vestígios do tempo
TRANSCRIPT
Vestígios do
tempo
Não é bombeiro, não é policial, não é
psiquiatra, não é médico, mas é tratado
como fonte de socorro. Os momentos
difíceis são todos diluídos em sua eficiência
desconhecida. Ele tem algo que suga nosso
desejo e o arredonda todo para si. Não
reclamos dos métodos exigidos para tê-lo.
Pagamos o que for preciso – até mesmo
para saciar um vício por vezes
descontrolado.
Consumimos o tanto necessário para que
não sintamos nosso corpo, nem nossa
mente, nem nosso controle. Ele é
obediente no que se propõe. Outros viés
talvez são procurados, mas ele sempre será
o atalho mais breve.
O que mais admiro no álcool é que ele não
é obrigado. Ele não corre desesperado
atrás de ninguém. Ele não se submete a ser
o problema. Ele é o buscado. Ele é o efeito
da busca. Ele é a eficiência da deficiência.
Ele também é hábil quando se propõe a ser
uma tampa tanto de um romance não
recíproco quanto de uma felicidade que
outrora ficara ressabida pela timidez. Ah,
até nisso ele é ótimo. Ele forma atores. Ele
coloca a timidez num canto com um
chapéu de burro e deixa livre o espírito do
“sou amigo de todo mundo, todos merecem
o meu humor, os meus sorrisos e o meu
apreço. Até mesmo meus desabafos, por
que não?”.
Numa dessas, ele me trouxe até esse lugar.
Uma ponte em frente a uma associação de
sargentos, que recebia uma festa de gente
que eu não conhecia.
Uma garrafa me acompanhava. Meu
melhor amigo estava hospitalizado. Meus
outros amigos eu não sabia se existiam
mesmo, ou se eu havia abusado de mais da
metade daquela garrafa. A Julia, por
exemplo, tão na dela. Escorada no meu
ombro, despejava aquela risada gostosa
nos meus ouvidos e depois fazia minhas
costas de garupa e ria como se ali houvesse
um espetáculo de humor. Mas não havia
espetáculo. E nem havia Julia. Até o
Roberto, que tinha um potencial enorme
para ser o que tanto encenava em suas
peças. Um personagem escrito, dirigido e
atuado por ele mesmo. Um artista
arrancado das páginas dos livros antigos e
atirado nas páginas atuais da vida. Mas não
havia Roberto. E não havia peças. Havia um
espelho. Eu me olhava no espelho. O
Roberto talvez era meu personagem, se a
vida me permitisse ao cargo.
Em frente a Associação, quatro guardas
tomavam conta. O muro era baixo, do
tamanho de um anão. Também era do
tamanho do tanto que eu me importava
com aquilo. Bebi mais um pouco. Meus
olhos começaram a pesar. Parecia que
minhas pálpebras tinham engordado. Era
sempre assim quando o álcool já se sentia
mais em casa.
A Janice surgiu ali por perto. Tremores
leves tentaram aparecer, mas quem disse
que existe terremoto em terra de mão
humana? Valha-me, álcool.
Ela foi uma antiga paixão que estava em
cativeiro numa caixa de insucessos que
carrego. Acompanhada de uma amiga,
perguntou se eu estava bem e se eu estava
sozinho. Olha, logo você me perguntar se
estou sozinho, Janice? Essa pergunta
escolheu a hora errada para entrar na
brincadeira. Ela tinha que ter acontecido
naquele dia no circo, quando o palhaço me
levou ao palco e perguntou se eu estava
acompanhado. Eu disse que sim, pois tinha
a sua companhia. Você foi até lá. Inocente,
o palhaço perguntou se éramos
namorados. Você disse que éramos apenas
amigos, sendo que eu carregava o fardo de
meses de insistência contigo independente
das inúmeras vezes que pensei desistir em
vista de não ter de volta o que eu lançava e
esperava por retorno, por mais que meus
braços já estivessem desgastados de nadar
de braçada nesse clichê. Você ergueu um
muro entre o meu desejo e o poder te ter
que jamais consegui demolir.
Mas agora já não importa mais. Ter a
garrafa como companhia me trazia mais
alegrias, mesmo que desvirtuadas. Tanto
que sorri para ela e disse que estava muito
bem acompanhado. A Julia foi comprar
pastel, o Roberto foi buscar copos
descartáveis. Ela acreditou. Cochichou algo
com a amiga e veio me dar um abraço.
Pediu desculpas, ainda que desnecessárias.
Conquistá-la era combinação de notas não
consoantes. Ela pegou forte nos cantos da
minha face de modo que os dedos ficassem
atrás de minhas orelhas em posição de
afeto. Deu-me um beijo na bochecha de
bombinha de São João, daqueles que
estalam e fazem barulho. Depois me soltou
e foi embora.
Resguardei-me num breve sentimento de
incapacidade. O álcool já havia se tornado
senhor dos meus sentimentos. Controlava
minhas emoções como cavalos em carroças
e libertava do calabouço minhas decepções
aglomeradas. Eu entrava no estágio da
reclamação, mesmo já estando em
mergulho profundo nas ilusões.
Quando o álcool chega na terra dos
sentimentos, ele faz como os portugueses
fizeram com os índios: nos controla e
explora nossa ingenuidade. Nos faz chorar
por coisas ultrapassadas. Nos faz trocar
palavras e sílabas sem pedir licença a
gramática. E nos momentos mais intensos,
nos força a tomar atitudes irresponsáveis
que outrora sóbrios teriam atestado de
prisão por atitude descabida de bom senso.
Na porta da associação, eu vi a Laís entrar.
Outra que era sósia de Janice. Mas uma
versão ainda mais tenebrosa dela, se é que
isso fosse imaginável. Meus olhos,
arregalados como o de uma coruja,
atentavam-se aos seus movimentos de
rato. Andei até alguns metros dali e estudei
como pularia aquele local. Eu precisava
encharcar a face dela com algumas
verdades.
No grau elevado de minha embriaguês, já
me imaginava como um super elaborador
de um plano mirabolante para me infiltrar
na festa. Coisas do álcool novamente.
Dessas de enviar ao nosso cérebro uma
mensagem como: “ei, tem inteligência por
aqui, larga essa preguiça de lado e vá
vasculhar até achar. Encontre também a
coragem e venha de mãos dadas com as
duas”. E ele acha. De fato ficamos mais
espertos, mais soltos. A criatividade fica
mais desinibida, moleca.
Uma moça berrava há mais de minutos
com os seguranças dizendo que era
convidada, mas que havia perdido o
ingresso no meio do caminho. Pedia que
eles fossem até o mandante da festa para
confirmar que ela era amiga do
aniversariante. O número 2, como
carinhosamente o apelidei, pestanejou. O
outro, o número 3, falava ao walk-talk.
Olhando desesperado para os lados, avisou
algo na beirada do ouvido do número 2 e
saíram em disparada até os fundos do local.
Desatento por alguns segundos, não vi
onde os números 1 e 4 teriam ido. Eles
simplesmente sumiram também. A moça,
que antes trajava um vestido de roxo fumê
brilhoso, de repente se via arrancá-lo
bruscamente e por baixo trajava uma roupa
mais largada, folgada nas dobras dos
braços e misturadas nas cores vermelha,
verde e amarela. Outros três rapazes
chegaram, todos fantasiados como a moça
e pularam o pequeno muro.
A moça foi de encontro aos pequenos
gnomos de porcelana encontrados no
gramado em frente a associação, os
agarrou pelos bracinhos, jogou na cacunda
e saiu correndo. O mesmo fizeram os
outros três rapazes, todos em sincronia de
assalto. Os seguranças 2 e 3 não voltaram,
mas os vi entrar no banheiro que ficava
numa casinha do lado de fora da festa, 1 e
4 foram para a esquerda, do lado do salão.
Não deram conta do sumiço dos gnomos.
Mas não tinha lógica não ver os gnomos.
Tudo bem que não ver gnomos fazia
sentido, eles estavam a trabalho. Só que
isso é questão de outra coisa, prefiro não
entrar em detalhes.
Nos fundos do local, um forte estrondo
tomou conta. Os seguranças 1 e 4,
próximos dali, vagarosamente
direcionaram-se até lá. Aproveitei do
descuido para entrar no local.
Entrei pela porta principal e a Laís vinha
andando rápido segurando as pontas de
seu vestido. Sua raiva ficava destacada nos
lábios manchados de batom borrado e com
desenhos de mordidas fortes desferidos
quase próximo ao seu queixo.
- Calma lá, Speed Racer! – disse, com a voz
torta, pegando-a pelo braço.
- Ei, me solta, eu estou com pressa.
- Você vai me ouvir, pode ficar paradinha
aí.
- Não vou ouvir bulhufas. Vá caçar sua
turma.
- E assim, dessa mesma maneira, você me
ignora pela segunda vez. Quanta canalhice.
- Quem te ignorou? Eu? Nem me lembro de
você, seu pinguço.
- Pinga não, Absolut. – disse dando dedadas
na garrafa, cambaleando para direita,
embaralhando todas as letras e cuspindo
uma chuva de baba. – Não se lembra?
Quanto descaramento. Eu não sou
qualquer um para você se esquecer tão
rapidamente de mim. Tenha um pouco de
bom senso, menina. Larga esse enorme
orgulhinho que você carrega nessa caixa de
maquiagem que você chama de rosto. Que
a propósito, é totalmente apaixonante. Eu
odeio dizer isso, mas eu fantasio meus
dedos e minha boca em viagem por eles. Só
que não vem ao caso. O teu orgulho me
desapaixona e essa tua arrogância te
incrimina.
- Ui. O primeiro bêbado que vejo que faz
psicanálise de pessoas.
- Está vendo? Era pra ter perguntado o que
você fez comigo, mas não, preferiu ser
arrogante. Você e suas escolhas erradas.
Sempre. – suspirei.
- O que eu fiz para ti? – disse soltando as
mãos das pontas do vestido.
- É melhor falarmos sobre o que você não
fez. Eu me lembro muito bem de ter escrito
uma carta. Eu não tinha você nos meus
contatos. Contatos que me refiro é você
me olhar nos olhos, me cumprimentar, dar
boa tarde e sorrir, mesmo que sem mostrar
os dentes. Situação que me levou ao
sacrilégio de lhe escrever uma carta. Isso
mesmo, desse meu jeito nada moderno.
Passei horas a claro montando esse
quebra-cabeça de sentimentos. Meu punho
era espancado pelas tantas palavras
sinceras que escrevi. Terminado, nem
embrulhei num cartão. Fiz uma simples
dobra e colei com o pequeno adesivo que
retirei de um de seus cadernos sem que
percebesse. No dia que fui lhe entregar, a
chuva, que não tinha convite, fez questão
de ser invasora nesse evento. Te esperei do
lado de fora da loja que você trabalha. Te vi
sair e fui atrás. Por ali passavam muitos
carros, estava difícil atravessar. Você
conseguiu. Eu fiquei do outro lado. Você se
distanciava; eu corria do outro lado da rua,
de boca aberta e sem guarda-chuva.
Quando finalmente consegui atravessar,
tropecei numa pedra desnivelada e deixei a
carta cair numa poça de barro. Eu, assim
como ela, também me sujei todo. Dei de
beiço no chão. Com a lama incrustada em
minha boca, tentava pronunciar seu nome
alto, mas mais parecia um porco pedindo
por lavagem. Não bastando tudo isso e com
você ao sumiço dos meus olhos, um
caminhão, daqueles que vendem pamonha
com um locutor escroto chamando as
pessoas para comprar, passou
vagarosamente ao meu lado. Uma trilha
perfeita para a situação, triste perrengue.
Mas com o braço de fora, o canalha que
dirigia me abordou com a frase: “Tá
caçando minhoca no lugar errado, amigo”.
Olhei mais adentro e lá estava você,
acompanhada daquele dentuço com luzes
mal feitas que mais parecia uma mistura de
Ronaldinho Gaúcho e Maria Gadú.
Enquanto vocês dois riam e subiam os
vidros para ir embora, peguei a carta e
gritei: “Lá em casa estamos sem jornal pro
cachorro defecar em cima. Ops. Problema
resolvido.” Mas você nem tinha noção do
que era aquilo. Era como se eu estivesse
exibindo uma tábua com escritos egípcios e
esperasse que você entendesse. De fato
não fiz aquilo com a carta. Usei para forrar
a gaiola dos passarinhos. Você pode se
julgar não ser responsável, você não sabia
de nada disso. Mas eu esperava ao menos
um pouco de dó.
- Olha, gente, mas que peninha. Abre a
mão, toma aqui um pouquinho de dó.
Satisfeito? Adeus!
- Ah, mas você, você...
Nem elaborei um palavrão e ela já havia
desaparecido como um ninja numa bomba
de fumaça. Como já estava no local, com
fome e sem muitos objetivos, olhei para
mesa banhada num rico banquete.
Amordacei minha blusa e fiz um olhar
como se fosse um tarado para aquelas
comidas desnudas e deliciosas.
Escolhi um belo cigarrete que tinha um
queijo derretido latejando na extremidade.
Estiquei a mão para pegá-lo e de repente
outra mão também foi de encontro a ele.
Pegamos praticamente juntos. A senhora,
de idade que não conseguia contar, mas
que fugia pra casa dos ‘’enta’’, me encarou
por uns prolongados segundos.
- Esse aqui é meu. Tira essa tua mão de
saco dele.
- Mão de saco? Que palavreado é esse?
- Com essa cara de punheteiro tu não me
engana não, rapaz. Vá pra lá.
- Está maluca, Tia?
- Maluca? Tia? Ah, rapazinho...
A tia pegou minhas duas mãos e colocou
nos seios dela. Sem entender nada, mas
estranhamente curtindo o momento, me
deixei guiar pela Vera Fischer melhorada.
- Isso, pega como se fosse um mouse de
computador. Tá gostando? Tá? Olha que
airbags enormes. Quer parar?
- Não. – respondi com os olhinhos virados
para cima.
- “Não para, não para, não para”. – ela
cantava.
- “Só love, só love”. – também respondi
cantando.
- A tia aqui não é vidente, mas sabia que tu
era mesmo punheteiro. Pega mal demais
nas tetas. Chega. Pára.
- Ao menos eu pego.
- Eu posso gritar pra todo mundo dizendo
que tu abusou de mim, mas se der o
cigarrete, eu fico quieta e ainda deixo tu
buzinar uma última vez.
- Feito. – buzinei, assim como fazia com
meus carros imaginários. Depois chispei
fora.
Independente da esculachada, me senti
vitorioso. Há tempos não me acontecia algo
tão hilário – e porque não excitante – como
aquilo. Eu adoro mulheres mais velhas. E
como aquela era apetitosa. Aqueles seios
pareciam duas almofadas, senti até
vontade de dormir em cima. Não sabia se
sem os efeitos do álcool em mim eu teria
coragem de tê-lo feito.
- Cara, cara, o que foi aquilo? – um
estranho rapaz me abordou de repente.
- Aquilo o quê?
- Tu se aproveitando daquela senhora.
- Não me aproveitei de ninguém, foi tudo
voluntário.
- Está pirando? Aquela senhora tem mais
de 70 anos. Os seios delas batem no joelho
e você estava suspendendo como se fosse
um guindaste. Foi uma cena bizarra. Ainda
está achando isso bonito, é?
- A bonitona ali? Você é que está delirando,
meu amigo.
- Eu? Olhe bem! Olha lá! – disse
apontando.
Ainda com a vista embaralhada, apertando
os olhos e com o álcool tendo reduzido o
efeito em uns 3%, percebi que na verdade
eu havia tirado uma casca de uma espécie
de Dilma após um banho de Albergue. Ele
ria de mim. Eu também ria de mim, mas
não me importando nem um pouco.
- Cuidado, ela é tarada. – disse enquanto
me dirigia ao banheiro.
O problema do álcool é que ele dá brechas
ao desespero. Depois de cinco copos de
Balalaika, qualquer Susana Viera vira uma
Juliana Paes. Bumbuns tão recheados de
varizes que parecem massa de pão socada,
viram bumbuns lisos e brilhantes como de
morenas nas praias do Rio. Qualquer
carinho é como um assopro no Merthiolate
da carência. Aquela situação com a senhora
me desenhava perfeitamente como
exemplo disso.
Vi a porta que ia para os fundos
entreaberta e resolvi bisbilhotar, os
seguranças ainda não tinham voltado da
ronda que me permitiu a invasão. Abri um
tanto de dois dedos e dei com os olhos no
lado de fora. Os seguranças número 1 e 4
estavam escoltando uma garota que estava
ajoelhada e com as mãos atadas. Ela virou
para o lado para pedir algo a um deles e
consegui observar seu rosto. Era a Janice.
Com a curiosidade e o medo do que ela
poderia ter feito, suguei um pouco de
coragem do ar e senti um empurrão severo
do álcool, não consegui conter o impulso e
empurrei forte a porta.
- O que vocês fizeram com ela? Ou o que
ela fez?
- Cadê ela? Eu quero é ela! Vai, encontra
ela para mim, por favor! – resmungou
Janice.
- Do que você está falando?
- Quando viemos até aqui ela já gritava
isso. Não sabemos o motivo ainda, ela não
abre o bico. Você é conhecido? Talvez ela
se abra. – disse gentilmente um dos
seguranças.
- Janice, do que você está falando?
- A Laís, traz ela aqui para mim, só para
mim, por favor. Eu imploro.
- Laís? O que tem ela? O que ela te fez?
- Aquela farsante. Ela me paga por ter me
iludido. Aliás, literalmente ela tem que me
pagar. Me deve dinheiro, maconha e um
pouco daquela vagina.
- Espera aí, perdi as coordenadas. A Láis?
Maconha? Vagina? Do que você bebeu,
menina?
- Eu bebi uma garrafa inteira, mas era para
ela ficar vazia e eu dar na cabeça dela. Eu
tentei dar uns bons beijos nela, mas ela
ofegou, se recusou até falar chega. Nem
parecia ela. Mas continuei. Enquanto eu
beijava, ela deu um arranco para eu me
soltar e nisso eu quase feri a boca dela.
Enraivecida, pegou minha cabeça, disse “a
tua maconha está no colo do tinhoso, vai lá
cheirar” e depois a bateu com toda força
no latão de lixo.
- Agora é que eu não estou entendendo
nada. Ela não é hétero? E aquele rapaz que
dirige o caminhão de Pamonha?
- Rapaz? – disparou a rir. - A Dionisia? Se
bobear ela pega mulher na mesma
proporção que tu troca de cueca.
- Mas e a maconha? Onde ela entra nessa
história?
- Eles planejavam algo para essa festa, eu
só não sei o que é.
- Eu já imagino. – disse saindo e engolindo
mais um pouco do restinho de bebida.
Saí pela porta principal e vi os seguranças 2
e 3 fazendo a guarda. Passei
sorrateiramente, dando passos fingidos de
sobriedade. Não me pararam. Respirei
aliviado.
Pensei num óbvio lugar que os assaltantes
dos gnomos poderiam ter ido. Uma espécie
de reduto de bebidas e drogas. Sexo,
também, mas mais uma suruba de
agulhadas nas veias uns dos outros. Teriam
de ser estúpidos demais para ir até lá. Mas
para quem rouba gnomos de jardim
esperar uma estupidez desse tipo não era
nada incomum. Fui até lá. Só para
desencargo de consciência.
Sóbrio, não teria coragem. Até ratos têm de
pedir licença para entrar naquele local. Mas
por já me apresentar num alto grau de
embriaguês, poderia muito bem me
camuflar.
Entre dois rapazes que faziam malabarismo
com latas de Nesquik, vi a moça que
aplicou o golpe nos seguranças. De fato
comprovaram o que pensei. Estúpidos. Ela
acariciava o gnomo como um filho,
amamentava-o com a fumaça de seu
cigarro e ria de piadas que contava para si
mesma. Me aproximei.
- Tem como me dar um ‘teco’ aí?
- Puxa, irmão, e sinta a paz de Jah.
- Esse é realmente dos bons. Já nem me
sinto mais. Parece que eu não tenho
braços.
- Eu aqui já nem sinto meu corpo. Parece
que eu sou invisível e atravesso paredes.
Inclusive, meu nome é Gasparzinho.
- Prazer, Gasparzinho, por que carregas um
gnomo contigo?
- Ele é o ápice. Ele é o meu prazer em
massa, em peso, em forma existencial. É
como se eu estivesse abraçando o efeito do
meu baseado.
A uma boa distância de nós, os outros três
rapazes que a acompanhavam no furto
estavam sentados em forma de triângulo.
No centro, os três gnomos alinhados em
volta de uma fogueira. Cada um carregava
uma pequena vasilha e nas costas toalhas
com desenhos indecifráveis. De repente
todos se levantaram e começaram a dançar
e cantar em volta dos gnomos numa
espécie de dança da chuva, mas para
gnomos.
- O que eles estão fazendo?
- Invocando o Deus. Pedindo aos céus para
que os gnomos petrificados voltassem a
sua forma real.
Pronto. Aquilo foi demais para mim. Sabia
da minha embriaguês, mas extrapolar os
limites da razão eu nunca o fazia. Ok, às
vezes.
Decidi me acomodar novamente na ponte.
Voltei ao ponto de partida. Já cambaleava e
o sono se fazia presente por toda a minha
forma. Quando apaguei por alguns
segundos, fui acordado com um leve
empurrão.
- Mas já dormindo, cara? Eu e a Julia fomos
buscar as coisas e você já está apagando.
- É, eu, bem, mas...
- Sem ‘mas’, rapaz, vamos curtir o resto
dessa noite que promete.
Julia se empoleirou novamente nos meus
ombros e seguimos pela rua. Quando me
dei por mim, percebi que tinha sido refém
mais uma vez do álcool. Quando ele resolve
estilhaçar com vara verde as feridas
deixadas pela solidão, qualquer abandono
de minutos se torna um abandono eterno,
de desespero imensurável. Aliás, o tempo
fica atemporal. Trinta minutos passam em
um minuto. Ali, naquela situação, ele
configurou o contrário.
Ainda bem.
Tiago Peçanha.