções de sociabilidade, são deles as
primeiras palavras a povoarem os discursos e, depois deles, vão se ampliando as
relações,
Tudo que me diz respeito, a começar pelo meu nome, chega do
mundo exterior à minha consciência pela boca dos outros (da
minha mãe, etc.), com a sua entonação, em sua tonalidade
valorativo-emocional. A princípio eu tomo consciência de mim
mesmo através dos outros: deles eu recebo as palavras, as
formas e a tonalidade para a formação da primeira noção de mim
mesmo (BAKHTIN, 2003c [1970-1971], p. 373-374).
23
Do círculo estreito familiar ao contexto sócio-histórico mais amplo, a
linguagem se desenvolve na fronteira de duas consciências, onde há linguagem,
há relações (e vice-versa). Porém, essas relações não são lógicas, linguísticas,
mecânicas nem psicológicas, em si, mas constituem um tipo especial,
denominadas de dialógicas,
Essas relações são profundamente originais [...] É o novo tipo de
relações semânticas, cujos membros só podem ser enunciados
integrais (ou vistos como integrais ou potencialmente integrais),
atrás dos quais estão (e nos quais exprimem a si mesmos)
sujeitos do discurso reais ou potenciais, autores de tais
enunciados (BAKHTIN, 2003d [1959-1961], p. 330-331).
É possível verificar que as relações dialógicas só ocorrem em usos
situados da linguagem no grande diálogo da comunicação social. Assim, as
diversas relações entre sujeitos situados tecem os discursos que se constituem
como elos da cadeia discursiva (BAKHTIN, 2003a [1952-1953]). Esse diálogo
entre os discursos imprime-lhes um caráter responsivo.
A noção de linguagem situada e, ao mesmo tempo, em movimento, permite
um entendimento mais detalhado sobre o caráter responsivo da linguagem. O
discurso é resultante da articulação entre elementos fixos e dinâmicos, os quais,
na corrente ininterrupta da comunicação social, tornam-no um fenômeno de
sentido estabilizado e de sentido específico.
Volochinov e Bakhtin (2004 [1929]) ponderam sobre a existência de
significação e de tema do discurso. A significação está no plano do sistema da
língua, de suas formas gramaticais, lexicais; o tema está no plano da interação.
O tema é um sistema de signos dinâmico e complexo, que procura adaptar-se adequadamente às condições de um dado momento da evolução. O tema é uma reação da consciência em devir ao ser em devir. A significação é um aparato técnico para a realização do tema (VOLOCHINOV; BAKHTIN, 2004 [1929], p. 134).
O tema se manifesta nas situações de uso concreto da língua em
condições determinadas de produção. A significação existe em potencial em
termos da capacidade da língua de significar. Por isso, refere-se ao tema como o
estágio superior de significar da língua e à significação como o estágio inferior
24
(VOLOCHINOV; BAKHTIN, 2004 [1929]). No entanto, Volochinov não propõe a
significação independente do tema, nem o tema fora da base da significação.
Sobral (2009, p. 75) comenta que a inter-relação entre tema e significação
é de precedência. A significação antecede o tema e funciona como base para
este se estabelecer. Mas a significação atua no nível do que é abstrato e
dicionarizado, realizando-se apenas no interior de um discurso específico. O tema
nasce da interação entre sujeitos em uma situação concreta de comunicação,
articulada com a significação composta pela somatória de todas as significações
das formas de suas relações morfológicas, sintáticas, léxicas, etc.
Assim, as explicações do Círculo sobre a relação entre significação e tema
esclarece melhor a noção de resposta. Considerando que a comunicação é a
interação verbal entre sujeitos socialmente constituídos, a resposta ocorre porque
os sujeitos atuam na base do conhecimento comum da situação discursiva,
partilham um horizonte espacial comum e conhecem o material pelo qual a
comunicação é concretizada. Nesse sentido,
[...] compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica (VOLOCHINOV; BAKHTIN, 2004 [1929], p. 131-132).
Portanto, a resposta só é possível porque os falantes partilham o
conhecimento comum do contexto sócio-histórico de realização do enunciado.
Mas pressupõe, também, um sistema linguístico com que materialize sua
posição. Ademais, a atitude responsiva não quer dizer aceitar ou rejeitar, em si,
nem dialogar no sentido de acordo, mas de compreensão em termos de “opor à
palavra do locutor uma contrapalavra” (VOLOCHINOV; BAKHTIN, 2004 [1929], p.
131-132).
Pode-se entender essa contrapalavra como réplica que nasce exatamente
da interação com uma resposta anterior. Uma charge de jornal, por exemplo, é
uma resposta ativa a um fato do cotidiano e, uma vez impressa no jornal, dialoga
com seus leitores, que, dependendo de suas interações e conhecimentos prévios,
vão reagir de maneiras diferenciadas: concordar com o chargista, achando graça;
discordar, opondo-se ao discurso expresso; não concordar nem rejeitar, mas, por
25
desconhecerem os fatos que a geraram, questionar sua validade capaz de
suscitar resposta.
Assim, como um devir (VOLOCHINOV; BAKHTIN, [1926), a natureza da
palavra de querer ser ouvida busca resposta ativa. Essa busca por resposta
permite entender as relações dialógicas como sentidos que se estabelecem entre
dois discursos uma vez que o “que a nada responde se afigura sem sentido para
nós...” (BAKHTIN, 2003c [1970-1971], p. 381). Nesse movimento, as respostas
tomam contornos de todos integrais ou enunciados concretos.
1.1.3 O enunciado concreto como unidade da comunicação verbal
O enunciado é a unidade da comunicação verbal real (BAKHTIN, 2003a
[1952-1953]). Embora as enunciações ocorram em um movimento incessante, a
compreensão do enunciado requer encará-lo como um momento da grande cadeia
de comunicação da vida social e histórica (SOUZA, 1999).
Como unidade da comunicação verbal, distinta da unidade da língua, o
enunciado possui características específicas. A primeira marca do enunciado é a
alternância entre os sujeitos da comunicação verbal, que retoma o caráter de elo
do enunciado na corrente complexamente organizada dos discursos,
Cada enunciado isolado é um elo na cadeia da comunicação discursiva. Ele tem limites precisos, determinados pela alternância dos sujeitos do discurso (dos falantes), mas no âmbito desses limites o enunciado, como a mônada5 de Leibnitz, reflete o processo do discurso, os enunciados do outro, e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (às vezes os mais imediatos, e vez por outra até os muito distantes – os campos da comunicação cultural) (BAKHTIN, 2003a [1952-1953], p. 299).
Todo enunciado tem um princípio e um fim absolutos, demarcados por
outros enunciados “antes de seu início, os enunciados de outros; depois de seu
término, os enunciados responsivos de outros...” (BAKHTIN, 2003a [1952-1953],
p. 275). O autor põe fim ao seu enunciado para transmitir a palavra ao outro de
tal forma que esse outro perceba, mesmo minimamente, essa finalização.
5 É um conceito neoplatônico, que foi retomado por Giordano Bruno e Leibniz o desenvolveu. As mônadas (unidade em grego) são pontos últimos se deslocando no vazio. Leibniz chama de mônada a substância tomada como coisa em si, tendo em si sua determinação e finalidade. Mais informações em: http://www.consciencia.org/leibniz.shtml. Acesso em jan. 2014.
26
Outro índice do enunciado é a existência de uma conclusibilidade
específica. Esse caráter é entendido como a alternância dos sujeitos do discurso
vista do interior. A conclusibilidade pode ocorrer porque o autor escreveu tudo o
que tinha para escrever em dado momento e em condições específicas e assume
contornos de um todo finalizado capaz de gerar respostas.
A conclusibilidade envolve três momentos. O primeiro é o tratamento
exaustivo do objeto do discurso de acordo com condições precisas. Essa
exploração exaustiva do objeto do discurso é dependente da esfera de atividade
em que o enunciado ocorre. Por exemplo, em algumas esferas oficiais em que a
interação verbal é mais padronizada, o tratamento exaustivo é quase pleno, em
outras, como as científicas e artísticas, esse tratamento é mínimo, apenas o
suficiente para gerar resposta (BAKHTIN, 2003a [1952-1953]). Teoricamente, o
objeto discursivo é inesgotável, mas pode receber, em condições determinadas,
ao se tornar objeto de um enunciado, certo acabamento.
O acabamento depende, por sua vez, do intuito discursivo do autor,
definido como o segundo momento de conclusibilidade específica do enunciado.
O projeto discursivo do autor articula-se em uma unidade inseparável com o
conteúdo semântico-objetal do enunciado. Entretanto, esse intuito discursivo
restringe e vincula o objeto a uma situação de comunicação específica,
envolvendo as circunstâncias individuais, seus participantes bem como
enunciados anteriores. No momento da recepção, a orientação nessa situação e
nos enunciados antecedentes permite a percepção rápida da intenção do autor e
do todo do enunciado (BAKHTIN, 2003a [1952-1953]).
O querer dizer do autor se realiza, especificamente, na escolha das formas
típicas de estruturação do acabamento, os gêneros do discurso, que constituem o
terceiro momento da conclusibilidade específica do enunciado. A escolha de um
gênero para executar seu projeto discursivo está submetida às coerções de uma
esfera de atividade onde são produzidos e circulam os gêneros de enunciados,
em função da temática, da situação de comunicação discursiva e de seus
participantes.
Conforme mencionado na seção sobre os gêneros do discurso, há uma
inter-relação intrínseca entre o gênero e o enunciado. Se a compreensão do
funcionamento do enunciado permite entender a natureza dos gêneros do
discurso, estes, por sua vez, funcionam como porta de acesso para o enunciado.
27
Como acontece essa inter-relação? O intuito discursivo do autor, com toda a sua
subjetividade e individualidade, ao mesmo tempo em que determina a escolha do
gênero, adapta-se ao gênero escolhido e desenvolve-se em conformidade a essa
forma (BAKHTIN, 2003a [1952-1953]).
O enunciado também se constitui pela relação do autor centrada no objeto
do discurso, bem como no sentido do enunciado ou sua endereçatividade.
Chega-se à terceira particularidade do enunciado.
Como um elo na cadeia discursiva, o enunciado representa a posição ativa
do sujeito nesse ou naquele campo do objeto discursivo, por isso, o enunciado
caracteriza-se, antes de tudo, por um conteúdo preciso (BAKHTIN, 2003a [1952-
1953]).
Considerando que todo enunciado tem um endereçamento uma vez que
dirigir-se a alguém é seu elemento constitutivo, a relação valorativa do autor
também está centrada no objeto do sentido, ou seja, no encontro da resposta,
Ao construir meu enunciado, procuro defini-lo de maneira ativa; por outro lado, procuro antecipá-lo, e essa resposta antecipável exerce, por sua vez, uma ativa influência sobre o meu enunciado (dou resposta pronta às objeções que prevejo, apelo para toda sorte de subterfúgios, etc.) (BAKHTIN, 2003a [1952-1953], p. 302).
Pela citação, é perceptível que o enunciado é construído como uma
resposta ativa a enunciados precedentes. Esses elos precedentes o determinam
externa e internamente, imprimindo-lhe atitudes responsivas diretas e
ressonâncias dialógicas. Assim, ele é também uma resposta antecipável a
enunciados subsequentes; e construído em busca dessas respostas posteriores,
desde o início o autor as aguarda, espera uma atitude responsiva, e essa se faz
presente nele desde sua produção.
Dessa forma, se o enunciado não for examinado, isoladamente, nem
apenas na relação com seu autor, mas também na relação com outros
enunciados a ele vinculados, verifica-se um fenômeno muito complexo e
multiplanar “[o enunciado] é um drama do qual participam três personagens (não
é um dueto, mas um trio) ” (BAKHTIN, 2003d [1959-1961], p. 328). O enunciado é
construído em uma interação orgânica de diferentes elementos e planos, por
28
meio de uma articulação dinâmica, conforme se observa nas explicações de
Bakhtin.
A interação orgânica entre os elementos pertencentes à situação do
enunciado concreto determina, por sua vez, a escolha dos meios linguísticos,
composicionais e dos gêneros do discurso. O querer dizer do autor, centrado no
objeto discursivo, e os problemas de execução que o objeto implica para o autor
é o primeiro momento de determinação dessa escolha. Aliado a esse primeiro
momento, tem-se o segundo, que é a necessidade de expressividade, a relação
subjetiva emocionalmente valorativa do autor ante o objeto, como também ante
os outros parceiros da comunicação.
O intuito discursivo do autor (elemento subjetivo) está relacionado a uma
temática (elemento objetivo), a qual está vinculada a uma situação concreta de
comunicação verbal, marcada pelas circunstâncias individuais bem como pela
relação individual dos interlocutores (autores e destinatários) e suas respect ivas
orientações valorativas para a temática e os enunciados anteriores.
A escolha dos contornos formais e genéricos depende da apreciação
valorativa que o autor tem, de antemão, sobre o objeto discursivo, até porque,
considerando a natureza dialógica da linguagem, seja qual for esse objeto, não
se torna pela primeira vez objeto de um enunciado nem o autor é o primeiro a
abordá-lo. No processo discursivo, o objeto já passou pela avaliação de outros
elos precedentes da cadeia, alguns mais imediatos, outros no grande campo da
comunicação cultural,
O objeto, por assim dizer, já está ressalvado, contestado, elucidado e avaliado de diferentes modos; nele se cruzam, convergem e divergem diferentes pontos de vista, visões de mundo, correntes (BAKHTIN, 2003d [1959-1961], p. 300). Em cada palavra [enunciado] há vozes às vezes infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais (as vozes dos matizes lexicais, dos estilos, etc.), quase imperceptíveis, e vozes próximas, que soam concomitantemente (BAKHTIN, 2003d [1959-1961], p. 330).
A escolha da composição, do estilo e do gênero depende também da forma
como autor percebe e representa o destinatário do enunciado.
29
Ao falar, sempre levo em conta o fundo aperceptível da percepção do meu discurso pelo destinatário: até que ponto ele está a par da situação, dispõe de conhecimentos especiais de um dado campo cultural da comunicação; levo em conta as suas concepções e convicções, os seus preconceitos (do meu ponto de vista), as suas simpatias e antipatias... Essa consideração irá determinar também a escolha do gênero do enunciado e a escolha dos procedimentos composicionais e, por último, dos meios linguísticos, isto é, o estilo do enunciado (BAKHTIN, 2003a [1952-1953], p. 302).
Em seções anteriores, observou-se que a relação e a alteridade são
conceitos fortes na teoria bakhtiniana. São elementos que se radicalizam, na
concepção de linguagem dialógica, pois os lugares enunciativos se desdobram
em múltiplos, representados em um mesmo lugar – o enunciado concreto.
No enunciado, o destinatário pode ser representado pela pessoa com
quem o autor dialoga diretamente no discurso cotidiano (o destinatário real), pelo
interlocutor presumido (especialistas de determinada área da comunicação
cultural, um povo, os contemporâneos, correligionários, etc.), até pelo outro
indefinido, latente, semilatente, difuso no campo cultural mais amplo (as grandes
teorias filosóficas, científicas, visões de mundo, etc.).
Em suma, considerando que os enunciados são posições de sentido em
relação a discursos anteriores e posteriores, pode-se afirmar que ele funciona
como o lugar do encontro de valores. O valor é a essência da linguagem, na
concepção enunciativo-discursiva, por isso, na próxima seção, discutir-se-á
melhor essa noção a partir do conceito de ideologia.
1.1.4 Ideologia
Para o Círculo, a ideologia está relacionada a valor social e uma de suas
maiores contribuições foi a de refletir sobre esse fenômeno a partir do estudo da
linguagem. O ponto de partida inicial é o entendimento de que todo domínio
ideológico está inserido na luta simbólica apoiada em algum material em que o
verbal aparece como um elemento privilegiado.
É possível que outros materiais, que subsidiem as interações humanas,
possam tornar-se um signo ideológico. Mas Volochinov e Bakhtin (2004 [1929])
enfatizam que a linguagem verbal é o fenômeno ideológico por excelência, pois
toda a sua realidade é absorvida pela função de signo. Ela também é privilegiada
30
por seu caráter socialmente ubíquo, isto é, penetra todas as relações entre os
indivíduos nos mais diferentes domínios da atividade humana.
O Círculo não define, claramente, o que é ideologia. Apreende-se sua
construção no movimento de definição do funcionamento da linguagem
correlacionado à noção de valor. Em Volochinov, no texto O que é a (língua)
linguagem? há apenas uma referência explícita, nos seguintes termos,
Por ideologia entendemos todo o conjunto dos reflexos e das interpretações da realidade social e natural que tem lugar no cérebro do homem e se expressa por meio das palavras [...] ou outras formas sígnicas (VOLOCHINOV, 1981[1930] apud MIOTELLO, 2008 p.169).
Nessa citação, a ideologia aparece como um fenômeno de significação da
realidade social e natural por parte dos sujeitos. Essa realidade é refratada
simbolicamente por meio da linguagem (a palavra). Para o Círculo, a própria
sociabilidade do ser humano implica o desenvolvimento da capacidade de
interação sígnica – produzir e compreender semioses.
Assim, a linguagem assume papel central na configuração do mundo social
em um domínio semiótico valorativo, porque tem a propriedade de materializar
diferentes formas de relações comunicativas instauradas nos mais diversos
campos da atividade humana, tornando-se um signo ideológico.
Sobre o signo ideológico, Medvedev (2012 [1928]) afirma que são produtos
forjados nas relações sociais entre os participantes de determinado campo de
atividade, uma vez que eles constituem uma parte da realidade social e material
que envolve o homem, um elemento de seu universo valorativo materializado.
Há também, no interior da teoria de linguagem do Círculo, o entendimento
de ideologia como domínios culturais, organizados em duas grandes dimensões:
a ideologia oficial e a não oficial (VOLOCHINOV; BAKHTIN, 2004 [1929]).
A ideologia não oficial compreende os valores que circulam na vida
cotidiana das pessoas, na base ou infraestrutura, em que se dão as relações
fortuitas e mais simples. A ideologia do cotidiano é caracterizada como instável,
uma vez que, nessa dimensão, as relações sociais não possuem uma
organização específica e precisamente definida, seguindo o fluxo da vida em sua
irrepetibilidade e abertura permanente sem solução e fixidez.
31
A ideologia oficial abrange conjuntos multifacetados de grandes segmentos
estruturados de ideias ou núcleos institucionalizados da sociedade,
sistematizados na forma de grandes visões de mundo ou grandes recortes
valorativo-sociais. A dimensão organizada (superestrutura) abarca instâncias
sociodiscursivas específicas como a arte, a ética, a política, a ciência, a escola,
etc. Muitas vezes, a ideologia desses segmentos acaba por funcionar como
dominantes, por assentar-se em uma concepção única de visão de mundo, uma
estabilidade unívoca do discurso.
Por conseguinte, a ideologia pode ser compreendida em relação às
variedades múltiplas da vida cotidiana (prática) e econômica ou aos vários
domínios da vida social organizada – artístico, literário, acadêmico, científico,
educacional, político. Pode ser relacionada, ainda, com os vários tipos de
comunicação social – burocrática, literária, artístico-poética, etc.
Por isso, é possível dizer que os sujeitos participantes desses grupos
sociais concebem o mundo e os eventos que nele ocorrem de maneira diversa, o
que significa dizer que há um jogo de forças sociais em que cada sujeito objetiva
defender sua visão de mundo em prol de seus interesses e também de outros
envolvidos com esses diferentes domínios sociais.
Medvedev (2012 [1928]) usa o termo “ideologias” no plural. Segundo o
autor, no estudo das ideologias, não se pode nivelar as diferenças nem ignorar a
pluralidade essencial das linguagens das ideologias. Estudar as ideologias é
estudar as linguagens na sua multiplicidade, haja vista que é nelas que se pode
compreender os embates ideológicos. Nesses embates, os sujeitos apresentam
seus interesses, sua concepção de mundo, sua apreciação valorativa para sua
realidade social. Seguindo essa compreensão, outra leitura pertinente para o
conceito de ideologia é atrelá-lo à noção de ação responsiva.
Sabe-se que, constitutivas dos signos, as ideologias também participam da
subjetividade do sujeito, uma vez que todo ser humano se constitui a partir das
apropriações e reconversões das relações sociais que estabelece com outros
através da interação verbal em algum campo de atividade humana. Cada sujeito
é único em termos de feitio subjetivo, mas a condição humana circunscreve sua
atividade simbólica a determinados limites socioformativos.
Desse modo, as ideologias não se restringem a construtos internos e
individuais da consciência subjetiva do sujeito, dado que são produtos e
32
processos das interações sociais (MEDVEDEV, 2012 [1928]). O sujeito processa
e veicula as tendências valorativas da sociedade. Considerando que o sujeito se
constitui num horizonte de valores compartilhados em que a alteridade norteia a
formação da subjetividade, ele nunca vai se fechar em uma tendência nem vai
conseguir apropriar-se de todas as vertentes sociovalorativas da sociedade. A
esse respeito, Castro comenta que
[...] o sujeito é sempre uma seleção de vozes —, ele sempre se constitui numa expressão singular e única dessas tendências, expressando sempre um viés que lhe é próprio, possível, e inalienável, construído a partir de suas relações interpessoais igualmente singulares (CASTRO, 2010, p. 196).
Apesar da divisão do funcionamento das ideologias em domínios sociais
institucionalizados, entende-se que cada atitude responsiva do sujeito pode ser
compreendida como uma expressão ideológica, uma reação valorat iva
endereçada a outro (s) ou um confronto com pontos de vista ideológico-
valorativos de outros situados em lugares sociais diferentes. Trata-se de uma
tomada de posição construída nas relações estabelecidas pelo sujeito em seu
ambiente de vivência ou grupo social determinado.
Nesse sentido, pode-se dizer que a ideologia está correlacionada à noção
de valor no uso da linguagem. E, sendo assim, é um ponto de intersecção e
aproximação para a abordagem de outra noção pertinente para o objeto de
pesquisa apresentado, que é a entonação expressiva.
1.1.5 Entonação expressiva
Bakhtin ([1952-1953] 2003a) assinala que um dos meios de expressão da
relação valorativa do falante com o objeto de seu discurso é a entonação
expressiva, a qual também é referida pelo autor por “entoação”, “tom”,
“tonalidade”, “acento”. Portadora das mesmas características que orientam o todo
do enunciado concreto, a entonação é de natureza social, está orientada para os
participantes da interação e para a temática do discurso.
Volochinov e Bakhtin (2004 [1929]) verificam que a entonação encontra-se
na fronteira entre o verbal e o não-verbal, conduzindo, portanto, o discurso para
fora dos limites verbais. O autor acrescenta que a compreensão da entonação
33
prescinde do contato com os julgamentos de valor presumidos por um dado grupo
social, qualquer que seja a extensão deste grupo. Ela é especialmente sensível a
todas as vibrações da atmosfera social que envolve o falante.
Segundo Bakhtin (2003a [1952-1953]), a entonação é uma peculiaridade
constitutiva do enunciado concreto e seria a manifestação sonora da apreciação
valorativa. Por isso, ela soa mais nitidamente na execução oral. No entanto, pelas
explicações do autor, apreende-se que esse tom valorativo mais explícito na
oralidade está impregnado nos recursos linguísticos do discurso escrito desde
que assimilado como fator estilístico do enunciado concreto.
Nesse sentido, as palavras assumem um acento de valor no contexto de
enunciados plenos. Bakhtin assevera que a escolha das palavras para o
enunciado não é guiada pelo tom emocional próprio de uma palavra isolada, mas
pela entonação expressiva do conjunto projetado do enunciado. Além disso, ele
acrescenta que, no processo de escolha das palavras para o enunciado, elas
nem sempre são tomadas do sistema da língua em sua forma neutra, mas de
outros enunciados, geralmente, em consonância com o do autor, em termos de
temática, composição e estilo.
A seleção, muitas vezes, ocorre de acordo com sua especificação de
gênero. Sendo o gênero um tipo de enunciado, ele possui uma expressão típica
uma vez que corresponde a situações-padrão da comunicação discursiva, a
temas característicos, por conseguinte, a algumas recorrências de sentido das
palavras com a realidade concreta em circunstâncias padronizadas.
A expressão característica do gênero e a entonação que lhe corresponde,
algumas vezes, sobrepõe-se às palavras, mas elas não são tão coercivas quanto
são as formas da língua: “os gêneros do discurso, no geral, se prestam de modo
bastante fácil a uma reacentuação; o triste pode ser transformado em tom jocoso-
alegre” (BAKHTIN, 2003a [1952-1953], p. 293). Ainda assim, a entonação
expressiva do gênero é impessoal, uma vez que o próprio gênero, sendo uma
forma típica do enunciado, também é impessoal.
Outra possibilidade de a palavra entrar em nosso discurso é a partir de
enunciados individuais alheios, mantendo em menor ou maior grau os tons e ecos
desses enunciados individuais. Ainda que as palavras da língua não sejam de
ninguém, os falantes ouvem-nas apenas em determinados enunciados
individuais, leem-nas em determinadas obras individuais. Nessas ocorrências, a
34
expressão individual é externada com maior ou menor nitidez, dependendo do
gênero, determinada pelo contexto singularmente individual do enunciado.
A índole indivíduo-contextual que marca o emprego da palavra na
comunicação discursiva auxilia na compreensão do que seja tonalidade
expressiva. A entoação sempre está ligada a sujeitos e contextos específicos.
Apenas nessas condições, as palavras assumem um valor específico, seja de
tristeza, revolta, inconformidade, dor, lástima, seja de alegria, vivacidade, etc.
Para Bakhtin (2003a [1952-1953]), as palavras existem para os falantes
como palavras de ninguém (neutras), palavras alheias e palavras próprias. As
palavras alheias e próprias possuem o elemento valorativo, porque nascem do
ponto de contato da palavra com a realidade concreta e nas condições de uma
situação real, contato esse realizado pelo enunciado concreto. Neste caso, a
palavra atua como expressão de certa posição valorativa de um sujeito, seja o
pai, a mãe, seja o cientista, o poeta, o escritor, o compositor, o intérprete.
Segundo o autor, em cada época, em cada círculo social, sempre existem
os enunciados que dão o tom, ou seja, cujos valores predominam, influenciam as
pessoas, como as obras de arte, ciência, jornalismo político, que são citadas,
imitadas, seguidas. Sempre há determinadas ideias que predominam em cada
época e adquirem vestes verbalizadas. Esse fenômeno ocorre em todos os
campos de atividade humana.
Se a expressão, em si, é a orientação valorativa subjetiva do autor em
relação ao objeto do discurso e aos destinatários, a entoação seria a valoração
compartilhada socialmente e já verbalizada nos temas que circulam nos campos
discursivos. Entretanto, como o próprio Bakhtin afirma que o enunciado é um
drama de três personagens, o sentido do enunciado é sempre construído na
relação entre o que é subjetivo e objetivo, por isso, o autor fala em entonação
expressiva.
Segundo o autor, a inserção em práticas discursivas pode ser considerada
mesmo um processo de assimilação da palavra do outro, do enunciado: “nosso
discurso [...] é pleno de palavras dos outros, de um grau vário de alteridade e de
assimilabilidade, de um grau vário de aperceptibilidade e de relevância”
(BAKHTIN, 2003a [1952-1953], p. 294-295). As palavras dos outros estão
impregnadas de valoração alheia, do tom que assimilamos, reelaboramos, e
reacentuamos.
35
Voltamos, novamente, à noção de resposta. Visto como resposta a
enunciados precedentes, o enunciado ocupa uma posição definida em uma dada
esfera da comunicação, em uma dada questão, em um dado assunto, etc.
Segundo Bakhtin (2003a [1952-1953]), uma posição só é definida correlacionada
a outras, por isso,
O enunciado é pleno de tonalidades dialógicas, e sem levá-las em conta é impossível entender até o fim o estilo de um enunciado. Porque nossa própria ideia – seja filosófica, científica, artística – nasce e se forma no processo de interação e luta com os pensamentos dos outros, e isso não pode deixar de encontrar o seu reflexo também nas formas de expressão verbalizada do nosso pensamento (BAKHTIN, 2003a [1952-1953], p. 298).
Assim, a valoração do enunciado nem sempre e nem tanto será
determinada pelo objeto do discurso, mas também pelos enunciados dos outros,
com os quais o autor pode polemizar, pode responder. A orientação para os
enunciados dos outros determina também o destaque dado a determinados
elementos, as repetições e a escolha de expressões mais duras, mais brandas,
enfim, o tom do enunciado. A resposta ao que já foi dito sobre dado objeto, dada
questão irá manifestar-se na tonalidade do sentido, na tonalidade da expressão,
na tonalidade do estilo, nos matizes mais sutis da composição.
A entonação constitui-se elemento primordial da letra de canção. Por isso,
é uma noção que deve constar em uma proposta de leitura do gênero letra de
canção. No próximo capítulo, abordar-se-á mais precisamente o conceito de letra
de canção, inclusa no agrupamento maior de gêneros poéticos.
36
2 OS GÊNEROS POÉTICOS
Neste capítulo, pretende-se apresentar a “letra de canção” como gênero
discursivo poético e justificar sua escolha para a elaboração da proposta de
ensino de leitura, conforme elencada nos objetivos deste trabalho.
Poema, cordel, letra de canção, adivinhas, entre outros, podem ser
considerados enunciados pertencentes ao grupo dos gêneros poéticos, de acordo
com Padilha (2005). Esse leque de gênero do agrupamento poético é, de maneira
geral, pouco lido nas aulas de língua materna na escola. No livro didático
aparecem mais como coadjuvantes ou para leitura desinteressada. Mesmo no
ambiente escolar, em geral, pouco se acessam estes gêneros. É a conclusão a
que chega Machado, ao analisar coleções didáticas do ensino fundamental:
O número de poemas é bastante reduzido quando comparado com outros gêneros. Quanto ao lugar que ocupam nos livros, percebemos que quase nunca aparecem como texto principal da unidade. São eles, na maioria das vezes, utilizados para memorizar gramática ou para marcar datas de circunstância, como o dia das mães, dos pais, do índio (MACHADO, 1996, p. 48).
A mesma conclusão apontada por Machado (1996) foi confirmada por
Padilha (2005), quando da análise de coleções didáticas de língua portuguesa do
ensino fundamental, que buscava entender o trabalho dedicado ao enunciado
poético nas referidas coleções. Também a autora constata que os textos poéticos
são pretextos para o ensino da gramática, em detrimento de uma leitura mais
voltada para a sua especificidade,
[...] no mínimo, 64% das atividades propostas pelas coleções analisadas aos textos em gêneros poéticos não exploram os traços próprios do texto poético e, portanto, pouco tomam estes gêneros, realmente, como objeto de ensino. (PADILHA, 2005, p. 169).
Em um decurso de 18 anos entre os trabalhos de Machado (1996) e
Padilha (2005) até a realização desta pesquisa (2014), percebe-se que,
praticamente, nada mudou. As conclusões a que chegaram os dois autores são
facilmente constadas mesmo por meio de observações rápidas das atividades
componentes dos livros didáticos que chegam à escola. Mesmo nas unidades que
37
tratam do ensino de literatura, o poema não é objeto de ensino, mas suporte para
outras atividades, seja a gramatical, seja a de exemplificar correntes literárias e
conjunto da obra de um autor, e, nestes casos, apenas a forma é considerada.
A prática de leitura dos enunciados poéticos, proposta de maneira
equivocada pelos autores de livros didáticos, influencia, em certa medida, sua
recepção por parte dos leitores em geral. Isso porque, na sociedade brasileira, a
escola ainda exerce papel primordial de acesso às práticas letradas mais
complexas, como a literária, e, no âmbito dessa escola, o livro didático ainda é o
organizador, não apenas da aula, mas de todo currículo.
A esse respeito, os dados do Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF)6
oferecem algum respaldo. Segundo esses dados, os gêneros poéticos são os
menos procurados pelos leitores brasileiros. A superficialidade com que o
enunciado poético é tratado, nas aulas de língua portuguesa, não desperta o
interesse do aluno para essa prática de leitura, culminando em sua baixa
aceitação por parte dos alunos.
Apesar dessa resistência, os gêneros poéticos constituem material
excelente para o trabalho de ensino da língua materna. Por meio deles, pode-se
contemplar a cultura de um povo, a exemplo dos gêneros poéticos da tradição
oral, como as quadrinhas, adivinhas e parlendas. Neles são representadas a
intimidade e subjetividade de uma geração, as mudanças sociais, bem como o
espírito de uma época. É possível compará-los a documentos antigos, guardados
em cartórios. Retomados e analisados em outro espaço e tempo, são reveladores
de detalhes nem sempre divulgados pela história oficial.
As letras de canção, incluídas no conjunto dos gêneros poéticos, são
“documentos” mais acessíveis ao jovem leitor e, numa referência à obra do poeta
Drummond, pode se dizer que elas servem de porta de entrada para o “mundo
das palavras”, por fazerem parte das práticas cotidianas e do hábito de ouvir
música.
Para Bakhtin (2010 [1934]), no gênero poético, há um trabalho de embate
entre autor e palavras que vai além dos embates encontrados nas narrativas, tipo
6 O Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF) foi criado em 2001 pelo Instituto Paulo Montenegro, com o objetivo de revelar os níveis de alfabetismo funcional da população brasileira adulta. Seu principal objetivo é oferecer informações qualificadas sobre as habilidades e práticas de leitura, escrita e matemática dos brasileiros entre 15 e 64 anos de idade, de modo a fomentar o debate público, estimular iniciativas da sociedade civil, subsidiar a formulação de políticas públicas nas áreas de educação e cultura, além de colaborar para o monitoramento do desempenho das mesmas.
38
textual muito usado nas escolas. A linguagem poética adquire uma vida nova e
uma especificidade que não seria possível fora dela,
Na obra poética, a linguagem realiza-se como algo indubitável, indiscutível, englobante [...] e quaisquer que tenham sido as ‘tormentas verbais’ que o poeta tenha sofrido no processo de criação, na obra criada a linguagem passou a ser um órgão maleável, adequado até o fim ao projeto do autor (BAKHTIN, 2010[1934], p. 92-93).
Nos gêneros poéticos, as palavras ganham licença para serem outras, em
um universo próprio, como afirma o autor,
A ideia de uma linguagem da poesia, única e especial é um filosofema utópico característico do discurso poético: na base desse filosofema repousam as condições e as exigências reais do estilo poético, que satisfaz a uma linguagem única, diretamente intencional, a partir de cujo ponto de vista as outras linguagens (a linguagem falada, a linguagem de negócios, a linguagem prosaica, etc.) são percebidas como objetivadas e em nada equivalentes a ele (BAKHTIN, 2010 [1934] p. 95).
Tal subjetividade é parte da realidade criada no mundo poético uma vez
que o poeta compreende, imagina e vê o objeto com os olhos da sua linguagem
poética. Numa dimensão de ensino, o trabalho com a linguagem e as
possibilidades de significação permitem ao estudante alcançar outra dimensão da
língua, mais rica e, por que não, mais bonita.
Para o aluno, principalmente, do ensino médio, a letra de canção, não só
ela, mas a música, que junto com a letra forma a canção, é um abrigo emocional,
em que ele reconhece as emoções, dúvidas, conflitos que vivencia nessa fase e
percebe que poderia dizer exatamente o que está dito na letra, se tivesse os
instrumentos para isso.
Há muitas canções que, além de falar do fazer poético e da composição de
uma letra de canção, constituem-se em belos exemplos de produção poética,
com imagens bem construídas e facilmente compreendidas. Nas letras de
canção, muitas vezes, ressoa a voz do ouvinte como se tivesse dito ao
compositor aquilo que gostaria de ouvir, e ao mundo aquilo que gostaria de falar,
sua própria subjetividade e emoção retratadas pelo outro, acompanhada de uma
39
melodia primorosa. Encontra-se um exemplo desse tipo em “Intuição”, composta
por Oswaldo Montenegro e Ulysses Machado,
Intuição
1. Canta uma canção bonita
2. falando da vida em ré maior
3. Canta uma canção daquelas de filosofia
4. e mundo bem melhor
5. Canta uma canção que aguente essa paulada
6. E a gente bate o pé no chão
7. Canta uma canção daquelas,
8. pula da janela e bate o pé no chão
9. Sem o compromisso estreito de falar perfeito,
10. coerente ou não
11. Sem o verso estilizado,
12. o verso emocionado,
13. bate o pé no chão
14. Canta o que não silencia,
15. é onde principia a intuição
16. E nasce uma canção rimada
17. da voz arrancada ao nosso coração
18. Como sem licença, o sol
19. rompe a barra da noite
20. sem pedir perdão
21. Hoje quem não cantaria
22. grita a poesia e bate o pé no chão.
(Intuição. Oswaldo Montenegro. WEA, 1980).
Em suma, em razão de, muitas vezes, as letras de canção irem ao
encontro do ouvinte, elas marcam a vida de tal modo que, mesmo passados
muitos anos, ficam na memória entrelaçadas a momentos que foram importantes,
como o primeiro amor, a festa de formatura, as bagunças com os amigos.
Portanto, um trabalho com esse gênero, na busca dos significados atribuídos pelo
autor e suas possíveis refrações, constitui um aspecto positivo, de contemplação
do gênero e do uso diferenciado da língua, justificando, assim, a pertinência de
se trabalhar a leitura da letra de canção em sua especif icidade.
2.1 A LETRA DE CANÇÃO
Conforme consta nas OCEM:
40
Fatores linguísticos, culturais, ideológicos, por exemplo, contribuem para modular a relação do leitor com o texto, num arco extenso que pode ir desde a rejeição ou incompreensão mais absoluta até a adesão incondicional. Também conta a familiaridade que o leitor tem com o gênero literário, que igualmente pode regular o grau de exigência e de ingenuidade, de afastamento ou aproximação (OCEM, 2006, p. 68).
Concorda-se com a ideia exposta na OCEM (2006) de que a familiaridade
é um fator importante para a aceitação do texto por parte do leitor.
Atualmente, observa-se que alunos adolescentes têm práticas sociais
peculiares a sua época, como estar muito tempo conectado à internet ou se
comunicando por meio de celulares. Que textos são acessados por eles nestes
meios? Mensagens de textos, posts em redes sociais, talvez notícias. Também
ouvem música o maior tempo possível, e isto é quase todo o tempo, inclusive em
sala de aula, se o professor permitir (ou se descuidar).
No entanto, a adjetivação como “peculiar” refere-se ao modo ou meio de
executar estas atividades, já que são práticas comuns aos jovens há algumas
décadas, desde a disseminação de produtos voltados para o entretenimento e
comunicação. Em representações icônicas de juventude, opta-se comumente por
mostrar este grupo em carros, lanchonetes, bailes, acompanhados por algum
elemento de produção musical, rádios, vitrolas, jukebox, bandas, etc. ou então
colados a um aparelho de telefone. O que mudou foram os aparelhos, de
pesados e fixos, a portáteis, leves e mais acessíveis. A tecnologia diminuiu e
barateou aparelhos de reprodução sonora, permitindo que um número maior de
pessoas possam criar sua lista pessoal de músicas e levá-las consigo para todos
os lugares, inclusive em seus telefones celulares. Portanto, pode-se afirmar que a
canção, consequentemente a letra de canção é um objeto conhecido dele, e esta
familiaridade pode ser usada para facilitar o trabalho de leitura em sala de aula.
Como produto de consumo, a canção, considerando-se a sua origem e
acepção popular, é o conjunto de letra e música, um todo uniforme e sua
separação é uma prática pedagógica, uma estratégia que afasta os dois aspectos
temporariamente para análise e depois junta-os novamente, para melhor apreciar,
acredita-se, o projeto discursivo do compositor.
Compreende-se, neste trabalho, que a letra de canção possa ser uma porta
de entrada para o mundo literário, em geral pouco trabalhado, ou mal trabalhado,
41
nas escolas. Os livros didáticos de língua portuguesa de ensino médio, em sua
maioria, apresentam o conteúdo de literatura dividido por fases literárias, como
uma linha do tempo, sua evolução, características, principais autores
representantes de cada fase ou escola e as obras ícones. Fragmentos de
poemas e romances são apresentados apenas para exemplificar uma corrente e
para análise em exercícios, exatamente sobre as características do movimento. É
um estudo cronológico, frio, cuja função é passar a maior quantidade de
informações sobre a produção literária para garantir um bom desempenho em
eventos avaliativos, como vestibulares e ENEM. Em sua tese de doutorado sobre
o ensino de literatura nas escolas, Cereja (2004) apresenta algumas conclusões
que endossam as afirmações desta pesquisa:
1º) Falta clareza aos professores de literatura sobre a especificidade do objeto que ensinam. Sendo a literatura uma arte verbal, o ensino de literatura deve necessariamente passar pelo desenvolvimento de habilidades de leitura de textos literários. 2º) Com pequenas variações, a abordagem da literatura nas escolas pesquisadas tem sido a consagrada pela tradição: a cronologia histórica das estéticas literárias, com a contextualização histórica (distanciada do texto), a apresentação de autores e obras mais importantes (de acordo com o estabelecido pelo cânone), as características relevantes de cada período e de cada autor. A leitura efetiva de textos literários ocorre ocasionalmente e assume um caráter ilustrativo (CEREJA, 2004, p. 69).
Levando-se em conta que nas escolas públicas a carga horária de língua
portuguesa é de, em média, três aulas semanais, e que somente um professor
atende aos três conteúdos programados (gramática, literatura e produção
textual), e ainda observando a organização de livros didáticos, pode-se pensar
que o tempo destinado à literatura é insuficiente, já que esta consta apenas na
grade curricular do ensino médio. Concorda-se com Cereja quando, em suas
conclusões, pontua que:
Exatamente como propõem os PCN, a expectativa do aluno é de que o ensino de literatura se torne significativo para ele, ou seja, que consiga estabelecer nexos com a realidade em que vive, bem como relações com outras artes, linguagens e áreas do conhecimento (CEREJA, 2004, p. 70).
42
O interessante seria estudar literatura como arte e suas condições de
produção, buscando um modo de estudar o texto como um gênero de
acabamento temático, estilístico e composicional (BAKHTIN, 2003a [1952-1953],
p. 261). Juntamente com as observações referentes ao acabamento genérico,
seria necessário prestar atenção às esferas de produção, circulação e recepção
dos enunciados exemplares dos diferentes gêneros, garantindo-se assim a
perspectiva enunciativa e discursiva, caracterizando o contexto sócio-histórico e
cultural e investigando as posições ideológicas que deles afluem, num movimento
de leitura que considera sujeitos em interação, sócio-historicamente situados
também.
Entende-se que é um trabalho mais significativo e contribui para a
formação do leitor, que pode vislumbrar o texto poético em sua totalidade. É
importante salientar que, apesar de se apresentar estanque, o ensino destes
conteúdos depende mais da concepção de ensino do professor do que das
condições apresentadas. O professor elabora seu plano de ensino segundo seu
entendimento do que é ensinar língua portuguesa, baseado na sua formação e
nas suas preferências. Alguns se ancoram mais no livro didático, centram suas
atividades no ensino de gramática, enquanto outros buscam trabalhar mais
produção de textos, por exemplo. A maior liberdade de elaboração de plano de
ensino das escolas públicas favorece essa diversidade de atuações, mas, por
outro lado, faz com que cada um conceba o trabalho com textos de outras esferas
de forma diversa e, muitas vezes, descompromissada, conforme ocorre com a
letra de canção.
2.1.1 Letra de canção, palavra cantada ou poema?
Caçador de Mim
1. Por tanto amor 2. Por tanta emoção 3. A vida me fez assim 4. Doce ou atroz 5. Manso ou feroz 6. Eu caçador de mim 7. Preso a canções 8. Entregue a paixões 9. Que nunca tiveram fim 10. Vou me encontrar
43
11. Longe do meu lugar 12. Eu, caçador de mim 13. Nada a temer senão o correr da luta 14. Nada a fazer senão esquecer o medo 15. Abrir o peito a força, numa procura 16. Fugir às armadilhas da mata escura 17. Longe se vai 18. Sonhando demais 19. Mas onde se chega assim 20. Vou descobrir 21. O que me faz sentir 22. Eu, caçador de mim
(LP Caçador de mim. Sérgio Magrão e Luiz Carlos Sá. Ariola, 1981.)
Esse texto, cantado por Milton Nascimento, em 1981, é uma daquelas
canções que fazem parte da memória de uma geração. Sua forma composicional
o situa entre os gêneros poéticos, mediante a criação de imagens que o autor usa
para mostrar a busca de sua própria identidade e subjetividade. No entanto, não
é um texto que foi feito, especificamente, para ser lido, mas para ser cantado,
embora a leitura da letra (de modo geral) seja significativa, mesmo sem o auxílio
do ritmo ou da musicalidade. Por conta desta intenção original de sua esfera de
produção, por muito tempo a letra de canção foi chamada de palavra cantada.
Letra de canção e poema são gêneros discursivos muito próximos quanto à
forma, pois seus autores se valem de imagens para desvelar sua subjetividade ou
apresentar uma ideia. Nas palavras de Paz (2012, p.104): “designamos com a
palavra imagem toda forma verbal, frase ou conjunto de frases que o poeta diz e
que, juntas, compõem um poema”. Os recursos da linguagem que se prestam a
auxiliar aqueles que escrevem poemas também estão presentes na composição
de letras de canção.
Nesta letra, “Caçador de mim”, estão presentes rimas, assonâncias e
aliterações, criando um ritmo e antíteses, metáforas, construindo a ideia de uma
busca pelo autoconhecimento do eu-lírico. Dizer: “Eu, caçador de mim” é
diferente de “Procuro me conhecer”, embora o sentido seja o “mesmo”. Como
explica Paz (2012, p. 116): “o sentido se degradou na segunda versão; de
afirmação se transformou em rasteira explicação”. Perde a beleza e a força, não
exprime a angústia e a solidão da busca, projeto discursivo e sentido que se
concretizam na interação do leitor (ouvinte) com o compositor, mediada pelo
texto. Ainda nas palavras de Paz:
44
O poema é linguagem [...] mas também é algo mais. E esse algo mais não é explicável pela linguagem, embora só possa ser atingido por ela. Nascido da palavra, o poema desemboca em algo que a transpassa (PAZ, 2012, p. 117).
Aplicável à letra de canção, essa definição aproxima poema e letra de
canção. Tal aproximação não os iguala nem os transforma em um só:
permanecem distintos, pois há a diferença em suas esferas de produção e
recepção (público). Não há sentido em se questionar se letra de canção é poema,
pois são criações feitas para atender objetivos diferentes. Costa (2002, p. 113)
discorre sobre esta questão: “o mero fato de que ambas, canção e poesia, se
utilizarem da materialidade gráfica em um determinado momento de sua
produção e circulação não as torna variedades do mesmo”. Para Padilha (2005,
p. 94) “são gêneros distintos entre si, cujos textos podem ser reversíveis: a
poesia transformada em letra e a letra lida como poesia, entendendo-se aqui
poesia como poema”. Ainda segundo Padilha:
A nosso ver, esta discussão tem algo de irrelevante, já que as artes não são estanques nem concorrentes (no sentido de que participariam de alguma disputa de valor). A mescla entre poesia e canção é uma mescla de marcas históricas, como pinçamos acima e, portanto, suas fronteiras vão sempre ser tênues, ou por vezes, indefiníveis (PADILHA, 2005, p. 94).
No documentário “Palavra (En)cantada” (SOLBERG, 2009), a discussão
acerca das diferenças entre poesia e letra de canção é proposta como uma
questão a ser debatida pelos poetas e compositores. Na opinião de alguns
entrevistados, pode-se perceber que esta questão não tem uma resposta
definitiva. Para Adriana Calcanhoto, esta é uma questão infértil. Para Chico
Buarque, são coisas diferentes por conta de sua esfera de produção. Para ele, o
processo de criação é diferente, pois a letra nasce para acompanhar a melodia, e
as palavras são escolhidas para caber nelas. Sua inclusão numa letra não
depende apenas do seu papel na intenção comunicativa do compositor, do tema,
mas da métrica, para “preencher” um espaço e manter o ritmo.
Se não há consenso sobre a questão de poema e letra de canção, também
não há um só modo de produção, até porque são muitos os compositores e seus
45
objetivos e maneiras de criação. Há os casos em que ocorre o contrário do
processo descrito por Chico Buarque, que é quando a melodia é criada para um
texto. Como nos casos em que poemas feitos para a publicação em livro ganham
coautoria e uma melodia. É um outro processo de criação. Aqui a música se
adapta ao texto pronto da letra de canção (ou do poema, no caso).
Tem-se, por exemplo, o poema “A Rosa de Hiroshima”, escrito por Vinicius
de Moraes, em 1954, foi musicado por Gerson Conrad e interpretado por Secos e
Molhados, em 1973. Também Vinícius de Moraes os textos do livro de poemas
infantis “Arca de Noé” foram musicados, em 1970, e acabaram virando um
musical especial feito pela Rede Globo, em 1980, para o dia das crianças.
Também há os casos em que a literatura inspira compositores: o poema de
Carlos Drummond de Andrade virou enredo de escola de samba Vila Isabel, em
1980, e Martinho da Vila, contando no documentário “Palavra (En)cantada” (2009)
como se deu o processo, afirma que “é um poema meio complicado e eu tive que,
como posso dizer, traduzir o poema para a minha forma. Interpretar não é
traduzir, é interpretar o poema para fazer o samba enredo”. O compositor lê,
“reflete” e “refrata” (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2004 [1929]), num interdiscurso
que gera um enunciado novo, com novos ares, para um auditório novo,
inesperado. Eis o samba enredo.
1. Sonhei 2. Que estava sonhando um sonho sonhado 3. O sonho de um sonho 4. Magnetizado 5. As mentes abertas 6. Sem bicos calados 7. Juventude alerta 8. Os seres alados 9. Sonho meu 10. Eu sonhava que sonhava (bis) 11. Sonhei 12. Que eu era um rei que reinava como um ser comum 13. Era um por milhares, milhares por um 14. Como livres raios riscando os espaços 15. Transando o universo 16. Limpando os mormaços 17. Ai de mim 18. Ai de mim que mal sonhava (bis) 19. Na limpidez do espelho só vi coisas limpas 20. Como uma Lua redonda brilhando nas grimpas 21. Um sorriso sem fúria, entre o réu e o juiz 22. A clemência, a ternura 23. Por amor da clausura
46
24. A prisão sem tortura 25. Inocência feliz 26. Ai meu Deus 27. Falso sonho que eu sonhava 28. Ai de mim 29. Eu sonhei que não sonhava 30. Mas sonhei... (Samba-enredo da Unidos de Vila Isabel. Martinho da Vila, Rodolfo de Souza e Tião Graúna. 1980).
E agora, o poema de Drummond:
Sonho de um sonho 1. Sonhei que estava sonhando 2. e que no meu sonho havia 3. outro sonho esculpido. 4. Os três sonhos sobrepostos 5. dir-se-iam apenas elos 6. de uma infindável cadeia 7. de mitos organizados 8. em derredor de um pobre eu. 9. Eu que, mal de mim! sonhava.
10. Sonhava que no meu sonho 11. retinha uma zona lúcida 12. para concretar o fluido 13. como abstrair o maciço. 14. Sonhava que estava alerta, 15. e mais do que alerta, lúdico, 16. e receptivo, e magnético, 17. e em torno a mim se dispunham 18. possibilidades claras, 19. e, plástico, o ouro do tempo 20. vinha cingir-me e dourar-me 21. para todo o sempre, para 22. um sempre que ambicionava 23. mas de todo o ser temia... 24. Ai de mim! que mal sonhava.
25. Sonhei que os entes cativos 26. dessa livre disciplina 27. plenamente floresciam 28. permutando no universo 29. uma dileta substância 30. e um desejo apaziguado 31. de ser um ser com milhares, 32. pois o centro era eu de tudo 33. como era cada um dos raios 34. desfechados para longe, 35. alcançando além da terra 36. ignota região lunar, 37. na perturbadora rota 38. que antigos não palmilharam
47
39. mas ficou traçada em branco 40. nos mais velhos portulanos 41. e no pó dos marinheiros 42. afogados em mar alto.
43. Sonhei que meu sonho vinha 44. com a realidade mesma. 45. Sonhei que o sonho se forma 46. não do que desejaríamos 47. ou de quanto silenciamos 48. em meio a ervas crescidas, 49. mas do que vigia e fulge 50. em cada ardente palavra 51. proferida sem malícia, 52. aberta como uma flor 53. se entreabre: radiosamente.
54. Sonhei que o sonho existia 55. não dentro, fora de nós, 56. e era tocá-lo e colhê-lo, 57. e sem demora sorvê-lo, 58. gastá-lo sem vão receio 59. de que um dia se gastara.
60. Sonhei certo espelho límpido 61. com a propriedade mágica 62. de refletir o melhor, 63. sem azedume ou frieza 64. por tudo que fosse obscuro, 65. mas antes o iluminando, 66. mansamente convertendo 67. em fonte mesma de luz. 68. Obscuridade! Cansaço! 69. Oclusão de formas meigas! 70. Ó terra sobre diamantes! 71. Já vos libertais, sementes, 72. germinando à superfície 73. deste solo resgatado!
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro Enigma. P. 34-35. 10ª Ed. RJ. Editora Record, 1995)
Não é objetivo deste trabalho aprofundar o estudo dos aspectos
interdiscursivos, mas é interessante notar a releitura feita por Martinho da Vila do
poema de Drummond, quais elementos são preservados, quais são inseridos, quais
são preteridos. A ponte construída entre o que seria erudito — para um público
específico, restrito —, e o que seria popular, para compor o enredo de uma escola
de samba — cantado na avenida pelo mais simples passista e pelo público comum
das arquibancadas —, revela o trabalho de dois artistas, o de Drummond e o de
Martinho, em que o segundo, realiza uma releitura do poema sem o desqualificar,
pelo contrário, ressignifica-o, criando um novo “poema de rua”.
48
Pode-se afirmar, em consonância com Padilha (2005), que a letra de
canção, como o poema, é um gênero poético, integra um agrupamento de
gêneros poéticos, juntamente com os gêneros da tradição oral e o cordel, cada
um com suas peculiaridades. A letra de canção usa uma linguagem poética e
pode, como o poema, desvelar a subjetividade da alma humana, enlevar, animar
e alegrar, e tanto quanto este, fazer pensar. Sua ligação com a literatura é
inegável, histórica, constitutiva. São, ambas, manifestações poéticas e estéticas,
produzidas para o deleite e ou para a reflexão, mas sempre elaboradas pensando
no auditório que a vai receber.
O poema é feito para ser lido pelo leitor, sozinho ou num evento de
declamação. Se acaso vai para um livro didático como parte dele, como objeto de
estudo ou para servir de complemento ao ensino da gramática, independe do seu
criador. A letra de canção é criada para se tornar parte da canção, ser cantada e
ouvida. Ela está também sujeita a sofrer destinações diferentes, como ser
reproduzida em sites de música, encartes, antologias ou também acabar como
exercício em materiais didáticos. Ambos, poema e letra de canção, atendem ao
princípio da criação poética como manifestação cultural.
Sobre o criar poético, Voloshinov e Bakhtin, no ensaio “Discurso na vida,
discurso na arte”, afirmam:
O que caracteriza a comunicação estética é o fato de que ela é totalmente absorvida na criação de uma obra de arte, e nas suas contínuas re-criações por meio da co-criação dos contempladores, e não requer nenhum outro tipo de objetivação (grifo do autor). Mas, desnecessário dizer, esta forma única de comunicação não existe isoladamente; ela participa do fluxo unitário da vida social, ela reflete a base econômica comum, e ela se envolve em interação e troca com outras formas de comunicação (VOLOCHINOV; BAKHTIN, mimeo).
A letra de canção, como criação poética, de grande alcance popular, é
resignificada a cada vez que é lida, executada como canção ou cantada por um
outro intérprete. No entanto, permanece como substrato, ali, o projeto discursivo
de seu compositor, dialogando com a sociedade em que foi criada e onde circula.
49
2.1.2 A letra de canção e a história
A canção, como já foi dito, serve como uma janela para olhar a sociedade,
e como um túnel do tempo, se bem relacionada com a história. Essa afirmação
pode ser corroborada pelo livro “Brasil século XX, Ao pé da letra da canção
popular”, de Worms e Costa (2002). Na apresentação, os autores afirmam: “Este
é um livro de história do Brasil. O Brasil do século XX. A narrativa utiliza como
documento uma das mais expressivas manifestações culturais da nação
brasileira: a sua música”. Ao associar fatos históricos a letras de canção da época
em que ocorreram, o livro cria um painel da sociedade brasileira do século XX,
cobrindo um período que vai de 1930, com a Revolução de 1930, até os fins da
década de 1990.
Compreende-se, assim, que os fatos históricos, em suas versões oficiais,
estão nos livros didáticos, e outros olhares não tão oficiais, nas reportagens de
revistas e jornais, nas crônicas escritas pelos que viveram tais dias. Já o olhar do
povo, desprovido de oficialidade, mas com humor, malícia ou indignação,
encontra-se, em grande parte, nas letras de canção.
Alguns eventos narrados no livro de Worms e Costa consolidam a ideia de
“janela para a história”. Segundo os autores, em 1932, Lamartine Babo lança a
marchinha “Teu cabelo não nega” e junta aos versos sobre a mulata brasileira o
verso que alude à política criada por Getúlio Vargas, que nomeava interventores
federais nos estados, a maioria deles do movimento tenentista: “Fui nomeado teu
tenente interventor” (2002, p. 37). Nos anos que se seguiram, várias marchas e
outros ritmos receberam letras que narravam disputas eleitorais e outros
movimentos da sociedade.
Já nos difíceis anos da ditadura, o exercício de denunciar a situação
política sem dizer claramente exigiu dos compositores “engenho e arte” e muito
talento. Worms e Costa (2002, p. 106) elencam, entre outras, a canção de
Paulinho da Viola “Sinal fechado”, vencedora do Festival Record, em 1969,
composta com diálogos curtos representando a conversa entrecortada e ansiosa
de duas pessoas que estão diante de um sinal que ameaça abrir e findar a
conversação. Aparentemente, são frases curtas, com uma função fática, vazias
de significação, na superfície “Tudo bem eu vou indo correndo/Pegar meu lugar
no futuro, e você?”, sobre o cotidiano, mas que, na verdade mostram a
50
impossibilidade de diálogo aberto e honesto sobre a situação no país, com a
decretação do AI-5 e a censura decorrente dela:
Sinal Fechado
1. Olá, como vai? 2. Eu vou indo e você, tudo bem? 3. Tudo bem eu vou indo correndo 4. Pegar meu lugar no futuro, e você? 5. Tudo bem, eu vou indo em busca 6. De um sono tranquilo, quem sabe 7. Quanto tempo... pois é... 8. Quanto tempo... 9. Me perdoe a pressa 10. É a alma dos nossos negócios 11. Oh! Não tem de quê 12. Eu também só ando a cem 13. Quando é que você telefona? 14. Precisamos nos ver por aí 15. Pra semana, prometo talvez nos vejamos 16. Quem sabe? 17. Quanto tempo... pois é... (pois é... quanto tempo...) 18. Tanta coisa que eu tinha a dizer 19. Mas eu sumi na poeira das ruas 20. Eu também tenho algo a dizer 21. Mas me foge a lembrança 22. Por favor, telefone, eu preciso 23. Beber alguma coisa, rapidamente 24. Pra semana 25. O sinal ... 26. Eu espero você 27. Vai abrir... 28. Por favor, não esqueça, 29. Adeus...
(Compacto Sinal Fechado. Paulinho da Viola. Odeon, 1970).
Outras canções, no decorrer dos anos, usaram da poética para lembrar dos
artistas e pessoas que precisaram recorrer ao exílio para sobreviver ao período,
como “Samba de Orly” (1971), de Chico, Toquinho e Vinícius; “Meu caro amigo”
(1976), de Chico Buarque, e “Debaixo dos caracóis dos teus cabelos” (1971),
uma homenagem de Roberto Carlos a Caetano Veloso, exilado na Europa. É de
se imaginar que, sem ter vivenciado os anos de ditadura e sem formação política,
jovens estudantes dos anos 2000 tenham dificuldade em alcançar seus
significados sem uma contextualização.
Já os anos 1980 e 1990 foram uma festa musical, pois os compositores
estavam livres da censura e com muita coisa a dizer. Saem de cena os sambas e
51
a MPB para dar espaço ao rock nacional, alguns com letras ingênuas e divertidas
“Eu sou boy” (1983), de Kid Vinil, e outras nascidas da indignação com o sistema,
como “Polícia” (1986), de Titãs, ou da angústia juvenis “Tempo perdido” (1986),
de Legião Urbana. Estas últimas permanecem atuais e são ouvidas pelas novas
gerações. A letra da canção “Polícia” se aproxima muito dos Raps nacionais em
seu conteúdo, ainda que os ritmos sejam diferentes:
Polícia
1. Dizem que ela existe 2. Pra ajudar! 3. Dizem que ela existe 4. Pra proteger! 5. Eu sei que ela pode 6. Te parar! 7. Eu sei que ela pode 8. Te prender!.. 9. Polícia! 10. Para quem precisa 11. Polícia! 12. Para quem precisa 13. De polícia...(2x) 14. Dizem pra você 15. Obedecer! (15) 16. Dizem pra você 17. Responder! 18. Dizem pra você 19. Cooperar! 20. Dizem pra você 21. Respeitar!...
(LP Cabeça Dinossauro. Titãs. WEA, 1986).
“Dizem”, palavra que inicia os versos da primeira estrofe, remete ao uso
coloquial da palavra nas conversações, em que seu significado está além do
verbo dizer, falar: dizem está mais para: “dizem, mas não é bem verdade”. Já
nos versos de 14 a 21, o “dizem” vem com um significado de ordem. Quem diz
que você deve “obedecer”, “respeitar”? O sistema, o mesmo que não garante a
ação da polícia como protetora da população. Não está expresso, mas já não
está tão oculto, pois pode ser facilmente identificada na voz ali presente.
Ouvida em quase todos os lugares nessa época, a música liberta da
censura vira fenômeno econômico, e ritmos os mais diversos se revezam nas
emissoras de rádios e paradas de sucesso. Programas de auditório, produzidos
para preencher os horários dos sábados à tarde, misturam axé, sertanejo e rock.
52
Estabelecida a democracia e liberdade de expressão, a letra de canção continuou
a ganhar espaços e novos veículos, a televisão e o rádio ganharam a companhia
da internet, que revolucionou o modo de fazer, ouvir e consumir música. Além da
globalização que já existia em termos de música, os ouvintes agora podem
escolher o que querem ouvir.
2.1.3 O direcionamento do discurso nas letras de canção
Toma-se como ponto de partida a premissa segundo a qual, com a
democracia e a liberdade de expressão, os ouvintes são livres para ouvir o que
quiserem. Mas será que é assim mesmo? O aluno da escola pública, de baixa
renda e com pouco acesso à cultura, tem liberdade de escolha e conhece
canções de todo Brasil e tem diálogos com músicas internacionais de países
além dos EUA? Como se dá o processo de produção da canção? Ela atende
unicamente às questões estéticas ou obedece a uma lógica de mercado, produto
que é de comercialização?
O processo de criação de letras de canção movimenta um mercado de
milhões de reais, anualmente, e seus compositores, além da poesia, têm
objetivos bem concretos e não artísticos. Grande parte dos músicos e
compositores faz da música fontes de renda e, em alguns casos, serve ao
mercado e aos modismos. Há os chamados “trabalhos autorais”, em que a
subjetividade do artista é o fator mais importante, e há aqueles que não têm
intenção de se mostrarem autorais, mas atender o mercado.
Antes, detentoras dos direitos autorais de intérpretes e compositores, as
grandes gravadoras encolheram e mudaram o modo de operar, restringindo
contratos a grandes ídolos. Muitos artistas lançam mão da internet para divulgar e
vender seus trabalhos, seja por falta de oportunidades junto ao mercado
fonográfico, seja por desejarem autonomia. Quando se analisa a esfera de
produção, este ciclo se mostra importante por influenciar também os
compositores, que produzem especificamente para determinados segmentos
musicais como, por exemplo, o sertanejo. Certos compositores, como a dupla
Sullivan e Massadas compuseram para todos os tipos de gêneros musicais, em
geral, “melos” de fácil assimilação e letras simplificadas, com refrões que se
tornam históricos, como o de “Parabéns da Xuxa”, música que surgiu na década
53
de 1990 e ainda, hoje, é executada em festas, ao lado ou em substituição ao
popular “Parabéns a você”:
Parabéns da Xuxa Parabéns Parabéns Hoje é o seu dia Que dia mais feliz [...] (Xou da Xuxa. Som Livre, 1986. Michael Sullivan e Paulo Massadas)
Este grupo de artistas representam bem a ideia de orientação discursiva,
pois segundo Volochinov e Bakhtin (2004 [1929], p. 112), o discurso é sempre
direcionado para alguém, ainda que seja em pensamento. Assim, pode-se pensar
que a orientação discursiva de quem compõe para projetos comerciais tem uma
direção precisa e especificada pelo mercado musical. Ainda usando o exemplo de
Sullivan e Massadas, vê-se que os mesmos compuseram músicas e letras nos
estilos que estavam em alta no mercado musical das diferentes épocas em que
foram produzidas: lambada, pop music, MPB, e mesmo as composições voltadas
para o público infantil seguiam esta tendência, tornando os discos7 de
apresentadoras/cantoras como Angélica e Xuxa uma miscelânea de estilos.
No final da década de 1990, Sullivan, já separado do parceiro Massadas,
passa a compor músicas gospel, acompanhando o crescimento do movimento
evangélico no Brasil. Este direcionamento aponta para a imagem que produtores
e compositores têm do público-alvo e constitui assim uma interação intermediada,
pela música, com ele, bem como sugere a ideologia que subjaz o discurso
apresentado pelas letras destas canções.
Tal postura, baseada neste conceito, também se mostra fundamental no
trabalho com as letras de outros compositores, que, antes de se deixar guiarem
pelo mercado fonográfico de massa, compõem em estilo próprio, seguindo outras
convicções ideológicas, constituindo um outro tipo de mercado, de menor
expressão financeira (em alguns casos, nem tanto), mas de público fiel e
aprovação de críticos musicais e uma parte da sociedade mais exigente em
relação ao que ouve e consome.
7 No caso das artistas citadas, as obras eram apresentadas em discos de vinil, ou long plays, os
famosos bolachões.
54
No livro “Chico Buarque”, escrito por Homem (2009), encontra-se a história
das composições que marcaram sua carreira, com a versão do compositor sobre
o momento da produção delas. Chico, conhecido por suas músicas de resistência
política à ditadura, em alguns momentos, desmistifica a ideia de que o autor é um
ser iluminado, dotado de influências espirituais ou místicas. Comentando “Tem
mais samba” (1964), Homem narra a corrida contra o tempo para a finalização da
letra de canção que fecharia o musical “Balanço de Orfeu”, uma encomenda de
Luís Vergueiro: “ficou pronta na véspera da estreia” (2009, p. 18). De acordo
ainda com Homem, Werneck teria registrado em um artigo que a produção por
encomenda seria uma constante na carreira de Chico, “Mas nunca em prejuízo da
beleza e do prazer de criar” (2009, p. 18). A respeito do processo de criação das
músicas de Chico, Homem traz em seu livro um depoimento do artista que revela
o seguinte:
Quando fiz Pedro Pedreiro, tive a sensação de que pela primeira fez estava compondo uma música realmente minha, que já não era mais uma imitação de Bossa Nova. [...] ainda era um resquício do movimento que havia da chamada resistência, que foi logo depois de 64, quando veio aquela onda toda do Opinião, da oposição que fazia dentro dos teatros, na música popular – já que noutros campos a oposição foi abortada, calada e então se transferiu das fábricas, da praça pública e do Congresso para as artes: o teatro, o cinema e a música (HOMEM, 2009, p. 25).
Ainda sobre esta letra, ele confessa a influência de Guimarães Rosa em
sua escrita, quando cria a palavra “penseiro” (HOMEM, 2009, p. 25). Este breve
exame sobre o produzir letra de canção dialoga com o objetivo deste trabalho, já
que ler a letra de canção é o enfoque da pesquisa.
2.2 A LETRA DE CANÇÃO NA ESCOLA
Músicas são, frequentemente, usadas em aulas, principalmente nas de
línguas estrangeiras. É lúdico, em geral se aproximam daquilo que os estudantes
estão ouvindo em suas playlists, ajudam a treinar o listening e a pronúncia. Não
raro, os estudantes até cantam em apresentações. Já em língua materna, quais
usos seriam apropriados?
55
No livro “Como usar a música na sala de aula”, Martins Ferreira (2007)
propõe, em sua perspectiva, de maneira interdisciplinar, os diversos usos de uma
mesma música por disciplinas diferentes. O maior mérito deste material é o rico
repertório apresentado, e a ideia de incentivar o uso de música em disciplinas
que normalmente não o fazem (além das conhecidas musiquinhas para decorar
fórmulas), como por exemplo, em biologia, ensinar sobre o aparelho fonador a
partir de composições de índios brasileiros de etnias diversas. No entanto, em
geral, nas sugestões para aulas de língua portuguesa, o uso das letras de canção
se restringe ao exame do texto para o ensino de gramática, e seu conteúdo
ideológico nem mesmo chega a ser cogitado.
“Gago apaixonado”, de Noel Rosa, serve apenas para divisão silábica e
“Mim quer tocar” se reduz ao exercício de apontar erros na colocação pronominal.
Certamente é muito mais interessante aprender pronomes com Ultraje a Rigor,
mas é uma pena que a proposta não contemple a ironia e o questionamento
político declarados na letra, além da referência à influência e dominância da
música americana no Brasil da época. Para um trabalho posterior a toda uma
discussão sobre a importância de se tomar o texto como unidade de ensino
(GERALDI, 1983 [2006]) e o gênero como objeto desse ensino (PCN, 1998), é
frustrante perceber que textos, sejam quais forem, voltem ao status de “textos
como pretextos”, em uma proposta construída no ano 2001, com 20 anos de
debate sobre o assunto e questionamento dessa abordagem8.
Num outro exemplo, Martins Ferreira (2007, p. 41) toma a música “I’m not a
dog no” e a classifica apenas como um erro de tradução, sugerindo ao professor
de inglês que a apresente como tal: “o professor de inglês pode tomar a letra
desta canção para demonstrar como é que não se escreve nesse idioma”.
Interessante notar que não se trata de uma música de origem americana ou
inglesa, mas de uma composição de um autor brasileiro, parodiando uma outra
canção brasileira, com o objetivo de satirizar a onipresença de canções
estrangeiras no mercado musical brasileiro. Eis a letra:
I'm Not Dog No
1. I'm not dog no, for live so humble
8 2001 – Ano da primeira edição.
56
2. I'm not dog no, for you be so very far 3. You don't know understand who is love, who is like 4. E eu já estou querendo stay here 5. And so there I go away 6. Worst thing of the world 7. Is to love very back 8. Who say no to big love 9. Doesn't matter to be happy 10. Oh, so little to be love 11. You should understand 12. That for you I have passion 13. For our love, for love God 14. I'm not dog no 15. For our love, for love God 16. I'm not dog no 17. I´m not dog no.
(Versão: Falcão/Tarcísio Matos para a música “Eu não sou cachorro não”, de Waldick Soriano).
Ora, saber que Falcão, cantor e, conforme refere-se a si mesmo, o
“bregastar” brasileiro, usa paródias de músicas de sucesso ou cria letras satíricas
já seriam indicações suficientes para perceber que ele não “errou” a tradução: ele
intencionalmente subverteu a ideia de tradução para criar uma música divertida.
Além disso, se ele quisesse fazer uma tradução, bastaria buscar um profissional
da música especialista em versões. Não se trabalha em música a ideia de
tradução, mas sim a de versões, verte-se, aproxima-se uma letra de canção de
outra língua para o português, mantém-se o tema, mas buscam-se expressões e
palavras que façam sentido para o público brasileiro.
Em um artigo publicado na revista “Língua Portuguesa”, nº 90/2013,
Gabriel Perissé trata do assunto de verter letras e usa um exemplo emblemático,
uma canção do americano Cole Porter. Usando expressões idiomáticas,
trocadilhos e elencando espécimes da fauna, Porter faz um convite: “Let’s do it
(Let”s fall in Love)”. Perrissé detalha o primoroso trabalho do compositor Carlos
Rennó que driblou com maestria as dificuldades de tradução de letras de canção,
como no verso em que guinea pigs (porquinhos da índia) são substituídos por
coelhos; lá e cá, são exemplos de procriadores contumazes. Substituir porquinho
da índia por coelho foi uma decisão baseada não em vocabulário (já que a
expressão tem um equivalente em português), mas em uma questão cultural, a
ideia que remete ao ato de reprodução é mais facilmente acessível ao brasileiro
pelo signo “coelho”.
57
Voltando à letra de canção “I’m Not Dog No”, pode-se perceber que não há
indícios de uma busca por tradução ao pé da letra, como quer Ferreira, mas uma
paródia fundamentada, principalmente na sonoridade das palavras, acentuada
pelo sotaque cearense do cantor. No quarto verso da primeira estrofe, o autor da
paródia retoma a língua portuguesa, sem qualquer compromisso com a letra da
canção original, mas apenas para dar uma “deixa” para o verso a seguir.
Considerando o texto e as demais composições do autor, é de se supor que
exista mais sendo dito: Há uma referência ao “embromation”, técnica usada por
cantores de churrascarias e afins para cantar os sucessos do momento sem
saber uma palavra da língua de origem da música, geralmente, o inglês. Cantar
em inglês estropiado pode ser entendido como uma crítica ao consumo constante
de música americana, ao aculturamento forçado ocasionado pelas mídias
brasileiras.
O compositor Falcão insere, na realização da paródia, outras vozes
(BAKHTIN, 2010 [1934-1935]), que vão de encontro ao discurso corrente, às
práticas linguageiras que se apropriam inadvertidamente e inadequadamente da
língua alheia, da “palavra alheia”, do discurso de outrem. Assim, num movimento
que produz humor, Falcão, ao também se apropriar do discurso, da língua alheia,
usa dela mesma para criticar o próprio processo de assimilação.
Hoje, pode-se querer culpar a internet pela proliferação de bandas
estrangeiras, mas pode-se considerar que as sementes foram plantadas há muito
tempo, via ondas do rádio, quando consumir música em inglês era um sinal de
modernidade. A trajetória do autor e o tom de sua biografia no site oficial deixa
claro que não se trata de um ignorante. Outras canções como “Fome zero -a-zero”
e “Ordem e Progresso” também apontam para um olhar crítico para a sociedade
brasileira.
Geraldi (2003, p.137), ao abordar a questão da endereçatividade do texto,
assinala que, sem considerar as condições de produção, corre-se o risco de
perder a essência do texto, de não realizar o tema proposto pelo enunciado.
Perde-se de vista os rastros ideológicos. Assim, chamar de erro uma peça com
tal toque de humor pode levar professores desatentos (ou mal (in)formados) ao
erro e privarem seus alunos de todo o prazer de ler um bom texto, divertido,
criativo e, no seu aspecto mais relevante, crítico. De acordo com Padilha,
58
Sabemos que, nas aulas de Língua Portuguesa nas escolas brasileiras, a canção se faz presente, por meio do livro didático – que traz a letra como texto, tratando-a, na maior parte das vezes, como poema, ou por meio da iniciativa do próprio professor, que querendo tornar a aula mais agradável, utiliza o recurso da música. Ouvem-se músicas, leem-se letras e depois? Textos como pretextos? Há algum trabalho que explore o gênero como pertencente a um espaço discursivo, que leve o aluno a se informar e/ou refletir sobre esses espaços e suas formas de produção, circulação e recepção? Afinal, a canção é, da mesma forma, um enunciado da esfera da comunicação artística, e como tal, precisaria ser compreendida em seu todo, pois como um todo foi produzida, originalmente (PADILHA, 2005, p. 95).
O material destinado à sala de aula do documentário “Palavra
(En)cantada”, citado no capítulo 2, não traz sugestões de usos do material, mas
apenas uma seleção de cenas por tópicos. O que se propõe, como descrito na
capa do DVD, é provocar discussões sobre o eixo poemas versus letra de
canção. Material muito interessante, pois o professor pode ir além desta proposta,
já que traz a visão de autores sobre sua própria produção.
Parece propício, portanto, que se apresente uma outra proposta de
trabalho com letras de canção que contemple os aspectos aqui mencionados,
como ideologia, intenção discursiva e condições de produção. Antes, porém,
como o trabalho envolve a leitura, é pertinente apresentar a concepção em que
fundamenta esse trabalho e alguns sobre as condições de letramento dos
brasileiros, o que reforça a pertinência da proposta realizada neste trabalho.
2.3 LEITURA
A leitura do mundo precede a leitura da palavra. Paulo Freire (2009)
Como apresentado na introdução, a leitura é um objeto deste trabalho e
nem poderia ser diferente quando se pensa em sala de aula. Tudo gira em torno
do ato de ler. Freire, em seu livro “A importância do ato de ler” (2009), conta ao
leitor o processo de sua alfabetização sob as sombras das mangueiras, referindo-
se a esse ele como um ato de descoberta de palavras que nomeavam coisas de
seu mundo,
59
A decifração da leitura fluía naturalmente da “leitura” do mundo particular. Não era algo que estivesse dando superpostamente a ele. Fui alfabetizado no chão do quintal de minha casa, à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo e não do mundo maior dos meus pais (FREIRE, 2009, p.15).
Este trecho da obra de Freire demonstra que a leitura da palavra passa,
em primeiro momento, pela leitura do mundo e, a partir disso, ganha-se acesso a
um mundo maior, a “palavramundo”, como diz o autor. Assim, ler equivale a
descobrir mundos e a construí-los também.
Hoje, com tantas opções audiovisuais ao alcance das crianças desde a
mais tenra idade, talvez essa necessidade de descoberta tenha diminuído e a
leitura ocupe um lugar de menor destaque. Por outro lado, ler o mundo cont inua
sendo fundamental e não há idade certa para descobrir o prazer de ler, ou pelo
menos, sua função cidadã.
Mesmo não sendo este um trabalho sobre alfabetização, é oportuno
lembrar de que ela é parte do processo de leitura e que, muitas vezes, o modo
como é realizada marca o leitor que continua guiando suas leituras vida afora.
Além do processo de associação do som à letra, é preciso, desde o processo de
alfabetização, que o aluno vivencie a leitura como um ato político e de apreensão
da palavra do outro. Cabe à escola o papel de alfabetizar e, ao mesmo tempo,
proporcionar ao seu aluno um letramento que o capacite a ler o seu mundo.
2.3.1 Compreendendo os níveis de leitura
Ler é mais que decodificar signos alfabéticos. Magda Soares (1998 [2006])
estabelece, a partir de dicionários e outras fontes, a diferença entre alfabetismo e
letramento, afirmando que o “alfabetizado é aquele que apenas aprendeu a ler e
escrever, não aquele que se apropriou da leitura e da escrita, incorporando as
práticas sociais que as demandam”. Rojo amplia este conceito ao afirmar que,
Para ler, não basta conhecer o alfabeto e decodificar letras em sons de fala. É preciso compreender o que se lê, isto é, acionar o conhecimento de mundo para relacioná-lo com os temas do texto, inclusive o conhecimento de outros textos/discursos (intertextualizar) prever, hipotetizar, inferir, comparar informações, generalizar. É preciso também interpretar, criticar, dialogar com o texto: contrapor a ele seu ponto de vista, detectando o ponto de
60
vista e a ideologia do autor, situando o texto em seu contexto
(ROJO, 2009, p. 44).
Partindo das premissas de Soares e Rojo, verifica-se que os alunos,
especialmente os do ensino médio de escolas públicas, encontram-se em vários
níveis de domínio de leitura. Há alguns alunos que são tecnicamente analfabetos;
há aqueles que são alfabetizados, mas não totalmente letrados em práticas de
leituras mais complexas, e; poucos com um grau de letramento mais elevado.
Considera-se tecnicamente analfabeto aquele aluno que tem enorme
dificuldade em decodificar os códigos alfabéticos, apresentando uma falha na
alfabetização, muitas vezes, ligada a fatores emocionais, neurológicos e sociais,
que não cabem investigar neste trabalho. Em relação ao alfabetizado sem
letramento, trata-se daqueles estudantes que leem algo do quadro ou do livro,
realiza tarefas solicitadas. Entretanto, se a solicitação exigir reflexão sobre um
tema abordado em aula, eles não são capazes de fazê-lo, tampouco são capazes
de escrever um texto coeso e coerente.
O aluno apenas alfabetizado é capaz de reconhecer a forma de alguns
gêneros discursivos, por exemplo, o poema, pelos anos de escolarização em que
estes enunciados se fizeram presentes em livros didáticos. Reconhece um
anúncio publicitário, pela contínua exposição à televisão. Também sabem o que é
uma capa de revista, mas não conseguem encontrar nela, por exemplo,
informações acerca da data de circulação ou número de edição. Alguns
identificam a rima e/ou as metáforas de um poema; podem produzir, a partir de
exemplos, anúncios publicitários (mostrando que entendem sua intenção
comercial e sabem mobilizar a função conativa da linguagem) e localizam
informações na capa de revista.
Alunos considerados letrados são aqueles que, diante de um poema,
interagem com ele em uma atitude responsiva, apreendendo seu tema, ou
percebem o discurso veiculado em uma capa de revista. Pode-se dizer que são
aqueles que têm a percepção de como funcionam determinadas práticas
discursivas em determinados espaços de interação.
As variações nas capacidades de leitura podem ser mais bem
compreendidas pelas definições dadas pelo INAF que, desde 2001, realiza um
levantamento de como anda a leitura do brasileiro entre 15 e 64 anos de idade,
61
residentes em zonas urbanas e rurais de todas as regiões do país. Para tanto, o
INAF define quatro níveis de alfabetismo,
Analfabetos: não conseguem realizar nem mesmo tarefas simples que envolvem a leitura de palavras e frases ainda que uma parcela destes consiga ler números familiares (números de telefone, preços, etc.). Alfabetizados em nível rudimentar: localizam uma informação explícita em textos curtos e familiares (como, por exemplo, um anúncio ou pequena carta), leem e escrevem números usuais e realizam operações simples, como manusear dinheiro para o pagamento de pequenas quantias. Alfabetizados em nível básico: leem e compreendem textos e média extensão, localizam informações mesmo com pequenas inferências, leem números na casa dos milhões, resolvem problemas envolvendo uma sequência simples de operações e têm noção de proporcionalidade. Alfabetizados em Nível pleno: pessoas cujas habilidades não mais impõem restrições para compreender e interpretar textos usuais: leem textos mais longos, analisam e relacionam suas partes, comparam e avaliam informações, distinguem fato de opinião, realizam inferências e sínteses. Quanto à matemática, resolvem problemas que exigem maior planejamento e controle, envolvendo percentuais, proporções e cálculo de área, além de interpretar tabelas de dupla entrada, mapas e gráficos. (INAF, 2011. p. 5).
Pelos resultados da pesquisa, no ano de 2011, observa-se que houve um
aumento na escolarização da população, com queda de 12%, 2001, para 6%, em
2011, em relação ao analfabetismo, o que é uma ótima notícia. Ainda segundo os
resultados,
A quantidade de pessoas no nível rudimentar também diminuiu, de 27% para 21%. Isso resulta numa redução do analfabetismo funcional de 12 pontos percentuais: 39% em 2001-02 e 27% em 2011. O grupo que atinge o nível básico de habilidades foi o que mais cresceu, passando de 34% para 47% da população nessa faixa etária (INAF, 2011, p. 8).
Em relação ao nível pleno, houve pequenas alterações durante a década,
mas o índice de 26% permanece o mesmo desde o início das pesquisas. Assim,
durante os anos 2000, apenas 26% dos alunos que encerram o ensino médio
atingiram a capacidade de compreender um texto com autonomia e crit icidade.
62
Dados do SAEB também são reveladores no que diz respeito às
capacidades de leitura dos alunos brasileiros. Em relação ao aluno do 3º ano, do
ensino médio, o exame prevê um nível básico de leitura, compreendendo a
capacidade de “localizar informações explicitas em fragmentos de textos
narrativos simples (150 a 175 pontos), e um nível avançado, abrangendo a
identificação de ironia, humor, reconhecimento de um texto poético,
estabelecimento de relações entre teses e argumentos” (375 pontos ou acima). O
domínio de práticas discursivas e a apreensão de suas especificidades exige um
leitor em nível avançado de letramento.
O resultado do SAEB 2011 aponta que os alunos de escolas públicas
federais atingiram a média de 260,6 pontos, o que corresponde a ser capaz de ler
textos curtos, identificar o tema de textos narrativos e poéticos de menor
complexidade, fazer inferência de palavras em textos do cotidiano, como
provérbios e notícias de jornal, mas ainda longe do leitor autônomo desejável ao
fim de um ciclo de 12 anos de escolaridade.
Confirmando em números a necessidade de melhorar o desempenho da
capacidade de leitura, fica o desafio de buscar caminhos mais produtivos. Como
já foi dito, à escola cabe letrar, além de alfabetizar. Na verdade, pode-se dizer
que seu papel é participar do processo de letramento, que é longo, em constante
construção e não se dá somente na escola. Isso porque, de uma perspectiva
sociocultural,
[...] letramentos são práticas sociais, plurais e situadas, que combinam oralidade e escrita de formas diferentes em eventos de natureza diferente, e cujos efeitos ou consequências são condicionados pelo tipo de e pelas finalidades específicas a que
se destinam. (BUZATO, 2007, p.153).
Com base no entendimento sociocultural das práticas de leitura, é
importante considerar o ingresso de variados gêneros discursivos na sala de
aula. É preciso também contemplar diferentes linguagens e semioses para além
da escrita e do impresso.
Rojo (2009) defende a ideia de mudança de postura por parte da escola,
no sentido de se abrir para novos modos de ensinar e de perceber o aluno e seu
contexto sócio-histórico, a fim de evitar o embate entre práticas letradas
63
valorizadas e não valorizadas na escola. Segundo a autora, para a escola cumprir
sua meta de formação cidadã, ela deve levar em conta,
Multiletramentos ou letramentos múltiplos, em que a escola reconhece os letramentos das culturas locais de seus agentes, numa mediação entre estes e os letramentos valorizados e universais (ou dominantes); Letramentos multissemióticos: como já foi dito, o estudante vive hoje cercado de tecnologia e a escrita é somente uma delas. Ampliar a leitura para outros campos semióticos como a imagem e a música, presentes em qualquer suporte como computadores, tablets e celulares. Letramentos críticos e protagonistas: a escola não pode se furtar aos contextos sócio-históricos e demandas sociais de seus integrantes e o trabalho com a linguagem deve possibilitar ao aluno identificar as condições de produção e o discurso dos textos que lhes são apresentados (ROJO, 2009, p.106).
Estes conceitos subsidiam a escolha do gênero letra de canção para
propor o percurso de leitura, prometido nos objetivos deste trabalho. Abordar o
gênero letra de canção de uma perspectiva sociocultural permite valorizar a
cultura do aluno, representada aqui pelas canções que ouve e faz circular, mediar
a apresentação da cultura valorizada (as canções de compositores consagrados)
e a que não é tão valorizada (mas vivenciada pelos estudantes) e deste encontro
gerar conhecimento, autoconhecimento e avaliação crítica sobre este elemento
cultural e os discursos que o permeiam.
No capítulo seguinte, apresenta-se uma proposta de trabalho com o gênero
letra de canção, tomando-o como um objeto sociocultural em que ideologia,
intenção discursiva e condições de produção aparecem como elementos
essenciais. Na proposta de percurso de leitura, procura-se responder à questão
formulada por Padilha a partir de uma proposta de leitura que compreenda a letra
de canção como objeto de estudo, um todo de sentido situado em um contexto de
produção, circulação e recepção.
64
3 PROPONDO PERCURSOS DE LEITURA
Considerando os materiais que tratam do uso da música na escola e
observando o tratamento dado às letras de canção nos livros didáticos (elas são
apresentadas recortadas como fragmentos, incompletas, usadas como pretexto
para o ensino de gramática), conforme observado nas seções anteriores, é que
se pretendeu apresentar possibilidades de trabalho com leitura e análise da letra
de canção como material para aulas de língua materna. Não a leitura clara e sem
falhas, na recitação, não a leitura de enunciados de exercícios e textos para
compreensão de algum conteúdo. É a leitura como exercício e fim em si mesma,
o ato de ler e refletir, de ampliar o texto abarcando o contexto do aluno/leitor. Da
apreensão de significados, do ressignificar.
Como dito no capítulo 2, o trabalho que se pretende elaborar vai além da
forma estrutural, de versos, estrofes, rimas, mas quer alcançar também os rastros
ideológicos, a intenção comunicativa do autor-criador e permitir uma análise do
aluno sobre o texto e suas condições de produção e circulação, conforme
sugerido por Padilha (2005), numa interação enriquecida por informações
históricas, por questionamentos sociais e temporais. Uma interação que é
ampliada pela observação/audição também da melodia, constituinte da canção. O
ritmo, o estilo musical, os arranjos musicais também fazem parte do projeto
discursivo do compositor. Ler não é apenas decodificar signos alfabéticos ou
atribuir sentidos aos signos verbais, mas lê-se a música, a dança, o voo do
pássaro e os olhares, lê-se o mundo.
A metodologia de análise das letras de canção constituintes do corpus
deste trabalho seguirá as regras metodológicas de análise da linguagem
propostas por Volochinov/Bakhtin (2004 [1929]) conforme apresentadas abaixo:
1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza. 2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal. 3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação linguística habitual (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2004 [1929], p. 129).
65
Em linhas gerais, a sugestão metodológica acima oferece um procedimento
de análise em que, como primeiro passo, está o estudo do enunciado articulado
ao seu contexto sócio-histórico e ideológico de produção. Como segundo passo,
sugere-se o estudo do enunciado enquanto gênero discursivo com suas
especificidades temáticas, composicionais e estilísticas. O terceiro passo envolve
a mobilização de recursos usuais da gramatica para a explicação da base
material do enunciado. Esse é o procedimento metodológico escolhido para a
elaboração das análises das letras de canção que compõe o corpus dos
percursos de leitura propostos neste capítulo.
Este trabalho foi pensado para a sala de aula, e como proposta, não tem a
intenção de ser modelo oficial ou esgotar o tema da leitura de letra de canção. A
letra de canção é verbal, mas suas possibilidades são amplas, abarcam, por sua
natureza, outras apresentações. Em geral, o primeiro contato é através da
audição, momento em que se é fisgado pela melodia, para depois atentar-se para
a parte verbal. A internet fornece acessos a variados trabalhos feitos a partir da
letra de canção, dos mais primários até videoclipes profissionais. O professor
pode baixar vídeos do Youtube e usá-los em sala de aula e também, num
caminho inverso, disponibilizar na rede os resultados dos trabalhos realizados
com ou pelos alunos, prática já comum, desde a educação infantil até cursos
universitários. Shows promovidos e gravados por emissoras de TV como a MTV,
entrevistas, videoclips oficiais, gravações amadoras em shows, todo este material
é passível de estudo e uso em sala de aula, permitindo esta expansão da leitura
deste gênero discursivo em suas várias apresentações.
Neste capítulo, dois exemplos de análise possíveis para realização em sala
de aula serão apresentados. O primeiro deles é uma comparação entre duas
interpretações da música “Judiaria”, de Lupicínio Rodrigues: uma com o próprio
autor da composição, e outra com Arnaldo Antunes, poeta, letrista e cantor
brasileiro. O ponto de intersecção é a letra de canção, e a variação está na
entoação. Depois de apresentada uma análise, apresenta-se outro texto com um
roteiro de perguntas para ser trabalhado em sala de aula.
66
3.1 LENDO A LETRA DE CANÇÃO “JUDIARIA”
Conforme apresentado no capítulo 1, na concepção bakhtiniana
(VOLOCHINOV; BAKHTIN, 2004 [1929]), a entoação é sempre ideológica e
dialógica, e, portanto, com base neste conceito, buscou-se vislumbrar as
apreciações valorativas presentes nas performances, nos vários pontos a serem
considerados: ritmo, timbre, pronúncia, época, sociedade, visão de mundo.
Assim, essa atividade está pautada na comparação entre os dois
enunciados, e a apreensão da ideologia que possa ser realizada pelos alunos. A
seguir, apresenta-se uma análise de “Judiaria”, a partir de uma leitura dialógica
em conformidade com a concepção de linguagem bakhtiniana. A leitura da letra é
acompanhada da pesquisa sobre o autor, sua época, seu estilo e suas
produções. Resgata-se também o contexto sócio-histórico de produção do
enunciado mediante apontamentos acerca do comportamento e das posições de
homem e mulher na sociedade brasileira da década de 70. Informa-se que
guarânia é um gênero musical e que essa escolha pelo autor influencia a
interpretação da canção. É pertinente fazer essa definição sobre o gênero
musical, uma vez o que o mesmo não é contemporâneo e presumivelmente não
faz parte do contexto cultural dos estudantes, destinatários desta proposta.
O diálogo entre as duas épocas e contextos socioculturais é o que suscita
o debate: a sociedade mudou ou as mulheres continuam sendo vítimas do
orgulho masculino? Segue-se pondo lado a lado os dois enunciados, e
observando as diferenças e semelhanças. Outro gênero musical, outro timbre,
outro tom. As informações do intérprete Arnaldo Antunes, a razão pela qual
escolheu interpretar um romântico como Lupicínio numa versão roqueira ajudam
a ver a questão ideológica.
Segundo o texto da coleção “Folhas Raízes”9, sobre música popular
brasileira, Lupicínio, compositor e intérprete brasileiro, foi o precursor da “dor de
cotovelo”, por conta de suas músicas românticas, retratando rompimentos e fins
de relacionamentos, traições e abandonos. A melodia que acompanha a letra (um
revide de um homem abandonado que, procurado pela mulher que o deixou,
humilha-a e expulsa-a) é uma guarânia, ritmo paraguaio pungente. A
9 Disponível em: http://raizesmpb.folha.com.br/vol-6.shtml. Acesso em jan. 2014.
67
interpretação de Lupicínio é suave, calma, quase um lamento, no compasso lento
e choroso da guarânia, num perfeito casamento entre letra e melodia.
Judiaria10
1. Agora você vai ouvir 2. Aquilo que merece 3. As coisas ficam muito boas 4. Quando a gente esquece 5. Mas acontece que eu não me esqueci 6. A sua covardia, a sua ingratidão 7. A judiaria que você um dia 8. Fez pra o coitadinho do meu coração 9. Estas palavras que eu estou lhe falando 10. Tem uma verdade pura nua e crua 11. Eu estou lhe mostrando a porta da rua 12. Pra que você saia sem eu lhe bater 13. Já chega o tempo que eu fiquei sozinho 14. Que eu fiquei sofrendo 15. Que eu fiquei chorando 16. Agora que eu estou melhorando 17. Você aparece pra me aborrecer
(Lupicínio Rodrigues. LP Dor de cotovelo. Rosicler, 1973).
Seguindo a linha “dor-de-cotovelo”, o autor-criador como designado por
BAKHTIN (2003a [1952-1953]), confronta a mulher que o abandonou, expondo-o
à dor e ao ridículo. Em 1973, a mulher era ainda vista como conquista,
propriedade do homem, apesar de já se viver na época dos movimentos de
liberação feminina iniciados na década de 1960. No verso 6, encontra-se a
palavra “ingratidão”, o que indica a ideia da época, de que a mulher deveria ser
grata por ter um namorado ou marido.
Outro trecho que oferece um panorama da sociedade deste período
histórico encontra-se nos versos 11 e 12: “Eu estou lhe mostrando a porta da rua/
Pra que você saia sem eu lhe bater”. Pode parecer estranho uma letra de canção
apresentar uma ameaça física contra uma mulher, hoje, 2013, mas não era
incomum na era pré-Maria da Penha11. Em oposição a esta atitude machista e
10 Judiaria: fanclipe. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=ah-YxJZSa50. Acesso em jan. 2014. 11 Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Popularmente conhecida como
68
ofensiva, há um abandono de qualquer pudor de “macho”, ao admitir, nos versos
14 e 15, que a presença da mulher ainda causa dor e a confissão de que sua
ausência causou tristeza e, vergonha das vergonhas, choro. A ideia de que
homem não chora ainda hoje é difundida em alguns setores da sociedade
brasileira. A entoação do intérprete Lupicínio, melancólica, cadenciada, faz
lembrar um lamento, uma queixa, cheia de mágoa e a dor.
Arnaldo Antunes, em 200712, se vale do rock para reapresentar “Judiaria”.
Neste novo enunciado, a harpa paraguaia cede lugar para a guitarra, a leveza é
substituída por uma voz mais pesada, que mais fala que canta, e o ritmo é
acelerado. Não é mais o lamento, mas a indignação o tom da interpretação.
Segundo Antunes, em sua visão, a letra pedia outro ritmo, conforme afirmou em
uma entrevista:
Eu adoro Lupicínio. No próximo disco, quero gravar outra coisa dele. Acho ele um grande compositor, adoro ele cantando [...] Eu acho ele o melhor intérprete de suas músicas. Tinha aquela voz pequena e era muito comovente na forma de cantar. As composições dele são maravilhosas. No caso da Judiaria, deu vontade de reler especificamente essa canção na forma de um rock’n’roll. Acho que ficou muito adequado pela própria violência da própria letra (Arnaldo Antunes, entrevista concedida a Júlio Cesar Caldeira, Renata De Grande e Ludmila V, Estado de S. Paulo – Zap!: 1999.)
De acordo com Volochinov/Bakhtin (2004 [1929], p. 135), a entoação
expressiva entrega a valoração dada no enunciado, e é indispensável contemplar
o contexto sócio-histórico, o horizonte apreciativo de um dado grupo social.
Assim, qual é a apreciação que se pode perceber na enunciação de Arnaldo
Antunes, levando em conta que, em 30 anos, a sociedade brasileira reviu alguns
de seus valores, especialmente a posição da mulher na sociedade?
A própria palavra “Judiaria”, título da canção, é pouco utilizada e seu
significado figurado, segundo o dicionário HOUAISS (2011) é: “Ato de maltratar
alguém, física ou moralmente”. O que levaria um poeta do cotidiano como ele a
incorporar ao seu repertório uma canção com tal letra, estranha ao seu tempo e “Lei Maria da Penha”, leva o nome da biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, que por vinte anos lutou para ver seu agressor preso. 12 A versão da canção "Judiaria" é trecho do CD/DVD "Arnaldo Antunes ao Vivo no Estúdio", no
Estúdio Mosh, em agosto de 2007, com participação especial de Edgard Scandurra. Vídeo disponível em: www.youtube.com/watch?v=gs2bj0508_4. Acesso em abr. 2013.
69
estilo? Talvez a resposta esteja na entoação forte e quase divertida, como se a
recuperação da canção nessa releitura atendesse ao propósito de tributo ao
autor, e uma saída para o homem moderno cantar, também, suas dores de amor.
É preciso considerar também que o ouvinte é outro, e sua apreciação
valorativa possa estar mais voltada para a ludicidade da recuperação da canção
que na possível realidade da narrativa. É como uma janela no tempo que permite
ver um passado não tão distante, com ecos ainda soantes na atualidade. É a
mesma canção, mas enunciados distintos, cada qual com o estilo individual do
intérprete e suas marcas “determinadas pela situação imediata e frequentemen te
por suas circunstâncias mais efêmeras” (VOLOCHINOV; BAKHTIN, 2004 [1929],
p.132).
O exercício de reler uma composição não somente a renova, mas a torna
outra, pelo ineditismo do enunciado, por suas condições de produção e pela
interação com o outro, vivenciada num momento único e irrepetível. A entoação,
por sua natureza ideológica, é o elemento que desvela todas as outras instâncias
do enunciado.
A análise até agora estabeleceu que “Judiaria” apresenta um fato: Em
1973, bater numa mulher era um acontecimento aceitável, considerado como
assunto pessoal ou familiar, que não cabia interferência policial. Mesmo o
assassinato da mulher pelo marido era considerado uma questão de honra e,
portanto, lícito. Mas não é apenas apresentando fatos que se colabora para a
formação de uma mente crítica, ou de um leitor crítico. É o exame do confronto
entre os dois tempos de uma mesma sociedade que permite avaliar a evolução
desta. A mulher conquistou direitos; foi para o mercado de trabalho; ocupa
funções antes tidas como masculinas; foi promulgada uma lei que a protege da
violência doméstica, mas é o suficiente para dizer que a letra de “Judiaria” é coisa
do passado? Na letra, tem-se a voz de um homem que revela o pensar de uma
época, mas este pensar foi abandonado? Hoje, a mulher da sociedade brasileira
está a salvo da ideia de que, por ser mais fraca fisicamente, pode ser subjugada
e vista como objeto de posse do homem?
A letra de canção, sozinha, lida fora de um trabalho pedagógico, ou a
canção ouvida na mesma situação, pode não gerar uma reflexão, da mesma
forma que outros enunciados concretos, como fotos, reportagens, pinturas. Não é
o enunciado em si, mas a interação com ele que pode gerar uma resposta ativa e
70
criar um momento de reflexão e busca por sentidos que vão permitir ao estudante
considerar a questão da posição da mulher na sociedade e sua própria visão do
assunto. Se é necessária uma lei para proteger a mulher de agressões, a
sociedade mudou de fato? Homens e mulheres veem a si mesmos como iguais
em direitos? Judiaria, portanto, funciona como uma introdução a um assunto,
como um exercício de reflexão, muito mais do que observação do passado ou
curiosidade.
Arnaldo Antunes, como já visto, classifica a letra de violenta e escolhe o
rock para apresentá-la. A guitarra e a bateria parecem mesmo ser apropriadas
para acompanhar esta letra que retrata a mulher como passível de violência
apenas porque decidiu deixar alguém a quem não ama mais. Daí se pode
entender que o tema não é mais a dor de amor sentida por um homem, dado na
voz “pequena” e “comovente” de Lupicínio, mas a violência dos sentimentos de
um homem abandonado por uma mulher, apresentado pelo tom vibrante e alto da
voz de Arnaldo, guitarra e bateria.
Considerando que as duas interpretações podem não fazer parte do
repertório dos estudantes do ensino médio, hoje, pode-se questionar: a que
leituras os alunos podem nos guiar? O que eles veem nesta conversa entre os
dois intérpretes? A condução de um percurso reflexivo como este cabe ao
professor, depois de pesquisa, seleção de material, adequação aos alunos,
atendendo a um objetivo claro de ensino, neste caso, a leitura. Mas em nenhum
momento é uma palavra única ou final, mas apenas um indicativo de caminho. O
aluno vai trazer sua voz, seu conhecimento, suas preferências, maturidade ou
imaturidade e vai responder ao processo, e, em se tratando de sala de aula, cada
um, ao seu modo, e a seu tempo. O professor contribui com fatos, dados e
encaminhamento de pesquisa.
Parece, então, um resultado confuso, ou mesmo a falta de um, mas, ao
contrário, é o despertar (ou a ampliação) da leitura crítica, a interação viva repleta
de compreensões ativa frente a um enunciado. Não é a busca da unanimidade de
uma conclusão, mas o surgimento dos vários olhares sobre o texto: valores
diferentes se materializando nas vozes que vão aparecendo nesta arena
discursiva, na qual os embates ideológicos se dão, constituindo novos
enunciados.
71
3.2 UMA LEITURA COMPLEMENTAR
Após esta análise, o que se propõe são possibilidades de atividades a
serem aplicadas em sala de aula. Como material, elege-se, dentro do mesmo
tema, a visão da sociedade sobre a mulher, pela lente da letra de canção, um
texto que reúne vários trechos de letras de canção, associados a uma época e o
pensamento que nela viceja.
O texto que ora se apresenta para leitura circulou na internet e ainda hoje é
facilmente encontrado. Não tem autoria marcada, mas percebe-se um autor
discursivo pelo rastro ideológico identificado nas pistas linguísticas, como o título
e os comentários que antecedem os trechos de letra de canção e o final do texto.
A falta de uma assinatura não constitui um problema de ausência de autoria, do
ponto de vista teórico assumido neste trabalho. De acordo com Bakhtin
(2003[1959-1961]), o autor está presente no enunciado como um todo, podendo
ser percebido objetivamente pela escolha lexical, pelo discurso, pela imagem que
é construída. Trata-se do autor criador, discursivo, e não necessariamente do
autor pessoa, pragmático, evidenciado pela assinatura.
Não se trata de uma aula, com leitura e possível audição das canções, mas
de projeto de ensino que se estenda por quantas aulas forem necessárias para
sua realização. Eis o texto:
Triste Realidade Uma análise da evolução da relação de conquista e do amor do homem para a mulher, através das músicas que marcaram época. Não é saudosismo, mas vejam como os quarentões, cinquentões tratavam seus amores. É por isso que de vez em quando vemos uma mulher nova enroscada no pescoço de um quarentão. ------------------------------------------------- Década de 30: Ele, de terno cinza e chapéu panamá, em frente à vila onde ela mora, canta: "Tu és, divina e graciosa, estátua majestosa do amor por Deus esculturada. És formada com o ardor da alma da mais linda flor, de mais ativo olor, na vida é a preferida pelo beija-flor..." --------------------------------------------------------- Década de 40: Ele ajeita seu relógio Pateck Philip na algibeira, escreve para Rádio Nacional e, manda oferecer a ela uma linda música: "A deusa da minha rua, tem os olhos onde a lua, costuma se
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embriagar. Nos seus olhos eu suponho, que o sol num dourado sonho, vai claridade buscar" ----------------------------------------------------------------------- Década de 50: Ele pede ao cantor da boate que ofereça a ela a interpretação de uma bela bossa: "Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça. É ela a menina que vem e que passa, no doce balanço a caminho do mar. Moça do corpo dourado, do sol de Ipanema. O teu balançado é mais que um poema. É a coisa mais linda que eu já vi passar." --------------------------------------------------------- Década de 60: Ele aparece na casa dela com um compacto simples embaixo do braço, ajeita a calça Lee e coloca na vitrola uma música papo firme: "Nem mesmo o céu, nem as estrelas, nem mesmo o mar e o infinito não é maior que o meu amor, nem mais bonito. Me desespero a procurar alguma forma de lhe falar, como é grande o meu amor por você..." --------------------------------------------------------- Década de 70: Ele chega em seu fusca, com roda tala larga, sacode o cabelão, abre porta pra mina entrar e bota uma melô joia no toca-fitas: "Foi assim, como ver o mar, a primeira vez que os meus olhos se viram no teu olhar.... Quando eu mergulhei no azul do mar, sabia que era amor e vinha pra ficar..." --------------------------------------------------------- Década de 80: Ele telefona pra ela e deixa rolar um: "Fonte de mel, nos olhos de gueixa, Kabuki, máscara. Choque entre o azul e o cacho de acácias, luz das acácias, você é mãe do sol. Linda..." -------------------------------------------------------- Década de 90: Ele liga pra ela e deixa gravada uma música na secretária eletrônica: "Bem que se quis, depois de tudo ainda ser feliz. Mas já não há caminhos pra voltar. E o que é que a vida fez da nossa vida? O que é que a gente não faz por amor?" --------------------------------------------------------- Em 2001: Ele captura na internet um batidão legal e manda pra ela, por e-mail: "Tchutchuca! Vem aqui com o teu Tigrão. Vou te jogar na cama e te dar muita pressão! Eu vou passar cerol na mão, vou sim, vou sim! Eu vou te cortar na mão! Vou sim, vou sim! Vou aparar pela rabiola! Vou sim, vou sim"! -------------------------------------------------------- Em 2002: Ele manda um e-mail oferecendo uma música:
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"Só as cachorras! Hu Hu Hu Hu Hu! As preparadas! Hu Hu Hu Hu! As poposudas! Hu Hu Hu Hu Hu!" --------------------------------------------------------- Em 2003: Ele oferece uma música no baile: "Pocotó pocotó pocotó...minha éguinha pocotó! --------------------------------------------------------- Em 2004: Ele a chama p/ dançar no meio da pista: "Ah! Que isso? Elas estão descontroladas! Ah! Que isso? Elas Estão descontroladas! Ela sobe, ela desce, ela dá uma rodada, elas estão descontroladas!" -------------------------------------------------------- Em 2005: Ele resolve mandar um convite para ela, através da rádio: "Hoje é festa lá no meu apê, pode aparecer, vai rolar bunda lele!" --------------------------------------------------------- Em 2006: Ele a convida para curtir um baile ao som da música mais pedida e tocada no país: "Tô ficando atoladinha, tô ficando atoladinha, tô ficando atoladinha!!! Calma, calma foguetinha!!! Piriri, alguém ligou p/ mim!" ---------------------------------------------------------- Em 2010: Ele encosta com seu carro com o porta-malas cheio de som e no máximo volume: " Chapeuzinho pra onde você vai, diz aí menina que eu vou atrás. Pra que você quer saber? Eu sou o lobo mau, au, au Eu sou o lobo mau, au, au E o que você vai fazer? Vou te comer, vou te comer, vou te comer, Vou te comer, vou te comer, vou te comer, Vou te comer, vou te comer, vou te comer"
Onde foi que nós erramos? Será que ainda é possível piorar?
(Diponível em: http://100perdao.blogspot.com.br/2011_09_04_ archive.html. Acesso em jan. 2014).
Da mesma forma que foi feito na apresentação da análise anterior,
mobiliza-se o contexto sócio-histórico de produção do enunciado” Triste
realidade”, bem como dos discursos convocados pelo autor para a realização do
seu projeto discursivo e sua orientação valorativa.
O primeiro passo é apresentar o texto aos alunos, que, possivelmente,
reconhecerão os últimos trechos selecionados, pois se tratam de recentes funks e
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proibidões13, de grande circulação nos meios de comunicação e divulgação por
meio de Cds independentes.
A elaboração de um glossário é interessante e contribui para a
compreensão da evolução da linguagem, bem como da construção de um painel
da mudança de hábitos e consumo. A palavra “olor”, por exemplo, possivelmente
não faz parte do vocabulário dos estudantes.
Examinando trecho por trecho, há vários elementos a serem considerados.
Na década de 30, por exemplo, pode-se observar que há uma profusão de
adjetivos e o uso do pronome “tu”, em desuso em grande parte dos falantes do
português brasileiro. O léxico dos trechos dos textos mais próximos
temporalmente da atualidade vai ficando mais acessível aos estudantes.
Pode-se pedir aos alunos que identifiquem os modos de fazer chegar a
música à mulher, melhor dizendo, como a música é usada para o cortejo, a
conquista. Como variam de década a década? O que causa essas mudanças?
Será que de fato as iniciativas descritas são reais? Ainda se oferta música em
bailes? O que essa informação revela sobre o autor do texto? Ele conhece um
baile funk? Será que a prática de enviar e-mails com música, como dito no trecho
de 2001, de fato ocorreu? A opção por associar música e e-mail poderia ter se
dado para marcar o crescente uso do computador e da Internet? Os espaços
onde ocorrem as ofertas também caracterizam as épocas correspondentes?
Que elementos de moda e consumo marcam cada década? Uma pesquisa
de imagens poderia compor um quadro que delineasse as mudanças de estilo e
evolução tecnológica nos períodos citados.
O projeto discursivo do autor-criador é claramente de crítica à produção
musical a partir dos anos 2000, e a escolha das letras de canção está ligada à
imagem da mulher. Nesta altura da leitura, pode-se fazer um paralelo das
características do movimento literário Romantismo com as letras das canções das
décadas de 30 a 60, a deusa inatingível, modelo de beleza e perfeição, para ser
admirada e venerada (deusa, estátua, linda).
Também as referências ao corpo da mulher mudam. Qual a diferença entre
1930/1940 e 1950? De 1960 a 2001?
13 Proibidão é o nome que se dá a uma vertente do funk, cujas letras fazem apologia à violência, uso
de entorpecentes e exalta a criminalidade. Teve origem nos morros cariocas e sua divulgação se dá em bailes e por meio de Cds independentes. Está próximo ao estilo Gangsta rap americano, que tem as mesmas características.
75
A referência ao sexo é marcada a partir de 2001, com a introdução, pelo
autor, do funk em sua seleção. No entanto, a música da década de 90 também se
refere a uma relação sexual de forma bastante clara. Recuperar as letras em sua
totalidade é uma ótima tarefa para perceber que o recorte feito pelo autor é
tendencioso, ou seja, foi feito de modo a atender seu objetivo. Pedir aos alunos
que pesquisem e levem as letras para leitura em sala vai permitir que percebam o
processo de seleção efetuado pelo autor, bem como ajudar a reconhecer seu
projeto discursivo.
Também a seleção dos gêneros musicais é resultado do projeto discursivo.
Na década de 1970, Genival Lacerda cantava músicas de duplo sentido com
referências sexuais como, por exemplo, “Severina Xiquexique”. A coexistência de
variados estilos não é prerrogativa dos anos 2000. Assim, marcar uma década
por uma música apenas e de um único gênero é um recurso que deixa clara a
intenção do autor-criador.
Qual é a imagem de produção musical e de mulher que é projetada a partir
da década de 2000?
No projeto discursivo do autor, a evolução tem que aspecto? Os alunos
conseguem identificar a posição do autor? Qual é a posição dos alunos sobre o
tema? As meninas se reconhecem nestas imagens de mulher? Além de um
debate em sala de aula, uma atividade interessante seria promover pesquisas
sobre a imagem que a sociedade tem sobre a mulher, hoje, começando pelo
ambiente escolar.
Grupos de alunos poderiam se dividir em tarefas como pesquisar empregos
e salários, o movimento feminista e seu impacto na sociedade. Outra
possibilidade é realizar entrevistas estruturadas com professoras, funcionárias e
alunas de outras turmas verificando qual é a imagem que tem de si mesmas, e se
aceitam esta ideia de que as mulheres não são mais valorizadas. Uma exposição
de cartazes ou vídeos apontando as conclusões dos alunos sobre o tema seria
um bom desfecho para este percurso.
Na subseção seguinte, prossegue-se com a proposição de leitura com letra
de canção, agora com outra temática, a da identidade linguística que,
potencialmente, provoca discussões interessantes, em sala de aula, a respeito
dos aspectos ideológicos. A noção de identidade linguística será abordada em
duas percepções: uma visão nacional e outra regional.
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3.3 CANTANDO E LENDO SOBRE A LÍNGUA
A proposta, a seguir, busca trabalhar a noção de identidade linguística,
objetivando levar os alunos a se perceberem como falantes da língua portuguesa
brasileira, língua nacional falada em quase todo o território brasileiro; bem como
reconhecer a variante falada na região da Baixada Cuiabana. O corpus desta
atividade é formado pelas seguintes letras de canções: “Língua”, de Caetano
Veloso, “Inclassificáveis”, de Arnaldo Antunes e “Cuiabano de chapa e cruz”, de
Edna Vilarinho.
Para sistematizar este percurso, sugere-se as seguintes ações para o
trabalho em sala de aula:
1. Antes de apresentar a canção para a turma, pode-se identificar, por meio
de perguntas diretas, o que os alunos sabem sobre a língua portuguesa
brasileira. Nesse momento, as seguintes questões podem ser levantadas:
Qual é a origem da língua portuguesa?
Por que falamos português?
Quais fontes linguísticas influenciaram na formação do português
brasileiro?
Porque existem tantos sotaques diferentes num país em que, oficialmente,
há um idioma nacional?
A diferença de vocabulário de um estado para outro impede a
comunicação?
Que informações sobre este assunto estão disponíveis no livro didático
adotado pela escola?
A partir desses questionamentos, o próximo passo é direcionar uma
pesquisa sobre o tema, para responder àquelas questões não respondidas e
também para confirmar as informações ou hipóteses levantadas em sala.
Como atividade paralela, pede-se ao aluno que levante, junto à sua família,
sua árvore genealógica, bem como suas trajetórias até chegarem à cidade. Esta
é uma questão que pode se mostrar delicada, pois muitos alunos não vivem com
pai e mãe, e há uma série de conflitos ou impedimentos. Não há a necessidade
77
de tornar público, na sala, as histórias de todos os alunos, somente daqueles que
se dispuserem a compartilhá-las. O importante é que o aluno compreenda que a
sua trajetória coincide, em vários momentos, com a trajetória da língua,
permitindo que ele se reconheça como falante da língua portuguesa, que ela tem
uma origem e muitos desdobramentos.
2. De posse dessas informações, a montagem de um painel para
visualização da “viagem” da língua portuguesa de Portugal até o Brasil seria
interessante. Com a letra de “Língua”, em mãos, a leitura pode ser seguida da
audição da canção em sala. Depois, uma nova pesquisa sobre as informações
dadas pela canção pode ser traduzida por imagens coletadas pelos alunos para
ilustrar a letra, num grande painel a ser fixado na sala de aula. Para cada
informação, uma imagem. Dividida em grupos, a turma forma o painel ao juntar as
imagens trazidas. Cada imagem pode condensar, em forma de desdobramento,
respostas às seguintes questões:
Quem foi Camões?
E Rosa, escreveu o quê?
O que o latim tem a ver com o português? E o que é Lácio, e o que a
poesia de Bilac tem a ver com a letra de canção?
O poema de Bilac pode dividir o painel com poemas concretos e os
inquietantes versos de Glauco Mattoso, mostrando os usos da língua na arte.
Com isso, há o acréscimo de vocabulário, de noções de História nacional e
universal, de Geografia e de cultura popular, aspectos pertinentes para um
trabalho interdisciplinar. O resultado esperado é que os alunos percebam que a
língua é um traço cultural essencial e determinante da identidade nacional, e que
a língua falada, hoje, no Brasil é fruto de uma longa evolução movida por fatores
socioeconômicos e culturais.
Além do painel, outras atividades podem ser trabalhadas, tai como o vídeo
em que o ator Nelson Freitas14 imita sotaques diversos: “Como o brasileiro elogia
14 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=DRyCUu5lHiY. Acesso em jan. 2014.
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sua mulher”; outro vídeo divertido15 é uma produção da MTV, que, além de tentar
reproduzir os sotaques de várias regiões, ainda satiriza as características e a
importância sociopolítica de cada estado citado.
3. Explorando a canção “Língua”, pode-se observar o ritmo impresso pelo
intérprete, com a letra sendo mais falada que cantada, até que o momento em
que convoca a Mangueira para falar: tem-se, então, um aumento de instrumentos,
de volume e uma breve mudança com a introdução de um samba, que cessa no
fim do refrão para voltar ao cadenciamento da fala do cantor. Algumas questões
podem ser colocadas ao professor:
Os alunos conseguem perceber semelhança com o RAP?
Eles conhecem, ouvem este estilo musical?
A aproximação com o samba, proposta por Caetano, pode soar estranha,
hoje, já que o ritmo em geral do rap é mais lento, mais melancólico. Para uma
comparação entre a proposta “festiva” de Caetano e um outro Rap , a sugestão é
o Rap “Brasil com P”, de Gog, pseudônimo de Genival Oliveira Gonçalves, rapper
e escritor brasileiro. Nesse rap, todas as palavras da canção iniciam-se com a
letra p, numa referência ao som de um tiro. A letra da canção traça um perfil da
situação sociopolítica da população pobre brasileira. Denunciar e relatar os
problemas e conflitos desse segmento social é uma das características do rap e o
que faz dele um estilo de grande penetração nas camadas menos favorecidas da
população.
A quebra no ritmo da canção com a introdução dos instrumentos de uma
bateria de escola de samba chama a brasilidade para a canção, é uma afirmação
do universo musical brasileiro. Seria interessante se um grupo de alunos
levantasse a história do samba e a incluísse no painel. Também cabe aqui uma
relação interdisciplinar com a aula de artes, com o estudo e/ou a criação de
instrumentos similares aos da bateria de uma escola de samba, ou numa
interação com a sociedade, o convite para uma escola de samba ou bloco
carnavalesco se apresentar na escola.
15 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=HhFHt_lzbfM. Acesso em jan. 2014.
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4. Indo da origem à evolução da língua, “Inclassificáveis” apresenta a
miscigenação ocorrida no Brasil e pode-se entender que, além da questão
biológica, há a inserção de novidades linguísticas com o acréscimo de
vocabulário trazido por estes povos e nações. Além das palavras, há os eventos
que dão origem a elas, como festas, comidas, músicas, etc. Os imigrantes e
migrantes fazem parte da história de cada pessoa e essa presença reflete na fala.
Assim, para ajudar a perceber essa identidade linguística, os alunos poderão criar
uma árvore genealógica com as informações colhidas com sua família ou
responsáveis e traçar uma rota do seu deslocamento até chegar à cidade onde
moram. Também podem colher informações sobre gastronomia e idioma,
tradições familiares e procurar relacioná-las ao seu cotidiano. A pergunta
condutora aqui seria:
Como a trajetória da minha família impacta o momento em que vivo agora?
5. Também, em um trabalho dividido em grupos, os estudantes podem
registrar a história do bairro, da cidade para conhecer o espaço em que vivem e
se localizarem geográfica, social e economicamente nele.
Entrevistar conhecidos ou parentes que mantenham o falar regional e
apresentar um vídeo para a classe é apropriado. Interessante seria também
buscar moradores da cidade oriundos de diferentes regiões do país e, usando o
mesmo recurso de gravação, identificar as diferenças e semelhanças de fala.
Numa cidade como Cuiabá, constituída por uma forte migração, registrar e
observar essas diferenças pode ajudar a compreender o quadro sociocultural e
econômico da mesma.
Essa atividade fecha o percurso, que teve como ponto de partida reflexões
globais sobre a língua (português brasileiro) para uma de suas dimensões
regionais (falar regional), no caso desta seleção, o falar cuiabano.
Essas atividades pedagógicas, sugeridas como desdobramentos de leitura
da letra de canção, mostram um trabalho de leitura que vai além do uso de um
texto como parte do ensino de gramática ou como complemento temático de
unidades de ensino. Objetivou tomar o gênero letra de canção como objeto de
ensino. Para alcançar uma compreensão ativa, uma responsividade que amplie o
repertório do estudante, é preciso explorar sua forma, suas condições de
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produção, a intenção comunicativa do autor-criador e sua inserção no quadro
sócio-histórico de sua esfera de circulação.
Recorrer ao dicionário, aos livros de história, aos dados disponíveis na
internet e na memória das pessoas, às revistas, ativar a intertextualidade e
dialogar com outros textos, para alcançar seu discurso, constituem objetivos bem
mais amplos, que conduzem a um ensino mais produtivo e significativo para o
aluno.
Nas seções seguintes, traz-se uma leitura exploratória das condições de
produção e circulação, da dimensão ideológica e da entonação de cada letra de
canção selecionada.
3.3.1 Lendo a letra de canção “Língua”
A proposta inicia-se com a letra de canção “Língua”, lendo-a, ouvindo a
música e identificando com os alunos as palavras desconhecidas por eles, com o
uso de dicionários ou troca de informações entre eles. Como é uma letra longa e
com muitas informações, pode-se trabalhar verso por verso, até todas as dúvidas
serem sanadas. Separados em duplas, os alunos pesquisam no laboratório da
escola as informações de que necessitam, por exemplo, quem é Luis de Camões
e Rosa (Guimarães Rosa). Posto isso, busca-se entender a afirmação do autor:
“minha pátria é minha língua”.
Língua 1. Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de
Camões 2. Gosto de ser e de estar 3. E quero me dedicar a criar confusões de prosódia 4. E uma profusão de paródias 5. Que encurtem dores 6. E furtem cores como camaleões 7. Gosto do Pessoa na pessoa 8. Da rosa no Rosa 9. E sei que a poesia está para a prosa 10. Assim como o amor está para a amizade 11. E quem há de negar que esta lhe é superior? 12. E deixe os Portugais morrerem à míngua 13. “Minha pátria é minha língua” 14. Fala Mangueira! Fala! 15. Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó 16. O que quer 17. O que pode esta língua?
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18. Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas 19. E o falso inglês relax dos surfistas 20. Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas! 21. Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda 22. E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate 23. E – xeque-mate – explique-nos Luanda 24. Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo 25. Sejamos o lobo do lobo do homem 26. Lobo do lobo do lobo do homem 27. Adoro nomes 28. Nomes em ã 29. De coisas como rã e ímã 30. Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã 31. Nomes de nomes 32. Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo
Barnabé 33. e Maria da Fé 34. Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó 35. O que quer 36. O que pode esta língua? 37. Se você tem uma ideia incrível é melhor fazer uma canção 38. Está provado que só é possível filosofar em alemão 39. Blitz quer dizer corisco 40. Hollywood quer dizer Azevedo 41. E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo 42. A língua é minha pátria 43. E eu não tenho pátria, tenho mátria 44. E quero frátria 45. Poesia concreta, prosa caótica 46. Ótica futura 47. Samba-rap, chic-left com banana 48. – Será que ele está no Pão de Açúcar? 49. – Tá craude brô 50. – Você e tu 51. – Lhe amo 52. – Qué queu te faço, nego? 53. – Bote ligeiro! 54. – Ma’de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado! 55. – Ó Tavinho, põe camisola pra dentro, assim mais pareces um
espantalho! 56. – I like to spend some time in Mozambique 57. – Arigatô, arigatô!) 58. Nós canto-falamos como quem inveja negros 59. Que sofrem horrores no Gueto do Harlem 60. Livros, discos, vídeos à mancheia 61. E deixa que digam, que pensem, que falem.
(Caetano Veloso. Velô. Polygram, 1984).
Nesta letra de canção, há muitas possibilidades de leitura. É provável que
o aluno do Ensino Médio de hoje não tenha ainda tido acesso a ela, por isso, é
fundamental que seja apresentada para que se compreenda mais completamente
a ideia expressa pelo autor com o verso (13): “Minha pátria é minha língua”.
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Todos os outros versos corroboram esta afirmação. Há diversas análises sobre
esta canção, e ela é bastante usada para exemplificar o conceito de
intertextualidade, no que se mostra muito boa.
No entanto, interessa muito mais a ideologia presente no texto, na sua
totalidade, no seu manifesto de brasilidade, de independência, de afirmação de
cultura própria e autônoma. No caminho de José de Alencar, da Semana de Arte
Moderna, de Mário de Andrade e de Oswald de Andrade, a letra de canção traz a
ideia de que a língua falada por um povo é a precursora de sua identidade.
Entendo que antes de ensinar as normas da língua, é primordial fazer com que o
aluno se identifique com ela, que saiba a origem e a história de formação dessa
língua, e que, como seu falante, domina-a. O aluno precisa abandonar a ideia de
ser apenas um espectador que se sente oprimido por regras que não entende.
O encaminhamento sugerido acima vai ao encontro, por exemplo, dos
objetivos do projeto do Museu da Língua Portuguesa16. Conforme informam seus
idealizadores, a ideia do Museu surgiu para mostrar a língua como elemento
fundamental e fundador da cultura; celebrar e valorizar a Língua Portuguesa,
apresentando suas origens, história e influências sofridas; aproximar o cidadão
falante de seu idioma, mostrando que ele é o verdadeiro “proprietário” e sujeito
modificador da Língua Portuguesa, e; valorizar a diversidade da Cultura
Brasileira. Uma visita on-line ao museu poderia fazer parte do percurso de leitura
dessa letra de canção.
A letra “Língua” é quase um roteiro para o alcance destes objetivos. Ao
apresentar Camões, poeta português autor de “Os Lusíadas”, epopeia portuguesa
de 1572, que pretende apresentar a grandeza e glória do povo português,
notadamente como navegadores e conquistadores; e ao afirmar que “gosta de
sentir roçar sua língua com a língua de Camões”, o autor faz referência explícita à
origem portuguesa da língua falada no Brasil. No entanto, ao mesmo tempo, já se
pode identificar a distinção entre as duas línguas, pois o roçar é o tocar de leve,
parcialmente, não integralmente, situação em que se encontra, hoje, o português
falado no Brasil, muito diferente do falado em Portugal, atualmente, e,
principalmente, do falado no tempo do poeta. De Camões vai para Guimarães
16 A descrição da missão do museu e outras informações podem ser encontradas em: www.museulinguaportuguesa.org.br/institucional.php. Acesso em jan. 2014.
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Rosa, romancista brasileiro, para quem as palavras existentes não eram
suficientes e, por isso, criou contos e romances repletos de neologismos,
alicerçados no jeito de falar do povo sertanejo, brincando com a língua, dando-lhe
novos contornos e sons.
Adiante, o autor sugere que se deixe que os “portugais morram a míngua”
e convoca a escola de samba Mangueira a falar, ou seja, a mostrar os usos da
língua em seus sambas-enredo, na festa popular máxima da cultura brasileira, o
carnaval. A Mangueira fala também com os instrumentos de sua bateria e é
nesse ponto da canção que, invocada, é ouvida, num entrelaçamento entre letra e
melodia. Diante deste exemplo, reforça-se a ideia do quanto é importante, ao
trabalhar com a letra de canção em sala de aula, apresentar também a versão em
áudio, para que a experiência seja completa. Os versos seguintes também se
referem ao carnaval, e o uso do neologismo sambódromo remete mais uma vez a
Rosa e à criatividade, ao constante movimento de renovação da língua.
Para o autor, o latim, origem do português ibérico e, por consequência, do
brasileiro, já é pó, dissolvido e misturado aos novos falares. “Flor do Lácio” é uma
referência direta ao poema de Olavo Bilac, no qual ele exalta a língua
portuguesa. A título de melhor precisão de análise, julga-se pertinente transcrever
o poema “Língua Portuguesa” de Olavo Bilac, com qual o autor-criador da letra de
canção dialoga. A referência ao poema de Bilac funciona como um respaldo à
orientação valorativa do autor-criador, como se a autoridade de um dos mais
famosos poetas referendasse sua visão.
Língua Portuguesa
1. Última flor do Lácio, inculta e bela, 2. És, a um tempo, esplendor e sepultura: 3. Ouro nativo, que na ganga impura 4. A bruta mina entre os cascalhos vela... 5. Amo-te assim, desconhecida e obscura. 6. Tuba de alto clangor, lira singela, 7. Que tens o trom e o silvo da procela, 8. E o arrolo da saudade e da ternura!
9. Amo o teu viço agreste e o teu aroma 10. De virgens selvas e de oceano largo! 11. Amo-te, ó rude e doloroso idioma, 12. Em que da voz materna ouvi: "meu filho!", 13. E em que Camões chorou, no exílio amargo,
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14. O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
As letras de canção “Língua” e “Língua Portuguesa” têm em comum, além
do objeto, a ideia de que longe de Portugal, a língua muda e adquire
características próprias, um “viço agreste”.
Na segunda estrofe de “Língua”, o autor refere-se ao falar dos paulistas e
destaca o falso inglês dos surfistas, pois estes falares identificam seus falantes, é
uma marca de distinção de outros brasileiros. Nessas passagens, ele não fala de
sotaques, mas de diferenças maiores como sintaxe e, no caso dos surfistas, de
um modo de falar que denuncia uma escolha, uma tribo: surfistas misturam ao
português palavras em inglês relacionadas ao esporte e vão além, modificando-
as, criando neologismos como craudeado (cheio, lotado), derivado da palavra
inglesa crowd (multidão). O autor retoma esta referência no verso 50.
No verso 21, há uma autorreferência na palavra velô, abreviação de
velocidade, para indicar o modo de cantar de Carmen Miranda. O choo choo da
letra está relacionado ao sotaque chiado da cantora que, apesar de portuguesa,
foi um ícone brasileiro nos Estados Unidos. É uma autorreferência por causa do
nome do compositor, Veloso, e também pela associação da imagem de Carmem
Miranda ao Tropicalismo, movimento cultural do qual ele foi um dos articuladores
na década de 70.
No verso seguinte, 22, ele se refere a Chico Buarque, cantor brasileiro, que
nos resgata, ou seja, é um cantor de fato brasileiro, cantando com o nosso
sotaque. Quando pede que Luanda nos explique, entra a história do Brasil e o
período colonial e escravagista, quando negros de variadas nações africanas,
notadamente Angola, são trazidos para o Brasil, influenciando o idioma com a
introdução de novas palavras. Já no verso 24, pode-se supor que o autor refere-
se à padronização do sotaque idealizado pela emissora Rede Globo, mais
especificamente aos apresentadores de telejornais nacionais, em que os
regionalismos são quase apagados em nome de uma uniformidade linguística.
Ser o lobo do lobo do homem pode ser entendido como um apelo para
sermos mais fraternais, contrariando a afirmação de Tomas Hobbes (1588-1679)
de que o homem é o seu pior inimigo (WARBUTON, 2013). Segundo Warburton,
para este filósofo inglês, sem um governo, não haveria sociedade, pois a
tendência do homem natural é ser egoísta e ansioso de ganhos pessoais, o que
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colocaria uns contra os outros. Há a repetição desta ideia no verso 44, em que se
lê: “Quero frátria”, num trocadilho com as palavras pátria e fraternidade.
As palavras em “ã” se repetem nos versos de 28 a 30, como recurso
estilístico, de sonoridade.
Os nomes citados, da jornalista Scarlet Moon de Chevalier, do poeta
Glauco Mattoso e do cantor Arrigo Barnabé são possivelmente homenagens, mas
também ótimos exemplos de nomes sonoros e fortes. Glauco Mattoso17, aliás,
não é um nome, mas um pseudônimo usado por Pedro José Ferreira da Silva,
numa alusão a doença que lhe causou a cegueira, o glaucoma.
Ao ironizar a afirmação de que só é possível filosofar em alemão18, no
verso 38, o autor contrapõe o falar e o compor (cantar): ideias incríveis devem ser
valorizadas pela arte, já que a prosa (da filosofia) estaria reservada a outras
línguas. No entanto, na mesma canção, há a afirmação (versos 9, 10 e 11) de
que a poesia (poemas) é superior à prosa, o que permite entender que não há
assim tanta vantagem no filosofar, segundo o autor. Ao se ouvir a canção, pode-
se perceber a ironia pela entonação do intérprete, num deboche claro que não
deixa dúvidas quanto à discordância pretendida.
A afirmação dada no verso 43 de que tem uma “mátria” e não “pátria”
parece indicar que a nação é mais feminina que masculina, além de permitir a
associação a uma falta de paternidade, de ilegitimidade, uma orfandade que será
superada pela aceitação e fraternidade, na instauração de uma “frátria”.
Nos dez versos seguintes, 47 a 57, há as referências aos modos de falar
de diversas regiões do país, ideia mais acentuada pela entonação do cantar. A
expressão canto-falamos, neo-verbo, licença poética, afirma que se tem inveja
dos negros do Harlem. Entende-se que o autor se refere ao Rap, ritmo nascido
nos Estados Unidos, justamente neste bairro que concentra a população afro-
americana e é centro de cultura negra. O Rap é mais falado que cantado, num
ritmo constante. A letra de canção “Língua” pode ser entendida como uma
tentativa de se aproximar deste gênero musical, não como melodia, mas como
uma canção recitada, mais que cantada. No Rap, o tema central é a afirmação da
17 Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_lit/index.cfm?fuseaction =biografias_ texto&cd_item=35&cd_verbete=5169. Acesso em jan. 2014. 18 Heidegger. Disponível em: http://antoniocicero.blogspot.com.br/2007/05/filosofia-e-lngua-alem.html. Acesso em jan. 2014.
86
negritude e da denúncia da discriminação racial. Em “Língua”, também se tem
esta afirmação de identidade nacional, de brasileiros afrodescendentes.
Para finalizar, duas referências a elementos culturais brasileiros: Castro
Alves, que cantou em seus versos, no poema “O livro e a América” (1870), ser
“bendito aquele que semeia livros a mancheia”. Na letra de canção, o autor
acrescenta novas versões de veículos culturais, como o vídeo e o disco. No
último verso, em uma afirmação de que reclamações sobre a evolução da língua
não diminuirá seu ritmo, um verso da canção “Deixa isso pra lá”, de Alberto Paz e
Edson Menezes, que fez grande sucesso na interpretação de Jair Rodrigues, no
álbum “Vou de samba com você” (1964), ecoa explicitamente. É interessante
notar que esta canção, a exemplo de “Língua”, é mais falada que cantada e
segundo consta no site oficial do cantor19, pode ser considerada uma precursora
do Rap brasileiro, tendo sido, inclusive, regravada em 1999, por Jair Rodrigues e
o grupo de Rap Camorra.
Pode-se perceber que esta é uma letra de canção que precisa ser
cuidadosamente analisada pelo professor antes de ser levada para a sala de
aula, pela riqueza de temas e informações que apresenta. Seu mote central,
“minha pátria é minha língua”, desenvolve-se ao longo das estrofes e é uma
ótima introdução ao tema.
Em um diálogo interessante e complementar, propõe-se, a seguir, um
trabalho de leitura com a letra da canção “Inclassificáveis”. Além do pressuposto
de que a língua é o amálgama que sedimenta a identidade e cultura de uma
nação, sua formação também é importante e são dados que caminham juntos. A
formação do povo brasileiro, por sua miscigenação, é complexa. Apresentar, em
sala de aula, este tópico, com estas canções, pode ajudar a levantar reflexões
sobre outros temas, como a inclusão e os preconceitos de diversos tipos.
3.3.2 Lendo a letra de canção “Inclassificáveis”
Ao trabalhar com a letra de canção “Inclassificáveis, também será preciso
resgatar informações históricas sobre o Brasil e o movimento imigratório e
migratório, o que acaba por favorecer um trabalho de pesquisa com os alunos
sobre suas próprias origens, de sua família e de como chegaram ao lugar onde
19 Disponível em: http://www.jairrodrigues.com.br/. Acesso em jan. 2014.
87
estão hoje. No entanto, por questão de objetivo, entende-se que, por ser uma
produção contemporânea e por trazer uma visão da formação do povo brasileiro
bastante disseminada e aceita no senso comum, a análise pode prescindir, neste
momento, de uma contextualização sócio-histórica preliminar detalhada. Dessa
forma, é possível fazer um estudo pautado na terceira ordem para o estudo da
língua, conforme sugerida por Volochinov/Bakhtin (2004 [1929]), qual seja, o
estudo dos elementos linguístico-discursivos.
Inclassificáveis
1. que preto, que branco, que índio o quê? 2. que branco, que índio, que preto o quê? 3. que índio, que preto, que branco o quê? 4. que preto branco índio o quê? 5. branco índio preto o quê? 6. índio preto branco o quê? 7. aqui somos mestiços mulatos 8. cafuzos pardos mamelucos sararás 9. crilouros guaranisseis e judárabes 10. orientupis orientupis 11. ameriquítalos luso nipo caboclos 12. orientupis orientupis 13. iberibárbaros indo ciganagôs 14. somos o que somos 15. inclassificáveis 16. não tem um, tem dois, 17. não tem dois, tem três, 18. não tem lei, tem leis, 19. não tem vez, tem vezes, 20. não tem deus, tem deuses, 21. não há sol a sós 22. aqui somos mestiços mulatos 23. cafuzos pardos tapuias tupinamboclos 24. americarataís yorubárbaros. 25. somos o que somos 26. inclassificáveis 27. que preto, que branco, que índio o quê? 28. que branco, que índio, que preto o quê? 29. que índio, que preto, que branco o quê? 30. não tem um, tem dois, 31. não tem dois, tem três, 32. não tem lei, tem leis, 33. não tem vez, tem vezes, 34. não tem deus, tem deuses, 35. não tem cor, tem cores, 36. não há sol a sós 37. egipciganos tupinamboclos 38. yorubárbaros carataís 39. caribocarijós orientapuias 40. mamemulatos tropicaburés
88
41. chibarrosados mesticigenados 42. oxigenados debaixo do sol
(Arnaldo Antunes; Ney Matogrosso. Inclassificáveis. Composição:
Arnaldo Antunes EMY Music, 2008.)
Em seus versos, encontram-se palavras conhecidas que se referem à
miscigenação, como crioulo e mulato, mas também junções a partir delas e de
outras (como gentílicos) e são criados neologismos que buscam ampliar a ideia
da mistura de etnias e nacionalidades e a impossibilidade de classificação do
povo brasileiro. O questionamento desta classificação se verifica já nos primeiros
versos e que são repetidos como parte do refrão, na negação da conhecida
trindade da formação do povo brasileiro: brancos, índios e negros, seguida pela
afirmação de mestiçagem que vai se ampliando a partir da palavra “mestiços” e
avança letra afora nomeando outros povos e nacionalidades que contribuíram
para a formação da população brasileira.
São citadas, na letra de canção, várias tribos de índios do território
brasileiro: Tupis, Guaranis, Carijós, Tapuias, Tupinambás.
Os dicionários da língua portuguesa fornecem as seguintes acepções para
as palavras que se referem à miscigenação e que são conhecidas e usadas. No
Dicionário Houaiss (2009), os termos caboclo, cariboca, mameluco e cafuso
encontram as seguintes definições:
Caboclo: 1. Mestiço nascido de índia e branco (ou vice-versa), fisicamente caracterizado por ter pele morena ou acobreada e cabelos negros e lisos. Cariboca: 1. Caboclo. Pardos: 1. de cor escura, entre o branco e o preto. Mameluco: 2. mestiço de branco com índio ou de branco com caboclo. Cafuso: 1. Que ou quem é filho de mulato e preta ou vice-versa. 2. Mestiço de pele muito escura ou negra e cabelos lisos e cheios.
Já para o termo sarará, o dicionário on-line Aurélio (2014) registra:
Sarará: s.m. e s.f. Mulato arruivado ou alvacento; Adj. Diz-se de mulato arruivado.20
20 Disponível em: http://www.dicionariodoaurelio.com/Sarara.html. Acesso em jan. 2014.
89
É interessante notar que, em geral, quando se fala da mistura de povos
que deu origem ao povo brasileiro, usa-se a cor do português, branco, e do
africano, negro, e ao índio não se atribui cor, mas a distinção da etnia. Certo é
que eles foram os primeiros a se misturarem, mas não se pode esquecer de que
outros povos para cá vieram e contribuíram com seus genes, e que são
identificados na letra de “Inclassificáveis”: os judeus,21 foragidos da Inquisição
católica, já no início da colonização, os italianos, espanhóis (ibéricos) e alemães
(os bárbaros); os orientais, a saber, chineses, japoneses e coreanos, além de
egípcios, ciganos e americanos.
As palavras “tupinamboclos” (tupinambá e caboclo), “crilouros” (crioulo e
louro), “guaranisseis” (guaranis e nisseis), “mamemulatos” (mamelucos e
mulatos), entre outras, trazem a compreensão de que a miscigenação está além
das combinações originais (branco, índios, negros), já alcançou dimensão
tamanha, tão grande e múltipla quanto o próprio território e tornou os brasileiros
filhos de todos os que para cá vieram e ficaram. É verdade que alguns imigrantes
se concentraram em comunidades fechadas, com pouca ou nenhuma interação,
além da comercial, com outros moradores. No entanto, esse isolamento já se
reduziu a grupos muito pequenos. Alguns desses agrupamentos deram origens a
cidades que, hoje, já crescidas, não perpetuam mais o isolamento, mas cultivam
tradições trazidas de seus países de origem.
Um exemplo de permanência de tradições de povos que vieram para o
Brasil é a Ocktoberfest, festa realizada nas cidades que surgiram a partir da
colonização dos imigrantes alemães, no sul do país. Outros dois exemplos: A
festa de Nossa Senhora da Aquiropita, do bairro paulista do Bixiga, de
colonização italiana, que atrai milhares de pessoas, e os Matsuris22, festas
populares celebradas pelas colônias japonesas por todo o país.
Um dos versos que melhor significam a adaptação na nova terra é verso 9,
com a palavra “judárabe”, união das palavras judeus e árabes, povos que vivem
em guerra constante no Oriente Médio e que aqui costumam ser pacíficos
vizinhos em áreas de comércio popular, como em São Paulo, na Rua 25 de
Março, e nos bairros Bom Retiro e Brás.
21 Relato sobre a imigração de judeus. Disponível em: http://www.ahjb.org.br/ahjb_pagina. php?mpg=03.01.00.00. Acesso em jan. 2014 22 Disponível em: http://br.noticias.yahoo.com/10-festas-japonesas-que-voc-n-o-pode-35200576.html. Acesso em jan. 2014.
90
O compositor também traz à tona a questão da religiosidade ao afirmar que
“Não há deus, há deuses”, pois com a mistura de povos, há também o
sincretismo religioso e a convivência de diversas religiões e crenças. O escritor
baiano Jorge Amado explorou o tema em seus romances com frequência23.
Esse movimento imigratório, iniciado na colonização, é um processo
ininterrupto e ainda hoje o Brasil recebe, em menor número, pessoas de nações
diversas. Os casos mais recentes são os americanos provenientes da Bolívia e
Venezuela, e os haitianos24 que, depois do terremoto de 2010, estão saindo de
seu país à procura de trabalho e novas oportunidades. Há ainda um movimento
menor e mais recente motivado pela crise econômica nos Estados Unidos e
Europa, que é a chegada de imigrantes com maior escolaridade e qualificação
profissional. Com a redução de oferta de empregos e baixa remuneração em
seus países, esses profissionais escolhem mudar para o Brasil para trabalhar em
multinacionais ou mesmo empresas nacionais de grande porte que ofereçam
vagas atraentes.25
Como no passado, crises econômicas no exterior e falta de mão de obra no
país se juntam para formar um quadro propício para a imigração. O tema da
imigração não pode, portanto, ser trabalhado em sala de aula apenas como fato
histórico passado, mas como história que se está vivenciando e que vai
influenciar e impactar, de algum modo, a vida dos brasileiros como ocorreu
anteriormente. Prova de que o assunto é atual e relevante é que foi tema da
redação do ENEM 201226: “O movimento Imigratório para o Brasil no século XXI”.
A letra de canção, ao lembrar que o povo brasileiro é resultado de
processos imigratórios, possibilita o trabalho em classe com o tema de uma
identidade nacional formada pela junção de culturas diversas, processo que ainda
está em andamento, cujo elemento mais visível é o aspecto linguístico. Ao criar
palavras que remetem à miscigenação, o compositor desvela a origem do
23 Disponível em: http://issuu.com/casadejorgeamado/docs/carolina_fernandes_calixto_-jorgeamadoeaidentidade. Acesso em jan. 2014. 24 Informações sobre o terremoto que atingiu o Haiti e é uma das causas da imigração para ao Brasil: http://oglobo.globo.com/mundo/tres-anos-apos-terremoto-haiti-ainda-esta-longe-de-recuperacao-7129836). Acesso em jan. 2014. 25 Artigo que trata do tema pode ser lido no site: http://www.brasileconomico.com.br/noticias/uma-nova-onda-de-imigracao_104356.html. Acesso em jan. 2014. 26 Disponível em: http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2012/caderno enem2012_dom_amarelo.pdf). Acesso em jan. 2014.
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brasileiro e, ao mesmo tempo, faz um convite à reflexão sobre questões
polêmicas e urgentes, como preconceito, aceitação e identidade. A ideia
expressa nos versos 21 e 36 de que “Não há sol a sós” remete à mesma ideia de
“frátria”, presente em “Língua”, e faz lembrar de que uma nação é composta por
mais de um elemento, e da interdependência existente numa sociedade. Por fim,
somos mestiços miscigenados, “mesticigenados” ao sol desta terra tropical.
3.3.3 Uma aproximação com a variedade linguística da Baixada Cuiabana
A miscigenação histórica geradora do povo brasileiro e as ocupações
territoriais por diferentes povos e grupos sociais refletem-se nas várias
manifestações linguísticas, mais conhecidas como variantes linguísticas do
português.
Uma dessas variantes é o falar cuiabano, linguajar presente historicamente
na cidade de Cuiabá e seu entorno, conhecido como Baixada Cuiabana. Em
razão de a autora deste trabalho ser professora da rede pública do estado de
Mato Grosso e, sendo este o lugar de produção deste estudo, entendeu-se ser
pertinente trazer para análise uma letra de canção de uma compositora que
estuda e divulga esta variante como forma de preservação deste falar e
fortalecimento da identidade linguística cuiabana.
Uma pesquisa nas árvores genealógicas dos alunos revelará certamente a
participação de sua família nestes movimentos de imigração e migração. Quem
são e de onde vieram os antepassados e como foram parar onde estão hoje?
Ao se tomar como exemplo a população de Cuiabá, tem-se um retrato, em
menor dimensão, do grande quadro brasileiro. Esta terra, habitada por índios e
conquistada por bandeirantes paulistas, foi aos poucos recebendo os negros
escravizados para trabalhar nos garimpos. Isolada geograficamente no centro do
país, foi “redescoberta” pelo Estado brasileiro na década de 70 e recebeu levas
de migrantes, principalmente agricultores da região Sul, atraídos até aqui pelo
baixo preço das terras e pelas promessas de incentivos feitas pelo governo
militar. “Os pau-rodados”, como são chamados os migrantes na região da
Baixada Cuiabana, ocuparam vastas extensões de terras no Mato Grosso,
fundaram novas cidades e aumentaram em muito a população da cidade.
92
As muitas diferenças culturais trazidas passaram a influenciar e também a
incomodar os moradores o que fez surgir um movimento de valorização da cultura
e história cuiabana denominada “Cuiabania”27. Um dos valores que se buscou
preservar pelo movimento foi o falar cuiabano, com seu vocabulário e expressões
peculiares e os sons chiados do “CH”, /tʃ/, e “G”, /dʒ/. Apesar da resistência, este
falar não é predominante na cidade, ficando restrito mais às áreas ribeirinhas e
da Baixada Cuiabana, região que compreende quatorze municípios, entre eles
Barão de Melgaço e Poconé. A escolarização e a forte influência da mídia
também contribuíram para este baixo número de falantes do cuiabano na área
urbana. Como exemplo do movimento de afirmação da identidade linguística,
pode-se citar o Coral Mato Grosso, organizado por Sônia Mazetto, que tem por
objetivo divulgar a cultura e o falar cuiabano, usando para isso canções regionais
como esta, a seguir, “Cuiabano de chapa e cruz”:
I
1. Sou gente boa, cuiabano de chapa e cruz 2. O chê e gê não me envergonho de falá 3. Num tô somano se o povo ri de mim 4. Eu sou feliz , trabalhadô e sei cantá. 5. Eu escancaro todas as porta de m’ea casa 6. Que não é um bangalô, mas também não é chinfrim 7. Eu escancaro as janelas do meu peito 8. Pra aquela gente que também gostá de mim. 9. Num sei s’ocê sabe, caí no tijuco 10. Agora o qu’esse, vote, figa, uai é? 11. Vige m’ea Nossa! Que arrumação! 12. Num há de vê, esse minina, o tropé. II 13. Horrô de gente foi tiçano pro bolicho 14. Capengano e bambeano que foi um cancan de cuia 15. Bebero tanto, foi um pega pra capá. 16. Chico priscô num aranzé sem fazê buia. 17. Larga mão de bestera, agora quando! 18. Vuncê num sabe, esse minina, o valô 19. Num há de vê que nossa terra 20. É tão querida, dá chilique, dá calô. 21. Gosto muito de brinca 22. Cuiabano não tem rixa 23. Quem importa o rabo intorta 24. Quem cuchicha o rabo espicha
(VILARINHO, E.M.M. CD Coral de Mato Grosso canta Edna Maciel Vilarinho, 2003.)
27 Uma breve referência ao movimento está disponível em: http://casasilvafreire.org.br/A_Casa. Acesso em jan. 2014.
93
Esta letra de canção traz a essência do movimento de preservação do falar
da região, mas não representa, de fato, o falar do morador urbano e escolarizado.
Há que se somar, nesta equação, o fato de que muitos moradores, apesar de
nascidos na cidade ou no estado, têm por raiz familiar outros estados e os falares
e sotaques dessas regiões como, por exemplo, os gaúchos, paulistas e cariocas.
Por outro lado, é fácil a identificação de expressões como “chapa e cruz” e “agora
quando”, ainda usadas pela população e sempre trazida à luz por peças
publicitárias produzidas na região e por artistas como, atualmente, a dupla “Nico
e Lau”28 que interpretam personagens representantes da cultura cuiabana.
Também o uso da representação da oralidade na escrita permite ao aluno
reconhecer o falar popular, como a eliminação da marca do infinitivo nos verbos
(r), como no verso 2 (falá) e da letra /d/ nas sílabas finais dos verbos conjugados
no presente do indicativo, no verso 14 (capengano e bambeano).
Ainda que, provavelmente, não faça parte do repertório dos estudantes do
ensino médio da cidade de Cuiabá e região, esta letra de canção pode ser
colocada no conjunto de canções para o trabalho com a identidade linguística,
justamente por seu objetivo expresso de marcar e preservar um modo de falar
regional. A letra apresenta aspectos históricos e mesmo sociais, considerando
que, mesmo em número inferior, ainda há falantes no ambiente escolar, sejam
moradores descendentes dos pioneiros, sejam falantes que migram das cidades
da Baixada Cuiabana para a capital.
Assim, considera-se adequado o conjunto destas três letras de canção
para trabalhar o tema identidade linguística. Parte-se da noção nacional, com a
origem da língua portuguesa “Língua”, passa por sua evolução promovida pela
inclusão de novas culturas, com a imigração “Inclassificáveis”, e chega-se ao
local, com a identificação de expressões e modo de falar regional “Cuiabano de
Chapa e Cruz”.
As atividades sugeridas são possibilidades de leitura e não pretendem
esgotar os textos. Há, obviamente, rastros ideológicos e outros aspectos que
podem ser visualizados e tratados em sala de aula a partir de outros pontos de
28 Nico e Lau são personagens criados pelos atores Lioniê Vitório e J. Astrevo, em 1995, como representantes de tipos mato-grossenses da Baixada Cuiabana. Disponível em: www.nicoelau.com.br/. Acesso em jan. 2014.
94
vista e posições ideológicas, cabe ao professor, em sua liberdade de ação e
planejamento em sala de aula, bem como de acordo com suas próprias condições
de trabalho e formação, decidir por quais caminhos percorrer.
95
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao finalizar este trabalho, quero retornar às perguntas que nortearam esta
pesquisa, e que, suponho, vão continuar presentes em minha mente e prática
profissional sempre:
1. Do ponto de vista teórico, o gênero discursivo letra de canção apresenta-
se um bom material para ensinar leitura em língua materna?
2. Como usar a letra de canção para o trabalho em sala de aula de modo a
ajudar na formação de leitores críticos e autônomos?
A primeira pergunta tem por resposta a certeza de que sim, é um bom
material, desde que não seja apenas um acessório, mas seja considerado como
um objeto de ensino em si. Este gênero discursivo conta com vários pontos
positivos, a começar por sua grande variedade de estilos e quantidade de
material disponível, facilitando o trabalho de pesquisa e seleção. É um texto com
o qual o estudante tem familiaridade, pois reconhece sua função e esfera de
circulação. Mesmo quando se trabalha com letras de canções mais antigas, ou de
estilos musicais diferentes daqueles ouvidos pelos alunos, ainda assim eles
podem reconhecer o gênero, quando apresentado como tal.
Também se pode acrescentar sua importância como registro social,
histórico e político. O pensamento e vários aspectos de uma sociedade podem
ser vislumbrados quando estudadas as letras de canções. Outro fator a ser
considerado é que a letra de canção é uma manifestação artística das mais
democráticas. Como afirma o compositor Pedro Luís: “basta um papel e uma
caneta”29, e acrescenta-se, aqui, e todo um contexto, para a criação de um texto.
Não se pode afirmar que todas as composições sejam dignas de gravação, mas
assim também como em outros campos artísticos, elas atendem ao público e
momento de sua criação. Não é preciso erudição para que a poesia seja
concretizada numa letra de canção: basta pensar nos sambas de Ataulfo Alves e
Cartola, por exemplo. Para lembrar um caso emblemático da literatura brasileira,
cita-se Patativa do Assaré, poeta do sertão nordestino que, mesmo antes de sua
29 Verso da canção “Fazê o que” do Cd: Vagabundo Ao vivo. Ney Matogrosso e Pedro Luís e a Parede. Universal, 2006.
96
alfabetização, fazia poemas e sem poder registrá-los, memorizava-os. Eis um
trecho do poema Cante lá que canto eu cá:
1. Poeta, cantô da rua,
2. Que na cidade nasceu,
3. Cante a cidade que é sua,
4. Que eu canto o sertão que é meu.
5. Se aí você teve estudo,
6. Aqui, Deus me ensinou tudo,
7. Sem de livro precisa
8. Por favô, não mêxa aqui,
9. Que eu também não mexo aí,
10. Cante lá, que eu canto cá.
11. Você teve inducação,
12. Aprendeu munta ciença,
13. Mas das coisa do sertão
14. Não tem boa esperiença.
(Patativa do Assaré. Cante lá que eu canto Cá. Filosofia de um trovador nordestino. Editora Vozes: Petrópolis, 1982).
Também as condições atuais de veiculação favorecem a divulgação do
trabalho, seja por meio da internet, seja por meio de gravação independente de
Cds.
Já para a segunda questão, pretende-se também ter uma resposta positiva,
com a apresentação dos percursos de leitura, não como uma resposta definitiva e
única, mas como uma contribuição ao modo de pensar a leitura e o ensino da
língua materna.
Nesta trajetória, buscou-se o embasamento do arcabouço teórico dos
conceitos dialógicos de Bakhtin e o Círculo, bem como de alguns de seus
comentadores. Também foram trazidos para este diálogo as vozes de autores
que se ocuparam em pensar a educação e fizeram muito para que ela evoluísse,
como Freire (2009) e Soares (2006). Permitiu-se trazer, na discussão teórica
sobre o gênero letra de canção e nas sugestões de leitura dessas letras, as
vozes dos próprios compositores, pois nada mais justo ouvir o que pensam
aqueles que fazem a letra de canção, que, neste trabalho, foi o gênero escolhido
para ser levado para a sala de aula.
97
Os percursos de leitura elaborados para este trabalho procuraram atender
aos critérios dados pelas orientações curriculares do Ministério da Educação para
este segmento escolar que é o ensino médio.
Na construção deste trabalho, várias letras de canções, trechos ou
composições inteiras, foram utilizadas como argumentos ou exemplos para a
ratificação das ideias desenvolvidas, não foram consideradas parte do corpus
usadas para os percursos, não sendo, portanto, necessário analisá-las como foi
feito com as demais.
Na introdução, as questões norteadoras da pesquisa foram apresentadas,
além da metodologia empregada para seu desenvolvimento e como foram
selecionados os textos a serem analisados.
No capítulo 1, foram apresentados os conceitos teóricos de base
bakhtiniana que embasaram esta pesquisa, além de trazer a classificação
“gêneros poéticos”, defendidos por Padilha (2005).
No segundo capítulo, definiu-se o gênero “letra de canção”, defendendo
sua inscrição entre os gêneros poéticos e seu ingresso na sala de aula como
objeto de ensino de língua portuguesa e importante recurso no trabalho
pedagógico. Também, neste capítulo, tratou-se de leitura, discorrendo conceitos
essenciais para este trabalho como habilidades de leitura e letramento, que
contribuíram para formular apreciações sobre como mudar o enfoque da escola
no tratamento dado à leitura.
No capítulo de análise, o terceiro, construiu-se uma proposta didática, aqui,
nomeada de percurso de leitura. Nele, sugeriu-se um encaminhamento de
trabalho com a leitura do gênero “letra de canção”, com dois percursos de leitura,
com análises das letras de canção e sugestões de atividades a serem
desenvolvidas a partir delas, tratando o texto como objeto de estudo. Para
realizar uma articulação coerente com a teoria assumida, os conceitos
bakhtinianos de gênero, condições de produção, ideologia, interdiscursividade e
entonação das canções foram considerados nestes percursos.
Assim, ao fim deste trabalho, pretendeu-se ter respondido
satisfatoriamente às questões postas no seu início, e ter contribuído com uma
reflexão sobre leitura e ensino de língua materna como um rico e interessante
gênero poético popular.
98
Abandonando, neste último instante da escrita, o padrão acadêmico, formal
e impessoal, tomo a liberdade de incluir uma reflexão pessoal e autoral, para
afirmar que este trabalho é também resultado de reflexões sobre minhas práticas
de ensino e do diálogo com as teorias sobre linguagem. Minha expectativa é que
este exercício de pensar o fazer pedagógico, e renová-lo com as contribuições de
outros, constitua-me numa professora melhor, e que, de algum modo, possa
contribuir para a discussão sobre o ato de ler na escola e a formação de leitores
críticos e autônomos, e, de modo geral, sobre o processo de ensino-
aprendizagem de língua portuguesa brasileira.
99
REFERÊNCIAS
ALVES, Castro. O livro e a América. In: Espumas Flutuantes. Poesias Completas. São Paulo: Ediouro, s.d. Disponível em >http://www.bibvirt.futuro.usp.br. Acesso em: jan. de 2014. ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro Enigma. 10ª Ed: RJ. Editora Record, 1995. BAKHTIN, M. [1952-1953]. Os gêneros do discurso. In: Estética da Criação Verbal. Trad. de Paulo Bezerra, São Paulo: Martins Fontes, 2003a.
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