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Análise de Investimentos Prof. Isidro LEITURA COMPLEMENTAR # 7 O colapso do Lehman Brothers completa meia década no dia 15, mas as marcas da crise financeira que então conheceu seu auge continuam evidentes, nos EUA e no mundo. Um dos desdobramentos mais importantes para o Brasil foi a "guerra cambial", que agora parece próxima do fim, com a recuperação da economia americana. Mas as incertezas que perduram no cenário internacional provocaram a desvalorização do real, o aumento dos juros negociados no mercado e a deterioração das expectativas para a inflação e o crescimento econômico. "Vencemos a guerra cambial", ironiza um economista do governo. Mas o Brasil sofre de novo quando o conflito vai terminando. "Alguém está feliz com isso?" UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE ECONOMIA, ADMINISTRAÇÃO, ATUÁRIA E CONTABILIDADE DEPARTAMENTO DE ADMINISTRAÇÃO

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Análise de Investimentos Prof. Isidro LEITURA COMPLEMENTAR # 7

O colapso do Lehman Brothers completa meia década no dia 15, mas as marcas da crise financeira que então conheceu seu auge continuam evidentes, nos EUA e no mundo. Um dos desdobramentos mais importantes para o Brasil foi a "guerra cambial", que agora parece próxima do fim, com a recuperação da economia americana. Mas as incertezas que perduram no cenário internacional provocaram a desvalorização do real, o aumento dos juros negociados no mercado e a deterioração das expectativas para a inflação e o crescimento econômico. "Vencemos a guerra cambial", ironiza um economista do governo. Mas o Brasil sofre de novo quando o conflito vai terminando. "Alguém está feliz com isso?"

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

FACULDADE DE ECONOMIA, ADMINISTRAÇÃO, ATUÁRIA E CONTABILIDADE DEPARTAMENTO DE ADMINISTRAÇÃO

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Marca de uma crise global Há cinco anos, a falência do Lehman Brothers empurrou a economia mundial para uma tormenta que pode estar longe de terminar.

Lehman, 15/9/2008: crise começou de fato em meados de 2007, com os problemas no mercado de hipotecas de alto risco.

O colapso do Lehman Brothers completa meia década no dia 15, mas as marcas da crise que conheceu o seu o auge com a falência do banco de investimento em 2008 continuam evidentes na economia americana - e também na mundial. O sinal talvez mais eloquente é o nível dos juros básicos nos principais países desenvolvidos, que seguem no chão. Nos Estados Unidos, a taxa básica está próxima de zero desde dezembro de 2008, indicação clara da fragilidade da recuperação da atividade econômica. O desemprego segue em níveis elevados, especialmente na Europa, mas também nos EUA, onde ainda há 2 milhões de postos de trabalho a menos do que no começo de 2008. O sistema financeiro americano, por sua vez, está em melhor forma que o europeu e muito menos frágil do que no ápice das turbulências, embora ainda haja questionamentos sobre a real solidez dos bancos, que seguem emprestando pouco.

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A crise começou de fato em meados de 2007, com os problemas no mercado de hipotecas de alto risco, o chamado subprime. Foi o início do estouro da bolha imobiliária americana, alimentada por juros baixos demais e falta de regulação do sistema financeiro. Mas tudo piorou, e muito, depois da quebra do Lehman Brothers. "Virtualmente, toda a discussão sobre a crise financeira divide a história em duas épocas: 'antes do Lehman' e 'depois do Lehman'", diz o ex-vice-presidente do Federal Reserve Alan Blinder no livro "After the Music Stopped", publicado neste ano.

Em março de 2008, o Fed tinha facilitado a compra do Bear Stearns pelo J.P. Morgan. No começo de setembro, o governo americano tinha assumido o controle das agências de financiamento imobiliário Fannie Mae e Freddie Mac. Com esses precedentes, a expectativa generalizada era de que outras instituições em apuros também seriam resgatadas. Não foi o que ocorreu no caso do Lehman.

A ideia do governo americano era encontrar uma solução privada para o banco, sem envolvimento de dinheiro do contribuinte. Então secretário do Tesouro, Henry Paulson disse que não queria mais ser chamado de "Sr. Resgate" (Mr. Bailout, em inglês). Uma negociação para o Korean Development Bank investir capital no Lehman fracassou. As tentativas de venda para o Bank of America e para o inglês Barclays tampouco deram certo. Como resultado, o Lehman entrou com um pedido de concordata em 15 de setembro, agravando ainda mais a crise, que passou a ter uma dimensão verdadeiramente global, segundo Blinder.

O presidente do Fed, Ben Bernanke, diria mais de uma vez que não havia uma saída legal para ajudar o Lehman, uma vez que o banco de investimento não teria garantias suficientes para obter um empréstimo do banco central americano, tese vista com ceticismo por muitos analistas. "Eles tomaram várias medidas dúbias do ponto de vista de autoridade legal o ano inteiro. Quem os processaria?", perguntou, na época, o codiretor do Centro de Pesquisa Econômica e de Políticas, Dean Baker.

Classificada como um "erro horrendo" pela então ministra de Finanças da França, Christine Lagarde, hoje diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), a decisão de não resgatar o Lehman logo se mostrou catastrófica. Em 16 de setembro, o Fed, que não salvara o Lehman na véspera, injetou US$ 85 bilhões na AIG, a maior seguradora dos EUA, assumindo uma companhia que não estava sob a sua regulação. Mais antigo fundo de curto prazo ("money market") do país, o Primary Reserve Fund, que havia comprado mais de US$ 700 milhões em dívidas de curto prazo do Lehman, suspendeu os saques naquele dia.

Nos dias e semanas seguintes, o caos tomou conta do mercado financeiro e da economia. Com um acesso cada vez mais difícil a fontes de financiamento, os bancos passaram a reduzir linhas de crédito e a exigir mais garantias. Houve uma corrida aos fundos de curto prazo e um congelamento do mercado de "commercial papers", instrumento usado por muitas empresas para financiar necessidades de curto prazo, como ressalta o professor Laurence Ball, da Universidade Johns Hopkins. Os mercados de ações despencaram, o crédito teve uma contração violenta, levando consumidores e empresas a parar de gastar e investir, derrubando a atividade econômica. Entre agosto e dezembro de 2008, quase 2,5 milhões de empregos foram destruídos nos EUA. Nas palavras de Blinder, "a seca abrupta de crédito, tanto por parte de bancos como pelo chamado sistema bancário paralelo, em combinação com a maciça destruição de riqueza em forma de imóveis, ações e títulos, produziu o que poderia ser esperado: menos crédito, menos consumo e uma recessão violenta".

Em seu livro, Blinder conta que o Lehman estava abarrotado de títulos relacionados a hipotecas, além de ter até mesmo prédios de escritórios e shopping centers. Depois da venda do Bear Stearns para o J.P. Morgan em março, com a ajuda do Fed, o banco entrou na mira dos

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investidores e passou a buscar capital. Em junho, conseguiu levantar US$ 15 bilhões em ações preferenciais e dívidas de longo prazo, mas não era o suficiente. Segundo Blinder, a liquidez da instituição ainda dependia de empréstimos de curto prazo em que papéis lastreados em hipotecas eram dados como garantia "A mesma estratégia que tinha afundado o Bear Stearns", nota Blinder, professor da Universidade de Princeton.

A falta de regulação e supervisão teve um peso fundamental na crise. "Em 2006 e 2007, todos os grandes bancos de investimento tinham se tornado hedge funds disfarçados", como resume o jornalista da "The New Yorker" John Cassidy, no livro "How the Markets Fail". Aproveitando-se da bolha de crédito, levantavam enormes quantidades de dinheiro no curto prazo, usando para financiar investimentos de longo prazo, como títulos hipotecários e derivativos de vários tipos, diz Cassidy. "O Bear Stearns e o Lehman tinham alavancagem superior a 30 por um. Com isso, uma queda de meros 4% no valor dos ativos da empresa poderia fazer evaporar a base de capital inteira." Houve também um grande crescimento de operações fora dos balanços das instituições financeiras - instrumentos como os chamados "conduits" acabaram por acumular grandes estoques de títulos lastreados por hipotecas.

Em entrevista a Cassidy, Bernanke admitiu ter errado em sua avaliação de que a crise do subprime seria limitada. "A relação causal entre o problema imobiliário e o sistema financeiro mais amplo era muito complexa e difícil de prever", afirmou o presidente do Fed. O total de dívidas hipotecárias nos EUA chegava a US$ 14 trilhões, com o segmento de alto risco respondendo por US$ 2 trilhões, uma fração não muito significativa. O potencial de dano, contudo, foi muito maior do que sugeriam as avaliações do Fed.

Se pecou por não ver o potencial de estragos da crise das hipotecas, Bernanke conseguiu evitar que nova Depressão se instalasse nos EUA

A gigante de seguros AIG, por sua vez, foi resgatada pelo Fed, enquanto as agências de financiamento imobiliário Fannie Mae e Freddie Mac foram encampadas pelo governo. O Washington Mutual foi parar nas mãos do J.P. Morgan, e o Wells Fargo comprou o Wachovia.

"As falências ou quase falências de instituições veneráveis como Bear Stearns, Lehman Brothers, Merrill Lynch, Wachovia, Citigroup, Bank of America e outras podem ser ligadas, direta ou indiretamente, a concentrações excessivas de riscos relacionados a hipotecas", escreveu Blinder, que ressalta como a crise mudou a face do sistema financeiro americano, ao analisar o que ocorreu com as 14 principais instituições financeiras do país entre 2007 e 2009. Dos cinco maiores bancos de investimento, o Lehman Brothers quebrou, o Bear Stearns foi comprado pelo J.P. Morgan e o Merrill Lynch foi absorvido pelo Bank of America. Goldman Sachs e o Morgan Stanley, que enfrentaram uma corrida bancária logo depois da quebra do Lehman, foram convertidos em holdings bancárias, o que lhes garantiu acesso a recursos do Fed, ao mesmo tempo em que ficaram submetidos a uma supervisão e a uma regulação mais rigorosas.

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Para completar, o Citigroup foi resgatado, com o Tesouro ficando com uma fatia de 40% do capital do banco.

Depois da quebra do Lehman, o Tesouro e o Fed adotaram medidas mais drásticas para enfrentar a crise no sistema financeiro e evitar o colapso da economia. O governo pediu ao Congresso a aprovação de um programa de US$ 700 bilhões para compra de ativos tóxicos, cujos recursos também foram usados para injetar capital nos bancos, ainda que não fosse o seu propósito inicial. Apesar de muito criticado, o chamado Troubled Asset Relief Program (Tarp) foi muito bem-sucedido, na visão de Blinder. O relatório mais recente do Tesouro americano, de agosto, diz que dos US$ 421 bilhões de recursos do Tarp efetivamente desembolsados mais de 95% já foram recuperados.

Se pecou por não ver o potencial de estragos da crise das hipotecas de alto risco e por não resgatar o Lehman Brothers, Bernanke conseguiu evitar que uma nova Depressão se instalasse nos EUA. Estudioso da crise dos anos 1930, ele fez o possível para repetir o erro cometido pelos dirigentes do Fed naquela época, que permitiram uma contração violenta da oferta de dinheiro na economia, levando a uma recessão monstruosa, marcada por queda acentuada do PIB e a uma deflação prolongada. Em dezembro de 2008, os juros foram reduzidos para perto de zero, e aí permanecem desde então. No momento, o Fed promove a terceira rodada de compras de ativos (o chamado afrouxamento quantitativo) para manter baixas as taxas de longo prazo. Com essa política de aquisição de títulos do Tesouro e de papéis lastreados em hipotecas, o balanço do Fed hoje supera US$ 3,6 trilhões.

Funcionária do Lehman no dia do anúncio da falência: decisão do governo americano de não resgatar a instituição financeira logo se mostrou catastrófica

Pesquisador sênior do Peterson Institute of International Economics, Edwin Truman diz que a política monetária tem tido um papel bastante positivo. "Ela não foi capaz de mudar tudo, mas iniciou e sustentou a recuperação da atividade econômica", observa Truman, que passou pelo Fed e pelo Tesouro. Para complicar a tarefa do Fed, a política fiscal tem sido contracionista, lembra ele. Em 2009, foi aprovado o pacote de estímulo fiscal de US$ 787 bilhões, mas as

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escaramuças entre republicanos e democratas sobre a condução das contas públicas nos últimos anos têm levado a uma redução significativa do déficit público, com corte de gastos e aumento de impostos.

A recuperação da economia americana no pós-Lehman tem sido decepcionante, como fica evidente no desempenho do mercado de trabalho. "Há ainda milhões de pessoas sem emprego, sem casa e que tiveram de largar a faculdade, porque não podem pagar os cursos", afirma Ball, da Johns Hopkins. Em janeiro de 2008, os EUA tinham um pouco mais de 138 milhões de empregos, segundo estatísticas que excluem o setor agropecuário. Em fevereiro de 2010, o número bateu em 129,3 milhões, no fundo do poço pós-crise. A partir de então, o emprego tem crescido, mas em julho deste ano os postos de trabalho somavam 136 milhões - ou seja, 2 milhões a menos que no começo de 2008.

Nas contas de Gary Burtless, do centro de estudos Brookings Institution, faltam entre 7 milhões e 7,5 milhões de vagas para o país voltar ao pleno emprego, considerando nessa conta também a população que entrou no mercado de trabalho desde o começo da recessão. A taxa de desemprego, hoje, está na casa de 7,5%, um número ainda alto, que caiu da casa dos dois dígitos atingida em outubro de 2009 em parte porque muitos americanos deixaram de procurar emprego.

Para Truman, a recuperação da economia americana é frágil porque retomadas que se seguem a recessões associadas a crises financeiras são de fato mais fracas. Os consumidores, por exemplo, ficaram muito endividados e relutavam em assumir novas dívidas. Com isso, o aumento do emprego é inevitavelmente mais lento.

Ball vê outro problema a retardar a recuperação - os juros básicos próximos de zero, o que impede o Fed de colocar a taxa real (descontada a inflação) no nível necessário para acelerar a retomada. Em estudo apresentado em agosto na conferência de Jackson Hole, em Wyoming, promovida pelo Fed de Kansas City, Robert Hall, da Universidade de Stanford, observou que, com os juros básicos em torno de 0,1% e uma inflação em 12 meses na casa de 1,8%, a taxa real está negativa em 1,7%.

"Isso ainda é bastante acima do nível de aproximadamente -4% que faria que a demanda se igualasse aos níveis normais da oferta", escreveu ele. Em resumo, segundo Hall, a taxa real teria que ser bem mais negativa para eliminar a ociosidade de recursos na economia. Com os juros

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nominais próximos de zero, há limitações para a política monetária, o que leva o Fed e outros bancos centrais a usar medidas não convencionais, como as compras de títulos do Tesouro e papéis lastreados em hipotecas.

Uma das consequências da política monetária ultraexpansionista adotada pelos BCs dos países desenvolvidos foi o forte aumento da liquidez internacional nos últimos anos. Em Jackson Hole, Lagarde disse que desde 2008 os fluxos líquidos para países emergentes atingiram US$ 1,1 trilhão, muito acima dos US$ 470 bilhões que seriam esperados se não houvesse a adoção dessas medidas pelo Fed e outros bancos centrais. Esse fluxo provocou forte valorização das moedas emergentes e de ativos de países emergentes.

Nos últimos meses, entretanto, a tendência se inverteu, com a perspectiva de que o Fed poderá começar a reduzir o ritmo mensal das compras de ativos, hoje em US$ 85 bilhões por mês. O real e outras moedas de países em desenvolvimento sofreram desvalorizações significativas, num sinal claro de que mesmo pequenas mudanças na política monetária com que o mundo se habituou depois da quebra do Lehman Brothers deverão ter efeitos não desprezíveis. Os juros básicos, porém, ainda devem ficar próximos de zero por bastante tempo.

A situação do sistema financeiro americano, por sua vez, é hoje bem mais saudável do que na Europa, depois das injeções de capital com recursos do Tarp e dos testes de estresse promovidos pelo Fed. "Isso não quer dizer, porém, que o que foi feito é suficiente", pondera Truman. O volume de empréstimos realizados pelos bancos, por exemplo, ainda é fraco.

Para Ball, o ideal seria que a legislação exigisse requerimentos de capital mais elevados para os bancos, para reduzir os riscos. Ele também vê com desconforto o tamanho gigantesco das instituições. Com isso, o problema dos bancos "grandes demais para quebrar" continua não resolvido.

De acordo com Ball, os esforços para aumentar o rigor da regulação do sistema financeiro, com a aprovação da lei Dodd-Frank, ainda são insuficientes. Parte da legislação, por exemplo, não entrou em vigor, como a chamada regra de Volcker (em referência ao ex-presidente do Fed Paul Volcker), que proíbe os bancos de fazer operações especulativas com o seu capital e ter fundos de hedge e de curto prazo. Por essa visão, o poder de Wall Street, se não é tão forte como antes do colapso do Lehman, permanece grande o suficiente para impedir a aprovação e aplicação de leis mais rigorosas.

O Brasil pós-Lehman Brothers

O ministro da Fazenda, Guido Mantega, ouviu a expressão "guerra cambial" pela primeira

vez no começo de 2010, durante uma reunião de sua equipe sobre a conjuntura internacional. Países asiáticos, como Coreia do Sul e Taiwan, haviam adotado medidas de controle de capital para conter a valorização de suas moedas, provocada pela política extraordinariamente expansionista de economias avançadas, sobretudo Estados Unidos. Um auxiliar de Mantega alertou que a estratégia jogava o problema no colo de outros países, como o Brasil, que já enfrentavam dificuldades para lidar com fluxos gigantescos de capitais. Seria necessário o governo reagir e adotar suas próprias medidas de controle de capitais e intensificar a compra de dólares para as reservas internacionais. Nessa guerra cambial, porém, todos sairiam perdendo.

Mantega guardou para si a expressão e, meses depois, decidiu usá-la num discurso na Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), em setembro de 2010. "O Brasil vive hoje uma guerra cambial internacional", disse Mantega. "Diversos países estão adotando medidas para desvalorizar suas moedas." A declaração do ministro teve registro discreto na imprensa brasileira,

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mas ganhou a manchete do dia seguinte do "Financial Times", tornando-se um dos principais temas da reunião de primavera do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, que naquele ano foi realizada em Washington.

Na Fazenda, Guido Mantega tomou decisões de ajuste, pelos lados fiscal e do crédito, vistas no Banco Central como em conflito com a política monetária mais adequada

A guerra cambial é, para o Brasil, um dos desdobramentos mais importantes da crise do mercado imobiliário americano, cujo marco é a quebra do Banco Lehman Brothers, em setembro de 2008. O turbilhão que se seguiu, com desdobramentos que chegam até hoje, influiu na política macroeconômica brasileira, até então sustentada num maior grau de pureza do regime de metas de inflação, sistema de câmbio flutuante e superávits primários. A política fiscal passou a ser um instrumento anticíclico; intensificaram-se as intervenções no mercado de câmbio; e o intervalo de tolerância do regime de metas de inflação foi usado com frequência para acomodar pressões nos índices de preços.

Economistas do governo ouvidos pelo Valor, alguns dos quais pediram anonimato para falar sobre assuntos que ainda estão em pauta, afirmam que, na essência, não houve mudança - apenas foi usada a flexibilidade de cada uma das bases do tripé de política econômica para lidar com os desafios sem precedentes criados pela mais grave crise econômica mundial desde a Grande Depressão. "Como em qualquer jogo, o técnico tem que adaptar o esquema tático à partida que

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está disputando", afirma o diretor de assuntos internacionais do Banco Central, Luiz Awazu Pereira. Dentro do governo, ele é um dos que mais têm se dedicado a estudar, com rigor acadêmico, os desdobramentos da crise internacional sobre o Brasil. "Não houve mudança no arcabouço macroeconômico", sustenta o secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Márcio Holland, um dos formuladores das políticas adotadas nos últimos anos.

Algumas das medidas tomadas depois do ápice da crise já circulavam no governo, apenas como ideias, desde que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumiu seu primeiro mandato. A proposta de adotar uma política fiscal anticíclica foi levantada por Mantega pela primeira vez em 2003, quando era ministro do Planejamento. Mas foi descartada pelo então ministro da Fazenda, Antônio Palocci, para quem a prioridade do novo governo deveria ser conquistar a confiança do mercado financeiro com um compromisso claro de redução do endividamento público, bem alto na época. Com a crise causada pela quebra do Lehman Brothers, ganhou corpo no governo a proposta de expandir gastos públicos para combater a desaceleração econômica que vinha pela frente.

Num primeiro momento, entre setembro e novembro de 2008, a preocupação da equipe econômica foi adotar medidas para assegurar oferta de liquidez no mercado, em reais e em dólares, e assim evitar que uma crise se alojasse no centro do sistema financeiro. Fizeram parte do cardápio soluções não convencionais, como empréstimos com as reservas internacionais. Fazenda e BC redigiram juntos algumas medidas provisórias, que não precisaram ser editadas, como uma que incluía a possibilidade de o Tesouro Nacional garantir os depósitos bancários.

Num segundo momento, quando estatísticas divulgadas pelo IBGE em dezembro apontaram uma aguda contração, de 1,7%, na produção industrial de dois meses antes, a prioridade passou ser evitar uma espiral recessiva. No Ministério da Fazenda e em outras áreas do governo, relata uma fonte da equipe econômica, havia preocupação com a resistência do BC a baixar o juro para fazer frente à desaceleração econômica. A autoridade monetária estava focada no controle da inflação, que já andava acima da meta; e acreditava-se que poderia subir ainda mais com a desvalorização cambial provocada pela crise. Vários membros do BC naquele período sustentam até hoje que as expectativas de inflação e os juros futuros só recuaram, estimulando a economia, porque a política monetária foi suficientemente conservadora.

O atual presidente do BC, Alexandre Tombini, então diretor de Normas da instituição, foi uma voz isolada em defesa do relaxamento monetário. Ele convocou uma teleconferência com os demais membros do Comitê de Política Monetária (Copom), para deliberar sobre uma baixa extraordinária dos juros básicos, segundo relato de um membro do colegiado da época. Tombini foi dissuadido da ideia com o argumento de que o então presidente do BC, Henrique Meirelles, estava em viagem ao exterior.

A Fazenda decidiu, então, tomar a frente na defesa da atividade econômica. Uma das primeiras medidas foi o corte do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) na venda de carros. "Não houve um dia em que o governo decidiu que as condições econômicas exigiam a inflexão para uma política fiscal anticíclica, mas sim um processo evolutivo, em que foram tomadas decisões para reagir aos problemas que se apresentavam", relata uma fonte do Ministério da Fazenda.

Se fosse para escolher um marco da reação fiscal anticíclica, afirma essa fonte, seria um discurso do presidente Lula, transmitido pela televisão às vésperas do Natal, em que ele anunciou que os investimentos do governo seriam mantidos. "Não tenha medo de consumir com responsabilidade", disse Lula. "Se você não comprar, o comércio não vende. Se a loja não vende, não fará novas encomendas à fábrica. A fábrica produzirá menos. E a médio prazo seu emprego pode estar em risco."

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Uma das medidas fiscais mais polêmicas foi uma injeção de R$ 100 bilhões no BNDES, para garantir a oferta de financiamento a empresas dispostas a continuar investindo. Antes da crise, Mantega, que fora presidente do BNDES, vinha defendendo a capitalização do banco. Mesmo após assumir a Fazenda, só conseguiu um aporte relativamente modesto para esse fim.

Segundo uma fonte da área econômica, o BC discordava do aporte de R$ 100 bilhões. Para dirigentes da instituição, que começara a cortar os juros básicos em janeiro de 2009, o estímulo feito pelo BNDES concorria com a política monetária. Conforme cálculos apresentados às demais áreas do governo, sem a capitalização do banco, os juros básicos poderiam cair mais dois pontos percentuais. As duas outras instituições oficiais mais importantes, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, já haviam acelerado a concessão de crédito, seguindo ordem do governo e também a lógica empresarial de ganhar mercado.

A visão da Fazenda era que, numa crise de confiança como a desencadeada pela quebra do Lehman Brothers, os estímulos monetários se propagam com menos força pela economia, devido à retração do sistema bancário privado. Esse embate sobre qual instrumento deveria tomar a linha de frente no estímulo à economia - monetário, fiscal ou creditício - foi um dos pontos mais importantes de discordância entre o BC e a Fazenda no período.

Nos meses seguintes, a Fazenda continuou adotando outras medidas fiscais, como a criação de um programa de habitação popular, o Minha Casa Minha Vida. Mas apenas em abril de 2009 foi sacramentada a decisão de que, para sustentar a economia num ano ruim, seria necessária uma redução no superávit primário do setor público, de 3,8% do Produto Interno Bruto (PIB) para 2,5%. Foi uma mudança importante na doutrina da política econômica. Desde o início do programa de ajuste fiscal, em 1998, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, a resposta do Brasil a crises tinham sido ajustes fiscais para reconquistar a confiança dos investidores.

A revisão da meta de superávit primário em 2009, no entanto, representou menos uma decisão deliberada do governo de migrar para um regime fiscal contracíclico do que uma conta de chegar de receitas e despesas, segundo fontes que participaram dessa decisão. A crise provocara a queda da arrecadação, à qual se somou o corte de impostos, como o IPI para carros. Programas novos, como o Minha Casa Minha Vida, ampliaram os gastos, que já subiam em decorrência de despesas definidas anteriormente, como o programa Bolsa Família e reajustes do salário mínimo acima da inflação, que funcionaram como estabilizadores automáticos, ampliando gastos num período de retração econômica.

Na área técnica, não houve oposição à redução do superávit primário, a não ser do Tesouro Nacional, que costuma defender posições mais conservadoras em assuntos fiscais. O próprio Mantega, em fins de 2008, não estava totalmente seguro de que esse seria o melhor caminho, mas viria a se convencer diante dos dados econômicos que foram sendo divulgados. A revisão da meta já era um consenso em abril de 2009, quando foi submetida à junta orçamentária do governo, formada pelo próprio Mantega, pelo ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, e pela então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. A junta orçamentária é uma espécie de Copom da política fiscal, embora não tão conhecida.

Numa visão retrospectiva, é possível afirmar que o governo fazia, naquele momento, uma política fiscal anticíclica. Em 2008, a arrecadação havia sido mais forte, em virtude do bom desempenho da economia, até setembro, o que levou o governo a fazer um superávit primário adicional de 0,5% do PIB, que foi guardado no Fundo Soberano. No ano seguinte, para combater a desaceleração econômica, o superávit primário foi menor.

"Não entendo que a política fiscal agora esteja só olhando os ciclos econômicos", afirma Holland, da Fazenda, ponderando que o esforço fiscal aumentou em outros anos, como 2011. "A política fiscal está olhando o conjunto da obra, e um dos pontos essenciais é a solvência."

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Empurrada pelas medidas monetárias, fiscais e creditícias, a economia voltou a crescer e, em 2010, a crise internacional impôs novos desafios à gestão macroeconômica. Os juros externos perto de zero e a expansão quantitativa de economias avançadas engrossaram o fluxo de capitais ao Brasil, levando à valorização do real. A farta disponibilidade de capitais estrangeiros contribuiu para dar novo impulso ao mercado de crédito, alimentando o receio da criação de bolhas. Também representou um estímulo adicional à economia num momento em que já apareciam pressões inflacionárias que, para muitos, eram causadas pelo excesso de aquecimento da demanda.

A primeira resposta do governo foi intensificar a compra de dólares no mercado de câmbio. Foram adotadas, ainda, medidas de controle de capitais, como a taxação com Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) em alguns tipos de investimento estrangeiro. A ação do governo representou um distanciamento do regime de câmbio flutuante puro. Mas essa não é uma inflexão que ocorreu apenas depois da quebra do Lehman Brothers. Entre fins de 2004 e 2008, o governo já havia migrado para um sistema de maior intervenção. Primeiro, por uma decisão do BC de reduzir a exposição em dólar da dívida pública e acumular reservas internacionais. Depois, segundo uma fonte que acompanhou as discussões no governo, por uma decisão do presidente Lula de intensificar as intervenções para suavizar a apreciação do real, causada pelo fluxo de capitais ligados a investimentos e à alta dos preços de "commodities" exportadas pelo Brasil. Em 2008, antes da quebra do Lehman Brothers, o governo chegou a aumentar o IOF sobre investimentos em renda fixa.

"O câmbio se apreciou no período de políticas monetárias não convencionais de economias avançadas", pondera Awazu, argumentando que o sistema de câmbio brasileiro nunca deixou de ser flutuante. "Essa é a resposta clássica [da taxa de câmbio]."

Os grandes fluxos de capitais ao Brasil também levaram o BC a aumentar sua preocupação com a estabilidade financeira. Para desacelerar o mercado de crédito e evitar a formação de bolhas, adotou-se, em dezembro de 2010, um conjunto de medidas macroprudenciais, incluindo aumento de depósitos compulsórios e exigências de mais capital próprio dos bancos para lastrear financiamentos com prazos mais longos. Mais tarde, ao longo de 2011, foram adotadas novas medidas para restringir o ingresso de capitais estrangeiros. A leitura do BC era de que a farta oferta de financiamento externo ajudava a alimentar o crédito, agudizando os riscos inflacionários e de criação de bolhas.

As medidas macroprudenciais deixaram o mercado financeiro desconfiado sobre as reais intenções do BC. A inflação vinha se acelerando e, para vários analistas privados, a autoridade monetária deveria ter elevado os juros.

No começo de 2011, já no governo Dilma, o BC de fato partiu para um aperto monetário clássico, na primeira reunião sob comando de Tombini. A estratégia foi gradualista, com a convergência da inflação para a meta ao longo de dois anos. O discurso do Copom era que os movimentos deveriam ser feitos com cautela, porque, além da alta de juros, também teriam efeito para baixar a inflação as medidas macroprudencias e um ajuste fiscal anunciado pelo governo.

Na visão de uma fonte da área econômica, na prática, o uso mais intensivo do intervalo de tolerância representa uma flexibilização do regime de metas de inflação, sem abandoná-lo. No BC, porém, a avaliação é que essa é uma consequência do alongamento dos mecanismos de transmissão da política monetária. Hoje, altas de juros levam dois anos para terem seu efeito máximo sobre a inflação.

"Do ponto de vista macroeconômico, as medidas macroprudenciais tiveram sucesso em desacelerar o crescimento do crédito e reduzir o aumento da Selic necessário para combater a inflação", escreveu Nelson Barbosa, então secretário-executivo da Fazenda, no texto acadêmico "Dez Anos de Política Econômica".

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As discussões sobre o acerto da estratégia gradualista do BC se esvaziaram a partir de agosto de 2011, quando a crise internacional de novo se intensificou, devido à resistência do Congresso americano em aumentar o limite de endividamento do governo. Tombini voltou da mais importante conferência de banqueiros centrais, em Jackson Hole, Estados Unidos, preocupado com os relatos que ouvira sobre a desaceleração global e convencido de que seria necessário dar uma guinada na política de juros, baixando-os em vez de subir.

Nas semanas anteriores, Mantega havia anunciado uma mudança no "mix" entre políticas monetária e fiscal. O diagnóstico era que, em 2008, o governo havia abusado de medidas de estímulo fiscal, impedindo que o Banco Central cortasse mais os juros. A promessa era que o governo iria apertar no fiscal e abrir espaço para os juros caírem.

A extensão exata desse "contrato" assinado entre o BC e o resto do governo é, hoje,

controversa. A versão difundida, de forma reservada, por fontes do BC é que a autoridade monetária foi traída. O compromisso, segundo essa narrativa, era cumprir à risca, sem nenhum dos abatimentos admitidos pela legislação, as metas de superávit primário de 3,1%% do PIB de 2011 e de 2012. A meta cheia de 2011 foi, de fato, cumprida, mas não a de 2012.

A outra versão é que, dentro do governo, foi fechado um compromisso com o BC apenas para cumprir a meta cheia de superávit primário de 2011. Mantega defendia o anúncio do controle de gastos também no ano seguinte. Mas não foi essa a decisão final, como se viu no projeto de lei do orçamento de 2012, enviado ao Congresso no mesmo dia em que o Copom começou a baixar os juros. Dessa forma, o governo dava indicações de que pretendia guardar munição fiscal para agir se a queda da economia fosse mais forte.

A despeito da controvérsia sobre qual foi, de fato, o "mix" de política fiscal e monetária combinado entre diferentes áreas do governo, a política econômica começava a dar sinais de ir para o caminho certo em meados de 2012. Os juros básicos já haviam caído abaixo de 8,5% ao ano, que tinha sido o piso da redução dos juros pós-quebra do Lehman Brothers, e nos meses seguintes cairiam ainda mais, para a mínima de 7,25% ao ano. A inflação recuou, ao ponto de o mercado financeiro passar a trabalhar com o cumprimento do centro da meta de 4,5% na negociação de títulos públicos vinculados a índices de preços. A taxa de câmbio se desvalorizou, em virtude das medidas de controle de capitais e de novo agravamento da crise da dívida soberana de países da periferia da Europa.

Essa combinação de resultados levou Mantega, em julho de 2012, a declarar que o Brasil tinha uma "nova matriz macroeconômica", num discurso em São Paulo. "Quero chamar a atenção para um aspecto fundamental, diria até revolucionário", disse o ministro. "Trata-se de uma reforma estrutural feita nos últimos anos e cujos efeitos ainda serão sentidos em sua plenitude: o

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novo equilíbrio macroeconômico, representado por juros reais bem mais baixos, política fiscal sólida, combinada com uma política de maior competitividade do real."

A declaração de Mantega causou muito ruído - e causa até hoje - sobre qual é, de fato, a política econômica brasileira nesses últimos cinco anos. Uma leitura muito comum é que o governo trocou o tripé macroeconômico formado por metas de inflação, câmbio flutuante e superávits primários por uma nova matriz macroeconômica, cujo objetivo é manter juros baixos, taxa de câmbio desvalorizada e uma política fiscal anticíclica.

Holland, secretário de Política Econômica, diz que essa é uma leitura equivocada. O tripé de política macro continua o mesmo, argumenta, com o uso da flexibilidade inerente a cada um dos sistemas para lidar com um ambiente econômico muito particular dos últimos anos. A nova matriz, diz, não passa da constatação de que se chegou a um novo equilíbrio de preços importantes da economia, com repercussões importantes sobre decisões de consumo, poupança e investimentos tomadas pelos agentes econômicos. "Foi uma conquista do país, depois de ter adotado boas práticas de políticas monetária e fiscal ao longo do tempo."

Nos meses seguintes ao pronunciamento de Mantega sobre a nova matriz econômica, no entanto, a inflação começou a subir, no segundo semestre de 2012, distanciando-se do centro da meta. Para o BC, esse foi o resultado da combinação de uma série de fatores, entre eles a alta internacional de preços de alimentos provocada por uma seca nos Estados Unidos, a desvalorização cambial, a alta de tarifas de importação para proteger setores industriais e uma política fiscal mais expansionista do que o esperado. Neste ano, o Copom voltou a subir os juros básicos para conter pressões inflacionárias. A despeito de todos os estímulos monetários e fiscais ocorridos em 2012, a economia tem crescido modestamente, entre 2% e 2,5%. Essa combinação de pressões inflacionárias, juros em alta e frágil recuperação econômica levou alguns analistas econômicos a dizer que a nova matriz macroeconômica teve vida curta.

Há sinais encorajadores, nos últimos meses, de que a guerra cambial se aproxima do fim. Em maio, o banco central americano começou a indicar que, ante a provável recuperação da economia, poderá começar a desmontar os estímulos monetários não convencionais promovidos nos últimos anos. As incertezas no cenário internacional provocaram, no Brasil, a alta do dólar, aumento dos juros negociados no mercado e deterioração das expectativas dos economistas privados para a inflação e crescimento econômico. Awazu, do BC, afirma que as medidas macroprudenciais evitaram a criação de desequilíbrios e facilitam a travessia deste período.

"Ganhamos a guerra cambial", ironiza um economista do governo. O Brasil, que se sentia prejudicado pela disputa entre países para preservar a competitividade de suas moedas, sofre de novo quando o conflito se aproxima do fim. "Alguém está feliz com isso?"

"Erro de 2008 foi acerto do BC"

Como diretor de Política Monetária do Banco Central (BC) entre abril de 2007 e dezembro

de 2009, o economista Mário Torós estava na ponta mais nervosa da crise de 2008: os mercados de câmbio e juros. Especialista em gestão de risco, ele conta que o pior momento daquela turbulência se deu no dia 10 de outubro, quando se iniciou uma corrida aos bancos em todo o mundo. No Brasil, o pânico não chegou a atingir as grandes instituições, mas estremeceu pequenas e médias - estima-se que algo entre R$ 30 bilhões a R$ 40 bilhões migraram desses bancos para os grandes.

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Nesta entrevista, Torós, hoje sócio-fundador da Ibiúna Investimentos, gestora que administra cerca de R$ 4 bilhões em fundos multimercados e ações, reage à crítica, que se cristalizou à época, de que o BC demorou para reduzir a taxa de juro em meio ao aprofundamento da crise. Há quatro anos, Torós foi a principal fonte de extensa reportagem do Valor sobre os bastidores da crise, considerada a mais grave da história do capitalismo desde a Grande Depressão, de 1929. "O que ficou caracterizado como o 'erro de 2008', a meu ver, foi um dos maiores acertos do BC no período em que passei por lá", diz ele.

Valor: Qual foi o pior momento da crise, aquele em que o senhor sentiu um frio na espinha e

esperou pelo pior?

Mário Torós: Foi aquele que abalou o mundo todo e não só o Brasil. Foi uma sexta-feira, dia 10 de outubro. Tinha reunião do Fundo Monetário Internacional no fim de semana e houve, de fato, uma crise de liquidez global.

Valor: Com que consequências?

Torós: Houve uma corrida contra bancos no mundo inteiro. Isso ocorreu um mês depois da quebra do Lehman Brothers. As pessoas estavam tirando dinheiro dos bancos para comprar imóvel, ouro etc. No Brasil, esse fenômeno foi menos intenso. Os grandes bancos, por exemplo, não chegaram a ser afetados. A crise, de uma forma geral, bateu no Brasil de uma forma menos intensa.

Valor: Foi uma marolinha, como chegou a afirmar o presidente Lula?

Torós: Não foi uma marolinha nem de longe, como se achava, se esperava e se torcia para ser, mas foi uma crise menos intensa. Aquela sexta-feira, dia 10, foi que levou o BC, na segunda-feira seguinte, dia 13, a anunciar uma série de medidas, como um programa de leilões de swap, uma grande liberação de liquidez para bancos e fundos. Tivemos que agir fortemente. Isso fez o Brasil conseguir passar pela fase mais difícil da crise.

Valor: Se 10 de outubro foi o pior momento, por que o Brasil sofreu um ataque especulativo no

dia 5 de dezembro?

Torós: É normal que isso tenha ocorrido. Havia a percepção de que o Brasil tinha sido menos afetado pela crise, a despeito de o real ter se desvalorizado muito. Mas ao mesmo tempo havia a sensação de uma crise mais profunda por causa da questão dos derivativos. Já não era o caso, tanto que o fundamento econômico acabou prevalecendo rapidamente.

Valor: Naquele momento, o senhor comandava a ponta mais nervosa da crise, que eram as áreas

de câmbio e juros. Sentiu mais temor em outubro ou em dezembro?

Torós: Em outubro, sem nenhuma dúvida. O que ocorreu em dezembro [o ataque especulativo] nós sabíamos que era um movimento normal. O câmbio é flutuante e isso ocorre. Obviamente, foi algo que exigiu atenção. Em outubro, não. Ali [a corrida bancária] era o caso de o mundo estar entrando num buraco. O Brasil não teria como escapar se a coisa tivesse se deteriorado. No caso do ataque especulativo, foi algo isolado.

Valor: Duas críticas foram feitas àquela diretoria do BC. A primeira é que vinha aumentando a

taxa de juros quando a crise já estava instalada lá fora. E a outra, de que demorou muito para

baixar o juro depois que a crise atingiu o país. Como o senhor responde a isso?

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Torós: O Brasil e os outros países emergentes não estavam em crise antes da quebra do Lehman [em 15 de setembro de 2008]. Muito pelo contrário. Houve um choque de commodities extremamente positivo do ponto de vista da atividade econômica, embora adverso do ponto de vista da inflação. O barril de petróleo chegou a custar US$ 140 [hoje está em torno de US$ 115]. O CRB [índice que mede a variação dos preços de commodities] atingiu as máximas históricas naquele período. Além disso, o crédito doméstico estava crescendo mais 35% ao ano. Havia uma combinação de fatores internos e externos que estavam levando a economia a crescer muito acima do potencial, além do choque de commodities e seus efeitos secundários sobre a inflação. No primeiro semestre e início do segundo de 2008, a economia acelerou muito, para algo em torno de 6% ao ano. As expectativas de inflação começaram a se deteriorar, não ficaram desancoradas, mas estavam piorando. Por causa do choque de commodities, precisávamos começar a combater os efeitos secundários sobre a inflação. Em abril de 2008, começamos a subir os juros, tendo anteriormente feito a comunicação de praxe dos BCs.

Valor: Como o senhor responde à crítica de que o BC demorou a cortar o juro?

Torós: O que ficou caracterizado como o 'erro de 2008', a meu ver, foi um dos maiores acertos do BC no período em que passei por lá. Em algo semelhante com o que está ocorrendo agora, depois da falência do Lehman houve um choque cambial enorme. O real sofreu forte desvalorização e a economia, como reflexo da crise, começou a parar em outubro. Por outro lado, as expectativas de inflação não estavam melhorando, a despeito da queda da atividade. Isso se deveu muito provavelmente ao choque cambial, que é um trauma que vem do passado do Brasil. A decisão naquele momento [houve duas reuniões do Copom antes do início do corte de juros, em janeiro de 2009] foi não subir a Selic, mas afrouxar as condições financeiras em dezembro. O BC deu uma mensagem super "dovish" no comunicado de dezembro do Comitê, quando ocorreu a primeira reunião efetiva depois do pior momento da crise. Vendo a atividade cair muito no último trimestre de 2008, mas preocupado com o choque cambial ocorrido naquele período, muito maior por sinal que o ocorrido recentemente, o BC emitiu mensagem que, na prática, significou afrouxar as condições financeiras.

Valor: Qual foi a mensagem?

Torós: O sinal era de que, em janeiro, começaria a baixar os juros. Foi isso o que ocorreu e o efeito foi o desejado. Além disso, tendo um diagnóstico mais claro do momento em que estávamos, nos foi permitido atuar com mais rapidez, tendo cortado os juros em 500 pontos básicos (cinco pontos percentuais) no período de seis meses.

Valor: Mas o que o faz acreditar que esse foi o caminho correto?

Torós: A inflação de nove a 12 meses depois da decisão estava girando em torno de 4,5%, que à época era o objetivo perseguido pelo BC. E a confiança em uma economia estabilizada pós-2008 foi crucial para a forte retomada do crescimento pós-crise em 2009 e 2010.

Valor: Por que, na primeira reunião do Copom pós-Lehman, realizada no dia 30 de outubro de

2008, o BC já não reduziu o juro?

Torós: O cenário era de muita incerteza. Estávamos em plena vigência de um grande choque cambial. O histórico do Brasil era de elevados repasses ao câmbio, em particular no choque anterior de 2002, quando o IPCA em 12 meses chegou a 17,2% [em maio de 2003]. Havia, assim,

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uma preocupação relevante com o repasse para os preços internos e com a deterioração das expectativas. Não estava tão claro naquele momento que a economia estava afundando. Em dezembro, sim. Em outubro, ainda era um cenário que parecia uma desaceleração, mas não sabíamos como isso chegaria ao Brasil. Podia ser só a marolinha...

Valor: Qual era a preocupação naquela hora?

Torós: No primeiro momento da crise, estávamos mais preocupados em dar liquidez, em enfrentar o famoso problema do empoçamento de liquidez que estava ocorrendo no Brasil. O canal de transmissão da crise para o Brasil começou com o corte de linhas internacionais de crédito para o país. Em seguida, e como consequência disso, temos o empoçamento de liquidez no nosso sistema financeiro. Essa combinação de fatores levou a um aperto de liquidez muito grande. Preferimos, então, no primeiro momento dar prioridade ao afrouxamento monetário via liquidez e não via taxa de juros.

Valor: O BC começou a reduzir o juro em janeiro de 2009 e interrompeu esse processo em

setembro do mesmo ano. Por que parou se o PIB naquele ano estava tendo crescimento negativo?

Torós: Reduzimos o juro de 13,75% para 8,75% ao ano. O que sabíamos, naquele momento, é que com essa taxa já estávamos com um juro real abaixo da taxa neutra [aquela que não acelera nem desacelera a demanda]. Além disso, o impacto contracionista da crise se dera na virada de 2008 para 2009. Em meados de 2009, quando o ciclo de corte de juro foi interrompido, a economia já dava mostras de se encaminhar para uma rápida recuperação, ainda que o crescimento médio de 2009 tenha sido negativo. Assim, nossa visão naquele cenário era que, primeiro, a economia já estava se recuperando. O pior da crise claramente já tinha passado. O Copom toma suas decisões olhando para a frente, baseado nos modelos de projeção e os riscos associados a esses modelos. Os riscos ao crescimento, naquele momento, eram positivos e os modelos mostravam que, a 8,75%, a taxa já estava abaixo da neutra, portanto, estimulava a retomada do crescimento.

Valor: A política fiscal expansionista teve alguma influência na decisão de parar com o ciclo de

alívio?

Torós: Por definição, quando está decidindo a política monetária, você toma a política fiscal como um dado. A política fiscal foi na direção correta naquele momento [em 2009], para estimular a economia e certamente isso foi levado em conta pela política monetária. O problema é que, em 2010, o governo aprofundou a política de estímulo fiscal quando, claramente, não era mais necessário. A política foi excessiva e começou a ter consequências sobre várias coisas, como o crédito doméstico, ao longo de 2010, o que levou o BC a começar a agir em 2010, depois interromper e retomar [a alta do juro] em 2011, levando o juro a 12,5%.

Valor: A crise acabou?

Torós: Este é um processo de muitos anos. A crise foi resultado de um processo de endividamento muito grande, em particular, do setor privado. Iniciou-se uma desalavancagem, que é longa e vai deixar consequências permanentes. Neste ano, pela primeira vez desde o início da crise, notamos, olhando tanto os dados microeconômicos quanto os macroeconômicos, que a economia americana começa a se recuperar. A desalavancagem ocorrida já é suficiente para fazer com que o setor privado volte a ser o motor do crescimento nos EUA. É uma recuperação moderada, a economia não vai crescer tanto, até porque há um desequilíbrio fiscal a ser corrigido nos próximos anos. Na

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Europa, a situação também começa a melhorar, alguns fundamentos estão melhores, embora de forma heterogênea entre os países do centro e da periferia. Lá, o sistema bancário está mais atrasado na limpeza de balanços relativamente ao observado nos EUA. São sinais tênues e delicados ainda, mas já melhores.

Valor: O Brasil saiu rapidamente da crise e cresceu 7,5% em 2010. Nos últimos dois anos,

avançou a uma média anual de 1,8% e, em 2013, pode crescer abaixo de 2%. O que aconteceu?

Torós: Houve um componente de desaceleração da economia no mundo todo, mas não há evidência de que essa tenha sido a única explicação até porque isso não ocorreu em outros mercados emergentes. Não vimos essa desaceleração na América Latina nem em outras regiões, como a Ásia. Isso nos leva a concluir que há fatores domésticos.

Valor: Quais são eles?

Torós: Foi uma combinação de decisões de política macroeconômica, microeconômica e regulatória que resultaram numa situação de grande perda de confiança, algo que está levando as decisões autônomas dos capitalistas, numa linguagem bem marxista, a restringir gastos. Isso vale tanto para indivíduos quanto para empresas. A isso se deu o nome de 'nova matriz econômica'.

Valor: Como o senhor a avalia?

Torós: Uma característica que ela tem é ignorar ou dar pouco peso à existência de 'trade-off'. Toma-se uma decisão que você acha que vai resolver um problema, sem analisar ou dar peso às eventuais consequências que essa decisão possa ter.

Valor: Por exemplo?

Torós: Aumentar as tarifas de importação [como o governo fez] dando pouca relevância aos efeitos que isso pode ter na inflação, nas decisões de investimento, etc. A desvalorização cambial promovida em 2012 foi outro exemplo. Os exemplos recentes são muitos, principalmente, quando entramos no campo microeconômico, regulatório, e na inacreditável gestão de preços administrados, algo que na década de 80 deixou efeitos tão nefastos.

Valor: Em agosto de 2011, o BC começou a reduzir o juro, sob o argumento de que o

recrudescimento da crise na Europa teria efeito desinflacionário em países como o Brasil. Não

era a decisão a ser tomada naquele momento?

Torós: Fazer aquela mudança sem, primeiro, afrouxar as condições financeiras, sem fazer a comunicação e simplesmente dar um cavalo de pau foi um equívoco do ponto de vista de gestão de expectativas, um fator importante no regime de metas. É um equívoco que você pode cometer, mas, uma vez reconhecido, pode ser corrigido. O problema é que, depois do cavalo de pau, por uma série de razões, entre elas, o erro de comunicação e as medidas atrapalhadas do governo em várias áreas, as expectativas de inflação se deterioraram rapidamente nos seis meses seguintes e o BC deu pouca importância a isso. O BC achou que era algo passageiro. Não foi o que vimos. O mercado recebeu aquilo como uma decisão não de política monetária, mas como uma decisão política. Estamos vivendo as consequências daquele movimento.

Valor: De que forma?

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Torós: As expectativas foram se deteriorando, o BC começou a dar algumas mensagens preocupadas, em particular, no Relatório de Inflação de dezembro de 2011, mas depois desconsiderou isso, até porque a atividade econômica não se recuperava, e acelerou mais ainda o ritmo de corte dos juros, jogando a taxa real para quase 2% ao ano, uma taxa muito abaixo da taxa neutra.

Valor: O BC previu que a inflação cairia para algo perto da meta em meados do ano passado e

isso de fato ocorreu. Depois, a inflação acelerou por causa de choques de preços de commodities.

O que fez o IPCA aumentar não foram choques fora do controle do BC?

Torós: Não. Houve choques, mas está evidente que o que explica a resiliência da inflação no Brasil é ter expectativas muito desancoradas. E estão assim porque os agentes econômicos não confiam na política econômica de uma forma geral e não necessariamente no BC. Estamos falando de uma inflação de preços livres que, neste ano, vai ficar consistentemente em torno de 8%. No ano que vem, se não tivermos novos choques positivos resultantes da gestão dos preços administrados, teremos um problema de inflação que o governo terá que enfrentar num cenário conturbado.

Valor: Qual seria esse cenário?

Torós: Eleitoral e um cenário em que a atividade econômica está desacelerando, a despeito de uma melhora no mundo. Isso me preocupa porque já está aí a percepção de que teremos um segundo semestre pior que o primeiro. Mas você está num contexto em que tem que combater a inflação, melhorar as expectativas e o custo de melhorar expectativas que estão desancoradas por tanto tempo se torna maior. Junto a isso, há um choque cambial, resultado de uma combinação de fatores externos e domésticos. O governo terá que fazer escolhas.

Valor: A nova matriz, segundo o governo, era a combinação de juro baixo com câmbio

apreciado. O juro está subindo. O governo desistiu da nova matriz?

Torós: A questão é como a realidade econômica vai se impor. Se havia a impressão de que, ao jogar o juro real a 2%, 2,5%, os agentes econômicos iam aceitar, seguindo a teoria de que o juro só é alto hoje no Brasil porque foi alto ontem e, portanto, basta alguém ter coragem para jogar o juro para baixo que resolve o problema. Não foi esse o caso, a despeito de se ter uma economia crescendo pouco. Parece que a redução dos juros é um processo um pouco mais complexo do que se imaginava.

Memórias da crise

Em outubro de 2009, a assembleia anual do FMI/Banco Mundial ocorreu em Istambul. As autoridades do Banco Central brasileiro tiveram acolhida entusiástica nas reuniões com seus pares e investidores. O relatório Panorama Econômico Mundial, do FMI, publicado na época, já apontava o Brasil como líder da recuperação na região. No mês seguinte, "The Economist" publicava reportagem de capa sobre o Brasil, com a clássica imagem do Cristo Redentor decolando e a manchete "Brazil takes off" - essa publicação coincidiu com uma das reuniões de banqueiros centrais na Basileia e causou visível irritação, em especial entre nossos amigos latino-americanos, cujas economias não foram objeto de tantos elogios. Se a visão externa sobre o desempenho da economia brasileira na crise foi muito positiva, avaliações internas seguiram sendo

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mais críticas. No texto que segue procuro apresentar uma visão pessoal da crise, e das respostas à mesma, do ponto de vista de alguém que estava na diretoria do Banco Central.

Mesquita (à esq.), então diretor de Política Econômica do BC, com o presidente do banco, Henrique Meirelles, em 2008

O agressivo afrouxamento da política monetária americana desde meados de 2007 não logrou evitar a recessão nem as tensões financeiras que culminariam na quebra do Lehman Brothers, mas contribuiu para um boom de ativos e atividade nos mercados emergentes. No Brasil, o crescimento do PIB saiu de 5,3% para 6,4%, entre o segundo trimestre de 2007 e igual período de 2008, liderado pela demanda doméstica, cuja expansão saiu de 6,6% para 8,4% (8,9% no terceiro trimestre). Assim, a economia passou a bater nos seus limites de velocidade: o saldo em conta corrente saiu de um superávit de 1,1% do PIB em junho de 2007 para um déficit de 1,2% do PIB em junho de 2008, ao mesmo tempo em que a inflação saía de 3,7% para 6,1% (também impulsionada por uma forte alta dos preços internacionais de matérias-primas).

Diante de tal quadro, o BC vinha ajustando a política monetária, de forma a reconduzir a inflação para as metas. A propósito, não só o BC do Brasil, mas todos os bancos centrais da região que praticam metas para a inflação subiram as taxas de juros. Em outras regiões, os BCs de economias emergentes, como África do Sul, Coreia do Sul, Filipinas, Hungria, Indonésia, Romênia, Rússia e Turquia, bem como Austrália e Suécia entre as economias maduras, também elevaram as taxas de juros. Isto é, diversos bancos centrais se defrontaram com uma conjuntura francamente inflacionária nos trimestres anteriores à quebra do Lehman, e reagiram de forma similar, seguindo seus mandatos.

O impacto inicial da crise foi a depreciação do real, exacerbada pela exposição das empresas a derivativos cambiais exóticos - em apostas pesadas na continuidade da tendência de apreciação do real diante do dólar. Além disso, a crise bancária com epicentro nas economias centrais levou a um forte encolhimento do volume de desembolsos de adiantamentos de contrato de câmbio (ACCs) e da rolagem da dívida externa.

O real depreciou cerca de 4,5% entre a segunda-feira 15 de setembro de 2008, quando a quebra do Lehman veio a público, e o pior momento daquela semana, e logo ficou claro que a diretoria do Banco Central - que, por casualidade, tinha representantes presentes em Nova York naqueles dias - precisaria atuar. Ficou evidente, também, que tal atuação deveria ser pautada por dois princípios básicos: havia que se preparar para o cenário em que a crise se mostrasse

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prolongada (o cenário "anos 30"); e a ação deveria minimizar a exposição do BC, e do setor público, às consequências de decisões e apostas equivocadas do setor privado. Seria importante, em suma, deixar a taxa de câmbio atuar como mecanismo de ajuste, ao mesmo tempo em que se buscava assegurar um mínimo de funcionalidade ao mercado.

O Cristo "decola" na "Economist": publicação provocou irritação, em especial entre os vizinhos latino-americanos, que não receberam tantos elogios pela atuação econômica.

Assim, após teleconferências entre os membros da diretoria em Nova York e seus colegas no Brasil, foi anunciada, em 18 de setembro, a realização de leilões de venda com recompra de dólares, e o primeiro leilão ocorreu no dia seguinte. O BC venderia ao todo US$ 14,5 bilhões na crise, equivalente a 7% das reservas que detinha ao fim de agosto de 2008. Além disso, o BC colocou no mercado US$ 11,8 bilhões em vendas com compromisso de recompra e, em uma inovação, criou um mecanismo de empréstimos de moeda estrangeira, voltado para garantir o

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financiamento do comércio exterior - o mecanismo começou a operar em 20 de outubro, e no total o BC desembolsaria US$ 12,6 bilhões, sendo cerca de 70% direcionados ao mercado de ACC.

Outra inovação, que atestou a credibilidade de sua política monetária perante a comunidade financeira internacional, foi o acordo de swap de moedas anunciado em 29 de outubro de 2008 entre o BC do Brasil e o Federal Reserve. O objetivo desse acordo, que não previa condicionalidade, era essencialmente de servir como mecanismo de sinalização, e cumpriu o seu papel, ainda que não tenha sido ativado em nenhum momento.

Como havia muita incerteza sobre a extensão da exposição das empresas aos derivativos cambiais, a volatilidade no mercado futuro de dólares elevou-se consideravelmente, e a formação de preços tornou-se disfuncional. Com o intuito de normalizar o funcionamento desse mercado, o BC anunciou, em 23 de outubro, um programa de venda de US$ 50 bilhões em swaps cambiais - esse montante foi definido em função de estimativas sobre a demanda potencial por hedge, bem como da magnitude das reservas externas - a normalização do mercado acabou ocorrendo mais rápido, e o montante de swaps colocado ficou em apenas US$ 12 bilhões.

Com esse conjunto de medidas, apenas três meses depois da maior crise financeira internacional desde 1929, o Banco Central conseguiu superar o overshooting da taxa de câmbio e restaurar a normalidade do mercado cambial sem precisar recorrer ao FMI, nem usar recursos de terceiros, nem sequer cogitar medidas de controle de capitais.

No âmbito doméstico, a crise se manifestou por um substancial aperto de liquidez, que fluiu das instituições de pequeno e médio porte para as maiores. A combinação de fatores estruturais, como concentração de fontes de financiamento, e conjunturais, como o aperto da liquidez externa em um momento de forte expansão do crédito, deixou os bancos de menor porte expostos a um aperto de liquidez. Este atingiu cerca de 40 instituições pequenas, representando cerca de 5% dos depósitos totais do sistema. O problema de liquidez foi agudo, mas teve pouca duração; já em meados de novembro a situação havia se normalizado, embora o impacto sobre a expansão do crédito continuasse por mais tempo.

Nesse contexto, o BC atuou, por um lado, mantendo a política monetária voltada para seu objetivo macroeconômico, promover a convergência da inflação para a meta, e, por outro, tomando medidas para resolver o aperto de liquidez e assegurar a estabilidade financeira.

Cabe ressaltar que nos meses finais de 2008, o período mais agudo da crise, o panorama inflacionário, que já era complicado, mostrou deterioração em função da depreciação cambial ocorrida desde o início de setembro (cerca de 54%). Não apenas as expectativas dos analistas independentes, mas, mais importante, as próprias projeções do Banco Central apontavam para a inflação divergindo da meta. Mesmo assim, o Copom, tendo em vista a perspectiva de desaceleração econômica, que deveria mitigar riscos inflacionários, interrompeu o ciclo de aperto monetário em suas reuniões de outubro e dezembro.

As reuniões foram marcadas pelos debates típicos do Copom, mas, pelo menos em minha lembrança, não foram particularmente crispadas, embora o comitê em nenhum momento minimizasse a seriedade da situação. Apesar de muito criticadas, em especial por certos analistas politicamente motivados, e outros com longo histórico inflacionista, o tempo mostraria que as decisões foram acertadas. A avaliação dos economistas do BC, um corpo técnico de alto gabarito, era de que o efeito máximo de um ajuste da Selic sobre a inflação ocorreria em 9 a 12 meses. Pois bem, 9 a 12 meses depois de dezembro de 2008, o horizonte adequado para avaliar objetivamente as decisões tomadas na época da crise, a inflação se situava em 4,2%, bastante próxima da meta de 4,5%.

A estratégia seguiu-se da interpretação de que o melhor que a política monetária poderia fazer seria, em meio a um ambiente de grande incerteza, prover um horizonte de previsibilidade,

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que facilitasse as decisões de gasto das famílias e empresas, favorecendo a retomada da confiança, e não tentar operar o ciclo a curto prazo - tal visão sobre a capacidade da política monetária está, de fato, no cerne do regime de metas para a inflação.

Prevaleceu, também, a visão de que se a economia não fosse desinflacionada em um momento de forte queda nos preços de matérias-primas, como o ocorrido na virada de 2008 para 2009, em que a atividade mostrava recuo importante, seria muito mais difícil fazê-lo depois, quando as commodities e a economia mundial passassem a se recuperar - a dificuldade em desinflacionar a economia desde 2010 corrobora essa visão.

Vale notar que as estimativas do BC apontavam, na época, para uma defasagem de seis a nove meses entre alterações da taxa básica de juros e o impacto máximo sobre a atividade, o que também sugeria um papel limitado para qualquer ação de política monetária visando influenciar as condições contemporâneas da atividade, mesmo se o BC tivesse um mandato dual, o que não era, nem é, o caso no Brasil.

Sendo assim, o BC do Brasil começou a cortar a taxa básica de juros em janeiro de 2009 (no mesmo mês que os BCs do Chile, da Hungria, do México, da Sérvia e da Turquia, um mês antes dos BCs da Colômbia, do Peru e da Romênia, dois antes dos BCs do Uruguai e da Islândia e três antes do BC russo). O processo se estendeu até julho de 2009, em um total de 500 bps. Quando do primeiro corte de juros, a expectativa de inflação para os próximos 12 meses, a julgar pela pesquisa Focus, estava em 4,72%; a mesma chegou a 4,12% quando do último corte de juros, sinal de que o processo de afrouxamento monetário foi conduzido de forma compatível com a manutenção da estabilidade.

No campo da gestão de liquidez e preservação da estabilidade financeira, o BC atuou de três formas: alterações dos mecanismos de recolhimento compulsório, redesconto e operações com o Fundo Garantidor de Crédito (FGC). O BC promoveu liberações de compulsórios de cerca de R$ 116 bilhões ou cerca de 4% do PIB da época. Os descontos no compulsório foram direcionados para promover a desconcentração da liquidez com mecanismos que incentivavam os bancos maiores, que vinham ganhando depósitos, a comprar ativos dos menores.

Além disso, o BC e o Conselho Monetário Nacional (CMN) aprimoraram o arcabouço legal e institucional para operações de redesconto bancário, ainda que os bancos tenham resistido a tomar recursos em reais no Banco Central. Finalmente, a crise mostrou a relevância do FGC dentro da rede de segurança do sistema financeiro, que culminou na criação dos depósitos a prazo com garantia especial (DPGE) em março de 2009.

A atuação do Banco Central contribuiu para a recuperação da economia ao longo de 2009. Tanto a produção industrial quanto o indicador de atividade ampla do BC, IBC-Br, ambos com ajuste sazonal, que atingiram pisos em dezembro de 2008, em parte um função do acúmulo de estoques do período do boom, começaram a se recuperar a partir da virada do ano. Em dezembro de 2009, o IBC-Br já estava acima do nível de pré-crise, o que ocorreria com a produção industrial em março de 2010. No que se refere ao mercado de trabalho, a taxa de desemprego, também sazonalmente ajustada, atingiu um máximo em janeiro de 2009, passou a declinar e já em janeiro de 2010 se encontrava abaixo do nível de pré-crise.

Em resumo, o Brasil teve uma recessão severa, mas curta, sob o impacto da maior crise financeira dos últimos 80 anos e de uma fortíssima contração na atividade econômica mundial. O país enfrentou tal cenário sem ruptura financeira, sem abandonar o regime de política monetária vigente e, como consequência, sem recorrer ao tradicional, e fracassado, expediente da acomodação inflacionária.

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Europa busca o renascimento

A zona do euro começa a emergir da pior recessão dos últimos tempos. Mas a crise econômica, sobretudo a fiscal, que quase fez desmoronar a moeda comum europeia, tomará tempo para ser realmente resolvida. A gestão política da crise deixa o modelo social europeu no tapete. Os governos impuseram economias draconianas, achatamento salarial, cortes em aposentadorias e prestações sociais. Na zona do euro, o desemprego bateu recorde de 12,1%, o consumo caiu 5% comparado a 2007 e o endividamento aumentou. Uma parcela dos benefícios de dezenas de bilhões de euros da política de coesão europeia em favor da Grécia, Irlanda, Espanha e de Portugal foi anulada pela crise e por decisões financeiras desses países. O sentimento de insegurança cresceu na Europa, facilitando a ascensão de partidos populistas.

A crise escancarou a dimensão da falha na zona do euro: ter sido criada sem o reforço das políticas de coordenação econômica e social. Ao permitir a todos os países que se beneficiassem de taxas de juros muito baixas, o euro mascarou as diferenças de adaptação e desempenho entre as nações mais desenvolvidas e a periferia.

Em agosto, enfim, a zona do euro deu sinais de que o pior da crise passou. No entanto, o peso da dívida soberana continua sufocando países que praticamente viram o colapso de sua economia, como Grécia, Portugal, Irlanda, Espanha, Itália e Chipre.

A política de austeridade chegou ao seu limite. A nova tendência na Europa é de não aumentar o ajuste fiscal, com impacto positivo no desempenho da economia neste ano e especialmente em 2014. Foram estendidos prazos para cinco países - Espanha, França, Holanda, Portugal e Eslovênia - reduzirem seus déficits para 3% do PIB.

Mas a Grécia continua a ser problema e pode ser forçada a pedir o terceiro pacote de socorro financeiro para evitar o calote. Portugal também mostra sintomas de que precisará de mais ajuda, inclusive para seus bancos.

"O modelo social europeu já acabou quando vemos o tamanho da taxa de jovens desempregados em alguns países", afirmou Draghi

As dúvidas persistem sobre a firmeza da recuperação econômica europeia e sobre a correção de desequilíbrios que inflaram a crise na zona do euro. Depois da crise da dívida soberana, agora são os trilhões de euros de dívida acumulada pelo setor privado que podem ser um freio para uma recuperação mais sólida da economia da região nos próximos anos.

Ao contrário dos Estados Unidos, a Europa está bem atrasada na redução da dívida privada e, dependendo de como vai fazer isso, pode prolongar as dificuldades do velho continente. Um alto endividamento significa que as empresas têm menos dinheiro para investir, as famílias têm menos para consumir e os bancos, menos para emprestar.

Em países com enormes dívidas privadas, como Holanda, Espanha, Portugal e Irlanda, o consumo continua em queda. Levados a reduzir as dívidas e com pouca perspectiva de recuperação no mercado de trabalho, o consumo sozinho dificilmente impulsionará fortemente a zona do euro.

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Além disso, o tamanho do setor bancário continua a ser um risco para a Europa, e sua redução terá peso na economia real. Apesar de terem cortado € 2,4 trilhões de seus balanços, a banca europeia ainda "não está nem na metade do caminho para se tornar sustentável" e precisará cortar mais alguns trilhões, avalia o Royal Bank of Scotland (RBS).

Os ativos do setor bancário da Europa pesam € 33 trilhões atualmente, representando três vezes e meia o PIB da zona do euro. Em comparação, nos EUA os ativos dos bancos têm o mesmo tamanho da economia. No Japão e Canadá, são duas vezes o tamanho da economia.

A estimativa é de que os bancos da zona do euro precisem reduzir mais € 3 trilhões de seus balanços entre 2016-2018 para se adaptar às novas exigências globais sobre capital próprio.

Milhares de bancos pequenos são os que mais precisam reduzir suas dívidas. Deve ocorrer queda nos preços de ativos e redução de empréstimos, sobretudo na Itália e Espanha, onde bancos pequenos têm boa parte do sistema financeiro.

Fila de pessoas em busca de trabalho: índice de desemprego na Espanha chegou a seu maior nível em quase quatro décadas

A Europa representava 56% do crescimento nos fluxos de capitais entre 1980-2007. Desde

o começo da crise, os bancos europeus reduziram empréstimos internacionais em € 3,7 trilhões, dos quais € 2,8 trilhões foram redução para outros países da própria zona do euro.

Países que precisam mais de capital para financiar seu crescimento são os que continuam a pagar mais. No caso das empresas, basta ver que, em 2003, companhias da Grécia pagam juro de 5,5% em crédito de cinco anos, enquanto as alemães pagavam 5,1%. Em 2012, os gregos pagavam 7,2% no mesmo prazo, comparado a 3,6% no caso dos alemães.

A fragmentação dos mercados financeiros na zona do euro continua a ser um fator que pesa na saída da crise e a fazer os custos de financiamento serem muito maiores na periferia do que no norte europeu rico.

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A estratégia de romper essa fragmentação passa por reformas e redução dos desequilíbrios, sobretudo fiscais, na periferia. E também por reformas institucionais na zona do euro. Para uma boa parte dos especialistas, o crescimento mais sólido continuará ilusório até que a zona do euro recapitalize seus bancos e implemente a união bancária (regime de resolução de crises, maior integração da supervisão do setor bancário, mecanismo comum de garantia de depósitos).

Só que o atual projeto de união bancária parece mais destinado a prevenir uma futura crise e não a cuidar da atual, sob a influência da Alemanha, força hegemônica na Europa.

Conforme a consultoria Capital Economics, forçar convergência nominal num grupo díspar de países, por meio da adoção de uma moeda comum sem união política e fiscal, conduziu essas economias a divergências econômicas reais.

No pós-crise, a expectativa é de a zona do euro continuar a buscar mais convergência. Com enormes ajustes, as economias da periferia recuperaram parte da competitividade perdida nos anos 2000. Mas o nível de divergências permanece alto. Em termos de crescimento do PIB, em 2011 a Alemanha registrou aumento de 3% comparado à contração de 7,2% na Grécia. Em termos de renda per capita, a Itália caiu 9% abaixo da média da zona do euro.

Enquanto a taxa de desemprego é de 5,4% na Alemanha, bate 25% na Grécia e na Espanha. Quem busca uma vaga de trabalho na Alemanha enfrenta apenas um concorrente. Em Portugal, enfrenta 89, na Espanha, 77, e na Irlanda, 31.

As divergências nas contas correntes diminuíram, sobretudo na periferia, mas isso vem por causa da queda na demanda e, assim, nas importações. Também persiste forte diferença de preços na zona do euro. Em 2012, os preços na Finlândia - os mais altos da zona do euro - eram 43% mais elevados do que em Portugal - preços mais baixos. A diferença era de 46% em 1999.

Os salários ilustram também a diferença competitiva na união monetária, onde um país membro não pode desvalorizar a moeda. Na Alemanha, os salários eram 18% acima da média europeia em 1999 e passaram a ser apenas 9% acima em 2012. A unidade do custo de trabalho subiu bem menos na Alemanha.

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A fatia de salário no PIB, ou seja, na produção de riqueza da Europa, continua caindo. O declínio de 5% na Alemanha entre 2001-2010, a maior economia, pesou mais na média do continente.

Acusado de estar na raiz da crise soberana na Europa, a questão é até que ponto o modelo social europeu será readaptado. As despesas sociais em relação ao PIB constituem uma parte importante, entre 25% e 33%, dependendo do país comparado a outros países desenvolvidos entre 15% e 20%. Tem sido um modelo também onde as relações industriais, entre patrões e sindicatos, tiveram papel importante em decisões sobre salários, condições de trabalho e sistemas de seguridade sociais, com nuanças entre os países.

Mas em entrevista ao "Wall Street Journal", Mario Draghi, presidente do Banco Central Europeu (BCE), declarou que o modelo social europeu não existia mais. "O modelo social europeu já acabou quando vemos o tamanho da taxa de jovens desempregados em alguns países", afirmou. "Reformas são necessárias para aumentar o emprego e, assim, gastos e consumo. O economista Rudi Dornbusch costumava dizer que os europeus eram tão ricos que podiam se permitir pagar todo mundo a não trabalhar. Isso acabou."

A tendência é de a idade efetiva de aposentadoria passar para 67 anos ou mais. As reformas vão conduzir a pensões pelo menos 20-25% mais baixas para as futuras gerações de aposentados, segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Vários países na Europa começam a efetivar reformas da aposentadoria a partir deste ano. É o caso da Alemanha, que também passará para 67 anos. Isso é considerado essencial pelo governo, porque mais e mais idosos se beneficiam das prestações sociais e menos e menos jovens trabalham para financiar o sistema.

A Itália vinculou a idade de aposentadoria à expectativa de vida a partir deste ano. A Dinamarca fará o mesmo a partir de 2020, para que a idade mínima exigida seja de 69 anos. A expectativa de vida varia muito na União Europeia. A mais alta é na França para as mulheres, 85 anos. Para os homens é de 78 anos na França, 78,6 na Espanha e 79,1 na Itália.

Em recente artigo sobre a situação na França - válida para o restante da zona do euro -, a ex-secretária do Partido Socialista Martine Aubry notou que, com o pior da crise se distanciando, é preciso tirar as lições de que "somos confrontados à falência de um sistema".

Martine propõe uma "renaissance" (renascimento) para recolocar a Europa "nos bons trilhos", qualificando as políticas de austeridade dos últimos anos de "mortíferas".

A seu ver, esse renascimento deve focar novo crescimento duradouro na indústria para criar emprego por meio de novas tecnologias - digital, bio e nanotecnologias, energias renováveis. Sugere taxa sobre transação financeira, imposto ecológico, harmonização fiscal e social. E insiste no que chama de "doutrina do comércio justo" para a Europa lutar com "armas iguais à China, à Índia, aos Estados Unidos e ao Brasil".

Ela sugere uma "superpolítica" de coesão social para reconstruir o aparelho produtivo de países como Grécia, Espanha e Portugal. Mas seu pai, Jacques Delors, ex-presidente da Comissão Europeia, avisa que sem um "salto político, consolidação da união econômica e monetária e uma refundação das relações industriais" não se pode ir muito além em matéria de coesão social. Fonte: Valor Econômico, 06-08.09.13