5583

4
96 Rev Bras Psiquiatr 2001;23(2):96-9 Memória Origens do uso da coca O envolvimento humano com substâncias psicoativas, em es- pecial a cocaína, retornam a um passado longínquo. O abuso de cocaína tem suas raízes nas grandes civilizações pré-colombia- nas dos Andes que, há mais de 4500 anos, já conheciam e utili- zavam a folha extraída da planta Erythroxylon coca ou coca bo- liviana, como testemunham as escavações arqueológicas do Peru e da Bolívia. A planta de coca cresce na forma de arbusto ou em árvores ao leste dos Andes e acima da Bacia Amazônica. Culti- vada em clima tropical e altitudes que variam entre 450 m e 1.800 m acima do nível do mar, continua sendo usada pelos na- tivos da região que a mascam. Numerosas lendas se referem a ela em associação aos mistérios sagrados da fertilidade, da so- brevivência e da morte, assim como de práticas curativas. O nome coca deriva de uma palavra aimará, “khoka”, cujo o Cocaína: lendas, história e abuso Cocaine: myths, history and abuse Pedro Eugênio M Ferreiraª e Rodrigo K Martini b ªDepartamento de Psiquiatria da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). b Faculdade de Medicina da PUC/RS. Resumo Descritores Abstract Keywords A civilização ocidental tem estado envolvida com múltiplos problemas sociais, sendo o abuso de drogas um deles. A cocaína e os transtornos decorrentes de seu abuso tornaram-se um problema de saúde pública. O presente trabalho tem como objetivo colaborar pelo aprofundamento da investigação histórica desse tema. Há mais de 4500 anos, as folhas de coca são usadas por índios da América do Sul. Com a industrialização no século XIX, a cocaína chegou aos países desenvolvidos da época. Na medicina, essa substância também se mostrou presente, sendo usada, tanto por Freud quanto por outros médicos, na tentativa de curar inúmeras enfermidades. No entanto, a maior disponibilidade e a queda dos preços nos últimos 30 anos possibilitaram que essa droga fosse usada abusivamente por um número crescente de pessoas, trazendo conseqüências assustadoras para a saúde do indivíduo e para a sociedade como um todo. Abuso de drogas. Cocaína. História. Western civilization is involved with multiple social problems and drug abuse is one of them. Cocaine and its abuse have become over the years a public health problem. This paper intends to provide a historical back- ground to the subject. For more than 4,500 years, South America natives have been using coca leaves. After the industrial revolution in the 19 th century, cocaine clorhydrate, an alkaloid present in the coca leaf, reached the developed countries. Many products, which main ingredient was cocaine, were consumed by famous people at that time, such as Vino Mariani, used by Pope Leo XVIII. In medicine, Freud and other doctors used cocaine with the purpose of healing various diseases. However, in the last 30 years, it became more available and its price dropped, making it accessible to an increasing number of people, resulting in alarming consequences to users’ health as well as for the whole society. Cocaine. Drug abuse. History. significado seria “a árvore”. 1 Para os incas, a planta era sagrada, um presente do Deus Sol (Inti), relacionada à lenda de Manco Capac, o filho do sol, que desceu do céu sobre as águas do lago Titicaca para ensinar aos homens as artes, a agricultura e para presentear-lhes com a coca. 2 Até a chegada dos espanhóis à América, seu uso era privilégio da nobreza Inca. No período colonial, porém, o consumo entre os índios se popularizou, ape- sar da oposição da igreja católica. 3-5 No Norte do Brasil, também é chamada de epadu. Muitas tribos da Bacia Amazônica, na re- gião fronteiriça entre Venezuela, Colômbia e Brasil, mantêm o hábito de mascar o “epadu” ou “ipadu” como forma de preparo das folhas torradas de coca misturadas com elementos alcalinos, transformadas em pó e agrupadas em pequenas bolinhas. Os homens e as mulheres mais idosos, principalmente da tribo dos Tucanos, ingerem o pó várias vezes ao dia, utilizando colheres

Upload: felipe240891

Post on 25-Nov-2015

5 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 96

    Rev Bras Psiquiatr 2001;23(2):96-9

    Memria

    Origens do uso da cocaO envolvimento humano com substncias psicoativas, em es-

    pecial a cocana, retornam a um passado longnquo. O abuso decocana tem suas razes nas grandes civilizaes pr-colombia-nas dos Andes que, h mais de 4500 anos, j conheciam e utili-zavam a folha extrada da planta Erythroxylon coca ou coca bo-liviana, como testemunham as escavaes arqueolgicas do Perue da Bolvia. A planta de coca cresce na forma de arbusto ou emrvores ao leste dos Andes e acima da Bacia Amaznica. Culti-vada em clima tropical e altitudes que variam entre 450 m e1.800 m acima do nvel do mar, continua sendo usada pelos na-tivos da regio que a mascam. Numerosas lendas se referem aela em associao aos mistrios sagrados da fertilidade, da so-brevivncia e da morte, assim como de prticas curativas.

    O nome coca deriva de uma palavra aimar, khoka, cujo o

    Cocana: lendas, histria e abusoCocaine: myths, history and abusePedro Eugnio M Ferreira e Rodrigo K Martinib

    Departamento de Psiquiatria da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). bFaculdade de Medicina da PUC/RS.

    Resumo

    Descritores

    Abstract

    Keywords

    A civilizao ocidental tem estado envolvida com mltiplos problemas sociais, sendo o abuso de drogas umdeles. A cocana e os transtornos decorrentes de seu abuso tornaram-se um problema de sade pblica. Opresente trabalho tem como objetivo colaborar pelo aprofundamento da investigao histrica desse tema. Hmais de 4500 anos, as folhas de coca so usadas por ndios da Amrica do Sul. Com a industrializao no sculoXIX, a cocana chegou aos pases desenvolvidos da poca. Na medicina, essa substncia tambm se mostroupresente, sendo usada, tanto por Freud quanto por outros mdicos, na tentativa de curar inmeras enfermidades.No entanto, a maior disponibilidade e a queda dos preos nos ltimos 30 anos possibilitaram que essa drogafosse usada abusivamente por um nmero crescente de pessoas, trazendo conseqncias assustadoras para asade do indivduo e para a sociedade como um todo.

    Abuso de drogas. Cocana. Histria.

    Western civilization is involved with multiple social problems and drug abuse is one of them. Cocaine and itsabuse have become over the years a public health problem. This paper intends to provide a historical back-ground to the subject. For more than 4,500 years, South America natives have been using coca leaves. After theindustrial revolution in the 19th century, cocaine clorhydrate, an alkaloid present in the coca leaf, reached thedeveloped countries. Many products, which main ingredient was cocaine, were consumed by famous people atthat time, such as Vino Mariani, used by Pope Leo XVIII. In medicine, Freud and other doctors used cocainewith the purpose of healing various diseases. However, in the last 30 years, it became more available and itsprice dropped, making it accessible to an increasing number of people, resulting in alarming consequences tousers health as well as for the whole society.

    Cocaine. Drug abuse. History.

    significado seria a rvore.1 Para os incas, a planta era sagrada,um presente do Deus Sol (Inti), relacionada lenda de MancoCapac, o filho do sol, que desceu do cu sobre as guas do lagoTiticaca para ensinar aos homens as artes, a agricultura e parapresentear-lhes com a coca.2 At a chegada dos espanhis Amrica, seu uso era privilgio da nobreza Inca. No perodocolonial, porm, o consumo entre os ndios se popularizou, ape-sar da oposio da igreja catlica.3-5 No Norte do Brasil, tambm chamada de epadu. Muitas tribos da Bacia Amaznica, na re-gio fronteiria entre Venezuela, Colmbia e Brasil, mantm ohbito de mascar o epadu ou ipadu como forma de preparodas folhas torradas de coca misturadas com elementos alcalinos,transformadas em p e agrupadas em pequenas bolinhas. Oshomens e as mulheres mais idosos, principalmente da tribo dosTucanos, ingerem o p vrias vezes ao dia, utilizando colheres

  • 97

    CocanaFerreira PEM & Martini RK

    Rev Bras Psiquiatr 2001;23(2):96-9

    de osso. Alm do valor nutritivo, esses indgenas buscam o bem-estar e a ao euforizante que fazem parte de seus cotidianos.Esse uso est intimamente integrado cosmoviso dessas tri-bos. Assim, a palavra que designa a coca, ahpi, tambm deno-mina leite, leite materno, via lctea, e o prprio nome da naoindgena habitada pelos ndios Tucanos.3,4

    Quando efeitos danosos ocorriam, no eram notados. ndiosperuanos que utilizavam cronicamente cocana apresentavam-se doentes e desnutridos. No trabalho pesado, realizado nasminas de estanho em grandes profundidades, os ndios perua-nos podiam apresentar o mesmo quadro doentio, assim como oobservado em ndios que no faziam uso de folhas de coca.1 Aquantidade de droga usada pelos ndios era bastante baixa. Aestimativa de que, em mdia, eram mascadas 60 g de folhaspor dia, ou seja, em torno de 200 mg a 300 mg de cocana.1Havia um limite, at mesmo fsico, do nmero de folhas capa-zes de ser mascadas, servindo at como uma segurana contraos efeitos txicos da cocana.

    Os primeiros relatos europeus sobre esse vegetal so de au-toria de Amrico Vespcio (1499), publicados em 1507, nosquais descreve a coca sendo mastigada com cinzas. O uso con-comitante, no ato da mastigao, de cinza ou bicarbonato desdio, utilizado at hoje, deve-se ao fato de sua absoro pelamucosa da cavidade oral apenas se realizar em pH alcalino. Asua ao farmacolgica, quando mascada, semelhante ao es-tmulo provocado pela ingesto de doses elevadas de cafena,no sendo, no entanto, acompanhada de euforia. Os hispnicosno reconheceram esse valor cultural, e, em 1551, o ConselhoEclesistico de Lima declarou ser a coca uma planta enviadapelo demnio para destruir os nativos; ela seria um obstculopara a difuso do cristianismo, explicando o insucesso de mui-tas campanhas de converso. A proibio no durou muito tem-po, pois os espanhis constataram que os ndios no consegui-am fazer o trabalho pesado sem o uso de coca. Em 1569, o ReiFelipe II da Espanha declarou o ato de mascar a coca como umhbito essencial sade do ndio.2,3

    No final do sculo XVI, a coca foi introduzida na Espanhapelos conquistadores para fins medicinais e como supostoafrodisaco, porm seu uso no se difundiu nessa poca.2

    A cocana na medicinaComo a herona, a cocana uma droga relativamente recen-

    te no arsenal das substncias de origem vegetal. Em 1855, oqumico alemo Friedrich Gaedecke conseguiu o extrato dasfolhas de coca, o erythroxylene. Quatro anos mais tarde, em1859, o qumico alemo Albert Niemann conseguiu isolar, en-tre os seus numerosos alcalides, o extrato de cocana, repre-sentando o principal deles (80% do total). Os demais alcalidescompreendem a nicotina, a cafena e a morfina. Tambm soencontradas, em concentraes menores, a tiamina, a riboflavinae o cido ascrbico. Aproximadamente 100 gramas de folhaspodem suprir as necessidades dirias dessas vitaminas. Somenteem 1898, foi descoberta a frmula exata de sua estrutura qu-mica. Em 1902, Willstatt (prmio Nobel) produziu cocana sin-ttica em laboratrio. Sob a forma de cloridrato de cocana, acocana forma um p branco cristalino.

    No incio, a cocana foi considerada um frmaco milagroso,e os americanos comearam a prescrev-la para enfermidadesparticularmente difceis de tratar. Tentaram empregar a coca-na no tratamento como um antdoto radical da morfina. Freudcontribuiu de maneira decisiva para a divulgao da nova dro-ga, quando, em 1884, publicou um livro chamado Uber coca(sobre a cocana), no qual defendeu seu uso teraputico comoestimulante, afrodisaco, anestsico local, assim como indi-cado no tratamento de asma, doenas consuptivas, desordensdigestivas, exausto nervosa, histeria, sfilis e mesmo o mal-estar relacionado a altitudes.6,7 O prprio Freud utilizava co-cana em doses de 200 mg por dia. Ele recomendava dosesorais da substncia entre 50-100 mg como estimulante eeuforizante em estados depressivos. Freud utilizou cocana paratratar um amigo, o mdico Ernest von Fleischl Marxow, quehavia se tornado dependente de morfina, prescrita para umquadro de dor intensa, por ter amputado a perna. O resultadofoi um quadro de dependncia dupla. Ernest von FleischlMarxow desenvolveu delrios paranides e alucinaes de for-migamento, tornando-se intratvel. Freud tambm tratou oamigo Karl Koller, que recebeu o apelido de Coca-Koller de-vido dependncia desenvolvida com esse frmaco. Aps qua-tro anos de sua publicao original, Freud voltou atrs, ren-dendo-se s evidncias de que a droga milagrosa tinha umasrie de inconvenientes, comeando pelo seu potencial de criardependncia cocainomania que, em muitos casos, substi-tua a morfinomania ou mesmo se combinava com ela. Em1892, Freud publicou uma continuao de Uber coca, modi-ficando seu ponto de vista, originalmente favorvel coca-na.2-5 No obstante, alguns autores, como Bucher (1992), de-fendem a tese de a cocana ter contribudo indiretamente paraque Freud realizasse a descoberta dos processos inconscientes,permitindo a criao da psicanlise. Dessa forma, Freud teriaresgatado sua dvida com a humanidade, oferecendo um novoe poderoso instrumento para a autocompreenso sem toxicidade,embora no to inofensivo para o sono tranqilo, baseado naignorncia sobre o prprio respeito da sociedade.

    Em 1884, Karl Koller descobriu que o olho humano torna-va-se insensvel dor com o uso de cocana, representando oprimeiro passo para a anestesia local.6 Wiliam S Halsted, queseria conhecido como um dos pais da cirurgia moderna e umdos fundadores da Faculdade de Medicina da UniversidadeJohns Hopkins, tambm pesquisou a cocana por volta de 1880.Na tentativa de estabelecer o uso da droga como anestsicolocal, no ficando restrito oftalmologia, Halsted passou aadministrar cocana em si mesmo e em outros. Ele e seus cole-gas obtiveram sucesso no bloqueio da dor, iniciando a era dascirurgias oculares, entre outras, mas o preo desse achado foiuma intensa dependncia e, conseqentemente, a deterioraoprofissional. Acreditando (incorretamente) que a morfina e acocana pudessem substituir uma outra, Halsted utilizou mor-fina para tratar sua dependncia de cocana, tornando-se, tam-bm, dependente de morfina at o final de sua vida.5

    Ainda no sculo XIX, mais precisamente no ano de 1863,um qumico da Crsega, ngelo Mariani, inventou uma mis-tura de folhas de coca com vinho, denominando-a de Vin

  • Rev Bras Psiquiatr 2001;23(2):96-9

    98

    CocanaFerreira PEM & Martini RK

    Mariani. Essa bebida foi experimentada e apreciada por pes-soas famosas, como Thomas Edson, H. G. Wells, Jules Verne eo Papa Leo XVIII, que premiou o qumico com uma medalhade ouro. Em mdia, um litro de vinho continha entre 150 mg eno mais que 300 mg de cocana. Assim, dois copos de vinhoMariani continham menos de 50 mg de cocana, quantidadeinsuficiente para causar qualquer efeito nocivo em humanos.8Em 1886, John Styth Pemberton criou um soft drink isentode lcool, para estar de acordo com os princpios religiosos dasociedade americana do sculo XIX, mas com cocana (60 mgpor garrafa de oito onas, aproximadamente 240 ml) e comextrato de noz de cola, que era usado como tnico para o cre-bro e os nervos. Assim nasceu a Coca-Cola. Atualmente, a co-cana foi substituda por cafena, sendo o alcalide retirado dafrmula em 1906, ainda que folhas de coca descocainizadascontinuem sendo empregadas no seu preparo.4-6,9

    At 1885, as folhas da coca eram levadas da Amrica do Sulpara outros pases, onde eram transformadas em produtos, masperdia-se muito da concentrao de cocana nas longas viagens.Em 1885, um qumico, trabalhando para indstria farmacuticaParke Davis, revolucionou a produo ao descobrir uma manei-ra de produzir cocana semi-refinada nos prprios pases ondeestavam instaladas as fbricas.8 Viagens e armazenamento dasfolhas de coca foram simplificados, os preos caram, e o consu-mo de cocana semi-refinada aumentou substancialmente. Des-sa forma, houve uma rpida exploso de fbricas de medicaesutilizando a cocana em diversos produtos. Operando na ausn-cia de leis ou regulamentos que limitassem a venda ou o consu-mo, a cocana tornou-se presente em farmcias, mercearias ebares. Uma nica fbrica, em 1885, oferecia cocana em 15 dife-rentes formas, incluindo cigarros, charutos, inalantes, cristais,licores e solues.10 No de espantar que episdios detoxicidade, tolerncia, dependncia e, at mesmo, morte pelouso de tais produtos passassem a ser relatados em revistas mdi-cas no incio dos anos 20. Os problemas tornaram-se ainda maisfreqentes e graves quando, na mesma poca, surgiram comer-cialmente seringas hipodrmicas, facilitando a chegada de umamaior quantidade de cocana na corrente sangnea.8

    Alm de todos esses aspectos, a cocana surgiu na culturaocidental desde o sculo passado, deixando rastros na literatu-ra, na arte e nas diversas condutas da moda. Ressalta-se umaafinidade curiosa da cocana com o romance policial do autoringls Stevenson. O romancista teria escrito Dr. Jekyll e Mr.Hyde sob efeito da droga, sendo que os dois protagonistasrepresentam com exatido o fenmeno de dissociao de per-sonalidade em dependentes da substncia. Arthur Conan Doyle,autor do personagem Sherlock Holmes, era um notrio consu-midor de cocana. O mesmo, em diversos momentos, colocavao personagem envolvido em problemas decorrentes da droga.Um desses episdios de fico tratava de um encontro deSherlock Holmes com Freud para tratar sua dependncia.3

    O abuso de cocana na atualidade fato, amplamente divulgado nos dias atuais, que o uso abusivo

    de cocana tem se constitudo em um problema cada vez maiorna sociedade. As complicaes neuropsiquitricas e

    cardiocirculatrias, assim como os transtornos sociocu-pacionais, econmicos e legais associados ao seu abuso, fa-zem com que esse fenmeno necessite ser cada vez mais estu-dado. O aumento das taxas de morbidade e mortalidade pare-cem ser devido a uma diminuio no preo da droga e um au-mento da sua disponibilidade. Um maior nmero de pessoas uti-liza a droga em concentraes e doses cada vez mais elevadas,dados que nunca tinham sido relatados num passado recente.11

    Depois de um uso abusivo de cocana, no final do sculopassado, como foi citado anteriormente, nas primeiras dcadasdo sculo XX, o consumo mundial dessa droga pareceu ter di-minudo de forma importante, com exceo dos pases andinos,onde a substncia continuava a ser consumida.9 Relatos de com-plicaes decorrentes do consumo da substncia passaram aser divulgados, como no livro Der Kokainismus de HansMaier, publicado em 1926, que levava a um maior conheci-mento dos riscos associados ao uso de droga.12

    O surgimento de regulamentaes e leis restritivas, como otratado de Haia (1912), Harrison Act, de 1914, nos EUA, ou oDecreto-lei Federal n 4.292 de 6 de julho de 1921, no Brasil,tornaram a cocana menos disponvel para a populao em ge-ral. O conhecimento da populao sobre os efeitos nocivos dacocana em grandes quantidades tambm ajudou no declnio douso de droga. Alm disso, na dcada de 1930, as anfetaminas eoutras drogas estimulantes mais baratas e com efeitos estimu-lantes mais duradouros que a cocana tornaram-se disponveis,provavelmente ganhando a preferncia de muitos usurios pr-vios de cocana.5,12 Depois de 50 anos, o mundo depara-se com oressurgimento da cocana como uma droga de largo consumo.

    Trs reas de aplicao teraputica da cocana foram iden-tificadas com bases cientficas.13 Topicamente, a cocana mos-trou-se como um efetivo anestsico local oftalmolgico, pro-duzindo tambm vasoconstrio das mucosas. Entretanto, ou-tros anestsicos de mesma eficcia presentes no mercado soatualmente utilizados, pois no esto associados aos poss-veis efeitos adversos da cocana, incluindo borramento visu-al e ulcerao da crnea. Numa segunda aplicao, por mui-tos anos, a cocana compreendeu um dos componentes dasmisturas de drogas utilizadas para o tratamento das dores depacientes com cncer terminal. Imaginava-se que a adio dadroga diminusse o grau de conscincia dos pacientes. Estu-dos controlados no demonstraram benefcio de tal associa-o. Tambm nos casos mais severos de dores de cabea, acocana apresentou excelentes resultados quando aplicada peloforamen esfenopalatino, embora esses resultados sejam de umpequeno estudo.14

    O ressurgimento de uso abusivo de cocana nos ltimos 30anos no de fcil explicao. No incio da dcada de 70,havia pouca literatura demonstrando a toxicidade dessa dro-ga e suas conseqncias na sade e no desempenho do usu-rio. Justamente nessa dcada, a cocana ressurge como a dro-ga de escolha para um suposto uso recreacional, que cola-borava para a crena de que a droga segura, sem risco decausar dependncia.12 Foi a partir dos anos 80, com o aumen-to da oferta de cocana no mercado de todos os pases ameri-canos, que essa concepo comeou a mudar. Esse aumento

  • 99

    CocanaFerreira PEM & Martini RK

    Rev Bras Psiquiatr 2001;23(2):96-9

    da oferta deve-se, principalmente, a uma maior produo e auma distribuio mais eficaz realizadas por alguns cartis detraficantes sul-americanos. Essa maior oferta, com um preomuito menor, fez com que o uso de cocana aumentasse e sediversificasse bastante.9,15 Segundo informe do NIDA(National Institute of Drug Abuse), em 1994, o consumo oca-sional e o regular de cocana diminuram, ao passo que o con-sumo freqente aumentou.16

    Um sculo se passou desde a descoberta da cocana comoum agente anestsico por Karl Koller, at o momento dosurgimento do crack , em 1985, nas Bahamas.8 Com o ad-vento do crack a partir da metade dos anos 80, o mundotestemunha uma nova fase da histria da cocana, pelo me-nos com relao ao potencial de toxicidade. Novos estudos

    Referncias1. Karch SB. The history of cocaine toxity. Hum Pathol 1989;20(11):1037-9.2. Hernndez L, Snchez MAM. Cocana (I). Farmacologia. Intoxicao

    aguda. In: Lorenzo P, Ladero JM, Leza JC, Lizasoain I. Drogodependencias- Farmacologia, Patologa. Psicopatologia. Legislacin. Madrid, Espaa:Editorial Medica Panamericana; 1999. p. 113-34.

    3. Bucher R. Drogas e drogadio no Brasil. Porto Alegre: Artes Mdicas;1992. p. 323.

    4. Maia CRM, Juruena MFP. Cocana: aspectos histricos, farmacolgicos epsiquitricos. Rev AMRIGS 1996;40(4):263-73.

    5. Nicastri S. Fluxo sanguneo cerebral em dependentes de cocana. Rela-es entre psicopatologia e neuroimagem [Tese]. So Paulo: Faculdade deMedicina da Universidade de So Paulo; 1999.

    6. Haas LF. Coca shrub (Erythroxylum coca). J Neurol Neurosurg Psychiatry1995;50(1):25.

    7. Moriarty KM, Alagna SW, Lake CR. Psychopharmacology. An historicalperspective. Psychiatr Clin North Am 1984;7(3):411-33.

    8. Karch SB. Cocaine: history, use, abuse. J R Soc Med 1999;92(8):393-7.9. Laranjeira R, Nicastri S. Abuso e dependncia de lcool e outras drogas.

    In: Almeida OP, Dratcu L, Laranjeira R. Manual de Psiquiatria. Rio deJaneiro: Guanabara Koogan; 1996. p. 97-102.

    10. Bailey BJ. Looking back at a century of cocaine - use and abuse.Laryngoscope 1996;106(6):681-3.

    11. Ferreira PEMS. Estudo do efeito agudo de desafio farmacolgico comdipiridamol sobre a perfuso regional cerebral em pacientes com uso crnicode cocana [Dissertao]. Porto Alegre: Pontifcia Universidade Catlica dePorto Alegre; 2000.

    esto sendo realizados com relao ao crack, montandoum novo captulo dessa histria.

    ConclusoCertamente a histria da cocana no chegou ao fim. Talvez

    o comportamento do homem frente a uma substncia encon-trada nas folhas de um arbusto tenha tomado propores nuncaimaginadas h pouco mais de um sculo, causando tantos da-nos sociedade atual.

    Espera-se que, com os avanos da cincia e das pesquisas,novas substncias retiradas do mundo natural possam servir aohomem, e que a experincia obtida com a cocana no se repitacom os novos agentes teraputivos que certamente surgiro nahistria da humanidade.

    12. Gawin FH, Khalsa ME, Ellinwood E. Stimulantes. In: Textbook of substanceabuse treatment. Ed. American Psychiatric Press Inc; 1994. p. 111-39.

    13. Strang J, Johns A, Caan W. Cocaine in the UK - 1991. Br J Psychiatry1993;162:1-13.

    14. Barre F. Cocaine as an abortive agent in cluster headaches. Headaches1982;22:353-6.

    15. Diamond R, Barth JT, Stout CE, Koziol L. Neuropsychological aspects ofsubstance abuse and addictive disorders. In: The Neuropsychology ofmental disorders - A practical guide. Springfield-Illinois: Ed. Publishey;1994. p. 147-69.

    16. Kopp P. A economia da droga. So Paulo: EDUSC; 1998. p. 274.

    CorrespondnciaPedro Eugnio Mazzucchi FerreiraRua Itabora, 1478 apto. 602.90670-030 Jardim Botnico, Porto Alegre, RSTel.: (0xx51) 346-5100E-mail: [email protected] / [email protected]