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Valdeck Almeida de Jesus
Memorial do Inferno
A Saga da Família Almeida no Jardim do Éden
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, João Alexandre de Jesus e Paula Almeida de Jesus, falecidos,
que foram o alicerce e os principais pilares de minha vida.
Aos meus irmãos, Valquíria, Valmir, Valdecy, Valdir, Vitório, Vivaldo e
Ivonete, minhas únicas e raríssimas jóias.
Aos meus sobrinhos, Murilo, Rodrigo, Ramon, Roberto Junior, Vítor e Tiago.
Às minhas sobrinhas, Delma, Jéssica, Amanda e Paula Fernanda.
Ao meu filho, Valdeck Almeida de Jesus Junior, que sempre me dá motivos
para evoluir.
Aos amigos que passaram por minha vida deixando grandes e indeléveis
marcas.
A todos os que, de forma anônima ou não, ajudaram minha família a
sobreviver neste país chamado Brasil.
APOIO:
Ivan Ramos
Lázaro Ramos
Vanise Vergasta
CAPA
Jorge Cravo
(artista plástico baiano)
PREFÁCIO
Domingos Ailton Ribeiro de Carvalho
(escritor, poeta e jornalista)
Valdeck, muita sorte em seu caminho.
BBBeijos.
Jean Wyllys, 18 de abril de 2005
(Dedicatória no livro Aflitos, de Jean Wyllys, publicado pela Fundação Casa
de Jorge Amado, COPENE, Salvador, 2001).
Eli, Eli, lamá sabactâni: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?
Mateus, Capítulo 27, Versículo 46
APRESENTAÇÃO
Para que melhor se compreenda a referência que aqui se faz ao "Jardim do
Éden", é necessária uma prévia explicação. Minha família iniciou-se praticamente a
partir das figuras de minha mãe e meu pai. Não tive avôs nem avós, primos, tios etc.
Assim, tracei um paralelo imaginário entre minha história e a história mitológica
contada na Bíblia.
Este é um livro autobiográfico, onde assumo o papel do narrador, para contar
a história de minha vida e a de minha família, que compreende: mãe, pai e sete
irmãos. Uma saga protagonizada por uma família de baixa renda, residente em
cidade de médio porte no interior da Bahia, que expõe, ao longo de vários tópicos,
toda a ordem de dificuldades que essas pessoas enfrentaram: crises financeiras, falta
de habitação, de alimentação, de escola básica, de tratamentos médico-
odontológicos e tanto mais. Ao contrário do que costuma ocorrer com esse tipo de
gente, esta família não mediu esforços para superar as muitas barreiras que lhe
foram impostas, vencendo os mais diversos obstáculos. Sem perder a fé no futuro,
sempre incerto e duvidoso, a Família Almeida conseguiu, com sua luta, atingir os
objetivos almejados e marcar seu lugar ao sol.
Estas páginas, que contam o duro dia-a-dia desta família, têm por fim
incentivar outros sofridos brasileiros a acreditar em seu país e a lutar por seus
ideais.
PREFÁCIO
Domingos Ailton Ribeiro de Carvalho (*)
A memória individual assume uma dimensão grandiosa ao apresentar
aspectos marcantes da memória social. Essa é uma das características do livro
autobiográfico de Valdeck Almeida de Jesus. Com um título atrativo e carregado de
senso de humor (uma das marcas da personalidade de Valdeck, mesmo nos
momentos mais difíceis de sua vida), Memorial do Inferno - A Saga da Família
Almeida no Jardim do Éden revela a trajetória de uma vida sertaneja que comprova
a frase que se tornou célebre no livro Os Sertões, de Euclides da Cunha: "o sertanejo
é antes de tudo um forte".
Para enfrentar os desafios que Valdeck e sua família sofreram em Jequié,
sertão baiano, é preciso muita força de vontade e determinação. E estes são atributos
inerentes à sua vida.
Conheci Valdeck nas lutas estudantis que realizamos no Instituto de
Educação Régis Pacheco (IERP), o maior colégio de ensino médio de Jequié. Na
época em que fui eleito presidente do Grêmio Estudantil Dinaelza Coqueiro, do
IERP, Valdeck fazia parte da diretoria, na qualidade de diretor de Imprensa, onde
foi co-autor do jornal Jornada Estudantil. Nossa gestão ficou marcada na história,
uma vez que, além dos movimentos que fizemos em prol da melhoria do ensino e do
acesso à cultura e ao esporte, foi esta a primeira diretoria de grêmio estudantil livre
após o regime militar e a redemocratização do país. Já no período de estudante do
IERP e ativista do movimento estudantil, Valdeck despontava como um poeta
criativo e como um artista em busca de seu espaço.
Antes mesmo do advento da Internet, ele já entrava em sintonia com o
mundo globalizado, como membro ativo do campo literário, fato que lhe possibilitou
participar de antologias como: Poetas Brasileiros de Hoje, lançada pela Shogun
Editora, Rio de Janeiro, 1984; Transcendental, Art’Labor Eventos e Produções
Artísticas Ltda., Salvador, 1998; Heartache Poems, iUniverse, New York, 2004;
Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos - 14º volume e Antologia de
Poetas Brasileiros Contemporâneos - 15º volume, Câmara Brasileira de Jovens
Escritores, Rio de Janeiro, 2005; Ensaios Poéticos, Academia Virtual Brasileira de
Letras, Rio de Janeiro, 2005. Publicou ainda outros trabalhos literários em jornais
de grande circulação na capital e no interior do estado da Bahia, além de ter sido
colaborador do jornal A Prosa, de Brasília/DF. Publicou, em 2005, o livro de poesias
Feitiço Contra o Feiticeiro, dezenove anos após ter divulgado no Jornal de Jequié
notícia sobre o breve lançamento do referido livro. Mais recentemente, lançou
Jamais Esquecerei do Brother Jean Wyllys, pela Casa do Novo Autor, São Paulo,
2005, e fundou o fã-clube do jornalista e escritor Jean Wyllys.
Neste livro, Memorial do Inferno - A Saga da Família Almeida no Jardim do
Éden, Valdeck Almeida de Jesus narra, com detalhes, a história de sua família,
abrangendo sua mãe, seu pai e seus sete irmãos, onde conta passagens de momentos
difíceis, como aquela onde diz que "a comida variava de pão seco com café preto a
pirão de farinha com água fria. Muitas vezes dormíamos com fome, acreditando no
que minha mãe dizia: ‘amanhã Jesus vai trazer comida’. Eu me irritava e xingava
muito, pois todos os dias eu ouvia a mesma história e Jesus nunca chegava com a
comida prometida". Mas não é só. O autor se reporta também a momentos de
sucesso, como o fato de ter sido aprovado em concurso do Tribunal Regional do
Trabalho, em decorrência da sua boa capacidade intelectual, e de ter sido, desde
criança, um aluno exemplar.
Valdeck Almeida de Jesus é exemplo para todos que sonham e procuram
concretizar seus sonhos. Ele tem um pensamento fascinante: devemos ter sempre
uma atitude positiva diante da vida e deixar esta imagem transparecer aos outros.
Por este e mais tantos ensinamentos, e pela edificante trajetória de vida do autor,
vale a pena a leitura deste extraordinário livro.
MEU PAI, MINHA MÃE
Eu devia ter meus cinco anos de idade, mais ou menos. Ao entardecer, surgia
ele ao longe, com um machado nas costas, roupas surradas e rasgadas pela ação do
mato. As primeiras lembranças que tenho dele são de quando eu e Quira ficávamos
na porta da casa (casa alugada de Nazinha), esperando por sua chegada no final da
tarde. E ele nunca esquecia de passar na venda de Seu Júlio para nos comprar
bombons.
Semi-analfabeto, trabalhava em fazendas, cortando madeira. Não sei muito
de sua vida, pois, além de trabalhar muito e estar sempre fora de casa, na época em
que convivi com ele eu era muito criança; além disso, em minha adolescência, meu
pai vivia doente e não tinha um espírito conversador como o de minha mãe. Antes
de se casar com ela, teve um outro casamento, que lhe deu seis filhos, até ficar viúvo.
João Alexandre de Jesus era um pai do tipo rígido, que batia de cinto quando
necessário. Mas também sabia ser amigo, dar bons conselhos e fazer carinhos, ao
seu modo. Lembro-me, uma vez, já morando na casa de Amanda, de uma ocasião em
que ele queria me bater, por uma travessura, da qual não me recordo bem. A porta
da rua era muito alta, para descer havia uma espécie de escada. O terreiro era de
cascalho. No afã de fugir das cintadas certeiras, joguei-me porta abaixo, caindo e
esfolando toda a barriga no cascalho. Meu tórax e abdome sangravam, eu chorava de
dor. Então ele disse: "Vem!". Eu relutei, com medo de apanhar. E ele continuou já
com a voz mais mansa: "Não vou te bater mais". Eu fui e ele não bateu... Esta cena se
inscreveu para sempre em minha memória.
Era um homem de pouca saúde. Sobretudo, pelas más condições de seu tipo
de trabalho. Lembro-me de que minha mãe contava sobre uma tora de madeira
(uma árvore) que havia caído em cima de meu pai, em uma das roças onde
trabalhou. Ele também sofria de uma sinusite crônica, que o deixava atordoado.
Vivia a queixar-se de dores de cabeça. Com a velhice, tudo foi se acumulando, e ele
acabou morrendo, vitimado por uma série de problemas de saúde.
Ao final da vida, havia momentos em que perdia a memória. Ficou violento e,
por segurança, minha mãe passou a mantê-lo trancado no quarto, para evitar que se
ferisse ou que saísse pela rua sem rumo. Nessa época, início dos anos 80, criou o
hábito de pedir comida às pessoas que iam visitá-lo. Dizia sentir fome, porque os
filhos comiam tudo e nada deixavam para ele. As pessoas acreditavam no que ele
dizia e lhe levavam comida, mas não sem antes advertir-nos para não mais agirmos
daquela maneira com o nosso próprio pai. Para resolver o assunto, minha mãe, um
dia, pediu aos que traziam comida a meu pai para ficarem escondidos e observá-la
enquanto lhe dava a comida; ele comia tudo. Depois, chamava a visita para vê-lo
novamente. Como ele não reconhecia ninguém, nem os próprios filhos, repetia a
mesma história de que teríamos comido tudo, sem deixar nada para ele.
Meu pai foi aposentado por invalidez. Recebia um salário mínimo por mês.
Quando morreu, esta pequena renda se extinguiu e minha mãe se viu com oito filhos
menores, sem condições financeiras de sustentá-los.
O velho João - como costumávamos chamá-lo - sofreu muito durante a vida e,
quando esteve doente, de cama, quase à beira da morte, seu sofrimento foi muito
maior. O sofrimento dele era também o nosso sofrimento. No dia de sua morte,
Albérico, um parente distante, tirou fotografias de meu pai na cama, na hora em que
agonizava. Eram seus últimos momentos de vida. Assisti a tudo e ajudei, inclusive, a
colocar uma vela em sua mão. Para ser franco, devo dizer que não me comovi com
sua partida, não senti sua falta, não fiquei triste. Ao contrário, senti mais alívio por
vê-lo partindo do que a dor de perder um ente querido. Vim chorar sua falta
somente dez anos depois. Era um domingo de Dia dos Pais, e neste dia senti
profundamente a sua ausência. Fiz até um poema em sua homenagem.
***
Paula, minha mãe, costumava falar demais. Sempre contava muitas histórias
de sua vida, mas, na maioria das vezes, nós, os filhos, não levávamos muito a sério o
que ouvíamos. Na maior parte do tempo, simplesmente fingíamos ouvir suas
histórias, e, em outras ocasiões, corríamos, deixando-a a falar sozinha.
Ela contava que a mãe tinha morrido de parto e que fora criada pelo pai até os
doze anos de idade; que sua avó paterna era uma índia "pega a dente de cachorro".
Segundo ela contava, seu pai era um ambulante, louro e de olhos azuis. Essa história
foi confirmada, após sua morte, por uns primos, descobertos por minha irmã
Valquíria lá perto do Frisuba - cerca de 15 quilômetros de Jequié -, local onde minha
mãe passou boa parte da infância e juventude.
Cabe dizer aqui que nossa idéia de família remonta praticamente à figura de
minha mãe e de meu pai, já que não tínhamos conhecimento da existência de outros
parentes.
O fato de meu avô materno ter sido loiro e de olhos azuis explica o fato de
quase todos nós termos nascido com cabelos loiros, que mais tarde teriam sua cor
modificada para preto ou castanho claro, pelos efeitos do tempo. Explica também os
olhos claros com que alguns de nós fomos contemplados. Antenor, um de nossos
recém-descobertos primos, afirma que esse avô materno era descendente de
italianos. Diz que ele vivia pelas bandas de Santo Antônio de Jesus e que era,
realmente, um ambulante. Trabalhava com confecção artesanal de cestas e produtos
feitos com palha.
Minha mãe sempre teve problemas sérios de saúde. Contava que, quando
criança, sofria de uma espécie de doença, que nunca entendi bem do que se tratava,
se um problema de coração ou de ordem espiritual. Dizia que, durante uma época,
ficava presa num quarto, amarrada em algo semelhante a uma camisa-de-força, por
não ter controle dos movimentos do corpo. Ficava a se debater todo o tempo, a
ponto de os parentes precisarem amarrá-la à essa camisa-de-força improvisada, feita
com couro de boi, para que não se machucasse. Essa situação deve ter durado muito
tempo e marcado bastante sua vida, pois freqüentemente voltava a tocar no assunto.
Quando já tínhamos mais consciência da vida, presenciamos muitas de suas
crises: sistema nervoso, asma, coração. Costumava ficar, por boa parte do tempo,
sem os movimentos dos membros inferiores, praticamente paralisada. Arrastava-se
pelo chão, sem qualquer sensibilidade nas pernas. Não sentia a parte inferior de seu
corpo nem mesmo ao fazer suas necessidades. Era um sofrimento só, tanto para ela
quanto para as crianças. Precisava de cadeira de rodas. Conseguimos uma, depois
que tive a idéia de enviar uma carta ao programa apresentado por Geraldo Teixeira,
na Rádio Baiana de Jequié. Nesta oportunidade, foi-nos doada uma cadeira de rodas
usada, que serviu à minha mãe até ela apresentar melhoras e poder substituí-la por
um par de muletas. Após muitos anos, finalmente, voltou a andar.
Essa foi uma das fases mais marcantes para a vida de minha mãe, e também
para a nossa. Ficávamos mortos de vergonha por termos de empurrar aquela cadeira
rua acima e rua abaixo, para que ela conseguisse as esmolas que ajudariam a gente a
comer, beber, se vestir, estudar, sobreviver. A cadeira era imensa, minha mãe
pesada, e nós franzinos e fracos para agüentarmos todo aquele peso; além da
questão, é claro, da timidez e vergonha de sermos vistos empurrando a cadeira de
rodas. Mas não tínhamos escolha. Ou empurrávamos a cadeira para pedir esmolas
ou morríamos de fome. De minha parte, sentia uma vergonha enorme ao ser visto
conduzindo aquela cadeira de rodas pelas ruas, sob o sol quente.
Durante todo o tempo passado ao lado de minha mãe, o que mais me recordo,
além das constantes mudanças de endereço, já que não morávamos em casa própria,
eram as idas e vindas ao Hospital Geral Prado Valadares, onde ela permanecia
internada por grandes intervalos de tempo. Durante essas fases, cada um dos filhos
ficava na casa de um vizinho, até que ela retornasse e mostrasse condições de
reassumir a casa e as crianças. Esses vizinhos chegavam a lhe propor que doasse os
filhos, alegando que as crianças poderiam ter vida mais digna e confortável, mas ela
jamais admitiria tal hipótese. Dizia: "Onde come um, comem dois". Passava apertos,
privações, necessidades, mas jamais seria capaz de doar qualquer um de seus filhos.
Era uma experiência sem igual, já que na casa do anfitrião tínhamos tudo o que não
tínhamos em nossa casa: comida, cama, banho, televisão. Mas o desejo maior era de
que minha mãe pudesse voltar do hospital e todos retornássemos ao aconchego do
lar e do colo materno. Era uma grande festa quando recebíamos a notícia de que
nossa mãe tinha tido alta médica e que estava voltando para casa.
CENAS DE UMA INFÂNCIA
Primeira residência - Casa de Nazinha
A casa ficava num local que hoje se chama "Banca", no bairro Jequiezinho,
em Jequié. Na época em que moramos ali, não havia água encanada, linha de ônibus
nem calçamento nas ruas. Cabe aqui ressaltar que, passados mais de quarenta anos,
esta e outras ruas do bairro permanecem ainda sem calçamento e sem linha regular
de transporte coletivo. Apenas uma linha de ônibus circula nos arredores.
Os esgotos ainda correm a céu aberto e as casas mantêm o aspecto da pobreza
e da miséria que ainda ronda o antigo bairro. Vivi ali boa parte de minha infância.
Passei fome e brinquei por entre os lixos, catando ossos para vender.
Freqüentemente pedia comida na casa de um e de outro. Este fato rendeu a mim e à
minha irmã Valquíria (Quira) alguns apelidos do tipo "Gordurinha" (Quira) e
"Paquira" (eu), pois, quando íamos à casa de Seu "Santin" pedir comida, eu
costumava dizer: "Minha mãe falou pro senhor mandar um pedacinho de carne
PAQUIRA", enquanto Quira vivia pedindo "uma gordurinha". Seu "Santin" matava
porco e era tido como rico, pois em sua casa não faltavam comida, energia elétrica e
sanitário (com uma fossa no quintal).
Lembro-me de uma vez que eu estava catando ossos nos fundos do quintal
dele, quando, ao pular sobre um esgoto, caí, atolando as duas pernas dentro das
bostas e cortando o pé direito nos cacos de vidros alojados no fundo do lamaçal. Foi
um horror. Um drama. Corri para casa aos prantos e minha mãe cuidou de mim. Eu
gritava e chorava de dor, desesperado de ver toda aquela inundação sanguínea a
jorrar do meu pé.
A casa era de taipa. Dois quartos, uma salinha e uma cozinha minúscula. Foi
construída sobre uma encosta, sendo que a parte da frente da casa, que dava para a
rua principal, tinha uma escada enorme para descer até o nível da rua. E a porta dos
fundos era no mesmo nível do solo, porém dava para uma ladeira, que ia dali da
porta da cozinha até a rua que passava atrás. Era casa de aluguel. Acredito que
Valquíria tenha nascido ali, já que devemos ter morado naquela casa por volta do
ano de 1967. Recordo-me bem do momento em que minha mãe entrou em trabalho
de parto e foi para o hospital. Ao voltar com o nenê, sua cama foi arrumada com
lençóis floridos. Ficava ali deitada o tempo todo com seu bebê, respeitando o
resguardo do parto.
Os vizinhos eram os próprios donos da casa: Maria, mãe de Nazinha, que, por
sua vez, era mãe de Lúcia e de Domingos. Havia também uma família que morava
perto: Maria de Ademário, sua filha Lúcia e mais outros filhos, dos quais não me
recordo bem. Atrás da casa havia um beco, onde se guardavam ossos. Durante a
noite, os cachorros apareciam para roê-los. Faziam uma algazarra que me
amedrontava. Por inúmeras vezes, acordava chorando e gritando de medo. Achava
que os cães estavam embaixo de minha cama de lona. Mas logo aparecia minha mãe
para me tranqüilizar, dizendo que os cachorros estavam do lado de fora. E, como eu
não me convencia, ela me levava para dormir em sua cama.
Nossos móveis se resumiam a uma pequena cama de madeira e um armário
de cozinha, do tipo cristaleira, porém sem os vidros nas portas. O fogão era de barro
e o combustível era lenha. Não havia água nem luz. Saneamento básico, nem pensar.
Nenhuma casa, em todo o bairro, possuía esgotamento sanitário.
Eu morava a cerca de 500 ou 600 metros da venda de Seu Júlio, que para
mim pareciam quilômetros. Aos olhos de uma criança tudo é imenso, gigantesco... E,
para aumentar a sensação de distância, de minha casa até a venda não havia casas
nem de um lado nem do outro da rua. O que havia era uma cerca, formando uma
estrada, uma passagem chamada de "corredor", por onde passava muito gado.
Muitas vezes eu via passar centenas de milhares de animais, guiados por vaqueiros,
que advertiam aos moradores do perigo de se aproximar da manada. Era um
espetáculo que durava horas e horas, como se fosse um mar interminável de bois e
de vacas. Nos dias de hoje, esse espetáculo já não existe. As criações se restringem a
lugares mais afastados da cidade e também já não há tantos animais como havia
antigamente.
Quando eu ia à venda de Seu Júlio comprar alguma coisa, tinha sempre que
enfrentar um menino que me batia, enquanto o tio dele ficava esperando eu acabar
de apanhar. Uma vez, apanhei bastante desse garoto. Quando minha mãe soube que
isso acontecia, procurou os parentes dele e se queixou. Desse dia em diante não
apanhei mais.
Uma lembrança que até hoje habita a minha mente é a do boato sobre o "fim
do mundo" ou "dia da escuridão". Diziam que o mundo ficaria sob as trevas. Minha
mãe, muito precavida, tinha várias velas bentas, que seriam as únicas a
permanecerem acesas quando o "escuro" viesse, segundo ela. Tinha também água
benta e pão bento, que seriam os únicos alimentos permitidos durante os dias de
escuridão. Penso que tais boatos eram criados pela igreja católica para amedrontar
as pessoas. Quanto à previsão de fim do mundo, minha mãe acreditava piamente
que o mundo se acabaria no ano 2000. A passagem desse ano foi quase uma
decepção para ela, mas também uma alegria, por saber que viveria um pouco mais
aqui na Terra. No entanto, a previsão que fez de sua própria morte, que viria a
ocorrer neste mesmo ano de 2000, realmente aconteceu, no triste mês de junho.
Marcaram-me também as folhas de juá, que usávamos como creme dental. A
fruta do juazeiro é pequena como uma azeitona, porém redonda e muito doce. As
folhas, no entanto, são amargas e, segundo a crença popular, possuem propriedades
medicinais, prevenindo cáries e outras doenças bucais. Crença ou não, fato é que,
hoje, muitos cremes dentais exibem em suas embalagens, com orgulho, a folha de
juá na composição do produto. Uma outra fruta que comíamos muito era a
"quixaba", parecida com o juá, porém de cor preta, diferente da outra, que, quando
madura, fica amarelinha.
***
Moramos também numa casa na antiga "Rua da Palha", atual Rua Vovó
Camila, no Jequiezinho. Era uma pobreza franciscana por todo o bairro. Casas de
palha e de "adobões", muita miséria e falta de tudo. Recordo-me que nessa época eu
e Quira freqüentávamos uma escola na casa de Seu Canuto. A casa era imensa aos
nossos olhos. Anos mais tarde, voltamos ali e constatamos que a casa não era tão
grande assim. Era apenas a impressão dos olhos de uma criança, que amplia tudo.
Havia um extenso matagal onde brincávamos. As casas ficavam somente de um lado
da rua. Do outro, era mato fechado, onde os moradores jogavam o lixo e onde as
crianças brincavam de esconde-esconde. A lenha para os fogões era retirada também
dali. Em dias de ventania, o lixo era espalhado pra todo lado, inclusive pra cima das
casas. Lembro de uma expressão que aprendi, nessa época, de tanto que os mais
velhos repetiam. Quando o vento começava a soprar forte, costumava-se dizer:
"Aqui tem Maria Virgem!". Era uma alusão à mãe de Jesus, para que o vento
diminuísse sua intensidade e evitasse atingir a casa daqueles que pronunciavam a
"santa frase".
Atrás da casa havia também muito mato. Havia sítios, onde os proprietários
criavam cabras e onde minha mãe buscava água para abastecer a casa. Um desses
sítios pertencia a um "primo" de minha mãe. Mas, como não dispúnhamos de
muitas informações a respeito dos familiares dela, sempre achávamos que as
pessoas que ela nos apresentava como parentes eram apenas pessoas com as quais
tinha alguma afinidade. Esta rua era um prolongamento do "corredor" por onde
passava o gado para as fazendas, tocado pelos vaqueiros.
***
Moramos ainda na casa alugada de Amanda, na Rua Professora Virgínia
Ribeiro. Era uma casa de meia água, modelo de construção no qual o telhado se
projeta em apenas uma direção, da parede mais alta para a mais baixa. Quando
chovia, caía água de chuva por cima da parede, e minha mãe ficava morrendo de
medo que a parede caísse, já que era feita de "adobões". A casa não tinha água
encanada, luz elétrica nem nada.
Nessa época, a Rua Professora Virgínia Ribeiro também tinha casas somente
de um lado. No outro, havia um matagal cheio de planta espinhosa, mandacaru,
urtiga, cansanção e arbustos da espécie. Era dali que as pessoas, inclusive a nossa
família, tiravam, para o consumo diário, a lenha, que era o combustível dos fogões
daquele tempo. O fogão à lenha, marca registrada de todas as casas da época,
enorme, feito de adobes, ficava bem no meio da cozinha.
Nossa família costumava ter sempre muitos problemas de saúde. Uma vez,
fiquei com o corpo todo ferido. Não sei que doença era aquela, mas lembro que
minha mãe me banhava com sumo de folhas de "vassourinha". Eu sentia muita dor
quando o sumo entrava em contato com as feridas. Minha irmã Nete também
apresentou problemas de ferimentos pelo corpo. Mas, no caso dela, as erupções se
concentravam mais no couro cabeludo que, de tão ferido e purulento, acumulava até
bicho de mosca em sua cabeça. Era uma nojeira só.
Minha madrinha, Dona Nenê, era uma senhora negra que morava perto de
nossa casa. Eu a tratava por Comadre Nenê, exatamente como minha mãe a
chamava. Nunca consegui pedir-lhe a bênção nem chamá-la de "madrinha".
Desta época, lembro nitidamente de um episódio em que eu, com meus seis
ou sete anos de idade, viajava no ônibus com minha mãe, e um passageiro, sentado
no banco de trás, começou a brincar comigo. Como eu não respondia nem
participava da brincadeira, o homem protestou dizendo que eu era muito enfezado e
que tinha a cara fechada. Hoje, ao lembrar desta cena, percebo o quanto mudei.
Atualmente, sou um sujeito brincalhão, que tenta sempre se manter alegre e tirar
uma boa lição de tudo o que a vida possa oferecer, seja de bom ou de ruim.
Insere-se também nessa época um outro episódio do qual jamais esquecerei.
Sempre via as pessoas pularem dos ônibus antes que eles parassem no ponto.
Achava aquilo tão bonito que me senti tentado a fazer o mesmo. Um dia, antes de o
ônibus parar no ponto onde eu deveria descer, me joguei. Logicamente, acabei
caindo de mau jeito e me machucando. Fiquei todo ralado e sujo de terra. Entrevado
no chão, todo empoeirado, me apavorei entre arranhões, sangue e lágrimas. Minha
mãe ficou desesperada. O motorista e os passageiros desceram para ver o que havia
acontecido. Foi uma confusão só. Felizmente, tudo não passou de um susto e de
raladuras pelo corpo inteiro. Um desconhecido que passava na hora se ofereceu para
me levar de bicicleta até em casa. Mais uma lição aprendida.
Nessa época, meus irmãos Zezé e Édson, da primeira família de meu pai,
visitavam meu pai regularmente. E, numa dessas visitas, acharam por bem levá-lo
com eles para São Paulo, onde poderiam cuidar melhor de sua saúde. Ficou então
decidido que minha mãe, eu, Valquíria, Valmir (Mi) e Valdecy (China) - filhos da
segunda família de meu pai - ficaríamos em Jequié, na casa de Amanda, cujo aluguel
passaria a ser pago por Édson e Zezé. Ficou acertado que as despesas com a nossa
alimentação também correriam por conta deles, que enviariam o dinheiro
diretamente para Amanda, dona da casa onde morávamos, e para Preta, dona da
venda onde a comida seria comprada.
Todos os meses as despesas eram cobertas, conforme o acordado. Mas, com o
passar do tempo, o dinheiro parou de chegar, tanto para o aluguel quanto para a
comida, e Preta parou de nos vender fiado. Quanto à casa, Amanda permitiu que
continuássemos morando, agora de graça, com pena de mandar embora uma mãe
com quatro filhos pequenos. Por falta de comida, minha mãe não teve outra saída a
não ser sair para pedir esmolas pelas casas do centro da cidade. Mas sempre dizia
que estava trabalhando. Não queria que a vizinhança soubesse que ela era uma
pedinte (no interior, pedinte é chamado de "esmoler").
Onde atualmente está erguido o edifício Mansão Avenida, na Avenida Rio
Branco, Centro da Cidade, existia um casarão enorme. Era um dos pontos onde
minha mãe costumava pedir esmolas, arrastando eu e Quira pela cidade inteira. Não
lembro o nome da proprietária da casa, mas lembro claramente que existia em seu
quintal um carrinho tipo jipe, com quatro rodas, e que se locomovia por pedais
internos. Era um carro todo velho e enferrujado, mas com o qual nos divertíamos
muito toda vez que íamos lá. Brigávamos para disputar quem iria brincar com o
carro. Minha mãe, diante da cena, intervinha para evitar a confusão, dizendo que
meu pai traria um Velotrol novo de São Paulo, assim que voltasse de seu tratamento
de saúde. Passou-se uma vida inteira e o Velotrol não chegou. Mas ficou a lembrança
desta promessa em nossas mentes, que jamais será apagada.
***
Não havia transporte coletivo circulando naquela região. Era uma rua de
pobres, e pobres não tinham dinheiro para pagar ônibus. A linha que passava mais
perto, a um quilômetro de distância, cortava a Avenida Franz Gedeon. O trajeto até
ali tinha de ser feito a pé ou, em caso de emergência, tentava-se arranjar uma
carona, coisa muito difícil, uma vez que toda a vizinhança era pobre e mal tinha
dinheiro para a comida. Também não existia calçamento. Anos depois, a energia
elétrica foi ligada na rua, mas em nossa casa nunca pudemos usufruir deste
benefício, pois não tínhamos condições de arcar com a conta mensal. Lembro dos
inúmeros buracos que a companhia de energia elétrica abriu na rua para colocar os
postes, dentro dos quais a criançada costumava se divertir.
Minha mãe passou a pegar água na casa de Amanda, tão logo ela foi instalada
lá. Usava-a para consumo e para lavar roupas e pratos. Nessa época, éramos apenas
eu, Quira, Mi e China, os quatro filhos mais velhos. Com o passar do tempo, as
coisas foram melhorando. Minha mãe já contava com uma boa quantidade de
pessoas conhecidas nos arredores, e muitas dessas pessoas ajudavam regularmente
a nossa família. À medida que o tempo passava, minha mãe ia aprendendo a cultivar
cada vez mais suas amizades. E, como ficamos muitos anos morando nesta casa, o
círculo foi aumentando.
Certa vez, morando ali, fui com minha mãe ao centro da cidade para pedir
esmolas. Ao passarmos pela Praça Ruy Barbosa, vi alguns clipes de papel espalhados
pelo chão. Achei bonito e parei para catar. Quando terminei de pegar todos, olhei em
volta à procura de minha mãe e não a vi por perto. Perdi-me dela, fiquei apavorado.
Comecei a chorar e a gritar por ela. Aos prantos, lembro de dar voltas e mais voltas
no quarteirão onde ficava o antigo Mercado Municipal.
No final, um senhor chamado Seu Nenzinho me pegou pelo braço e me levou
para a Rádio Baiana de Jequié. Lá me colocou no ar, no programa de Geraldo
Teixeira, e depois me levou para a sua casa, onde permaneci até que minha mãe
fosse me buscar. Ela já conhecia Seu Nenzinho e a esposa, Dona Lia; meu pai já
havia trabalhado em uma de suas fazendas. Fiquei em sua casa apenas um dia. No
dia seguinte, minha mãe já estava lá para me pegar.
Primeira escola
Foi na Escola de Lina que eu e Quira começamos a estudar. Eu com seis anos
de idade e ela com cinco. Era uma escola particular, que funcionava dentro da casa
da professora, na Rua da Banca. Até hoje a escola existe, no mesmo lugar. Saíamos
pela manhã e voltávamos à noite, o turno era em tempo integral. Foi lá que aprendi
o ABC. Quando não sabíamos o dever ou esquecíamos o nome de alguma letra, a
professora nos batia com palmatórias. Mamãe nos dava dinheiro para a merenda,
cinco centavos. Na hora do recreio saíamos para comprar a merenda e brincar
dentro de um matagal que rodeava a escola.
Íamos e voltávamos sozinhos, não havia perigo algum. Nessa época, minha
mãe sempre me mandava à Venda de Preta (que era branca) para comprar algo.
Permanece ainda nítida a lembrança do miolo dos pães, que comia pelo caminho.
Outro episódio bizarro foi quando fui comprar um ovo e acabei por esmagá-lo entre
os dedos, de tanto cuidado para não deixá-lo cair. Voltei para casa com os
fragmentos da casca do ovo na mão, e, quando minha mãe perguntou por ele, abri a
mão, que guardava apenas as fraturas de sua casca. Não, ela não me bateu nem me
castigou por causa disso. Compreendera o meu dilema.
A segunda escola foi a de Neuza, onde aprendi a ler e a recordar (ler
novamente) o livro Alice. Aprendíamos a ler e a fazer contas com a tabuada. Como
eu terminava de ler o livro inteiro antes do final do ano, tinha que "recordar".
Chorava muito quando não conseguia ler uma determinada palavra e era colocado
de castigo, em frente à professora, até conseguir lê-la corretamente.
Formação Religiosa
Nascemos num país católico e, fatalmente, seguimos a religião da maioria. A
vida de minha mãe era nas igrejas. Não faltava às missas dominicais e, nos demais
dias da semana, sempre que possível, arrumava um jeito de assistir às missas
regulares. Lembro-me, com certa ternura, de uma amiga dela, chamada Anália, mãe
de Roxa, Pedro e Dozinho, também muito fervorosa, que, de vez em quando, nos
trazia hóstias para colocarmos na sopa. Não eram propriamente as hóstias que eram
servidas na missa, mas sim a folha de goma com os furos de onde haviam sido
retiradas as hóstias.
Eu e Quira freqüentávamos o catecismo, que era coordenado por Isaías, um
dos cristãos da Igreja do Convento. Para nós, era uma festa. Ele vinha nos buscar em
casa, de carro, levando também várias outras crianças. Era o melhor dia da semana,
pois significava a chance que tínhamos de conhecer e interagir com outras pessoas,
sem falar na diversão que tudo aquilo nos proporcionava.
Minha mãe adorava a igreja católica e nunca perdia uma procissão. Uma vez,
quando acompanhávamos uma dessas procissões, um menino me deu uma vara
para segurar. Quando segurei firme, ele puxou a vara, que escorregou por entre
meus dedos, deixando minha mão toda suja de bosta. Tive de agüentar a mão
lambuzada e o maior fedor até o final da procissão, quando pude ir para casa me
lavar. Odiei aquele menino.
Minha mãe tinha feito uma promessa para São Roque, pedindo ao santo que a
curasse do problema das pernas: um problema de saúde que a deixava paralítica.
Após cumprir a promessa, começou a sentir alguma melhora, o que contribuiu para
aumentar ainda mais sua fé, motivando-a a fazer uma festa para o santo. Para
realizar essa festa, ela se vestia com uma roupa azul, comprida até os pés, pegava a
estátua de São Roque, improvisava uma espécie de altar ambulante e saía em
direção a todas as casas da cidade, pedindo esmolas para ajudar no evento. No dia
da festa, vinham as mulheres rezadeiras e muitos outros fiéis comer o arroz-doce
que era servido. A casa, repleta de velas acesas, era toda arrumada para aquela
cerimônia. A reza durava horas e mais horas. Era muito divertido ver aquilo tudo.
Uma autêntica demonstração de fé e de confiança em São Roque, mais um dos
representantes de Deus na Terra.
Foi também nessa oportunidade que tivemos contato com o Centro Espírita
Bezerra de Menezes, atraídos por cestas básicas, remédios gratuitos, cobertores e
roupas. Houve vezes em que até dinheiro minha mãe recebera daquela instituição.
Tornamo-nos conhecidos do pessoal do "Centro", que vinha até nossa casa para
trazer doações. A fome nos atraiu para onde a comida era ofertada gratuitamente.
Com o tempo, minha mãe passou a assistir às palestras de doutrinação. Levava
sempre a mim e a Quira com ela. Acabamos nos acostumando a ouvir a palavra de
Deus e acabamos ficando por lá, sem deixar, contudo, de freqüentar a igreja católica,
que também era uma fonte de alimentos para os pobres.
Em algumas reuniões do Centro Espírita não era permitida a presença de
crianças. Nessas ocasiões, minha mãe nos deixava na casa de Dona Laurita, que
ficava nas imediações do Centro. Enquanto esperávamos pelo seu retorno,
divertíamo-nos imitando o que víamos no Centro Espírita, inclusive os movimentos
dos médiuns dando seus passes. As filhas de Dona Laurita morriam de rir do
espetáculo que lhes proporcionávamos.
LUCI VALVERDE MAGALHÃES
Minha mãe sempre teve saúde muito frágil e, após a viagem de meu pai, ficou
bastante abalada. E não era para menos. Viu-se sozinha, com quatro filhos para
cuidar e sem nenhuma fonte de renda para garantir sustento e habitação. Pouco
tempo depois da partida do marido, ela resolveu ir também para São Paulo, mas não
conseguiu contar com o apoio de meus irmãos Édson e Zezé. Então resolveu pedir
ajuda à Prefeitura Municipal, então comandada por Caribé. O prefeito forneceu-lhe
as passagens. Quanto à grana para a comida, minha mãe conseguiu vendendo a
mobília que possuíamos. Começou a planejar a ida da família para Sampa: entregou
a casa, embalou as roupas e fez pacotes de comida. Porém, um dia antes da partida,
ela teve um sonho, no qual via que o ônibus em que viajaríamos sofria um acidente.
Eu aparecia no sonho como único sobrevivente, chorando em meio aos corpos dos
passageiros e destroços do veículo. Prontamente ela cancelou a viagem. Amanda,
por sorte, permitiu que continuássemos a morar na casa. No dia seguinte ao dia da
suposta viagem, a Rádio Baiana noticiou um acidente ocorrido com um ônibus da
empresa pela qual viajaríamos, e que apenas um bebê de seis meses de idade havia
sobrevivido.
***
Meu irmão Valmir tinha freqüentes problemas de falta de ar, quando a asma
lhe atacava. Ele ficava ruim, quase morto. Eu não compreendia a gravidade da
situação, mas percebia o quanto minha mãe ficava preocupada quando Valmir era
vitimado por seus ataques de falta de ar. Ela tentava de tudo, sem dinheiro para
médico, sem dinheiro para remédio... Dava-lhe cigarros de flor de zabumba para
fumar, o que amenizava a situação.
Uma vez, Luci Valverde, freqüentadora do Centro Espírita, ao ver meu irmão,
pela primeira vez, teve uma crise de choro e disse que Valmir deveria ter sido
alguém importante na vida dela em alguma vida pregressa. Fez de tudo para que
minha mãe entregasse meu irmão para ela cuidar. Com a permissão de minha mãe,
Mi foi morar com Luci. Ela sempre trazia Mi para minha mãe ver. Quando ele
chegava em nossa casa, trazido por Luci, vinha sempre muito bem vestido e gordo -
contrastando conosco -, resultado da vida boa que levava por lá, comendo iogurte e
outras coisas que nós, nem em sonho, ousávamos imaginar. Passado o devido
tempo, minha mãe resolveu pedir o Mi de volta. E Luci o trouxe definitivamente
para casa, já curado da asma, em virtude dos tratamentos médicos caríssimos a que
fora submetido, sob os cuidados dela.
Já não tínhamos o que fazer para sobreviver, quando Luci Valverde ofereceu a
fazenda dela para que fôssemos lá morar e trabalhar. A viagem foi acertada, após
minha mãe aceitar a oferta. Partimos para a fazenda, sem saber nem para que lado
ficava. Só sabíamos que se chamava Fazenda Turmalina. E Luci, conhecíamos
apenas das reuniões doutrinárias do Centro e da ajuda que ela nos dava. Minha mãe
já sabia que ela morava em frente ao Posto Shell, no Edifício Jordan, onde
funcionava, até bem recentemente, uma concessionária de automóveis e uma
emissora de rádio. Muitas vezes, acompanhei minha mãe quando de suas idas à casa
de Luci. Íamos para pedir esmolas e sempre recebíamos alguma coisa, comida ou
roupas usadas.
Sem muitas alternativas, fomos todos morar na Fazenda Turmalina, onde
minha mãe trabalhava na cozinha de Luci, quando de suas eventuais estadias na
fazenda, que ocorriam geralmente a cada dois meses. Ela permanecia por lá durante
uma semana ou mais. Da viagem, as recordações são vagas. Lembro apenas que a
sede da fazenda ficava a uns quarenta quilômetros de Jequié.
A princípio, ficamos morando numa casinha dentro da sede da fazenda. Era
uma casa dividida ao meio, formando dois cômodos menores, mas sem quartos ou
espaço destinado a uma cozinha. Tinha uma porta na frente e outra nos fundos. No
meio, havia uma janela que dava para um terraço onde, outrora, colocava-se o café
para secar. Não havia água encanada ou energia elétrica, mas era confortável. A
casinha parecia estar fechada há muito tempo, pelo seu estado de má conservação e
pela quantidade de mofo em seu interior.
Na fazenda havia energia elétrica gerada por motor a diesel, que era ligado
somente durante as visitas de Luci. Não fazia muita diferença para nós, já que
estávamos acostumados a viver a vida sem luz e sem água. O motor fazia um barulho
infernal, quando ligado, mesmo estando a uma boa distância da sede. Lembro-me
que ousei emendar uma ligação de energia elétrica na casinha, certa vez, e tudo
funcionou muito bem.
Na frente da casa havia um pequeno pátio, onde ficava uma geladeira velha,
que não prestava para mais nada além de depósito de bananas. Colocávamos
bananas dentro da geladeira, deixávamos a porta fechada, e as bananas
amadureciam com rapidez por causa do calor que as abafava. Certa feita apareceu
por lá alguém que precisou dormir em nossa casa. A visita dormiria na cama de
China. Por causa do frio, ela não parava de repetir a China: "Chega pra cá,
neguinha!". E a resenha pegou. Passamos a perturbar China com essa história por
muito tempo: "Chega pra cá, neguinha!".
Brincávamos de vaqueiros fictícios, mas usando nomes de pessoas que
exerciam o ofício na própria fazenda. Eu era Calango, Quira era João Grilo, China
era Edmundo e Mi era Calixto. Víamos esses vaqueiros como uma espécie de heróis
e, por isso, gostávamos de imitá-los em nossas brincadeiras.
Minha mãe trabalhava na cozinha e na limpeza geral da casa de Luci, quando
de suas idas à fazenda. Tinha outra mulher, chamada Jovelina, se não me falha a
memória, que também fazia o serviço da casa. Eu cuidava das plantas, molhando-as
todos os dias, e tomava conta do jardim em frente ao casarão. Uma vez fui ajudar na
cozinha e tomei uma bronca enorme de Luci, quando me viu tirando a casca do alho
com a unha. Ensinou-me, pacientemente, que aquilo era falta de higiene e me
mostrou como fazer o trabalho usando uma faca.
Na casa de Luci, que era enorme, tinha geladeira a gás. Eu achava
interessante aquele fogo aceso para gelar comida... A casa tinha varanda em toda sua
volta, muitos quartos, escritório, biblioteca, quarto de empregada, despensa, sala de
estar e de jantar e um jardim enorme. Havia uma TV na sala, que nunca funcionava
por falta de energia elétrica. E, quando a energia era ligada, a TV também não
pegava, porque a região era muito isolada.
Tinha também um gabinete onde ela guardava centenas de milhares de
revistas em quadrinhos, de vários personagens. Eu costumava pegá-las emprestadas,
entrando escondido na casa pela janela lateral esquerda, sempre que Luci estava em
Jequié. Pegava dezenas de revistas, lia-as todas, voltava, colocava-as onde havia
encontrado e... pegava mais. Era uma curtição ler aquelas histórias. A janela tinha
um problema que a impedia de ser completamente fechada, deixando-a em falso. E
eu, sabendo disso, me aproveitava da situação. Em uma dessas minhas entradas na
casa, aproveitei para pegar alguns chocolates, que ficavam sobre uma estante da sala
de jantar.
Havia muitos caqueiros de plantas ao redor da casa e um curral no lado
esquerdo. Havia o pé de pitanga, que ficava entre o curral e a casa, do qual eu e
Quira tirávamos os frutos para comer. E também um galinheiro, muitos coqueiros e
um pé de goiaba junto ao muro, onde eu e Quira ficávamos comendo aquelas frutas
até enjoar. Havia patos, perus e gansos. Os gansos, irritados, costumavam nos atacar
quando atingidos pelas pedras que jogávamos neles. Atrás da casa, havia um enorme
galpão que abrigava toras de madeira e uma máquina torrefadeira com ensacadora
de café em grão, que já há muito não funcionava. Tínhamos o hábito de brincar no
galpão, sobre as toras, ou atrás da máquina abandonada.
Seu Maneca, o gerente, inicialmente, morava em uma estufa antiga, que ainda
funcionava quando chegamos à fazenda. Depois ele se mudou com a família para
uma casa na sede, junto à estufa antiga. Lembro-me que na casa dele as pessoas
sempre ouviam música e a que mais me marcou foi "Estúpido Cupido", que tocava
quase todos os dias. Minha irmã Quira logo aprendeu a letra e não parava de cantar
e de dançar dentro de nossa casa. Depois de seu Maneca, houve um outro gerente,
que tinha muitas filhas, mas não consigo me lembrar do nome de ninguém.
Tempos depois foi construída uma nova estufa, que substituiria a primeira
que ficou abandonada. Seu Suta, um senhor já de idade, tomava conta da estufa e da
secagem do cacau. Muitas vezes eu ficava a observar o movimento dos homens, na
nova estufa, ensacando o cacau e colocando os sacos sobre um caminhão, que os
transportaria até Jequié.
A fileira de pés de laranja, de mais ou menos um quilômetro, que ficava
diante da casa da sede, era palco de muitas alegrias, uma festa para nós. Lá
costumávamos chupar laranjas sem descer do pé. E, quando um pé não tinha laranja
madura, subíamos em outro e em outro.
Foi uma parte da vida maravilhosa e enriquecedora. Nunca havia tido um
contato tão intenso com a natureza, com uma cultura diferente daquela da cidade.
Nessa fase, experimentei fatos e situações inesquecíveis, que jamais teria chance de
viver em Jequié. Quando morava na casa de Amanda, pensava que os grãos de feijão
nasciam grudados ao caule da planta. Somente na fazenda pude descobrir que eles
nasciam dentro de bagens, além de muitas outras coisas.
Cobras eram comuns por todos os lados, e eu já matei muitas delas, inclusive
quando tentavam engolir algum sapo ou rã. Quando morávamos na chamada Casa
do Motor, matava dezenas delas, pois a casa ficava um pouco afastada da sede da
fazenda, próxima aos matagais, onde as cobras, sorrateiras, preferem se esconder.
Todas as manhãs, bem cedinho, buscávamos leite no curral. Geralmente, eu e
Quira éramos os escalados para a função. Aproveitávamos para beber boa parte do
leite. Ficávamos imaginando uma vasilha equipada com uma mangueirinha, para
que não precisássemos tirar da cabeça o balde de leite, permitindo assim que o
bebêssemos enquanto caminhávamos.
Uma vez, nossa casa ficou com problemas, molhando quando chovia, e
tivemos de nos mudar para o quarto da empregada, na casa de Luci. Era um
quartinho que ficava nos fundos da casa, contíguo à cozinha e à despensa. Havia
muitos morcegos ali. Chiavam a noite inteira, o que muito nos apavorava,
principalmente porque minha mãe dizia que eles gostavam de chupar o sangue das
pessoas enquanto elas dormiam. Enquanto moramos ali, era comum ouvirmos
ruídos de objetos caindo na despensa, como se fossem panelas e utensílios de
alumínio jogados ao chão. Minha mãe, sempre muito corajosa, levantava para ir lá
ver o que era. Mas a constatação era sempre a mesma: nada tinha caído no chão.
Uma vez ela foi com Quira e viu um homem sair da cozinha em direção ao quintal.
Seguiu o intruso e tentou, em vão, ver seu rosto. Evitando ser visto, ele se virava
para a direção oposta à de minha mãe. E ela lhe dizia: "Então, é você que fica
derrubando tudo lá dentro, não é?". Quando percebeu que se tratava apenas de um
vulto, minha mãe saiu de costas com Quira e voltou correndo para o quarto. Contou
o acontecido a Luci, que riu de minha mãe, dizendo que aquele homem era o pai
dela, que gostava de rondar a casa, mesmo após muitos anos de morto.
Morando ali, aprendi a fazer vinagre de mel de cacau. Pegava o mel de cacau
na estufa e armazenava em tonéis na casa de Luci, até que fermentasse e ficasse no
ponto para o preparo do vinagre.
Eu e Quira trabalhamos nas roças de cacau de Luci. No meio do cacaual,
fazíamos a coleta, separando-a em pequenos montes. Esse tipo de trabalho é
conhecido regionalmente como "bandeirar cacau". A rotina era simples.
Acordávamos cedo, tomávamos café - geralmente abóbora cozida com leite.
Minha mãe preparava feijão com farinha e colocava a comida dentro de latas de leite
Ninho, que levávamos para o trabalho. A caminhada até o local era dura. Tínhamos
que passar pelo meio do mato todos os dias. Matávamos nossa sede em qualquer
riacho que passasse por perto. Ruim mesmo era nos dias de chuva, pois, além do frio
que fazia, o terreno se tornava escorregadio.
Outro grande problema eram as muriçocas e as cobras. Sobre os pés de cacau,
ficavam as cobras-cipó que, por serem de cor verde, nos confundiam, o que
aumentava o perigo. Na hora do almoço, sentávamo-nos com os demais
empregados. Cada um abria sua lata e comia. Da sede da fazenda, ao meio-dia e à
uma hora da tarde, o som de um búzio tocava anunciando o intervalo para o almoço
e o horário de recomeçar o trabalho, respectivamente. Meu primeiro salário foi de
CR$ 3,00 (três cruzeiros), mas ia todo para Dona Paula, minha mãe, que o recebia
em meu lugar. Apenas uma única vez eu recebi os três cruzeiros, que gastei
comprando um abridor de latas e uma sardinha enlatada, num mercadinho de Itagi,
por ocasião das nossas costumeiras viagens aos sábados para "fazer feira".
Escola na Fazenda
Nossa escola ficava um pouco distante da sede da fazenda e éramos obrigados
a fazer longas caminhadas por dentro dos mangueiros, enfrentando cobras, gado e
tudo mais. Quando tinha alguma vaca parida no mangueiro, evitávamos a todo custo
passar por perto. Às vezes até íamos por um caminho mais longo, com medo de ser
atacados. Mas, por mais que evitássemos, havia sempre o perigo, e não foram
poucas as vezes em que corremos de vaca ou de boi valente. Para me proteger, levava
um pedaço de pau, com o qual batia entre os chifres da vaca ou boi que nos atacasse.
Ouvi de minha mãe que o gado odiava ser golpeado entre os chifres e que fugia após
receber a paulada. E assim passei fazer. Para minha sorte, sempre deu certo.
No caminho da escola havia um pequeno riacho, onde gastávamos boa parte
de nosso tempo brincando e nos divertindo, pinoteando dentro da água, que não
cobria nem metade da canela. Freqüentemente, chegávamos molhados na escola e
também em casa. As travessuras no riachinho eram nossa melhor diversão, tanto no
caminho de ida quanto no caminho de volta da escola. No horário da merenda,
cantávamos a seguinte canção: "Merenda gostosa, leite, fruta e pão; dá bom apetite,
boa digestão". Foi nessa escola da fazenda que aprendi a ver as horas no relógio da
casa da professora.
Casa do motor
Assim chamávamos a casa que ficava próxima à cisterna e à casinha do motor
a diesel que fornecia energia elétrica para a sede da fazenda. Moramos um bom
período nessa casa. Havia também uma lagoa perto, cheia de sapos que faziam
barulho todas as noites. A "casa do motor" ficava após uma ladeira íngreme e
escorregadia, atrás da sede, onde havia uma pedra enorme, na qual costumávamos
brincar. Tinha um quintal cercado de arame. Ali meu pai plantou melancia, cana,
quiabo, repolho, couve, abóbora, coentro, cebolinha e outras hortaliças.
Meu pai plantou também uma pequena roça num terreno próximo à casa. Era
um terreno ladeirado, que nos deu muito quiabo para colher. Nessa rocinha, minha
mãe, certa vez, tomou uma queda e, segundo ela própria, ficou enganchada num
piquete, que lhe feriu seriamente os órgãos genitais, fazendo-a perder um filho.
Essas coisas não nos eram faladas abertamente, por nossa condição de criança. Mas
me recordo muito bem do longo tempo que ela passou se medicando.
Nossa refeição geralmente era pirão escaldado de farinha com folha de
quiabo, acompanhado de molho de pimenta, por falta de outra coisa para comer.
Outra presença comum em nossa mesa do café da manhã era a abóbora cozida e
amassada com leite.
Junto da casa havia também um enorme coqueiro e, sempre que chovia,
minha mãe ficava apavorada com medo que ele desabasse sobre nossas cabeças. Só
China ficava rezando para que chovesse, pois teria a chance de vestir uma calça
comprida, que na época era uma peça de vestuário estritamente masculina. China
queria a novidade de vestir algo diferente de suas saias ou vestidos. Como sabia que,
na hora do desespero, minha mãe não ligava para esses detalhes, ela via na chuva a
oportunidade ideal para experimentar uma roupa "proibida", o que era seu sonho.
A água para beber, cozinhar e tomar banho nós tínhamos de buscar na
cisterna de água doce, que ficava junto à casinha do motor. Aproveitávamos para
nos molhar. Havia muitos caranguejos de água doce pelos arredores da fonte de
água e, sempre que podíamos, pegávamos alguns para fazer um escaldado. Nessa
cisterna, Quira quase morreu afogada um dia. Distraiu-se e caiu no poço. Mas, para
nossa sorte, minha mãe ouviu os gritos e correu. Puxou-a pelos cabelos e a salvou da
morte certa.
Lembro ainda do requeijão e do doce de leite que fazíamos nessa casa. Ali
havia muita fartura de leite. Como não conseguíamos consumi-lo todo, já que
diariamente íamos ao curral retirá-lo, passamos a investir em seus derivados.
Nessa casa, criávamos uma gata enorme, que gostava de sair para caçar. Num
belo dia, a gata apareceu com um coelho. Tomamos-lhe o coelho, que minha mãe
tratou, temperou e assou para nós. Ficou uma delícia.
Havia uma moça chamada Maísa que nos contou uma história meio
fantasiosa. Disse-nos que tinha um gato muito pirracento, que adorava lhe falar
obscenidades. Nós acreditamos, claro!
De vez em quando, os homens da SUCAM apareciam por lá, para picar a
ponta de nossos dedos, fazer exames e colocar veneno contra morcegos e ratos na
casa. Morríamos de medo deles.
Casa do Mangueiro
Morávamos na casa do mangueiro, quando meu pai retornou de São Paulo
para Jequié, e de lá foi direto para a Fazenda Turmalina, levado por meus irmãos,
Édson e Zezé. Assim que chegaram à nossa casa, eu e Quira corremos para perto do
carro que os havia trazido à procura do Velotrol que meu pai nos traria, conforme a
promessa de nossa mãe. Ao descobrirmos que não havia Velotrol algum e que tudo
não passara de uma estratégia momentânea, ficamos profundamente frustrados. Foi
decepcionante descobrir que nossa mãe mentira e, pior, descobrir que jamais
teríamos um Velotrol.
A criação de galinhas e o plantio de roças ficavam nos terrenos próximos à
"casa do motor", tanto antes quanto depois de nos mudarmos para a "casa do
mangueiro". Não sei precisar bem quanto tempo moramos em uma e em outra casa,
mas sei que as plantações foram feitas, e que sempre colhíamos frutas e cereais
dessas roças que meu pai plantou. Não me recordo da data exata de chegada de meu
pai à fazenda, mas lembro muito bem da imagem de Édson chegando lá com ele.
Minha mãe se abriu em felicidade e nós também. Mas meu pai não parecia ter
melhorado. Não notamos muita evolução desde o dia em que ele viajara para se
tratar em São Paulo. Pouca diferença fez para a sua saúde aquela viagem. Porém,
como sempre fora muito trabalhador, não conseguiu ficar parado em casa. Inventou
de criar galinhas e fez várias roças e plantações no quintal. Com o leite abundante
que buscávamos de graça no curral da fazenda, fazíamos requeijão. Meu pai chegou
a plantar ainda duas outras rocinhas, estas um pouco mais distantes da casa, onde
cultivava milho, feijão, melancia etc. Muitas vezes, íamos comer melancia dentro da
própria roça.
Aprendi a nadar nessa época. Tinha um riacho bem raso que passava perto de
casa, onde tomávamos banho e lavávamos os pratos. Mais uma vez, dando ouvidos
às histórias de minha mãe, acreditei quando ela disse que, para aprender a nadar,
teve de engolir um pequeno peixinho antes de se jogar na água e sair nadando.
Acreditei e fiz o mesmo. E desta vez funcionou. Engoli o peixinho vivo, me joguei no
riacho e saí nadando! É incrível o poder dos “sugestionamentos”, sobretudo para as
crianças, crédulas pela própria natureza.
Esta "casa do mangueiro" ficava um pouco afastada da sede da fazenda, mas
de lá dava para ver o casarão e a estradinha que dava direto nela, por onde todos os
carros tinham que passar, inclusive o carro da dona da fazenda. Por isso, todo
mundo ficava sabendo quando Luci chegava, antes mesmo que alguém viesse avisar.
Era a casa mais afastada de tudo e de todos. Ao lado dessa casa, toda rodeada por
uma cerca de arame para proteção contra o gado, tinha um grande pé de manga,
onde as galinhas costumavam subir, ao cair da tarde, para dormir. Não dava para
plantar nada ao redor, ou por causa do gado, que às vezes entrava no "quintal", ou
por causa da criação de galinhas, que ciscavam e comiam tudo o que houvesse. Uma
vez, ouvimos um barulho vindo desse pé de manga, onde as galinhas dormiam.
Minha mãe saiu para ver o que estava acontecendo. O suspense se desfez quando ela
descobriu que era Roque, um morador da fazenda, tentando roubar nossas galinhas.
Minha mãe deu-lhe uma bela bronca, botando-o pra correr de lá.
Perdemos-nos na roça
Uma vez, minha mãe chamou Quira e eu para pegarmos bananas na roça, que
ficava pertinho da "casa do motor", onde morávamos. Foi um dia do cão aquele.
Acabamos nos perdendo e passamos o dia inteiro andando por dentro do cacaual.
Minha mãe chorava e o desespero em nós crescia cada vez mais. Ouvíamos uma voz
fina, como a voz de Norino (dito homossexual, que morava na fazenda) a bradar
repetidamente: "O caminho é cá!". Quanto mais seguíamos a voz, mais ficávamos
perdidos na floresta. Conseguimos chegar até perto de Itagibá, a cidade mais
próxima da fazenda, e lá fomos informados por alguns trabalhadores de que
estávamos muito longe da Fazenda Turmalina. Indicaram-nos, então, a direção a
seguir para que pudéssemos retornar. Continuamos mato adentro perdidos até que
minha mãe teve a idéia de pôr fumo numa árvore como oferenda para Caapora.
Segundo a lenda, essa entidade protetora das matas, gosta de fumar. Por isso, faz
com que as pessoas se percam na mata até que resolvam lhe oferecer fumo. Lenda
ou não, o fato é que, depois da oferenda colocada num galho de árvore, encontramos
facilmente o caminho de volta.
Represa
A água que saía da fonte da cisterna percorria um caminho por entre os matos
e formava um riachinho. Esse riachinho tinha muito peixe, e eu sempre ia com um
balaio ou com um jereré pegar caranguejos, tilápias, piabas ou traíra por ali. Uma
vez peguei uma cobra no balaio e corri apavorado.
Luci, a dona da fazenda, mandou construir uma represa, próximo à sede,
formando um lago pequeno com a água desse riacho, e lá soltaram tilápias para
criar. Usávamos esta represa para tomar banho, lavar roupas e nos divertir.
Eu não sabia nadar, mas resolvi acreditar numa história que minha mãe
contava. Dizia ela que, se passássemos óleo de oliva no corpo inteiro, ao entrarmos
na água, o óleo formaria uma bolha de ar ao nosso redor, impedindo que nos
afogássemos. E foi assim que quase morri afogado nessa represa. Lancei-me ao
fundo, com o corpo todo lambuzado de óleo. Essa história deve ter sido fruto de
algum folclore. E eu, achando que na vida real funcionaria tal qual nas lendas,
resolvi levá-la a sério e por pouco não morri. Fui salvo por minha mãe ou por outra
pessoa que não me vem agora à memória.
O Piau
Havia um outro riacho perto de nossa casa, em cujas águas transparentes eu
tinha visto um lindo peixe, um piau. Comprei um anzol e fui pegar o peixe. Foi uma
experiência marcante em minha vida, tal qual a conquista de um grande prêmio.
Afinal, pude me sentir capaz de fazer algo sozinho, algo digno de aplausos. Fiquei
imensamente feliz quando consegui pegar o peixe e levá-lo para casa como um
troféu. Eu pescava por necessidade de matar a fome e também por diversão. A
pescaria funcionava também como uma terapia, pois o tempo livre era preenchido
com uma atividade lúdica, que requer muita paciência, coisa que eu não tinha.
Ficava observando aquele peixe lindo, nadando de um lado para outro do riacho,
cuidando do ninho, e imaginava-o sendo fisgado por mim. Então comecei a planejar
como seria o dia da pescaria, detalhe por detalhe. Ao final, tudo aconteceu conforme
havia imaginado. Para mim, foi como uma cena de filme de ação. O peixe mordeu a
isca, se debateu, correu de um lado para outro, deu solavancos, puxou a vara com
violência, me deu um trabalho danado. Até que consegui tirá-lo da água. Ele media
uns vinte centímetros de comprimento e era bem pesado. Foi uma das minhas
melhores conquistas.
Acidente de carro
Certa vez, viajei com Luci para Jequié, no carro dela, que era uma Pick Up
Ford. Na rodovia BR-330, ela acabou abalroando um outro veículo, que fazia
ziguezague na pista. Bati com a cabeça na porta do carro e ainda precisei ouvir de
Luci que não devíamos ficar dentro de um veículo em movimento como se
estivéssemos sentados no sofá de casa. Devemos estar sempre de prontidão para a
eventualidade de um tombo, uma batida ou coisa similar, para um choque maior.
Aprendi a lição. Ainda bem que hoje os cintos de segurança são de uso obrigatório.
***
Ainda crianças, eu e meus irmãos percebíamos que nosso pai não estava lá
muito certo da cabeça. Tirando proveito da situação, ficávamos o tempo todo
fazendo brincadeiras com ele. Uma das brincadeiras preferidas era a seguinte: um
de nós se vestia com as roupas de minha mãe, ou dele mesmo, e batia na porta da
casa pedindo açúcar ou outra coisa qualquer. Ele atendia e, em sua inocência, ia
chamar um dos filhos para dar o açúcar. Então, aquele que havia batido na porta
dava uma volta na casa, trocava de roupa e voltava para dentro, enquanto o outro se
vestia e vinha pedir outra coisa. A brincadeira durava o tempo que quiséssemos, e
ele nunca descobria que se tratava de uma traquinagem dos próprios filhos. Após
cansarmo-nos da brincadeira, íamos para os pés de cidra, uma espécie de limão
grande e muito azedo, que dava em fartura por ali. Tirávamos as frutas da árvore e
comíamos com açúcar.
Certa vez, meu pai passou mal e minha mãe pediu que eu fosse até a sede da
fazenda para pedir ajuda. Saí correndo pelo mangueiro, desesperado, desviando-me
das vacas recém-paridas. Passei por um riachinho, no qual sujei as pernas todas de
lama, pois eu afundava até o joelho naquele lodaçal. Infelizmente, todo o sacrifício
foi em vão, não consegui ajuda. Mas, quando voltei, por sorte, meu pai já estava
melhor.
Perto de nossa casa havia uma pequena vila, com umas quatro ou cinco casas,
no meio do mangueiro. Lá morava um rapaz chamado Norino, funcionário muito
querido da dona da fazenda. Apesar de morarmos perto, nunca estivemos naquela
vila. A mãe não deixava, e eu nunca soube o motivo pelo qual ela proibia nossa ida
ao local.
Uma outra lembrança dessa época foi quando China pediu que minha mãe lhe
comprasse um chiclete, quando fosse às compras. Ela prometeu que compraria.
Numa de suas idas a Itagi, tentou comprar o chiclete de China, mas não encontrou.
Comprou-lhe então balas comuns. O desapontamento de China foi profundo ao ver
seu sonho de mascar chicletes frustrado; sonho este que teve sua realização adiada
por muitos anos, até que ela mesma pudesse trabalhar e comprar o próprio chiclete.
Vim saber dessa história mais de vinte anos depois, pela boca da própria China.
***
O armazém onde fazíamos compras ficava a alguns quilômetros da sede da
fazenda, num local chamado "Preguiça", nome também do rio que cortava as
imediações. Eu e Quira, quando íamos comprar algo para minha mãe, levando
embornais, morríamos de medo dos ciganos que ficavam acampados no caminho e
que sempre nos cercavam para pedir algo. Ficávamos apavorados, temendo que
tomassem nossas compras e que nos batessem. A fim de nos livrar do assédio,
passamos a levar sempre alguma coisa para dar a eles.
Uma vez fui ao armazém a cavalo, montado em Dominó, o animal mais lerdo
e preguiçoso da fazenda. A bem da verdade é preciso dizer que eu não guiei o cavalo.
Foi Dominó que me levou e me trouxe, já que eu morria de medo de puxar a rédea e
ser derrubado por ele. Quando o cavalo queria parar para comer seu capim, parava.
E quando queria continuar a caminhada, continuava, a seu bel talante.
Toda semana viajávamos para Itagi, a pé ou a cavalo, para fazer compras. Os
homens geralmente iam montados nos animais, enquanto as mulheres iam atrás,
caminhando. Quira lembra que ficava com raiva porque nunca a deixavam montar
num cavalo. Para chegarmos a Itagi, no meio do caminho, tínhamos de atravessar o
rio Preguiça. Lembro que, uma vez, quase caí da garupa do cavalo, quando ele subiu
o barranco do outro lado do rio. Apavorei-me.
RETORNO PARA JEQUIÉ
Concluí a quarta série primária na escola da fazenda e precisava continuar
meus estudos. Como lá não havia professores para o primeiro grau, tive de retornar
para Jequié. Arrumei minhas coisas e viajei. Não lembro se sozinho, com minha mãe
ou com Luci. Minha mãe conseguiu que eu ficasse morando provisoriamente na casa
de Dona Lia, esposa de Seu Nenzinho, no bairro Cilion. O nome do bairro surgiu a
partir do nome de um posto de gasolina que existia na praça Juracy Magalhães, que
acabou falindo, fechando e reabrindo com outro nome. Mas como o bairro já havia
sido batizado, assim ficou: Cilion. Dona Lia tinha um filho chamado Junior, que não
se deu muito bem comigo de início, talvez por ter que dividir a casa e as atenções da
mãe com um outro menino. Mas depois foi se acostumando e nos tornamos grandes
amigos.
Ele próprio tinha vários amigos, que se tornaram também meus. E eu quase
tive minha primeira experiência sexual com uma vizinha deles, que sempre aparecia
por lá e brincava conosco. Uma vez, resolveram me incentivar a ficar a sós com ela
em meu quarto. Tentamos ter uma relação, mas não houve penetração. Ela desistiu
antes do fim e saiu correndo. Era uma morena escura, que tinha um problema físico
na perna direita, fazendo-a mancar quando caminhava.
A primeira namorada também conheci durante o período que vivi na casa de
Dona Lia. Era uma vizinha que morava na casa em frente. Chamava-se Jaqueline.
Era linda e eu gostava demais dela. De nossas janelas, trocávamos olhares furtivos,
iniciando uma ligação de afeto. Passamos a nos encontrar numa casa em frente. Ali,
no pátio daquela casa, nos beijamos pela primeira vez. Foi daqueles namoros meio
mágicos, sem maldades, sem sexo. Foram momentos muito felizes ao lado de
Jaqueline, e eu jamais me esquecerei dela. Até poesias lhe fiz. A primeira namorada
a gente nunca esquece.
Matriculei-me no Instituto de Educação Régis Pacheco - IERP. Dona Lia
sempre me dava dinheiro para a merenda. Tinha uma vida boa na casa dela. Sempre
fui tratado como um membro da família. Naquela época, havia um ritual muito
bonito nas escolas: hastear a Bandeira Nacional e cantar o Hino Nacional Brasileiro
todos os dias, com os alunos em formação militar. Tudo para mim era muito bom.
Participei de um coral que se apresentou na rádio local, onde cantamos o Hino à
Bandeira, entre outros hinos. Era a primeira vez que conhecia um estúdio de rádio
por dentro, fiquei em êxtase. Acabei aprendendo coisas muito valiosas com cada
pessoa que conheci e em cada experiência que vivi.
***
Quando morava na fazenda, ganhei um cachorrinho que batizei de Bolinha.
Ele era preto, pé duro. Aonde eu ia, o cachorrinho me acompanhava. Gostava
demais dele. Ao voltar para Jequié, para prosseguir meus estudos, deixei-o com
minha mãe, que, logo depois, também retornaria a Jequié, deixando Bolinha na
fazenda. Longe deles, padecia de saudades da família e do cachorro.
Quando minha mãe resolveu voltar para Jequié com a família inteira, eu já
estava estudando. Fiquei feliz com o retorno da família, mas foi péssima a notícia de
que meu cachorro Bolinha não viera junto. Morri de tristeza. Minha mãe alegou que
seria muito difícil trazê-lo com ela na viagem e, por isso, achou melhor dá-lo a
alguém. Fiquei revoltado e chorei muito. Gostava muito de meu cachorro. Tão
desapontado fiquei que não dei a mínima para as histórias que minha mãe contava
sobre a viagem e sobre as coisas que lhe acontecera, como o fato de Teobaldo, filho
de Luci, ter dito que iria jogar a família, com móveis e tudo, ponte abaixo, além de
outros problemas que enfrentara. Só pensava no meu cachorro. A paixão e a saudade
de Bolinha foram tantas que prometi para mim mesmo nunca mais ter outro animal
de estimação. A promessa vem sendo cumprida até aqui, e hoje desconfio que minha
aversão a animais tem origem nessa dolorosa experiência.
***
Minha mãe ia regularmente me visitar na casa de Dona Lia. Até que um dia
resolveu me levar de volta com ela definitivamente. Fui e voltei várias vezes da nova
casa, achava-a muito feia e o lugar horrível. Ficava na Rua da Palha. Era uma casa
pequena, de adobões, sem água nem luz. Mas, no final das contas, era para onde eu
teria que ir mesmo, sem chance de escolha.
Uma das coisas com a qual não consegui me acostumar, ao voltar para a casa
de minha mãe, foi a comida. Além de ser de péssima qualidade, não a tínhamos
todos os dias. Foi muito duro sair daquela casa, onde eu tomava café, almoçava e
jantava, de forma decente e em horários regulares, e me adaptar a uma outra
realidade, em que tinha de comer qualquer coisa e em horários disparatados. Isso,
quando não tinha de ficar sem comer mesmo.
Igualmente difícil foi ter de me acostumar com a distância da casa até o IERP,
colégio onde estudava. Tinha de fazer o trajeto a pé, sob o sol escaldante e, agora,
sem ter sequer o dinheiro para merendar. Foi um terror essa fase de adaptação,
muito difícil para mim. Principalmente, nos dois dias da semana em que tinha aulas
de ginástica. Era obrigado a sair pela manhã, para assistir à aula normal, e voltar, no
período da tarde, para a aula de ginástica. Um verdadeiro tormento. O sol
demasiado quente e a estrada sem calçamento, toda cheia de poeira, tornavam a
caminhada insuportável. Mas, gostando ou não, tive de me acostumar com a nova
vida, que passaria a ser minha rotina dali em diante.
Minha luta agora era outra, além da comida que faltava na mesa. Tinha que
comprar livros, mas não possuía dinheiro. Estudava sem livros ou recebia um ou
outro exemplar, cedido por colegas de sala, que faziam uma vaquinha para comprar.
Mas todos os outros estudantes tinham também uma vida difícil, poucos recursos
financeiros, e nem sempre podiam ajudar, já que também precisavam de ajuda.
Uma professora me deu, certa vez, um Kichute usado, que usei por cinco
anos, durante todo o primeiro grau e início do segundo. Os cadernos eram daqueles
doados pelo governo estadual, com o Hino Nacional na capa; os lápis eram também
doados pelo governo, alguns deles vinham até com a tabuada impressa, mas esses
não eram bem-vindos nas aulas de matemática, pela razão óbvia. Uma ocasião, perdi
um lápis na sala - ou foi roubado por alguém - e fiz o maior escândalo. Chorava pelos
corredores, chamando a atenção do colégio inteiro com meus indignados protestos
pela perda do lápis e dizendo que ali só tinha ladrão. Foi um show à parte.
Minha adaptação ao currículo escolar foi muito difícil, para não dizer
impossível, já que eu tinha vindo de escolas onde se aprendia apenas o ABC, as
quatro operações, além de leituras e releituras de livros de histórias, sem nenhuma
técnica para aprender a gramática. Na hora de separar sílabas, eu sempre escrevia
duas letras e colocava um tracinho. Quando a palavra era cavalo, por exemplo, eu
acertava fácil. Mas quando era caule, eu escrevia "ca-ul-e". Ou seja, segundo minha
lógica, a separação de sílabas era feita a cada duas letras seguida por um tracinho.
Um desastre total.
Por conta da minha falta de estrutura e por motivos de doença, acabei
perdendo o ano. Perder um ano tem sempre conseqüências negativas, um ano de
minha vida ficaria atrasado. Mas, por outro lado, serviu-me de lição, motivando-me
a me esforçar bem mais no ano seguinte. Desse dia em diante, não perdi mais ano
algum e consegui concluir o primeiro e o segundo graus com notas muito boas.
Surpreendentemente, acabei me transformando em um aluno CDF durante todos os
anos escolares.
O lado positivo de tudo isso foi o fortalecimento do meu senso de autocrítica,
que fez com que procurasse estudar mais, para não passar novamente pela vergonha
de perder o ano. Outra coisa boa foi o contato com a poesia, através de uma coleção
de três minilivros que comprei de um daqueles vendedores que passam de sala em
sala oferecendo suas mercadorias. Encantei-me com aquela forma de escrever, com
as rimas e as estrofes. Passei a escrever poemas também. Posteriormente, tive
contato com a literatura de cordel, o que me influenciou bastante a escrever tudo
que me vinha à mente. Não sei precisar no tempo, mas me lembro de uma época em
que eu pegava tudo quanto era papel, ou algo que encontrasse jogado pelas ruas,
para ler. Para mim, era uma espécie de mágica poder decifrar tudo aquilo, mesmo
que não soubesse o significado de todas as palavras que lia. O simples ato de ler
expandia minha mente.
***
Depois de um tempo morando na Rua da Palha, mudamo-nos para a casa de
número 1265, na Avenida Franz Gedeon, uma das principais artérias da cidade. Foi a
partir dessa época que ocorreu o nascimento dos meus outros irmãos, Valdir,
Vitório, Vivaldo e Ivonete. A casa era de meu irmão Édson, e lá já haviam morado
muitos familiares dele, mas naquela ocasião se encontrava fechada. Como de praxe,
a nova moradia também não dispunha de luz, água, saneamento básico, móveis e
outros recursos essenciais. Nosso fogão, para variar, era à lenha. O sanitário era no
chão do quintal, ou seja, exalava uma fedentina horrível. Muita gente fazendo suas
necessidades por todos os lados e o sol quente a tornar o mau cheiro ainda mais
insuportável.
A vida de minha família sempre foi de muita pobreza, não tínhamos
condições nem de comer condignamente. Televisão então era um luxo que nem
sequer imaginávamos poder comprar. Assim, todos os dias eu e meus irmãos íamos
para a casa dos vizinhos, onde ficávamos dependurados em suas janelas assistindo à
TV. Tínhamos que assistir ao que estivesse passando, ao gosto do dono da casa. E,
por muitas vezes, nem conseguíamos assistir aos programas ou aos filmes até o final,
porque a televisão era desligada sob o pretexto de que "o aparelho estava
esquentando e precisava descansar". Uma das vizinhas que mais desligava a
televisão em nossa cara era a Dominga. Mas, como sua casa era também o lugar
onde a TV ficava ligada nos horários em que estávamos livres de escola ou de outras
obrigações, aparecíamos lá quase todos os dias.
Na casa de Dona Dete e seu Chico a gente morria de rir. Toda vez que
apareciam os atores Tony Ramos e Elisabeth Savalla na telinha, eles faziam o mesmo
comentário: "André Cajarana e Carina estão muito diferentes...", reportando-se aos
personagens vividos na novela Pai Herói pelo casal de atores. Dona Dete e Seu Chico
não conseguiam separar a realidade da ficção. Faziam a maior confusão entre a vida
dos atores e os personagens por eles vividos nas novelas.
Saíamos pela cidade inteira à procura de brinquedos pelos lixos. Batizávamos
cada lixo com um nome, para facilitar o roteiro e para organizar nossas caminhadas.
Um desses lixos foi batizado como "lixo da BODA". O nome veio de uma brincadeira,
pois, quando descobrimos esse lixo pela primeira vez, havia muitas cabras e bodes
por perto. Procurávamos livros, revistas, brinquedos, qualquer novidade.
Encontrávamos muita coisa, mas sempre desfalcada de uma peça ou de uma folha.
Em carros sem uma das rodas, sempre dávamos um jeito, fabricando outra rodinha
com sandália havaiana - naquela época esse tipo de sandália era exclusividade de
pessoas paupérrimas. Mas quando faltava a última folha de uma revista de história
em quadrinhos, por exemplo, a solução era mais difícil. Então, guardávamos a
revista e tentávamos encontrar outra igual, que tivesse o final da história. É bem
verdade que raras foram as vezes que conseguimos completar uma história em
quadrinhos.
Nessas caminhadas, uma vez, adentramos um quintal abandonado. A galera
subiu nos coqueiros que lá havia e começou a tirar cocos da árvore. Após nos
empanturrarmos de água de coco, levamos os cocos que sobraram para casa. Minha
mãe nos fez voltar e jogá-los no quintal novamente, advertindo-nos de que, se tal
fato voltasse a ocorrer, tomaríamos uma surra daquelas. Esta foi uma lição que
jamais esquecerei, mais uma das inúmeras que ela nos ensinou.
Ainda sobre brinquedos e brincadeiras, não posso deixar de lembrar do
"Mané Gostoso", pendurado entre dois palitos e amarrado com uma borracha que
minha mãe comprava para nós.
Trabalho
Um dos meus primeiros empregos foi no escritório da ASPEB, uma caderneta
de poupança que depois foi comprada pelo antigo Banco Econômico. O escritório
ficava na praça Ruy Barbosa, no centro da cidade de Jequié. Eu era uma espécie de
office-boy. Aproveitei para aprender a datilografar nas máquinas de escrever do
escritório, nas horas vagas, além de ficar escrevendo ou passando a limpo minhas
poesias. Quanto às datas de admissão e de saída deste emprego, não lembro muito
bem.
Certa vez, resolvi trabalhar como vendedor do Baú da Felicidade, do grupo
Silvio Santos. Saía com um vendedor mais experiente, que me mostrava como
deveria fazer para vender os carnês. Aprendi tudo, pois eu prestava muita atenção ao
que ele fazia. Finalmente, arrisquei-me a sair sozinho com uma pasta cheia de
carnês.
Minha primeira vítima foi uma empregada doméstica que trabalhava numa
residência no centro da cidade. Recebi dela a primeira parcela do pagamento, que
correspondia à minha comissão. Quando cheguei ao escritório, à tarde, após andar o
dia inteiro e ter vendido apenas aquele carnê, a patroa da minha única cliente já me
esperava para receber de volta o dinheiro que sua empregada tinha pago pelo carnê.
Alegou que eu tinha enganado a pobre mulher, que ela era uma pessoa pouco
esclarecida e se deixara ludibriar por mim. Acabei perdendo minha comissão e
desisti de vez de ser vendedor ambulante. Aquela não era, definitivamente, minha
praia.
Em uma outra ocasião, candidatei-me para trabalhar com Seu Nenzin. Ele me
escalou para trabalhar com jornais. Pensei em algo como uma banca de jornal ou
coisa parecida. Fui com ele ao centro da cidade e, quando cheguei ao local do
trabalho, descobri que era para vender jornais pelas ruas, como ambulante. Recusei
imediatamente o trabalho, pois além da baixa remuneração, eu já havia tido uma
experiência nefasta como vendedor ambulante, que não gostaria de repetir para
ganhar a vida. Entendi que deveria preferir sempre o salário fixo, mesmo que fosse o
menor salário que se pudesse pagar, a trabalhar me aventurando a ganhar um
salário maior, através de comissões.
Enchente - Comida estragada
Houve uma enchente em Jequié, por volta de 1982 ou 1983, que arrasou
metade da cidade. O Rio de Contas estava muito cheio e represava a água do Rio
Jequiezinho. Do Centro para o bairro Jequiezinho só se passava pela Ponte de
Newton, a ponte que servia, em tempos remotos, para passagem do trem de ferro.
Todas as outras pontes haviam sido cobertas pela água, exceto esta. A parte baixa do
Centro e os bairros Campo do América, Banca, São Judas Tadeu, Mandacaru e
outros foram totalmente engolidos pela água. Os Edifícios Almerinda Lomanto e
Hildete Brito Lomanto ficaram inundados até o primeiro andar. Todos temiam que a
Barragem de Pedras, localizada a trinta quilômetros da cidade, se quebrasse com a
pressão da quantidade enorme de água e inundasse toda a cidade de Jequié. Mas
felizmente não aconteceu, graças a Deus. Do contrário, seria uma tragédia sem
precedentes, já que a barragem represa mais de setenta quilômetros de água.
Depois que as águas baixaram, muitos estabelecimentos comerciais do Centro
começaram a contabilizar os prejuízos. O Supermercado Cardoso, na praça da
Bandeira, foi um dos estabelecimentos que perdeu quase todo o seu estoque. Muita
coisa fora jogada no lixo, no esgoto. Boatos se espalharam rapidamente de que
muito presunto, queijo, mortadela, salame e uma infinidade de comestíveis estavam
sendo despejados pelos esgotos dentro do rio Jequiezinho. Saímos em passeata: eu,
Dida, Tó, Mi, mais um monte de garotos das ruas próximas, direto para o esgoto. Lá
tivemos de enfrentar uma disputa acirrada com outros meninos para ver quem
conseguia pegar a maior quantidade de mercadoria estragada. Levamos essas
mercadorias para consumi-las em casa.
Se tivéssemos de morrer por termos comido alimentos estragados,
certamente não estaria eu aqui contando este episódio inusitado, pois, durante a
maior parte de minha vida, eu e minha família ingerimos rejeitos e refugos de
comida. Nesse mesmo rio, quando as águas baixavam, costumávamos pegar
camarões, que ficavam se batendo à procura de uma água mais profunda, já que o
rio estava em fase de extinção e os lugares mais profundos não mediam meio metro.
Muitos esgotos da cidade eram jogados dentro desse rio, inclusive os do Hospital
Regional Prado Valadares. Mas nós não nos importávamos com nada, só queríamos
um pouco de comida para saciar a fome. E o rio se comportou como um pai, sempre
a nos prover daquilo que procurávamos.
Nosso dia-a-dia não variava muito. Num dia, era Gal e no dia seguinte era
Nete quem saía para pedir esmolas pelas casas da rua e dos arredores. Os menores
iam substituindo os mais velhos, que ficavam envergonhados da tarefa de ficar de
porta em porta pedindo comida e ouvindo piadas do tipo: "Você já é bem grandinho,
por que não vai trabalhar?". Tínhamos um roteiro a seguir, e cada dia íamos a uma
casa diferente, para não chatear a mesma pessoa todos os dias. Tinha a casa de
Dominga, a casa de Dora, a casa de Dona Maria da Campanha, casa de Bói... Dona
Maria da Campanha era uma católica praticante que coletava doações do tipo
comidas, roupas e dinheiro, para entregar à minha mãe. Arrumávamos apelidos
para todos os que nos ajudavam, já que eram muitos e ficava quase impossível
memorizar seus nomes. Para complicar ainda mais, havia gente com o mesmo nome,
como era o caso de Dona Maria, por nós batizada de "Maria da Campanha", para
diferenciá-la das outras "Marias" em nossa lista.
Dora é nossa cunhada, casada com Néco (Manoel), que, por sua vez, é filho de
meu pai com sua primeira esposa. Ele pertence à primeira família de meu pai, em
que todos os seis irmãos têm idade superior a quarenta e cinco anos de idade.
Quando meu pai se casou com minha mãe, a mãe desses outros irmãos já havia
falecido há muito tempo. Dora também nos ajudava sempre que podia, já que tinha
uma família para dar conta e somente o marido trabalhava fora.
Bói era uma senhora que morava na nossa rua. China foi morar e trabalhar
em sua casa, em troca de comida e roupas. Lá havia duas irmãs gêmeas, Alice e
Agda, já bem velhinhas, que sempre davam café da manhã aos meninos que
passavam pela porta. E, como não poderia deixar de ser, meus irmãos,
especialmente Tó, Dida, Gal e Nete, sempre passavam por lá, onde tinham a
oportunidade de beber suco de groselha com pão ou com bolachão. China conta que,
quando foi trabalhar na casa de Bói, criou o hábito de deixar o pão do próprio café
para dar aos irmãos. Colocava-o na calha da chuva e ficava esperando que os manos
aparecessem para pegar. Fazia isso escondida de Bói, que era muito rígida e não
aceitaria que ela deixasse de comer em benefício dos irmãos.
China conta ainda que, quando não tinha o pão para colocar na calha, ficava
muito triste de ver os irmãos brigando para ver quem chegava primeiro e a
expressão de decepção em seus rostos ao perceberem que nada havia sido deixado
para eles. Tinham de enfiar o braço inteiro no cano da calha para poder alcançar o
pão ou biscoitos que China colocava.
***
Dentre os vários episódios de comida estragada, fome, miséria e sofrimento,
me lembro de alguns que marcaram muito.
Domingas era uma vizinha que morava perto de nossa casa, na Avenida Franz
Gedeon, e nos ajudava com comida e roupas usadas. Muitas vezes, ela guardava
comida a semana inteira na geladeira, até que aparecesse alguém da nossa família
para receber o presente. Eventualmente, quando íamos pedir esmolas em sua casa,
recebíamos muita comida, dentro de uma panela enorme. Certa ocasião, uma dessas
panelas estava azeda, pois tinha sopa, repolho, feijão e todo tipo de sobras
misturadas. Minha mãe não deixou que comêssemos com medo que a comida nos
fizesse mal, e deu para Dona Odília, que, por sua vez, deu para suas galinhas. Todas
as galinhas morreram, a comida estava realmente estragada. Dona Odília ficou de
mal com minha mãe por causa deste episódio, achando que ela fizera aquilo de
propósito.
Outro caso inusitado foi esse: minha mãe assou um tendão, que era uma
mistura de pele, cartilagem e gordura. O fogo era feito no meio da casa, com pedaços
de madeira e plásticos que encontrávamos pela rua e no lixo, situação que perdurou
por mais de vinte anos em nossa vida. A comida ficava com um cheiro horrível de
plástico. Mas o pior ainda estava por acontecer. Depois de "assado" (na verdade,
sapecado na fumaça), ela dividiu a iguaria em pedaços iguais para os filhos,
servindo-a com pirão de água fria e farinha. O meu pedaço foi o maior de todos e
tinha bastante gordura. Desconfiado como sempre, abri para olhar e vi um monte de
bichos de moscas, vivos, procurando um local mais frio para se proteger, pois, como
o fogo não tinha assado totalmente aquele pedaço de imundície, não matou
completamente os bichos de mosca. Fiquei com nojo, joguei fora e comi somente o
pirão.
A necessidade de sobrevivência nos deixava à mercê de situações vexatórias e
inusitadas. Uma vez minha mãe ganhou uma galinha viva. Matou-a e preparou um
almoço. Mas vi, quando ela abriu a galinha, um tumor ou coisa parecida na moela.
Tinha muito pus e fedia demais. Minha mãe preparou assim mesmo e deu para que
todos comessem. Saí para trabalhar e, quando voltei, encontrei à minha espera esse
prato "especial". Ela jurou que não era da galinha que eu tinha visto, mas não
acreditei e joguei tudo no lixo. Não comi e fui dormir com fome, o que não era um
fato raro na vida da gente. Nossa comida variava de pão seco com café preto a pirão
de farinha com água fria. Muitas vezes dormíamos com fome, crédulos no que
minha mãe dizia: "amanhã Jesus vai trazer comida". Eu me irritava com ela e
xingava muito, pois todos os dias ouvia a mesma história e Jesus nunca chegava com
a comida prometida.
A refeição mais desejada por nós era um prato de qualquer coisa com carne,
já que essa iguaria quase nunca fazia parte de nossa dieta. Pelas condições de
extrema pobreza, era quase impossível termos carne à mesa. Quando comíamos um
pedaço de carne, era uma festa em casa. O acompanhamento podia até ser pirão de
farinha com água fria, mas se tivesse carne o prato de tornava especial. Mas não era
carne normal a que comíamos, era carne sentida. Era assim que chamávamos a
carne em processo de putrefação. Recebíamos muitas gorduras, pelancas, peles e
outros refugos de carne quando saíamos pela feira livre pedindo algo para comer.
Muitos dos barraqueiros nos enxotavam dizendo impropérios, mas muitos outros
nos acolhiam com palavras doces e nos ofertavam pedaços de carne. Geralmente era
carne que quase ninguém compraria ou que estava já azulada e com bichos de
mosca. Minha mãe aproveitava essas carnes da seguinte forma: ferventava tudo
numa panela e depois colocava para secar ao sol. Assim, já "lavada", a carne ficava
com um aspecto mais agradável ao olhar e ao paladar. Mesmo assim ficava com um
cheirinho enjoado de carne estragada. Minha mãe dizia que era carne "sentida".
Comíamos essa carne frita ou cozida no feijão.
SONHOS
Na avenida Franz Gedeon, onde morávamos, havia uma oficina de conserto e
de aluguel de bicicletas. Toda a garotada da rua alugava bicicletas ali e aprendia a
pedalar. Todos os meus irmãos também tiveram esta oportunidade e a
aproveitaram. Exceto eu, pela minha exacerbada timidez. Só aprendi a montar numa
bicicleta aos vinte anos de idade, quando pude comprar uma Monark nova, que
precisei empurrar da loja até o loteamento Itaygara, onde morávamos na época. Ao
chegar em casa, chamei Valmir para segurar o bagageiro da bike enquanto eu
pedalava. Alguns instantes depois, meu irmão passou correndo ao meu lado e eu
perguntei quem estava segurando a bike para mim. Ele respondeu que ninguém
empurrava e que eu estava pedalando sozinho. Desde então, passei a pedalar
bicicletas sem nunca sofrer uma queda. Antes, em meus sonhos, imaginava estar
pedalando e voando ao mesmo tempo, ou seja, pedalando até que a bicicleta
decolasse e eu continuasse a pedalar durante o vôo.
***
Não sei bem por que razão eu sempre sonhei em trabalhar com serviços
burocráticos. Desde criança, imaginava-me numa espécie de escritório, lidando com
papeladas e telefones. Realizei este sonho muitos anos mais tarde, quando ingressei
no Tribunal Regional do Trabalho, no ano de 1990.
Um outro sonho que eu sempre alimentei foi o de morar em Salvador. Mas eu
tinha muito medo de sair de Jequié, do conforto da família e do lugar onde sempre
vivi, para enfrentar um mundo completamente hostil. Alimentei o sonho durante
anos. Lia regularmente os jornais da capital e ficava a me imaginar caminhando
pelas ruas da cidade. Até comprei um mapa de Salvador, onde percorria todos os
cantos da capital com os dedos. Já adolescente e trabalhando com carteira assinada,
sempre encontrava uma forma de economizar para poder fazer minhas viagens de
final de semana a Salvador. Saía de Jequié à meia-noite de uma sexta-feira, chegava
a Salvador pela manhã, pegava um ônibus circular e visitava os principais pontos da
cidade. Tomava banho de sol nas praias da Barra e Pituba, e, no final da tarde,
voltava para a estação rodoviária, onde passava a noite descansando e dormindo nos
bancos. Pela manhã, reiniciava minha peregrinação pela cidade. Retornava à tarde
para a rodoviária e pegava o ônibus para Jequié, aonde chegava à meia-noite de
domingo. Ficava imensamente feliz com essas viagens. Tirava inúmeras fotos, via
coisas e lugares que, aos meus olhos, eram apaixonantes.
Com sacrifício, realizei meus dois sonhos maiores: o de ter um trabalho fixo e
burocrático e o de morar em Salvador, que não troco por nenhuma outra cidade
brasileira ou do exterior.
FIGURAS INTERESSANTES
A casa de Judite, uma vizinha que muito nos ajudava, ficava do lado oposto à
casa onde morávamos, e era lá que minha mãe diariamente ia para lavar os pratos e,
em alguns dias da semana, para lavar nossa roupa, já que não tínhamos condições
de arcar com os custos da água encanada em casa. Mesmo sofrendo de paralisia nas
pernas, minha mãe atravessava a rua, arrastando-se pelo asfalto, correndo risco de
ser atropelada e morrer. As pernas e os pés ficavam sagrando, arranhados e feridos
pelo contato com o piso grosso da rua.
Freqüentemente íamos com ela à casa de Judite, esposa de Seu Tidinho e mãe
de Maxwel, Creuza e Joel. Certa vez, presenciamos uma discussão bizarra entre
minha mãe e Joel, porque este ficava profundamente irritado de ver minha mãe
mascando fumo e cuspindo o tempo todo. Chegava a ter nojo de beber nos copos que
minha mãe utilizava em sua casa. Foi uma confusão danada. Minha mãe ficou muito
chateada, mas não tinha como evitar de ir à casa de Judite que, além de ser parenta
de meu pai, facilitava-lhe o acesso gratuito à água para uso doméstico.
Na mesma rua, próximo à casa de Judite, morava Dona Zefa, uma senhora
pernambucana enorme e casada com um homem franzino, que vivia levando
broncas dela. Há quem diga até que o pobre apanhava da mulher, o que não era de
duvidar, levando-se em conta a desproporção de seu tamanho em relação ao dela.
Dona Zefa tinha muitos filhos, que brincavam comigo e com meus irmãos. Também
usávamos a casa dela para assistir à televisão - da janela, lógico, pois quase ninguém
abria a casa para nós, à exceção de Seu Chico e Dona Dete (pais de Florisvaldo) e de
Dominga. A brincadeira entre a criançada às vezes terminava em briga, mas minha
mãe nunca ficou inimiga de vizinhos por causa de brigas de crianças.
Maria, que ganhara o apelido de "Boca de Macaco", é uma outra figura
inesquecível. Morava numa casa que ficava juntinho à nossa. Era mãe de Beto e de
Lurdinha. O quintal de sua casa era cercado com varas, que sempre se soltavam ou
caíam, deixando nosso quintal maior. Assim, invadíamos o quintal dela e
ganhávamos mais espaço para brincar. Uma vez, Lurdinha começou a trabalhar na
fábrica de roupas Saci Pererê e contratou meu irmão Valmir para levar seu almoço
todos os dias ao meio-dia. Nessas idas e vindas, ele achou um relógio Citizen, que
vendeu a mim. Algum tempo depois, o relógio começou a atrasar. Mandei trocar a
pilha, mudar peças internas, mas o atraso persistia. Revoltado, destruí o maldito
com uma marretada e resolvi o problema.
Carrapeta era uma senhora meio louca que passava pela rua. Parecia-se
mesmo com uma carrapeta: gorda no meio e as pernas finas. Quando alguém a
chamava por este apelido, ela enlouquecia e despejava os mais terríveis palavrões.
Tinha também Tonho Doido, um cara tipo cigano, de olhos claros, que
circulava pelas redondezas e sempre aparecia lá em casa. Minha mãe deixava-o
entrar e lhe dava comida. Mas Tonho Doido sempre arrumava confusão, pois não
tinha juízo e se encrencava com tudo.
Lembro também de uma mulher de cor negra, bem idosa, que passava quase
toda semana por nossa casa, que mais parecia um ponto de encontro de loucos e
desequilibrados. Ela trazia bananas e biscoitos, recebidos como esmola, e dava pra
gente. Quando não dava, a gente roubava de sua sacola.
Anália é outra que não pode ser excluída desse elenco. Era mãe de Roxa, uma
comadre minha. Explico-me: é hábito, no interior, que aqueles que pulam juntos a
fogueira das festas juninas se tornem compadres e comadres. Eu pulei fogueira com
Roxa e nos tornamos compadres. Conhecemo-nos quando minha mãe morava na
mesma Rua da Palha e eu era quase uma criança.
Germina era uma mulher morena, bastante gorda, que tinha os pés rachados,
e sempre parava lá em casa para prosear com minha mãe. Suava feito um cuscuz e
exalava um cheiro muito forte. Carregava sempre consigo uma toalha de rosto, com
a qual não parava de enxugar o suor que lhe escorria pelo rosto e pelo pescoço.
Havia também Baratão, outro louco que passava pela rua. Nossa diversão era
perturbá-lo e jogar pedras no pobre homem.
Nessa época, eu era ainda muito jovem. Lembro-me que construí um
parquinho de diversões de brinquedo, que funcionava com um pequeno motor a
pilha. Como só tinha um motor, ora colocava-o na roda-gigante de brinquedo, ora na
"sombrinha". A garotada da rua se juntava perto de minha casa para contemplar
admirada os brinquedos que eu construía.
Zeca Alves era um senhor moreno escuro e gordo que morava em nossa rua.
Meu irmão Vivaldo (Gal), sempre muito gaiato, toda vez que passava em frente à
casa de Zeca Alves gritava: "Zeca Alves, ladrão!" Não sei de onde ele tirou essa idéia
de xingar o homem, que um dia se irritou e quis agredi-lo. Ele devia ter então uns
cinco anos de idade. Nessa época, meu pai já devia ter morrido. Não me recordo
muito bem, mas minha mãe, apesar de estar aleijada, defendia-nos a unhas e dentes,
tal qual uma loba enlouquecida. Quando Gal chegou em casa chorando, ela saiu se
arrastando pela rua afora até a porta da casa de Zeca Alves e começou a gritar,
xingando-o de ladrão e de tudo quanto era nome. Chamou atenção. Zeca Alves saiu
para discutir com ela, e o filho dele queria bater em minha mãe, uma senhora
descontrolada e aleijada. Nossos vizinhos não permitiram tamanha falta de respeito.
Zeca Alves então se vingou com muitos palavrões e praguejando que todos os filhos
dela haveriam de ser ladrões, maconheiros, drogados e coisas do tipo, pois, além de
não terem pai, viviam sob o jugo de uma mãe louca. Minha mãe voltou para casa
chorando. Toda a criançada também chorava junto com ela. Graças a Deus e à
educação que minha mãe deu a cada um dos filhos, essa predição não se
concretizou. Somos todos honestos e pessoas de bem.
Dona Nêga é uma senhora que morava, e ainda mora, na avenida Franz
Gedeon, perto da casa onde morávamos. Vive até hoje numa casa de três cômodos,
pequena e construída em estilo antigo. Ainda tem fogão à lenha e se veste com
modelos de roupa de vinte anos atrás. Era como se fosse uma irmã de minha mãe.
Em dias de chuva forte, íamos de mala e cuia para a casa dela, quando a nossa
ficava alagada. Dona Nêga sempre foi uma pessoa muito simples e prestativa.
Apesar de dispor de poucos recursos, toda vez que chegávamos em sua casa, dividia
o que podia conosco: comida, carinho e conselho de mãe, entre outras coisas.
Quando o marido dela morreu, ficamos todos muito tristes. Foi como se um
membro de nossa família também tivesse partido. Dona Nêga tinha quatro filhos:
José, Jean Cláudio, Pinto e Jabá. À exceção de José, que era bem maior do que nós,
todos os outros eram uma espécie de extensão de nossa própria família. Saíamos
para catar lixo, brincávamos juntos, freqüentávamos a casa uns dos outros.
Experimentamos juntos muitos momentos marcantes da vida, como se fôssemos
mesmo uma só família.
José, o filho mais velho de Dona Nêga, viajou para São Paulo a trabalho e se
demorou muito por lá. Quando veio de férias visitar a mãe, saiu com amigos para
tomar banho de cachoeira e acabou morrendo afogado após mergulhar e bater com a
cabeça em uma pedra. Foi uma tristeza para a rua inteira, sem falar em sua mãe, que
perdeu um filho de forma tão trágica e precoce.
Não posso deixar de mencionar aqui o Nêgo Tinho e seu irmão, que também
freqüentavam a casa de Dona Nêga e faziam parte de nosso círculo de amizade.
Eram considerados os "capetas" da rua por viverem aprontando.
***
Sempre fui muito curioso e dinâmico, apesar de sempre me achar um
moleirão, um covarde ou coisa que o valha. Sempre gostei de escrever,
principalmente cartas. Enviava correspondências para o mundo inteiro, mesmo sem
saber falar outra língua que não fosse a portuguesa. Acabava recebendo folhetos
evangélicos da China, Rússia e outros países, após enviar cartas solicitando esse tipo
de material, que eu distribuía pela cidade inteira. Tinha centenas de cartas
guardadas, de amigos, de empresas, de todo lugar do planeta. Também gostava de
catar todos os "cartões de resposta comercial", preenchê-los e enviá-los.
Particularmente, adorava esses "cartões", por dispensarem o uso de selos e
envelopes. Fazia minha festa com eles. O carteiro da cidade já me conhecia. Mesmo
quando eu mudava de um bairro para outro, acabava recebendo as
correspondências, pois o carteiro descobria meu novo paradeiro. Tinha coleções de
revistas Veja, Isto É e outras que chegavam das editoras, por causa dos cartões-
resposta que eu preenchia e enviava. Às vezes, recebia três ou quatro revistas
semanais de uma só vez. Quando uma assinatura era cancelada por falta de
pagamento, enviava outros pedidos e, assim, recebia as revistas ininterruptamente.
Com esse meu hobby, acabei aprendendo alguns macetes como, por exemplo,
que existia e ainda existe a chamada "Carta Social", que qualquer um pode postar
pagando apenas um centavo. Isso mesmo. Carta com peso igual ou inferior a vinte
gramas, cujo envelope seja preenchido a mão, sendo os remetentes e os destinatários
"pessoas físicas", custa apenas R$ 0,01. Há um limite de cinco cartas por vez, em
cada agência, para evitar que se explore demasiadamente o serviço. Mas eu sempre
burlava essa regra, colocando as cartas em agências diferentes ou voltando à mesma
agência em horários diversos e me dirigindo a outros guichês. Nesse vai-e-vem de
cartas, ocorreu-me, um dia, enviar uma carta ao Presidente da República - na época,
João Figueiredo -, pedindo aposentadoria para minha mãe. Não é que ele respondeu
a carta, informando que tinha encaminhado o pedido ao Ministério da Previdência
Social? E, após alguns meses, o Ministério enviou uma solicitação a minha mãe,
pedindo-lhe que comparecesse a um posto do antigo INPS (atual INSS). Depois de
infindáveis trâmites e perícias médicas, minha mãe foi, enfim, "encostada" por
invalidez, devido ao seu problema de paralisia nas pernas. A renda era de meio
salário mínimo, que, após muitos anos, passou a um salário mínimo completo. E eu
nunca entendi como é que se divide o "mínimo" em dois...
***
O primeiro bem de valor que possuí foi um rádio de pilha, comprado com o
fruto de meu trabalho, do Senhor Francisco, pai de Florisvaldo e marido de Dona
Dete. Essas pessoas desempenharam papel importante em nossas vidas. Francisco,
ou Chico, como era conhecido, tinha uma barraca no Mercado Municipal de Jequié,
onde vendia farinha e sempre nos dava um pouco e Dona Dete era aquela que nos
permitia assistir televisão em sua casa.
O rádio era portátil, à pilha, e já usado. Pegava somente as estações em ondas
médias e curtas. E, mesmo que pegasse FM, isso era coisa que não existia em Jequié
na época. Carregava esse rádio para todos os lugares por onde andava.
Ao deitar e antes de pegar no sono, passava boa parte da noite ouvindo a
Rádio Capital e a Rádio Record, de São Paulo. Esta última tinha um programa de
humor apresentado por Zé Betio, onde conheci a maioria dos humoristas que
atualmente fazem sucesso na TV. Eu trabalhava, à época, com Esmeraldo, fazendo
cintos e sacolas e também atendendo no balcão de seu armarinho ou em sua barraca
de miudezas na feira livre da cidade. O rádio me acompanhava em todos esses
lugares.
Na oportunidade em que eu comecei a trabalhar na pequena fábrica de cintos,
fiz um acordo com Esmeraldo, no qual eu receberia um salário menor em troca de
café da manhã, almoço e jantar, todos os dias.
Uma vez, roubei a calculadora de pilha de uma vizinha de Esmeraldo, que
vendia leite e morava ao lado da casa dele. Devia ter lá meus doze anos de idade
àquela época. Esperei todo mundo sair da sala, não resisti e entrei na casa.
Rapidamente, peguei a calculadora que me tentava sobre a televisão. Ninguém
nunca descobriu o autor do roubo. Mas, muito arrependido, confesso-o aqui, agora.
***
No mês de junho, são freqüentes as festas em homenagem a Santo Antônio, o
padroeiro da cidade de Jequié. E todos os anos, nessa época, um parque de diversões
é armado em frente à igreja matriz. Minha mãe me levava com ela para assistir à
missa, em um dos treze dias da trezena de Santo Antônio, e também para ver as
outras crianças brincando no parque. Ela não tinha condições de comprar ingressos
para os brinquedos. Nem sequer para me comprar uma maçã do amor. Eu me sentia
muito frustrado com tudo aquilo, até que, um belo dia, resolvi roubar os ingressos
do parque. Precisava apenas saber aonde eram guardados os ingressos usados. E
descobri que, ao lado de cada brinquedo – roda-gigante, carros de bate-e-volta, etc.
−, havia uma espécie de garrafa, onde eram depositados os ingressos já utilizados.
Em uma dessas garrafas percebi que havia um buraco na parte de baixo. E dali
retirei centenas de ingressos, sem que o rapaz que tomava conta do brinquedo
percebesse. Enchi vários saquinhos plásticos de maçãs do amor com os ingressos
roubados e depois corri para casa feliz da vida. Não contei nada à minha mãe, pois
seria surra certa, caso ela soubesse do acontecido. No dia seguinte, levei todos os
irmãos para montarem nos brinquedos do parque, de graça. De alguns brinquedos
nem saíamos, como era o caso dos carrinhos de bate-e-volta. A cada vez que o tempo
terminava, dávamos outro ingresso para o rapaz que controlava o brinquedo.
Brincamos tanto que acabamos enjoando daquilo tudo e distribuímos os ingressos
para a meninada da rua onde morávamos. A garotada fez uma festa no parque,
literalmente.
***
Cursei o primeiro grau no Ginásio Celi de Freitas, onde era o aluno que mais
se destacava. Estudava muito e, por isso, sempre tirava as melhores notas. Todos me
conheciam: alunos, censores, professores, coordenadores e diretores. Sempre
participava das atividades extraclasse: dançava nas quadrilhas juninas, tocava e
ensaiava a banda do colégio, tomava parte nas mais diversas campanhas.
José Lientinho, um dos professores do colégio, era encarregado de promover
as festas e ensaiar a banda. Tinha contato freqüente com ele, pois tomava conta dos
instrumentos e tinha a chave do local onde eles ficavam guardados, além de também
ter a chave de uma sala onde ele armazenava papel ofício, papel carbono, álcool e
todo material que arrecadava no comércio local para uso da escola. Professor
Lientinho tinha esse aposento como sendo de sua propriedade, e ninguém podia
pegar dali uma folha de papel sem o seu consentimento. Certa vez, ele foi escalado
para tomar conta de uma prova na sala onde eu estudava. Simplesmente, resolveu
sair da sala, permitindo assim que todos "pescassem". Em sinal de protesto, assinei
a prova em branco e me retirei. A turma quase me matou. No dia seguinte, a
professora da matéria me chamou e me deu nota dez pela atitude, anulou a prova
dos demais e marcou outra prova com todos, exceto eu. O professor ficou
desmoralizado no colégio e, por este motivo, trancou-me no auditório da escola;
queria me espancar. Gritei por socorro e vieram professores e alunos acudir.
Felizmente, foi apenas uma "pressão". Não deu tempo para que ele me batesse.
***
Luciene era a mais engraçada, a mais relapsa e a mais admirada colega de
turma. Era gordinha, casada, falava um monte de palavrões e não gostava de
estudar. Quando saíamos da escola, às 22 horas, ela reunia uma galera para fazer
baderna pelas ruas. Roubávamos as plantas que as pessoas colocavam nos pátios de
suas casas e levávamos para a casa de Luciene. Quando não conseguíamos carregar
os caqueiros, por causa do peso, quebrávamos e destruíamos tudo. Até que a
vizinhança deu queixa na polícia, que passou a fazer ronda pelas ruas próximas.
Desse dia em diante, evitamos continuar com aquele tipo de baderna.
Luciene era a aluna que menos estudava. Passava o tempo inteiro
conversando e fazendo bagunça na sala de aula. Mas sempre passava de ano, graças
aos colegas, que, por gostarem muito dela, davam-lhe "cola" no dia da prova. Na
prova final da oitava série, pediu-me que preenchesse a prova e deixasse sem
assinatura, para que ela pudesse assinar e não perder o ano. Eu já tinha notas
suficientes para passar. Sempre fechava minhas notas na terceira unidade. Mas ela
dependia da nota da quarta unidade para conseguir concluir a oitava série. Fiz o que
ela pediu, e ambos passamos de ano.
Fui fazer o segundo grau em outra escola, já que lá só tinha o primeiro. Um
belo dia estava eu trabalhando numa barraca de doces, na esquina da avenida Rio
Branco com a rua Barbosa de Souza, quando passou minha professora de Português,
Eulália. Ela parou e começou a conversar comigo. Quando tocou no assunto da
prova, aquela que eu tinha preenchido para Luciene, fiquei paralisado. Baixei a
cabeça e não falei mais uma palavra. Com atraso, ela me deu a bronca que deveria
ter dado na época, falou que tinha me visto entregar a prova para Luciene, e que só
não tinha anulado as duas provas em consideração a mim, que era um ótimo aluno e
não merecia ter um ZERO na caderneta. Ressaltou ainda que, também por
consideração a mim, acabara cometendo uma injustiça: passar Luciene para a
primeira série do segundo grau. Culpou-me pelo fato de minha colega passar de ano
sem saber nada, enfatizando que eu levaria para o resto da vida esta culpa. Advertiu-
me para que eu não cometesse mais atitudes daquela natureza e encorajou-me a
continuar sendo o aluno exemplar que sempre tinha sido. Ouvi todo o sermão
calado, sem coragem de olhar em seus olhos. Morri de vergonha de tudo aquilo. Esta
é mais uma lição que me acompanha e, na medida do possível, tento passá-la
adiante.
Estudei em duas fases no IERP - Instituto de Educação Régis Pacheco. A
primeira foi quando voltei da Fazenda Turmalina, depois de lá ter vivido por cinco
anos. Fui direto para a quinta série do primeiro grau. Tendo estudado anteriormente
numa escola onde apenas aprendi o básico - ler, escrever, ver as horas no relógio e
outras amenidades -, fui reprovado em muitas matérias, principalmente em
Português, ao entrar para o novo colégio. Não conseguia sequer separar as sílabas
das palavras. Desisti então de continuar estudando ali e voltei para a escola normal
da cidade. Isso ocorreu por volta de 1982.
A segunda vez foi quando lá me matriculei para cursar o segundo grau. Aí,
sim, fui mais bem-sucedido, pois tinha me proposto a ser um aluno "caxias" no
primeiro grau e, conseqüentemente, tornara-me o destaque de minha turma.
"Vendia" trabalhos de Geografia, História, Matemática e de outras matérias para
toda a turma. Quando o professor passava uma pesquisa, eu fazia os trabalhos da
sala inteira, para vendê-los depois. Era uma boa fonte de renda extra para mim.
Durante meu curso de segundo grau, eu trabalhava na empresa de ônibus
Tiradentes, de Dalmar (veja detalhes no capítulo "Trabalho na empresa
Tiradentes"). A perseguição era muito forte dentro do trabalho e ninguém conseguia
estudar e trabalhar, pois os horários das escalas de trabalho eram feitos de forma
que impedia que o funcionário tivesse tempo de freqüentar a escola. Mas,
felizmente, consegui conciliar as duas atividades, mesmo porque eu era muito
incisivo e insistente naquilo que eu queria. Sempre enfrentei João e outros "fiscais"
da empresa de forma contundente.
Eu era o único cobrador que agia dessa maneira e não era demitido. Muitas
vezes, chegava de viagem, trabalhando, e ia direto para o colégio, onde fazia provas
que nem sabia que estavam marcadas. A duras penas, concluí o segundo grau, com
muitas falhas, devido ao baixo nível de ensino daquela instituição (a melhor da
cidade), onde se fingia estar ensinando e os alunos fingiam estar aprendendo.
Muitas provas de Economia eram "trabalhos" a serem feitos em casa e entregues na
Secretaria, pois o professor raramente aparecia na sala de aula. Outras matérias
tiveram a mesma sorte. Tanto que me "formei" em Técnico em Contabilidade e nada
sei da área. Os estágios, então, eram catastróficos. Além da imensa dificuldade de se
conseguir locais para estagiar, quando aparecia algum eram empresas que não
tinham a menor estrutura para funcionar, e muito menos para transmitir
informações contábeis. Na época, muita gente nem fazia estágio, apesar de conseguir
notas de estágio supervisionado. É o Estado cumprindo a sua parte em formar
cidadãos desinformados e despreparados para exercer suas atividades com
cidadania.
Ainda durante o curso de segundo grau, conheci Renato, de quem fiquei
muito amigo. Sendo eu considerado um dos CDF da classe, acabava indo sempre à
casa dos amigos, nos finais de semana, para lhes dar aulas. A casa de Renato era
quase uma velha conhecida, pois todos os domingos eu estava lá, bem cedinho, às
vezes até mesmo antes de o café ser servido. Lembro que sempre assistia ao Globo
Rural, um dos programas matinais da Rede Globo, na casa dele.
Lá, aproveitava para tomar café, almoçar e jantar, além das merendas
servidas durante o dia, principalmente a mim, que era visita. A família de Renato
também era muito pobre, mas sua mãe era aposentada e tinha salário fixo, o que lhe
permitia ter sempre comida em casa. Além disso, como a casa era própria, não
precisavam gastar com aluguel, e sempre sobrava algum dinheiro para outros gastos.
Consegui, uma vez, um emprego para Renato como vigilante na empresa de
um outro amigo meu, também colega de sala, para quem eu também dava aulas em
alguns finais de semana. Este outro amigo morava no bairro Agarradinho e tinha
fama de ser ladrão. Mas nossa amizade continuou mesmo após eu ter tomado
conhecimento de que ele roubava e fazia jus à fama.
Foi nessa época que conheci outra colega de escola chamada Ivonete. Era
dona de uma barraca de verduras na feira livre da cidade. Como minhas "aulas"
particulares nos finais de semana se tornaram famosas, acabei sendo convidado
para dar aulas a ela também. E assim descobri que Ivonete era comerciante e ela
descobriu que eu era uma pessoa necessitada. Acabou se oferecendo para me ajudar
e eu aceitei. Daí em diante, toda semana minha mãe, ou algum de meus irmãos,
passava na barraca dela e recebia um monte de verduras e frutas.
MILITÂNCIAS, TRABALHOS, MUDANÇAS...
Militância Política
Eu militava no Partido Comunista do Brasil e participava das reuniões de
cúpula, onde discutíamos estratégias de ocupação dos espaços na cidade:
associações de bairros, sedes de partidos, grêmios estudantis e todos os espaços que
pudessem gerar dividendos políticos. Uma das fontes de informações de que me
valia para manter-me atualizado era o jornal Tribuna Operária, que adotava uma
posição e linha de pensamento compatíveis com minhas idéias na busca de um
mundo mais justo e de uma sociedade mais humana. Durante muitos anos, revoltei-
me com as reportagens sobre a Ditadura Militar que lia nos jornais.
No colégio, juntei-me a uma equipe de rapazes e moças que já atuavam
politicamente de uma forma mais madura e profissional. Éramos tão atuantes que
acabamos fundando uma chapa para concorrer à direção do grêmio estudantil.
Nossa chapa de estudantes foi eleita para a direção do Grêmio Estudantil Dinaelza
Coqueiro, que fundamos no IERP e mantivemos por muito tempo. Eu era o Diretor
de Imprensa desse grêmio e responsável, entre outras coisas, pela publicação do
jornalzinho informativo, onde denunciávamos os mandos e desmandos do Diretor
Carlos Melhem.
Cheguei até a viajar para Salvador para pegar o jornal do grêmio, que era
impresso em uma gráfica da Ladeira de Santana. Nessa época, viajei também para
Arembepe, para participar da Convenção Nacional da União da Juventude
Socialista, um braço político do PC do B. Foi uma festa inesquecível. Participamos
de comemorações e debates, tomamos banho nas lagoas de Arembepe e dançamos
ao som de trios elétricos. O que mais me marcou nessa viagem foi o colégio onde
dormíamos e suas inúmeras telhas quebradas que, com a chuva, acordavam muita
gente durante a madrugada. Outra cena que não esqueço foi a de uma tartaruga
gigante, que vi nadando no mar, pertinho da praia. Naquele dia, tinha acordado cedo
e resolvi sair para uma caminhada na beira da praia. Estava distraído olhando o
mar, quando notei uma "pedra" enorme se movendo na superfície da água. Fiquei
intrigado com aquilo e não desgrudei os olhos dali até descobrir que o estranho
fenômeno era uma tartaruga de mais de dois metros de comprimento. Fiquei
surpreso e admirado diante daquela obra formidável da natureza. Permaneci um
bom tempo contemplando aquele casco colossal a se movimentar na água. Até que a
tartaruga resolveu dar um mergulho e desaparecer no meio das ondas do mar.
Campanha Política de Waldir Pires
Trabalhei com alguns amigos na campanha política de Waldir Pires para o
governo do estado da Bahia. Viajamos para a convenção do PMDB, partido que fazia
parte da coligação para a eleição de Waldir Pires. Em Salvador, fomos para a Câmara
Municipal, onde acontecia a festa, almoçamos num restaurante localizado embaixo
do prédio da Prefeitura e ficamos hospedados num minúsculo apartamento no
Engenho Velho de Brotas, de propriedade de Lídice da Mata. Como o apartamento
era muito pequeno, Lídice foi dormir na casa de sua mãe e lá deixou parte da galera,
na qual eu me incluía. Muito simpática, ela nos autorizou a ficarmos à vontade em
sua casa, inclusive para assaltar a geladeira, nos fartar de iogurtes e ovos, os quais
consumimos com vontade.
Fazíamos panfletagem, boca de urna, colagem de cartazes pela cidade,
debates, reuniões e seminários, em troca de uma promessa de emprego, caso o
Waldir ganhasse a eleição. Para nossa decepção, logo após a conquista do governo
do estado, nosso partido trocou os cargos por "apoio político" na eleição seguinte.
Fiquei revoltado com aquilo, de ver que as decisões eram tomadas em gabinetes,
restando à base aceitá-las pacificamente. Encontrava-me desempregado há um bom
tempo e aquela promessa de trabalho era com o que eu contava. Saí do partido,
abandonei toda a militância e nunca mais me engajei em política partidária.
Trabalho com Abdias e sua mulher
Trabalhei com Abdias e sua mulher desde o tempo em que eram casados e
moravam na Ladeira da Coelba. Nessa época, ele só tinha Rubens de filho. Eram
vendedores ambulantes de panelas, tecidos e utensílios domésticos de plástico.
Viajei muito em sua pick-up C10 para Itagi, Apuarema, Ipiaú e cidades dos arredores
de Jequié, nos finais de semana. Lá armava uma barraca ou simplesmente estendia
uma lona preta no chão, arrumava a mercadoria, e esperava que os fregueses
aparecessem. O mais engraçado era que, muitas vezes, além de ter de "brigar" por
um espaço no chão das feiras livres, ainda tinha de pagar uma taxa à prefeitura local
pela utilização do "solo", que não passava de um chão livre ou coberto de
paralelepípedos. Lembro-me que, certa ocasião, fui deixado em uma cidadezinha,
onde tive de procurar pelas mercadorias de Abdias, que estavam guardadas na casa
de um dos moradores da cidade, para depois levá-las até a feira e, no final, guardá-
las novamente nessa casa. Dali pegava um ônibus e voltava para Jequié com o
dinheiro apurado na vendagem do dia. Posteriormente, Abdias se mudou para o
Agarradinho, casou-se com outra mulher e teve mais filhos. E, por coincidência,
acabei indo morar em frente à sua casa, quando me casei com Márcia.
Na época em que Abdias e a mulher se encontravam sem condições de manter
a estrutura de vendedores ambulantes, montaram várias barraquinhas, de um metro
de comprimento por meio metro de largura, para a venda de doces, pipocas,
chicletes e cigarros. Trabalhei numa dessas barracas, que ficava guardada numa
residência na Avenida Rio Branco. Era a residência de duas senhoras idosas. Nos
fundos da propriedade, havia um quartinho onde eu guardava o "caixote" com os
doces. As senhoras sempre me davam café ou alguma comida, quando eu chegava
pela manhã para pegar o carrinho de mão e a barraca. Todos os dias eu carregava a
barraquinha e a armava na esquina da casa de Walter Sampaio - então prefeito da
cidade -, onde, tempos depois, foi construído o Superlar Supermercados - uma rede
de mercadinhos de Vitória da Conquista, com várias lojas em Jequié. Sempre era
roubado pelos estudantes que por ali passavam, fosse quando compravam fiado ou
quando, simplesmente, pegavam as mercadorias e corriam. Nessa ocasião, minha
mãe estava com sérios problemas nas pernas e precisava usar muletas para
caminhar. Ainda assim, todos os dias, ia levar minha comida, que não variava muito:
pirão de farinha com água, uma piaba frita ou um pão com manteiga (no interior,
margarina é chamada de manteiga). Como eu não gostava da comida, que ela levava
com sacrifício, e não queria magoá-la, usava da seguinte estratégia: jogava fora
minha água de beber, armazenada numa lata de Neston, e pedia que ela fosse buscar
mais água. Nesse meio tempo, dava um jeito de jogar a comida no lixo, sem que ela
visse. Enquanto ela atravessava, com dificuldades, a avenida Rio Branco, eu olhava
para a comida e dela me desfazia imediatamente, caso meu estômago a recusasse.
Porém, quando minha mãe voltava com a água, dizia-lhe que havia comido tudo. Ela
ficava satisfeita, enfatizando que meus irmãos, em casa, não tinham almoçado para
que sobrasse comida para mim. Eu ficava com o coração partido, mas nunca tive
coragem de dizer à minha mãe que, na maioria das vezes, eu também ficava com
fome.
***
Trabalhei como balconista no bar de Bio, na praça da Bandeira. Despachava
cachaça, bebidas diversas, cereais, tira-gostos, sucos, bolos etc. Trabalhava de
segunda a sábado e ganhava muito pouco. A grande vantagem era que eu comia
durante todo o dia, coisa que não poderia fazer em casa, onde quase nunca havia o
que comer. Não lembro quanto tempo trabalhei nesse bar, mas é uma passagem que
merece registro.
***
Quando ficava sem trabalho, ia limpar quintais de conhecidos com uma
enxada. Às vezes, saía a caminhar por ruas onde não conhecia ninguém,
perguntando, de casa em casa, se tinha algo que eu pudesse fazer. Desta forma,
nunca ficava sem uns trocados para comprar minhas coisas. Sempre encontrava algo
para fazer. Lembro bem do quintal de Dona Alzira, mãe de Edilene. O quintal dela
era enorme, e sempre tinha muito mato e lixo a serem removidos. Eu levava comigo
uma "galiota" (carrinho de mão, daqueles que os pedreiros usam) para retirar o lixo,
as pedras e o mato que eu capinava.
***
Trabalhei como caseiro na casa de um senhor conhecido como Dr. Gerson.
Ele tinha uma casa enorme e vários cachorros da raça policial. Apesar de não ser
chegado a animais, eu cuidava dos cães e dava comida a eles. Certa feita, entrei no
carro do patrão e encontrei um enorme revólver, calibre 38, no porta-luvas. Foi a
primeira vez que vi uma arma de verdade. Manuseei o revólver um pouco e, em
seguida, guardei-o, com medo de ser visto por alguém.
***
Trabalhei também quebrando pedras. Era um trabalho duro, literalmente
duro. Ficava numa pedreira, perto de Jequié. Ali eu ganhava por produção. Cada lata
de pedra equivalia a cerca de R$ 1,00, a preços de hoje. Isso poderia significar um
bom dinheiro se eu conseguisse quebrar muitas pedras. Mas a realidade é que eu
passava dois ou três dias tentando encher uma lata. Foi uma das fases mais difíceis
de minha vida.
***
Trabalhei também com Aldo, vendedor de utensílios domésticos e de leite.
Viajava com ele para as cidades circunvizinhas para vender tecidos, utensílios
plásticos e panelas. Trabalhava nas feiras livres das cidades próximas a Jequié. Não
lembro de muita coisa sobre esse trabalho, foi apenas mais um deles.
***
Joel é um primo distante, por parte de meu pai. Ele trabalhava numa
panificadora, na Avenida Franz Gedeon, próximo ao centro da cidade. Conseguiu-
me uma vaga para trabalhar como vendedor e entregador de pães. Eu saía de casa,
então, todos os dias bem cedo, por volta das cinco horas da madrugada, e voltava
somente no final da tarde. Ainda lembro do cheiro dos pães fresquinhos, a exalar do
enorme cesto que eu carregava, para entrega nas lojas próximas e no centro da
cidade. Meu pescoço doía muito por causa do peso do balaio. Não fiquei muito
tempo empregado ali, e nem sequer recordo do motivo de minha saída.
***
Construí um carrinho de mão, de madeira, e com ele trabalhei muito tempo
carregando as compras do povo na feira. As pessoas que iam às compras levavam
cestos enormes, balaios descomunais, que enchiam de verdura, feijão, carne e tudo
mais. Só que a volta para casa nem sempre era uma operação fácil para esses
compradores, pois tinham de levar suas compras em ônibus coletivos ou em táxis.
Nos ônibus, nem todos os motoristas permitiam; e nos táxis, a corrida ficava mais
cara. A saída para aquela gente então era pagar uns trocados para um rapazinho
carregar as compras. Esta prática é bem comum nos locais onde tem feira livre.
Geralmente, os dias de maior movimento eram sexta e sábado, quando o
centro da cidade era invadido por pessoas vindas de povoados e fazendas próximas
para fazer suas compras em Jequié ou para vender os produtos das roças. Houve um
dia em que eu quase desmaiei quando subia a avenida Rio Branco em direção ao
viaduto Daniel Andrade, com um cesto enorme no carro de mão. O peso era tão
grande que eu me entortava todo para equilibrar o carrinho de mão. E, para piorar a
situação, nesse dia eu não tinha tomado café, estava muito fraco. Acabei passando
mal e quase não pude continuar meu trabalho na feira. A dona do cesto,
sensibilizada com o meu estado, me trouxe um copo d’água e depois me deu café
com pão. Pediu que eu ficasse ali parado um pouco, descansando, e depois fosse
para casa. Segui seus conselhos e descansei, mas, ao invés de voltar para casa, fui
direto para a feira livre, procurar mais cestos para carregar.
***
Um dos trabalhos mais chatos que tive foi o de ajudante de pedreiro. Nunca
havia trabalhado antes nessa profissão - e, depois dessa experiência, não procurei
outras iguais. Seu Elias era um senhor negro e gordo, lento e lerdo como uma
tartaruga. Uma vez, chamou-me para ganhar um dinheiro trabalhando como seu
ajudante no serviço de pedreiro. Só que ele não fazia nada. Ficava sentado na escada
de madeira, recebendo blocos de cimento, massa de cimento e tudo mais, sem fazer
o menor esforço. Só sabia mandar: "Traga o cimento! Traga a corda! Traga a colher
de pedreiro!". Esta passagem foi tão rápida que mal consigo lembrar quanto tempo
durou o trabalho, nem quanto eu recebia por ele.
***
Zezé é o apelido de José, um de meus irmãos, filho do primeiro casamento de
meu pai. Ele é casado com Irene, com quem teve Vagner e Lane. A primeira família
de meu pai sempre viveu afastada da gente, acredito que por causa da nossa
condição social, que não nos permitia freqüentar os lugares que eles freqüentavam.
Sendo comerciante, sempre teve um bar ou uma mercearia, onde trabalhava
duro para sustentar a família. Quando trabalhei com ele no bar, como balconista,
caminhava quase a cidade inteira, de madrugada, para chegar ao estabelecimento
cedinho, antes das seis horas da manhã, todos os dias. Batia na porta de sua casa e
ele abria uma portinhola por onde enfiava a mão e me entregava as chaves da venda.
Daí eu abria o mercadinho, fazia toda a limpeza do chão, das louças, frigideiras e
panelas de café, que estavam sujas desde o dia anterior. Cozinhava ovos, preparava
lanches, fervia feijão ou alguma outra comida que estivesse no fogão, limpava e
enchia a geladeira e o freezer de bebidas. Deixava toda a venda preparada para o
novo dia.
Zezé acordava por volta das sete horas e ia para lá. Nem sempre ficava
comigo. Mas uma de suas advertências era que eu evitasse vender fiado para a
clientela, sob a alegação de que fiado somente na presença dele. E assim eu
procedia, evitando que a maior parte do estoque fosse vendida fiado. Para cada
cliente que chegava pedindo para fiar a compra, eu repetia sempre que "somente
com meu irmão", pois não tinha autorização para tal.
Gostava daquele trabalho e tentava fazê-lo da melhor maneira possível.
Afinal, eu precisava do salário que ele me pagava (menos que um salário mínimo,
diga-se de passagem). Na venda, ele tinha um ponto de jogo do bicho, onde aprendi
a fazer o jogo. Muitas vezes, Irene, minha cunhada, ficava no bar comigo. Mas o
mais comum era encontrar Vagner por ali, geralmente sentado ao lado do caixa e
passando troco. Nunca desconfiei dele. Mas, um dia, houve uma discussão entre
mim e Irene, porque Vagner tinha colocado um saco de amendoim doce pendurado
num prego sobre a pia. Com o peso, o saco rasgou, fazendo com que o amendoim
caísse na pia, ficando todo molhado e se estragando. Vagner, para livrar-se da
bronca e de pagar o prejuízo, acusou-me de ter colocado o amendoim sobre a pia.
Ficou a palavra dele contra a minha, e sua mãe, obviamente, acreditou no filho.
Protestei e discuti com ela. Quando meu irmão chegou, certamente influenciado por
algo que Irene lhe dissera, resolveu me mandar embora, sob o argumento de que, se
eu não me dava bem com a mulher dele, não poderia continuar trabalhando na
venda. Nada pude fazer, era ele o dono do bar.
Devido ao jogo do bicho que eu fazia para Zezé lá no bar, acabei conhecendo
todos os fregueses e também aqueles que faziam sua "fezinha" constantemente.
Desempregado e sem ter o que fazer, fui até a banca do jogo do bicho e peguei um
talão para mim. Comecei a fazer jogos por minha própria conta. Meu roteiro incluía
principalmente as proximidades da venda de meu irmão, onde eu já tinha uma boa
freguesia.
Um dia, estava eu do lado de fora da venda e vi uma freguesa conhecida
entrar. Ela não me viu e, dando por minha falta, perguntou à Irene, que estava no
balcão, onde eu me encontrava. Irene prontamente anunciou que "Zé mandou
embora, pois ele estava roubando o bar". Quase não me contive de raiva ao ouvir
aquelas palavras, mas fiquei do lado de fora da venda, escutando toda a conversa.
Até hoje tenho este espinho entalado na garganta. E, um dia, ainda hei de chamar
Irene para conversar sobre o assunto. Ouvi bem quando ela disse à freguesa que
sempre mandava Vagner tomar conta do caixa da venda, para que eu não roubasse
ainda mais. E foi aí que me caiu a ficha: ela mandava o filho, não com a intenção de
me ajudar, mas para me vigiar. O que deixa meu coração aliviado é que eu nunca
peguei nada de meu irmão.
Ouviria de Zezé, tempos mais tarde, quando eu passava por sua venda, sobre
as estripulias do filho. Contou-me que Vagner tinha se tornado evangélico, e que,
quando ia para os "retiros espirituais", sempre arrombava a venda, levando comida e
tudo o que encontrasse, para passar semanas no meio do mato com os "irmãos" de
igreja. Por ironia do destino, ele que era o vigia passou ao papel de ladrão. Zezé
relatou, ainda, que muitas vezes foi xingado pelo filho na presença de pessoas da
vizinhança, o que lhe deixava morto de vergonha. É o destino dando a lição
necessária àqueles que precisam aprender algo na vida.
***
Saímos da Casa da Avenida Franz Gedeon. Essa casa pertencia ao meu irmão
Édson, que sempre morou em São Paulo. A razão de termos saído dessa casa foi que
os cunhados de Édson (Joel, Maxwel e Creuza) convenceram-no a nos tirar de lá e a
pagar o aluguel de uma outra casa para nós. Alegavam que, se continuássemos
morando ali, a casa poderia passar a ser nossa. E ele, temendo que isso acontecesse,
fez o que lhe foi sugerido. Édson resolveu então passar a pagar o aluguel de uma
outra casa para nós. E, como o valor do aluguel que ele se propunha a pagar era
muito baixo, só podíamos escolher casas bem pequenas e em bairros distantes.
Fomos morar inicialmente no bairro do Pau Ferro. Primeiro, procuramos casa na
rua da Bosta, o pior lugar do bairro, onde encontramos uma que fazia jus ao nome
da rua. Ficava em cima de um despenhadeiro, em rua de chão batido, onde não
havia serviço de ônibus nem de água encanada. Depois, conseguimos uma casa, no
mesmo bairro, pelo mesmo preço, porém mais perto do Centro. Fomos então morar
nessa casa, cujo aluguel deveria equivaler hoje a algo em torno de dez reais por mês.
Alguns meses depois nos mudamos para uma casinha com uma sala de um
metro e meio por dois de largura, um quartinho do mesmo tamanho e um pequeno
corredor, localizada na rua Rafael Pinto, bairro do Jequiezinho. Não tinha quintal,
ou melhor, tinha um quintal que, por não ser cercado nem murado, acumulava
muito mato e lixo. Na frente da casa, a rua era de cascalho. Fica difícil hoje
compreender como todos os meus oito irmãos, juntamente com minha mãe,
conseguiam se acomodar numa casinha tão pequena.
Ali conhecemos muita gente. Continuávamos dependendo da boa vontade das
pessoas para sobreviver. Conhecemos Eva e sua família: a mãe, Dona Maria, e a
irmã, Nalva. Era gente da roça, que se mudou para a cidade após vender um sítio
que possuía. A família foi em busca de uma vida mais fácil, menos sofrida. Acabou
sem o sítio, sem a casa, sem nada, pois, quando o dinheiro secou, ficou sem ter como
sobreviver naquela realidade urbana, onde cada um luta por si. Dona Maria teve de
vender a própria casa para cuidar de Eva, vítima de doença incurável: um câncer em
estágio avançado. Antes de procurar os médicos, ela correu para as igrejas
evangélicas, depois para os terreiros de candomblé e, quando enfim resolveu apelar
para a medicina, o caso já estava adiantado demais. Não me sai da lembrança o dia
em que fui visitá-la em sua casa e espantei-me com o buraco enorme em suas
nádegas, por onde se viam os ossos do quadril. Foi uma das cenas mais chocantes
que vi.
Quando morávamos nessa casa, fui à loja e comprei um fogão a gás. No
entanto, a alegria durou pouco. Nunca usamos o fogão, pois não tínhamos condições
de comprar o botijão de gás e, muito menos, o gás para abastecê-lo mensalmente.
Esse fogão eu acabei vendendo para pagar pela publicação de uma poesia na
antologia Poetas Brasileiros de Hoje - 1984. Não usamos o fogão para cozinhar, mas
ele serviu para essa alegria minha e de minha família, que vibrou quando viu o livro
publicado. Antes de eu comprar esse fogão, já tínhamos ganho um fogão menor, de
duas bocas, doado por uma pessoa chamada Lourdes. A alegria foi muito grande,
mas não tivemos condições de comprar o botijão de gás e por isso o fogão nunca foi
utilizado. Acabamos nos desfazendo dele para comprar comida.
Nessa rua - como nas outras - era Quira quem mais fazia amizades. Conheceu
Nenquena e Norminha. A primeira usava drogas e a segunda fumava cigarros igual a
uma caapora. Tinham fama de mulheres fáceis, diziam que elas saíam com todos os
homens da cidade. Minha mãe vivia a reclamar com Quira por causa de suas
amizades, mas, sempre muito teimosa, minha irmã continuava a sair com essas e
outras amigas. Felizmente ela não seguiu o destino das amigas e hoje é uma pessoa
de bem, casada, com três filhos, evangélica, responsável e muito amada por todos da
família.
***
Primeira viagem a Salvador
Fui trabalhar em Salvador, em 1984, na casa de Luci Valverde, que morava na
Alameda das Framboesas, Quadra 7, Lote 12, Caminho das Árvores. A casa ficava
perto do Iguatemi e todos os dias eu passava perto do shopping para comprar pães.
Da varanda, dava para ver ao longe os ônibus passando, e eu ficava horas e horas
observando o movimento dos carros. Na verdade, ela me levou para a capital
dizendo que precisava de mim para tomar conta de um cachorro. Mas, quando
cheguei, não tinha cachorro algum. Eu teria de limpar a piscina, o quintal, ser
zelador e jardineiro. Como relatado anteriormente, Luci era a dona da Fazenda
Turmalina, onde morei dos sete aos doze anos de idade. Em sua casa na cidade
moravam, além dela, os filhos Augusto, Conceição e Pitutinha. Teobaldo, o mais
velho, morava no México, na época.
Por falar em Teobaldo, certa vez o carteiro trouxe uma carta dele para Luci, e
eu, por achar o selo muito bonito, arranquei-o do envelope para juntá-lo à minha
coleção. Por medo de mostrar o envelope lascado, cometi a imprudência de ler a
carta e jogá-la no lixo, em seguida. Depois, arrependido, recuperei a carta e
coloquei-a, aberta, na estante da sala. Luci pegou a carta e me pressionou a
confessar o delito. Neguei até a morte, e ela me deu um sermão que jamais esqueci;
disse que era muita ousadia e falta de responsabilidade abrir correspondência
alheia, que aquilo era crime. Aprendi a lição e nunca mais ousei abrir qualquer
correspondência, fosse de quem fosse. Só não revelei que tinha sido eu o autor do
ocorrido, nem os motivos que me levaram a abrir a carta. Mas ela sempre teve a
certeza de que fui eu que abri aquela correspondência.
Uma vez houve um problema na instalação elétrica da casa e foi chamada
uma pessoa para fazer o conserto. Luci pediu-me que ficasse na garagem, junto com
o eletricista, tomando conta das coisas, para não correr o risco de ser roubada por
ele. Infelizmente, não pude evitar que um roubo acontecesse, e não por culpa do
eletricista. A coisa se passou da seguinte maneira: fiquei sozinho na garagem,
quando o eletricista subiu para verificar uma fiação no primeiro andar da casa.
Minutos depois de o eletricista ter subido, passou um rapaz em frente à garagem,
chegou até a porta e perguntou se não estavam precisando de alguém para trabalhar
na casa. Respondi que não. Ele então entrou e levou uma bicicleta Caloi 10 novinha,
que estava ali, depois de me ameaçar com a chave de fenda que pegou dentro da
própria garagem. Perguntou-me se tinha mais alguém em casa e eu, com medo,
respondi que tinha muita gente na casa, quando na verdade tinha somente o rapaz
que trabalhava consertando os fios e Luci. Ele levou a bicicleta e eu fiquei em pânico.
Corri para fechar a porta da garagem e para avisar Luci. Saímos pelos arredores à
procura do ladrão, mas infelizmente não conseguimos localizá-lo.
A casa era enorme e tinha uma piscina muito bonita no quintal. Eu ficava
louco para tomar um banho ali, mas, como empregado, não tinha direito a essa
regalia. Esperei o pessoal viajar, oportunidade em que fiquei sozinho na casa. Aí
aproveitei para dar o tão desejado mergulho, um único mergulho, naquela piscina de
águas convidativas. Foi o suficiente para matar meu desejo e curiosidade. Foi o
primeiro mergulho de minha vida em uma piscina. Quando Luci chegou, deu-me a
maior bronca, pois tinha observado o rastro que eu deixara no fundo da piscina.
Com o mergulho, meu corpo havia limpado uma faixa de sujeira do fundo e eu não
percebera...
Meu quarto ficava nos fundos da casa, perto da cozinha. Tinha um guarda-
roupa enorme, onde caberiam todas as roupas de minha vida. Mas eu ocupava
apenas uma gavetinha do fundo, já que não possuía muita roupa. Tinha também
uma televisão. Eu podia assistir TV no meu quarto ou na cozinha; jamais na sala,
com os patrões. Nas poucas vezes em que me sentava na sala para assistir TV, era
posto para fora dali, sob o argumento de que "empregados não podiam se misturar
com patrões". Mas eu não tinha essa noção ou cultura, nem sabia que a expressão
"colocar-me em meu lugar" significava ficar nos fundos da casa. Lembro de uma vez
que fiquei brincando com o controle remoto da TV enquanto Pitutinha assistia aos
programas na sala. De molecagem, eu mudava de canal a toda hora, para vê-la
reclamando. Ela era uma criança ainda, e eu, também da mesma faixa etária,
achava-me no direito de brincar com a patroinha da casa.
Odiava macarrão porque me lembrava lombrigas. Uma vez, no jantar, vi que
meu prato continha macarrão em sua maior parte. Comi o restante da comida e
joguei o macarrão no lixo. Luci estava na janela do primeiro andar e me viu fazendo
aquilo. Desceu e me deu uma bronca memorável. Falou que tinha muita gente
passando fome no mundo e que eu estava desperdiçando comida. Disse ainda que,
se eu não gostasse da comida, que falasse para a empregada me dar outra coisa.
Repeti a cena em outra ocasião, quando a empregada esqueceu de deixar
comida para mim. Então, Conceição, filha de Luci, preparou uma sopa de cogumelo.
Tentei comer, mas odiei o sabor. Fingi que comi, esperei ficar sozinho, e joguei tudo
no lixo. Desta vez não fui visto, senão seria bronca certa.
A empregada da casa folgava nos finais de semana. Certa vez, peguei o prato
sujo e coloquei na pia. E lá veio Luci novamente me dar bronca. Agora alegando que
até ela mesma lavava seu prato, e que muitas vezes já tinha lavado até o vaso
sanitário de seu quarto; que metia a mão dentro dele com esponja e sabão, e que
aquilo não a tornava melhor ou pior do que era. Após o sermão, exigiu que eu
lavasse o prato. Aprendi a lição. Com Luci aprendi muitos valores importantes da
vida.
Chegou o natal e Luci começou a preparar a festa de final de ano. Aquela seria
a primeira ceia natalina de minha vida. A mesa estava repleta de comidas: leitão
assado, peru, frutas, nozes e vinhos. Mas não agüentei esperar até meia-noite e corri
para a cama. Poderia ter experimentado naquele Natal uma sensação diferente de
todas as que já tinha vivido. Mas, infelizmente, o sono me venceu e eu perdi a
oportunidade de desfrutar da festa. Pouco tempo depois, voltaria a morar na
pobreza, em Jequié, com minha mãe.
Luci era espírita e tinha o costume de oferecer comida e presente aos
espíritos. Lembro-me que, na época em que morei na fazenda, eu já havia
encontrado abóbora com mel, e outras oferendas, dentro de uma tigela de barro, que
ela colocava dentro do mato. Em Salvador, levou-me uma vez para o rio Vermelho,
onde jogou flores e perfumes no mar, para Yemanjá. Foi a primeira vez que vi o mar.
Fiquei maravilhado, extasiado... E, deste encantamento, fiz uma poesia em
homenagem ao mar:
O Mar
O mar é muito lindo!
Tão lindo quanto extenso.
Tudo que vejo e é lindo
Está no mar.
Nele tem peixes grandes e peixes pequenos.
Pelas águas do mar, ou dos mares,
Navegam as maiores embarcações...
Também singram o mar,
A trabalho, diversão ou em simples viagem,
As embarcações menores: canoas, barcos, balsas, jangadas...
A textura da areia é finíssima e alva
Em quase todas as praias brasileiras.
Os habitantes do mar, os peixes já mencionados,
São muito úteis aos brasileiros,
Que têm no mar uma de suas principais fontes de alimentação.
O mar também aparece como a ligação
De outros países com esta Nação.
(1984)
Retorno a Jequié
Quando voltei a Jequié, minha mãe já estava morando no Pau Ferro, na casa
de Mariinha. Era uma casinha bem pequena, estreita e baixa. Tinha um quintal
imundo e cheio de tralhas. A família inteira morava naquela casinha minúscula.
Sonhava, nessa época, em entrar para a Aeronáutica. Pedi a Luci Valverde que me
ajudasse a pagar o curso preparatório e ela generosamente concordou. Com o
dinheiro, comprei as apostilas.
Um belo dia, Luci apareceu em minha casa para saber se eu estava estudando
e me preparando para o concurso. Expliquei-lhe que achava tudo muito difícil e que
estava prestes a desistir. Luci me deu a maior bronca que recebi em toda a minha
vida. Falou que tinha tido uma vida muito difícil, e que, na juventude, teve que
comer banana verde assada para sobreviver; falou ainda que já havia passado muita
fome; que seu pai enriquecera, sim, mas que antes de conquistar seus bens materiais
passara por muito sofrimento e conhecera a fome de perto; que tudo o que ela
adquiriu foi resultado de muito suor e trabalho; que sua situação financeira
confortável devia-se às economias que fazia e ao cuidado na aplicação de cada
centavo; que não desperdiçava nada, a fim de poder ter sempre com o que se
manter. Ela me disse que eu deveria aproveitar as oportunidades que a vida me
desse, enfrentar os desafios, ter mais coragem e autoconfiança e nunca desistir dos
meus sonhos e projetos, mesmo que eles pudessem parecer impossíveis de
conquistar.
Enfim, deu-me uma lição de moral e uma lição de vida para nunca mais
esquecer. Todo aquele discurso ficou gravado em minha mente e me lembro de cada
palavra como se fosse hoje.
***
Em uma casa em frente à que morávamos, havia uma família com três
irmãos: Balbino, Ádia (conhecida como "sem queixo") e Maria, que moravam com o
pai. Apaixonei-me por Maria, que tinha um filho chamado Anderson, de um ano de
idade, cujo pai morava no Rio de Janeiro. Enquanto namorei Maria, costumávamos
freqüentar uma boate chamada "Cantinho de Lua", que ficava perto do Aeroporto
Vicente Grilo, onde desfrutamos de bons momentos. O romance durou quase um
ano, mas ela nunca quis algo mais sério comigo. Namorávamos e transávamos
muito, mas, quando eu falava em morarmos junto, ela caía fora do papo.
Quando terminamos, entrei em depressão. Cheguei a fumar uma carteira
inteirinha de cigarros em poucas horas. O detalhe é que eu não era fumante e não
gostava de cigarro. Caminhei do bairro Mandacaru até o bairro do km 4 fumando, e
quase me joguei embaixo de uma caçamba que passou na BR-116, indo em direção a
Vitória da Conquista.
Tirei muitas fotos com Anderson, filho de Maria. Eu gostava demais do garoto
e queria adotá-lo como meu filho. As fotos serviram de lembrança para guardar,
como uma recordação do namoro com a mãe dele e de uma provável família feliz
que seríamos.
Nesse mesmo período, trabalhei como fotógrafo particular. Comprei uma
câmera fotográfica não profissional e comecei a "tirar fotos" de todo mundo. Dessa
época tenho guardada em casa uma infinidade de fotos e negativos. Muita gente não
me pagava, é bem verdade, mas, de um modo ou de outro, acabava recuperando o
dinheiro investido, pois a quantidade de fotos que eu fazia era grande.
***
O Pau Ferro era um dos bairros mais violentos da cidade. Lá havia tiroteio,
gente cortando gente com facão, pobreza, falta de saneamento básico (os esgotos
corriam a céu aberto), ruas sem calçamento, serviço de transporte público precário,
enfim, era um bairro típico da periferia. Eu não falava com praticamente ninguém,
exceto o estritamente necessário, com medo de criar laços de amizade com pessoas
que pudessem me trazer problemas no futuro.
Trabalhava no bar de Joel, um primo distante, e meu contato com o público
se restringia ao formalmente necessário. Quando saía para trabalhar, sempre
advertia meus irmãos para que não abrissem a porta para quem quer que fosse,
lembrando-lhes que, caso alguém perguntasse algo sobre mim, deveriam dizer que
eu era do Exército, patente "herdada" de meu pai, que também tinha sido militar.
Uma mentira de conveniência para que as pessoas nos "respeitassem" e evitassem
confusão conosco.
Um belo dia, alguém bateu à porta e meu irmão Gal (Vivaldo) atendeu.
Desconsiderando minhas instruções, falou para a pessoa que tudo não passava de
uma mentira e que eu não era do Exército coisa nenhuma. Gal era uma criança e não
tinha noção da gravidade do que estava fazendo, mas levou uma surra por isso, surra
que ele jamais esqueceu. Eu, sinceramente, não me lembrava deste episódio, mas,
recentemente, em conversa com Gal e com meus outros irmãos, fui "lembrado" do
ocorrido.
***
O bar era composto de um pequeno balcão e prateleiras, e também de um
salão onde havia uma mesa de sinuca. Joel tinha montado um aparelho de som em
casa, de grande potência, que posteriormente instalou no bar. Eu sempre colocava
músicas para tocar e, freqüentemente, ouvia Frank Sinatra no volume máximo do
aparelho, irritando bastante os vizinhos. Mas ninguém nunca chegou para reclamar
do barulho, apenas do meu mau gosto por música, já que eles preferiam cantores
mais populares. Joel, o dono do bar, possuía vários discos de vinil, que eu não
parava de ouvir: reggae, Tina Turner e outros sons... A música deixava tudo muito
mais alegre.
Perto do bar, do outro lado da rua, moravam Lusa e Pinóia, duas prostitutas
que tinham um pai cego. Certa vez, chamei Lusa e marcamos um "programa". Ela
aceitou e foi à noite até o bar para me encontrar. Bebemos bastante e transamos
várias vezes em cima da mesa de sinuca, sobre o balcão, em todos os lugares
possíveis. Eu tinha dezoito anos de idade e era a minha primeira experiência sexual,
que viria a me render também a primeira e única doença venérea: gonorréia.
Passados alguns dias, comecei a sentir um ardor insuportável ao urinar. Depois
começou a sair uma secreção do pênis. Fiquei apavorado e mostrei para minha mãe,
que me levou ao posto de saúde, onde o médico me receitou o remédio apropriado.
Tomei as injeções que ele prescreveu e fiquei curado.
Lusa sempre pegava arroz ou feijão no bar, dentre outras coisas, sem pagar,
por conta de nossa transa. Mais de dois anos depois, vim a saber que tinha ficado
grávida de mim e abortado o filho, sob o argumento de que eu não teria condições de
criar a criança e ela não queria assumir o bebê sozinha. Fiquei muito revoltado com
este infeliz incidente, mas nunca a procurei para falar sobre o assunto. Teria sido o
meu primeiro filho, que poderia estar hoje com vinte anos de idade.
No bar existiam duas mesas de sinuca. Como eu tinha a chave da gaveta,
ficava o dia inteiro jogando de graça. Abria a gaveta por baixo e pegava as bolas, sem
que o contador girasse e marcasse o número de partidas jogadas. Várias e várias
vezes eu repetia a mesma operação, para preencher o tempo vazio, já que quase
ninguém comprava no bar. O povo era muito pobre, dinheiro não sobrava nem
sequer para comprar comida.
Valdinéia era uma das putas do Pau Ferro, filha de Dona Zene e irmã de Yara
(a puta mais poderosa da área). Ela freqüentava o bar onde eu trabalhava e, pelo
contato constante, acabamos nos envolvendo sexual e sentimentalmente. Várias
vezes ela dormia no bar comigo, e transávamos cerca de quatro a cinco vezes por dia.
Acabamos tendo um caso e fomos morar juntos, na casa de minha mãe. Nessa época,
eu andava psicologicamente muito abalado por causa da situação financeira da
família. A depressão andava comigo e, diante da falta de expectativas, passei a
atentar contra a própria vida, como no dia em que tomei um copo inteiro de
aguardente Pitu, chegando em casa transtornado, e quando enchi um frasco de
veneno e me dirigi ao posto médico do bairro vizinho. Lá, entrei no sanitário e tentei
ingerir o veneno, mas me faltou coragem para concluir o ato. Deixei o veneno ali
mesmo e voltei para casa. Num terceiro episódio, entretanto, acabei tomando
veneno Baygon com cachaça e fui parar no hospital, onde permaneci internado por
vários dias. A depressão e o medo de viver me sufocavam, fazendo-me planejar fugas
mirabolantes do hospital. Deus estava presente em minha vida, através de amigos e
familiares, e com o tempo o amor de todos eles foi me deixando mais confiante.
Recuperei-me do susto de morrer, recuperei minha auto-estima e fui vencendo aos
poucos minhas paranóias.
Néia passou a morar comigo, tornando meus dias menos amargos. Lembro
que ela gostava muito de tomar café. Fazia um panelão de café e guardava; toda hora
esquentava e tomava um gole. Era horrível o gosto de café requentado, mas ela
gostava. Néia tinha um problema no útero que a impedia de engravidar. E tinha
também um bafo de onça: a boca fedia como um esgoto, mas eu fingia não perceber
e nem reclamava. Seus dentes eram demasiadamente grandes, o que fez com que
acabasse se tornando alvo de crítica de meus irmãos, que passaram a chamá-la de
"barrão alvoraçado". Todos gozavam da cara dela, dentro de casa, inclusive eu.
Pirraçávamos demais com a pobre. Não sei como ela agüentava tudo aquilo.
***
Ainda no bairro Pau Ferro fomos morar numa casa localizada no final da rua
João Rosa. Era um casebre, na verdade. Não tinha sanitário, somente uma "casinha"
ridícula no quintal, que não era murado. Um pedaço de plástico funcionava como
porta, e uma tábua com um furo no meio como vaso sanitário. A fossa embaixo da
tábua fedia terrivelmente e em suas bordas se acumulavam muitos bichos de mosca.
Era um lugar insuportável de se morar por causa do incômodo mau cheiro. Ao lado
desse "sanitário", havia um tanque de água, no chão. O tanque nunca ficava cheio,
era rachado. Enchíamos o tanque pela manhã, quando caía água, e a rachadura
levava toda a água antes do meio-dia.
***
Minha ex-sogra, Dona Zene, mãe de Néia, conhecia muita gente, pois
trabalhava nas feiras livres da cidade e também no Matadouro Municipal, vendendo
comida e mingau. Também já havia trabalhado, por muitos anos, em frente ao
Frigorífico Sudoeste Bahiano S/A (Frisuba), vendendo bolo, café, mingau e outras
iguarias. Assim, acabou fazendo amizade com muita gente que trabalhava ali,
inclusive com o médico veterinário Valdelício Fontenelle, chefe do Serviço de
Inspeção Federal que funcionava dentro do Frisuba, a quem me apresentou,
pedindo-lhe que me arranjasse um emprego. O médico precisava de mais um
auxiliar e acabou me indicando ao Frisuba, para ser contratado. Foi o meu primeiro
emprego de carteira assinada. Era um emprego muito bom. Minha função, como um
dos auxiliares do médico, era examinar as carnes e miúdos dos bovinos abatidos no
frigorífico. Nossa equipe tinha destaque e era tratada com certas regalias que os
demais funcionários não tinham: vestuário separado e lavado por conta do Frisuba,
almoço em sala separada com cardápio diferenciado, fardamento diferente (com
uma cruz verde no ombro esquerdo, que significava "auxiliar de médico" ou coisa
parecida), acesso aos telefones, sala com máquina de escrever, frigobar, telefone e
mesas de escritório. Toda essa regalia gerava uma certa inveja por parte dos demais
funcionários da casa.
Éramos uma espécie de autoridade ali. Tínhamos autorização para jogar no
incinerador todas as carnes ou miúdos bovinos contaminados por fezes, ou que
apresentassem doenças. Os caminhões de carne vistoriada só podiam partir após
serem lacrados com o selo de inspeção do SIF (Serviço de Inspeção Federal) e com o
laudo atestando que aquele produto era apropriado para o consumo humano.
Tínhamos também direito a um meio de transporte diferente do da "peãozada". Mas,
como o frigorífico não comprava um veículo apropriado para o nosso uso, os cinco
funcionários da Inspeção Federal invadiam a cabine do caminhão que levava os
peões. O motorista reclamava que a polícia rodoviária podia multar, mas
protestávamos e não saíamos da cabine.
O frigorífico ficava a uns dez quilômetros do centro da cidade. Todos os dias
pegávamos um ônibus ou o caminhão da empresa às sete horas da manhã. Lembro-
me que, certa vez, perdi tanto o caminhão quanto o ônibus, e acabei indo a pé para o
trabalho. No caminho, o médico veterinário passou dirigindo o Fusca preto, de
propriedade do governo federal, e me deu carona. Chegando atrasado ao trabalho, o
porteiro não permitiu que eu batesse o ponto. Daí, o próprio médico foi à portaria,
pegou e bateu meu cartão de ponto, por sua conta e risco.
Este foi o primeiro emprego de carteira assinada e o melhor que havia tido até
então. O salário era muito bom; com ele pude comprar minha primeira televisão,
fogão a gás e pagar em dia o aluguel da casa onde morávamos. E, apesar das
dificuldades financeiras que enfrentava, ainda conseguia fazer uma economia de
guerra, e juntar alguma grana para o caso de um futuro incerto. Resultado dessa
economia e planejamento: acabei comprando um terreno no Loteamento Itaygara,
no bairro Mandacaru.
Ali no Frisuba, tive uma colega de setor chamada Welma. Conversava muito
com ela sobre minha vida e a situação que enfrentava. Quando lhe disse que não
tinha televisão porque não poderia alugar uma casa equipada com instalações
elétricas, ela me sugeriu comprar uma TV que pudesse ser alimentada por bateria de
carro. Por coincidência, o irmão de Welma tinha uma TV em preto e branco, que
funcionava tanto com energia elétrica quanto com bateria de carro. Não titubeei.
Comprei a TV. Foi uma verdadeira festa em casa, pois dali em diante não
necessitaríamos mais ficar nas casas dos vizinhos para assistir aos programas, às
novelas e aos desenhos animados. O problema era que varávamos as noites
assistindo televisão, e a bateria se esgotava em poucos dias. Além disso, havia o
contratempo de ter que levar a bateria, na cabeça, até alguma oficina mecânica que
nos fizesse a recarga gratuitamente. E, depois de recarregada, ainda tinha a segunda
jornada: voltar para casa com o peso na cabeça, para vararmos novas noites
assistindo à televisão. Nessas noitadas, comíamos todos os biscoitos e bebíamos
todo o café que existissem na casa...
***
Fomos morar num casebre localizado à rua Teixeira de Freitas, a rua mais
pobre e feia do bairro. As casas que ficavam do lado direito tinham seus quintais
virados para o corte que dava na antiga passagem da linha de trem. Nesse corte
passavam os esgotos de todas as casas, que eram jogados ali. Aquilo exalava um
cheiro insuportável e era foco de muitas doenças, além de servir de berço para
nascimento e crescimento de muriçocas. Incomodado com tanta precariedade,
resolvi fazer uma carta e mandar para a rádio local, que a divulgou num dos
programas de maior audiência. O resultado não foi dos melhores: toda a rua se
revoltou contra mim, a ponto de quererem até me bater. Achavam que tal iniciativa
havia sido intromissão de minha parte e que eu não tinha o direito de enviar carta a
rádio alguma, já que era o mais recente morador do bairro. Os moradores
comentavam em voz alta, para que eu ouvisse, que "os incomodados tinham que se
mudar e não ficar reclamando ou divulgando a situação precária do bairro".
Numa daquelas chuvas torrenciais que costumam cair na cidade, a parede da
cozinha caiu dentro do corte. Minha mãe, temendo que a casa inteira viesse abaixo,
resolveu sair à procura de outro local para morarmos. Havia uma casa numa
transversal, que pertencia a um rapaz apelidado de Petisco. Como a casa estava
fechada, minha mãe decidiu invadi-la. Fomos todos para a nova casa, muito mais
bonita do que a outra. Tinha duas janelas que davam para a rua e o chão era
cimentado em cor vermelha. Ao ser avisado da invasão, o dono da casa chegou
trazendo a polícia para nos expulsar. Ficamos na casa dele até que a chuva passasse.
Depois, voltamos para a casa antiga, por ordem da polícia.
Moramos também numa casa de adobões, localizada na travessa Teixeira de
Freitas. A casa não tinha água encanada, nem piso de cimento. O chão era de barro
batido, tinha dois quartos, uma sala e uma cozinha. O sanitário era uma casinha de
adobes, com uma fossa fedorenta. O quintal era cercado de varas, e todos que
passavam pela rua de trás podiam nos ver através da cerca.
Essa casa era de Dona Maria, mãe de Edilene e de Jonas. Acabei me
apaixonando por Edilene, uma menina negra, magra e alta. Mas a paixão não passou
de simples admiração, pois ela não me deu a menor bola e terminei por esquecê-la,
apesar de Edilene ter me inspirado algumas poesias.
A essa altura, eu já assumia praticamente todas as despesas da casa. O salário
que recebia já me possibilitava sobreviver com minha mãe e meus sete irmãos, e
ainda dava para pagar o aluguel, a água e a energia elétrica. Passei a fazer um
planejamento de compras para o mês inteiro.
Comprávamos uma caixa enorme de ovos, com mais ou menos umas 150
unidades, além de cevada, feijão, arroz e açúcar em grande quantidade. Depois
dividíamos as mercadorias em pequenos pacotes para consumo diário. Não
poderíamos comer mais de cinco ovos por dia, para que a comida durasse até o final
do mês. Trancava tudo dentro de um pequeno armário e carregava a chave.
Diariamente, eu o abria, pegava a "ração" do dia e entregava-a à minha mãe. Quira
arrombava o armário pela parte de trás e pegava mais comida do que o estipulado
para a "ração diária", e eu tinha conhecimento disso. Mas fingia não saber de nada.
O problema era que, em certos meses, a comida acabava antes do previsto e eu tinha
que conseguir dinheiro para comprar mais. A cevada era usada misturada ao pó de
café, para que este durasse mais tempo. Tinha um gosto muito ruim, mas, apesar de
eu também não gostar, fingia achá-la gostosa, para não ensejar reclamações por
parte de meus irmãos. Com o tempo, todos foram se conscientizando que era melhor
comer pouco mas comer todos os dias do que comer muito em um único dia e ficar
com fome nos dias seguintes.
Nessa época, eu trabalhava no Frisuba e sempre trazia sobras de comida. A
refeição era quase sempre à base de carne na empresa, e, como eu não conseguia
comer tudo, levava o restante para casa. Além disso, meus colegas de trabalho
também separavam parte da refeição deles e me davam. Tinha também as doações
que o gerente de setor fazia: vez ou outra, ele separava úbere bovino ou fígado e
distribuía entre os funcionários. Era o dia em que eu e minha família comíamos
melhor, pois significava fartura em casa.
***
Tem uma rua no bairro do Pau Ferro, cujo nome oficial é avenida Senhor do
Bonfim. Há também nessa rua uma igreja católica de mesmo nome, dedicada ao
santo. Acontece que, a partir da igreja, em direção ao atual presídio, a rua não era
calçada, era cheia de lama e de esgoto. Este trecho era conhecido como "Rua da
Bosta", por causa do mau cheiro e dos esgotos que corriam a céu aberto. E, mesmo
depois de a rua passar a ter saneamento básico e calçamento de paralelepípedo,
continuou a ser chamada pelo nome de "Rua da Bosta". Ali comprei um casebre de
dois metros de largura por dois metros e meio de comprimento, colado ao muro do
Parque de Exposições Luiz Braga. A casa era ridícula: baixinha, apertada, sal
minando pelas paredes, chão arrombado e um quintal minúsculo. Era muito quente,
por causa do sol que ficava no poente. Para minha felicidade, não cheguei a morar
nessa casa. Comprei-a somente a título de investimento, depois revendi.
Estante com livros velhos
Eu colecionava livros, revistas, jornais e todo tipo de publicações que
encontrava nos lixos ou que alguém me doava. Mandei fazer um carimbo com os
dizeres "Biblioteca Particular Valdeck Almeida de Jesus" para marcar todos os livros
que possuía. Eram tantos que abarrotavam a imensa estante que tínhamos na sala.
Muita gente me pedia livros emprestados, tanto para leitura como para trabalhos
escolares. Com o tempo, fui doando os livros para a Biblioteca Municipal e para
quem me pedisse. Quando nos mudamos do bairro Pau Ferro para o bairro
Mandacaru, não havia espaço suficiente para guardar todos os livros na nova casa.
Mandei, então, meus irmãos levarem uma boa quantidade de revistas e livros à
Biblioteca Municipal para doação.
Até o ano de 2003, eu acreditava piamente que esses livros haviam sido
realmente entregues. Mas, por ocasião de uma viagem que fiz a São Paulo, em 2004,
em conversa com meus irmãos, onde falamos sobre mal-entendidos e pedimos
desculpas uns aos outros pelo que pudéssemos ter feito de errado, fiquei sabendo de
tudo. Confessaram que rasgaram e jogaram todos os livros e revistas de cima da
ponte do Mandacaru. Foi um choque para mim, mas não havia muito o que fazer. O
tempo já havia passado e meus irmãos já eram adultos. Não fazia sentido brigar por
um deslize ocorrido tantos anos atrás. Já não tinha importância.
Casa própria - o sonho realizado
Ainda morava na casa da travessa Teixeira de Freitas e trabalhava no Frisuba.
"Néia, dente de barrão" continuava a visitar minha casa, embora não estivéssemos
mais juntos como antes. Certo dia, vi o anúncio de um loteamento e fui visitá-lo
pessoalmente. Era um bairro novo que começava a se formar à margem direita do
rio de Contas: o loteamento Itaygara, no bairro Mandacaru. O vendedor, Bêu,
convenceu-me de que se tratava de um ótimo investimento, que o bairro, em pouco
tempo, seria habitado por muita gente, que teria praças, linhas de ônibus, telefone,
água encanada e luz elétrica. Não fiquei muito animado, por causa do preço e
também porque eu tinha medo de ficar desempregado e perder todo o dinheiro
investido no pagamento do lote.
O vendedor, muito esperto, pensando apenas na comissão dele, que equivalia
ao valor da primeira prestação, acabou virando o jogo e me vendendo o lote 12 da
quadra 07. Comprei e voltei feliz da vida para casa. Ele tinha feito um plano de
pagamento, de forma que as prestações fossem reajustadas a cada seis meses, de
acordo com o aumento do salário mínimo, para não comprometer minha renda.
Mas o acaso me favoreceu ainda mais. Assim que José Sarney assumiu a
Presidência da República, foi criada a "tablita", tabela que deflacionava os preços
das compras realizadas antes de sua vigência. E assim acabei pagando várias
parcelas do terreno de uma vez só, já que, a cada mês, o preço diminuía. Foi minha
salvação. Esta medida garantiu-me adquirir a primeira propriedade, o terreno onde
eu e meus irmãos construiríamos nossa primeira casa.
Tentei conseguir ferramentas emprestadas para construir a casa: picareta,
enxada, formão e colher de pedreiro, mas ninguém emprestou. Tive que comprar
todo o material necessário para as obras de construção. Todos os dias, eu ia
trabalhar no Frisuba e meus irmãos saíam do Pau Ferro para o Mandacaru para
limpar o terreno, carregar água do rio de Contas e bater adobes de barro. Isto
significava uma maratona de mais de dez quilômetros, percorridos a pé, sob um sol
escaldante de 40 graus ou mais. Era de dar pena, eles mal conseguiam carregar a
picareta por causa do peso. Eu não podia ajudar todos os dias, pois só chegava do
trabalho no final da tarde e, além disso, estudava à noite. Mas, nos finais de semana,
eu ia sempre ao terreno ajudar na construção da casa. Fizemos tudo sozinhos, desde
as fundações até a colocação das telhas. Todos os dias eu ou um de meus irmãos
cavava a terra, cessava, buscava água no rio, fazia o barro, pisava o barro, batia os
adobes e os deixava secando ao sol. No dia seguinte, retornávamos para continuar o
trabalho e para recolher e arrumar os adobes prontos. Para nossa surpresa,
verificávamos que muitos dos adobes eram pisados e destruídos por vândalos.
Xingávamos muito, esbravejávamos, mas não podíamos fazer nada além de
aproveitar o barro dos adobes destruídos para fazer novos adobes.
O processo de construção da casa foi bastante demorado, pois era eu quem
comandava tudo e meu tempo era limitado somente aos finais de semana. Mas, de
adobe em adobe, as paredes iam subindo, subindo... Até que, num belo dia, concluí a
obra, após colocar porta (a única), janela (também única), madeiras e telhas no topo.
Imediatamente, mudamos-nos para a "nossa" casinha.
Juizado de Menores
Resolvi colocar todos os meus irmãos sob minha guarda e responsabilidade,
perante a justiça comum, a fim de cadastrá-los como meus dependentes no INSS e
para que eles pudessem ter acesso a consultas médicas e internamentos. Aproveitei
esta deixa para obrigá-los a serem mais responsáveis na vida e também nos
empregos ou trabalhos que encontrassem. Todos eles sempre trabalharam, seja
vendendo picolés, seja em olarias carregando adobinhos, seja limpando quintais ou,
ainda, cortando e preparando papéis para cigarro de palha numa gráfica. Mas, por
outro lado, sempre encontravam uma desculpa para sair do trabalho. Ora diziam
que o patrão falou alto, ora diziam que não agüentavam a jornada, pretextos não
faltavam.
Certo dia, chamei-os todos e dei uma ordem: teriam de sair para procurar
trabalho e só poderiam voltar para almoçar caso encontrassem algum. Ao meio-dia,
chegou o primeiro, Dida, o mais gaiato de todos, e pediu que minha mãe botasse seu
almoço, e ela mandou que falasse comigo antes. Mas Dida insistiu para que
colocasse sua comida, já que havia encontrado trabalho, juntamente com os demais.
Minha mãe me chamou e eu conversei com Dida, que confirmou já estar
trabalhando. Dizia ter muita fome, por causa do esforço, uma vez que o trabalho era
numa oficina mecânica, como aprendiz de chapista ("martelinho", como se diz em
São Paulo). Comentou também que, como aprendizes, só iriam receber salário
depois de um determinado tempo. Falei então com minha mãe para servir o almoço
de todos os meus irmãos.
Evidentemente, eu não os deixaria com fome, caso não houvessem
encontrado trabalho. Mas precisava tomar aquela atitude para fazê-los "acordar"
para a vida. Além da ameaça de ficarem sem almoço, havia ainda uma outra. Falei
que entregaria todos ao Juizado de Menores (em Jequié existe uma Escola
Profissional de Menores, onde residem crianças e adolescentes rebeldes e
infratores), caso não trabalhassem e fugissem da responsabilidade. Graças a Deus,
hoje todos ganham a vida como chapistas, exceto o Mi, que não se adaptou a esse
tipo de trabalho e já trabalha há dez anos como porteiro de um grande condomínio
em São Paulo.
Foram longos anos de trabalho até podermos entrar na casa e sorrirmos
felizes por termos, enfim, onde morar. Uma casa própria, construída com as
próprias mãos. Foi uma experiência muito boa, uma grande sensação de liberdade.
Desde a infância, só havia morado em casas de aluguel e, finalmente, naquele
momento, já com meus 22 ou 23 anos de idade, pude desfrutar da alegria de morar
numa casa sem precisar me submeter às imposições de ninguém. A casinha media
três metros de largura por seis de comprimento. Era bem baixinha e tinha somente
dois cômodos. Posteriormente, dividimos a sala com uma meia parede e fizemos
uma pequena cozinha. Assim, passamos a morar em nossa casinha, após
entregarmos a casa de aluguel. Foi a primeira moradia a ser erguida e habitada no
local. Nas águas do rio de Contas tomávamos nossos banhos. Morávamos minha
mãe, eu, Quira, Mi, China, Dida, Tó, Gal e Nete. Depois que nasceu Murilo, meu
primeiro sobrinho, filho de Quira com Chico, a casa, que já era pequena, ficou
menor ainda. O calor era imenso e não havia ainda água encanada no bairro. Essas
águas também serviam para lavar as roupas, as louças, e para beber e cozinhar,
depois de devidamente fervidas e filtradas.
Com o passar do tempo, fui construindo outra casa maior, no mesmo terreno.
Esta outra casa foi planejada com mais cuidado e tinha dois quartos, duas salas, uma
cozinha e um banheiro. Os adobinhos cozidos foram comprados com muito
sacrifício. Sempre que possível, comprava uma carroça de adobinhos de barro
queimado, em cerâmica cozida. Acabei de construir a segunda casa e, quando ela
estava já em ponto de telhado, negociei-a com Chico, meu cunhado. Ele me vendeu a
casa onde morava com Quira e seus três filhos: Murilo, Rodrigo e Delma (ver
capítulo "Casa da Rua João Santana").
Casamento com Márcia
Quase em frente à nossa casa, morava uma moça chamada Márcia, que era
casada com Zé Docílio, com quem tinha uma filha chamada Bete. Márcia era muito
bonita. Fazia um tipo cigana, era alta e do signo de Leão. Márcia flertava comigo,
vivia me chamando para conversar e sair com ela. Saímos por várias vezes e então
começamos a namorar. Depois, passei a dormir em sua casa, quando o marido
viajava. Uma vez, dei uma surra em minha irmã Nete porque pedi a ela que levasse
um recado a Márcia, dizendo que iríamos para a Barragem de Pedras tomar banho.
Nete simplesmente andou até o meio da rua e deu o recado aos gritos. Fiquei muito
envergonhado, pois nosso namoro ainda não era de conhecimento público e era de
todo o meu interesse que continuasse secreto por mais algum tempo. Chamei Nete e
dei-lhe uma surra que ela jamais esqueceu.
Acabei me casando com Márcia. Fizemos uma festinha na casa de meus
sogros, Judite e Acetildes, após a cerimônia de casamento, realizada no Cartório de
Paz de Yolanda Bastos. Várias fotos foram tiradas, mas como eu não tinha dinheiro
para a revelação, nunca saíram do rolo de filme.
Fui morar com ela numa casinha do bairro Agarradinho. O bairro tinha esse
nome porque as casas eram coladas umas às outras. Márcia ficava a noite inteira
assistindo televisão. Ela ficava acordada a noite inteira para me chamar bem cedo,
para poder pegar o ônibus que me levaria ao trabalho. Comprava quilos de milho
para fazer pipoca. Comia pipoca a noite inteira diante da TV.
Na empresa Tiradentes, onde Zé Docílio, ex-marido de Márcia, trabalhava e
onde eu passei a trabalhar como cobrador de ônibus, quando os motoristas
souberam da notícia que eu estava casado com a mulher de Zé Docílio, a resenha
comeu. Todos os dias eu tinha que aturar uma gozação do pessoal. Tinha um
motorista, chamado Bastos, com o qual eu viajava muito fazendo a linha
Jaguaquara-Maracás, que costumava dizer que eu tinha "olho de Sapo Boi" e que
nunca deixaria que eu botasse os olhos em sua mulher, temendo que eu a atraísse
para mim e ficasse com ela pra sempre. Em tom de escárnio, meus colegas de
atividade perguntavam-me se, caso eu fosse escalado para trabalhar com Zé Docílio,
viajaria com ele ou perderia o dia de trabalho. E eu dizia serenamente que
trabalharia com ele sim. Felizmente nunca fui escalado para trabalhar junto com ele,
e escapei de um constrangimento muito grande.
O casamento se arrastou nas dificuldades que eu enfrentava. Mesmo casado,
ajudava a minha família. Três anos depois, terminei meu casamento com Márcia.
Não sobrou uma lembrança sequer da festa de casamento, até o rolo do filme que
não foi revelado ela abriu e queimou.
Muitos fatores contribuíram para o fim de nosso relacionamento, mas creio
que o mais importante deles tem origem no seguinte fato: estava eu desempregado e
viajei com ela para Salvador, a fim de procurar trabalho. Demos sorte. No mesmo
dia em que chegamos à capital, compramos o jornal e respondemos a um anúncio
que procurava um casal para tomar conta de uma mansão no rio Vermelho. Fomos
direto para a Cardeal da Silva, onde ficava a mansão. Era uma casa imensa, com um
quintal cheio de plantas frutíferas. Morava ali apenas um casal de idosos, cujos
filhos estavam em Minas Gerais tentando lançar uma banda musical. O senhor era
hipertenso e a senhora diabética. A alimentação dos dois era toda controlada pela
dona da casa, que fazia questão de preparar a comida. O trabalho de Márcia seria
manter a casa limpa. E eu teria que cuidar da piscina e do quintal. Toda a produção
de frutas seria para o nosso consumo. Ficaríamos instalados numa casa nos fundos
do quintal, toda mobiliada. Eu ganharia um salário mínimo e Márcia outro. As
referências que dei de ter trabalhado no hotel de César Borges, em Jequié, foram
suficientes para conseguirmos o trabalho. Acertamos tudo e ficamos de voltar no dia
seguinte para trabalhar. Ao sairmos, já no portão da mansão, Márcia começou a
resmungar que o salário não daria para sobreviver. Eu fiquei espantado com aquilo.
Teríamos casa para morar, mobília completa e ainda dois salários para as nossas
despesas. E ainda poderíamos continuar morando juntos, vivendo nossa vida de
casados. Márcia dizia que seu salário seria para comprar brincos, chocolates e coisas
de enfeitar, enquanto o meu seria destinado às despesas da casa. Revoltei-me e
discuti feio com ela. Furioso, disse que iria à rodoviária comprar minha passagem de
volta para Jequié e não mais voltaria a procurá-la. Ela não acreditou. Mas foi
exatamente o que fiz: fui direto ao guichê da empresa de ônibus, comprei minha
passagem e fui embora e nunca mais voltei pra ela.
Casa da Rua João Santana
Era uma casa com dois quartos, sala, cozinha e banheiro, além de uma
pequena área de serviço, localizada no Jequiezinho. Paguei com o terreno do
loteamento Itaygara e com a casinha de adobe cru que havia construído
inicialmente, mais os adobinhos da casa maior, construída depois, ficando o restante
para pagamento em prestações mensais. A única exigência imposta por Chico foi
derrubar a casa grande e separar os adodinhos para ele, o que aceitei prontamente.
Em poucos dias a casa estava derrubada e os adobinhos empilhados.
A nova casa tinha tudo: móveis, lençóis, panelas, pratos, colheres, tudo. Tinha
até linha telefônica instalada. Passamos a morar ali logo e adoramos a nova
residência, que nos dava muito conforto.
Quase um ano depois, comprei um casarão na mesma rua e todos se
mudaram para a nova casa, exceto eu, que preferi ficar morando sozinho por um
tempo. Mas meus irmãos, que tinham a chave da minha casa, sempre apareciam por
lá para tomar banho e deixavam tudo sujo. Preferiam tomar banho lá porque o
chuveiro era elétrico, luxo que não havia na casa em que moravam. Acabei logo com
a festa deles, por causa da sujeira que faziam em meu banheiro.
Eles trabalhavam como chapistas em oficinas mecânicas e chegavam sempre
muito sujos de graxa, óleo e poeira de oficina, deixando todo o banheiro encardido.
Só que, a despeito do meu protesto, continuaram a usar o banheiro. Arrombavam a
janela e entravam na casa, sem minha permissão, nos horários em que eu me
encontrava ausente. Isso acabou resultando em algumas brigas. Dida e Tó
discutiram feio comigo, e ficamos um ou dois meses sem nos falar, por conta disso.
Depois fizemos as pazes, como é próprio dos bons irmãos.
Trabalho na empresa Tiradentes
Minha experiência como cobrador da Auto Viação Tiradentes foi marcante e
merece um capítulo especial. Eu fui contratado para trabalhar como cobrador
urbano. Acontece que, no contrato de trabalho firmado com a empresa, não havia
cláusula específica que rezasse que o funcionário admitido como cobrador "urbano"
estivesse desobrigado de trabalhar como cobrador "intermunicipal". E isso foi o que
mais atrapalhou minha vida escolar, pois os horários de trabalho nem sempre eram
compatíveis com os horários da escola. Eu estudava à noite, das 19 às 22 horas, de
segunda a sexta-feira. E, para complicar ainda mais, o chefe do tráfego, que fazia a
escala de trabalho, sempre se "esquecia" que eu estudava à noite e me escalava
freqüentemente para trabalhar no horário das 14 às 23 horas. Mas eu conseguia
driblar o tempo e as adversidades. Pegava os assuntos das aulas com meus colegas e
estudava durante o trabalho, sentado na cadeira de cobrador. Estudava escondido,
pois, se um cobrador fosse pego pelo fiscal fazendo esse tipo de coisa, era demitido.
Quando era escalado para trabalhar nas linhas intermunicipais, o problema ficava
ainda maior, pois tinha de dormir nas cidades de destino da viagem, sem falar na
questão da hospedagem e alimentação, que não eram pagas pela empresa.
Eu tinha comprado uma bicicleta para facilitar meu descolamento para o
trabalho e para a escola. Saía pedalando para a garagem nos dias em que a escala de
trabalho me permitia ir à aula após o serviço. Por várias e várias vezes, quando
chovia, chegava à escola todo sujo. A garagem da empresa ficava no bairro
Mandacaru, onde a maioria das ruas ainda era de chão batido ou de cascalho.
Quando chovia, tudo virava um lamaçal enorme, e o pneu da bicicleta respingava um
bocado de lama em mim.
Toda vez que eu viajava, levava uma marmita de comida, que nem sempre
chegava em bom estado ao final da viagem. Aí, além de passar a noite com fome,
ainda tinha de dormir dentro do veículo, nas poltronas do fundo, que eram as menos
desconfortáveis. Lembro-me de várias viagens para Barra da Estiva, em que dormi
com fome e frio, porque a temperatura ali é sempre muito baixa, sobretudo à noite,
devido à sua localização no alto da Chapada Diamantina. Uma vez, levei uma
marmita que azedou durante a viagem. Ao pararmos em Maracás para fazer um
lanche, comi todo o frasco de pimenta e a farinha que estavam sobre a mesa da
lanchonete.
Cansei de dormir dentro do veículo nas cidades. Em Salvador, cheguei até a
dormir dentro do bagageiro do ônibus, pois o calor era insuportável dentro do carro
e as muriçocas faziam uma festa. Com o bagageiro aberto, pelo menos, a
temperatura ficava mais agradável. De madrugada, o segurança da rodoviária me
acordou, achando que eu era algum assaltante ou morador de rua. Tive que me
identificar para que me deixasse em "paz". Em Manoel Vitorino, passava a noite
morrendo de medo, pois o ônibus estralava demais, e eu acordava sobressaltado
pensando que era alguém tentando entrar para roubar o dinheiro da féria. Em
Cravolândia, cidade próxima a Santa Inês, cheguei a pedir comida a um cobrador
que morava na cidade e viajava de carona voltando para casa. Em Iramaia, morria
de frio e fome, ao dormir no veículo. Em Nazaré, havia uma pousada de preço
compatível com meu salário, onde pernoitei algumas vezes. A linha fazia o trajeto de
Jequié a Bom Despacho, mas o ônibus ia somente até Nazaré. Eu dormia e jantava
na pousadinha, juntamente com o motorista. O problema era que ali os cobradores
eram roubados durante a noite. Para me proteger dos ladrões, uma vez coloquei o
dinheiro da féria embaixo do travesseiro. A estratégia foi em vão. Pela manhã,
percebi que faltava quase metade do dinheiro, mas nada pude fazer, não havia como
provar o roubo. Daquele dia em diante, resolvi deixar o dinheiro da féria escondido
dentro de uma das poltronas do ônibus. Foi a solução encontrada para evitar os
roubos.
Passei aperto também em Itaquara. O ônibus que rodava para aquela
cidadezinha era o pior carro da frota e demorava o dobro do tempo para fazer a
viagem. Quando chegava à cidade, o veículo era estacionado numa praça e o
motorista ia para sua casa, sem sequer me convidar para tomar um copo de água.
Não restava alternativa senão passar a noite inteira dentro do carro, esperando o dia
amanhecer para retornar a Jequié.
Nas viagens a Valença, o ônibus retornava no mesmo dia. Saía de Jequié às 5
horas da madrugada, chegando a seu destino ao meio-dia. Ali eu tinha que varrer o
interior do veículo, almoçar minha quentinha e esperar pelo horário do retorno, às
13 horas, com chegada em Jequié prevista para 21 horas aproximadamente. Ao
chegar, ainda perdia um bom tempo prestando contas e, até sair da garagem, já não
compensava mais ir à escola.
Quando eu trabalhava na linha Maracás-Jaguaquara, saía de Jequié pela
manhã, por volta das 5 horas da madrugada, e fazia diversas vezes o percurso entre
as duas cidades. Só retornava à garagem no final da tarde, lá pelas dezoito ou dezoito
e trinta horas. Nesses dias, eu ia direto para a escola tentar pegar algum assunto dos
cadernos dos colegas. Essa viagem era de percurso curto e o cobrador tinha de usar
mais de cinqüenta talões de passagens, cada um de uma cor. Era uma maluquice da
cabeça do dono da empresa, Dalmar, com o objetivo de se precaver de fraudes por
parte dos cobradores. Eu ficava mais atento às cores do talão que tinha de usar do
que a qualquer outra coisa. Passava o dia inteiro tentando recapitular: agora é o
talão azul, percurso de ida; agora é o talão rosa, percurso de volta, e assim por
diante.
Quando trabalhava nas linhas urbanas, no horário da manhã (das 6 às 14
horas), sempre prestava contas no escritório da empresa, ao retornarmos à garagem.
Mas quando trabalhávamos no horário da tarde (das 14 às 23 horas), contávamos o
dinheiro, preenchíamos um formulário e colocávamos tudo dentro de um malote,
que era fechado com um cadeado. Jogávamos esse malote num buraco que dava
para a tesouraria e levávamos a chave do cadeado para casa. No dia seguinte, o
cobrador entregava a chave a um funcionário da tesouraria, que abria o malote,
conferia o dinheiro e fazia a prestação de contas do cobrador. Quando o cobrador
estava escalado para viajar de madrugada, tinha que deixar a chave amarrada ao
malote. Muitas vezes faltava dinheiro nesses malotes, e a diferença era debitada na
conta de cada cobrador. Sempre desconfiei que alguém mais possuía cópias dessas
chaves e tirava o dinheiro durante a noite. Mas, como sempre, nunca podíamos
comprovar nada.
Uma vez, um cobrador amigo meu colocou dentro do malote uma nota de mil
cruzados novos, e a nota simplesmente desapareceu. Fui testemunha de que ele
tinha colocado a cédula lá dentro, pois foi a primeira nota de mil cruzados novos que
ele recebeu e nenhum outro cobrador havia recebido uma dessas antes. Ele havia
mostrado a cédula a todos os colegas do turno da noite, na hora da prestação de
contas na garagem. Era uma nota diferente e todo mundo ficou curioso pra ver. E eu
acompanhei a prestação de contas dele. O sumiço de dinheiro acontecia também
com os cobradores que trabalhavam nas linhas intermunicipais.
Com os cobradores dos ônibus urbanos, acontecia ainda um outro fato
estranho: toda noite, ao sair do veículo, antes de prestar contas, cada cobrador
anotava a numeração da catraca, que indicava a quantidade de passageiros do seu
turno de trabalho, a fim de calcular a quantidade de dinheiro apurada. No dia
seguinte, quando o conferente fazia a verificação, a numeração das catracas nunca
coincidia com a numeração que o cobrador tinha anotado na noite anterior. Ou seja,
alguém girava a catraca várias vezes, a fim de que o cobrador pagasse as passagens
extras.
Havia uma linha que rodava do Parque de Exposições até a Rodoviária. Mas o
final dessa linha não era exatamente na rodoviária, e sim dois pontos adiante.
Alguns passageiros iam para o Parque de Exposições e tomavam o ônibus em um
dos pontos que ficavam antes do final de linha na Rodoviária. Dalmar, o dono da
empresa, queria que evitássemos pegar passageiros nessas condições, e instruiu-nos
a orientá-los para tomarem o ônibus quando este estivesse retornando. Uma vez, um
determinado passageiro se recusou a descer do ônibus; pagou a passagem e sentou-
se. Dalmar vinha seguindo o ônibus, de carro, passou à sua frente, obrigou o
motorista a parar, entrou e rodou a catraca, para que eu pagasse a passagem extra
do passageiro. O passageiro protestou, mas Dalmar explicou que o cobrador - eu, no
caso - era quem pagaria a passagem.
As linhas intermunicipais da empresa Tiradentes faziam, em sua maioria,
trajetos para cidades distantes, cujo acesso era por estradas de chão, que
atravessavam o sertão. Por esta razão, era muito comum um pneu furar. Nessas
oportunidades, a melhor opção era fazer o "furo" na primeira borracharia
encontrada naquele deserto. Mas para o dono da empresa o preço cobrado pelo
conserto do pneu furado era sempre muito caro: cinqüenta centavos. Quando
trazíamos as notas fiscais, ele se recusava a dar o "visto", para que o valor não fosse
ressarcido ao cobrador. Cheguei a acumular mais de dez notas fiscais. Toda vez que
encontrava Dalmar na garagem da empresa, ele alegava que só poderia tratar
daquele tipo de assunto em seu escritório, que ficava no interior da garagem. E
quando eu conseguia entrar no escritório, após horas de espera, Dalmar dizia que só
poderia atender dentro da garagem. Eu ficava num bate-e-volta sem fim.
Acabei colocando um fim nessa novela, à minha maneira. Numa viagem para
Valença, num sábado, com o ônibus cheio de vendedores ambulantes, tive a chance
de me vingar. O pneu do carro furou na cidade de Mutuípe e o motorista parou o
carro numa borracharia na saída da cidade. Eu não paguei para fazer a "força". E o
motorista falou para os passageiros que o ônibus não seguiria viagem enquanto eu
não pagasse pelo serviço. Contei minha versão para os passageiros, que me
apoiaram e disseram que, se o ônibus não seguisse viagem, eles iriam quebrar o
carro. O motorista ligou para a garagem e de lá ordenaram que eu pagasse pelo
"furo" do pneu. Não paguei. O motorista pagou do próprio bolso.
Ao retornar para a garagem, meu nome não constava na escala de serviço e
sim indicado para "comparecer ao escritório" e falar com o gerente. Perdi meu dia de
trabalho. Informei ao gerente que não havia pago nem pagaria mais por "furos" de
pneus de ônibus, já que o proprietário da empresa não havia me ressarcido pelas
notas fiscais anteriores.
Voltei ao trabalho e, no dia seguinte, fui interceptado pelo Sr. Dalmar, no
meio da rua, que se referiu a mim como "o cobrador que não paga os ‘furos’ dos
pneus". Falei a ele que não só não havia pago como não pagaria nunca mais, até que
ele assinasse todas as notas fiscais que eu acumulara. Ele retrucou, dizendo que era
muito caro uma força de pneu por cinqüenta centavos, etc. e tal. Respondi-lhe que
era impossível escolher onde levar o pneu para conserto, uma vez que no meio do
deserto não dispúnhamos de muitas opções. Ele então pegou todas as notas e
assinou. Daquele dia em diante, voltei a pagar por todos os outros "furos" de pneus,
e ele passou a assinar as notas sem hesitar.
Parecia haver uma combinação entre certos motoristas e a fiscalização da
empresa para induzir os cobradores a fraudarem os talões de passagem, de modo
que obtivessem vantagens pessoais destinadas a cobrir almoços e diárias de hotel
nas cidades onde dormissem. Mas comigo o truque nunca funcionou, sempre recusei
essas investidas. Não era difícil perceber que se tratava de "armação", pois os
motoristas ditos "durões" e mais fiéis à empresa eram os que davam as melhores
dicas de como roubar. E, para confirmar minhas suspeitas, sempre havia fiscais na
estrada quando eu viajava com esses motoristas. Era como se fosse um ardil, uma
cilada preparada para me pegar em contradição ou, como se diz popularmente, "com
a boca na botija". A política da empresa era a de demissão por justa causa, e a
gerência fazia de tudo para que os funcionários acumulassem advertências e
suspensões até o limite legal, a fim de chantageá-los com o pedido de demissão
voluntária ou forçada, esquivando-se assim de pagar os direitos trabalhistas. Jamais
algum fiscal conseguiu me pegar cometendo erros, pois sempre fui muito correto em
meu trabalho. Mesmo que a situação me obrigasse a sentir fome e a dormir dentro
dos ônibus, nunca me vali dessas prerrogativas para lesar a empresa.
Testemunhei episódios engraçados como cobrador. Um, particularmente,
merece ser contado aqui. Uma vez entraram dois passageiros, cada qual com um
balaio enorme. Todos os passageiros tinham direito a um volume no bagageiro do
ônibus, sem pagar taxa alguma por isso. Coloquei esses dois balaios no mesmo
bagageiro, para ocupar menos espaço. Quando o fiscal viu que os dois balaios
estavam com o tíquete "gratuito", achou que eu tivesse recebido pagamento por um
dos balaios, que havia colocado aquele tíquete para embolsar o dinheiro e não
vender o tíquete "pago". Entrou no ônibus e perguntou de quem eram os balaios.
Cada um dos respectivos donos levantou a mão. Muito sem graça, o fiscal foi
embora. Era comum que os fiscais aparecessem várias vezes no mesmo dia, para
tentar surpreender o cobrador. Comigo sempre perderam seu tempo.
João, o controlador de tráfego da empresa, era quem fazia a escala de
trabalho. Ele sabia que eu estudava à noite e que não poderia ficar fazendo viagens
intermunicipais. Ainda mais porque a empresa não fornecia tíquete refeição nem
providenciava local para dormidas nas cidades de destino. Eu era tido como o
cobrador mais chato da empresa, pois me mostrava inconformado com aquela
situação desumana, e não guardava este inconformismo somente para mim. Abria o
verbo, falava com os outros cobradores, reclamava com os fiscais, com o gerente e
com o controlador de tráfego, apesar de nunca ter tido um retorno ou uma solução.
Um belo dia, numa sexta-feira, quando acabava de chegar da viagem e prestar
contas na tesouraria, fui informado que um ônibus da linha Jequié-São Miguel das
Matas, percurso de cerca de 150 km, estava prestes a sair, com previsão de ficar
naquela cidade todo o final de semana, retornando somente na segunda-feira. O
gerente da empresa me disse que o cobrador do horário tinha "queimado a escala".
"Queimar escala" era uma gíria usada para designar a falta do funcionário escalado
para um determinado serviço. E, como nesse dia não havia cobrador de plantão na
garagem, a solução óbvia seria: eu viajar com fome, permanecer todo o final de
semana em São Miguel e retornar na segunda-feira. Aproveitei aquela oportunidade
para protestar. Disse a João, o controlador de tráfego, que não iria viajar. Ele
ameaçou me demitir ou me colocar "fora de escala" durante todo o final de semana,
o que significaria perder o salário daqueles dias. Disse-lhe que fizesse o que achasse
melhor, em sua opinião. Ele veio então tentar me convencer a fazer a viagem,
dizendo que eu poderia ter almoço e jantar durante o serviço, que autorizaria as
notas fiscais e tudo mais. Mas, desconfiado, recusei, pois em outras oportunidades já
havia trazido notas que ele nunca assinou. O máximo que me propus a fazer pela
empresa foi ir até a rodoviária e sair com o ônibus de lá, para evitar que o então
Departamento Estadual de Transportes e Terminais multasse a empresa por atraso
na saída do veículo. Ali, pedi ao motorista que levasse o carro para a garagem,
dizendo que João providenciaria um outro cobrador para seguir viagem. Na
garagem, desci do ônibus, sentei-me à porta da entrada principal e não mais voltei
ao veículo para seguir viagem.
Estava determinado a dar uma lição na empresa. Minha atitude deve ter
ficado para a história da Auto Viação Tiradentes e para seu proprietário, Dalmar
Antônio de Souza.
Numa das viagens que fiz para Nazaré, conversava com um passageiro a
respeito da forma como a empresa tratava seus funcionários. Ele então me
aconselhou a pedir demissão e tentar ganhar a vida em Rondônia.
Peguei todos os seus endereços, inclusive telefones de contato, e guardei. Ele
estava indo a Nazaré comprar material para candomblé e fazer consultas com os pais
e mães de santo da cidade. Depois dessa conversa, eu já tinha tudo planejado para
viajar para Rondônia; sabia, inclusive, todo o roteiro que deveria fazer: de Jequié
iria até Feira de Santana para pegar um ônibus até Brasília, de onde pegaria um
outro para Cuiabá, e outro de Cuiabá para Rondônia. Ao chegar lá, tomaria um táxi
na rodoviária e seguiria direto para a casa da pessoa que o passageiro me indicara,
que me apresentaria ao prefeito da cidade e conseguiria trabalho para mim.
Cansado de suportar o massacre que a empresa promovia contra seus
funcionários, resolvi pedir demissão. Dirigi-me ao gerente geral, Édson, e
comuniquei-lhe que não pretendia mais continuar na empresa. Ele me aconselhou a
procurar o dono da empresa, Dalmar, para resolver a questão. Fiquei quase uma
semana indo e voltando da empresa, todos os dias, tentando uma "audiência" com a
"Majestade", em vão. Quando vi que não conseguiria falar com ele, decidi abandonar
o trabalho. Fiquei um mês sem comparecer ao batente. Quando voltei e reencontrei
o gerente, ouvi dele que a empresa não tinha mais interesse em meus serviços e que
iria me despedir, mas que eu teria de escrever uma carta pedindo demissão. Não
titubeei e escrevi a tal carta, sem me importar muito com o fato de que perderia
parte dos meus direitos trabalhistas com este procedimento. Entreguei a carta ao
gerente no dia seguinte, e nesse mesmo dia fui demitido. Era a minha redenção para
uma nova vida. Meus planos de ir para Rondônia ainda estavam de pé. Já havia
começado a preparar as sacolas para a viagem.
Antes, porém, de viajar para tão longe, resolvi tentar a sorte em Salvador. Ao
sair da empresa de ônibus, acompanhei meu irmão Valmir, que estava trabalhando
numa serraria em Salvador, junto com meu ex-sogro Acetildes, pai de Márcia.
Quando cheguei à serraria, localizada nas proximidades do aeroporto da cidade,
percebi que aquele tipo de trabalho não era para mim. Para minha sorte, no dia em
que comecei a trabalhar, a serraria estava sendo transferida para outro local, as
madeiras e as máquinas estavam sendo levadas de caminhão. O que vi foi o
suficiente para me convencer de que aquele não era, definitivamente, o tipo de
trabalho mais adequado para o meu porte físico. Tentei ajudar na mudança,
pegando algumas madeiras, mas acabei desistindo, com as mãos sangrando e o
corpo suado e trêmulo de fraqueza. Na hora em que o pessoal pegava as máquinas e
as colocava sobre o caminhão, eu fingia que ajudava. Quando senti que não
agüentava mais o serviço, parei, peguei minhas coisas e voltei para o interior.
Mesmo desempregado e com promessa de emprego certo em Rondônia, fui adiando
um pouco a viagem. E, nesse meio tempo, consegui trabalho no Hotel Itajubá, onde
trabalhei por três meses como recepcionista. O hotel é de propriedade de Waldomiro
Borges, pai de César Borges, ex-governador da Bahia e atual senador da República.
Não me adaptei muito bem ao horário de trabalho, que ia das 22 às 7 horas da
manhã. Quase não conseguia dormir ao chegar em casa, pois, além de não gostar de
dormir durante o dia, o calor era insuportável. Ligava um ventilador pequeno, mas,
mesmo assim, o sono não vinha. Além disso, meus irmãos e minha mãe
conversavam alto o tempo todo, impedindo que eu relaxasse.
Certa vez, um casal hospedou-se no hotel somente por uma noite. Na opinião
do gerente, teria sido uma artimanha para usarem o estabelecimento como motel.
Fui demitido por ter autorizado a entrada do casal - como se eu pudesse adivinhar o
que as pessoas iriam fazer dentro de um quarto de hotel. Segundo o gerente, aquele
"hóspede" já era conhecido no hotel por tal prática, tendo ali se hospedado, em
outras ocasiões, com a mesma finalidade. Por esse motivo, o gerente achou por bem
me despedir sem justa causa.
Mais do que nunca o meu projeto de ir para Rondônia continuou de pé,
quando fiquei sabendo de um concurso para o Tribunal Regional do Trabalho.
Freqüentava diariamente a Biblioteca Pública de Jequié e gostava muito de ler
jornais. Lia todas as reportagens e todas as notas. Preferia pegar o jornal do dia
anterior, para evitar a fila de pessoas querendo ler o jornal do dia e também porque
não gostava de lê-lo rapidamente, para poder passar o jornal à próxima pessoa. Já
quanto aos jornais de um ou dois dias atrás, quase ninguém ligava. Pois foi num
desses que vi a notinha, bem pequena, a respeito do concurso, que despertou meu
interesse.
EM BUSCA DE UM LUGAR AO SOL
Fiquei interessado em participar do concurso. Seria o primeiro de minha vida.
Procurei informações por toda a cidade, em todos os órgãos públicos, mas ninguém
sabia dizer nada a respeito. Quando já faltavam dois dias para o encerramento das
inscrições, que tinham começado no dia 11 e se encerrariam no dia 17 de outubro de
1989, descobri um último destino e resolvi ir diretamente até a sede da Justiça do
Trabalho.
Fui atendido no balcão por uma moça, que mais tarde viria a se tornar minha
melhor amiga: Teresinha. Ela me mostrou um cartaz na entrada da Vara do
Trabalho, onde constavam informações sobre o concurso. O cartaz informava haver
apenas UMA vaga para a cidade de Jequié, e que a vaga era para o cargo de Auxiliar
Operacional - Serviço de Limpeza. Nem ali consegui uma cópia do edital que havia
sido publicado no Diário Oficial da União. Teresinha me falou que as inscrições
estavam sendo feitas no Banco Econômico (Banco Bilbao Vizcaya, atualmente do
grupo Bradesco). Fui até lá, onde, por coincidência, eu tinha uma conta-poupança,
na qual estavam depositados cinqüenta cruzados novos. Mantinha essa poupança
como reserva para o caso de qualquer emergência e para a minha viagem a
Rondônia, que estava sendo meticulosamente planejada. No banco, havia apenas um
caixa destinado às inscrições, e lá a atendente me entregou uma cópia do Edital do
Concurso, sublinhando o cargo "Auxiliar Operacional - Área de Limpeza" no
documento e esclarecendo que havia apenas UMA VAGA para Jequié. Fiquei
surpreso e triste, pois investiria quase todo o meu dinheiro numa aventura da qual
não sabia se sairia vitorioso. Na verdade, a inscrição me custou quarenta e três
cruzados novos e noventa e sete centavos. Mas valia a pena arriscar, pois o salário
inicial correspondia a 12 BTN - Bônus do Tesouro Nacional, do qual já perdi a
referência, mas que equivalia a vários salários mínimos da época. A moça do caixa
ficou impaciente com minha indecisão. Sugeriu-me ler o edital com atenção e, caso
me decidisse pela inscrição, que a chamasse novamente. Li e reli o edital várias vezes
e percebi que havia muitas vagas para Salvador e fiquei tentado, mas resolvi arriscar
e me inscrever para a única vaga oferecida em Jequié. Retirei todo o dinheiro da
conta de poupança e paguei a inscrição. Dali em diante, comecei a estudar
arduamente e a me preparar para as provas, que seriam realizadas na cidade de
Vitória da Conquista. Não parava nem para almoçar. Debruçado sobre os livros, eu
comia, estudava, escrevia, tentando me preparar da melhor forma possível para o
grande dia das provas.
Viagem marcada, eu fui para a rodoviária levando comigo meus irmãos Dida e
Tó, que queriam conhecer a cidade de Vitória da Conquista. Carregava uma lata de
leite Ninho, cheia de farofa de feijão, que seria a nossa refeição durante a viagem. Ao
chegar à rodoviária de Jequié, encontrei muita gente conhecida, que também iria
fazer a mesma prova. Fiquei desanimado com a concorrência, mas não desisti.
Muitas dessas pessoas portavam apostilas enormes, que liam e reliam, passando
questionários. Aí, sim, foi que comecei realmente a acreditar que não teria muita
chance. O máximo que havia feito fora estudar por conta própria em livros velhos,
de primeiro e segundo graus, que não tinham muito a ver com os assuntos daquelas
apostilas sofisticadas.
Chegando a Vitória da Conquista, fiquei com meus irmãos na rodoviária da
cidade, pois não tinha como pagar por uma pousada ou hotel. À noite, o frio era
insuportável e não conseguíamos dormir deitados naqueles bancos de cimento da
rodoviária.
Já bem tarde, um motorista da empresa Gontijo, ao nos ver ali deitados,
perguntou se esperávamos por algum ônibus com destino a outra cidade. Respondi
negativamente, explicando-lhe que estávamos ali porque eu deveria me submeter a
um concurso público no dia seguinte. E ele, generosamente, ofereceu-nos um ônibus
para pernoitarmos. Pediu apenas que não ficássemos no veículo até o dia
amanhecer, pois, se o fiscal da empresa soubesse que ele, motorista, tinha permitido
que estranhos dormissem no ônibus, acabaria lhe aplicando uma advertência ou
uma suspensão. E assim fizemos.
Antes do amanhecer eu e meus irmãos saímos do ônibus e fomos até a escola
pública onde as provas seriam aplicadas - Escola Comercial Edvaldo Flores,
localizada à Rua Siqueira Campos, s/n°, Centro. Ao chegarmos lá, preferi me manter
afastado da escola, com vergonha das pessoas que me conheciam. Comemos a farofa
de feijão e jogamos a lata no lixo. Depois que todos os concorrentes entraram, eu me
aproximei e fui direto para a sala de provas. Terminei a prova e saí antes dos demais,
com medo que algum conhecido me visse. Minha preocupação era que, sendo
conhecido como aluno CDF na cidade, iria morrer de vergonha se alguém,
porventura, viesse a saber que fiz o concurso e não passei.
Aguardei o resultado, que seria publicado no Diário Oficial do Estado.
Durante várias semanas eu compareci à Vara do Trabalho em busca de informações
sobre o resultado do concurso, mas a resposta era sempre a mesma: que o Diário
Oficial ainda não havia chegado. Em uma das vezes, aconselharam-me a ligar para a
sede do TRT, em Salvador, a fim de obter a informação desejada. Liguei para o setor
de pessoal do TRT e fui informado que na lista dos aprovados havia DOIS
candidatos de nome Valdeck. Um em primeiro e outro em segundo lugar, mas não
me confirmaram se eu era o primeiro ou o segundo colocado. Aguardei mais alguns
dias e retornei à Vara do Trabalho, para saber da chegada do Diário Oficial, não
obtendo sucesso na minha empreitada. A ansiedade pelo resultado do concurso não
me permitia ficar parado. Assim, ocorreu-me viajar para Salvador, a fim de obter
informações mais detalhadas. E foi exatamente o que fiz.
Não tinha dinheiro para pagar as passagens de ida e volta. Precisava obtê-lo
urgentemente, de alguma forma. Lembro-me que Ednaldo, um vendedor ambulante,
foi à minha casa numa quarta-feira e que viajei na sexta para Salvador, a fim de lutar
pela vaga de trabalho. Nessa época, minha mãe começava a se entrosar com o
pessoal da prefeitura municipal e me prometeu que tentaria conseguir as passagens.
Ela foi várias vezes à prefeitura, até que, na última tentativa, na sexta-feira,
conseguiu o que queria.
Andando com ajuda de muletas, ao chegar perto do prédio, viu a pessoa que
ela conhecia já dentro de seu carro, preparando-se para sair. Fez-lhe um sinal
tentando dizer que queria conversar com ela. A pessoa então voltou, abriu a
prefeitura e lhe deu uma carta, na qual solicitava ao gerente da empresa Auto Viação
Camurugipe que fornecesse as passagens. Nesse mesmo dia, fui à estação rodoviária,
mas o atendente me disse que aquela carta não tinha valor algum sem a assinatura
do gerente geral da empresa. Corri até a sede da empresa de ônibus e implorei ao
gerente para dar o "visto" na carta. Finalmente, com o seu aval, voltei à rodoviária e
pude retirar as passagens.
A viagem foi muito tensa. Estava nervoso e preocupado com o resultado de
todo o meu esforço, e não tinha a mínima idéia de como seria o desfecho. Chegando
a Salvador, fui direto ao TRT, no bairro Nazaré. Conversei com pessoas do Setor de
Pessoal, que me aconselharam a aguardar a Diretora Geral, por quem esperei o dia
inteiro, até conseguir falar-lhe. Tudo resolvido no final. Aliviado e contente, voltei
para Jequié com um ofício para me apresentar ao trabalho. Tomei posse no dia 25
de janeiro de 1990, na Vara do Trabalho de Jequié, onde permaneci trabalhando por
aproximadamente três anos. Essa data, que já era muito especial para mim, por
causa do aniversário de minha mãe, se tornou ainda mais importante, por ser o dia
em que tomei posse no trabalho.
Como fiz o concurso para um cargo no Serviço de Limpeza, minha rotina ali
era limpar o chão, servir café e suco, lavar os copos e pratos, encerar o piso de taco,
varrer as imediações do prédio, jogar o lixo nos tonéis, limpar as mesas sujas com
tinta azul de carimbos, varrer as cascas de amendoins torrados que o povo jogava no
piso de mármore branco, limpar e podar as plantas na frente do prédio, limpar as
folhas que caíam das árvores no quintal, limpar o sanitário público, limpar o
sanitário dos funcionários e o do juiz, limpar a placa de bronze com o brasão da
República com palha de aço e outras tarefas afins.
Como o prédio era pequeno, eu conseguia fazer todo o serviço até meio-dia.
No tempo que sobrava, ia ajudar o pessoal da secretaria nos serviços de escritório,
como colar AR (aviso de recebimento do correio), arquivar e protocolar processos,
juntar e protocolar petições, preparar despachos, fazer notificações, emitir as listas
de correspondências para envio ao correio, comprar vales-transporte para os
funcionários, fazer cargas de processos, emitir certidões negativas ou positivas,
datilografar ofícios diversos, fazer autuação de processos, expedir cartas precatórias
e outras atividades correlatas.
Nessa época, também substituía os funcionários que saíam de férias, de
licença médica, licença-maternidade ou impedidos de trabalhar por qualquer outro
motivo. Fui Oficial de Justiça ad-hoc por um mês, substituí o diretor, secretário de
audiências e todos os demais funcionários, em várias oportunidades. Só não
substituí o juiz.
O Tribunal começou a informatizar todas as unidades da capital e do interior.
Para Jequié foi enviado um terminal remoto de computador, que se resumia a um
monitor de tela verde, interligado ao computador central, localizado em Salvador,
através de uma linha telefônica. Depois da instalação, uma equipe de técnicos foi até
a cidade para ensinar os usuários a utilizá-lo. Por ironia do destino, o terminal
quebrou no primeiro dia. No segundo dia, faltou energia elétrica. Somente no
terceiro dia, um domingo, os técnicos conseguiram passar as instruções. Passei o
domingo inteiro com a equipe da Secretaria de Planejamento e Informática; anotei
tudo o que ouvia, perguntei o que foi possível e tirei centenas de dúvidas. Tornei-me
um expert no assunto e fiquei incumbido de repassar as informações para os demais
funcionários.
Eu já trabalhava ali há alguns meses quando chegou uma funcionária
transferida de Brasília: Mônica Barroso. Era casada com um holandês de nome
Peter, que não era naturalizado brasileiro e trabalhava como engenheiro na fazenda
Serra da Pipoca, do grupo Paes Mendonça. Mônica tornou-se uma grande amiga,
sempre conversávamos muito. Visitava-a com freqüência e, quando ela viajava para
o Rio, sua cidade natal, deixava sua casa sob minha responsabilidade. Nesses dias
em que eu me instalava na casa de Mônica, recebia visitas de meus irmãos, que
acabavam ficando por lá. A casa era muito confortável. Mônica deixava sempre
muita comida e bebida na geladeira e dizia que eu poderia consumir tudo durante
sua ausência. Meus irmãos faziam uma festa. Lembro-me de uma vez em que eles
comeram tanto milho verde em conserva que ficaram doentes por mais de uma
semana.
Mônica tinha um notebook, no qual digitava muitas sentenças dos juízes
substitutos que passavam pela Vara. Ela me ensinou a utilizar o computador pessoal
dela; foi minha primeira oportunidade de acesso a um computador de verdade.
Em uma das inúmeras viagens que Mônica fez ao Rio de Janeiro, ousei pegar
seu carro emprestado, sem ao menos saber dirigir. Tive muita sorte de não ter me
envolvido em nenhum acidente. Fui da casa dela até a minha com o carro. Convidei
a família inteira para dar um passeio pela cidade. No final da aventura, penei para
recolocar o carro na garagem, cujo acesso era bastante complicado. Quando Mônica
voltou de viagem, descobriu que eu tinha saído com o veículo; eu tinha mudado a
posição do banco do motorista e ela percebeu. Pedi desculpas e ela disse que não se
importava. Mas, desse dia em diante, passou a não mais deixar as chaves do carro
acessíveis durante suas viagens.
O trabalho era muito bom, a equipe de funcionários era maravilhosa, mas eu
queria mudar para outra cidade, tentar fazer um curso universitário e também
mudar de função. Consegui remoção para Ilhéus, mas na última hora desisti, após
receber um telefonema do serviço de pessoal informando-me que a transferência
implicava que eu continuasse a executar os serviços de limpeza, por determinação
do Presidente José Joaquim. Já havia me acostumado ao tipo de serviço que vinha
prestando na Vara e não queria mais voltar a fazer limpeza. Por esta razão, desisti da
remoção para Ilhéus. Além do mais, notei que os funcionários que tinham prestado
concurso para outras áreas estavam sendo nomeados para a secretaria, o que eu
achava um absurdo.
Por intermédio de uma diretora que foi trabalhar na Vara de Jequié, Alice
Lopes, consegui uma função gratificada de Secretário de Audiências na recém-
instalada Vara do Trabalho de Brumado, em 1993. Mas, antes de aceitar a nova
função, fiz uma visita ao local e acabei desistindo de morar lá. A cidade era muito
pequena e não oferecia muitas perspectivas para que eu pudesse estudar ou crescer
ali. Mais uma vez, continuei mesmo em Jequié, onde prestei vestibular para
Enfermagem, na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, e comecei a cursar.
Adorava o curso de Enfermagem, bem como os colegas, os professores, tudo.
Apesar de ter de manipular ossos e cadáveres humanos de vez em quando e de o
curso envolver uma boa base em Química, conseguia acompanhar bem o ritmo das
aulas. Tudo ia muito bem, até que um dia comecei a sentir fortes dores na barriga,
que culminaram numa cirurgia e na conseqüente interrupção do curso.
Passei dois dias sentindo muitas dores na barriga. Suava barbaramente e não
parava de ir ao sanitário. Minha mãe preparava-me uma infinidade de chás, que de
nada, ou quase nada, adiantavam. Achei por bem então tentar conseguir uma ficha
para atendimento médico. Após dormir a noite inteira na calçada do posto médico
do INSS, o clínico me atendeu e solicitou exames de sangue e raios-X com contraste,
para verificar a causa do caroço enorme que ele detectara no meu intestino. Mais de
seis meses levei tentando realizar o exame de raios-X. Sempre que chegava o dia
agendado, o exame tinha de ser remarcado porque o radiologista não tinha ido
trabalhar, ou a máquina de raios-X estava quebrada, ou faltava o material de
contraste.
Para aliviar as dores e por uma questão de precaução, além do medo de
morrer, não parei de tomar antibiótico por conta própria, enquanto aguardava uma
solução. Finalmente, após longos seis meses de espera, consegui fazer o exame. Mas
ainda teria de esperar mais uns dois meses pelo resultado com o laudo do
radiologista. Tão logo me vi com o material nas mãos, levei-o a um outro médico
clínico, que me aconselhou a procurar uma cidade de grande porte, como São Paulo
ou Rio de Janeiro, a fim de me submeter a uma cirurgia para extrair um provável
tumor cancerígeno do intestino, segundo sua opinião. Fiquei apavorado e com medo
de morrer. Acabei fazendo a cirurgia em Jequié mesmo, na Clínica Santa Helena,
tendo por equipe de cirurgiões a Dra. Josefina e o Dr. Diniz, seu esposo. Antes de me
internar, porém, resolvi passar um final de semana em Ilhéus, a fim de espairecer e
tomar mais coragem para encarar uma cirurgia daquele porte.
Tranquei o curso de enfermagem, do qual acabei desistindo após a cirurgia,
por não me achar em condições de acompanhar o ritmo da turma. O material
retirado na cirurgia (cerca de trinta centímetros de intestino delgado, intestino
grosso e cólon) foi enviado para biópsia ao Hospital Santa Izabel, em Salvador.
Alguns meses depois, recebi o resultado do exame confirmando que se tratava
apenas de uma apendicite aguda em regressão. A médica disse que eu tinha acertado
sozinho numa loteria de milhões, já que a suspeita de câncer não tinha se
confirmado.
Nessa oportunidade, recebi apenas a visita de um único amigo. Todos os
outros que saíam comigo para farras e cervejadas desapareceram. Cada um achava
um motivo nobre para não ter podido visitar um amigo doente. Um verso me vem à
mente, diante deste fato:
Donec eris felix, multos numerabis amicos.
Enquanto fores feliz, terás muitos amigos.
É um verso de Ovídio, em que o poeta lamenta a perda dos amigos, após ter
caído na desgraça de Augusto (Tristia, 1, 1-39).
Recuperado da cirurgia, prestei novo vestibular, desta vez para Letras. Adorei
o curso e cheguei a concluir um semestre. Durante o período, fomos a Ouro Preto
para estudar o Barroco Mineiro. A viagem foi muito divertida, dentro de um
microônibus lotado de estudantes.
Tiramos muitas fotos, brincamos bastante, enfim, foi um passeio
maravilhoso. Eu não tinha máquina fotográfica e pedi uma emprestada a um amigo.
Com medo de errar, na hora de colocar o filme, pedi ao funcionário da loja que o
fizesse para mim. Tirei fotos durante toda a viagem, mas, para minha decepção, ao
levá-las para revelar, descobri que todo o filme havia sido inutilizado, em virtude de
ter sido colocado incorretamente na máquina. Mas ainda pude guardar como
lembrança dessa viagem as fotos que tirei com as máquinas dos amigos.
Outra viagem interessante que fiz foi para curtir o carnaval de Aracaju. Viajei
de ônibus com passagem de ida gratuita conseguida por uma amiga. No retorno, tive
que pagar, mas não pude voltar na data que planejara. Deveria voltar no último dia
do carnaval, para poder trabalhar na manhã do dia seguinte. Não consegui passagem
e tive que antecipar meu retorno em um dia. Meu plano era pegar o ônibus das 20
horas, no último dia de carnaval. Impossível. E só consegui comprar para o dia
anterior porque um dos passageiros havia desistido de viajar. Mas acabei chegando
em casa a tempo de descansar.
Ao chegar em casa, encontrei minha moto com problemas. Meus irmãos, Dida
e Tó, tinham saído com ela e queimado as velas. Discuti com os dois até que
conseguissem arranjar velas novas para substituir as defeituosas.
Com a moto já funcionando, fui à casa da patroa de China, a fim de devolver a
mochila que eu tinha tomado emprestado. Levei Nete comigo. A patroa de China
insistiu para que eu jantasse lá, mas educadamente recusei. Voltei para casa com
pressa, a fim de assistir ao Jornal Nacional, às 20 horas. Foi justamente nesse
horário que acabei batendo de frente com uma mobilete. Quebrei o pé e o outro
piloto quebrou a boca e o nariz. Nete ficou desmaiada no meio do asfalto e só
acordou no hospital, sem saber o que tinha acontecido. Arrisco-me a uma conclusão:
o horário que planejara voltar de Aracaju era justamente o horário em que, por
alguma obra do acaso, eu deveria estar em Jequié, para sofrer aquele acidente.
Mistérios que não se explicam.
Gastei muito dinheiro para consertar a moto acidentada e dei como entrada
na compra de um modelo mais novo. Numa noite fria e tranqüila, resolvi sair de
moto para dar umas voltas pela cidade. Acabei desistindo e voltei para casa, pois o
frio estava insuportável. No retorno, Walter Sampaio Filho, filho do prefeito da
cidade, me atropelou. O saldo foi: uma fratura em várias partes da patela, o nariz e
um dedo do pé direito quebrados. Walter nem sequer me prestou socorro, e ainda
tentou impedir que os motoristas que paravam para ver o acidente me levassem para
o hospital. Não bastando, depois de eu já estar no pronto-socorro aguardando
atendimento, ainda entrou para me dizer que eu estava errado e que não iria me
ajudar em nada na cirurgia.
Passei a noite inteira deitado numa maca de alumínio, com frio, esperando
pelo médico ortopedista, que chegaria somente pela manhã. Minha mãe, assim que
foi avisada do acidente, correu para o hospital. Com pena de mim, acabou voltando
em casa mais tarde para pegar um cobertor, com o qual cobri parte da maca e me
embrulhei todo, para agüentar o frio da madrugada.
Fui submetido a uma cirurgia dois dias depois, não no hospital geral, mas na
Clínica São Vicente. A cirurgia foi um sucesso, e eu consegui recuperar 100% dos
movimentos da perna.
Passei mais de seis meses fazendo fisioterapia. Era praticamente uma via
crucis todos os dias. Um colega de trabalho, chamado Paraíso, que possuía um fusca
velho, muito me ajudou nesse calvário. Ia todos os dias me buscar em casa,
carregava-me no colo, colocava-me dentro do seu carro, levava-me à clínica de
fisioterapia, carregava-me do carro para a clínica, ia embora e voltava no horário
combinado para me levar de volta. Tão logo me senti melhor, e já podendo
caminhar, resolvi fazer natação na piscina do Jequié Tênis Clube. Rita, minha colega
de trabalho, foi quem conseguiu meu acesso ao clube.
Sem ânimo para continuar estudando e pela dificuldade das circunstâncias,
acabei trancando o curso de Letras, do qual fui jubilado após minha transferência
definitiva para Salvador.
Já estava recuperado do trauma na perna direita, resultado do acidente,
quando minha transferência para Salvador foi aprovada. Na época, eu tinha
participado de um curso intensivo para secretários de audiência e fui aprovado em
primeiro lugar. Fiquei muito feliz, pois, caso eu conseguisse uma função gratificada
de secretário de audiência, em uma das Varas da capital, poderia manter meus
gastos em uma nova cidade, onde as despesas seriam bem maiores. Mas,
infelizmente, não consegui a vaga. Todos os demais participantes do curso foram
chamados, exceto eu.
Tinha ciência de que seria muito difícil me estabelecer em Salvador, e que tal
mudança demandaria certo tempo de adaptação. Comecei a me desfazer de todo o
meu patrimônio: vendi duas casas, uma moto e uma linha telefônica. Coloquei o
dinheiro na poupança, na tentativa de fazer uma economia para o novo investimento
de minha vida, que seria um apartamento ou casa na capital. Para não deixar minha
família desamparada, comprei uma casa no bairro Agarradinho, em Jequié, e
acomodei minha mãe e meus irmãos neste imóvel. A casa que comprei já tinha sido
minha, onde morei com Márcia quando me casei. Na separação, deixei a casa para
ela, que me revendeu. Toda a minha família ficou nessa casinha pequena no bairro
do Agarradinho.
Minha mãe não tinha ficado muito satisfeita com a casa do bairro
Agarradinho (Urbis IV), que levou esse nome por alusão a um bichinho de pelúcia
que se agarrava às pessoas, cujo nome era "Agarradinho". Paula sempre reclamava
que a casa era pequena, que não cabia todos os móveis e que daria um jeito de sair
dali. E deu.
Foi à Caixa Econômica Federal e se inscreveu para comprar uma casinha, do
mesmo tamanho daquela, no bairro Brasil Novo, que estava sendo criado no outro
lado da cidade, próximo ao bairro Inocoop. Quando eu soube da história, ela já
estava morando na nova residência, com metade da família.
Valmir resolveu ficar morando no Agarradinho com a futura esposa, Célia.
Nesse período, ele trabalhava como cobrador na mesma empresa de ônibus em que
eu trabalhara antes, a Auto Viação Tiradentes. Depois de sua demissão da empresa,
passou a freqüentar a casa de minha mãe, juntamente com a mulher e o filho recém-
nascido, Ramon. Com o tempo, acabou fechando a casa onde morava e se mudou de
vez para a casa da mamãe. Valmir sempre foi muito esquentado e muito preocupado
com sua família. Não agüentava ver o filho passando fome quando não podia
comprar o leite e os ingredientes para a comida do bebê. Resolveu então viajar para
São Paulo, onde já moravam algumas de suas cunhadas, que prometeram dar
suporte a ele e à sua família, enquanto não conseguisse trabalho.
Valmir viajou para São Paulo com Célia, sua esposa, e o filho Ramon, ainda
de braço, com seis meses de idade. Partiram no dia 25 de agosto de 1995, e desde
então não voltaram mais à Bahia, à exceção da vinda de Valmir para o funeral de
minha mãe, em junho de 2000. Ele conta que o sofrimento foi grande até conseguir
se estabelecer numa cidade violenta e competitiva como Sampa. A prova de fogo
começara já na viagem de ônibus, pois levara consigo tudo o que pôde. Chegando a
Sampa, foi morar na casa das cunhadas, que sempre ofereceram todo o apoio que a
família necessitava. Mas esse apoio estava muito longe de ser o suficiente. Afinal, as
cunhadas trabalhavam como empregadas domésticas e não ganhavam bons salários.
Segundo Valmir, nem colchão pra dormir ele pôde comprar. As cunhadas,
penalizadas, mas sem poder ajudar muito, conseguiram um colchão de casal, doado
por uma senhora que pesava duzentos e cinqüenta quilos, após tê-lo substituído por
um novo. Esta gordinha não conseguia levantar da cama por causa do seu peso, nela
permanecia deitada a maior parte de sua vida. Por esta razão, o suor de seu corpo
havia impregnado todo o colchão ao longo dos anos. Quando Mi recebeu o presente,
ficou muito alegre porque não mais precisaria dormir em papelões no meio da sala.
Mas, ao mesmo tempo, ficou enojado do aspecto e do cheiro do colchão. Mesmo
assim, agradeceu a Deus pelo presente. Todos os dias pela manhã ele tinha que tirar
a roupa com a qual havia dormido e colocá-la para lavar, pois o colchão, além de
emanar um cheiro extremamente desagradável, liberava uma "tinta" escura e
gordurosa que grudava na roupa dele, da esposa e do filho. Valmir conta que chegou
a levantar muitas vezes no meio da noite para vomitar, devido ao cheiro repugnante,
mas logo voltava a se deitar ali, pois era o único lugar quente e aconchegante que
tinha para passar a noite.
Conta também que várias vezes teve de andar mais de vinte quilômetros a pé,
procurando emprego, porque não queria usar o vale-transporte que as cunhadas lhe
davam, com medo de não achar trabalho naquele dia e ter de retornar no dia
seguinte, refazendo o mesmo percurso. E isso não era raro de acontecer. Foram
vários e vários meses de caminhada em busca de uma colocação, onde pudesse
ganhar o suficiente para o sustento do filho e da esposa.
Quando já estava prestes a desistir, encontrou uma pessoa que lhe aconselhou
a "esquentar" a carteira de trabalho, a fim de poder comprovar experiência como
trabalhador de portaria e jardinagem. A pessoa alegava que somente desta maneira
poderia aumentar suas chances de encontrar uma empresa que lhe fichasse. E assim
ele fez. Conseguiu trabalho na mesma semana. No início, os turnos de trabalho eram
sempre à noite ou de madrugada, o que lhe impedia de ver o filho acordado, pois o
pouco tempo que sobrava era gasto no trânsito, de casa para o trabalho e vice-versa.
Com o passar dos anos, foi conseguindo modificar sua rotina. Atualmente,
trabalha num grande condomínio, como porteiro, no horário de 8 às 14 horas, o que
lhe permite chegar em casa antes das seis da tarde, quando Ramon e a caçula
Amanda, que nasceu em São Paulo, podem desfrutar da presença do pai. A garota é
especial, nasceu com a Síndrome de Tourette, uma doença raríssima que impede o
desenvolvimento da fala, das funções motoras e de outras funções. Valmir tem o
maior carinho pelos dois filhos, especialmente por essa filhinha caçula.
Eu me mudei para Salvador dois anos antes de Valmir viajar para São Paulo,
mas acompanhei boa parte de sua luta em Jequié, pois eu viajava sempre para
visitar minha família.
Quando viajei para Salvador, já tinha sido indicado por Graça para trabalhar
no Setor de Distribuição, com Dina. Fiquei ali um bom tempo, adorei o setor e as
pessoas, mas o serviço era muito estressante. Pedi para sair do setor e fui para a 3ª
Vara de Salvador. Os funcionários costumavam se referir ao prédio onde
funcionavam as Varas como "Senzala" e ao prédio do TRT como "Casa-Grande", em
alusão ao livro de Gilberto Freire, Casa-Grande e Senzala. Todo mundo queria ir
trabalhar na Casa-Grande. Mais tarde descobri o motivo dessa comparação.
Inicialmente não comprei apartamento. Graça, uma colega de trabalho, havia
me apresentado um amigo que morava no Edifício Crescenciano dos Santos, em
Salvador. Procurei-o, acreditando que ele aceitaria a proposta de "dividir" o
apartamento comigo, mas decepcionei-me diante de sua recusa. Resolvi então ficar
um mês de férias em Salvador, em fevereiro de 1993, dividindo as despesas em um
apartamento em Ondina, onde morava Jaqueline, filha de Edlene, então Diretora da
Vara de Jequié, até encontrar um apartamento para alugar ou comprar. Acabei
encontrando um à venda no Edifício Crescenciano - o "Balança, mas não cai", alusão
a um programa de TV da época. Comprei o imóvel por intermédio de um corretor.
Ao receber as chaves e entrar em meu apartamento próprio, pulei várias vezes, gritei
e chorei de alegria. E a segunda vez em que chorei de alegria foi quando pude
repassá-lo ao proprietário oficial, mesmo tendo perdido metade da grana que, com
muito esforço, juntei ao longo de vários anos.
Foi o maior mico que paguei. O apartamento era financiado pelo Banco
Nacional de Habitação, em nome de um determinado titular. Mas quem me vendeu
foi uma terceira pessoa, com o aval do real proprietário. Já morando nesse
apartamento, eu peregrinei por mais de dois meses por toda a cidade, coletando
documentos, certidões e outros papéis, a fim de formalizar a transferência do
contrato para meu nome. Dia e hora combinados, fui ao banco com o proprietário do
apartamento, acreditando que tudo seria formalizado em questão de horas. O banco
informou que o processo de transferência seria longo e que poderia ou não ser aceito
pelo agente financiador. Inexperiente e acreditando na boa-fé do vendedor e do
corretor do imóvel, resolvi apostar todas as minhas fichas nesse arriscado
investimento.
Paguei uma fortuna ao corretor e ao dono do imóvel. Três meses depois de ter
entregue uma verdadeira pilha de documentos e certidões ao setor de
financiamento, recebi do banco a informação de que a transferência não poderia ser
realizada, pois o proprietário do imóvel tinha outro apartamento financiado pelo
BNH, o que impediria a transação. Fiquei desesperado e coloquei um anúncio no
jornal, com a intenção de "revender" o apartamento. O dono original do imóvel leu o
anúncio e me procurou para chantagear, obrigando-me a devolver-lhe o
apartamento pela metade do preço que eu havia pago. Não tinha outra saída. Era
receber cinqüenta por cento do investimento ou perder tudo, já que ele ameaçara
entregar o financiamento ao banco, caso eu não aceitasse devolver o apartamento
pela metade do preço que havia pago.
Comprei, então, outro apartamento, no mesmo edifício, desta vez sem
intermediários, mas com uma dívida de IPTU e condomínio de mais de dez anos.
Até o presente momento, não transferi o apartamento para meu nome, apesar de já
ter quitado a dívida com o banco financiador. O apartamento encontra-se fechado
até hoje, por falta de comprador. Não há quem queira morar ali, devido aos vários
problemas que o prédio enfrenta.
O "Balança mas não cai" já foi manchete de programas de televisão e de
jornais da cidade. Os moradores alegam que o prédio treme o tempo todo. Dizem os
mais antigos que uma equipe de engenheiros já examinou o fenômeno e atribuiu-o
ao movimento constante de veículos pesados que passam em frente ao prédio,
apesar de afirmarem não haver risco de desabamento. Quanto a isso, não posso
garantir nada, mas posso afirmar categoricamente que o prédio é uma verdadeira
favela vertical. O edifício tem uma dívida astronômica com a companhia de água e
esgoto, que cortou o abastecimento. O sistema será restabelecido somente após a
quitação da dívida, que está financiada em dez anos. Caminhões-pipa abastecem o
prédio em intervalos regulares de tempo e a água é fornecida aos apartamentos
através de uma mangueira, em dias e horários predeterminados. Dos três
elevadores, apenas dois ainda funcionam precariamente. O terceiro foi seqüestrado
pela justiça para pagamento de dívidas trabalhistas. E as escadarias estão em
completo estado de destruição, entre outros problemas.
***
Eu não pude comprar novos móveis, botijão de gás, colchão e armário e
acabei pedindo que minha mãe trouxesse para Salvador parte da mobília que eu
tinha deixado em Jequié. Ela veio de ônibus com a mobília. Quando fui me
encontrar com ela na rodoviária, levei dois amigos para ajudar a carregar as coisas.
Mas fiquei com tanta vergonha de ver toda aquela tralha sendo colocada no ônibus
que tive uma crise de riso e fugi, deixando meus amigos, minha mãe e uma irmã
para pagarem o mico de carregar tudo no ônibus coletivo, que pegaram da
rodoviária para o bairro Sete Portas, onde eu morava.
Passei a maior parte do tempo morando sozinho em Salvador. Porém, não era
raro ter sempre alguém da família por perto. Vários irmãos chegaram a viver comigo
e depois voltaram para o interior. Nete foi quem passou mais tempo. Ficou em
minha casa até passar em primeiro lugar num concurso público para Auxiliar de
Enfermagem em Porto Seguro, onde morou por quase um ano. Desistiu de continuar
morando lá por causa do salário, que era muito baixo e ainda por cima atrasava
meses para ser pago. Nete resolveu então que seria melhor voltar para Jequié e fazer
um curso universitário antes de sair da cidade para enfrentar a vida.
Sempre quis morar bem próximo ao local de trabalho, já que a cidade de
Salvador não tem um sistema de transporte público eficiente, fato que eu já havia
comprovado. Experimentei, várias vezes, sair de Ondina, antes de me transferir
definitivamente para o bairro Sete Portas, de ônibus para chegar ao bairro Nazaré. O
atraso era constante, o veículo vinha lotado e muitas vezes não parava no ponto para
pegar passageiros. Este problema me desestimulou de morar distante do trabalho.
Do edifício Crescenciano, onde eu morava, para o TRT, gastava dois ou três minutos
subindo uma ladeira interminável, com minha marmita, cujo conteúdo era sempre o
mesmo: feijão, arroz, um pedaço de abóbora cozida e um pedaço de carne. Havia um
espaço chamado Centro de Convivência, onde os funcionários se encontravam para
assistir televisão, bater papo e almoçar. Todos os dias estava eu ali com meu
marmitão. Morria de vergonha dos outros colegas, que levavam uma comida
diferente a cada dia e sempre pediam que eu abrisse a minha quentinha para trocar
com eles um pedaço de carne ou de outra coisa qualquer. Como eu sempre levava a
mesma coisa diariamente, alguns colegas nem queriam ver minha marmita,
enquanto outros, já adivinhando o que nela continha, faziam brincadeiras e
gozações.
Afogamento em Itapoã
Quase morri afogado em Itapoã. Fazia apenas dois meses que eu havia
chegado a Salvador. Em abril de 1993, reencontrei um grande amigo do interior,
chamado Greyko, e saímos para tomar umas cervejas na praia de Itapoã. Tomamos
duas cervejas e comemos dois caranguejos - o primeiro caranguejo de minha vida.
Quando caminhávamos em direção ao ponto de ônibus, vimos uma galera andando
de caiaque e paramos para olhar.
Meu amigo cismou de dar umas voltas de caiaque e me chamou para
acompanhá-lo, o que recusei de pronto. Mas ele insistiu e acabei seduzido pela
aventura de andar de caiaque no mar. Já tinha andado de caiaque num rio da cidade
de Ilhéus alguns anos antes. Depois de darmos algumas remadas, resolvemos sair do
caiaque para dar um mergulho. Na hora de entrar no caiaque, eu não conseguia me
equilibrar e caía na água toda vez que tentava subir. Com as inúmeras tentativas, o
caiaque afundou e tivemos que nadar de volta à praia. Tendo a narina esquerda
comprometida por causa do segundo acidente de moto que quebrou meu nariz,
cansei rápido e parei para descansar. Pedi ajuda a ele. Precisei me segurar nele para
poder respirar mais livremente e voltarmos a nadar.
Não agüentei o pique e comecei a me afogar. Meu amigo ainda tentou me
salvar, mas eu estava desesperado e ele ficou com medo de morrer junto comigo.
Após me debater muito, percebi que eu afundava, sentindo a temperatura da água se
tornar cada vez mais fria. Depois, não vi mais nada, tudo estava muito escuro.
Acreditando que aquele seria meu último dia de vida, entreguei-me ao mar, sem
resistência.
Parecia estar "sonhando" com meu corpo deitado sobre uma pedra, ao nível
da água do mar, e que as ondas batiam em mim. Sentia o brilho intenso do sol forte
e quente sobre mim, enquanto gritava: "Deus, eu não posso morrer agora, me dê
mais uma oportunidade! Tenho somente dois meses em Salvador e muita coisa para
viver ainda nesta cidade!".
Na cena seguinte, alguém me pegou, me colocou dentro de um barco e me
levou de volta à praia. Meu amigo contou que conseguiu ser salvo por um cara que
passava num barco à vela e o levou até a praia. Achou que eu tinha morrido. Estava
chorando na praia, quando o dono da barraca de aluguel de caiaque pediu que
alguém fosse ao mar pela segunda vez, já que na primeira haviam encontrado
apenas os remos do caiaque. Disse-me depois que não acreditou quando viu que me
traziam de volta à praia com vida. Eu também não acreditei naquilo, achei que fora
um milagre, uma segunda chance de vida, para realizar alguma coisa que estaria por
vir.
Socorrido na praia por populares, fui levado de hospital em hospital, mas não
recebi atendimento médico em nenhum deles, sob a mesma alegação de que não
havia pneumologista de plantão. Fui levado para casa, com os pulmões cheios de
água, tive febre altíssima, seguida de bronquite e pneumonia. Consultei-me com um
médico no meu trabalho, que me receitou remédios para dores. A doença evoluiu e
acabei tendo tuberculose. Por conta disso, fui submetido a um tratamento que durou
mais de um ano. Mas, finalmente, fiquei curado. Não era a minha hora.
Dona Nini
Tive uma vizinha chamada Dona Nini. Morava no apartamento ao lado e era
uma criatura maravilhosa. Sempre me presenteava com frutas e, quando fazia uma
comida diferente, me chamava para oferecer um prato do novo quitute.
Depois que me mudei do prédio, soube que ela também tinha se mudado para
a Pituba e que passava por sérios problemas de saúde. Procurei seu endereço e fui
visitá-la. A cena me cortou o coração. Foi chocante para mim ver aquela mulher, que
antes era tão firme, vaidosa, bonita e vistosa, reduzida a um monte de carne
retorcida em cima de uma cama.
Dona Nini tinha tido um infarto que deixara seqüelas. Estava torta de um
lado, a boca meio aberta, até para comer tinha dificuldades. Aquela cena me deixou
mortificado, mas não deixei transparecer minha perplexidade. Ela sabia que estava
com seus dias contados, mas não me privei de incentivá-la. Falei-lhe que já tinha
visto pessoas passarem por situações mais complicadas e que conseguiram dar a
volta por cima e muitas outras palavras de ânimo. Mas ela estava inconformada.
Alguns dias depois, sua saúde piorou e precisou ser internada num hospital
da cidade, onde fui visitá-la. Fiquei mais estarrecido ainda quando a vi se
alimentando por meio de tubos e respirando com a ajuda de aparelhos, numa semi-
UTI. Veio a falecer pouco tempo depois. Fiquei muito impressionado com o
desenrolar dos fatos; a imagem dela ocupou minha mente por vários dias. Uma
noite, tive um sonho. Estava sentado num grande sofá, juntamente com outras
pessoas. O sofá estava completamente lotado de gente, e todos fixavam o olhar para
frente, não se mexiam para os lados. Passados alguns minutos, Dona Nini entrou no
ambiente. Sentia que era ela, mas, de alguma forma, sabia que não podia olhá-la
diretamente. Parecia que meu pescoço estava preso e não podia girar. Dona Nini se
aproximou de mim, olhou-me nos olhos e me estendeu a mão. Eu fiquei com medo,
assustado, pois eu sabia que ela tinha morrido. E ela falou: "Pegue em minha mão!"
Eu peguei, mas achando que pegaria numa mão de nuvem, sem forma e sem
consistência. Minha mão tocou uma mão quente, firme e humana. Ela, como que
lendo meus pensamentos, falou: "Está vendo? É uma mão de verdade. Eu estou
bem. Não se preocupe. Eu estou bem!". O sonho acabou aí. Acordei muito assustado
e fiz algumas orações, antes de tentar dormir novamente.
***
Quando eu morava no Edifício Crescenciano dos Santos, meus irmãos Dida e
Tó estavam em Ilhéus, onde trabalhavam. Dida vivia com uma garota, e Tó morava
junto com eles, numa casa alugada. Sempre dava um jeito de visitar meus irmãos em
Ilhéus. Quase todos os meses, viajava para o interior de ônibus, ou com minha mãe
ou sozinho. Tinha planos de ajudá-los a comprar um terreno ou uma casa.
Em uma dessas minhas visitas, conversamos sobre a compra de um imóvel, e
ambos me prometeram procurar um local adequado à construção de uma oficina, já
que o desejo deles era ter o próprio negócio. Semanas depois, me ligaram dizendo
que ainda não tinham encontrado nada razoável. Em uma nova viagem a Ilhéus, saí
com os dois em busca de uma casa ou terreno. Encontramos uma casa enorme, no
bairro Teotônio Vilela, com um quintal descomunal, que tanto serviria de moradia
como dispunha de área apropriada para a construção de uma oficina mecânica. Eles
argumentaram que aquele não seria o local ideal, pois o bairro, além de não oferecer
infra-estrutura adequada, era muito violento. Voltei para Salvador e, na semana
seguinte, recebi um telefonema deles dizendo que tinham encontrado um terreno
muito bom.
Com o dinheiro que enviei, eles compraram um terreno horrível, num
despenhadeiro. A área era grande, mas tinha apenas três metros de terreno plano, o
restante era um barranco que descia até um manguezal, que desembocava no rio
Cachoeira. Fiquei bastante irritado com o fato de meus irmãos terem desperdiçado a
oportunidade de comprar uma boa área onde pudessem morar e trabalhar.
Começaram a construir ali uma casa de dois metros de largura por três de
comprimento, e me pediram mais dinheiro para comprar o material de construção
da oficina mecânica. Mas, ao invés de investirem o dinheiro que enviei em material
de trabalho, compraram um Fusca velho, caindo aos pedaços. Ao chegar a Ilhéus e
verificar que haviam comprado um carro velho e não o material para trabalhar, não
pude esconder minha indignação. Resolvi não mais ajudá-los e passei um enorme
sermão nos dois. Uma semana depois, soube que haviam vendido o Fusca e
comprado material para construir mais dois cômodos na casa.
***
Já trabalhando na 3ª Vara de Salvador, fui chamado por Dina, que dizia ter
uma notícia muito boa para mim. Perguntou-me se eu tinha interesse em substituir
a funcionária de um gabinete que entrara de férias. Eu já havia substituído várias
pessoas, em todos os setores onde trabalhei, inclusive na Distribuição, onde Dina era
a chefe. Perguntei qual era o trabalho a ser feito e Dina me disse que era uma coisa
fácil e que eu iria gostar. Sob tais condições, aceitei. Comunicou-me então que,
assim que tudo tivesse acertado, me telefonaria, o que aconteceu uma semana
depois. Foi um pouco complicado ser liberado da 3ª Vara para substituir uma
funcionária do gabinete, mas acabei conseguindo, sob a condição de trabalhar nos
dois setores em horários diferentes, cumprindo duas cargas horárias. Aceitei
prontamente.
No dia combinado, fui ao gabinete, com a roupa que eu costumava vestir no
dia-a-dia: uma conga marca Alcolor com um buraco no dedão do pé direito, uma
calça jeans velha, com furo no joelho, e uma camiseta de malha. Conversei com o
juiz Gustavo Lanat, sem fazer a menor idéia de quem era e que importância tinha.
Uma das perguntas que ele me fez foi se eu sabia datilografar. Respondi que sim. E
ele disse que havia em torno de oitenta processos acumulados no gabinete e
precisava de alguém para ajudar sua equipe a dar conta do trabalho. Aceitei.
Perguntou-me também se eu apertaria um parafuso ou tentaria consertar algum
objeto que se quebrasse. Eu disse que sim, caso eu soubesse realizar o conserto. Ao
final da conversa, marcou o dia para eu começar a trabalhar. Iniciei no dia 28 de
novembro de 1993 e permaneci ali, até junho de 2005, a trabalhar com ele e com sua
equipe, onde nunca precisei apertar nenhum parafuso.
***
Não foi muito fácil o processo de adaptação a uma cidade tão grande, repleta
de coisas boas e ruins; muita gente bonita e também muita gente mal-intencionada.
Mas tentava me acostumar com tudo, fui aprendendo a lidar com as adversidades e
a tirar de cada uma delas uma lição de vida.
Recém-chegado de Jequié, uma cidade carente de diversões, quando comecei
a conhecer os points da Salvador, me esbaldei até onde pude. Quase toda semana ia
assistir a filmes, não perdia uma estréia; não faltava a uma "terça da bênção" no
Pelourinho. Eu sempre ia à festa do Pelourinho, nas noites de terça-feira, mas
jamais imaginei que a expressão "bênção" se relacionava à "água benta que o padre
jogava sobre os fiéis, na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, durante a
missa"; pensava que era apenas o nome da festa popular. Via muitas peças de teatro
no Teatro Santo Antônio, no bairro Canela, de graça; adorava tomar banho de mar
nas diversas praias; curtia o carnaval adoidado, no meio da multidão, e não perdia
uma seresta ou pagode. Praticamente, não parava em casa. Estava sempre em
atividade. Até toquei no Ilê Ayê, quando o grupo ensaiava no Forte de Santo
Antônio, no bairro de mesmo nome. Os ensaios eram às quartas-feiras e aos
sábados. Ficávamos a noite inteira ensaiando. Mas, como não sou uma pessoa
notívaga, acabei abandonando esses ensaios em poucos meses.
Numa dessas idas e vindas de festas, conheci Elias, que se tornou meu amigo.
Elias era muito mais festeiro do que eu e sempre me dava boas dicas de lugares onde
estava rolando algum "reggae". Muitas vezes, fui com ele a Periperi, um bairro
suburbano, distante mais de dez quilômetros do centro da cidade, para curtir
serestas e pagodes até altas horas. Acontecia com freqüência de eu me esquecer do
horário e perder o último ônibus. Aí o jeito era esperar o "pernoitão", a linha
especial de ônibus que circula de madrugada. O sono era tanto que dormia sentado
no ponto de ônibus.
Por intermédio de Elias, conheci um outro camarada, Elivan, cuja mãe
morava em Periperi. Ele vivia com o pai em São Tomé de Paripe, o bairro mais
distante do centro. Elivan vendia sorvetes numa garagem da casa do pai. Quando ia
a São Tomé, após tomar umas cervejas na praia, era comum eu ir almoçar ou comer
alguma coisa no bar do tio dele, o Bar do Chico.
Sempre que encontrava Elivan por ali, perdíamos a noção das horas,
conversando sobre todo o tipo de assunto, inclusive sobre trabalho. Ele tinha o
sonho de ser marinheiro, vencer na vida e ajudar a mãe. Eu ficava ouvindo seus
planos e não deixava de lhe incentivar, mas tinha quase certeza de que ele não iria
chegar a lugar algum, pois a dificuldade de se vencer na vida numa cidade grande é
diretamente proporcional ao tamanho dessa mesma cidade. No entanto, para
surpresa minha, Elivan lutou contra todas as adversidades, se preparou para o
concurso e entrou na Marinha Mercante. Hoje é Sargento da Marinha, trabalha no
Rio de Janeiro, servindo no Primeiro Distrito, já viajou por quase toda a costa
brasileira, já se casou e teve dois filhos. E o mais importante: ajudou e continua
ajudando a mãe e os irmãos. Construiu uma casa para a mãe em Aratu e depois
resolveu levá-la com alguns de seus irmãos para o Rio, deixando a casa aos cuidados
de outros irmãos.
Ele é um exemplo de pessoa. Em sua trajetória de vida, pude identificar uma
semelhança muito grande com a minha própria história: a história de um menino
pobre, morador de periferia, que consegue vencer todos os obstáculos e dar a volta
por cima. Assim, conquista seu lugar ao sol, com honestidade, sem trapaças, sem
conchavos, sem passar por cima de ninguém e sem puxar o tapete de quem quer que
fosse.
***
Desde sempre, quis me mudar do Edifício Crescenciano dos Santos, no bairro
Sete Portas, onde morei. Mas, para isso, teria de sacrificar muita coisa: evitar de sair
às farras, de comprar muitas roupas, reduzir as viagens. Passei mais de três anos
arquitetando o dia de minha libertação. Quando estava com uma boa grana no
banco, comecei a pesquisar preços de casas e apartamentos.
Conheci muitos lugares de Salvador, caminhando em busca de um lugar para
morar. Poucos me agradavam. Até que encontrei o apartamento do Edifício Gama,
no bairro Nazaré. Apaixonei-me de cara pelo imóvel e fechei negócio imediatamente.
Essa compra se deu em 1997. Seria o início de uma nova fase. Depois que passei a
morar no novo prédio, iniciei uma longa jornada de viagens pelo Brasil e por alguns
países do mundo.
Convidei então meus irmãos para virem morar em Salvador no Edifício
Crescenciano dos Santos, que logo aceitaram.
No dia 25 de julho de 1997, nasceu meu filho Junior, fruto de uma aventura
rápida que tive com Maria Raimunda da Conceição, natural de Ilhéus. Após o
nascimento, no Hospital Sagrada Família, em Salvador, decidimos, eu e sua mãe,
que nosso relacionamento tinha chegado ao fim e que o nenê ficaria comigo. A mãe
voltou para o interior e de lá se mudou para São Paulo, para onde levo Junior,
sempre que posso, para visitá-la.
Minha mãe morava comigo e cuidava de Junior. Foi uma experiência muito
boa, o nascimento de meu filho. Além de representar uma extensão de mim, que
teria de cuidar para sempre, ele me trouxe muitas alegrias. Mudei vários conceitos e
planos que tinha para minha vida em função dele. O projeto de viver no exterior, por
exemplo, foi adiado por causa de minha mãe e de Junior, que representavam muito
mais que uma vida para mim. Cuidei de meu filho com muito carinho, enquanto ele
morou comigo e com minha mãe. Troquei fraldas, dei mamadeira e banho. Brincava
sempre com ele quando chegava do trabalho. Aprendi a ter paciência e a descobrir o
significado do choro. Preocupava-me com cada movimento dele, perto de mim, na
cama. Ficamos muito ligados um no outro, principalmente depois que minha mãe
morreu, e eu me vi sozinho para cuidar dele.
Contratei pessoas para ficarem em minha casa cuidando de meu filho, mas,
depois de pensar muito, achei que o melhor para o menino seria estar perto de
alguém da família, que pudesse cuidar dele como ele merecia. E resolvi deixá-lo com
minha irmã Valquíria, em Jequié. Falamo-nos freqüentemente por telefone e, vez ou
outra, envio-lhe cartas. Ele também me escreve, manda cartões de aniversário, de
Natal e Ano Novo. Quando nos encontramos, Junior coloca toda a conversa em dia,
quer me mostrar a roupa nova, o brinquedo novo, contar as coisas que aprendeu na
escola.
Quanto a meus irmãos, eles aceitaram vir para Salvador. Ao chegarem, não
demoraram a encontrar trabalho nas oficinas mecânicas da cidade. Depois de dois
ou três anos, resolveram voltar para Ilhéus, e de lá foram para São Paulo, onde
vivem até hoje. Quando se mudaram para São Paulo, eu já tinha ajudado Mi a
comprar uma casa no bairro Parque Novo Santo Amaro. A casa custou R$
20.000,00 (vinte mil reais), dos quais emprestei, a fundo perdido, cinqüenta por
cento. O restante foi financiado pela própria imobiliária, e as prestações mensais
eram divididas também com a sogra e com as cunhadas, que saíram de suas casas de
aluguel para morarem na nova casa. O imóvel era bem amplo; possuía três andares e
ainda um telhado, que permitia bater uma laje para a construção de mais um andar.
Vitório acabou batendo uma laje nesse telhado, onde construiu sua casa.
VIAGENS
Primeira viagem a São Paulo
Viajei pela primeira vez para São Paulo em 1996. Fui de ônibus. A viagem
parecia não terminar. Mas foi muito agradável. Transcrevo abaixo uma espécie de
"diário de bordo", relato desta experiência:
“Jequié, 2 de abril de 1996.
10:21 h
Saí de Salvador no início da manhã e, neste exato momento, encontro-me no
Ponto de Apoio da empresa de ônibus São Geraldo, em Jequié.
10:27 h
Estou dentro do ônibus para São Paulo, comendo taboca, um doce
enroladinho, feito de tapioca. Aqui dá para ver muita coisa bonita. O ônibus segue
estrada adentro.
15:04 h
Passamos pelas cidades de Manoel Vitorino, Poções e Planalto. Paramos em
Vitória da Conquista para almoçar. O ônibus é delicioso. Tem água mineral à
vontade e café quentinho da hora. O ar condicionado torna o ambiente bem
agradável. Passamos pela pequena cidade de Cândido Sales, que é cortada por um
riachinho de água barrenta. Aqui faz muito frio.
16:00 h
Estamos no estado de Minas Gerais, a paisagem é encantadora, com pedras e
montanhas enormes por todos os lados. Muitas curvas na estrada. Em frente à
minha poltrona, duas moscas muito chatas resolveram se acomodar. Penso que são
duas moscas baianas indo de carona para São Paulo.
20:00 h
Paramos em Teófilo Otoni para o jantar. Preferi não comer nada, achei a
comida uma boa droga. Paguei caro pela quentinha, que acabei jogando no lixo.
Arrependi-me amargamente de ter comprado aquela porcaria e ainda por cima ter
de carregá-la dentro do ônibus, com o ar condicionado desligado, por mais de meia
hora. Teria sido melhor sair da rodoviária e fazer um lanche numa bodega de beira
de estrada.
06:00 h
Está amanhecendo. Já é dia 3 de abril e estamos entrando no estado do Rio
de Janeiro. Dormi quase a noite inteira. Com isso, deixei de ver um monte de
cidades mineiras.
06:50 h
Agora estamos passando por Sapucaia, uma cidadezinha do Rio de Janeiro,
pequena e bem cuidada.
07:10 h
O ônibus atravessa a cidade de Anta, bem menor que Sapucaia.
07:30 h
Passamos por Três Rios, ainda no Rio de Janeiro. Um pouco depois da saída
da cidade, vi um caminhão de leite enlatado virado e uma multidão saqueando a
carga.
08:00 h
Paramos em Paraíba do Sul para tomar café e, em seguida, atravessamos
Vassouras, cidade pequena, arborizada, bonita e aconchegante.
09:00 h
Passamos por Barra do Piraí, outra cidadezinha do Rio de Janeiro, pequena,
muito pobre, cheia de morros.
09:30 h
Já estamos em Volta Redonda. De longe se percebe a nuvem de poluição a
cobrir a cidade, que é bem desenvolvida e cheia de prédios. Acredito que morar
neste lugar deve ser um pesadelo por causa da poluição. Dormi um pouco e acordei
em Resende. É uma cidade pequena, com alguns edifícios e um rio muito caudaloso
que margeia a estrada por muitos quilômetros.
11:40 h
Agora entramos no estado de São Paulo, mais exatamente nas proximidades
de Aparecida, onde há uma parada para o almoço. A cidade é muito simpática. De
longe, pude ver a Catedral Basílica, que impressiona por sua imponência.
13:00 h
Chegamos a Taubaté. A cidade é enorme e eu até acreditei que já estava na
cidade de São Paulo. Se o motorista não me adverte, eu teria desembarcado ali. O
ônibus parou na rodoviária. Muita gente desceu, mas eu preferi ficar no carro, por
estar nervoso demais. Talvez pelo medo do desconhecido. Não vejo poluição, mas o
horizonte da cidade é escurecido.
15:30 h
Finalmente, São Paulo. Ao desembarcar na Estação Rodoviária do Tietê,
tomei um susto. O terminal era imenso e havia uma multidão incalculável ali,
partindo e chegando, ônibus pra todo lado. Fiquei apreensivo, achando que não
encontraria minha cunhada, que prometera me esperar. Mas não demorei dez
minutos para avistar Célia, acompanhada de Bela, sua irmã. Da rodoviária até o
distrito de Jardim Ângela, onde meu irmão morava, foi uma viagem de mais de seis
horas. Um engarrafamento monstruoso paralisava o trânsito da cidade inteira.
Memorizei quase todas as casas e prédios da avenida Santo Amaro, pois o ônibus
parava a cada metro que conseguia andar. Fazia um calor infernal, e eu lá de casaco,
carregado de malas e mochilas. Parecia até que estava indo de mudança definitiva
para São Paulo. Finalmente, chegamos ao Jardim Ângela, e logo em seguida ao
Parque Novo Santo Amaro, onde ficava a casa de meu irmão.
O tempo ali entre eles passou voando. Em vinte dias, pude descansar e
ordenar minha mente e refazer meus projetos de vida. Gostei tanto das pessoas que
não tinha ainda tido oportunidade de conhecer: um montão de cunhadas de meu
irmão, a sogra dele e mais gente, muita gente. No dia que voltei para Salvador, todos
choraram na despedida. Eu não me agüentei e chorei também.
Gostei tanto da experiência que um ano depois viajei de ônibus com minha
mãe, meu sobrinho Murilo, meu filho Junior e Jean, um amigo da família. Desta vez,
a viagem não foi tão surpreendente quanto a primeira, pois já conhecia o trajeto. A
partir de então, passaria a visitar meus irmãos todos os anos, no Natal e no Ano
Novo. Fui duas vezes de carro e outras tantas vezes de avião.
Houve uma viagem que me marcou em especial, na segunda vez em que fui de
carro. Resolvi sair de São Paulo quando faltavam vinte e cinco minutos para a meia-
noite. Todos protestaram: minha mãe, meu irmão, as cunhadas dele e outras
pessoas que estavam na casa. Mas não ouvi ninguém. Era uma noite de reveillon.
Vimos a queima de fogos, em comemoração ao Ano Novo, quando atravessávamos a
cidade, passando pela Avenida Santo Amaro, em direção à BR-116.
Cursos de inglês e espanhol
Tinha muitos planos de fazer viagens ao exterior, por isso comecei a aprender
inglês. Fiz um curso de três anos em uma escola tradicional da cidade. A princípio,
parecia que jamais conseguiria aprender uma palavra sequer. Mas, com o passar do
tempo, fui me acostumando com a língua, e hoje já consigo conversar normalmente
até com próprios nativos. Já o curso de espanhol durou apenas vinte dias, acabei
desistindo. Preferi me aperfeiçoar primeiro no inglês e somente depois recomeçar o
curso de espanhol.
Viagens para Jequié
Quase toda semana eu viajava para Jequié e, na maioria das vezes, ficava na
casa de minha irmã Quira. Numa dessas viagens, fui até o açougue com ela para
comprar uns dois quilos de bife. O açougueiro cortou a carne e separou as peles das
partes mais duras num montinho. Enquanto ele pesava e embalava a carne, mostrei
o montinho de peles à minha irmã e perguntei-lhe se aquilo a fazia lembrar de algo.
Ela sorriu, como que concordando com a lembrança do tempo em que comíamos os
refugos doados pelos barraqueiros da feira livre da cidade. O açougueiro, pensando
que queríamos levar as peles, falou que poderia embalar aquele sebo para darmos
aos cachorros, caso os tivéssemos. Respondemos que não tínhamos cachorro e que
falávamos de outra coisa. Ele não entendeu nada.
Pedalando e dirigindo em Salvador
Resolvi comprar uma bicicleta, a fim de fazer exercícios físicos. Não me
agradava muito ficar em academias, pela minha timidez e também por ser um lugar
fechado, onde geralmente não se pode ver paisagens, a não ser através das janelas.
Encontrei um anúncio no jornal, telefonei e fui até o bairro de Pituaçu, que era onde
morava o vendedor da bike. Voltei de lá pedalando pela avenida Paralela. Daí em
diante, passei a pedalar por duas ou mais horas, todos os dias. Lembro-me que,
numa das manhãs em que pedalava pela Pituba, começou a chover e, quando olhei
para o relógio, vi que já eram sete e trinta da manhã e eu deveria estar no trabalho
antes das oito, pois era dia de sessão no Tribunal. Corri tanto que parecia que a
bicicleta flutuava sobre a água. Mas cheguei a tempo ao trabalho.
Saía quase todos os dias de Nazaré e ia até Paripe, Alto de Coutos, pedalando
pela Suburbana e por Ipitanga, em Lauro de Freitas. Muitas vezes, pedalava de
manhã cedo, antes de ir para o trabalho, e, quando chegava em casa à tarde, repetia
a dose. Cometi loucas aventuras com minha bike, como sair às 22 horas de Salvador
rumo a Dias D’Ávila, aonde cheguei após pedalar três horas na chuva. Fiquei em
casa de amigos e voltei no dia seguinte, pedalando de novo.
Eu tinha muito medo do trânsito de Salvador, mas, depois que eu comecei a
pedalar pela cidade, acabei me acostumando com o ritmo e com o movimento rápido
dos carros. Até quando andava de táxi sentia medo, ficava sempre segurando na
porta do carro. Aos poucos, fui me habituando.
Ao ver senhores e senhoras dirigindo tranqüilamente, fiquei mais animado e
confiante para dirigir também. Resolvi então entrar num consórcio de carro e me
matricular numa auto-escola para aprender a dirigir. Tomei mais aulas do que o
necessário, e mesmo depois delas ainda continuava um pouco inseguro e com medo
de tirar a carteira de motorista. Mas a forma com que os instrutores davam as aulas
foi decisiva para me ajudar a resgatar a minha segurança. Certa vez, quando
manobrava o veículo, o instrutor pediu que me aproximasse de um muro e parasse,
para que um outro carro que estava atrás pudesse passar. O carro ficou numa
posição complicada. Só poderia ser retirado dali através do uso de meia embreagem
e de marcha à ré. Eu estava apenas começando a aprender a fazer meia embreagem,
e por isso o instrutor ficou preocupado com a possibilidade de eu bater com o carro
no muro. Ele já ia saindo para pegar o carro e retirá-lo dali, quando mudou de idéia
e resolveu que eu poderia fazê-lo, seguindo suas orientações. Fiquei supernervoso,
mas ele me transmitiu toda a calma que eu precisava. Foi minha primeira grande
vitória, pois dali em diante criei coragem para enfrentar desafios outros que
porventura pudessem ocorrer na direção de um veículo.
Quando o instrutor achou que eu já estava apto a me submeter aos exames do
Detran, falou em marcar os testes. Relutei bastante. Depois resolvi alugar o carro da
própria auto-escola por um dia inteiro, a fim de treinar bastante antes de fazer os
testes práticos. Marcamos os exames. Fiz todos os testes e passei de primeira, para
minha própria surpresa.
Ao receber minha carteira de motorista, a primeira providência foi reservar
um carro em uma locadora de Salvador. No dia marcado, fui à locadora de veículos,
mas não tive coragem de entrar para fazer o contrato e alugar o carro. Passava várias
vezes em frente à loja, olhava para os carros circulando na rua e ficava apavorado.
Os carros passavam sem parar, a uma distância muito curta uns dos outros.
Concluindo que não tinha condições de dirigir num trânsito daqueles, voltei para
casa sem alugar o veículo.
Mais de um mês se passou e eu, enfim, criei coragem de alugar um carro. Mas
não o fiz em Salvador. Viajei de ônibus até Ilhéus, onde aluguei um Fiat Pálio. De lá
viajei para Jequié, que ficava a uns duzentos quilômetros de distância. Aprendi
muita coisa, inclusive que não se deve entrar numa curva em alta velocidade, como
eu estava fazendo. O carro cantava pneus em todas as curvas por que eu passava. Na
estrada para Jequié, presenciei um acidente com outro veículo Pálio, que capotou
para evitar o atropelamento de um cachorro. Um dos passageiros, uma moça de
mais ou menos vinte anos de idade, em trajes de banho, voou pelo pára-brisa e caiu
morta no asfalto. O motorista e outros passageiros ficaram gravemente feridos e
foram levados para o hospital geral da cidade de Jequié. Aquilo me chocou e me fez
repensar em uma forma mais segura e preventiva de dirigir, o que adoto até hoje.
Dirigi por toda a cidade de Jequié como uma criança deslumbrada com um
brinquedo novo. Não me cansava. Acredito que gastei um tanque de combustível,
rodando por Jequié inteira.
Em outra oportunidade, aluguei um carro em Jequié, durante um final de
semana prolongado. O mico que paguei foi sair com o carro sem ligar os faróis.
Somente alguns metros após sair da locadora é que fui parar o carro para procurar
onde ficavam os botões para ligar as luzes, pois eu fiquei com vergonha de perguntar
aos funcionários da locadora.
Meu primeiro carro
Fui contemplado no consórcio de um veículo Gol, novo, ano 1998. Com esse
carro, andei cerca de duzentos mil quilômetros. Fiz duas viagens para São Paulo,
várias para Aracaju, uma para Petrolina, além de viajar toda semana para Ilhéus,
onde visitava meus irmãos Dida e Tó e para Jequié, onde moravam outros irmãos e
minha mãe. Rodava cerca de mil quilômetros por final de semana. Fiz uma viagem a
Aracaju somente para tomar uma água de coco na praça e voltar a Salvador. Nesse
dia, eu estava meio na "maresia", sem muita coisa para fazer, meio desanimado, no
tédio. Então resolvi ligar para um amigo. Marquei com ele de nos encontrarmos para
dar umas voltas e espairecer. Acabei pegando a orla, em direção a Itapoã, depois
segui rumo a Lauro de Freitas, depois Arembepe.
Conversando, conversando, passamos por Praia do Forte e acabamos subindo
até Aracaju. Chegamos à capital sergipana por volta das dez horas da noite. A cidade
estava quase um deserto. Parada. Passei por uma pracinha e parei numa barraca de
lanches, onde eu e meu amigo tomamos uma água de coco. Em seguida, pegamos a
estrada de volta a Salvador. Mais de seis horas de viagem para beber uma água de
coco, mas valeu. A gasolina era muito barata e dava para encher um tanque com R$
25,00. Atualmente, tornou-se impossível viajar todas as semanas, devido ao preço
exorbitante do combustível.
Lembro de uma viagem que fiz a São Paulo, com minha mãe, Quira, Nete,
meu amigo Fernando e Valdeck Junior, de carro. Levamos tanta comida que os
passageiros tinham de colocar seus pés sobre caixas de refrigerantes, bolos e panelas
de comida pronta.
Em outra oportunidade, retornei a São Paulo com Quira, China, o amigo
Anderson, meu filho Junior e meu sobrinho Roberto Junior de carro. Foi uma longa
jornada. Nessa viagem, passei muito mal enquanto dirigia. Faltava pouco mais que
cem quilômetros para chegar a Sampa, quando parei para comer alguma coisa e
descansar. Como eu estava dirigindo há mais de vinte horas, fiquei esgotado e quase
não consegui seguir viagem. Preferi não dizer a ninguém que estava me sentindo
mal, para evitar preocupações. Depois de uma meia hora, já me sentia melhor e
pude então continuar a viagem.
Eu tinha bebido muito extrato de guaraná para evitar dormir ao volante, e o
efeito do guaraná foi muito forte, deixando-me desperto durante toda a viagem.
Dirigindo "ligado", tal qual um zumbi, quase provoco um acidente grave, que jogaria
o carro ribanceira abaixo. Seguia em direção ao acostamento; de repente, saí da
pista e o carro foi em direção ao barranco. Via que estava indo de encontro à morte e
não conseguia reagir. Mas, de súbito, "acordei" e mudei rapidamente a direção do
veículo. Por uma questão de segundos, não causei um acidente grave. Na volta para
Jequié, preferi não tomar qualquer tipo de estimulante. Viajei vinte e duas horas de
São Paulo a Jequié, sem parar para dormir.
Disco voador na estrada de Santa Inês
Depois que comprei o carro, não parei mais de viajar. Já não era de ficar
muito parado em casa, pois sempre fui muito ansioso. Com o carro, fiquei mais
ansioso ainda. Um dia, peguei a rodovia BR-101 para Jequié. Gostava de ir por lá,
porque passava por Santa Inês, onde podia dormir ou descansar na casa de minha
irmã China.
Nessa ocasião, convidei Lázaro Telles, um amigo que hoje vive em Londres, e
Akira, um japonês que tinha vindo ao Brasil fazer um curso de Português, que
conheci e de quem me tornei amigo. Quando peguei a BR-420, no entroncamento de
Laje, já eram mais ou menos seis horas da tarde e a chuva nos acompanhava há
bastante tempo. Essa rodovia é quase deserta, principalmente em tardes chuvosas
de final de semana. Percebia luzes no horizonte, que confundia com farol de algum
carro em sentido contrário. Como chovia bastante e o pára-brisa ficava
constantemente embaçado, pensei também na hipótese de ser algum reflexo da água
no vidro dianteiro do carro. Tinha a mania de brincar de apagar todas as luzes do
carro, parado no meio da estrada deserta, e ligar e desligar os faróis várias vezes.
Depois seguia em frente. Repeti isso várias vezes durante a viagem. A tal "luz" me
acompanhou por muitos quilômetros, mas não me chamou a atenção.
Cheguei a Santa Inês por volta das oito horas da noite, tomei banho, jantei e
resolvi seguir viagem para Jequié, distante apenas oitenta quilômetros dali. Meu
cunhado Roberto e minha irmã acharam que era loucura sair numa chuva daquelas
e enfrentar a estrada, mas não dei ouvidos às suas advertências. Logo ao sair da
cidade, no entroncamento, percebi uma claridade estranha vindo da cidade. A
princípio, tive a nítida sensação de serem os faróis de um carro em movimento, por
trás de uma fileira de árvores. Continuei a não dar atenção e segui olhando para o
asfalto, a fim de evitar buracos e um possível acidente. Alguns quilômetros adiante,
o japonês, intrigado com a luz que via, perguntou-me de onde ela vinha. Respondi
que se tratava dos faróis de meu carro refletidos nos barrancos, pois era o que eu
realmente supunha ser. Ele não se conformou e perguntou de novo, pedindo para
que eu olhasse na direção em que apontava. E eis que, quando virei a cabeça para o
lado esquerdo do carro, avistei uma luz imensa, que emanava de algo com formato
circular. Parecia um círculo de refletores fortíssimos, apontados para o céu, girando
e vindo em direção ao carro. Fiquei extasiado com aquela visão. Parei o carro e pus-
me a admirar a cena, muito curioso e louco de vontade de saber qual seria a fonte
daquela luz, que se aproximava cada vez mais. A coisa, de formato esférico, tinha
mais ou menos o tamanho de um estádio como o Balbininho, em Salvador.
Meu amigo Lázaro começou a gritar desesperado e implorava para que eu
saísse dali. Eu não queria sair, permaneci olhando, mas acabei cedendo a seus
berros desesperados. Liguei o carro e disparei a mais de cem por hora. Parei vários
quilômetros adiante e resolvi voltar, sob o protesto de Lázaro. Só que não vi mais
nada. No primeiro telefone público que encontrei, já em Jaguaquara, liguei para
casa e para alguns amigos, relatando a história. Enviei mensagens para programas
de televisão. Alguns até responderam, enviando e-mails onde pediam provas
concretas, fotos etc., para poderem relatar a história. Mas não havia provas. Nunca
mais vi a tal coisa, apesar de sempre passar pela mesma estrada, em horários
noturnos diversos.
Viagens a Nova York
Tive a felicidade de fazer duas viagens a Nova York. A primeira, em 1999, com
vôo saindo diretamente de Salvador para NYC; a segunda, em 2000, com escala em
São Paulo. Adorei conhecer os Estados Unidos, apesar de ter visitado somente um
único estado. Na primeira vez, passei todos os vinte dias de viagem caminhando pela
cidade, com a câmera a tiracolo para registrar tudo. Visitei o Central Park, fui ao
Empire State Building, atravessei a Brooklyn Bridge. Passava a maior parte do
tempo apreciando a arquitetura, os traçados retilíneos das ruas e avenidas, as
centenas de pessoas que iam e vinham. Fui de ferry-boat da ilha de Manhattan à
Staten Island e conheci mais um pouco dos arredores da cidade. Ali, sobretudo na
estação da ferry, vi muitos mendigos se protegendo do frio cortante que fazia. Não
tive muita vontade de visitar a Estátua da Liberdade, depois que me disseram que o
acesso ao topo da estátua era abafado e quente. Também não me animei a visitar as
Torres Gêmeas, pois fui informado de que a vista era a mesma do Empire State
Building, com a diferença de mais alguns andares de altura. Futuramente, após a
tragédia com as Torres, isso se transformaria numa grande frustração, diante da
certeza de nunca mais poder subir ao topo do World Trade Center.
Visitei um programa de televisão chamado Ricky Lake, uma espécie de
"Programa do Ratinho" à moda americana, onde as pessoas se xingavam e se
agrediam o tempo todo. Foi muito divertido.
O que mais me impressionava na cidade era a organização e o respeito ao
sinal de trânsito, mesmo nas madrugadas. Por várias vezes, ao pegar um táxi
voltando das farras para a casa onde estava hospedado, testemunhei a mesma cena:
sempre que o sinal ficava vermelho, a qualquer hora da madrugada, o taxista parava
o carro e esperava o sinal abrir. O sistema de metrô da cidade também me pareceu
fantástico, de uma pontualidade infalível.
Na segunda viagem, eu já não estava tão preocupado em tirar fotos. Além do
mais, fui fazer um curso de inglês em uma escola de intercâmbio cultural. Fiquei
hospedado na casa de uma família no Brooklyn e estudava em Manhattan, na Sexta
Avenida. Na casa onde eu fiquei havia um sistema de alarme cuja senha de acesso
era trocada todos os dias. A pessoa tinha que digitar a senha, abrir a porta, fechá-la e
digitá-la novamente. Um dia, eu me atrapalhei e o sistema disparou o alarme. Todos
os moradores da casa correram para ver do que se tratava, achando que era um
assaltante. Quando viram que era eu, respiraram aliviados, mas fiquei muito
envergonhado e sem saber me explicar direito.
Um dia antes de minha viagem de volta ao Brasil, liguei para o serviço de táxi
e marquei uma corrida para o aeroporto no dia seguinte. A pessoa que me atendeu
ao telefone falou "hold on", e eu imaginei que ela voltaria a falar comigo. Fiquei
"aguardando" e, depois que percebi que não havia ninguém na linha, desliguei.
Alguns minutos mais tarde parou um táxi em frente à casa e começou a buzinar. Saí
para ver o que era e me deparei com o táxi à minha espera para me levar ao
aeroporto. Fiquei tão nervoso na hora que comecei a conversar em português com
um dos filhos da dona da casa. Ele me olhava espantando, e eu continuava a falar
sem parar, até me dar conta de que ele nada entendia do meu idioma. Depois de me
acalmar, pedi a ele que explicasse ao taxista que a corrida era para o dia seguinte.
Conhecer os Estados Unidos foi uma experiência muito feliz, apesar de ser
torturado pelo frio, que me obrigava a vestir várias roupas ao mesmo tempo, para
conseguir me esquentar um pouco.
Na primeira viagem que fiz tomei um grande susto, como é próprio dos
inexperientes. Remarquei o meu vôo pessoalmente no escritório da VASP em Nova
York com uma brasileira. Tudo confirmado. No dia da viagem, fui para o aeroporto
John Fitzgerald Kennedy, lépido e fagueiro, crente que meu vôo sairia dali. Qual não
foi meu espanto quando vi o guichê de check-in da VASP fechado. Procurei
informações e me disseram que não havia nenhum vôo saindo dali para o Brasil
naquele dia. Fiquei desesperado. Depois, acabei descobrindo que o vôo sairia de
New Jersey, do aeroporto Newark. Peguei um táxi e, durante a corrida, não parava
de pedir ao motorista que corresse bastante. Mas ele sempre respondia que já estava
correndo dentro do limite máximo permitido e que ali havia controle de velocidade.
Por mais que corresse, não conseguia me convencer de que ele não andava devagar.
Mas no final deu tudo certo. Cheguei a tempo, fiz o check-in, embarquei e cheguei ao
Brasil em paz.
Viagem a Madrid
Quando retornei de Nova York, em minha segunda viagem, no ano de 2000,
fui direto para Madrid, conhecer um pedaço da Europa. Aproveitei para fazer um
curso de espanhol de vinte dias. Viajando como estudante, as despesas da viagem
ficam menores, já que há descontos nas passagens aéreas e é fácil conseguir
alojamento em casas de família. Aproveitei a viagem ao máximo. Caminhei muito
pela cidade, fui à tourada, feiras livres, danceterias, visitei Segóvia e Toledo. Adorei
o pessoal da escola onde estudei. Ali conheci gente do Japão, Coréia, Itália, Estados
Unidos e outros países. A parte triste foi que aconteceu um acidente de carro com
duas amigas coreanas, que acabaram morrendo. Todo o pessoal da escola ficou
consternado e eu até chorei a morte delas. Fiquei impressionado quando a família de
uma delas foi buscar o corpo e destruiu todos os seus pertences, inclusive as fotos
que os amigos tiraram.
Faltando alguns dias para retornar ao Brasil, comecei a ficar subitamente
apreensivo. Sentia uma necessidade grande de ver minha mãe. Por várias vezes
ligara para saber como andava a saúde dela e sempre obtinha a resposta de que tudo
estava bem, o que me deixava mais tranqüilo, mas não eliminava aquela sensação de
apreensão. Resolvi antecipar meu retorno. Mudei a data de embarque no vôo que
estava reservado e, de tão atrapalhado que estava, acabei chegando ao aeroporto um
dia depois de o vôo ter partido. Com algum esforço, a Varig conseguiu um lugar para
mim num vôo das Aerolíneas Argentinas. O vôo era para Buenos Ayres, com escala
em São Paulo. Ao chegar à capital paulista, notei que havia problemas com minha
bagagem: ou não havia sido desembarcada ou fora extraviada. Registrei a ocorrência
junto à companhia aérea e viajei para Salvador, a fim de aguardar em casa o
resultado das investigações.
Falecimento de minha mãe
Dois ou três dias depois de ter chegado de viagem, recebi um telefonema
dando conta de que minha bagagem tinha sido localizada no aeroporto de Buenos
Ayres e que já havia sido remetida a Salvador. Nesse meio tempo, meu celular ficou
sem carga na bateria e, como o carregador se encontrava na mala extraviada, resolvi
ir até o Tribunal Regional do Trabalho para usar o carregador de minha chefe, que
tinha o aparelho igual ao meu.
Assim que a bateria completou a carga, recebi um telefonema de meu
cunhado Nilson, de Jequié, com a trágica notícia de que minha mãe tinha acabado
de falecer. Foi uma fatídica tarde do dia 14 de junho de 2000. Perdi a noção do
tempo, do espaço, de tudo. Entrei em desespero e liguei para meu amigo Fernando,
que me acompanhou na viagem a Jequié. Para minha surpresa, minha então chefe,
Ramin, e meus colegas Márcio e Iraci também foram até Jequié para o enterro de
minha mãe. Encontrei-me com eles somente no cemitério. Posso dizer que esta foi a
maior perda de minha vida. Uma tristeza que não passa, uma lacuna que não se
preenche, uma lembrança que jamais será esquecida.
Todos os irmãos conseguiram chegar para o velório, inclusive Mi, que morava
em São Paulo, e Tó, que morava em Ilhéus, onde fui buscá-lo. Só Dida não conseguiu
vir de São Paulo, pois não conseguiu dinheiro emprestado para pagar a passagem de
avião.
Em todas as viagens de férias que fiz ao exterior, sempre fui sozinho. A única
coisa que fazia era ligar para casa ou mandar um cartão-postal, não costumava
comprar presentes. Mas, voltando dessa viagem à Espanha, trazia na mala para
minha mãe um ímã de geladeira, com a frase “Te quiero, Mamá” (Te amo, Mamãe) e
o desenho de uma senhora descascando alguma fruta ou verdura. Não consegui dar
a ela o presentinho que comprei, já que falecera antes de eu chegar a Jequié.
Nunca havia pensado em levar alguém da família comigo nessas viagens, nem
mesmo minha mãe. Porém, retornando de Madri para o Brasil, no avião das
Aerolíneas Argentinas, encontrei uma senhora que morava em São Paulo. Viajava
com sua mãe, pela primeira vez em muitos anos. Contou-me que era proprietária de
uma empresa que fornecia alimentação para o exército e que passou muitos anos
trabalhando sem parar. Um belo dia, voltando sonolenta do trabalho, seu carro
atravessou a pista e quase bateu de frente em uma carreta que estava na pista
oposta. Disse ela que, desse momento em diante, resolveu trabalhar menos e cuidar
mais da saúde e da família. Estava ali viajando com a mãe justamente para dar início
ao novo ciclo de sua vida. Após ouvir essa história, decidi que levaria minha mãe
comigo na próxima viagem que fizesse ao exterior. Mas o destino não me deu tempo
de realizar este desejo. A morte chegou antes, levando minha mãe de surpresa.
Faculdade de Turismo em 2001
Prestei vestibular para turismo, concluí três semestres e tranquei o curso por
motivos particulares. Esses motivos me levaram, também, a solicitar uma licença
sem remuneração do meu trabalho, por seis meses. Durante esse tempo, pensei e
repensei minha vida, fiz planos de me transferir para outro estado, pensei até
mesmo em ir morar em Manaus. Felizmente, após muito refletir, voltei ao trabalho,
mas resolvi não mais continuar com o curso superior (Ver capítulo "Natal e Ano
Novo 2003/2004").
Viagem a Porto Alegre
Participo do programa de milhagem da Varig. Em 2001, já possuía milhagem
suficiente para uma viagem dentro do Brasil. Resolvi então gastar minhas milhas em
uma viagem pelo sul do país, em março daquele ano. Gostei muito da cidade, mas
fiquei somente dois dias, pois não suportei o calor do verão no sul. De Porto Alegre
parti para Florianópolis, de ônibus. Amei a cidade. Conheci a Ilha de Santa Catarina,
a praia da Joaquina, o bairro Jurerê Internacional e outros locais fascinantes. Passei
uma noite e um dia naquela cidade. Em seguida, segui para Foz do Iguaçu, Paraguai,
Argentina, Rio de Janeiro, Vitória e Fortaleza. Foi uma viagem bem eclética.
Primeira viagem de avião de Junior
Meu filho Junior sempre me acompanhou em quase todas as viagens que fiz a
São Paulo, de ônibus e de carro. Um belo dia decidi fazer-lhe uma surpresa. Falei
que iríamos ao aeroporto ver os aviões. Era uma segunda-feira de carnaval, do dia 11
de fevereiro de ano 2002. Fui para a avenida Sete dar uma olhada na festa e me
divertir um pouco, antes de viajar. Quando faltava uma hora para o embarque,
marcado para 21 horas, saí correndo feito louco para não perder o vôo.
Ao chegar ao balcão da empresa, fui informado que o check-in tinha sido
encerrado e que os passageiros já estavam embarcados. Aleguei que estava com uma
criança e a atendente da Varig ligou para a aeronave e providenciou o embarque. Na
verdade, os passageiros ainda aguardavam no salão. Junior nem tinha tomado
banho ainda e eu vestia uma bermuda, camiseta e sandálias havaianas. Minha roupa
e a roupa de Junior estavam dentro de um saco plástico do supermercado
Bompreço.
Como eu não sabia que os passageiros do nosso vôo ainda aguardavam no
salão, entrei apressado pelo túnel de embarque e, no meio do caminho, fui
informado por um funcionário para retornar ao salão e aguardar o chamado.
Aproveitei então para ir ao sanitário trocar de roupa. O saco onde eu guardava as
roupas se rompera e eu precisava providenciar um novo saco para guardar meus
pertences. A solução foi pegar um saco de lixo do sanitário. Mas, após todos os
contratempos, embarcamos e fizemos uma viagem tranqüila. Junior ficou
maravilhado e muito contente. Não parava de repetir: "Pai, o senhor não disse que
viríamos ver aviões?", ao que eu respondia que era melhor estar dentro de um avião
do que apenas vê-los por uma janela de vidro. E ele concordava exultante, mas não
parava de perguntar quando iríamos ver os aviões.
Chegamos ao aeroporto de Guarulhos no horário previsto, ou seja, às 23
horas. Pegamos um ônibus executivo para o Centro da cidade e, ao chegarmos lá, o
serviço de metrô já tinha encerrado o expediente. Tivemos de pegar vários ônibus,
indo de um terminal para outro, até chegarmos à casa de meu irmão, no Jardim
Ângela, às 5 horas da madrugada. Evitava deixar Junior dormir, para que não se
tornasse mais um fardo a carregar, já que eu estava levando nossas malas, além do
saco de lixo cheio de roupas.
Viagem à Venezuela em 2002
Ganhei uma passagem de milhagem pela TAM e fui até Manaus. De lá, peguei
um ônibus que atravessou toda a floresta amazônica pela BR-174 até a cidade de
Pacaraíma/RR. Ali, tomei um outro ônibus e fui até Santa Elena de Guairén, na
Venezuela. Foi uma viagem maravilhosa, onde pude contemplar as lindas paisagens
naturais, índios e animais exóticos. Foram apenas três dias nesse roteiro. Retornei
logo a Salvador, partindo em direção a Jequié, para passar os festejos juninos com
meus irmãos.
Acidente com o Santana
Resolvi trocar meu Gol por um Santana. Viajei para Jequié num final de
semana, em setembro de 2002, e, na volta para Salvador, quase me envolvi num
acidente fatal, próximo à região da cidade de Santo Estêvão. Ao perceber que vinha
um caminhão na contramão, freei o carro, que derrapou para a pista oposta, indo em
direção a outro caminhão. Tentei desviar; o Santana derrapou na pista e "voou" em
direção ao matagal que havia ao lado. O carro correu alguns metros por dentro do
mato e parou num barranco. Respirei fundo, toquei em mim para ver se ainda estava
vivo e saí do carro contente e sorrindo, junto com Fernando Bingre, um amigo que
me acompanhava na viagem. O susto foi muito grande, mas me ajudou a aprender a
valorizar mais a vida.
Viagem a Cuba
Antes de ir a Cuba, procurei informações sobre o país na Internet, comprei
um guia e me informei sobre visto de entrada, hospedagem, moeda corrente, clima,
meios de transporte e tudo que um turista precisa saber para visitar um país
desconhecido. Devidamente informado, liguei para algumas agências de turismo e
enviei e-mails para outras, solicitando um orçamento de passagem aérea e
hospedagem. Várias agências responderam. Fiquei sabendo que os vôos partiam de
São Paulo, pela Cubana de Aviación ou pela Copair. Comparei os preços e escolhi os
três mais baratos. Liguei então para as agências solicitando que refizessem os
orçamentos, desta vez sem a hospedagem. Todas me prometeram enviar as
informações, que até hoje não chegaram, infelizmente. Fui pessoalmente a uma
terceira agência, onde a atendente me aterrorizou dizendo que não valia a pena ir a
Cuba. Alegou que era um local muito pobre e feio e que era uma viagem muito cara.
Disse, inclusive, que um amigo dela que esteve em Cuba passara por situações
terríveis e criticou a comida escassa, isso, aquilo e muito mais. Fiquei estarrecido
com o relato, principalmente porque o objetivo de uma agência de turismo é
"convencer o cliente a viajar", e não o contrário.
Resolvi, então, montar meu pacote por conta própria. Liguei diretamente
para a empresa de aviação e reservei minha passagem. A própria companhia aérea
se encarrega de enviar, via sedex, a passagem e o "cartão de turista", que é o visto
cubano. Tudo foi resolvido em apenas um dia. Informei-me sobre hospedagem
alternativa e encontrei as "casas de aluguel", que são casas de cubanos que podem
ser alugadas a turistas, mediante uma autorização prévia do governo federal do país.
Uma dessas casas era a de Miriam Crespo, em Havana, onde fiquei hospedado.
Liguei para a proprietária e fiz a reserva, pagando-lhe as diárias assim que cheguei à
sua residência. O custo foi muito mais barato do que o informado nos orçamentos
das agências de turismo.
No dia 5 de outubro de 2002, embarquei em São Paulo rumo a Havana.
Infelizmente, houve um problema com o radar do avião, o que obrigou os
passageiros a desembarcarem e ficarem hospedados num hotel por quase dois dias,
tudo pago pela companhia aérea de Cuba. Somente no domingo à noite conseguimos
embarcar. Não diretamente para Cuba, mas com destino a Buenos Ayres, pela
Aerolíneas Argentinas. De lá, pegamos um avião da Cubana de Aviación para
Santiago do Chile e, finalmente, do Chile para Havana. Cheguei a Havana ao meio-
dia de uma segunda-feira, dia 7 de outubro.
Transcrevo abaixo, algumas impressões sobre a viagem, escritas no dia 8 de
outubro de 2002:
“Estou na varanda da casa que aluguei, olhando o movimento da rua. Devem
ser oito horas da manhã. Poucas pessoas passam por aqui, que é um bairro
residencial. Acho que, a esta hora, todos já foram para o trabalho.
Ainda não conheci o centro e a parte nova da cidade. Tudo que conheci até
agora foi o que observei durante o percurso do carro que me trouxe do aeroporto,
que fica a mais ou menos 20 km daqui, além do que pude ver na caminhada que fiz
ontem, de uns cinco quilômetros. A cidade dá uma nítida impressão de simplicidade,
extrema simplicidade, tudo muito parecido com o subúrbio de Salvador,
especialmente com os bairros de Vista Alegre, Paripe, Alto de Coutos e Avenida
Suburbana, no que diz respeito à arquitetura, ao traçado das ruas, à falta de
conservação e manutenção das habitações e das praças e ruas em geral. A diferença é
que, no bairro onde me hospedei, as ruas têm um estilo americano, onde as casas,
afastadas umas das outras, têm jardim e cerca muito baixa. Uma parte da calçada é
gramada e outra possui uma trilha cimentada. A maioria das casas é térrea. E os
poucos edifícios que vi são bem antigos e muito parecidos com os prédios da Ilha de
São João (subúrbio de Salvador, próximo a São Tomé de Paripe). A diferença
primordial é que os prédios de Havana não têm grades na frente nem porteiros -
nem mesmo eletrônicos -, porque não há violência ou perigo de roubo ou assalto.
Fiquei impressionado com este fato, que se contrapõe à vida em Salvador, onde
vivemos presos atrás de grades, tal qual animais enjaulados.
Hoje, pelo menos até agora, a temperatura está amena, ao contrário da
temperatura de ontem que, de tão quente, tirou-me o ânimo de continuar a
caminhar e conhecer melhor o bairro. Pretendo passar o dia inteiro fora de casa,
tirando fotos e visitando lugares.
Aqui há três canais de televisão e a programação é bem diferente do que se vê
no Brasil, inclusive não há propagandas comerciais. As emissoras exibem quase todo
o tempo, programas educativos, aulas de idiomas, de História, Geografia e assuntos
relacionados a Cuba. Há um noticiário - o "Noticero" - que é transmitido em cadeia
pelos três canais durante a noite. O restante da programação é composto de shows
de músicos cubanos, balé e tudo o que se refere à cultura e à revolução cubana. À
noite, são apresentadas minisséries brasileiras duas vezes por semana (chamadas de
novelas pelos locais). São intercaladas com novelas cubanas. Atualmente estão
exibindo Chiquinha Gonzaga e Aquarela do Brasil, minisséries produzidas pela
Rede Globo. Notícias esportivas também fazem parte da programação, mas os jogos
ao vivo nunca são transmitidos, nem mesmo os da Copa Mundial. Não há satélites
nem antenas parabólicas em Cuba, para evitar a entrada de imagens e interferências
americanas nas TVs e rádios locais.
***
9 de Outubro de 2002, 11:35h
Estou em casa. Ontem fui à La Habana. Muito do que vi deixou-me chocado,
pasmo... Todas as informações e fotos que antes coletara sobre Cuba estavam muito
longe da verdadeira realidade cubana, que eu desconhecia totalmente. Observando
in loco, notei que a dureza da vida do povo e a pobreza do país são muito maiores do
que se possa imaginar. Tudo, absolutamente tudo, é antiquado e ultrapassado, desde
os carros até os edifícios. As coisas são velhas e mal conservadas. Em contraste com
toda a pobreza e decadência, porém, há alguns prédios em impecável estado de
conservação, principalmente aqueles onde funcionam as embaixadas. Também vi
carros importados de última geração e estranhei. Fui informado depois que esses
carros pertenciam a técnicos estrangeiros que trabalhavam no país. Dificilmente um
cubano comum poderia comprar um carro daqueles, devido ao altíssimo preço. Cabe
assinalar aqui que, de fato, há carros particulares, mas a maioria deles pertence ao
estado.
Tomei uma bebida cubana, muito tradicional e popular, o "Mojito"
(pronuncia-se "morrito"). É uma espécie de caipirinha: rum, limão, açúcar, gelo,
água mineral com gás e folhas de hortelã fina. Toma-se com um canudo. A bebida é
ótima, mas seu preço é salgado: OITO DÓLARES o copo!
Fui comer em um restaurante chinês, mais parecido com aquelas espeluncas
da Baixa do Sapateiro (Salvador/BA) do que propriamente com um restaurante.
Comi uma bisteca, um pouco de salada de pepino, uma colher de arroz e tomei uma
cerveja em lata. Preço: QUINZE DÓLARES.
Pelas ruas do bairro onde fiquei todos os dias passava um homem vendendo
pão, iogurte de goiaba e leite de soja. Este homem é o "mensageiro". Cada família
tem um limite máximo de pães para comprar, acho que UM pão por pessoa. Tudo
que se compra deve ser anotado na "libreta", uma espécie de caderneta da família.
Não podem ultrapassar o limite preestabelecido, para que todas as famílias possam
comprar, já que a comida é escassa no país.
Em uma de minhas caminhadas pelo centro de Havana, tomei uma água de
coco que me custou DOIS DÓLARES. O coco era pequeno, feio e murcho, do tipo
que eu jamais compraria se estivesse no Brasil. Tampouco um vendedor teria
coragem de colocar aquele fruto à venda.
Não comi carne bovina nem vi aonde poderia comprar. Fui informado de que
não deveria comprar carne nas ruas (não vi ninguém vendendo), pois o cubano que
me vendesse a carne poderia ser preso. É proibido o comércio de carne, exceto nas
"carnicerías" (açougues). O nativo que for pego pela polícia ou denunciado por
vender carne é preso. No entanto, nada acontece ao turista que a compra. As pessoas
vigiam umas às outras e qualquer deslize é logo denunciado. Em cada quadra dos
bairros há um "Mayor" (responsável), a quem todos os moradores devem dar
informações de tudo o que ocorre na vizinhança. Eles se reúnem uma vez por
semana. A dona da casa onde o turista se hospeda é obrigada a informar nome,
endereço e carteira de identidade de todas as pessoas que visitam o turista, sob pena
de sanção por parte do Estado, que poderá ser de uma simples advertência e
cancelamento da autorização para alugar a casa e até penas mais pesadas. Não
obtive informações sobre em que consistiriam essas penas.
Não há muitas lojas ou vendas/armazéns, nem supermercados. Há pequenas
lojinhas onde se vende de comida a roupa, tudo muito caro e da pior qualidade. Em
uma das "tiendas" (lojas) mais completas que entrei, encontrei somente coxa de
frango, fígado e moela de galinha, tudo de origem brasileira. O arroz era todo
quebradinho e custava OITO DÓLARES o quilo, mas mesmo assim era muito mais
barato que comer em restaurantes.
Os táxis são do estado; ônibus urbanos são raros. Os "camelos" - espécie de
carreta imensa adaptada para transportar pessoas -, os trens, os automóveis, tudo
pertence ao estado. Até mesmo as motos-táxi, umas parecidas com laranjas e outras
parecidas com aquelas motos americanas, com um side-car, pertencem ao estado.
Há ainda as bicicletas-táxi, que cobram mais barato. Estas eu não sei se pertencem
ao estado, mas sei que pagam taxas de licença para rodar como "táxi". Ninguém usa
cintos de segurança nos carros. A maioria dos automóveis é muito antiga, das
décadas de 40 e 50. Todos muito velhos, porém correm bastante. Por dentro, são
destruídos e desprovidos de peças, já que ninguém consegue encontrá-las para
reposição. O cheiro de gasolina, muito forte dentro desses carros, fazia com que eu
me sentisse mal. A maioria desses veículos é particular e seus proprietários os
utilizam como táxi, mediante uma licença do Estado. Outros transportam pessoas
clandestinamente, correndo o risco de serem pegos pela polícia e serem presos.
Os telefones públicos são raros. Para fazer uma ligação internacional é
necessário comprar um cartão que custa DEZ DÓLARES, ligar para a telefonista e
solicitar a chamada, que não dura mais de cinco minutos. Ligar de uma residência é
quase impossível, a menos que se conheça, e muito bem, o dono da casa, pois os
cubanos têm medo de perder suas linhas telefônicas, já que as chamadas telefônicas
podem ser gravadas pelo estado, por motivo de segurança.
Fui informado sobre a cesta básica mensal que cada família de quatro pessoas
tem direito a comprar, a preços baixíssimos, para garantir que TODOS possam
comer, pelo menos, o necessário. Os que têm dinheiro podem comprar de
particulares, a preços maiores.
1 kg de biscoito
20 l de iogurte
20 l de leite
1 kg de sal
12 kg de arroz
2,5 kg de feijão
6 kg de açúcar branco
4 kg de açúcar preto
5 caixas de cigarros (somente para maiores de 42 anos de idade)
1 l de óleo
2 pacotes de café
4 sabonetes (que devem durar até três meses)
1 creme dental
20 kg de gás de cozinha, a cada 20 dias
4 kg de frango
6 kg de peixe
1 kg de salsicha
1 kg de carne bovina
4 dúzias de ovos
frutas diversas
Mais informações sobre Cuba:
1) El Malecon - uma avenida extensa, que mede mais ou menos uns oito
quilômetros, que liga Habana Vieja (Centro Histórico) a Vedado (parte mais
moderna), repleta de casarões antigos - muitos precisando de reforma urgente. Boa
parte dos prédios antigos está sendo restaurada. As construções mais antigas e as
ruas transversais próximas ao centro de Habana Vieja lembram muito as casas e
prédios do Pelourinho, antes da reforma, e a atual rua 28 de setembro, ambos em
Salvador/BA. Não se pode comentar nada a respeito de política ou sobre o governo.
As pessoas se recusam a falar, com medo de que alguém as denuncie.
2) As emissoras de rádio funcionam em ondas médias e curtas, com uma
transmissão muito precária. A programação é baseada em músicas cubanas, política,
notícias nacionais e, uma ou outra vez, colocam uma música estrangeira,
principalmente brasileira, como Roberto Carlos e Alexandre Pires, em espanhol.
3) A frota de aviões da empresa cubana é formada por aeronaves antigas e
algumas com problemas no sistema de refrigeração.
4) Em minhas andanças, vi algumas embarcações no porto, que mais parecia
um cemitério de navios do que verdadeiramente um porto.
5) A última moda entre os cubanos é a camiseta "furadinha", de cores
berrantes, tipo azul, verde, laranja, rosa e vermelho.
6) Acesso à Internet é uma raridade, se não totalmente inexistente. Os
cubanos podem acessar "correio eletrônico", o que não pode ser chamado de
Internet, como é hábito no resto do mundo, uma vez que não há acesso a sites
estrangeiros e, talvez, nem mesmo a sites cubanos. Somente estrangeiros podem
acessar a Internet, a preços desestimulantes.”
Viagem para São Paulo com Gal e Eliana
No ano de 2003, viajei de ônibus, mais uma vez, para São Paulo. Dessa vez,
levei meu irmão Gal, sua esposa Eliana, minha sobrinha Paulinha e meu filho
Junior. Na viagem de volta, uma cena me chamou a atenção. Na verdade, eu já tinha
visto esta cena várias vezes, nas idas e vindas entre Salvador e Jequié. Mas eu queria
mostrá-la a Junior e Paulinha. Queria que vissem aquelas pessoas sentadas à beira
da rodovia, com as mãos estendidas. Paulinha perguntou o que elas estavam fazendo
naquela posição. Falei que estavam pedindo esmolas. E ela, surpresa, me perguntou
o que significava "esmolas"... Lancei um sorriso de cumplicidade a meu irmão e
minha cunhada, e expliquei a Paulinha do que se tratava. Afinal, tive uma boa
experiência na ação de pedir esmolas.
Natal e Ano Novo em 2003/2004
Devido a uma série de problemas particulares, conflitos, contradições e
pirações diversas, além de um assalto a mão armada que sofri, o final de ano de
2003 para 2004 não foi dos melhores, apesar de eu ter passado as festas de Natal e
Ano Novo rodeado de familiares em São Paulo. Ao retornar a Salvador, fui forçado
pelas circunstâncias a pedir uma licença não-remunerada de meu trabalho e a
trancar meu curso de Turismo na Faculdade São Salvador.
Passei oito meses enclausurado em mim mesmo, tentando sair de uma
profunda depressão, do poço escuro... Recorri até a ajuda profissional. Durante esse
período, não produzi absolutamente nada, nem sequer acrescentei uma vírgula a
esse livro, já em fase final. Pensei, repensei, caminhei mentalmente mil vezes o
Caminho de Santiago de Compostela, peregrinei pelas profundezas de minha alma
até que, finalmente, após várias injeções de doses de misericórdia, e também
auxiliado pela terapia TEATRO, com André Mustafá e Marília Galvão no comando,
fui sendo, aos poucos, trazido de volta à vida. E aqui estou, inteiro, completo, repleto
de milhões de idéias positivas e rejuvenescedoras, pronto para compartilhar com
quem quer que venha ao meu encontro.
Antes de sair desse estado de torpor, praticamente vegetei. Durante muitos
dias eu acordava pela manhã em pânico, triste e deprimido, apesar de estar tomando
remédios fortíssimos para combater a doença psicológica. Todas as manhãs eu ouvia
músicas de Enya, vindo de longe, como se o vento as estivesse trazendo para me
perturbar. Aquelas músicas eram as mesmas que eu ouvia ao namorar, ao buscar me
concentrar em meus trabalhos mentais e também quando eu queria ficar em paz.
Mas, nas circunstâncias em que eu as estava ouvindo, era muito contraditório. Elas
serviam para me deixar cada vez mais enclausurado e com medo de sair de casa.
Nesses momentos de solidão, eu pensava em morrer, em fugir da cidade, em
fugir das pessoas e de mim mesmo. Todos os meus compromissos sociais eu
cancelava sem motivo justo, ou simplesmente não comparecia a encontros com
amigos e parentes, para não conversar com ninguém.
Busquei, além de ajuda psicológica e psiquiátrica, ajuda espiritual. Freqüentei
o Centro Espírita Leopoldo Machado, no bairro da Boa Viagem, em Salvador, por
várias semanas. Ali, eu conseguia um pouco de paz espiritual, mas, quando
retornava para casa, o mundo caía de novo em minha cabeça. Fui, também, à
Federação Espírita, no Pelourinho, tomar "passes", que me acalmavam enquanto eu
estava na casa espírita.
Foram muitas noites de fuga, muita desilusão e falta de interesse de voltar à
realidade... Então eu decidi enfrentar o problema de frente. Parei de tomar os
remédios controlados, comecei a sair de casa, mesmo apavorado. Andei a pé por
muitas ruas e praias ditas perigosas, evitando olhar para trás. Meu medo era que
alguém estivesse me seguindo para me matar ou me causar um mal, mas eu
enfrentava esse medo para que ele não me controlasse mais ainda.
Aos poucos fui tomando confiança em mim, acreditando que eu poderia
sobreviver àquele pesadelo. Paulatinamente, eu percebia que a cada dia melhorava
um pouco mais... Até no teatro eu comecei a sentir que me concentrava mais e mais
nos textos e na interpretação. Após longos oito meses de terapia convencional e não-
convencional, me achei apto a voltar a trabalhar e a levar adiante meus projetos de
vida, que até então estavam estacionados.
Graças a Deus consegui me libertar do medo e da depressão, à custa de muito
esforço e de muita ajuda espiritual. Eu orei muito durante várias semanas, buscando
fortalecer o meu ego e minha alma, que tinha passado por uma experiência muito
difícil. Finalmente entrei em estado de consciência positiva e prossegui minha
jornada até hoje. Continuo em busca, cada vez mais, de um equilíbrio emocional e
espiritual.
Natal e Ano Novo em 2004/2005
Praticamente todos os anos eu viajava para São Paulo. E, nos finais de ano,
sempre levando minha mãe e mais algum irmão ou parente que ainda não tivessem
conhecido a maior cidade do Brasil. Em 2004, devido aos ensaios de uma peça
teatral que estrearia em breve nas casas de espetáculo de Salvador, preferi não
viajar. E foi um Natal diferente. Passei na casa de Dona Célia, em Monte Gordo.
Conheço dona Célia e sua família há mais de dez anos. Acabei por adotá-la
como mãe e seus filhos como irmãos. Mas, antes mesmo de me sentir irmão de seus
filhos, estes já me consideravam como tal. E, por incrível que pareça, foi o primeiro
Natal em que troquei presentes, como se estivesse no seio da minha verdadeira
família, o que, aliás, nunca fizera antes com meus irmãos de sangue. À meia-noite
em ponto, estouramos champanhe, fizemos a ceia, trocamos presentes e desejamos
uns aos outros muitas felicidades e saúde. Depois caímos todos na piscina, que
estava com sua boca azul e aberta, esperando para nos devorar naquela noite
maravilhosa.
Foi um Natal espetacular, regado a sentimento, carinho, respeito, amor, afeto
e positividade. Os participantes da festa: eu, Dona Célia e seus filhos Roque e Ivana,
suas netinhas Estéfane e Ariana, e os amigos: Edmar Mascarenhas, Isabela, Vera,
Everaldo, Edebaldo, Meire, Érika, Cris e o bebê Eriem, que vieram de Jacobina
especialmente para esta confraternização de final de ano.
Orientação Religiosa
Talvez não coubesse neste livro discorrer sobre "religião", já que o que se ouve
por aí é que "religião, futebol e política não se discute". Mas tenho muito medo do
que se esconde por trás de frases como essas que se perpetuam através da existência
humana e que acabam travando ou atrasando o fluir do pensamento e sua evolução.
Não me refiro aqui à minha orientação ou crença pessoal, mas a uma visão mais
abrangente do assunto. Estou colocando apenas uma impressão, enquanto ser único
e individual, que é, ao mesmo tempo, influenciável e influenciador.
Nasci na religião católica, com direito a missas, catecismo, primeira
comunhão, crisma e tudo mais, como a maioria dos brasileiros. Diz-se que todo
aquele que não tem religião é católico, o que é bastante discutível, já que há
"católicos" (os praticantes) e "católicos" (os não praticantes). Mas o mérito desta
questão eu deixo para os doutores no assunto.
O que me compete dizer aqui é que eu e todos da minha família (tudo
começou no Jardim do Éden, com meu pai e minha mãe) fomos católicos por muitos
anos. Por força da necessidade de comer e beber - necessidades básicas do ser
humano -, tivemos contato com o Espiritismo Kardecista, atraídos principalmente
pelas cestas básicas distribuídas aos freqüentadores do Centro Espírita Bezerra de
Menezes. Devido às circunstâncias da vida, problemas de saúde, financeiros e
outros, minha mãe acabou voltando aos terreiros de Candomblé, os quais já havia
freqüentado em sua juventude, segundo seus relatos. Mesclaram-se três religiões a
partir de então.
Na minha adolescência, em virtude dos conflitos existenciais, acabei me
perdendo em meio a tantas definições sobre o que era certo e o que era errado.
Busquei refúgio na Igreja Batista Monte Horebe e me "converti", amedrontado por
aqueles filmes que mostravam o destino dos "infiéis", que eram queimados no
mármore do inferno. Bíblia na mão, cantor cristão, harpa, livrinho de hinos e idas
diárias à igreja. Levava comigo a família inteira e os vizinhos mais próximos. Depois
"acordei" para outros horizontes e saí da igreja, arrastando todos os meus
SEGUIDORES de volta.
Transcorridos oito ou nove anos desde que passei a morar em Salvador,
conheci pessoas que professavam o Candomblé, que me convidaram para assistir a
rituais e participar de festas. E fui. Conheci várias "roças", e tinha sempre sensações
estranhas em quase todas as festas das quais participava: tremores, calafrios,
tonturas e arrepios. Fiquei receoso do que poderia resultar essa experiência e preferi
dar um tempo, fora das atividades, para pensar no assunto.
Por ocasião deste tema, gostaria de deixar registrado que minha mãe era um
pouco bruxa. Conhecia e fazia uso com sucesso de inúmeras plantas medicinais,
pressentia o que estava por vir, tinha visões de acontecimentos futuros, que
posteriormente eram sempre comprovados. Isso sempre nos deixou um tanto
perturbados, pois nos recusávamos a acreditar que ela pudesse possuir tais poderes.
Mas os fatos sempre se confirmavam. Tinha planos de escrever um livro, relatando
todo o seu conhecimento a respeito das plantas e de suas propriedades medicinais.
Fui adiando, adiando, e hoje me arrependo de não tê-lo escrito.
Para concluir a questão religiosa, minha mãe morreu espiritualista e foi
velada numa igreja batista. Minha irmã Valquíria se converteu ao protestantismo e
hoje freqüenta uma igreja batista. Minha irmã Ivonete é beata de carteirinha,
freqüenta e quase mora na igreja católica. Está mesmo se tornando uma freira. Os
demais irmãos freqüentam qualquer igreja que esteja aberta e na passagem dos seus
caminhos. E eu freqüento o Centro Espírita Leopoldo Machado, no bairro da Boa
Viagem, em Salvador, e a Federação Espírita da Bahia, no Largo São Francisco, no
Pelourinho. Mas, se for convidado para assistir a uma missa, irei; para participar de
um culto evangélico, participarei; para ir a uma festa de candomblé, estarei lá,
sempre com a maior boa vontade.
Atualmente
Trabalho ainda no Tribunal Regional do Trabalho, em Salvador. Valquíria
(Quira), minha irmã mais velha, mora há oito anos em Jequié com seu novo marido,
Nilson, com quem se casou recentemente. Em oito de novembro de 2004, Quira foi
submetida a uma cirurgia. Quando criança teve complicações de saúde que a
deixaram com seqüelas sérias. Tinha de ficar amarrada na cama para não cair, pois
se batia o tempo todo. Depois do tratamento médico, ficou boa. Mas o que ela nem a
família sabiam era que o tratamento não poderia ter sido interrompido. Resultado:
teve uma febre reumática e a bactéria causadora da doença se alojou na válvula
mitral esquerda do coração. Com o passar dos anos, começou a se queixar
freqüentemente de cansaço, falta de ar e outros distúrbios relacionados à respiração
e circulação sangüínea. Em janeiro de 2004, Quira resolveu entrar numa academia
de ginástica e, no teste de avaliação física, desmaiou. Procurou um médico
cardiologista especializado, que sugeriu uma valvuloplastia urgente.
Após vários exames nos hospitais de Salvador e uma espera de seis meses
para que o INSS concluísse o processo de licitação internacional e compra do
material a ser utilizado, finalmente conseguiu marcar sua cirurgia no Hospital Santa
Isabel para o dia 20 de setembro de 2004, que foi adiada dois dias antes, sem
previsão de nova data para sua realização. Enquanto a intervenção não acontecia,
Valquíria passava momentos difíceis, com apenas 10% da capacidade da válvula
mitral esquerda em funcionamento.
Em decorrência de várias complicações, foi atendida mais de três vezes na
emergência cardiológica do Hospital Santa Isabel, que sempre exigia um cheque de
R$ 2.000,00 como depósito antecipado para realizar o atendimento médico. E isso
depois de conseguirmos furar a barreira dos seguranças na entrada da emergência,
que só se preocupavam em perguntar, antes de qualquer coisa: "qual é o convênio
médico?". Por meio de informações diversas, descobrimos que o Hospital das
Clínicas (UFBA) também realizava esse tipo de cirurgia. E assim conseguimos
marcar uma outra data, 28 de outubro de 2004, que supúnhamos ser definitiva.
Porém, fomos surpreendidos, na véspera da cirurgia, com a notícia de que ela teria
de ser adiada, sem previsão de nova data, porque o INSS não tinha liberado o
material necessário ao procedimento, que custava mais de R$ 40.000,00.
Pesquisando na Internet, descobrimos o Instituto do Coração de Cachoeiro do
Itapemirim/ES, para onde encaminhei Quira, que viajou acompanhada de Nete,
nossa irmã, para se submeter à cirurgia. Viajaram no dia 4 de novembro. Quira ficou
hospedada em uma casa de apoio mantida pela comunidade cachoeirense e, no dia 8
de novembro de 2004, foi internada e submetida à intervenção cirúrgica, que, graças
a Deus, foi um sucesso total. Em questão de dias, o problema, que esperou durante
anos por uma solução, chegou ao fim.
Valdecy (China) mora hoje em Vitória da Conquista com o marido Roberto e
o filho Roberto Junior. Foram oito longos anos de espera por uma transferência da
Escola Agrotécnica Federal de Santa Inês/Ba, onde seu marido trabalhava, para o
Centro Federal de Educação Tecnológica de Vitória da Conquista/BA.
Valmir (Mi) mora em São Paulo, com a esposa Célia e os filhos Ramon e
Amanda. Também em São Paulo moram Valdir (Dida), com a esposa Raimunda e a
filha Jéssica, e Vitório (Tó), com a esposa Rejane e os filhos Vítor e Tiago. O
primeiro trabalha como porteiro de um grande condomínio e os demais como
chapistas em oficinas mecânicas.
Vivaldo (Gal) mora em Jequié, com a esposa Eliana e a filha Paula, e trabalha
como chapista em uma oficina mecânica. Nete, caçula e solteira, está fazendo
faculdade de Pedagogia em Jequié.
Creio que somos todos vencedores, sobretudo porque não fugimos à luta. De
tudo, ficaram lições que disponibilizo aqui como uma espécie de roteiro.
Roteiro para quem quer vencer na vida:
1. Traçar um objetivo real e plausível, para não se frustrar, caso não consiga
atingi-lo.
2. Fazer um plano de metas a serem atingidas, a cada dia ou a cada semana.
3. Caso não consiga concluir o plano diário ou semanal, verificar o que não
deu certo para tentar novamente ou mudar de plano.
4. Ter muita paciência, pois o dia-a-dia nem sempre é estimulante.
5. Ter muita fé naquilo que se propuser a fazer e persistir sempre.
6. Dividir sonhos e objetivos somente com aqueles que possam lhe ajudar a
concretizá-los ou, ao menos, incentivar-lhe e dar boas dicas.
7. Nunca se lamentar de uma situação difícil, nem usar os pontos negativos
para desistir ou diminuir a luta.
8. Falar muito pouco sobre os planos estratégicos para a sua caminhada.
9. Sempre dizer "não" a vendedores e promotores de vendas.
10. Evitar gastos desnecessários com festas, roupas e diversões.
11. Estudar e planejar, mesmo nos dias em que não houver o que comer, e
concluir a tarefa do dia a qualquer custo.
12. Não passar para a etapa seguinte sem antes concluir a atual.
13. Contabilizar erros, acertos, gastos monetários etc., a fim de fazer uma
análise crítica dos dados obtidos.
14. Adotar sempre uma atitude positiva diante da vida e deixar que esta
imagem transpareça ao olhar dos outros.
15. Não desistir, nunca.
CONCLUSÃO
O objetivo principal da existência humana é a evolução. Mas muitas vezes
evolução é confundida com conquista de bens materiais e conforto físico. Acredito,
no entanto, que seja um pouco mais que isso, e que o maior patrimônio que se pode
acumular com a experiência de vida na Terra é o patrimônio espiritual.
Antes de compreender que a vida é curta e efêmera, protestei e me revoltei.
Talvez por isso tenha sofrido alguns revezes relacionados à saúde, ao amor, à família
e a outros aspectos da vida.
Sempre lutando muito - e honestamente, diga-se de passagem -, consegui
superar a barreira da mendicância e passei de pedinte a esmoler. Mas a brutalidade
inata, ou adquirida, ainda permaneceu em minhas atitudes (e continua até hoje).
Isso ocasionou (e ainda ocasiona) muitos sofrimentos, mas, atualmente, já não com
a mesma intensidade dos tempos passados.
Fui aprendendo, com a experiência, que doar não era o bastante; o ato da
doação deve ser precedido por uma verdadeira vontade de doar. Tentei, e tento
ainda, praticar a doação com desprendimento, sem culpa, sem querer barganhar
com os céus. E, com isso, tenho percebido que minha vida vem se transformando
para melhor, à medida que avanço nessa prática. Essa doação não deve ser
necessariamente compreendida com o ato de retirar algo físico de meu patrimônio
para dá-lo a outrem. Deve ser compreendida, sobretudo, como o ato de doar
sabedoria, aconselhamento, atenção, tempo, um olhar de cumplicidade, um ombro
amigo...
Após esse estágio de quarenta anos de vida, tornei-me uma pessoa mais
humana, mais verdadeira, mais tolerante e mais polida, apesar de ainda estar muito
longe do ideal. Mas já é um bom começo. Quem sabe na próxima encarnação a
evolução aconteça mais rapidamente...
HISTÓRIAS BIZARRAS
Jequié/Ba
Mordida no Braço de Dida
Uma vez estava com ele, recém-nascido, no colo, andando pelos arredores da
casa, mordendo-lhe a camisa recém-trocada por minha mãe. E eis que meu dente
pegou no braço do menino, que começou a gritar desesperado. Minha mãe veio pra
me bater, mas, como não sabia o que havia ocorrido ao certo, desistiu. Nem
percebeu a marca do meu dente no braço dele...
Choque elétrico
Uma vez estávamos eu e minha mãe pedindo esmola nas ruas. Ela entrou
numa lanchonete, onde havia um balcão de vidro com uma lâmpada para iluminar
as mercadorias. A lâmpada ficava na parte externa do balcão e, ao lado dela, havia
um bocal sem lâmpada, no qual minha curiosidade infantil levou-me a enfiar o dedo.
Tomei um choque elétrico brutal, que me fez cair ao chão e chorar muito. O pessoal
da lanchonete me socorreu. Passaram manteiga em meu dedo e me deram sorvete
para acalmar. A lanchonete ainda fica no Maringá, perto de um posto de gasolina,
guardando minhas histórias de menino.
Pegador de Menino e Tirador de Sangue
Uma das pérolas do folclore popular, alimentada pela ignorância das pessoas,
era a lenda dos "pegadores de menino" ou "tiradores de sangue", que supostamente
andavam pelas ruas dos bairros pobres tentando atrair crianças com balas e doces,
para depois seqüestrá-las e tirar seu sangue. Segundo os mais velhos, havia uma
"carneira" no cemitério da cidade, que sangrava o tempo todo, e o sangue tirado das
crianças seria usado para lavar essa carneira, numa espécie de ritual para purificar
pecados e maldades do morto, que seria um bruxo ou algo que o valha. Eu ouvia
essas histórias tanto em Jequié quanto na fazenda onde morei. Dizia o povo que
esses malfeitores colocavam as crianças em sacos grandes e as levavam para bem
longe. Este argumento era usado, principalmente, para amedrontar os meninos,
desestimulando-lhes a vontade de sair de casa. Na fazenda onde vivi dos meus sete
aos doze anos, cansei de ouvir essas histórias, e só depois de muitos anos consegui
estabelecer um paralelo entre o folclore e a realidade. Os homens da SUCAM - atual
Fundação Nacional de Saúde, empresa governamental que realiza exames de sangue
e também investiga se há focos de dengue nas residências - encaixavam-se
perfeitamente nas características dos "pegadores de menino" e dos "tiradores de
sangue". Por esta razão, eram muitas vezes mal compreendidos pela população.
Lobisomem
Tínhamos muito medo de lobisomem, quando eu era criança e toda noite
aparecia alguém unhando a porta e a janela da casa de Amanda, onde morávamos.
Minha mãe dizia que era "ele", querendo pegar crianças sapecas... Eu ficava
apavorado, acreditando ser a mais pura verdade. A lenda do lobisomem é muito
comum nas cidades do interior.
Meu anel preferido
Junto à casa de Amanda, onde morávamos, havia a casa da Ana de Antônio
Cego. Eu e meus irmãos costumávamos brincar por lá com os filhos dela. Certa vez,
apareceram na casa umas moças que tomaram meu anel. Era um anel bem simples,
sem valor algum. Mas era meu, e eu o tinha no dedo há muito tempo. Porém, a
forma com que me roubaram o anel, forçando-me a tirá-lo do dedo, marcou-me para
sempre. E jamais me esquecerei desta mágoa e deste dia.
Achei um dinheiro
Quando tinha meus doze anos, costumava ir à feira livre com meu pai. Num
belo dia de sorte, na avenida Franz Gedeon, encontrei uma cédula de dez cruzeiros.
Estava molhada, estirada na calçada. Eu peguei a cédula e mostrei a meu pai, que a
guardou com muito cuidado no bolso direito, para que não fosse destruída pelos
movimentos da perna da calça. Pelo tanto de compras que ele fez com aquele
dinheiro, a nota devia valer bastante.
Carrinho de rolimã
Todos os garotos de minha idade, ou mais velhos, possuíam um carrinho de
rolimã. Era uma tábua com duas rodinhas atrás e uma na frente, onde cada um se
sentava e era empurrado por alguém nas calçadas ou no asfalto. Muitos acidentes
aconteciam quando algum menino caía ou quando o carrinho quebrava. Com
rolamentos que achei nos lixos das oficinas mecânicas, construí meu carro de
rolimã. Meus irmãos ficavam com muita raiva, e com razão. Obrigava-os sempre a
me empurrar rua acima e rua abaixo no carrinho, mas, quando chegava a minha vez
de empurrá-los, eu sempre dava uma desculpa para escapar daquele encargo.
Caminhada até a Barragem
Nunca gostei muito de ficar em casa parado. Por isso, em certa ocasião,
chamei meus irmãos Mi, Tó e Dida para fazermos uma caminhada de Jequié até a
Barragem de Pedras, situada a mais ou menos uns trinta quilômetros do centro da
cidade. O sol estava escaldante e, no meio do caminho, a fome apertou. Sem muitas
opções, fomos comendo tudo o que encontrávamos pela estrada, de casca de
melancia a laranja estragada. Na volta, ainda subimos no Morro do Totonho, onde
ficam instaladas as torres de transmissão de TV e rádio da cidade. Resultado:
chegamos desidratados em casa e a maioria de nós teve febre e vômitos.
Acidentes com Nete
Quando Nete - minha irmã mais nova - era criança, comeu folhas de uma
planta venenosa que minha mãe tinha dentro de casa. Era cocó, uma planta verde
com pintas brancas espalhadas pelas folhas. Ela ficou espumando e foi levada ao
hospital passando mal. Mas, graças a Deus, o socorro foi rápido e eficiente e Nete
sobreviveu a mais uma perigosa aventura infantil.
Mais uma aventura de Nete: quando tinha dois anos de idade, bebeu água
sanitária Q-Boa. Não me lembro de maiores detalhes desse outro incidente em que
Nete se meteu. Só sei que ela passou muito mal e foi levada ao hospital regional para
ser medicada. Ficou internada e depois foi liberada. Depois desse episódio, nós a
apelidamos de "Q-boa". Ela ficava muito chateada quando a chamávamos assim.
Roubo de doces
Lembro de uma vez que fui ao Supermercado Cardoso comprar um doce.
Tinha dinheiro somente para um pacotinho. Abri um pacote e comi a metade, depois
o joguei na prateleira e peguei outro pacote inteiro. Fui direto ao caixa, todo
desconfiado, mas, antes de pagar pelo pacotinho de doce, o segurança do mercado
apareceu com o outro que eu tinha furado e jogou em cima do guichê do caixa, para
que eu pagasse. Como o dinheiro não era suficiente para dois pacotes, deixei os dois
no mercado e fui em casa buscar mais para pagar e resgatar os doces. Até hoje não
voltei nem para pagar nem para receber o pacote de doce, mas aprendi a lição.
A calça de Memésio
Memésio, meu padrinho, era gordo como uma baleia. Uma vez, ele deu
algumas roupas usadas para que minha mãe cortasse e fizesse roupas para nós. Para
se ter uma idéia do tamanho do homem, uma calça dele, somente, se transformou
em três calças para mim e ainda sobrou tecido.
Miguel, o filho de Odília
Havia um campinho de bola em frente à casa em que morávamos, onde os
moleques sempre jogavam baba no final da tarde. Eu, perna de pau de carteirinha,
só olhava. Um dia, Miguel, o filho de Dona Odília, chutou a bola com muita força em
cima de mim. Reagi, dando-lhe uns bons tabefes e murros. Esta foi uma das
raríssimas brigas em que me meti contra outros rapazes. Depois fizemos as pazes.
Em outra oportunidade, nós nos encontramos num jogo de futebol. Jogávamos em
times diferentes, para sorte dele. Eu nunca conseguia passar a bola para os
jogadores do meu time, mesmo estando eles vestidos com camisa igual. Sempre tive
problemas de coordenação. Conclusão: meu time acabou perdendo e eu fui expulso
porque, de uma forma ou de outra, acabava ajudando o time adversário.
Caderninho de gastos
Durante muitos anos usei um caderninho onde anotava todas as minhas
transações comerciais, ou seja, tudo o que envolvia gastos e ganhos de dinheiro. Era
uma forma de controlar meu orçamento. Na prática, não deixava de ser uma
contabilidade rudimentar, pois, através desses lançamentos, tinha idéia do quanto
possuía, do quanto poderia gastar e com o quê. Um simples picolé que eu comprasse
ficava ali registrado, para não me esquecer que, naquela semana, eu já tinha
chupado um picolé e não deveria comprar outro, incorrendo assim em "gasto extra"
com guloseimas. Foi um tempo muito difícil, mas aprendi a controlar minhas
modestas finanças. Hoje já não há necessidade dessas anotações, tampouco possuo
planilhas eletrônicas para acompanhar minha vida financeira. A própria experiência
de vida me deu bases para este controle, onde evito não me envolver em
empreendimentos mirabolantes ou em compras de bens desnecessários, que possam
comprometer meu equilíbrio financeiro.
A cabra
Minha mãe ganhou uma cabrita de presente e levou para criar em casa cujo
quintal não era murado. A pobre da cabrita tinha que viver amarrada a uma corda
durante todo o tempo. Quando o sol estava muito quente, minha mãe colocava-a
dentro de casa, fazendo o mesmo também à noite, para que a cabra dormisse
protegida dos ladrões que moravam no bairro Pau Ferro. Em fotos de família ainda
podemos ver minha mãe sentada em sua cadeira de rodas com a cabra no colo.
Feira do Cardoso
Minha mãe pedia esmolas em frente ao Supermercado Cardoso, no Centro da
cidade de Jequié. Todos os dias, um de nós a levava até a porta do supermercado.
Isso fez com que ela passasse a conhecer o dono do estabelecimento, que passou a
doar-lhe uma cesta básica por semana. Esta cesta de comida sustentou a família
inteira por muitos anos.
Pinduca
Na época em que moramos no bairro Pau Ferro, por volta de 1987, nosso
gosto musical era muito influenciado pelo que ouvíamos na casa dos vizinhos.
Assim, nós nos encantamos pelas músicas de Pinduca, tocadas nas radiolas de quase
todos os moradores do bairro. Até encomendei uma edição antiga do disco de vinil
dele, numa empresa que fazia regravações de sucessos antigos. A sede da empresa
era em São Paulo e o disco foi enviado pelo correio. Foi uma festa. Ouvíamos esse
disco todos os dias, repetidamente. E, nos finais de semana, colocávamos as músicas
de Pinduca para tocar na radiola, na porta de casa, do lado de fora. Era uma radiola
pequena, daquelas com uma tampa que, quando fechada, se transformava numa
espécie de maletinha. Tão pequena que tínhamos de abri-la completamente para que
o disco pudesse tocar. Nesse bairro, onde somente moravam pessoas muito pobres,
o costume era colocar o som do lado de fora. Assim, toda a vizinhança era obrigada a
ouvir as músicas que estivessem tocando na casa de alguém.
Percevejos
Durante toda a nossa vida fomos perseguidos pelos percevejos. Somente
quando passamos a morar em nossa primeira casa própria, no loteamento Itaygara,
começamos a nos livrar dessa praga. Desde criança convivi com os percevejos. Eles
nos acompanhavam por todas as casas onde morávamos. Ou levávamos os nossos,
ou encontrávamos percevejos novos nas casas onde passávamos a habitar. Era uma
coisa terrível. Eu tinha uma espécie de alergia a percevejos e quase não conseguia
dormir quando atacado por eles. Mais terrível ainda era o mau cheiro que deles
exalava quando os espremíamos para matá-los. As casas onde morávamos sempre
ficavam com as paredes pintadas de sangue, pois os matávamos onde quer que
estivessem. Mas, por mais que os matássemos, nunca conseguíamos nos livrar
desses insetos horrorosos. Entranhavam pelas frestas das paredes e dos móveis,
escondendo-se da claridade do dia. Só apareciam à noite, para infernizar nossa vida
e sugar nosso sangue. Nessa casa do Mandacaru, eles começaram a desaparecer.
Havia na sala um sofá velho, que tinha somente a carcaça de madeira e um colchão
deformado que servia de almofada. Esse sofá velho servia de cama para nós e para
um cachorro chamado Rex, que criávamos. Todos os dias, minha mãe colocava essa
carcaça ao sol para que os percevejos começassem a sair das frestas do sofá, pelo
efeito do calor. Em seguida, ela jogava água fervente sobre o sofá e matava centenas
deles. Com o tempo, os percevejos foram ficando cada vez mais raros, até
desaparecerem por completo de nossas vidas, após mais de 25 anos de perseguição.
O beliche que Paula construiu
Nesta casinha do bairro Mandacaru o espaço era exíguo e cada centímetro
muito importante. Como não havia onde colocar camas para todos, minha mãe
acabou "construindo" um beliche com as camas velhas que possuíamos. Amarrou
com paus e arames uma cama sobre outra e fez um beliche até o teto. Certa noite, Tó
acordou gritando, desesperado, dizendo que tinha um olho nas telhas a lhe
espreitar. Ele estava dormindo no último dos beliches, que ficava quase colado ao
telhado. A luz da lua passava pelo buraco de uma das telhas, fazendo-o imaginar que
seu reflexo era um olho.
Clínica São Vicente
Uma ocasião, Nete, nossa irmã caçula, foi internada na Clínica São Vicente,
com febre e diarréia. Minha mãe voltou para casa e reuniu toda a família. Pegou
lençóis, cobertores, sacolas de roupas e mais alguns apetrechos e levou-nos todos
para lá. Chegando à clínica, entramos e nos acomodamos na enfermaria onde minha
irmã estava internada. Tomamos banho nos banheiros da clínica, jantamos,
assistimos TV e depois nos acomodamos nas camas destinadas aos pacientes
internados. A festa não durou muito. Quando as enfermeiras perceberam que havia
somente uma pessoa doente e que as demais faziam parte da família, expulsou-nos
de lá.
Penico de bosta
Meus irmãos contam uma cena muito cômica. Não tínhamos sanitário em
casa, até porque não havia esgotamento sanitário no recém-lançado bairro Itaygara,
onde morávamos. Assim, cada morador se virava como podia para satisfazer suas
necessidades fisiológicas. A maioria usava o matagal próximo à sua casa ou então
enchia sacos de bosta e jogava-os no mato - os chamados "aviões". Vitório, um de
meus irmãos, preferia cagar atrás do muro que fizemos para cercar a casa. Tínhamos
um penico, que era usado durante toda a noite e despejado no mato na manhã
seguinte. Só que todos se recusavam a descarregar o penico, alegando não terem
feito uso do dito-cujo durante a noite. Sobrava para minha mãe, como sempre, que
despejava o penico por cima do muro. Num belo dia, quando Vitório estava
agachado atrás do muro, cagando compenetradamente, o penico foi despejado
subitamente em sua cabeça. Ele ficou furioso. Xingou feito louco e ainda teve que
caminhar quase um quilômetro até o rio de Contas, para tomar banho e tirar o fedor
de bosta do corpo.
Escorpiões
Nossa casa foi a primeira a ser construída no bairro Itaygara e era cercada de
mato por todos os lados, exceto na frente. E o loteamento era infestado de
escorpiões. Tomávamos todas as precauções possíveis, mas não pudemos escapar da
fatalidade: Quira, ainda grávida de Murilo, foi picada por um escorpião e levada às
pressas para o hospital regional. Semanas mais tarde, minha mãe foi a vítima
seguinte do inseto. Felizmente, o socorro foi rápido e eficiente, em ambas as
oportunidades, o que ensejou recuperação rápida tanto de minha irmã quanto de
minha mãe.
China em Salvador
China foi uma das pessoas da família que menos conviveu dentro de casa com
os irmãos, já que passava a maior parte de seu tempo trabalhando em casas de
família. Se não era em Jequié, era em Salvador. Quando foi morar na casa de uma
moça na Politeama, China enviava-nos muitas cartas, dizendo que se sentia muito
triste e que não agüentava viver longe da família. Falava que era tratada a pão e água
na casa onde vivia e das situações constrangedoras por que tinha de passar.
Queixava-se que, quando as visitas a confundiam com alguém da família, tratavam-
na muito bem. Mas, tão logo descobriam que ela era apenas uma empregada
doméstica, mudavam radicalmente sua forma de tratamento.
Vitório e Dida em Ilhéus
Vitório não estava gostando muito do salário que recebia na oficina mecânica
onde trabalhava em Jequié, por volta do ano de 1992, e resolveu ir para Ilhéus tentar
vida nova. Levou apenas uma sacola plástica com um par de bermudas e outro de
camisas, além de uma sandália havaiana e objetos de uso pessoal, como escova e
pente. Tinha somente o dinheiro da passagem de ida.
Contou-nos depois que, ao chegar a Ilhéus, arrependeu-se e queria voltar para
Jequié. Mas não podia, pois não tinha dinheiro da passagem. Disse que pensou que
a cidade era apenas a rodoviária e alguns barracões que estavam enfileirados ao
longo da rodovia. O centro da cidade fica distante dali, e quem chega à cidade não
tem idéia do quanto é linda. Ele ficou por ali mesmo, conseguiu um trabalho em
uma oficina mecânica e se instalou na cidade. Um mês depois, Dida resolveu
também viajar para Ilhéus. Os dois sempre viveram muito próximos, até mesmo por
causa da semelhança de idade e de profissão.
Meses depois, fui visitá-los na nova cidade. Fiquei morrendo de pena dos
dois. Dormiam dentro de uma carcaça de carro, que nem janela possuía. Era algo
desumano. Tive uma conversa séria com eles, mas não deixei transparecer que
estava com dó, pois sabia que aquele sofrimento, de alguma forma, significava um
estágio necessário na vida deles e que logo passaria. Além disso, aquela situação
poderia vir a se transformar em mais um estímulo para que continuassem a lutar
por uma vida melhor.
Em outra oportunidade, visitei-os novamente. Notei que, desta vez, tinham
passado a um estágio superior: moravam dentro de um barraco de madeira, com
fogão, cama e alguns pratos. Ali também moravam centenas de guaiamus, que à
noite saíam dos buracos no chão para devorar qualquer tipo de comida que
encontrassem. Chegavam até a lascar os sacos de feijão ou de outros cereais que
estivessem em local próximo ao chão.
Salvador/Ba
Joanita
Conheci Joanita durante um curso que eu fiz em Salvador. Eu ainda morava
em Jequié, nessa época. Ela trabalhava da 14ª Vara do Trabalho como secretária de
audiências. Procurava-a sempre que viajava a Salvador, e passávamos horas
conversando. Joanita dizia que tinha muita vontade de engravidar, mas temia ter
problemas no parto, pois sofria de anemia falciforme. A vontade foi maior que o
medo, e, após inúmeras tentativas, ela engravidou e morreu de parto. Senti bastante
sua morte. Joanita foi uma das pessoas com quem mais me identifiquei no trabalho.
Era uma funcionária muito dedicada; não tinha tempo nem para fazer as compras de
casa durante o dia, era obrigada a ir aos mercados à noite. Por causa de tanta
dedicação, não viveu a vida, só trabalhou. Outra lição para minha vida: aproveitar as
oportunidades, me divertir, visitar amigos e parentes, mesmo quando o tempo
parecer escasso. A vida passa muito rapidamente. Muita gente espera para vivê-la
depois de se aposentar. Esquecem-se de que nem todos conseguem chegar à
aposentadoria, ou que podem chegar lá com várias limitações impostas por
problemas de saúde.
Primeira viagem de avião
Morando em Salvador, costumava sempre viajar para o interior,
principalmente nos feriados prolongados e durante as férias. Tinha uma imensa
vontade de viajar de avião e resolvi realizar meu desejo. Fui para Ilhéus de ônibus e
voltei de avião. O vôo durou apenas vinte minutos, mas marcou toda a minha vida.
Não senti medo algum, sempre soube que aquele era o meio de transporte mais
seguro do mundo. Mas que deu um friozinho na barriga... Ah, isso deu. Este sonho
foi realizado em dezembro de 1993.
A terceira moto
Comecei a pagar um consórcio de moto, na intenção de usá-lo como
investimento para futuramente comprar um outro apartamento. Não gostaria de
viver para sempre num prédio com permanentes problemas de elevadores e de
abastecimento de água, como era o caso do Edifício Crescenciano dos Santos. Ao ser
contemplado, fui buscar o veículo. Mas não tive coragem de pilotar a moto até
minha casa. Paguei uma pessoa para trazê-la. Chegando ao edifício, subi para o
sexto andar com a moto no elevador. Foi um trabalhão danado, mas acabei sendo
bem-sucedido em mais esta proeza.
Iraci
Conheci uma colega de trabalho chamada Iraci. Ela sempre foi muito
engraçada. Chegava ao setor onde trabalhava, animando o ambiente com suas
expressões personalizadas: "Qual o significado da mesma?", "Algo a declarar?", "Não
se afobeis". Iraci é uma pessoa muito interessante e de um coração enorme. Ela é
muito conhecida no TRT da 5ª Região, pela sua alegria e pelo alto astral que espalha
por onde passa. Trabalhou por muitos anos ali e depois se aposentou. É a única
pessoa em cuja casa eu me sinto como se estivesse em minha própria. Nossas
famílias se conhecem e todos nós nos sentimos como se fôssemos velhos conhecidos.
Sempre que posso vou à sua casa bater papo ou comer um belo prato de feijoada,
que ela sabe preparar como ninguém.
Pagando micos
Certa feita conversava com alguns colegas de trabalho sobre comida, café e
coisas afins. Falava que gostava de tudo, exceto de café "resquentado". O pessoal
começou a gargalhar, corrigindo-me em seguida. Mas eu estava convencido de que
era assim mesmo que se falava, aprendera o termo em Jequié. Fui ao dicionário, tirei
minha dúvida e paguei mais um grande mico.
Em uma outra conversa, desta vez sobre festas de aniversário, começamos a
falar de festa de quinze anos, e comentei que ainda não tinha pensado na festa de
quinze anos de meu filho. Mais uma vez fui alvo de risos. Ensinaram-me então que
não era comum rapazes fazerem festa de quinze anos, quando muito de dezoito.
VALDECK ALMEIDA DE JESUS é funcionário público federal, nascido em 15
de março de 1966 em Jequié/BA, onde viveu até os seis anos de idade, quando foi
residir na Fazenda Turmalina (região de Itagibá/BA), onde continuou a estudar até
os 12 anos de idade.
Aluno exemplar, retornou a Jequié/Ba para se matricular na 5ª série do
primeiro grau. Ingressou na Faculdade de Enfermagem da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia em 1990, desistindo de continuar o curso. Prestou vestibular para
Letras, na mesma universidade, no ano seguinte, onde concluiu apenas o primeiro
semestre.
Por motivos financeiros e outros, resolveu se transferir para Salvador, onde
reside desde fevereiro de 1993. Na capital, fez cursos de Informática, Relações
Humanas e Fotografia. No exterior, fez ainda um curso de Espanhol, em Madri, por
um período de dois meses, e um curso intensivo de Inglês, em Nova York, também
com duração de dois meses, complementando os três anos do curso de Inglês
iniciado em Salvador.
Em 2003, iniciou o curso de Turismo, concluindo três semestres, na
Faculdade São Salvador, e um cursinho de teatro por um ano e meio.
Suas habilidades na área literária valeram Menção Honrosa, em 1989, no 1°
Concurso Nacional de Poesia, promovido pelo Instituto Internacional da Poesia de
Porto Alegre/RS e no Concurso Literário Oswald de Andrade, promovido pela
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, em 1990, na cidade de Jequié/BA.
Possui poemas publicados nas antologias:
Poetas Brasileiros de Hoje -1984, Editora Shogun Arte, Rio de Janeiro, 1984.
Transcendental, Editora Gráfica da Bahia, Salvador, 1986.
II Antologia Cultural: 500 Anos de Língua Portuguesa no Brasil, Editora
Clube de Letras, Barra Bonita/SP, 2005.
Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos, 14º volume, Câmara
Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro, 2005.
Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos, 15º volume, Câmara
Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro, 2005.
Letras Libertas - Contos, Crônicas e Poesias - Vol 2, Editora Ilha das Letras,
Santa Catarina, 2005.
XV Concurso Internacional Literário de Verão, Editora Agiraldo, São Paulo
2005.
Sangue, Suor e Lágrimas, Arnaldo Giraldo Editor, São Paulo, 2006.
Palavras que Falam, Editora Scortecci, São Paulo, 2005.
Todas as Formas de Amar, Casa do Novo Autor Editora, São Paulo, 2005.
O Amor na Literatura, São Paulo, Casa do Novo Autor Editora, 2005.
Livro de Ouro da Poesia Brasileira Contemporânea, Câmara Brasileira do
Jovem Escritor, Rio de Janeiro, 2005.
VII Antologia Nau Literária, Komedi Editora, Campinas/SP, 2005.
Poetry Vibes, Editora Poetry Vibes, Ohio, USA, 2005.
20 Anos de Poesia - Caderno 32, Oficina Editores, Rio de Janeiro, 2005.
Pérgula Literária - VII, Editora EVSA, Rio de Janeiro, 2005.
Amor, Sublime Amor, Editora Litteris, Rio de Janeiro, 2006.
Ensaios Poéticos, Academia Virtual Brasileira de Letras, Rio de Janeiro,
2005.
X Coletânea Komedi, Editora Komedi, Campinas/SP, 2006.
Participação no V Fórum Social Mundial, em Porto Alegre/RS - 26 a 31 de
janeiro de 2005.
Expositor, como escritor independente, da VII Bienal do Livro da Bahia, em
setembro de 2005, em Salvador/Ba.
Fundador e presidente do Primeiro Fã-Clube Oficial do Jean Wyllys, cujo site
é www.jeanwyllys.com.
Livros publicados:
Heartache Poems. A Brazilian Gay Man Coming Out from the Closet,
Editora iUniverse, New York, USA, 2004.
Feitiço Contra o Feiticeiro, Editora Scortecci, São Paulo 2005.
Jamais Esquecerei do Brother Jean Wyllys, juntamente com Edmar José
Mascarenhas da Silva e Karina Schill, Casa do Novo Autor Editora, São Paulo, 2005.
Memorial do Inferno. A Saga da Família Almeida no Jardim do Éden, 1ª
edição, Editora Scortecci, São Paulo, 2005.
1ª Antologia Poética Valdeck Almeida de Jesus, Casa do Novo Autor Editora,
São Paulo, 2006.
Tem poemas publicados em jornais de grande circulação da capital e do
interior do estado da Bahia, além dos jornais de Brasília/DF; Colaborador, desde
1985, do jornal A Prosa, Brasília/DF.
Organizador do projeto Antologia Poética Valdeck Almeida de Jesus, que
publica e divulga poetas do Brasil inteiro, em edição anual, já no segundo ano.
Membro da Federação Canadense de Poetas desde 2004 e da União Brasileira
de Escritores desde 2005.
Participante ativo, nos anos oitenta, da Diretoria Regional do Partido
Comunista do Brasil, em Jequié/BA, em 1987 foi eleito o primeiro diretor de
imprensa do Grêmio Estudantil Dinaelza Coqueiro, do Instituto de Educação Régis
Pacheco, sendo o fundador do jornal Jornada Estudantil.
Poeta e escritor, filho de Paula Almeida de Jesus e de João Alexandre de
Jesus, já falecidos.
E-mail de contato: [email protected]
(texto para contracapa)
O livro narra a vida de um brasileiro que nunca parou de lutar por seu lugar
ao sol. Valdeck, rapaz pobre, cuja mãe era paralítica e o pai portador de várias
enfermidades que o impossibilitavam de trabalhar, nasceu no interior da Bahia. Sua
família não tinha casa própria nem renda suficiente para o sustento de um casal
pobre com oito filhos. Viveram precariamente em casas de aluguel, sem móveis, sem
conforto, sem sequer água encanada e energia elétrica.
O grande amor de uma mãe sofrida, Paula Almeida de Jesus, manteve essa
família unida, até que cada um dos filhos pudesse sobreviver por si só. Órfão de pai,
Valdeck, protagonista desta obra, viu-se obrigado a assumir a família aos 16 anos de
idade, tendo vivido e trabalhado para sustentar e educar os irmãos. Contra todas as
apostas, estudou, venceu na vida e hoje ocupa um cargo federal, tendo seus esforços
reconhecidos.
Essa família de brasileiros e lutadores continuou unida, como era da vontade
de uma mãe valente, mesmo após sua morte, em junho de 2000. E hoje todos os
membros da família Almeida, apesar de suas vidas atribuladas ou da distância que
os separa, encontram sempre uma data no calendário para se visitar e estar juntos,
compartilhando momentos de alegria e tristeza.
Mais do que uma história real, esta obra relata um exemplo de vida que pode
servir de espelho, inclusive, para muitos jovens das nossas grandes cidades
brasileiras, que, ao invés de estudar e acreditar em seus sonhos optam por se
enveredar pelos caminhos das drogas e da violência.
Espero que vocês se vejam um pouco neste livro assim como eu me vi nele.
Tenham uma boa leitura e saúde a todos.
Lázaro Ramos