artigo final o que permanece na moldura

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O que permanece na moldura: imagens de imobilidade e tristeza em “Retrato” de Cecília Meireles 1 Franciele Paes Pimentel Resumo: O presente artigo tem como objetivo fazer uma leitura interpretativa do poema “Retrato” de Cecília Meireles, considerando aspectos pertinentes à sua estrutura e suas unidades expressivas. Tem-se como aporte teórico e norteador desta análise, o autor Antônio Cândido, e sua célebre obra “O estudo analítico do poema”. Traz importantes contribuições ao estudo, o autor Octávio Paz, no que se refere às analogias que dão sentido às imagens. A passagem do tempo e a constatação das mudanças em sua face/corpo é o objeto de percepção visado neste poema de Cecília Meireles. A partir desta hipótese tem-se ainda que o eixo do poema é, sem dúvida, psicológico e afetivo, e pode ser visto sob uma outra ótica: “a da passagem da vida enquanto perda de faces, de imagens, enquanto desdobramentos de identidades, 1 Trabalho apresentado à disciplina Teorias do Texto Poético, ministrada pela Profª Dra. Clarice Zamonaro Cortez do Programa de Pós-graduação em Letras (Mestrado e Doutorado) da Universidade Estadual de Maringá - UEM. Retrato Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra. Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil:

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Page 1: Artigo final o que permanece na moldura

O que permanece na moldura: imagens de imobilidade e tristeza em “Retrato” de Cecília Meireles 1

Franciele Paes Pimentel

Resumo: O presente artigo tem como objetivo fazer uma leitura interpretativa do poema “Retrato” de Cecília Meireles, considerando aspectos pertinentes à sua estrutura e suas unidades expressivas. Tem-se como aporte teórico e norteador desta análise, o autor Antônio Cândido, e sua célebre obra “O estudo analítico do poema”. Traz importantes contribuições ao estudo, o autor Octávio Paz, no que se refere às analogias que dão sentido às imagens.

A passagem do tempo e a constatação das mudanças em sua face/corpo é o objeto de

percepção visado neste poema de Cecília

Meireles. A partir desta hipótese tem-se

ainda que o eixo do poema é, sem dúvida,

psicológico e afetivo, e pode ser visto sob

uma outra ótica: “a da passagem da vida

enquanto perda de faces, de imagens,

enquanto desdobramentos de identidades,

característica que remete inevitavelmente ao

feminino.” (DAL FARRA, 2006, p. 353)

Cecília Meireles, destaque do

Modernismo Brasileiro até os dias atuais,

nascida no Rio de Janeiro, em Novembro de 1901, carrega em seus textos características

marcantes sobre a morte, a vida, sua efemeridade e a solidão. Órfã de pai (este morreu antes

mesmo do nascimento da filha) e de mãe (morreu quando Cecília não havia completado seus

três anos de idade); foi criada pela avó moçambicana.

1 Trabalho apresentado à disciplina Teorias do Texto Poético, ministrada pela Profª Dra. Clarice Zamonaro Cortez do Programa de Pós-graduação em Letras (Mestrado e Doutorado) da Universidade Estadual de Maringá - UEM.

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.  Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra.  Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: - em que espelho ficou perdida a minha face?

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Sempre ativa e envolvida com as questões educacionais e culturais, esteve ao lado de

Fernando Azevedo, Anísio Teixeira, Lourenço Filho e Hermes Lima, no movimento de 32.

Além dos nomes citados, Cecília lutou ao lado de outros que, assim como ela, propunham

mudanças no sistema educacional brasileiro. Na década de 1930, Cecília participou

ativamente do processo de modernização da educação no Brasil. Na década de 1940 fez

diversas viagens a países da Europa e América Latina, divulgando a cultura de seu país. No

ano seguinte à sua morte (ela morreu em 9 de Novembro de 1964) a Academia Brasileira de

Letras conferiu à poetisa o Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto de sua obra.

O poema analisado neste estudo pertence ao primeiro livro de Cecília Meireles,

“Viagem”, publicado em 1939. A obra exterioriza o seu amadurecimento e reconhecimento

natural. Expressão de características marcantes nos seus textos, o lirismo; a consciência da

efemeridade; o tempo das pessoas e das coisas; a solidão, a morte, a melancolia, a tristeza,

dentre outros; o poema “Retrato” é apenas

uma das várias formas que a poetisa

encontrou para explicitar as especificidades

do tema “Viagem”, sendo este abordado a

partir de óticas e construções distintas,

sugerindo uma trajetória espiritual repleta

de diferentes matizes.

Composto por três estrofes de quatro

versos – resquícios da influência simbolista e sua forma tradicional, características nunca

abandonadas por Cecília -, no poema há a predominância, ora a dimensão da imagem, ora da

sonoridade. Sendo a primeira facilmente percebida pelas impressões sensoriais, sugeridas com

o uso das palavras destacadas em amarelo. A imagem do paladar e do tato são sinalizadas nas

palavras destacadas em verde.

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.  Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra.  Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: - em que espelho ficou perdida a minha face?

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A corrente das imagens culmina em um ponto específico: o envelhecimento. Neste

aspecto, percebe-se a relação de correspondência entre as imagens do poema e, neste sentido

BOSI (1996) afirma que:

A lógica que relaciona entre si as imagens da poesia chama-se analogia e é distinta da lógica que rege o discurso dos conceitos. Distinção, como assevera Croce (dialetizando neste ponto o pensamento de Hegel), não significa contradição. Analógico não é sinônimo de incoerente, nem de absurdo, nem sequer aleatório. (BOSI, 1996, p. 230)

O mesmo autor ainda reforça a necessidade de busca da imagem pela palavra,

afirmando que a recorrência se trata de uma reiteração, de uma forma de realizar uma

operação dupla, num movimento progressivo e regressivo. O cruzamento dos sons seria

entendido como os instrumentos do poeta. “Toca-se aqui um ponto essencial: o da ´imagem`

frásica como um momento de chegada do discurso poético.” (BOSI, 2000, p. 37)

As relações analógicas são, ainda, influência de uma tendência romântica, onde os

valores emocionais, a sensibilidade e o cultivo dos sentimentos, são recorrentes. A construção

das imagens pode ser vislumbrada nesta relação de correspondência. Assim,

Se o universo é um texto ou um tecido de signos, a rotação desses signos é regida pelo ritmo. O mundo é um poema. O poema, por sua vez, é um mundo de ritmos e símbolos. Correspondência e analogia não são mais do que nomes do ritmo universal. O reaparecimento da visão analógica coincide com o rechaçamento dos arquétipos neoclássicos e a descoberta da tradição poética nacional. Os filósofos haviam imaginado o mundo com ritmo; os poetas ouviram esse ritmo. (PAZ, 1984 apud FREIRA, 2005, p. 52).

Ainda com relação à imagem, o mesmo autor ressalta:

A poesia converte a pedra, a cor, a palavra e o som em imagens. E essa segunda característica, o fato de serem imagens, e o estranho poder de suscitarem no ouvinte ou no espectador constelações de imagens, transforma em poemas todas as obras de arte. (PAZ, 1982, p. 27)

Antônio Cândido (1983, p. 13), também ao abordar a imagem, afirma que “é um modo

da presença que tende a suprir o contacto direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si

e a sua existência em nós.” Para o mesmo autor, “ a analogia está na base da linguagem

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poética, pela sua função de vincular os opostos, as coisas diferentes, e refazer o mundo pela

imagem.” (idem, p. 108)

Enquanto a imagem se faz presente quando o silêncio ameaça se instaurar, em

contrapartida, vem a sonoridade, que é percebida, em “Retrato”, pelo uso marcado de

assonâncias, figura de linguagem que consiste em repetir sons de vogais em um verso ou em

uma frase, especialmente as sílabas tônicas. Em “Retrato”, Cecília prioriza as assonâncias

de /e/ e /o/:

Eu não tinha este rosto de hojeNem estes olhos tão vazios

Para acentuar o tom de melancolia permanente, faz a repetição dos sons consonantais

idênticos ou semelhantes, função dada à figura de linguagem denominada aliteração. O

exemplo a seguir demonstra o uso da aliteração em /r/ :

Tão paradas e frias e mortas

Em se tratando de ritmo, o primeiro verso é mais lento e pode ser notado ao trazer a

repetição da palavra assim. Essa lentidão nos dá a impressão de que a passagem ou viagem a

que o “eu” lírico do poema está submetido, fosse tranquila e imperceptível.

assim calmo, assim triste, assim magro.

Sobre o ritmo, Octavio Paz (1982, p. 118) afirma: “ritmo e imagem são inseparáveis.

Essa longa digressão nos leva ao ponto de partida: só a imagem poderá nos dizer como o

verso, que é frase rítmica, é também frase que possui sentido.”

De uma vez que a poesia não se trata meramente de construção, mas da junção da

emoção com o signo, constituindo, assim, um conjunto de versos, Bosi (2000) ainda aborda o

ritmo, condicionando o mesmo à ênfase na emissão da frase. Em “Retrato”, o ritmo é lento na

primeira estrofe e caracteriza a percepção das mudanças ocorridas com o passar do tempo.

Contudo, o “eu” lírico, apesar de constatar tais mudanças, continua por negar estas

transformações. A repetição da palavra nem, no terceiro e quarto versos, reitera a sua negação,

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utilizando-se aqui da figura de linguagem denominada anáfora, que resulta quando se repete a

mesma palavra ou frase no começo de vários versos.

nem estes olhos tão vazios,nem o lábio amargo.

Na segunda estrofe, a constatação das transformações físicas nas mãos, sua fraqueza,

nos remete à perda da força e luta pela vida. O que fizera em tempos remotos, hoje não lhe é

possível devido à incapacidade motora ou mesmo a lentidão. Assim, o “eu” lírico do poema

continua descrevendo sua impotência, sua imobilidade:

tão paradas e frias e mortas;

A melancolia torna-se, assim, traço marcante no poema analisado. O ritmo continua

lento e a repetição da conjunção e imprime esta característica:

tão paradas e frias e mortas;

Ainda na segunda estrofe, o “eu” lírico segue descrevendo seus sentimentos a partir da

palavra coração, metáfora utilizada para “esconder” os sentimentos antes expostos,

mostrados. Nos dois últimos versos desta estrofe, os sentimentos são retraídos e escondidos,

como o próprio texto nos revela:

eu não tinhas este coraçãoque nem se mostra.

Um sentimento de perplexidade pode ser notado na segunda estrofe quando há uma

anáfora na repetição da expressão eu não tinha. Aqui o “eu” lírico do poema reafirma a não

percepção da passagem do tempo, contudo as transformações lhe são evidentes.

Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra.

A sensação de calmaria, ou seja, de um ritmo constante é quebrada na terceira estrofe

quando o “eu” lírico assume que mudou fisicamente e interiormente. Ao assumir tais

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transformações advindas da passagem do tempo, o “eu” lírico do poema passa então a

entendê-las como naturais - simples, certas e fáceis. A repetição da palavra tão mostra a

certeza da evolução e aqui há um ritmo mais acelerado, como foi a passagem da vida para o

“eu” lírico deste poema – e que é comum a todos nós.

Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: - em que espelho ficou perdida

a minha face?

Ao questionar-se em que momento perdeu sua vitalidade, o “eu” lírico se usa das

metáforas espelho – que seria o lugar, o momento, e face – que seria a vida, a juventude.

Neste aspecto, vale ressaltar que “[...] a linguagem é poesia em estado natural. Cada palavra

ou grupo de palavras é uma metáfora.” (PAZ, 1982, p.41)

O espelho é um elemento de riqueza tonal na poética. O escritor Jorge Luis Borges concebe a literatura, tanto na prática da escritura como da leitura, como sendo uma revelação, um autoconhecimento, a exemplo de um cristal de um espelho. Como se pode conferir no poema “Arte poética”.

Às vezes pela tarde certo rostoContempla-nos no fundo de um espelho;A arte deve ser como esse espelhoQue nos revela nosso próprio rosto. (Borges, 2000, p. 243)

Nessa perspectiva, o espelho traduz perfeitamente bem a peculiaridade da criação poética que se constitui constantemente como reflexo de outros textos e, como se sabe, esse reflexo nunca será de todo fiel, uma vez que o espelho será sempre deformante, melhor dizendo, transformante. A literatura se realiza numa construção que lembra o modus operandi do espelho, em cuja superfície a matéria prima se reflete para projetar uma imagem ou simplesmente revertida do objeto primeiro. (HUICIM s.d., p. 142-143)Cecília Meireles, Jorge Luis Borges, entre outros poetas, concebem o mundo como um livro, cada página um espelho que reflete as múltiplas faces do mundo. E em conformidade com O. Paz, o segredo da analogia consiste em ser esta uma chave para se ler o livro do universo. (FREIRE, 2005, p. 23-24)

A fugacidade do tempo e sua transitoriedade foram temas constantes nas obras de

Cecília Meireles e estes aspectos são percebidos na gradação sistemática do poema, como nos

versos a seguir:

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assim calmo, assim triste, assim magro,

tão paradas e frias e mortas; tão simples, tão certa, tão fácil:

As gradações sugerem a evolução, a passagem do tempo do poema e em dois

momentos acontecem o cavalgamento, recurso poético que consiste em se transferir para um

verso, posterior ou  anterior, parte do conteúdo sintático de outro, com a contagem silábica 

iniciando na parte transferida para o verso anterior, ou terminando na transferida para o

posterior, o que ocorre nestes casos:

eu não tinha este coração que nem se mostra.  

- em que espelho ficou perdida a minha face?

Ao perceber a íntima relação entre poesia e tempo cíclico, é possível verificar ainda o

trabalho constante a partir de analogias. Em “Retrato”, há uma estrutura harmônica, cujo

movimento compreende as fases naturais da existência: nascimento, morte e ressurreição.

As imagens criadas pelo poeta contêm diversos níveis de sentido, que serão postos em movimento pelo leitor: “o poeta e o leitor são dois momentos de uma mesma realidade” (PAZ, 1982, p. 47). Um objeto percebido detém em si uma variedade de qualidades, sensações e significados. Essa pluralidade de matizes, que se unifica no instante da apreensão da realidade, graças ao sentido apreendido pelo olhar que capta a realidade do mundo e que elabora a imagem poética, será mais uma vez posta em construção por uma outra percepção: a do leitor. (FREIRE, 2005, p. 54)

É importante ressaltar que o título “Retrato” se encaixa perfeitamente ao poema, já que

a palavra simboliza algo estático, parado, eternizado.

O poema, que se nomeia “retrato”, desemboca, afinal, no “espelho”, quase que promovendo, como se vê, uma igualdade, uma equiparação entre os dois

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objetos, esses dois modos de se enxergar, de se auto-perscrutar, visto que ambos são, por assim dizer, reflexivos. E, no caso desta peça, a imagem que a poetisa conhecia de si mesma está perdida, embutida no fundo de um espelho desbaratado pelo tempo, espelho que também não se pode localizar, de maneira que o retrato mostra apenas a outra face, a que restou, e que é a presente, porém desconhecida e fonte de grande estranhamento. De qualquer forma, este poema de Cecília, malgrado enfoque o tempo transformador e inexorável, a mudança sem remissão, aponta, ao mesmo tempo, para o desmembramento, para a transfiguração, para o desdobramento de rostos. (DAL FARRA, 2006, p. 353)

Tem-se que o “eu” lírico ansiava se eternizar. Ao final do poema, o “eu” lírico ainda

se indaga em que momento de sua vida a juventude foi eternizada pela imobilidade, como

acontece nos álbuns de família. A angústia e a tristeza se tornam inevitáveis ao perceber que a

eternidade lhe é impossível, e que o tempo fora mais uma vez implacável!

Referências:

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

CANDIDO, Antônio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006.

DAL FARRA, Maria Lúcia. Cecília Meireles: imagens femininas. Cad. Pagu [online]. 2006, n.27, pp. 333-371.

FREIRE, Eunice Rocha. A tradição romântica na construção das imagens na poesia de Cecília Meireles. Universidade Federal da Bahia - UFBA, 2005, 75 páginas. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2005.

MEIRELES, Cecília. Viagem e Vaga Música. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. (Coleção Poesis).

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.