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este aviso.

A arte da palavra: Filologia Germânica

Autor(es): Ribeiro, António Sousa

Publicado por: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/32457

DOI: DOI:http://dx.doi.org/10.14195/0870-4112_9_9

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Biblos, n. s. IX (2011) 271-286

anTónio sousa riBeiro

Universidade de Coimbra

A ArTE DA pAlAvrA: FIlologIA gErmâNICA*

resumoPartindo de algumas notas sobre a área de Filologia Germânica na

tradição disciplinar da Faculdade de Letras, propõe-se um conjunto de tópicos de reflexão sobre a situação das Humanidades e, em particular, dos estudos literários na Universidade do presente, equacionando-se, em breve conclusão, o possível significado de um “regresso à filologia”.

palavras-Chave: Filologia Germânica, Filologia, Humanidades, Estudos literá rios.

AbstractAfter some comments on the area of Germanic Philology within the

disciplinary tradition of the Faculty of Arts and Humanities, the article presents several topics of reflection on the situation of the Humanities and, in particular, of the field of literary studies in the present-day University. A brief conclusion ponders upon the possible meaning of a “return to philology”.

Keywords: Germanic Philology, Philology, Humanities, Literary Studies.

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* Manteve-se, no essencial, o registo comunicativo da palestra proferida em 7 de Junho de 2011 na Faculdade de Letras de Coimbra.

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Sempre tive para mim que o significado de momentos comemorativos como a celebração dos cem anos da Faculdade de Letras de Coimbra que hoje aqui volta a reunir-nos não está tanto na oportunidade, sem dúvida valiosa, que oferecem de revisitação do passado, mas, muito mais, no facto de propiciarem uma interrupção do ritmo dos afazeres quotidianos que permite se instale, mesmo que fugazmente, um espaço de reflexão sobre o futuro. Ao aceitar o convite para me encarregar desta sessão, pensei de imediato que deveria ser esse o fio condutor das minhas palavras. É assim que, não deixando esquecidos os cem anos passados – e, ao preparar esta palestra, não foi sem alguma natural ambiguidade e mesmo uma certa dose de melancolia que tomei consciência de que, desses cem anos, fui testemunha e participante directo da já bonita soma de quarenta e dois –, gostaria de aproveitar esta oportunidade sobretudo para falar do futuro. Não, naturalmente, dos próximos cem anos, mas, num plano mais singelo, de algumas das potencialidades do campo de estudos em análise, inseparáveis da questão mais geral do que vulgarmente se vem designando como crise das humanidades – uma crise que, como tenho escrito em vários locais, em textos que irei retomando em parte ao longo das presentes reflexões (Ribeiro, 2002; 2010; 2011), e como, aliás, ficou consignado no Plano Estratégico aprovado pela Faculdade de Letras de Coimbra em 2002, apresenta, como todas as crises, manifestas virtualidades transformadoras. É que uma crise, como escreveu Hannah Arendt, em palavras que soam, na presente conjuntura, mais actuais do que nunca, só se torna funesta “quando a resposta que lhe é dada consiste em juízos já feitos, isto é, em pré-conceitos” – “a crise obriga-nos a formular de novo as perguntas” (Arendt, 2000: 256).

Sem querer desfiar aqui uma história que será de todos conhecida pelo menos nos seus traços gerais, lembrarei que a Filologia Germânica, como as restantes filologias modernas, nasce no virar do século XVIII para o século XIX. “Germânica”, como é evidente, refere-se, antes de mais, ao conjunto das línguas de raiz germânica, cujo lugar no âmbito de uma descrição comparada das línguas indo-europeias tinha começado a ser firmemente estabelecido por Franz Bopp a partir da sua obra de 1816 Über das Konjugationssystem der Sanskritsprache in Vergleichung mit jenem der griechischen, lateinischen, persischen und germanischen Sprache (Sobre o sistema de conjugação do sânscrito em comparação com o da língua grega, latina, persa e germânica).

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Vale lembrar que, nascido num contexto decisivamente influenciado pelas concepções românticas, o paradigma filológico visava em boa medida, através do estudo crítico dos textos, a restituição íntegra de um passado nacional, no pressuposto do elo indissociável entre a língua e o espírito, ou a alma, da nação. O seu objectivo primeiro, a crítica textual, constituía o instrumento indispensável a uma reconstrução do passado que, apesar das pretensões de objectividade científica, se nutria de uma mitologia das origens e concorria para fundamentar a ideia de nação consubstancial aos projectos das várias burguesias que, de uma forma ou de outra, melhor ou pior, iam redesenhando os diferentes estados europeus à medida dos seus interesses. Assim, no âmbito das novas disciplinas filológicas, a tradição humanista de uma cultura letrada era posta ao serviço de um projecto educativo aparentemente consensual, que combinava as ambições enciclopédicas do espírito das Luzes com um ethos nacional assente na invenção de uma tradição sustentada pelo que era visto como uma simbiose única entre língua, cultura e identidade. E assim o nascimento das filologias modernas ficaria marcado por aquilo a que Hans Ulrich Gumbrecht (1984: 53) chamou um indelével trauma nacionalista, mais patentemente visível em países como a Alemanha, pela funesta associação, no percurso histórico posterior, à lógica de uma política agressivamente chauvinista cujas consequências são conhecidas, mas igualmente bem saliente na generalidade dos outros contextos nacionais.

Na tradição curricular das universidades, em qualquer parte do mundo, a definição da disciplina implicava que as línguas germânicas, especialmente o inglês e o alemão, as principais línguas da família, deviam ser ensinadas em conjunto – em teoria, de modo a tirar o maior partido possível das virtualidades comparativas proporcionadas por essa conjunção, a começar pelo domínio da língua e da história da língua. Se sobrevoarmos a história da instalação da disciplina na nossa Facul-dade, é fácil verificar como a organização docente assentava no pressu-posto dessa unidade. É assim que os discípulos directos, e dilectos, da grande iniciadora dos modernos estudos filológicos na Faculdade de Letras de Coimbra, Carolina Michaelis de Vasconcelos, ambos com doutoramento no âmbito dos estudos alemães – estou a referir-me a João da Providência Sousa Costa e Ferrand Pimentel de Almeida – se responsabilizavam, com toda a naturalidade, por disciplinas tanto da área do Inglês como do Alemão. Ferrand de Almeida viria, aliás,

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a ser o primeiro director da Sala Inglesa, criada em 1931 e, depois, transformada no Instituto Inglês, inaugurado oficialmente em 1936 (e, a partir de 1951, designado por Instituto de Estudos Ingleses).1 Mas também um germanista insigne como Paulo Quintela distribuiu a sua actividade profícua de professor, investigador e tradutor com a mesma naturalidade pelas duas áreas, tendo chegado a reger, nomeada-mente, disciplinas de história da língua inglesa e tendo garantido até à jubilação, em 1975, o Seminário de Literatura Inglesa. Pelo caminho tinha ficado, por exemplo, a orientação de umas boas dezenas de teses de licenciatura centradas na tradução, comentário e anotação de dramas de Shakespeare, na íntegra ou em parte.2

A orientação pelo paradigma filológico tinha naturais consequências. A memória pessoal do então jovem caloiro de Germânicas chegado à Faculdade em Outubro de 1969 tem essas consequências bem presentes. A altura era de transição, não só no plano da política académica – vivia- -se o rescaldo imediato da Crise –, mas também no respeitante aos paradigmas científico-pedagógicos vigentes, que oscilavam entre a boa consciência da “naturalidade” do paradigma filológico e concepções emergentes que se iam delineando sobretudo no âmbito de programas centrados em temas de literatura do século XX, os quais iam também ganhando direito de cidade como tema das poucas dissertações de licencia tura que no final da década de 60, princípio da de 70, iam ainda sendo concluídas. A apresentação em 1971, por Carlos Alberto de Almeida Dias, de uma dissertação de licenciatura, orientada por Karl Heinz Delille, sobre a peça Kaspar, de Peter Handke, escrita e estreada apenas quatro anos antes, assume, neste contexto, um signi-ficado sintomático. Mas recordo bem como, no ano lectivo de 1969- -1970, cumpri um programa de Literatura Inglesa que pouco ia além do período anglo-saxónico – no 2º ano, chegava-se ao século XIV, com Chaucer e as Canterbury Tales. Nada que não tivesse aspectos positivos, pelo contrário – a oportunidade de contactar com textos de

1 Em 1925, fora inaugurado o Instituto de Estudos Alemães, herdeiro da Sala Alemã fundada no ano anterior, e que seria dirigido durante algumas dezenas de anos, até 1963, por João da Providência Sousa Costa. O Instituto de Estudos Norte-Americanos, por sua vez, é herdeiro da Sala Americana, instituída em 1925.

2 Este acervo relevante, conservado na actual Biblioteca de Estudos Ingleses, foi recentemente objecto de um estudo preliminar por Rui Carvalho Homem (2008).

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evidente relevância, não apenas histórico-literária, que as orientações presentistas da generalidade dos planos de estudo dos nossos dias deixam na sombra não foi, julgo, desperdiçada –, mas o facto de ser possível concluir uma licenciatura sem ter, por exemplo, como foi o meu caso, ido além de Shakespeare no estudo da literatura inglesa, deveria dar que pensar. Como também, aliás, o facto de os textos serem lidos, naturalmente, em tradução para inglês moderno, uma vez que, como é óbvio, não tínhamos – e os docentes, em geral, também não – conhecimentos de Old English ou de Middle English que habilitassem a ler os textos no original. Mas este simples facto, paradoxal do ponto de vista de uma perspectiva filológica canónica, era, aparentemente, irrelevante, à luz de uma concepção positivista da evolução literária assente numa lógica causalista e que visava ilustrar uma linha de continuidade desde aquilo que era concebido como as mais remotas origens, sem o entendimento das quais não haveria conhecimento possível sobre épocas posteriores.3

A chamada reforma Cardia, de 1978, veio instituir a nova figura curricular das Línguas e Literaturas Modernas, fazendo desaparecer dos planos de estudos a referência ao conceito de filologia e instituindo, como é sabido, a possibilidade de combinatórias várias que não respeitavam já a tradição disciplinar da indissociabilidade do estudo das línguas germânicas. Mas o novo status quo não veio senão consagrar em definitivo um processo que vinha de trás e que a entrada de um grupo numeroso de novos docentes logo a seguir ao 25 de Abril contribuíra para reforçar, uma vez que tornava possível lógicas de especialização até aí dificultadas pela própria circunstância da dimensão reduzida do corpo docente. Foi, assim, com naturalidade que, em fins dos anos setenta, o até então grupo de Filologia Germânica se cindiu em dois, Estudos Anglo-Americanos e Estudos Germanísticos. E foi com a mesma naturalidade que áreas de estudo que até então tinham permanecido na sombra foram conquistando visibilidade e autonomia. É o caso dos

3 Havia, aliás, casos bem mais drásticos – ficou famoso um programa de Literatura Alemã numa outra universidade que se iniciava com o estudo de uma versão alemã da Germania de Tácito. Nomina sunt odiosa, mas não é, de facto, possível ilustração mais cabal do peso de uma metafísica das origens na definição do objecto dos estudos filológicos tal como foram sendo concebidos na Universidade portuguesa, e não só, ao longo de muitas dezenas de anos.

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Estudos Norte-Americanos, que o fecundo magistério de Maria Irene Ramalho foi arrancando com determinação ao estatuto de parente pobre dos Estudos Ingleses. Outras áreas, como os Estudos Irlandeses ou os Estudos Austríacos, se foram também afirmando, ao mesmo tempo que se ia enriquecendo a paleta das opções teórico-metodológicas e dos campos de ensino e investigação. No caso dos Estudos Germanísticos, a fundação, em 1994, sob a égide de Maria Manuela Delille, do Centro Interuniversitário de Estudos Germanísticos, viera, entre outros aspectos, dar particular visibilidade aos estudos de recepção. Paralela-mente, outras perspectivas teórico-metodológicas e diferentes vias de ensino e investigação concorriam para uma pluralização do campo e conduziam a um diálogo interdisciplinar em vários planos, se bem que, frequentemente, como era também visível na aclimatação entre nós dos pressupostos da teoria da recepção, nem sempre tal significasse um afastamento do paradigma filológico.

Tudo isto poderia ser assunto para larga conversa. A minha preocupação, no entanto, como referi de início, não é fazer história e muito menos visa foros de exaustividade – o que me obrigaria a referir nomes ainda não citados, mas relevantes de diferentes maneiras, como, entre outros, o de George West, estreitamente ligado ao período de fundação do Instituto Inglês, ou o do germanista Albin Eduard Beau, e, me forçaria, igualmente, a demorar-me em motivos mais sombrios, como seja o da manifesta simpatia pelo regime nazi deste professor ilustre, recordado com simpatia e admiração por gerações de estudantes. Pretendo, antes, aproveitar o ensejo para uma breve reflexão sobre o momento em que nos encontramos e os futuros possíveis desse momento. Pelo que recuo agora para um plano mais geral, mas, espero, não menos relevante para a nossa reflexão em contexto comemorativo, um plano em que, a partir, fundamentalmente, do campo dos estudos literários, abordarei algumas questões que me parecem centrais para todo o campo das Humanidades.

Referi-me há pouco à noção de crise. No plano internacional, com repercussões óbvias, embora, por via de regra, diferidas, no contexto português, foi, no fundamental, a partir de finais dos anos sessenta que essa noção e a consequente busca de novas soluções se tornaram omnipresentes, num processo estreitamente associado à crise das universidades e ao efeito de abertura suscitado pelo impacto violento dos movimentos estudantis sobre práticas institucionais e tradições

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científicas até aí fechadas sobre si próprias. Ao mesmo tempo, tornava- -se iniludível a erosão total da posição de privilégio de uma cultura literária, definitivamente posta em causa pela revolução dos media e pela ascensão imparável de uma cultura de massas, associadas a um conjunto complexo de mutações sociais que vinham confrontar a literatura e os estudos literários com uma necessidade de legitimação cada vez mais aguda. Acrescente-se a transformação das universidades e, em particular, das Faculdades de Letras, em instituições cada vez mais pressionadas pelas exigências de um ensino “profissionalizante” – e cada vez mais permeáveis a essas exigências – e teremos completo um quadro em que os estudos literários, tal como as Humanidades em geral, surgiam crescentemente como disciplina sumptuária e, enquanto tal, carente de intrínseca justificação.

Na verdade, como lembra Silvina Rodrigues Lopes, “a crise de legitimação que, sobretudo depois de 70, se vem tornando patente afinal sempre existiu, sendo uma condição estrutural da própria literatura. Ocultava-se porém sob discursos legitimadores assentes na naturalidade de fundamentos inquestionáveis […].” (Lopes, 1994: 483). É a perda de eficácia desses discursos legitimadores, concomitante com a erosão do paradigma filológico, que, justamente, no contexto que estou a descrever, abre vastas possibilidades de reconceptualização crítica com consequências directas para o plano pedagógico. Por exemplo, tornou- -se crescentemente óbvio que não basta, hoje, ensinar literatura, é necessário que esse ensino seja, do mesmo passo, capaz de demonstrar em cada momento a relevância do estudo da literatura. A tarefa, difícil, está em encontrar estratégias suceptíveis de transformar o efeito de estranheza inerente ao contacto com o discurso literário e a percepção dos fundamentos radicalmente não-instrumentais desse discurso em princípio estimulante da educação para a complexidade que deveria constituir objectivo primacial da formação universitária.

Neste âmbito, o entretanto Grupo de Estudos Anglo-Americanos deu, no início da década de 80, contributos estimulantes para a reflexão através de textos como “A relevância de Shakespeare para ‘this is a door’” (AAVV, 1983) ou “A ‘vocação’ das Faculdades de Letras e a ‘formação psicopedagógica’ de professores” (Santos et al., 1983). No entanto, para além de discussões parcelares, não pode dizer-se que essas ou outras intervenções se tenham traduzido no amplo debate estratégico que, sem dúvida, era requerido. Na verdade, também aqui,

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parece-me, se tornou patente que a reflexão epistemológica a que um contexto em transformação obriga o campo filológico representa para este uma relativa novidade e tem que lutar, muitas vezes ingloriamente, contra uma tradição disciplinar marcada por considerável inércia nesse domínio. O boom da teoria a partir dos anos sessenta exprimia a procura de caminhos para uma auto-reflexão que os estudos literários entre nós só tardiamente se dispuseram a empreender. Na acepção mais simples, como escreve Antoine Compagnon, “há teoria quando as premissas do discurso comum sobre a literatura não são já aceites como evidentes, quando são interrogadas, expostas como construções históricas, como convenções” (1998: 16). A teoria, na sugestiva formulação deste autor, representa, antes de mais, uma “escola de desemburramento”, “un apprentissage du déniaisement” (ibid.: 22). Enquanto tal, mais do que fornecer uma metalinguagem unificada ou do que propor uma sistemática homogénea, cabe-lhe, em primeira linha, abrir e manter aberto um espaço reflexivo e auto-reflexivo, funcionando, de alguma maneira, como uma permanente “má consciência” crítica. Ora, a verdade é que a teoria literária não chegou nunca a estabelecer-se verdadeiramente como disciplina nas universidades – o que, no fim de contas, seria talvez contraditório com as suas próprias premissas, que aconselham o uso da teoria “não como um cânone, mas como um recurso estratégico”, para citar Lawrence Grossberg (Grossberg, 1997) –, e também não conse guiu abalar decisivamente as rotinas disciplinares instaladas. De facto, continua a ser patente nas práticas académicas correntes como, muitas vezes, a teoria é considerada fundamentalmente na vertente da aplicação, alimentando uma concepção instrumental que a reduz a simples método ou, no limite, a mera técnica pedagógica e deixando, inevitavelmente, pelo caminho uma noção de reflexão teórica como “escola de ironia”, para citar uma última vez O demónio da teoria, de Antoine Compagnon (1998: 24), a única escola susceptível de satis-fazer ao pressuposto de um pensamento crítico.

No quadro actual, tornou-se claro que as delimitações territoriais inerentes ao conceito de filologia, tal como, genericamente, a todos os paradigmas disciplinares oitocentistas, se tornam crescentemente irrelevantes. No plano estratégico da Faculdade de Letras, já atrás aludido, lembrava-se que “se é verdade que, na sociedade do conheci-mento, o que era o tradicional objecto das humanidades – a cultura, a memória, a linguagem – adquire uma nova centralidade, fá-lo em

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condições que são novas, nomeadamente por estarem sujeitas ao efeito de turbulência trazido pelas novas tecnologias de informação e de comunicação. Estas, entendidas como fonte de oportunidades, e não como uma ameaça, colocam renovadas exigências ao campo das Humanidades.” A resposta a estas exigências só pode ser dada, nos termos propostos por um importante estudo publicado na Alemanha em 1991 sobre “As humanidades hoje”, que mantém toda a actualidade, por um pensamento capaz de se definir a partir das constelações de problemas que aborda, e não segundo competências disciplinares (Frühwald et al., 1991: 68). No pensamento contemporâneo, a questão do “núcleo” essencial das Humanidades cede, assim, o passo à noção de fronteira como espaço de articulação. Isto é, a especificidade dos objectos de estudo não é ontológica ou substancial, mas relacional, o que, para as Humanidades, significa, como propõe Stuart Hall, que a centralidade antes ocupada pelo conceito de tradição pertença agora a um conceito de tradução (“translation”, e não “tradition”) (Hall, 1992).

É sabido como foi decisivo para este processo o impacto dos estudos culturais. Enumero, sem preocupação de exaustividade, algumas das consequências produtivas deste encontro para a problematização do conceito de cultura:

1. Um conceito enfático de alta cultura foi substituído por um conceito pluralizado, que não conhece fronteiras rígidas e que abrange a cultura de massas e as culturas do quotidiano.

2. Uma definição igualmente enfática de literatura foi posta decididamente em causa: uma definição ontológica cedeu o passo a um conceito de literatura como discurso social imerso numa pluralidade conflitual de discursos.

3. A dominância indiscutida da textualidade foi problematizada por um conceito de performance e pela reflexão sobre modos de discurso não textuais, nomeadamente de carácter audiovisual.

4. Sobretudo no âmbito dos estudos pós-coloniais, desenvolveu-se uma sensibilidade mais apurada para as questões do poder, incluindo as que se manifestam na micro-esfera das relações sociais quotidianas. A crítica aos falsos universalismos daqui consequente levou a que uma teoria da cultura como consenso fosse problematizada a partir da perspectiva do subalterno e do silenciado, com base na percepção de que a cultura não tem apenas uma função integradora, mas também desintegradora, gerando tanto dinâmicas de inclusão como de exclusão.

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5. A equação simples entre língua, literatura, cultura e identidade surge posta radicalmente em causa, tendo como uma das consequências a explosão dos quadros nacionais como fonte de referência.

Para os estudos literários, o confronto com o paradigma aqui sim-ples mente esboçado teve consequências de monta: entre outras, a proble-matização do conceito de obra de arte literária como corpo isolado, cuja unidade e singularidade são garantidas pela figura do Autor; a crítica à concepção do texto como monumento; do primado do passado e da tradição literária como fonte irreflectida do cânone; da dependência em relação a um conceito enfático de cultura letrada; a acentuação do significado da diferença, desde logo, da diferença sexual; a recusa da fixação num quadro estritamente nacional; a recusa do olhar disciplinar.

É verdade que, como, já há anos, se defendia num texto que subscrevi com Maria Irene Ramalho (Ribeiro e Ramalho, 2001), o desafio dos estudos culturais tem de ser reflectido criticamente – por maioria de razão quando pretende, por seu turno, afirmar uma validade universal ou quando se apresenta como o telos dos estudos literários. O carácter produtivamente desestabilizador daquele desafio não pode fazer esquecer que uma das características específicas do texto literário é a capacidade de gerar o seu próprio contexto – era este um pressuposto básico da “poética sociológica” desenvolvida pelo círculo de Bakhtine (Voloshinov, 1981). Por outras palavras, para o texto literário, a cultura e a sociedade transformam-se num problema imanente, o que significa que os textos literários participam do universo da cultura não simplesmente por remissão a uma referência exterior, mas através da incorporação do cultural e do social na própria lógica da composição. Parafraseando uma formulação de Bertolt Brecht sobre a arte, os textos literários são autónomos, embora não autárquicos. Compreender a fundo o lugar dessa autonomia obriga a um trabalho crítico que não pode prescindir do contributo dos estudos culturais. Na sua capacidade de pensar transversalmente todos os domínios do social – isto é, de tomarem como objecto, não “a cultura” como domínio reservado, mas sim a forma cultural do mundo – os estudos culturais manifestam um potencial crítico indesmentível. Esse potencial, contudo, só se torna produtivo se for capaz de pensar também a “autonomia participativa” desses domínios, para usar uma expressão de Bakhtine, o que implica um reconhecimento estreme da especificidade dos diversos campos, isto é, por outros palavras, implica não a euforia inconsequente da

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diluição das fronteiras, mas o desenvolvimento da capacidade de pensar na fronteira.

No modelo das duas culturas formulado por C.P. Snow e que continua a projectar a sua sombra sobre o universo do conhecimento contem porâneo, as Humanidades estão viradas para o passado e são, portanto, pouco mais do que um resíduo pré-moderno, liberto da pressão da modernização, mas, por isso mesmo, também arredado de uma possibilidade de futuro (Snow, 1959). Têm, quando muito, uma função compensatória e não podem aspirar senão a uma posição defensiva e ao refúgio em estratégias de hibernação.

Numa das suas conversas com Eckermann, em 15 de Outubro de 1825, lamentava Goethe – e não se esqueça que, no horizonte conceptual do autor de Fausto, que também foi cientista, o modelo das duas culturas seria literalmente impensável – que o progresso das ciências fosse alargando, é certo, o âmbito do conhecimento exacto das coisas, mas, ao mesmo tempo, muitas das verdades assim produzidas de pouco servissem, isto é, não apresentassem relevância para o que lhe parecia realmente importante do ponto de vista do ser humano (Eckermann, 1955: 150). Reconhece-se aqui, evidentemente, a unilateralidade da perspectiva humanista; mas reconhece-se também a incomodidade perante a progressiva ocupação do campo do saber pela lógica da previ-sibilidade determinista. Por outras palavras, o que, aos olhos de Goethe, ia ficando cada vez mais por responder era um dos problemas centrais do Iluminismo, o problema da relação entre a racionalidade objectiva do conhecimento e a moralidade subjectiva da acção.

É neste problema que, a meu ver, continua a residir o núcleo futurante da ideia das humanidades. Lembrava Boaventura de Sousa Santos, em Um discurso sobre as ciências, que o que há de futuro nas Humanidades “é terem resistido à separação sujeito/objecto e terem preferido a compreensão do mundo à manipulação do mundo” (Santos, 1987: 44). Do mesmo modo, os autores do memorando sobre As Humanidades hoje, já atrás citado, apontavam o desiderato da “antropologização do saber” como elemento central da definição das Humanidades (Frühwald et al., 1991: 70).

Reconhecer a importância decisiva desse desiderato obriga a pensar as condições da sua realização no mundo de hoje, as quais de modo nenhum são evidentes. É verdade que, numa época cuja figura emble-mática há muito não é já Prometeu, mas sim Hermes, como lembra

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Michel Serres, aquilo que era o objecto tradicional das Humani-dades – a começar pela linguagem – adquire uma nova centralidade. Mas adquire-a em condições marcadas pela tendencial redução da linguagem a informação e, concomitantemente, pela incrível aceleração global do tempo da informação, a qual só deixa aparentemente espaço para uma crítica melancólica, impelida, tal como o Angelus Novus de Walter Benjamin, para um futuro que não deseja, ao mesmo tempo que mantém o olhar pousado num passado catastrófico que não poderá nunca redimir. Mas é nisto, precisamente, que reside o desafio da antropologização do saber, o qual tem tudo a ver com a tarefa essencial da construção da contemporaneidade. É verdade, acordar os mortos e reparar o que foi destruído, a tarefa impossível do anjo da História de Benjamin, não está, definitivamente não está, ao alcance das Humanidades. Mas está, seguramente, ao alcance delas lidar com a linguagem e a memória de um modo susceptível de produzir uma semântica do tempo histórico tão relacionada com o passado como com o presente e o futuro e, portanto, susceptível de transportar consigo um ímpeto crítico e transformador.

Talvez ninguém como Walter Benjamin tenha pensado com tanta profundidade a questão da construção da contemporaneidade como tarefa das Humanidades – contemporaneidade, no sentido de Benjamin e no sentido que aqui procuro, não tem, evidentemente, nada a ver com aquilo a que poderia chamar-se presentismo, o presentismo, por exemplo, da moda cultural ou do pensamento em voga. A sua devastadora crítica ao historismo nas teses “Sobre o Conceito de História” mantém toda a pertinência. Lembro um dos passos centrais:

O historismo representa a imagem ‘eterna’ do passado, o materialista histórico representa uma experiência com esse passado que tem um carácter único. Ele deixa a outros a frequência da prostituta ‘era uma vez’ no bordel do historismo. Permanece senhor das suas forças: é homem para fazer explodir o continuum da história. (Benjamin, 1980a: 702)

A muitas vezes citada definição da missão da história literária por Walter Benjamin deu a esta percepção, no campo específico da abordagem da literatura, uma formulação dificilmente ultrapassável:

Do que se trata não é de apresentar as obras literárias no contexto da sua época, mas de representar a época que delas dá conta – a nossa época –

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através da época em que elas nasceram. Assim, a literatura torna-se um organon da história, e a tarefa da história literária é transformá-la nisso mesmo, e não tornar o que foi escrito em material histórico. (Benjamin, 1980b: 290)

Na verdade, esta peculiar relação com o passado talvez seja particularmente palpável no âmbito dos estudos literários, cujos objectos estão permanentemente sujeitos a processos de apropriação que são, por definição, processos de produção de contemporaneidade, algo que, estou certo, todos nós teremos experimentado na nossa prática pedagógica. Não julgo estar a ser demasiado optimista se pensar que quando, no meu singelo curso de aprendizagem da leitura oferecido como opção transversal a estudantes de toda a Faculdade, discutíamos a caracterização de Aquiles na Ilíada por Frederico Lourenço como o primeiro retrato literário de um maníaco-depressivo, quando líamos algumas páginas de Christa Wolf sobre Aquiles, a besta, ou quando ponderávamos os contornos do dilema trágico de Antígona, ninguém na sala tinha a sensação de estarmos a demorar-nos em coisas do passado.

Julgo, assim, que, ao apresentar alguns fragmentos de reflexão sobre o lugar actual das Humanidades, só aparentemente me terei afastado do meu tema. Tudo o que fui apontando pressupõe um quadro institucional em que as condições de produção de conhecimento, e, por maioria de razão, de conhecimento crítico, não estejam em definitivo sufocadas pela lógica de mercado e pela audit culture imperantes na universidade-empresa, na universidade em ruínas, para usar a expressão acutilante de Bill Readings (1996). Não é seguro que esse quadro institucional esteja minimamente garantido, o que implica também que a função das Humanidades na universidade tenha que começar pelo mais elementar, a tarefa política de assegurar um espaço amplo de respiração para saberes que não se satisfazem com a irrelevância de uma posição residual. Essa tarefa só é exequível se mantivermos presente que, como tenho defendido, julgo que com boas razões, talvez nem sempre compreendidas, se há um futuro para as Humanidades, ele não reside, seguramente, no seu passado. O que significa, nomeadamente que, para parafrasear um jogo de palavras de Boaventura de Sousa Santos (1989), em vez de chorarmos o fim de uma ideia, porventura mítica, de universidade, nos cumpre trabalhar para a construção de uma universidade de ideias.

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Neste contexto, será que há espaço para um regresso da filologia? Pensadores tão diferentes como Paul de Man e Edward Said escreveram, próximo do fim da vida, textos com esse mesmo título (Man, 1986; Said, 2004). Afinal, como lembra Said, “a base permanente de toda a prática humanística é filológica, isto é, um escrutínio pormenorizado, paciente, e a atenção de uma vida inteira às palavras e à retórica de que é feito o uso da linguagem pelos seres humanos na história” (Said, 2004: 61). Trata-se, nesta perspectiva, de cultivar as virtudes do ler devagar nietzschiano. Ou, para parafrasear Karl Kraus, de formar a capacidade de ver abismos onde o que há são lugares comuns (Kraus, 1932: 3). Ou ainda, para permanecer próximo do pensamento aforístico de Kraus, quando formula o que talvez seja, para mim, a definição mais acabada de uma atitude filológica temperada por uma visão crítica, aprender que “quanto mais de perto se olha para uma palavra, mais de longe olha ela para nós” (Kraus, 1986: 291).

Aprender – e ensinar – a ler será então a tarefa mais básica, sempre renovada, que nos incumbe. A complexidade deste objectivo é-nos a todos bem familiar. Não será difícil, julgo, reunir um consenso total em torno de uma definição do núcleo mais básico da ideia da filologia como ler textos criticamente – uma definição subjacente àquela boa consciên-cia da tradição filológica que atrás fui aflorando. Mas não tenho dúvidas de que, no contexto de reflexão actual, esse consenso será de imediato desfeito, mal comecem as perguntas, mesmo que aparentemente também básicas: o que significa ler? O que é um texto? O que é ser crítico? É neste espaço de discussão e de conflito que estamos situados e é neste espaço que a filologia terá – ou não terá – um futuro. Que esse futuro é inseparável da reconfiguração do campo das Humanidades foi o que tentei ir mostrando. As Humani dades, como esteve subjacente a toda a minha argumentação, não são simplesmente uma “área de especiali-dade”. São um modelo de produ ção de conhecimento por direito próprio; a sua metalinguagem crítica proporciona um modelo de entendimento que é único no sentido em que não pode ser substituído nem subsumido em qualquer outro modo de abordagem. Neste quadro, a construção de um futuro para as Humanidades – e para as filologias – é um processo que nada tem que ver com as pretensões universalistas, mitos de origem ou ideologias identitárias através dos quais elas com tanta frequência se tornaram cúmplices da violência de uma modernidade de que, aparente-mente, buscavam demarcar-se.

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