wolfhart pannenberg teologia sistematica volume i
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WOLFHART PANNENBERG TEOLOGIA SISTEMATICA Volume ITradução IIson Kayser Santo André 2009 ACADEMIA CRISTÃ editoraPAULUS
1. TeologiaA palavra "teologia" tem múltiplos significados. O uso lingüístico hodierno
entende sob o termo uma disciplina acadêmica, em todo caso um esforço
humano para adquirir conhecimento. Em sua origem platônica, todavia, o termo
designa o Lagos que traz notícia a respeito da divindade em discurso e canto
dos poetas (A República 379 a 5s.).
Não se trata aí da análise reflexiva pelo filósofo. No entanto, já Sócrates
chamou uma das três disciplinas da filosofia teórica de "teologia" (Met. 1026a
19 e 1064b 3),a saber, a posteriormente chamada "metafísica", por que teria
por objetivo o divino como o princípio de todo ente, que abrange e fundamenta
a todo o mais. Posteriormente, os estóico distinguiram uma "teologia" dos
filósofos adequada à natureza da divindade da teologia mítica dos poetas, e da
teologia política dos cultos estatais: aqui teologia já não é mais somente objeto
de análise filosófica, e, sim, é ela mesma.
No mesmo sentido é de significado múltiplo o uso lingüístico cristão, surgido no
séc. Il, que se apoiava no uso lingüístico filosófico. Se CLEMENTE de
Alexandria contrapõe à mitologia de DIONÍSIO a "teologia do Lagos eterno"
(Strom. I, 13,57,6), isso não se refere apenas a uma doutrina sobre o Lagos, e,
sim, à própria proclamação de Deus pelo Logos (cf. 12,55,1). O teólogo é o
proclamador da verdade divina e inspirado por Deus, e teologia é a
proclamação. Isso permaneceu vivo ainda no uso lingüístico posterior dos
cristãos. Neste sentido, os autores bíblicos puderam ser chamados em
conjunto de "teólogos". Isso 26 TEOLOGIA SISTEMÁTICA - VOLUME I vale
para os profetas véterotestamentários e para o evangelista João, que é
chamado de "teólogo" da deidade de Jesus; mais tarde, doutores da Igreja
como GREGÓRIO NAZIANZO com seus 380 discursos sobre a Trindade, e
mais tarde ainda, SIMEÃO, é chamado de "novo teólogo".
É verdade que já em CLEMENTE o valor filosófico do divino também é
chamado de "teológico" (Strom. I, 28, 176). Neste caso, porém, o saber deve
ser entendido como visão espiritual que, segundo PLATÃO, é um dos
mistérios. Também aqui teologia não é concebida apenas e em primeiro lugar
como produto da atividade humana, mas designa a notícia de Deus própria do
Logos divino e revelada por ele. Ao homem ela se torna acessível somente
como contemplação da verdade divina concedida pelo próprio Deus, portanto
por meio de inspiração reveladora.
Isso não exclui o fato de que, como em PLATÃO, seja ligada com a arte da
"verdadeira dialética" (176s.) que, por meio da força do discernimento, conduz
à verdadeira verdade, e que seja uma "ciência" (176). No entanto, para a
compreensão de tais enunciados, deve-se tomar em consideração também a
doutrina platônica da origem do saber em uma iluminação, que pode apenas
ser preparada por dialética.
É digno de nota que a consciência da relação constitutiva da teologia com a
revelação ficou preservada nas discussões da alta escolástica latina sobre o
caráter científico da teologia, inclusive nos teólogos de cunho mais aristotélico,
independentemente de outros contrastes entre concepções platônico-
agostinianas e aristotélicas. A fundamentação da teologia na revelação não é
uma determinação exterior para a essência da teologia, como a posterior
justaposição de teologia natural com teologia da revelação poderia levar a
supor. Antes, a viabilização de conhecimento de Deus pelo próprio Deus,
portanto por meio de revelação, já é uma das condições fundamentais do
conceito de teologia como tal.' De outro modo, a possibilidade de conhecimento
de Deus sequer pode ser concebida de maneira consistente, a saber, não sem
contradição ao próprio conceito de Deus. Com isso ainda não está decidido o
modo como a criatura pode chegar ao conhecimento de Deus, portanto
também não se está afirmando que somente o cristão crente
1 Com razão, U. KÕPF, Die Anfiinge der theologischen Wissenschaftstheorie
ím 13. [ahrhunderi, 1974, pp. 24755., esp. pp. 2525 aponta para isso.
Especialmente em TOMÁS DE AQUINO o ponto de vista de inspiração como
fonte de conhecimento teológico "perpassa toda a teoria teológica científica" (p.
111, cf. pp. 147 e 2525.)
A VERDADE DA DOUTRINA CRISTÃ 27 poderia participar de conhecimento
teológico. Já em CLEMENTE de Alexandria se fala de uma participação - ainda
que fragmentária e distorcida - também dos gentios na verdadeira teologia do
Logos divino. Em todo caso, porém, não se pode imaginar um conhecimento de
Deus e uma teologia, tanto fora quanto dentro da Igreja cristã, também no
chamado conhecimento natural de Deus, que não partisse do próprio Deus e
que não se devesse à ação de seu Espírito.
A dogmática protestante antiga ainda tinha consciência desse fato em seu
alcance para o conceito de teologia. Foi JOHANN GERHARD quem, se não
introduziu o conceito de teologia na dogmática ortodoxa luterana antiga, tornou-
o familiar e o clareou. “Ele adotou também a tese da escolástica medieval,
renovada pelo teólogo reformado FRANZ JUNIUS, já em 1594, de que teologia
humana seria possível somente como imagem e reprodução da theologia
archetypa divina”, Nas exposições da dogmática luterana posterior sobre o
conceito de teologia, esse ponto de vista foi preservado. Todavia, ele se
encontra em tensão com a concepção, igualmente já defendida por GERHARD,
que afirma que o objeto da teologia seria o ser humano a ser levado para a
bem-aventurança.' Onde a determinação da 2 R. D. PREUS, The Theology of
Post-Reformation Lutheranism. A Study of Theological Prolegomena, St, Louis;
Londres, 1970, chamou a atenção para a dependência de J. GERHARD em
relação a JUNIUS, De Theologiae Verae Ortu, Natura, Formis, Partibus et
Modo lllius, Leyden, 1594. Quanto ao debate entre DANNHAUER (1649) e
ScHERzER (1679) sobre esse tema, cf. C. H. RATSCHOW, Lutherische
Dogmatik zwischen Ortodoxie und Aufkliirung 1, 1964, p. 49.
3 J. WALLMANN, Der Theologiebegriff bei Johann GERHARD und Georg
Calixt, 1961, pp. 53s., defendeu essa concepção de GERHARD (no Prooemium
de 1625 para o primeiro volume de seus Loei) contra a observação de K.
BARTH de que com isso se estaria abrindo caminho para uma virada
antropocêntrica na compreensão da teologia em relação à concepção ainda
defendida por M. CHEMNITZ, de que objeto da doutrina cristã seriam Deus e
as coisas divinas. WALLMANN observa que, em GERHARD, o "discurso do ser
humano como tema da teologia" [...] "ainda não teria sido projetado a partir de
uma teologia natural" (p. 53). Mas o ponto principal da crítica de BARTH reside
no fato de que - embora iniciasse somente mais tarde - a função
antropocêntrica de uma teologia natural, no contexto do chamado método
analítico da ortodoxia luterana no próprio período após GERHARD, deve ser
entendida como conseqüência daquela virada na determinação do objeto da
teologia. No entanto, além de ver o objeto da teologia na bem aventurança do
ser humano, ainda o viu na glorificação de Deus (cf. do Autor, 28 TEOLOGIA
SISTEMÁTICA - VOLUME I
teologia como "ciência prática?" foi limitada, de forma mais restrita do que isso
acontece no próprio GERHARD, à bem-aventurança do ser humano como fim,
aí teve de instalar-se uma tendência antropocêntrica no conceito de teologia, a
qual pôde entrar em contradição com a concentração no conhecimento de
Deus que lhe é inerente.
Em sua concentração no ser humano a ser conduzido para a bem-aventurança
eterna, a teologia luterana antiga tinha a justificada consciência de que com
isso estava correspondendo à revelação divina da salvação e, portanto, à
própria vontade salvífica de Deus. Mas.. na determinação do conceito de
teologia, esse pressuposto não podia ser remetido a um nível subordinador
como aconteceu no contexto do "método analítico" da teologia estabelecido por
B. KECKERMANN como ciência prática.. que diferenciou a prática que visa à
bem-aventurança do ser humanos sob os pontos de vista de sua origem
divina.. do próprio alvo da bem-aventurança, e dos meios que conduzem a ela,
subdividindo os temas da doutrina cristã de maneira correspondente. Aqui.. o
ponto de vista que fundamenta a unidade da teologia é a prática que visa à
bem-aventurança do ser humano e não mais a idéia de Deus ou a revelação de
Deus.
No entanto.. a teologia descrita como ciência prática segundo o método
analítico em KECKERMANN, ainda pressupõe uma "teosofia" teórica. Nos
teólogos posteriores da ortodoxia luterana, que procederam conforme esse
método, a isso corresponde uma teologia natural que instrui antecipadamente
sobre a existência e os atributos de Deus. Isso significa, no entanto, que a
execução soteríologicamente restrita do "método analítico" não apenas leva a
que a teologia gire antropocentricamente em torno da salvação do ser
humano..ao invés de girar em torno do conhecimento de Deus como seu objeto
central", e, sim, quer antes e além disso a teologia entra numa dependência
em relação à outra forma de conhecimento de Deus. Aqui a teologia se
desonera dos temas "especulativos" da doutrina de Deus e da cosmologia. Faz
isso ao preço da dependência em relação a outra certificação para a convicção
a ser pressuposta da existência de Deus como autor da determinação do ser
humano para a bem-aventurança e da revelação salvífica que conduz a ela.