age de carvalho

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1 Age de Carvalho

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Page 1: Age de Carvalho

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Age de Carvalho

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Age de Carvalho nasceu em Belém do Pará, em 1958. Concluiu seus estudos primário e ginasial no Colégio Moderno, em Belém, e se formou em Arquitetura pela Universidade Federal do Pará em 1981. Lançou seu primeiro livro de poemas, Arquitetura dos Ossos, em 1980. Editou a página de poesia Grápho nos jornais paraenses A Província do Pará e O Liberal entre 1983-85, atuando também como tradutor. Passa o ano de 1984 em Innsbruck, Áustria. No final de 1986 retorna à Europa para se fixar em Viena. De 1991 a 2000 vive em Munique, Alemanha, e a partir deste ano muda-se definitivamente para Viena, onde hoje reside. Como designer gráfico atua em várias revistas austríacas e alemãs na função de diretor de arte. Em 2006 é publicada na Alemanha a extensa antologia poética Sangue-Gesang ("Cantos do Sangue") traduzida por Curt Meyer-Clason. A poesia desse escritor retira sua força do hermetismo e do estranhamento. Age de Carvalho opera no limite da inteligibilidade. Cada poema seu parece um enigma, cifrado por meio de um percurso intertextual complexo e de referências pessoais inacessíveis ao leitor. Mas essa dificuldade de decodificação é intencional: seus poemas não são escritos para serem "compreendidos" em sua hesitação entre som e sentido (segundo a fórmula de Valéry), mas fazem do duplo ato de escrever e ler um árduo processo de nomeação das coisas; não tiram efeito estético da representação de algo, mas são algo cujo esforço de representação se transforma em experiência estética: "Distância,// ainda,// do que se ergueu,/ destro, entre a tua mão/ e a minha/ mão, do ante-/ instante, disto:// uma verdade,/ se planta de pé,/ pára-botânica, de palma/ a palma —/ o que em tempo de floração/ ainda subsiste, respirando,/ entre espaço/ e entre-/ espaço". Quase não há uma estrutura sintática ligando as palavras sobre a página; elas se justapõem como pequenas ilhas cujo conjunto harmônico só se percebe ao fim da leitura. Cada palavra ou conjunto de palavras parece lentamente lapidada (e muitas vezes cindida) em meio a silêncios que se intercalam. Seria tentador atribuir essa dicção árida ao auto-exílio de Age de Carvalho (sua condição de "turista terminal") e à familiaridade com poetas de língua alemã como Heine,Trakl e Celan (esse último, conhecido justamente por um hermetismo que representa a impossibilidade da representação numa época de catástrofes históricas). Mas o escritor paraense desenvolve sua obra em intenso diálogo com outros poetas brasileiros, sobretudo conterrâneos paraenses como o já "clássico" Mário Faustino (1930- 62), um autor mais jovem como Antônio Moura (cujo Hong Kong e Outros Poemas, de 1999, traz as marcas da leitura de Age de Carvalho) e um escritor de obra consolidada como Max Martins — com quem escreveu A Fala Entre Parêntesis (1982) na forma de renga (jogo poético de origem japonesa em que dois ou mais poetas escrevem em cadeia). Autor de extensa obra, que inclui livros como O Estranho (1952), Anti-retrato (1960), H'Era (1971) e Para Ter Onde Ir (1992), Max Martins criou um lirismo ao mesmo tempo intenso e controlado, que "guarda o silêncio/ antes do incêndio" e que progressivamente vai fazendo que palavras e versos adquiram a textura daquilo que nomeiam: "Pedra/ Penetra o silêncio/ Solitária pedra-silêncio". Não é difícil ver nesse binômio "soletrado/calcinado" (conforme poema de Max Martins)

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um ponto comum entre os dois escritores paraenses, separados pela idade e pela geografia, mas muito próximos nessa poética que produz sentido através do ocultamento do sentido. Age de Carvalho, ainda é um culto para poucos amigos. Um caminho diferenciado na poesia brasileira, que o isola quando o deveria destacar. Escavador de correntes subterrâneas, oferece textos cifrados, misteriosos, que não aceitam a elucidação imediata e o código de barras. A realidade de seus versos é conquistada, apanhada aos sorvos, aos corvos. É uma peça de oratório, poesia tão pura que se assemelha a um transe. Livros publicados, todos títulos de poesia: *Arquitetura dos ossos (Editora Falângola/Semec, Belém, 1980) *A fala entre parêntesis junto com Max Martins (Edições Grápho/Grafisa/Semec, Belém, 1982), *Arena, areia (Grafisa/Edições Grápho, Belém, 1986) *Ror: 1980-1990 (poesia reunida e o livro inédito Pedra-um, Editora Duas Cidades, Coleção Claro Enigma, SP, 1990) *Móbiles (junto com Augusto Massi, 7 Letras, Rio, 1998) *Caveira 41 (Cosac & Naify/7 Letras, São Paulo, 2003) *Seleta, antologia poética (Editora Paka-Tatu, Belém, 2004)

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Boca Age de Carvalho a minha e a tua: o ímã das línguas lança promessas, letra-sobre-letra À vera, a tempestuosa mão da rasura subjaz negra no plural dos pêlos à procura do selo mais profundo, funda. De Arena, areia (1986)

3 Age de Carvalho As bananeiras indecentemente alvoroçando suas pernas amplamente às serpentes de pluma: antros do inferno: as formações cruéis, passando: nuvens É que vens nu, e as nuvens te amoralçam assanham ecos, sonham o silêncio atrás dos muros Mais alto a fala do sol de ensina às pedras te insinua às sombras (que estão nos antros — fendas noturnas)

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Claro-escuro de linguagens subterrâneas, ânus para a fala de dois espíritos: Escritura, filtro de luz, as marcas inscritas no crânio da palavra, verão de alfabetos esquecidos, sílabas, louras mitologias manchadas no muro Que existe/insiste escuro para manhãs, amanhos, aventuras: A Ilha do Tesouro, a mala do defunto, o escaravelho — a fala se amofina estéril e lisa, espuma ao gozo de neblinas SANGUE-SHOW Age de Carvalho Esse o tempo— em-sempre da serpente, seu recobrado sentido circular nas glebas do sangue. Chão, subcutáneo, chão— aqui se apaga a veia vida/obra, aqui a cobra (intra-

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vírgula venenosa) insinua entre ramas brilhantes seu eterno s: aqui, é-se. Revista Inimigo Rumor, 7 (1999)

Finados Age de Carvalho De madrugada

passa vazio, cheio

de sombras,

o Souza–Marambaia

todo iluminado

em frente

ao Goeldi –

ali, alheia entre

répteis, aléias e sonho

esplende a flor

da vitória-régia,

seu olho-açu, imenso

aberto no meio

da escuridão.

És Age de Carvalho ÉS, és, és

o tempo

todo, exausto

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a folhear o Inferno

de Nachtwey,

sete palmos acima

entre fogos:

no odor vulgar da menta,

na idéia de estar,

confusão de estrelas, na eterna

espera atrelada à despesa

mesma de tuas horas

sem a resposta,

latido na mata,

floral-

selado,

no envelope do Iapi

fechado

sobre a mesa,

és, és ainda.

Em cima,

do avesso, o cão puxa o homem pela coleira.

Se és

esse

homem, levanta.

Zu Hause Age de Carvalho à Lívia Lopes Barbosa O sangue

ralentado (mar

com mar)

no reencontro com a baía,

a velha mangueira,

recém-capada, te reconhece

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no fólio em folha,

abres onze janelas,

respiras água:

é setembro,

estás de volta

em casa.

Ano Novo Age de Carvalho De passagem na plena idade, sem tenda e estrela e longe da selva, perambulando num lavatório de aeroporto à espera da pantera, vorado por dentro a farejar o círculo extravagante que conduza à via nova

do início de tudo

.

quando avisto, brilhante-

perfeito, céu do êxito, luminoso aviso

em vermelho, Saída,

e solar-radiante

a flecha.

Guia Age de Carvalho Oés-a-esmo,

de esmolar caminho,

seguindo a estrela aviã, via

de reis sob o troar de latas –

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Ave,

o Talvez

é chegado, traz o presente

do avenir, blindado tempo de cegos:

esse um todo

cravejado Se de certezas.

A piscina Age de Carvalho Numa lata de óleo

aflorava o pé

de cidreira à beira

da piscina

de pastilhas color-

idas: o sorriso

da onça na polaroid

flamejante era

tempo,

couro, gases

no sopro do corpo,

ouro

na mandíbula jovem

que brilhava por nós,

que por ti brilhou

e se fechou após

quarenta e cinco

verões.

Veio Age de Carvalho

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Veio,

veio Áries, as forças,

a espiral,

do cifrado chifre e um número

de ouro, Quatro, herdado

de ti,

Um-pai,

pastoreando agora o carneiro

dourado para fora

do quarto,

perdida a córnea

palavra, pós-operatória,

que, soprada,

talvez, talvez

levasse

a ti.

A Caminho Age de Carvalho Do grande Verão, ãa,

abre a porta, saúda:

o fumo de rosas

do atrium patrício,

a contrabandeada estrela síria

que te acena Elena,

guerra

nos cabelos de Louise

torres de álcool folhas d’alba palmas abertas no sempre

Terra!

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terra parente nos sapatos de Elias e Abraão.

Saúda e agradece.

Remida, consolada

uma pedra

infartada sobrevoa o coração.

Hölderlin Age de Carvalho Pro-

fere

a palavra,

refere

a ferida.

Fazer com, fazer de Age de Carvalho

Estar, entre

estrelas e pedras,

interrompido.

Resto de

ervas, tempo, entre dentes

detém-se

a palavra-refém,

réstia.

O Circulo Age de Carvalho O CÍRCULO na areia, o que no

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grão de

grande

há, sim sens, não nens

a fala sem sentido

que é

isto: menos que

isto, isso.

A vocês Age de Carvalho de coração, lego o jogo

da concórdia

entre irmãos que são —

longe de mim,

libertos então

de mim

(Beijo a imagem:

verão, vocês

descendo a Gärtnergasse

em senso único,

pisando o chão do mesmo sangue,

manos, mãos

dadas).

Dobrada a esquina,

mundo-rei chegam

notícias do front: eles

a postos,

cada um

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latindo a sua missa,

a boca cheia

de Deus.

Corcovado Age de Carvalho à Nelci Frangipani

Uma última vez

antes de subirmos,

braços abertos sobre

a flora brava, aqui

em baixo, onde colho

a despedida –

o tempo

só de abraçar

o abricó-da-praia,

meu amigo,

enquanto tu, trezentas

e terrena, davas

comida aos gatos.

POEMA COMPLEMENTAR SOBRE O RIO Age de Carvalho

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A José Maria de Vilar Ferreira O rio consagrado: a vazante lembrança que escoa em maré baixa e retorna — água escura — na preamar O rio sagrado: invólucro do céu e margem, e duas margens dos caboclos amantes. O rio passado: cismando na crisma, paresque dumas lembranças que trabalham a solidão: o paralelo das margens, uma igara partida, as águas sujas que sempre voltam. A CADELA Age de Carvalho Caminhava grave pela casa

a cadela.

A cabeça quieta era sua altivez

quadrúpede no centro da cozinha.

Caminhava. Os olhos, costelas,

o mar de ossos, o coração

pardo e lento – caminhava.

A manhã debruçava-se pela janela: cristais no pó,

o púcaro da china, horas de louça

batendo nas palavras na sala da casa.

A cadela caminhava, dura,

secular.

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(Domingo dormia

prolongado como um funcionário feriado).

Vivera demais. Descansava à sombra,

perto do quarador.

Sonhava farta, invisível,

a cadela azul,

nua

(o sexo velho e molhado,

um caranguejo arcaico sob o rabo).

Dormia, vazia.

Outubro doía longe, na Ásia,

quando a Fuluca anunciou: "A Catucha morreu".

De ROR (1980-1990) São Paulo: Claro Enigma, 1990 IN ABSENTIA Age de carvalho E: ainda uma chance —

uma pedra se refolha

para o repouso,

o instante é

sempre presença

Ror de erros,

recolho repetidos

o que ainda me pertence

NISSO Age de Carvalho que ascendeu se revelou e esqueceu ponhamos uma pedra

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SUMA Age de carvalho Quantas vezes

ainda por repetir?

Estão comigo, todas

de segunda mão,

não classificadas

ó anel

círculo mancha ervas

sombra relva irmã

estrela erro tumba

por companhia

pedra pedra pedra

A JOÃO CABRAL DE MELO NETO Age de Carvalho só dizer

o que sei

e duvido saber, o sal

pela mão

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do rio-sem

resposta —

um luxuoso dizer, de vagar sem onda

e vaga, fluvial, não aliterado;

um dizer repetido na diferença,

barrento, semi-dito, em Não fechado;

ou o não-dito, rios sem discurso,

nome por dizer ou dizer empedrado;

dizer sim o raro e claro do poema,

dizer difícil e atravessado, com margem

de erro

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