o imaginario tipografico pos moderno

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O imaginário tipográfico pós-moderno Flávio Vinicius Cauduro, Doutor, PUCRS[1]

RESUMO:

O trabalho tece algumas reflexões e críticas sobre a função do designer e o papel de sua subjetividade na prática tipográfica, segundo as óticas modernas e pós-modernas, tentando traçar um paralelo dessas duas correntes com as posições semióticas de Saussure e Peirce sobre questões similares. É apresentada ainda uma tentativa de classificação das principais fontes de inspiração dos designers pós-modernos, profissionais e amadores, na criação de seus tipos, com exemplos recolhidos de sites da Web.

A palavra tipografia, de acordo com o etimologista E. Partdrige (1961: 746-47) vem do francês typographie (1500-1700), que é por sua vez uma palavra derivada do latim medieval typographia, que se originou da combinação de typus — que significa padrão, tipo, protótipo, modelo, símbolo, um padrão recorrente em doenças — e graphia, que significa escrita. Por sua vez, essas duas palavras latinas vem respectivamente das palavras gregas tupos — significando tipo, marca ou impressão causada por um forte sopro ou impacto de um modelo numa superfície — e grapheia, significando escrita. O que se observa de imediato é que a palavra tipografia está associada desde sua origem com a noção de uma escrita realizada com marcas ou sinais típicos repetidos.

Uma definição genérica para tipografia poderia ser então simplesmente a de “uma escrita com tipos”, isto é, uma escrita realizada através de símbolos padronizados, formados e replicados uniformemente, totalmente despersonalizados, e representando basicamente letras, números, sinais de pontuação e outros auxiliares. Mas como o designer Jan Tschichold já havia advertido a seus leitores, no início de sua carreira de teórico do design tipográfico, “tipografia significa mais do que simplesmente ‘escrita com tipos’.’’ (Tschichold 1935/1967: 54).

Para o então jovem Tschichold, tipografia era vista como uma arte gráfica bi-dimensional que deveria ser praticada não apenas por alguns mas por todos os impressores (Tschichold 1935/1967: 26 e 55), os quais deveriam enfatizar a assimetria na diagramação, o contraste acentuado de cores, pesos e tamanhos dos tipos, e a experimentação de soluções não-convencionais.

Para Tschichold, o designer-tipógrafo deveria ser um inventor de novas formas, que tiraria partido das novas tecnologias de sua época:

“Os signos e letras da sala de composição não são os únicos meios à disposição da nova tipografia ... . Da mesma forma que a fotografia normal, existem variações que podem participar na nova tipografia; por exemplo, fotogramas ... fotos em negativo, dupla exposição e outras combinações ... . Qualquer um ou todos esses recursos podem ser usados, a serviço da expressão gráfica ... . Embora a fotografia seja o meio mais importante de expressão pictórica na nova tipografia, ela não exclui o uso de desenhos lineares à mão-livre ou diagramáticos.” (Tschichold 1935/1967: 84-86)

Ele ainda recomendava, para contrastar com a uniformidade dos tipos, o uso ocasional de letterings desenhados à mão (p. 54). Como se vê, Tschichold estava propondo já naquela época, no raiar do design gráfico modernista, do qual ele seria um dos expoentes maiores, que a tipografia fosse encarada como uma prática interpretativa, mediadora, da escrita, muito antes dos pós-estruturalistas e desconstrucionistas gráficos dos anos 80 e 90.

O que Tschichold estava a reivindicar, na realidade, era o direito de todo designer de poder expressar sua subjetividade através de uma prática expressiva da tipografia — algo que ele próprio, mais tarde, e os designers modernistas do International Style e da Escola Suíça, que lhe seguiram, reprimiriam enfaticamente, em nome dos valores supostamente superiores do novo estilo modernista que haviam inventado e que seria, no entender deles, garantidor de uma legibilidade ótima. Isto se obtinha, pressupunham, utilizando tipos de fontes grotescas, sem-serifas, como a Futura, a Standard, a Univers e a Helvética, ajudados pelos contrastes extremos de cores, tamanhos e espessuras de todos os elementos gráficos da página, e a neutralidade emocional do designer, que deveria resistir a todo custo à tentação da auto-expressão (Tschichold 1966), para preservar a pureza e funcionalidade do estilo minimalista da Nova Tipografia, que deveria evitar a todo custo introdução de ruídos ornamentais e superficialidades estéticas. Em seu livro A Nova Tipografia (1928/1995), ele afirmava que “A essência da Nova Tipografia é a clareza. Isto a coloca em deliberada oposição à velha tipografia, cujo objetivo era ‘beleza’ e cuja clareza não atinge o alto nível que necessitamos hoje em dia” (Tschichold 1928/1995: 66). “É essencial dar pura e direta expressão ao conteúdo do que for impresso” (p. 67). “As velhas idéias de design devem ser descartadas e novas idéias desenvolvidas. É óbvio que design funcional significa a abolição da ‘ornamentação’ que tem reinado por séculos... . um ceder a um instinto primitivo de decorar – que revela, em última análise, medo à aparência pura. ... O importante arquiteto Adolf Loos, um dos primeiros campeões da pura forma, já escrevia em 1898: ‘Quanto mais primitivo um povo, mais extravagantemente eles usam o ornamento e a decoração. ... Insistir na decoração é colocar-se no mesmo nível de um Índio. O Índio em nós deve ser derrotado. ... Vemos hoje na tendência à ornamentação uma tendência ignorante que nosso século deve reprimir. ... Mesmo a combinação de fios

paralelos grosso & fino é um ornamento e deve ser evitado.” (p. 69-70). “Os melhores tipos são aqueles que podem ser usados para qualquer fim, e os máus são aqueles que só podem ser usados para cartões de visitas ou livros de hinos religiosos. Uma boa letra é aquela que se expressa, ou antes ‘fala’ com a maior distinção e clareza. E um bom tipo não tem propósito algum além o de ser da maior clareza possível” (p. 78). Nesse ponto, o ideário de Tschichold parece querer implementar na prática os dogmas estruturalistas do linguista Ferdinand de Saussure, pai da semiologia, a respeito da escrita, conforme seu Curso de Linguística Geral do início do século, que afirmava, entre outras coisas que “A mesma pessoa pode escrever t, por exemplo, de modos diversos [t, t, T]. O único requisito [para a leitura correta do sentido do signo] é que o signo para t não seja confundido na sua escrita com os signos usados para l, d, etc.” (Saussure 1916/1974: 119-20). Ele desprezava quaisquer contribuições do estilo da enunciação para o seu sentido. Por isso, acrescentava, “uma vez que o signo gráfico é arbitrário, sua forma pouco importa, ou ainda, importa apenas dentro das limitações impostas pelo sistema” (Saussure 1916/1974: 120). O que acarretava, portanto, que “Os meios pelos quais o signo é produzido é completamente sem importância, pois ele não afeta o sistema... . Se faço as letras em branco ou preto, em relêvo ou gravadas, com lápis ou buril – tudo isso pouco importa com respeito à significação” (Saussure 1916/1974: 120). Conclusão: o design e a produção gráfica do texto só seriam significativos enquanto operassem para a sua melhor legibilidade ou diferenciação sistêmica; estilos e formas particulares de representá-lo nada tinham a acrescentar de valor ao sentido das expressões. O jogo dicotomizado de contrastes visuais era só o que restava ao designer. Mais tarde, o linguista dinamarquês Louis Hjelmslev esclareceria melhor essa ideologia cientificista: “Os elementos da estrutura linguística trazem a mente as entidades usadas na álgebra... . Enquanto seguirmos as condições expressas, podemos representar as entidades algébricas como quisermos [porque a substância dos significantes pouco importa para a significação]... .” (Hjelmslev 1963/1970: 41). Ou seja, tanto para Saussure como para Hjelmslev, a função da escrita era puramente notacional, visava somente o registro das falas mentais do autor, e a única expressividade admitida era a linguística. Mas esse recalque puritano da subjetividade na tipografia só se manteve enquanto o ideologema da legibilidade reinou absoluto na comunicação. Pode-se reprimir a subjetividade por algum tempo mas não por todo o tempo, no campo da escrita, como viriam a argumentar mais tarde os pós-estruturalistas. Na verdade, Tschichold tentava reprimir a subjetividade do outro, pois a sua própria ele a exprimia privilegiadamente, como se fosse a Lei do Pai, do Outro Moderno (ainda que puritano). Um leitor de Hong Kong, comentando

recentemente uma coleção de antigos ensaios de Tschichold (The Form of the Book: Essays on the Morality of Good Design) no site da Amazon Books, diz isso bem claramente: “Ele expõe muitas ‘regras’ para o design de livros, mas muitas delas seguem seu gosto pessoal e são apresentadas num tom autoritário, ditatorial e condescendente. Não existe, na sua ótica, espaço algum para a criatividade no design de livros, ao contrário todos os livros devem seguir seu design.”

Felizmente, segundo a semiótica Peirceana, a subjetividade é sempre levada em conta, está sempre presente no processo de significação (semiose), transparecendo sempre em qualquer ato comunicativo (nem que seja através de erros e atos falhos). Ela abrange as três dimensões básica do sujeito semiótico: a racional, a existencial e a emocional. Essa divisão dá origem à três classes ontológicas básicas de signos: os legisignos, que são signos do pensamento racional, regulados e compartilhados por convenções, regras e leis comunitárias; os sinsignos, que são signos de coisas e eventos singulares existentes num dado lugar e num dado tempo para sujeitos observadores; e os qualisignos, que são signos de sentimentos e emoções de cada sujeito em relação às qualidades de suas próprias percepções. Os legisignos (ou types) seriam formas, e os sinsignos (ou tokens) e os qualisignos (ou tones) seriam atualizações das formas, ou substâncias, na semiologia de Hjelmslev (Cauduro 1990).

A partir dessa divisão, que estabelece três modos possíveis de ser do signo (e o sujeito também é um signo), Peirce deriva mais uma tricotomia, que classifica os signos segundo cada um dos três tipos de relação que eles podem ter com os objetos que representam: os símbolos, os índices e os ícones. Os símbolos guardam uma relação de equivalência, codificada cultural ou socialmente, com seus objetos, que reafirmam leis e regras habituais de representação (são os signos arbitrários a que Saussure se referia em sua teoria semiológica). Os índices guardam uma relação de contiguidade ou conexão espacial, temporal ou causal com seus objetos, pressupondo que são válidas certas ligações pressupostas entre eles, como verificadas por experiências anteriores ou a serem comprovadas. Os ícones, por sua vez, guardam uma relação de semelhança com os objetos que representam, enfatizando uma identidade qualquer de qualidades entre eles (índices e ícones são os signos motivados da semiologia de Saussure; Cauduro 1990).

O que nos interessa aquí é ressaltar que, dependendo do sujeito predicante, da sua situação num dado instante e conforme sua formação sociocultural, a interpretação (ao escrever ou ao ler) que ele dará aos significantes de um texto poderá seguir qualquer uma dessas três classes de signos. Isto é, qualquer marca, figura ou grupo de sinais, dependendo do momento, do viés da leitura e da relevância num dado contexto, poderá ser interpretado preferencialmente, como um símbolo, ou como um índice, ou como um ícone - ou como todos

esses três tipos, sucessivamente, e em qualquer ordem. Como escreveu Peirce certa vez, “a pegada que Robinson Crusoe encontrou na areia … para ele era um Índice de que alguma criatura estava em sua ilha, e ao mesmo tempo, como um Símbolo, evocava a idéia de um homem” (Peirce 1931: IV, 414). Naturalmente, a noção de “pegada” já pressupunha uma leitura inicial icônica daquela marca na areia.

Portanto, nenhum sinal é jamais exclusivamente simbólico, indicativo ou icônico, nem tampouco necessitará ser arbitrário (não-motivado) para ser considerado um signo, como queria Saussure, uma vez que qualquer signo, além de poder pertencer a um código ou classe sociocultural típico, sempre poderá se assemelhar com alguma coisa já percebida anteriormente e sempre poderá indicar algo factual, dependendo do seu leitor e independentemente da intenção ou vontade do seu enunciatário. Qual das três funções prevalecerá numa determinada leitura vai depender da relevância maior ou menor de cada uma delas naquele momento específico para um sujeito também específico (embora seja possível quase sempre prever com razoável confiança o tipo de leitura que poderá ser o preferido pela maior parte do público leitor considerado, pela lei do menor esforço).

Aplicando esse raciocínio à questão da significação tipográfica, observamos que o modo icônico de leitura dos tipos vai ser o responsável pelas reações emocionais imediatas associadas aos tipos por similaridade, ou seja, por associação com outros signos de qualidades semelhantes; o modo indicial de leitura, por sua vez, vai sugerir traços visuais específicos de possíveis objetos ou eventos (espaciais, temporais ou causais) contíguos aos tipos; e o modo simbólico de leitura vai produzir mensagens linguísticas equivalentes aos arranjos e formas visuais literais exibidos pelos tipos, segundo determinados códigos ou sistemas de escrita.

Assim, ao ler um texto estamos enfocando não só suas propriedades linguísticas de ordem simbólica (compartilhada), indicativa (dêictica) e icônica (onomatopaica), mas, com maior ou menor atenção, dependendo de nossa sensibilidade, experiência e motivações, também as suas propriedades gráfico-visuais de ordem simbólica (tipos regulados por um código visual quanto às suas formas estruturais básicas e as formas de articulação entre eles), de ordem indicativa (traços de agentes, instrumentos, processos e meios de produção gráficos) e de ordem icônica (atributos visuais qualitativos, como desenho, cor, tamanho, orientação, textura, contraste, número, etc. de linhas, superfícies, volumes).

Freud, por exemplo, estava bem ciente dessa pluralidade de leituras, ao escrever:

“Qualquer um pode descobrir por auto-observação que existem diversas espécies de leitura, em algumas das quais nós não prestamos atenção ao que é

lido. Quando estou lendo provas [de composição] com o objetivo de prestar especial atenção às imagens visuais das letras e a outros signos tipográficos, o sentido do que eu leio me escapa tão completamente que tenho de ler as provas novamente, se quero corrigir o estilo. Quando, por outro lado, estou lendo um livro que me interessa, por exemplo uma novela, passo por alto de todos os erros de impressão, e pode ser até que o nome dos personagens da mesma me deixam apenas uma lembrança confusa na mente – uma vaga idéia, talvez, que ou são compridos ou são curtos, ou que contém alguma letra não usual, tal como um ‘x’ ou um ‘z’.” (Freud 1986: 181, ênfases minhas)

Atualmente, podemos constatar que o design gráfico modernista, instituído por Tschichold, Josef Albers, Herbert Bayer, Paul Renner, Emil Ruder e seguidores, procurou compensar sua extrema simplicidade e economia de meios e tipos, assim como a ausência de decorações, pelo emprego constante de fortes contrastes e disposições assimétricas, assim como pela disposição de textos segundo três direções retilíneas básicas (horizontal, vertical, diagonal) para compor o layout da página. A filosofia desse tipo de design era a de restringir (ou polarizar, sempre que possível) o número de variáveis gráficas à disposição do designer, para fins de economia, rapidez e previsibilidade na ordenação das informações. Em suma, a comunicação seria realizada o mais eficazmente possível pelo design, supunham eles, quanto mais direta, simples e repetitiva fosse a forma visual das mensagens. Obviamente, na concepção dos modernistas a comunicação se resumia basicamente à “transmissão” de informações, isto é, à duplicação pelo receptor dos conteúdos simbólicos (denotados) das mensagens formuladas pelo emissor, através dos signos gráficos.

Mas com o tempo as soluções tornaram-se repetitivas e monótonas e o design gráfico passou a ser realizado quase que mecânicamente, baseado em fórmulas simplórias e desgastadas, enquanto o designer se tornava cada vez menos criativo e cada vez mais invisível. Essa situação viria a mudar radicalmente com o aparecimento da fotocomposição e a popularização do fotolito e da impressão offset nos anos 60, que integraram todos os elementos gráficos (tipos, fotos, retículas, desenhos, ilustrações, etc.) num só suporte-matriz, ampliando significativamente as possibilidades da litografia do século XIX, que já havia se mostrado um método de produção de grande flexibilidade e recursos expressivos (como para a impressão de partituras de música e criação de cartazes artísticos, por exemplo).

Os jovens designers começam a explorar com rapidez as características fotográficas das artes-finais e dos fotolitos de gravação das chapas, obtendo resultados inéditos e surpreendentes, destacando-se aí os trabalhos de Wolfgang Weingart. Ao mesmo tempo, a produção de novas fontes de tipos foi facilitada, pois passaram a ser desenhados e não mais gravados, mas ainda permanecendo sob o contrôle de alguns poucos especialistas. Nessa mesma época aparecem as letras e retículas de transferir (Letraset, Mecanorma) que

também estimularam a inventividade tipográfica dos designers e artistas gráficos, pois os arranjos dos tipos se libertam totalmente da malha tipográfica dos linotipos e das galés de composição.

Com o surgimento do computador pessoal gráfico em 1984 (Apple Macintosh), da linguagem PostScript (Adobe) e das primeiras impressoras digitais a laser (Canon) em 1985, e dos softwares de diagramação PageMaker (Aldus) e de criação de fontes Fontographer (Altsys) em 1986, abrem-se totalmente as portas da experimentação aos jovens designers digitais, que vão derrubar sistematicamente todas as regras, preceitos, dogmas e tabús tipográficos dos velhos modernistas.

No momento em que aparecia o Desktop Publishing (DTP), como veio a ser chamada essa nova tecnologia tipográfica computadorizada, aparecia em Sacramento, na California, a Émigre Graphics, fundada em 1984 por Zuzana Licko e Rudy VanderLans, e que passava a ser a primeira produtora independente de tipos da era Macintosh. Zuzana inicialmente criou fontes pixelizadas de baixa resolução, sem importar-se com o crueza dessas criações, pois para ela o mais importante era experimentar as possibilidades e dominar a nova tecnologia oferecida aos iniciantes da tipografia digital. Além disso, ela acreditava que os tipos não eram intrinsicamente legíveis ou ilegíveis, mas sim que era a nossa maior ou menor familiaridade com eles que determinava seu grau de legibilidade. Você lê melhor aquilo que lê em maior quantidade, sejam textos em Univers, sejam textos em Fraktur. Da mesma maneira, acrescenta ela, tipos considerados ilegíveis hoje poderão ser considerados clássicos amanhã ou daquí há 100, 200 anos (Zuzana Licko 1993).

Em poucos anos, a Émigre Graphics começou a lançar novas fontes de tipos, agora com alta resolução. A recepção favorável recebida da nova geração, juntamente com o sucesso comercial do empreendimento, inspirou outros designers, como Neville Brody e a dupla Just van Rossum & Erik van Bloakland a lançarem suas próprias produtoras tipográficas.

O que se observa nesse aparecimento de pequenas produtoras independentes de tipos digitais, assim como nas primeiras criações de fontes digitais por curiosos e leigos, é que inicialmente a preocupação era de como resolver as formas básicas das letras em baixa resolução (ainda poucos tinham acesso a uma laserprinter) - de maneira inteligível (valor simbólico), mas ainda assim exibindo, se possível, uma certa expressividade e funcionalidade (valores icônico e indicial) que as tornassem inconfundíveis . Era um desafio estético, pois se exigia a manutenção das formas tradicionais das letras analógicas sob a restrição de uma grade bitmap de baixa resolução.

Gradualmente, com a superação dos limites da baixa resolução pela linguagem PostScript e pela popularização das impressoras a laser, a atenção dos designers se voltou para a inovação das formas dos tipos através de recursos

inéditos e complexos (deformações, borramentos, fragmentações, hibridações, sombreamentos, texturizações, etc.) que enfatizassem cada vez mais a expressividade dos tipos e dos textos. Com a ajuda do poderoso software processador de imagens chamado Photoshop (lançado pela Adobe em 1988), os novos designers de tipos começaram a explorar referências estéticas cada vez mais subjetivas, assim como efeitos gráficos que citavam cada vez mais a vivência particular de cada um com o desenho de tipos. Torna-se cada vez mais evidente que os designers estão ansiosos por tornarem a tipografia e a diagramação meios de expressão definitivamente artísticos. Em vez de cultivarem, como faziam os modernistas, o valor maior legibilidade e inteligibilidade da ordem simbólica, eles/elas procuram ao invés dar vazão às mais diversas fantasias de seus imaginários pessoais, reintroduzindo, como na época inicial do modernismo (do art nouveau, do futurismo, do dadaísmo e do expressionismo) o sujeito idiosincrático, com seus desejos, suas preferências e sua cultura específicos, no campo da criação e da expressão tipográfica.

Nesse movimento de recuperação do caráter subjetivo/diferenciativo do design tipográfico, que resultou no aparecimento de várias correntes pós-modernistas na visualidade gráfica contemporânea, observa-se que existem 3 principais modalidades de intervenção da expressividade e criatividade do designer nos textos tipográficos:

a) pela criação de novas fontes, ou alteração de fontes já existentes;

b) pela inovação na articulação visual do texto e no layout da página tipográfica; e

c) pela combinação simultânea das duas possibilidades anteriores.

Como vemos, a pós-modernidade é basicamente a reintrodução da subjetividade, do imaginário idiosincrático do designer, que havia sido completamente reprimido na alta modernidade nos seus projetos comerciais. Nesse movimento de regresso às raízes artísticas do design, de desmistificação do seu caráter pseudo-científico, de revalorização da retórica e da emotividade sobre a lógica fria, observamos que a intuição e a imperfeição são muito valorizadas, porque tendem a ser marcas únicas de cada sujeito e de cada contexto social no momento histórico específico de resolução de problemas comunicacionais. Ou seja, as soluções de design tendem a ser cada vez mais circunstanciais, provisórias, imprevisíveis, concretas. Isso parece explicar o fascínio atual dos designers pela aleatoridade, chance, acaso e efemeridade em suas criações e projetos – é uma estratégia que torna suas criações únicas, pessoais e irreplicáveis, totalmente diferenciadas daquelas produzidas em computador por curiosos e técnicos e que tendem a seguir velhas fórmulas modernistas sem nenhuma inovação.

Os graffitis, as pichações, os erros, “ruídos” e falhas de impressão, as hibridações ocasionais, etc., são recursos cada vez mais valorizados pelos novos designers, pois representam tudo aquilo que a racionalidade, a lógica pura e determinística, e a repetividade incessante dos meios automatizados se opõem e restringem em sua inumana, fria e inútil busca pela perfeição técnica e pureza das formas.

Para finalizar essas breves considerações sobre o imaginário tipográfico contemporâneo pós-moderno, poderíamos citar ainda algumas tendências (ou fontes de inspiração) atuais para a criação de novas fontes e formas de tipos, conforme pesquisadas por Valles (2001) e por mim nos sites de fontes da Web, tanto em catálogos de produtoras de tipos de vanguarda como nas listas de download disponibilizadas por designers amadores da tipografia pós-moderna. Essas tendências classificamos, a grosso modo, de acordo com as seguintes características:

Fontes Bitmap ou Pixelizadas – formas tipográficas inspiradas numa opção que anteriormente era uma limitação; resultam de tipos alfanuméricos gerados obedecendo a uma matriz retangular de pixels (bitmap) de baixa resolução, característica das primeiras fontes digitais produzidas para impressoras de agulha e para uso nas telas de videogames, de monitores de computadores e em relógios digitais com display de cristal líquido.

Fontes Techno – fontes promovidas principalmente pelas jovens escolas de design gráfico inglesa, alemã e japonesa; caracterizadas pelas formas baseadas em ângulos retos, de espessura geralmente uniforme, visual simplificado, emulando estilos de letterings vistos em plantas e desenhos técnicos de engenharia, arquitetura, quadrinhos e filmes de ficção científica; parecendo ser produzidas por instrumentos de desenho, ou em normógrafos e plotters de canetas, parodiam a neutralidade e cientificidade modernista; são muito utilizadas em flyers de raves.

Fontes Revival ou Retro – fontes que são releituras de estilos de fontes populares em outras épocas; são geralmente pastiches que não se levam muito a sério nem se preocupam muito com a exatidão da citação. Exploram a nostalgia e o saudosismo.

Vernaculares – fontes que se inspiram em elementos gráficos anedóticos da literatura e da arte popular, do folklore, assim como em métodos populares de escrita e em impressos de dispositivos gráficos de baixa qualidade tipográfica (rotuladores, xeroxes, faxes, carimbos, tipos xilogravados, tipos de antigas máquinas de datilografia, tipos pintados, escritos a giz, caligrafados, etc.)

Informais e Idiossincráticas – fontes baseadas na escrita à mão-livre de uma pessoa e geralmente expressando um gosto ou estilo seu muito específico, pouco ortodoxo.

Grunges – fontes anárquicas que se caracterizam por um design sujo, imperfeito, desleixado, algumas vezes ilegivel, e que geralmente se inspiram em graffitis, pichações, deteriorações, colagens e raspagens, etc.

Randômicas – fontes de tipos cujas outlines ou background são variáveis à cada impressão em função de irregularidades aleatórias introduzidas pela linguagem PostScript nas curvas matemáticas que descrevem o contorno de cada tipo. Cada impressão é única, sem nunca repetir exatamente uma mesma forma. As primeiras fontes randômicas foram criadas pelos designers holandeses Just van Rossum e Erik van Blokland em 1989. Suas criações mais conhecidas são as famílias de tipos randômicos Beowolf e BeoSans.

Por exemplo, 6 impressões sucessivas do ampersand de uma Beowolf poderiam ser:

Beowolf 21

BeoSans Soft Regular R11

Híbridas – fontes que resultam de uma mistura fragmentada de estilos de resultados imprevisíveis, não apresentando uma lógica simples de geração de seus tipos; enfatizam rupturas, falhas, caos, desordem, fragmentação, mistura de estilos diferentes.

Fontes de Artifício – são geralmente produzidas através de processo de aplicação uniforme de um ou mais efeitos especiais de Photoshop, ou resultantes de outros algorítmos analógicos ou matemáticos de formação ou transformação regulares de forma; exploram efeitos transformativos coletivos sobre fontes já existentes, sem se preocupar em inventar novas formas individuais.

Dingbats – fontes que não são, via de regra, de tipos alfanuméricos mas sim pictóricos ou esquemáticos, e que exploram temas derivados de cartoons, símbolos científicos e comerciais, elementos decorativos, pictogramas de sinalização, marcas e logos comerciais, sinais, molduras, fios, linhas, etc.

O que se observa em todas essas tendências pós-modernas é um posicionamento lúdico e irônico dos designers na interpretação ativa do código alfanumérico da escrita ocidental, recusando-se a adotar uma postura neutra ou invisível. Existe uma forte tendência desses novos designers de marcarem seus textos com traços e rastros da materialidade de sua différance, baseados em suas esperiências e preferências individuais, como que afirmando a singularidade, espontaneidade e efemeridade de suas manifestações aquí e agora, ao invés de tentarem formular soluções dogmáticas, em nome de causas ou utopias coletivas redentoras ou transcendentais. O que é muito bom para todos e para a renovação do design gráfico.

Mais que uma simples opção estilística, essas novas tendências mostram que não se devem procurar identidades fixas e permanentes, que o sujeito pós-moderno é instável, contraditório e cambiante, assim como suas criações, e que julgamentos de valor não tem cabimento quando se trata de expressar a singularidade de eventos ou subjetividades circunstanciais.

Segundo este novo paradigma, iremos constatar cada vez mais criações do design tendentes ao mutante, ao instável, ao cambiante. Assim como a identidade visual da MTV está em constante transformação, por exemplo, assim também as novas fontes tipográficas, daquí para a frente, tenderão cada vez mais à constante mutabilidade, como antevemos a partir das fontes Beowolf e BeoSans.

Porque, como dizia Saussure, “a diferença produz significação”. Sermos diferentes implica em sermos significantes, e isso é o que todos nós desejamos.

Referências Cauduro, Flávio V. (1990) ‘Semiotics and Design: For an intertextualized dialogical praxis’, PhD thesis, Department of Typography & Graphic Communication, University of Reading.

Freud, Sigmund (1986) The Essentials of Psychoanalysis, selected, introduced and commented by Anna Freud, translated from the German by James Strachey, London: Penguin Books

Hjelmslev, Louis (1963/1970) Language: An Introduction, translated by Francis J Whitfield, Madison, Wisconsin: The University of Wisconsin Press (First published in 1963 as Sproget: En introduktion, Copenhagen: Berlingske Forlag).

Licko, Zuzana (1993) Émigre Graphics: Graphic Design into Digital Realm, New York: Van Nostrand Reinhold.

Meggs, Philip B. (1998) A History of Graphic Design, 3rd ed., New York: John Wiley & Sons, Inc.

Partridge, E. (1961) Origins: A Short Etymological Dictionary of Modern English, 3rd edition, London: Routledge & Kegan Paul.

Peirce, Charles Sanders (1931) Collected Papers, ed. by Charles Hartshorne and Paul Weiss, vols I - VI, and by Arthur W Burks, vols VII & VIII, Cambridge: Harvard University Press (Vol I: 1931; vol II: 1932; vol III: 1933; vol IV: 1933; vol V: 1934; vol VI: 1935; vol VII: 1958; vol VIII: 1958).

Saussure, Ferdinand de (1916/1974) Course in General Linguistics, ed. by C Bally and A Sechehaye with A Reidlinger, translated by W Baskin, rev. ed., London: Fontana/Collins (First published in 1916 as Cours de linguistique générale, Geneva)

Tschichold, Jan (1928/1995) The New Typography: A Handbook For Modern Designers, translated by Ruari McLean, with an introduction by Robin Kinross, Berkeley: University of California Press (First published in German in 1928 by the Bildungs verband der Deutschen Buchdrucker).

Tschichold, J (1935/1967) Asymmetric Typography, translated by Ruari McLean, London: Faber & Faber Limited (First published in 1935 as Typographische Gestaltung, Basle)

Tschichold, Jan (1966) Treasury of Alphabets and Lettering: A Source Book of the Best Letter Forms of Past and Present for Sign Painters, Graphic Artists, Commercial Artists, Typographers, Printers, Sculptors, Architects, and Schools of Art and Design. New York: Reinhold Publishing.

Valles, Luciane Rosinato (2001) “Tipografia Pós-moderna”, Monografia de conclusão do curso de Publicidade & Propaganda, orientada pelo Prof. Flávio V. Cauduro, Faculdade de Comunicação Social, PUCRS.

Notas:

[1]Prof. Programa de Pós-graduação em Comunicação, Faculdade de Comunicação Social / PUCRS

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