xxiv encontro nacional do conpedi - ufs · constitucionalização do sistema jurídico...
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XXIV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - UFS
GARANTIAS FUNDAMENTAIS
LUIZ FERNANDO BELLINETTI
MARGARETH ANNE LEISTER
EDINILSON DONISETE MACHADO
Copyright © 2015 Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito
Todos os direitos reservados e protegidos. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados sem prévia autorização dos editores.
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G763
Garantias fundamentais [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/UFS;
Coordenadores: Edinilson Donisete Machado, Luiz Fernando Bellinetti, Margareth Anne
Leister – Florianópolis: CONPEDI, 2015.
Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-5505-057-2
Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicações
Tema: DIREITO, CONSTITUIÇÃO E CIDADANIA: contribuições para os objetivos de
desenvolvimento do Milênio
1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Brasil – Encontros. 2. Garantias fundamentais.
I. Encontro Nacional do CONPEDI/UFS (24. : 2015 : Aracaju, SE).
CDU: 34
Florianópolis – Santa Catarina – SC www.conpedi.org.br
XXIV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - UFS
GARANTIAS FUNDAMENTAIS
Apresentação
APRESENTAÇÃO
O desafio de se efetivarem as garantias fundamentais previstas no ordenamento jurídico de
nosso país exige um amplo engajamento dos diversos setores e instituições jurídicas
contemporâneas.
A academia tem colaborado decisivamente para este processo e o Conpedi tem se firmado, ao
longo de mais de duas décadas, como um espaço fecundo para o debate sobre o tema e sua
consequente implementação como instrumento transformador para que se possa alcançar a
sociedade livre, justa e solidária preconizada em nossa Constituição Federal.
O Grupo de Trabalho Garantias Fundamentais, cujas atividades foram realizadas durante o
XXIV Encontro Nacional do CONPEDI, em Aracajú/SE, no período compreendido entre os
dias 03 e 06 de junho de 2015, confirmou essa trajetória.
As contribuições de pesquisadores de diversos Programas qualificados de pós-graduação em
Direito enriqueceram a apresentação e discussão dos trabalhos do Grupo, possibilitando a
troca de experiências, estudos e investigações visando esse contínuo processo de efetivação
das garantias fundamentais.
Do exame e discussão dos trabalhos selecionados foi possível identificar a riqueza dos textos
com investigações realizadas desde o âmbito da filosofia até as especifidades da dogmática
jurídica.
Foram apresentados e discutidos vinte e um trabalhos, que veicularam percucientes estudos e
análises sobre as garantias fundamentais vinculadas às mais diversas searas do universo
jurídico.
Gostaríamos que as leituras dos trabalhos aqui apresentados pudessem reproduzir, ainda que
em parte, a riqueza e satisfação que foi para nós coordenarmos este Grupo, momento singular
de aprendizado profundo sobre o tema.
É por isso que temos imensa satisfação de levar à publicação mais uma obra coletiva, que
testemunha o conjunto de esforços do CONPEDI e seus associados, reunindo estudos e
pesquisas sobre a temática das Garantias Fundamentais.
Esperando que a obra seja bem acolhida, os organizadores se subscrevem.
Prof. Dr Edinilson Donisete Machado UNIVEM
Prof. Dr. Luiz Fernando Bellinetti UEL
Profa. Dra. Margareth Anne Leister - UNIFIEO
JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE: ANÁLISE DE APLICABILIDADE DE DIRETRIZES NA PRÁTICA DO JUDICIÁRIO
HEALTH JUDICIALIZATION: ANALYSIS OF GUIDELINES APPLICATION ON LEGAL PRACTICE
Marcelo José GrimoneNendy Temistocles Ribeiro
Resumo
A judicialização da saúde é um fenômeno que tem despertado muito o interesse de
pesquisadores e gestores em saúde, particularmente, na gestão de políticas públicas de saúde.
No presente estudo, foi realizada uma avaliação descritiva, seguida de análise crítica, das
ações judiciais que objetivam garantir o Direito à Saúde nos aspectos individuais e coletivos.
Foram considerados fatores jurídicos e econômicos, para, assim, buscar-se compreender
melhor o fenômeno da judicialização da saúde frente às diretrizes do judiciário, às praticas e
o contexto de políticas públicas no âmbito da saúde. A fim de comparar a revisão literária
com a prática jurídica, foi escolhido o Tribunal de Justiça de São Paulo através da análise de
30 acórdãos do mês de dezembro de 2014.
Palavras-chave: Judicialização da saúde, Diretrizes sanitárias, Direito à saúde
Abstract/Resumen/Résumé
The legalization of health is a phenomenon that has very attracted the interest of researchers
and health managers, particularly in the management of public health policies. In this study, a
descriptive assessment was conducted, followed by critical analysis, lawsuits which aim to
ensure the right to health in the individual and collective aspects. Legal and economic factors
were considered, to thus seek to better understand the phenomenon of legalization of health
front the guidelines of the judiciary, the practices and the context of public policies on health.
In order to compare the literary review with legal practice, was chosen the São Paulo Court
of Justice through the analysis of 30 judgments of December 2014.
Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Legalization of health, Sanitary guidelines, Right to health
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JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE: ANÁLISE DE APLICABILIDADE DE
DIRETRIZES NA PRÁTICA DO JUDICIÁRIO
1 INTRODUÇÃO
Na Sociedade Contemporânea ou Pós-Modernidade (Perry, 1999, p.39) a dignidade,
direitos fundamentais e democracia participativa são, ainda, reivindicações primordiais da
coletividade. Em países dependentes do capital internacional, como o Brasil, a luta pela
efetivação desses direitos e ampliação do conceito da cidadania constituem uma estrada de
resistência e superação das desigualdades. Uma análise superficial e sem cientificidade das
estatísticas apresentadas pela imprensa nacional e internacional, das décadas finais do século
XX e início do século XXI, números que devem ser analisados com muito ceticismo,
evidenciam problemas substanciais principalmente na área da Saúde.
Apesar de avanços importantes ocorridos no país e programas sociais relevantes e
reconhecidos mundialmente, os índices e estatísticas de diversas entidades governamentais e
não-governamentais demonstram que as mudanças políticas e jurídicas que ocorreram no país
foram insuficientes para efetivar e consolidar os direitos fundamentais, principalmente os
direitos sociais como à saúde, relacionados à igualdade material e dependentes de serviços
públicos eficientes, conforme estabelece o “caput’ do artigo 37 da Constituição Federal.
Ademais, o “Estado Democrático Brasileiro”, expressão inaugurada com a atual Carta
Política, não implementou programas de gestão pública eficiente para saúde pública;
conforme padrões mínimos internacionais, o que permitiriam a verdadeira ascensão social e
econômica da sociedade e a revolução de desenvolvimento sonhado pelo país do eterno
futuro.
A luta pela efetivação dos direitos fundamentais, no entanto, não é uma luta atual da
humanidade e ou uma luta nacional, foi, no mundo contemporâneo, uma pronta resposta ao
ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial e permitiu um movimento denominado de
Constitucionalização do Sistema Jurídico principalmente da Europa e na América Latina.
Com a ascensão dos regimes totalitários, no século XX, principalmente o fascismo e o
nazismo, esboçou o debate de um ideal de justiça constitucional como reação ao poder
centralizado, na defesa dos direitos fundamentais, da justiça constitucional, dos direitos socais
e das liberdades. O debate se intensifico com o enfraquecimento do Poder Legislativo, na
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implementação dos supracitados regimes e com a crise de desconfiança no Estado Leviatã, ou
seja, com a ameaça do Legislativo aos direitos fundamentais. E, outrossim, com a
desconfiança ao Poder Executivo, ocupado por tiranos e líderes messiânicos.
Segundo Barroso, a constitucionalização expressa a irradiação dos valores
constitucionais pelo sistema jurídico. Essa difusão da Lei Maior pelo ordenamento jurídico se
dá por via da jurisdição constitucional, que abrange a aplicação direta da Constituição a
determinadas questões; a declaração de inconstitucionalidade de normas com ela
incompatíveis; e a interpretação conforme a Constituição, para atribuição de sentido às
normas jurídicas em geral. No caso brasileiro, deve-se enfatizar, a jurisdição constitucional é
exercida amplamente: do juiz estadual ao Supremo Tribunal Federal, todos interpretam a
Constituição, podendo, inclusive, recursar a aplicação à lei ou outro ato normativo que
considerem inconstitucional (Barroso, 2009, p. 382-383).
Quando se fala em constitucionalização do direito, a ideia mestra é a irradiação dos
efeitos das normas (ou valores) constitucionais aos outros ramos do direito. Mas essa
irradiação é um processo e, como tal, pode ser revestir de diversas formas e pode ser levada a
cabo por diferentes atores.
No Brasil, a Constituição de 1988 refletiu esse processo de constitucionalização do
sistema jurídico e permitiu, outrossim, o avanço e as transformações políticas e sociais.
Ademais, a Constituição de 1988 pode ser vista como o marco que pôs fim aos últimos
vestígios formais do regime autoritário (Barroso, 2009, p. 64-85).
Para alguns historiadores a transição brasileira teve a vantagem de não provocar
grandes abalos sociais. Mas, acarretou a desvantagem de não colocar em debate problemas
históricos da desigualdade no novo pacto social e político, ou seja, a anistia política sepultou a
memória social. Seria inadequado dizer que esses problemas nasceram com o regime
autoritário. A desigualdade de oportunidades, a ausência de instituições do Estado confiáveis
e abertos aos cidadãos, a corrupção e o clientelismo são males arraigados na formação
histórica do Brasil.
Importante, no entanto, argumentar que o pacto geral pela democracia, por parte de
todos os atores políticos, facilitou a continuidade de práticas contrárias e contraditórias a um
verdadeiro Estado Democrático de Direito. Destarte, o fim do autoritarismo levou o país mais
a uma “situação democrática” do que a um regime constitucional de liberdades, cidadania
concreta e direitos sociais. A consolidação continua a ser uma das tarefas centrais do Estado e
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principalmente da atuação dos três Poderes e da participação da sociedade na construção de
um sistema de direitos efetivamente fundamentais e sociais.
Em relação ao Poder Executivo, prevalece, no entanto, o interesse unívoco de
governabilidade do Poder. O projeto de efetivação de direitos fundamentais, como a saúde, foi
relegado a um plano secundário e insuficiente. E a falta de uma política de gestão para a
Saúde acarreta o excesso de demandas e o ajuizamento crescente de Ações para a efetivação
do direito fundamental a vida e a saúde.
No que tange ao Poder Legislativo, responsável pela estrutura legislativa
infraconstitucional do país, o mesmo permanece inerte e não completa a efetivação da
Constituição ou a mudança legislativa demandada. A inércia legislativa decorre, outrossim, de
um sistema jurídico pátrio arcaico, distante dos debates de ideias, ancorado no poder local,
interesses pessoais e na negociação política com o Poder Executivo.
Por seu turno, o Poder Legislativo sofre de uma crise ainda maior, pois a população
não se sente representada por maiorias ocasionais, que em muitos casos aprovam leis em
contrariedade aos direitos fundamentais atendendo a interesses de grandes grupos econômicos
que pretendem lucrar apenas com a situação atual da Saúde.
Em face da inércia dos Poderes Executivo e Legislativo, a constitucionalização do
direito acarretou a primazia do Poder Judiciário, pois os Tribunais passaram a concretizar a
constituição e atuar como guardiões dos direitos fundamentais, da democracia e dos valores
da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O Supremo Tribunal Federal no Brasil
transformou-se, em face da desídia dos demais Poderes, em um Ser Supremo, Oráculo de
Delfos ou um Poder Constitucional, responsável pela interpretação do sistema jurídico e
social, responsável, ainda, pela criação de normas primárias e, outrossim, pela Gestão da
Saúde.
1.1 A constitucionalização do direito à saúde
O movimento positivista dos direitos sociais iniciou-se no âmbito da Organização das
Nações Unidas (ONU), que já na Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948
estabeleceu um rol extenso de dispositivos consagradores dos direitos sociais. Deve-se
destacar, em âmbito internacional, a criação de órgãos especiais para a garantia de direitos
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humanos essenciais. É o caso da saúde, que reconhecida como direito humano fundamental,
passou a ser o contexto central da Organização Mundial de Saúde (OMS), órgão vinculado a
ONU, que no preâmbulo de sua Constituição conceitua saúde como: “( ... ) o completo bem-
estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças e outros agravos”. O século
XX sedimentou o ideário de o direito à saúde estar vinculado à proteção social. O Estado tem
o dever sanitário de prevenção e reparação da saúde (Dallari 1995, p.25).
A Constituição Federal de 1988 incluiu o direito à saúde no seu art. 6º, classificando-o
como um direito fundamental social. Segundo a regra do art. 5° do parágrafo primeiro, este
direito é dotado de aplicabilidade imediata e de eficácia plena. Isto significa reconhecer a
importância deste direito em um plano formal, uma vez positivado na carta máxima do
ordenamento jurídico brasileiro, e em um plano material, devido à importância do bem
jurídico tutelado para o exercício de uma vida com dignidade (Junior, 2012).
O art. 196 da Carta Magna brasileira refere expressamente a obrigação precípua do Estado
na efetivação deste direito, cuja titularidade é de todos, e incumbe a tarefa ao então instituído
Sistema Único de Saúde (SUS). Posteriormente, foi promulgada a Lei nº 8.080/1990 para
regular o novo sistema de saúde pública, reforçando os princípios constitucionais da
universalidade, igualdade, integralidade, descentralização e participação social. São estas
previsões que fundamentam a busca judicial para o efetivo cumprimento do dever do Estado
de prevenção e reparação da saúde.
Tendo em vista o alto grau de abstração e complexidade para efetividade dos direitos
sociais, em especial, o direito à saúde, ocorreu em âmbito do Poder Judiciário o fenômeno que
ficou conhecido como a “judicialização do direito à saúde”. Esse fenômeno decorreu do
elevado número de processos e de demandas judiciais que exigiram do Poder Judiciário
decisões sistemáticas que pudessem abranger a pluralidade de questões sobre a saúde e que
fossem capazes de garantir sua concretização.
A judicialização da saúde é um fenômeno que tem despertado muito o interesse de
pesquisadores e gestores em saúde, particularmente, na gestão de políticas públicas de saúde.
Muitas publicações evidenciam um número exponencial de aumento de reivindicações
judiciais do direito à saúde. Como responsáveis por este fato, podemos citar a expansão da
linguagem dos direitos humanos e ao novo constitucionalismo (Dallari, 2013).
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Não obstante seja consenso que a situação é preocupante, não existe um levantamento, em
âmbito nacional, da dimensão do fenômeno que se convencionou chamar de judicialização da
saúde, tampouco do seu impacto para todo o SUS e seus usuários. Isso se dá, em grande
medida, pelo fato de que as ações propostas estão divididas entre a Justiça Federal e a Justiça
de cada Estado da Federação, sendo que cada uma destas é um espaço autônomo de decisão,
com organização própria e características de demandas, em certa medida, particularizadas
(CONSULTORIA JURÍDICA DO MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2013)
Pretende-se, com este artigo, elaborar uma avaliação descritiva, seguida de análise crítica,
das ações judiciais que objetivam garantir o Direito à Saúde nos aspectos individuais e
coletivos. Serão considerados fatores jurídicos e econômicos, para, assim, buscar-se
compreender melhor o fenômeno da judicialização da saúde frente às diretrizes do judiciário,
às praticas e o contexto de políticas públicas no âmbito da saúde.
Adotou-se como linha metodológica a crítico-dialética, a partir de uma vertente jurídico-
sociológica, desenvolvida por raciocínios dialéticos com base na revisão da literatura e
documentos. A fim de comparar a revisão literária com a prática jurídica, foi escolhido o
Tribunal de Justiça de São Paulo. Foram analisadas 30 decisões judiciais que são parte do
banco de dados da pesquisa matricial, localizadas em meio eletrônico – http://www.tjsp.jus.br/
– caracterizadas como arquivo de domínio público. A escolha da amostra se deu pelo fator
cronológico, qual seja, dezembro de 2014, aproximando a amostra do momento da pesquisa.
“Entende-se que a compreensão da realidade não é estática, mas vinculada a um processo de
interpretação constante das contradições” (Ramos, 2013).
1.2 Direito à Saúde
A Constituição Federal estabelece, no art. 196, que a saúde é “direito de todos e dever do
Estado”, além de instituir o “acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação”. Sempre que a Constituição define um direito fundamental
ele se torna exigível, inclusive mediante ação judicial.
A partir da Constituição Federal de 1988 e, com a criação do Sistema Único de Saúde –
SUS, a prestação do serviço público de saúde não mais estaria restrita somente aos
trabalhadores inseridos no mercado formal mas, todos os brasileiros, independentemente de
vínculo empregatício, passaram a ser titulares do direito à saúde.
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Do ponto de vista federativo, a Constituição atribuiu competência para legislar sobre
proteção e defesa da saúde concorrentemente à União, aos Estados e aos Municípios (CF/88,
art. 24, XII, e 30, II). À União cabe o estabelecimento de normas gerais (art. 24, § 1º); aos
Estados, suplementar a legislação federal (art. 24, § 2º); e aos Municípios, legislar sobre os
assuntos de interesse local, podendo igualmente suplementar a legislação federal e a estadual,
no que couber (art. 30, I e II) 26.
No que tange ao aspecto administrativo (possibilidade de formular e executar políticas
públicas de saúde), a Constituição atribuiu competência comum à União, aos Estados e aos
Municípios (art. 23, II). Os três entes que compõem a federação brasileira podem formular e
executar políticas de saúde.
Logo após a entrada em vigor da Constituição Federal, em setembro de 1990, foi aprovada
a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/90). A lei estabelece a estrutura e o modelo operacional
do SUS, propondo a sua forma de organização e de funcionamento. O SUS é concebido como
o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais,
estaduais e municipais, da Administração direta e indireta. A iniciativa privada poderá
participar do SUS em caráter complementar. A Lei nº 8.080/90, além de estruturar o SUS e de
fixar suas atribuições, estabelece os princípios pelos quais sua atuação deve se orientar, dentre
os quais vale destacar o da universalidade – por força do qual se garante a todas as pessoas o
acesso às ações e serviços de saúde disponíveis.
2 DIRETRIZES DO JUDICIÁRIO NA POLÍTICA DE JUDICIALIZAÇÃO DA
SAÚDE
2.1 Audiência Pública/2009 - STF
O Supremo Tribunal Federal (STF), convocou uma audiência pública (AP), em maio
de 2009 objetivando obter subsídios para o julgamento de ações no âmbito da saúde. As
considerações apresentadas poderiam ser utilizadas para a instrução de qualquer processo,
tanto no STF como também disponibilizadas aos juízos e tribunais que o solicitassem.
Dentre os parâmetros definidos, podemos citar a seguinte grade decisória:
1. verificar se existe política pública que diga respeito à prestação de saúde pleiteada no caso
concreto;
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2. na hipótese de que não haja a política estatal específica, o Judiciário deve considerar:
(a) a existência de vedação legal para o fornecimento do medicamento, ou seja, os juízes
devem verificar se o medicamento possui registro na Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa);
(b) a existência de decisão do SUS de não fornecer o medicamento, expressa em Protocolos
Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do Sistema Único de Saúde (SUS) atualizados;
(c) se o medicamento encontra-se em fase de testes clínicos na indústria farmacêutica;
(d) se o tratamento alternativo oferecido pelo sistema público é adequado para o caso
específico do paciente;
(e) se o Executivo comprovou que haveria grave lesão à ordem, à economia, à saúde e à
segurança públicas na hipótese de concessão da tutela jurisdicional pretendida pelo paciente.
Segundo, Dallari (2013), por ocasião de seu posicionamento, o Ministro Gilmar Mendes
frisou que nenhum dos parâmetros apresentados é irrecorrível, mas que nas hipóteses
suscitadas é imprescindível que haja instrução processual, com ampla produção de provas, o
que poderá configurar-se um obstáculo à concessão de medida cautelar.
A AP teve um significado especial para o campo da saúde, pois representou o
reconhecimento da instância máxima do Poder Judiciário de que a saúde passou a ser uma
questão importante no cotidiano desse Poder. Esse tipo de procedimento adotado pelo STF
favorece o exercício da cidadania com vistas a uma participação efetiva da sociedade nos
rumos das decisões que têm caráter político e elevada abrangência. Justamente por servir
como um auxílio teórico sobre a questão da saúde e um “termômetro social” sobre as diversas
concepções em disputa, esta primeira AP contém em si elementos significativos para a análise
política da judicialização (Machado, 2012).
2.2 Fórum da Saúde/2010 - CNJ
A partir dos resultados da Audiência Pública nº 4, realizada pelo STF em maio e abril de
2009, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), constituiu um grupo de trabalho (Portaria n.
650, de 20 de novembro de 2009). Os trabalhos do grupo culminaram na aprovação
da Recomendação n. 31, de 30 de março de 2010, pelo Plenário do CNJ que traça diretrizes
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aos magistrados quanto às demandas judiciais que envolvem a assistência à saúde. Em 6 de
abril de 2010, o CNJ publicou a Resolução n.107, que instituiu o Fórum Nacional do
Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de assistência à Saúde – Fórum da
Saúde. O Fórum da Saúde é coordenado por um Comitê Executivo Nacional (Portaria n. 40 de
25 de março de 2014) e constituído por Comitês Estaduais. A fim de subsidiar com
informações estatísticas os trabalhos do Fórum, foi instituído, por meio da Resolução 107 do
CNJ, um sistema eletrônico de acompanhamento das ações judiciais que envolvem a
assistência à saúde, chamado Sistema Resolução 107. Desta feita, o CNJ afigurou-se como
protagonista na sistematização de uma política judiciária para garantir o equilíbrio entre a
imprescindível concretização do direito a saúde e a reserva possível do orçamento público, em
especial, os orçamentos dos Estados e Municípios.
Segundo o artigo 2º da Resolução nº 107, cabe ao Fórum Nacional do Judiciário: o
monitoramento das ações judiciais que envolvam prestações de assistência à saúde, como o
fornecimento de medicamentos, produtos ou insumos em geral, tratamentos e disponibilização
de leitos hospitalares; o monitoramento das ações judiciais relativas ao Sistema Único de
Saúde; a proposição de medidas concretas e normativas voltadas à otimização de rotinas
processuais, à organização e estruturação de unidades judiciárias especializadas; a proposição
de medidas concretas e normativas voltadas à prevenção de conflitos judiciais e à definição de
estratégias nas questões de direito sanitário; o estudo e a proposição de outras medidas
consideradas pertinentes ao cumprimento de seus objetivos.
Ao Comitê Executivo Nacional (Portaria n. 40 de 25 de março de 2014) compete:
conduzir as atividades do Fórum, bem como organizar a instalação e o funcionamento dele;
elaborar e fazer cumprir o programa de trabalho do Fórum; organizar encontros nacionais de
membros do Poder Judiciário, com ou sem a participação de outros segmentos do poder
público, da sociedade civil e de comunidades interessadas, para a discussão de temas
relacionados às suas atividades e para a proposição de medidas que contribuam para a solução
de questões relacionadas às demandas de assistência à saúde; promover a realização de
seminários e outros eventos regionais, com a participação de membros do Poder Judiciário, de
estudiosos e especialistas, e de tantos quantos tenham envolvimento com os temas de seu
interesse, para o estudo e o desenvolvimento de soluções práticas voltadas para a superação
das questões relacionadas às demandas de assistência à saúde; coordenar os trabalhos dos
Comitês Estaduais, propondo ações concretas de interesse local, regional ou estadual; realizar
reuniões periódicas ordinárias, ou extraordinárias, sempre que for necessário, para a condução
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dos trabalhos do Fórum; participar de outros eventos promovidos por entes públicos ou
entidades privadas, sempre que isso se mostrar próprio e adequado à sua integração
institucional ou contribuir para a concretização dos objetivos do Fórum; indicar membros dos
Comitês Estaduais ou Regionais para representar o Fórum em eventos locais ou mesmo de
caráter nacional, sempre que isso se mostrar mais conveniente e adequado para o interesse
público; manter a Comissão de Relacionamento Institucional e Comunicação
permanentemente informada de suas atividades.
Na solenidade de instalação do Fórum Nacional do Judiciário discursaram o
Conselheiro Milton Nobre e o então Ministro da Saúde José Gomes Temporão. Sobre o
slogan “A Justiça faz bem a Saúde”, proposto pela Desembargadora Marga Inge Barth, o
Conselheiro Milton Nobre disse que bem traduz os propósitos e os objetivos que pretende
alcançar ao mesmo tempo em que reafirma a nova postura do Judiciário que não mais se isola
na toga, não confunde imparcialidade com indiferença ou insensibilidade diante dos
problemas jurídico-sociais que são de sua competência solucionar e está, cada vez mais,
preparado para assegurar que nenhuma lesão de direito seja excluída de sua apreciação,
conforme comanda o inciso XXXV do art. 5º da Constituição da República. Milton Nobre
ainda asseverou que a criação do Fórum foi um dos desdobramentos da Audiência Pública nº
4 , realizada nos meses de abril e maio de 2009, pelo Supremo Tribunal Federal onde se
discutiram questões importantes relativas às demandas judiciais referentes ao fornecimento
de prestações de saúde e na qual ficaram constatadas carências e disfunções que contribuem
ou resultam dessas demandas, afetando, a um só tempo, a eficiência da prestação jurisdicional
e a qualidade das políticas públicas existentes, tais como: a falta de informações clínicas
prestadas aos magistrados a respeito dos problemas de saúde enfrentados pelos autores dessas
demandas; a generalizada concessão de provimentos judiciais de urgência, sem a audiência
dos gestores dos sistemas responsáveis por aquela política, mesmo quando essa audiência não
oferece qualquer risco de afetar o direito em causa, porém sua falta é tendente a prejudicar a
sustentabilidade e o gerenciamento do SUS; e a necessidade de maior difusão de
conhecimentos entre os magistrados a respeito das questões técnicas que se originam ou são
refletidas nas demandas por prestações de saúde, inclusive naquelas que resultam da
interatuação do Sistema Único de Saúde (SUS) e as organizações privadas. Para o referido
Conselheiro fala-se em “judicialização da saúde” como se fosse uma distorção, que precisa
ser combatida tal qual uma epidemia de ações judiciais, quando a observação constante da
realidade, demonstra exatamente o contrário, isto é, que a demanda judicial termina sendo,
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em não poucos casos, o único remédio eficaz e atualmente disponível pela sociedade para
enfrentar certas disfunções ou insuficiências do sistema, as quais decorrem da falta de regras
mais claras quanto aos direitos e deveres de cada qual dos atores, bem ainda sobre as suas
responsabilidades e limitações. No amplo campo aberto pela ausência de regras que vinculem
às decisões judiciais, aponta Milton Nobre, podem proliferar os vezos de oportunidade, os
excessos e até abusos em nome da defesa de um direito dos mais fundamentais (RAMOS,
2013).
A Recomendação nº 31/2010 do CNJ veio subsidiar a Saúde Pública, confirmando a
necessidade do estudo profundo e da discussão do assunto por advogados e juízes, e também a
necessidade de o Judiciário ouvir os técnicos para decidir, através de pedidos bem
fundamentados e documentados, pela defesa do interesse individual e de suas necessidades,
sem prejudicar completamente o coletivo, respeitando as políticas predefinidas, como
medicamentos registrados no órgão competente e vagas em UTIs . O CNJ recomenda que o
direito à saúde, matéria denominada Direito Sanitário seja estudada, pela sua extrema
importância, nas faculdades e também pelos magistrados, o que ainda não está acontecendo
(MOREIRA, 2013).
3 JURISPRUDÊNCIA NO DIREITO À SAÚDE
Verifica-se na jurisprudência, a cerca do direito à saúde, argumentos de aplicabilidade
direta e imediata de normas constitucionais por tratarem de direitos subjetivos em sentido
pleno e assim comportando tutela jurisdicional específica. A intervenção do poder judiciário
mediante determinações à Administração Pública, por exemplo, para que forneça
gratuitamente medicamentos, procura realizar a promessa constitucional de prestação
universalizada do serviço de saúde, bem como integral. Barroso (2008) no entanto, alerta
sobre os prejuízos das decisões:
O sistema, no entanto, começa a apresentar sintomas graves de que pode morrer da
cura, vítima do excesso de ambição, da falta de critérios e de voluntarismos
diversos. Por um lado, proliferam decisões extravagantes ou emocionais, que
condenam a administração ao custeio de tratamentos irrazoáveis – seja porque
inacessíveis, seja porque destituídos de essencialidade –, bem como de
medicamentos experimentais ou de eficácia duvidosa, associados a terapias
alternativas.
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No Tribunal de Justiça de São Paulo - TJSP, entre os anos de 2010 e 2014, em média
1154 processos foram julgados a cada ano. Em uma análise de 30 acórdãos do mês de
dezembro de 2014 realizados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em processos cujo pedido
envolviam a tutela de saúde, alguns pontos foram convergentes e reiteramente argumentados,
dos quais destacamos:
3.1 Aspectos gerais sobre a solidariedade (ou não) no polo passivo das ações
Dos 30 acórdãos analisados, 93% (28 acórdãos) dos casos a Fazenda Pública do
Estado de São Paulo foi acionada como pólo passivo contra 7% (2 acórdãos) em que foi
Município de São Paulo constituiu o polo passivo. Para o TJSP, há o entendimento de que os
entes (União, Estados e Municípios) respondem solidariamente e qualquer um pode ser
demandando conforme súmula nº37 deste mesmo tribunal “A ação para o fornecimento de
medicamento e afins pode ser proposta em face de qualquer pessoa jurídica de Direito Público
Interno”. Tal entendimento vai de encontro à decisão do Supremo Tribunal Federal:
Consolidou-se a jurisprudência desta Corte no sentido de que, embora o art. 196 da
Constituição de 198 traga norma de caráter programático, o Município não pode
furtar-se do dever de propiciar os meios necessários ao gozo do direito à saúde por
todos os cidadãos. Se uma pessoa necessita, para garantir o seu direito à saúde, de
tratamento médico adequado, é dever solidário da União, do Estado e do Município
providenciá-lo. (AI 5 0.530-AgR, rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 26-6-
2012, SegundaTurma, DJE de 16-8-2012.)
Em posição contrária, o Juiz Federal Roberto Fernandes Junior, da 2ª Vara Federal de
Joinville, reconheceu inexistir responsabilidade solidária entre os entes da República:
Por outro lado, a saúde pública, é matéria de competência concorrente dos entes
federativos. Tanto no plano normativo, a teor do que dispõem, em combinação, os
artigos 24, XII, e parágrafos, e 30, II, da Constituição Federal de 1988, como no
plano das ações administrativas, a teor do que dispõem, mais uma vez em
combinação, os artigos 23, II, e 30, VII, igualmente da carta política atual, é
imprescindível que se afirme: Competência concorrente, de que cuida o referido
artigo 24, ou a comum, de que cuida o igualmente referido artigo 23, não importam
em uma obrigação solidária entre os entes federativos, simplesmente, porque a
mesma carta política prevê, ou pelo menos, permite a repartição de competências
entre os entes federativos, ao estabelecer, em seu artigo 24, parágrafo 1º, que à
União caberá a edição de normas gerais sobre as matérias integrantes da
competência concorrente, e, em seu artigo 23, parágrafo único, que leis
complementares, que por certo, são federais, fixarão normas para a cooperação entre
a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio
do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional. Ainda nesse contexto, os
Estados-Membros e os Municípios, sem prejuízo de suas competências normativas
suplementares, ficam mais circunscritos às ações administrativas, no fornecimento
da saúde pública.” (Ação nº 2002.72.01.002757-1)
Affonso de Aragão Peixoto Fortuna, Procurador do Município de Joinville, ratifica a posição:
333
[...] a solidariedade entre entes públicos, em matéria de saúde, não existe, não está
configurada, não se encontra expressa. Nem a Lei Maior nem as leis ordinárias
falam em solidariedade. Se alguém interpretar que ela está ali presente, estará
presumindo, supondo. Mas como diz o Código Civil, a solidariedade não se presume
(“Art. 265. A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das
partes”).
Na organização da rede regionalizada e hierarquizada, ocorrem obrigações entre os
Entes participantes, havendo interdependência entre eles, de modo a compor um
sistema. Nenhum deles atua isoladamente e se um não for capaz, nem estiver
habilitado a praticar determinada ação, a obrigação é do outro, de modo a que seja
garantida a integralidade de atendimento. Existem, pois, obrigações conjuntas, nos
termos da regionalização e das obrigações repartidas, mas não a solidariedade do
Código Civil. A solidariedade existente não é jurídica, mas moral.
As responsabilidades referentes à execução das ações finalísticas, dividem-se entre a
União, os Estados e os Municípios. Pela União, através dos hospitais universitários e hospitais
especializados. Nos Estados, depende da política fixada pelo próprio Estado, por
determinação autônoma. Essa política é fixada na PPI (Programação Pactuada e Integrada) de
cada Estado em que são alocados recursos financeiros para cada município e definidas as
responsabilidades de cada qual, segundo as suas possibilidades. Em suma: a responsabilidade
entre os entes da Federação é repartida. À União cabem os procedimentos de alta
complexidade/alto custo; aos Estados, as de alta e média complexidade; aos Municípios, de
acordo com as PPI, as ações básicas e as de baixa complexidade e, segundo acordado com os
Estados, as de média e alta complexidade para as quais possuam recursos financeiros,
humanos e materiais.
3.2 Fornecimento de medicamentos: repartição de atribuições entre os entes
Diz a Portaria nº 3.916/98, do Ministério da Saúde, baixada sob autorização da Lei nº
8.080/90, que estabelece a Política Nacional de Medicamentos:
5. RESPONSABILIDADES DAS ESFERAS DE GOVERNO NO ÂMBITO DO
SUS
(...)
5.2. Gestor federal
Caberá ao Ministério da Saúde, fundamentalmente, a implementação e a avaliação
da Política Nacional de Medicamentos...
(...)
u. adquirir e distribuir produtos em situações especiais...
(...)
5.3. Gestor estadual
(...)
g. assegurar a adequada dispensação dos medicamentos...
(...).
334
m. definir o elenco de medicamentos que serão adquiridos diretamente pelo Estado,
inclusive os de dispensação em caráter excepcional...
(...).
5.4. Gestor municipal
(...).
h. definir a relação municipal de medicamentos essenciais, com base na RENAME...
i. assegurar o suprimento dos medicamentos destinados à atenção básica à saúde de
sua população...”.
Nos termos das regras do SUS, existem três classes de medicamentos:
a. os da RENAME – Relação Nacional de Medicamentos Essenciais, integrantes da Portaria
nº 2.475, de 13.10.06, para atender às doenças prevalentes, comuns, e que, por isso, devem ser
disponibilizados pelos municípios, nos termos da lista que elaborarem, segundo o acordo
firmado com cada Estado Federado, que deve fornecer os não integrantes das listas
municipais;
b. os excepcionais, constantes da Portaria nº 2.577/GM, de 27.10.06, e os integrantes dos
protocolos clínicos dirigidos a determinados tipos de doenças, como a AIDS (Recomendações
para Terapia Anti-retroviral em Adultos e adolescentes infectados pelo HIV), a hipertensão
arterial e o diabetes melitus (Portaria nº 371, de 04.03.02), os transplantes renais (Portaria nº
1.018, de 23.12.02) a doença de Alzheimer (Portaria nº 843, de 06.11.02), a Doença de
Parkinson, Asma grave e Hipelipidemia (Portaria nº 921, de 25.11.02), a artrite reumatóide
Portaria nº 865, de 12.11.02) a hepatite B (Portaria nº 860, de 12.11.02), a hepatite C (Portaria
nº 863, de 12.11.02) e outras, medicamentos estes destinados a: (a) doenças que configuram
problemas de saúde pública, (b) doenças de caráter individual; ou (c) doenças que envolvem o
uso de medicamentos não disponíveis no mercado, a serem disponibilizados pelos Estados-
membros, nos termos da Portaria MS nº 3.916/98, que, para tanto, recebem recursos
financeiros específicos da União, como, por exemplo, determina a Portaria nº 1.321, de
05.06.07;
c. os medicamentos não constantes das listas elaboradas pelo Ministério da Saúde, a serem
disponibilizados pela União, sempre que o Judiciário decidir que tais medicamentos devem
ser fornecidos, já que a União é responsável pela política de saúde e pela política de
medicamentos e é ela que elabora as listas e faz a repartição de competências entre os entes da
República.
Quanto à repartição de atribuições entre os entes, assim se manifestou a E. Ministra
Ellen Gracie, nos autos da Suspensão de Tutela Antecipada nº 91 (DJ 05/03/2007), in verbis:
335
[...]Ademais, a tutela concedida atinge, por sua amplitude, esferas de competência
distintas, sem observar a repartição de atribuições decorrentes da descentralização
do Sistema Único de Saúde, nos termos do art. 198 da Constituição Federal.
Finalmente, verifico que o Estado de Alagoas não está se recusando a fornecer
tratamento aos associados (fl. 59). É que, conforme asseverou em suas razões. “[...]
a ação contempla medicamentos que estão fora da Portaria n.° 1.318 e, portanto, não
são da responsabilidade do Estado, mas do Município de Maceió, [...]” (fl. 07), razão
pela qual seu pedido é para que se suspenda a “[...] execução da antecipação de
tutela, no que se refere aos medicamentos não constantes na Portaria n.° 1.318 do
Ministério da Saúde, ou subsidiariamente, restringindo a execução aos
medicamentos especificamente indicados na inicial, [...]” (fl. 11).
[...]Ante o exposto, defiro parcialmente o pedido para suspender a execução da
antecipação de tutela, tão somente para limitar a responsabilidade da Secretaria
Executiva de Saúde do Estado de Alagoas ao fornecimento dos medicamentos
contemplados na Portaria n.° 1.318 do Ministério da Saúde.
Sueli Dallari (2013) relata a preocupação com decisões arbitrárias, por exemplo:
[...] medicamentos cujo fornecimento ficaram a cargo dos Municípios, em
conformidade com a política nacional de saúde adotada em 2002 e reforçada em
2006, foram fornecidos pelo Estado por determinação judicial.
3.3 Fornecimento de medicamentos não registrados pela ANVISA
A Lei 8.080 de setembro de 1990 alterada pela Lei nº 12.401, de 2011 dispõe de forma
expressa:
Art. 19-T. São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS: (Incluído
pela Lei nº 12.401, de 2011)
I - o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e
procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela
Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA; (Incluído pela Lei nº 12.401,
de 2011)
II - a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de
medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa.”
Nos acórdãos do TJ/SP analisados dentro do escopo desta pesquisa, em alguns casos,
não houve observação da Lei 8.080/90, bem como a não adoção da diretriz apontada na
Audiência Pública/2009 do STF, onde há existência de vedação legal para o fornecimento do
medicamento, quando o medicamento não possui registro na Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa), como nos exemplos que seguem:
[...] a presente ação deve ser julgada procedente para confirmar a liminar
anteriormente deferida, garantindo assim o fornecimento à autora do medicamento
de que necessita até o oportuno julgamento da apelação. Irrelevante, no caso, não
tenha ainda a ANVISA concedido registro àquele medicamento e não há argumentar
com existência de alternativa de tratamento com medicamento diverso daquele que
foi prescrito [...].(Cautelar Inominada nº 0405857-16.2010.8.26.0000, Registro de
acórdão: 2014.0000837745 de 18/12/2014)
336
E nesta esteira, sobre a alegada ausência de registro do fármaco vindicado na
ANVISA, tenha-se presente, conforme já se adiantou na r. decisão que denegou o
pedido de efeito suspensivo, que indigitado medicamento, o qual já foi deferido
judicialmente por este e. Tribunal, diga-se, (Ap. Cível n.º 2038036-92.2014.0 0 ,
Rel. Des. Rui Cascaldi, j. 29 de abril de 2014), encontra-se aprovado na 'U.S. Fo d
and Drug Administration - FDA' e pela 'European Medicines Agency'
(www.Ema.europa.eu), sendo certo que simples consulta aos 'sites' evidencia o fato.
(AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2185107- 98.2014.8.26.0000, Registro de
acórdão: 2014.0000828947 de 18/12/2014)
Sueli Dallari (2013) relata a preocupação com decisões arbitrárias, como segue:
[...] mais de uma entre dez solicitações judiciais de medicamento atendidas
(10,71%) referem-se a drogas cujo uso naquela patologia não era recomendado pela
bula do laboratório fabricante, ou seja, tratava-se de uso não aprovado pelo órgão
sanitário.
A Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Saúde emitiu o parecer Nº 802/2012-
AGU/CONJUR-MS/HRP a respeito da ilegalidade de fornecimento judicial de medicamentos
sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), como exposto a seguir:
O próprio Poder judiciário, após intenso debate no seio da audiência pública n° 04,
realizada pelo Supremo Tribunal Federal para discutir as questões relativas às
demandas judiciais que objetivam o fornecimento de prestações de saúde, concluiu
expressamente, por meio da Recomendação Nº 31, DE 30 DE MARÇO DE 2010,
art. I, b.2), do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, que os Tribunais de Justiça dos
Estados e aos Tribunais Regionais Federais devem procurar evitar autorizar o
fornecimento de medicamentos ainda não registrados pela ANVISA, o que se
constitui em diretriz importante, a ser seguida por todo magistrado que se deparar
com ações dessa natureza.
Por fim, determinar judicialmente a dispensação de medicamento e insumos para a
saúde sem o devido registro na ANVISA, implica em negar vigência aos
dispositivos legais já referidos, matéria jurídica que, nos Tribunais, apenas pode ser
apreciada e decidida mediante a suscitação de incidente de inconstitucionalidade,
sob pena de ofensa à cláusula constitucional de reserva de plenário (art. 97,
CRFB/1988), repisada na Súmula Vinculante n° 10 do Pretório Excelso.
3.4 Conflito entre Poderes
O Poder Judiciário, ao apreciar demandas que o provocam a aplicar diretamente direitos
fundamentais no caso concreto e exigir do Executivo a cessação da omissão, muitas vezes, se sente
pressionado quando instado a proferir medidas cautelares. O Poder Executivo, em ocasiões quando
recebe a ordem judicial de prestar determinado serviço público, alega não dispor de dotação
orçamentária para tal execução por esta não ser prevista. Assim, tende a sacrificar a quantidade ou
qualidade dos serviços públicos que seriam destinados a outros cidadãos. Verifica-se que esta
situação não decorre de culpa exclusiva dos dois Poderes envolvidos. O Legislativo também deve ser
chamado para assumir seu papel nesse problema (FERNANDES, 2012).
337
Nos acórdãos do TSJ/SP analisados nesta pesquisa, há uma forte alegação de que não há
interferência do Judiciário na Política Governamental, como seguem:
Também não há como se acolher qualquer argumento de que os recursos são
limitados e que se deve adotar planejamento para o atendimento do maior número de
pessoas, ante a falta de recursos orçamentários e diante da oportunidade e
conveniência do Administrador. Não se verifica indevida intromissão do Judiciário
na seara da Administração. Tomado como “tabula rasa” o princípio constitucional de
harmonia e independência entre os Poderes, escaparia o caso à apreciação do
Judiciário, em afronta a garantia individual expressamente prevista no art. 5º,
XXXV, da Carta Magna, ante perigo de lesão ou ameaça a direito do apelado, não se
olvidando, de outro lado, infringência aos artigos 6º e 196 a 20 da Lei Maior.
(Apelação / Reexame Necessário nº 0007798-96.2013.8.26.0053, Registro de
Acórdão: 2014.0000826619 de 18/12/2014).
Não se trata de interferência do Judiciário em política governamental na área da
saúde, mas de determinação para cumprimento pelo ente público de obrigação
prevista em lei, que não vinha sendo atendida, afastada a tese de ofensa ao princípio
da separação dos poderes. O argumento de que atender ao autor seria privilégio a um
em detrimento dos demais necessitados é simplista, descabido, nivela por baixo.
Atender a todos, igualitariamente, é atender a cada qual dos pacientes, em suas
peculiares necessidades de saúde, em atenção ao dever do ente público de prestar
atendimento adequado e pleno à saúde dos cidadãos, e o melhor atendimento
possível. “Súmula 65: Não violam os princípios constitucionais da separação e
independência dos poderes, da isonomia, da discricionariedade administrativa e da
anualidade orçamentária as decisões judiciais que determinam às pessoas jurídicas
da administração direta a disponibilização de vagas em unidades educacionais ou o
fornecimento de medicamentos, insumos, suplementos e transporte a crianças ou
adolescentes” (Apelação nº 0002714-22.2010.8.26.0053, Registro de Acórdão:
2014.0000827928 de 18/12/2014)
4 CONCLUSÃO
O presente artigo analisou as normas e diretrizes nos processos que envolvem a tutela
do direito fundamental Saúde e sua aplicabilidade em trinta acórdãos no Tribunal de Justiça
de São Paulo no mês de dezembro de 2014. Observou-se que as normas e diretrizes nem
sempre são respeitadas por arguição da preservação do direito fundamental à Saúde, soberano
em relação às normas infraconstitucionais.
É preciso que o julgador seja capaz de identificar não apenas os argumentos que tem
como base atos legislativos em sentido próprio, mas também aqueles que se originam no
poder normativo da Administração, e ainda os que têm fundamento no poder normativo
propriamente público, derivado da efetiva participação das pessoas na definição e na
realização do direito à saúde.
338
Nesse contexto, concordamos com Barroso (2008) que há a necessidade de evolução
legislativa e administrativa em decorrência dessa mudança de paradigma no direito à saúde, o
qual valorizando os direitos humanos, instaura o neoconstitucionalismo.
Este estudo limitou-se ao confronto da prática do judiciário no TJ/SP e a alguns
pareceres da União, Estados e Municípios. É sabida a diversidade de práticas pelas diferentes
regiões do Brasil que culminam em diferentes posicionamentos que devem ser levados em
consideração.
O fenômeno da judicialização está longe de ser pacificado, uma vez que trata-se de
confronto de direto de um direito fundamental e a limitação econômica de recursos.
Acreditamos que as políticas públicas precisam ser tratadas com maior transparência e
eficiência para que o Princípio da Reserva do Possível possa ser observado nos casos
concretos.
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340