caderno de textos erem 2012
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Rubén Omar Sosa escutou a lição de Maximiliana num curso de terapia intensiva, em Buenos Aires. Foi a
coisa mais importante que aprendeu em seus anos de estudante.
Um professor contou o caso. Dona Maximiliana, muito alquebrada pelos anos de labuta de uma longa vida
sem domingos, estava há vários dias internada no hospital, e todo dia pedia a mesma coisa:
-Por favor, doutor, o senhor podia medir minha pulsação?
Uma suave pressão dos dedos no pulso, e ele dizia:
- Muito bem. Setenta e oito. Perfeito.
- Está bem, doutor, muito obrigada Agora, por favor, meça minha pulsação?
E ele tornava a medir, e tornava a explicar que estava tudo bem, que melhor, impossível.
Dia após dia, a cena se repetia. Toda vez que ele passava pela cama de Maximiliana, aquela voz, aquele
sussurro, o chamava, oferecia esse braço, esse raminho, uma vez, e outra vez, e outra.
Ele obedecia, porque um bom médico deve ser paciente com seus pacientes, mas pensava: “Essa velha é
uma chata.” E pensava: “Deve estar faltando algum parafuso nessa cachola.”
Levou anos para entender que ela estava pedindo que alguém a tocasse.
(Uma aula de medicina, Eduardo Galeano)
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O que é DENEM?
APRESENTAÇÃO
O primeiro relato de organização do movimento estudantil de Medicina surgiu na metade do século XIX, com a criação de uma sociedade composta por estudantes no movimento pela abolição da escravatura. No século XX, entre as décadas de 20 e 60 surgiram os primeiros Centros Acadêmicos de Medicina e mais precisamente no ano de 1947 aconteceu a primeira semana científica e cultural dos estudantes de medicina do Brasil. No mesmo ano foi criada a UNEM, União Nacional dos Estudantes de Medicina, ligada à
UNE (União Nacional dos Estudantes).
Em 1969, foi realizado o 1º Encontro Científico dos Estudantes de Medicina (ECEM), em Salvador. O evento foi um marco para os estudantes de medicina so Brasil, que se utilizavam do encontro para disccutir questões sobre o ensino médico, universidade, conjuntura polítca do país, democracia e a luta contra a ditadura.
A Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina foi fundada em 1986, na cidade de Fortaleza, durante o XVII ECEM. Naquele momento, vivia-se no Brasil o processo de redemocratização pós-ditadura militar e um
intenso debate sobre o sistema de saúde. A entidade surge como uma forma de melhor organizar os estudantes de medicina, já que a UNE não resolvia mais a necessidade de organização do Movimento Estudantil de Medicina.
Com mais de 25 anos de existência, a DENEM vem desempenhando o papel de entidade representativa dos estudantes de medicina a partir de várias lutas e mobilizações. Durante a década de 90, a pauta da educação médica foi sem sombra de dúvida a mais importante no seio da Executiva. Dentre outras pautas importantes estava a defesa do sistema único de saúde público, equânime e de qualidade.
ORGANIZAÇÃO Para o desempenho de suas atividades, a DENEM divide-se em 8 regionais para facilitar o canal de dialogo entre a entidade nacional e os Centros/Diretórios Acadêmicos, também denominados Coordenações Locais, CL’s.
Cada Regional possui uma coordenação regional que tem a responsabilidade de visitar as CL’s assim como organizar os encontros estudantis de medicina de caráter regional. A nossa regional é a Nordeste-1, a qual abarca 12 escolas médicas.
Além dos Coordenadores Regionais, a DENEM também possui uma sede nacional, composta pelos cargos de coordenação geral, coordenação de comunicação e coordenação de finanças.
As coordenações de regionais, a sede e a coordenação de relações exteriores formam a coordenação nacional, que é a menor instancia deliberativa da DENEM.
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Além da coordenação nacional a DENEM possui outro órgão: o CENEPES – Centro de Pesquisas e Estudos em Educação e Saúde. O CENEPES é composto pelas chamadas coordenações de área, que são as coordenações: de políticas de saúde, de educação em saúde, de políticas educacionais, de extensão universitária, de meio ambiente, de cultura, cientifica, de estágios e vivencia. Além das coordenações, o CENEPES comporta as acessórias de mídias, de planejamento e de resgate histórico do movimento.
ENCONTROS
A DENEM também possui encontros periódicos que constituem os outros espaços deliberativos. Há encontros de âmbito regional e nacional. São eles:
Regionais:
Reuniões de Regional (RR): são as reuniões das Coordenações Locais (CL’s) de cada regional. Encontro Regional dos Estudantes de Medicina (EREM): acontece em cada regional uma vez por
ano. É o maior encontro de âmbito regional, há nele debates políticos, eventos culturais e cientifico. Seminário de Problematização Política (SPP): é um seminário de cujo objetivo é a formação política. Olimpíadas Regionais dos Estudantes de Medicina (OREM): ocorre na regional Nordeste-2 e na
regional SE 1.
Nacionais:
Congresso Brasileiro dos Estudantes de Medicina (COBREM): ocorrem todos os ano nos messes de janeiro. Tem a função de elaborar e aprovar o planejamento da DENEM. É o segundo maior espaço deliberativo da Executiva.
Encontro Cientifico dos Estudantes de Medicina (ECEM): esse encontro ocorre desde 1969, é anterior à DENEM. Tem esse nome para burlar a repressão da ditadura militar. É o maior espaço deliberativo da Executiva, acontece geralmente em cada mês de julho. Além do eixo político, há também na programação eventos culturais e científicos.
Reunião de Órgãos Executivos (ROEX): é a reunião das CL’s do pais inteiro. É o terceiro maior instancia deliberativa da DENEM.
Seminário do CENEPES: Também anual, é o encontro no qual é feito debates e analises sobre algum tema que envolva as coordenações do CENEPES.
Esperamos encontrá-los/as em um desses encontros.
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O que é EREM?
O Encontro Regional de Estudantes de Medicina (EREM) é um espaço destinado a congregar estudantes de
medicina de uma determinada região do país que, no nosso caso, é a Regional Nordeste I (BA, SE e AL) com
o propósito de promover discussões acerca de temas pertinentes ao nosso cotidiano universitário – saúde,
educação, sociedade, ciência, cultura, arte, cidadania – proporcionando também uma maior integração
entre as diferentes escolas e estados.
Com a intenção de fortalecer o Movimento Estudantil de Medicina, o Encontro Regional dos Estudantes de
Medicina – NE I – se faz espaço estratégico de mobilização estudantil e construção de práticas e saberes
que fortalecem a luta em Defesa da Vida entre as CLs envolvidas, além de, através da troca de experiências
e reflexões teóricas, qualificar o trabalho desenvolvido por cada Centro ou Diretório Acadêmico em sua
esfera local de ação.
Acontece no primeiro semestre de cada ano, e é sediado em uma das cidades locais de escola médica
dentro da área da Regional NE I. Em 2011, o evento foi realizado em Salvador-BA e organizado pelos
estudantes da UFBA e da Bahiana. Nesta décima sexta edição, o encontro acontecerá em Aracaju – SE,
tendo o CAMED e a DENEM (representada pela Coordenação Regional NE I) como organizadores.
Público participante do XVI EREM
O XVI EREM visa agregar 12 escolas médicas de 3 estados do Nordeste, que juntas totalizam
aproximadamente 5.000 estudantes.
Bahia – UFBA, FTC, EBMSP (Bahiana), UEFS, UESC, UESB Vitória da Conquista e UESB Jequié Sergipe – UFS São Cristóvão, Unit e UFS Lagarto Alagoas – UNCISAL, UFAL
Cada centro ou diretório acadêmico organiza sua delegação de estudantes para participar do evento. O
evento está organizado para receber cerca de 150 estudantes dessas escolas no XVI EREM, tendo em vista
ser este o público médio dos EREM’s realizados pela Regional DENEM NE I nas últimas três edições.
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Afinal, Quem monta seu
quebra-cabeça?
O ideal de se tornar um profissional completo está, de
fato, na mente de todos os estudantes. Os futuros médicos
em especial estão cada vez mais preocupados em compor
um excelente currículo, com a ideia de que somente com
esse passarão a ser, sem sombra de dúvida,médicos de
qualidade. Levados por esse pensamento, os estudantes
acabam permitindo que sua imagem como médicos seja
construída com base em princípios alheios. Esses, muitas
vezes, desviam o olhar do aprendiz, que passa a acreditar
numa medicina que se resume em estruturas biológicas.
Desse modo, muitos dos estudantes são deixados levar
pela maioria e se esquecem de pensar sobre o que
realmente representa a imagem de um bom médico, ou
seja, qual seria o real critério para definir a qualidade
desse agente do povo. Essa reflexão faz surgir a indagação
sobre quem é o responsável por manipular
ideologicamente a mente dos estudantes, isto é, quem
está montando a atual representação do médico perfeito.
Não há dúvida de que valores mais humanos são
extremamente necessários na nossa carreira. E mais do
que isso, é fundamental que nós analisemos nossos
pacientes sob uma ampla perspectiva, abrangendo desde
critérios biológicos a critérios psicológicos e sociais.
Porém, será que o ensino atual da medicina realmente se
preocupa em relacionar todos esses fatores a fim de garantir o melhor tratamento possível ao paciente,
que no final é uma pessoa inserida num meio social? Ou será que esse ensino está mais preocupado em
atender mais e mais e deixar de lado a história de cada um?
Questionamentos como esses são capazes de nos tocar afundo e nos fazer repensar os rumos e direções
que a medicina vem tomando. E dele retoma-se a pergunta inicial: Quem afinal é o responsável por criar
essa visão distorcida do papel do médico na conjuntura social? De que forma devemos agir diante desse
problema: devemos aceitar calados e nos tornar mais um frio e calculista médico do sistema? Ou devemos
buscar alterar a inculta ideologia que rege a maior parte dos estudantes de forma despercebida e
silenciosa? A solução para tais questionamentos será encontrada por meio de uma análise mais profunda
do panorama geral da educação médica, ou seja , do modo como nossa personalidade profissional está
sendo montada a cada dia de estudo e vivência. Resta a todos nós refletirmos sobre o principal motivo de
termos escolhido a medicina como nossa profissão.
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Programação
1º Dia: Quinta (06/09)
Manhã: Painel 1 – Privatização da Saúde -Valéria Correia (UFAL/Fórum de saúde de Alagoas)
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Tarde: Mesa 1: Os Hospitais Universitários e a
EBSERH no contexto da formação médica
1.Papel dos HU’s na formação médica
Vinícius Ximenes (UFCG-Cajazeiras)
2.Conjuntura atual dos HU’s
Alisson Sampaio (CAMED-UFS/CPS DENEM)
3.A Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares
(EBSERH)
Valéria Correia (UFAL/Fórum de saúde de Alagoas)
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Noite: Oficinas de Agitação e Propaganda
(AgitProp)
1.Expressão corporal – DAMED
2.Oficina de cartazes e faixas
3.Stencil – Polinômios (CAMED-UFS)
4.Batucada - Vanessa e Vitor (CAMED-UFS)
5.Zine – Bianca e Saionara (DAMED)
2º Dia: Sexta (07/09)
Manhã: Ato Público (junto ao Grito dos
Excluídos): Em defesa dos HU’s, da educação
pública e de uma saúde pública, gratuita, estatal
e de qualidade!
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Noite: Oficinas 1:
1.Gênero e Opressões – DAPS e MMM (Marcha Mundial
de Mulheres)
2.Estágios de vivência – DAMED e Comissão Organizadora
do EIV Sergipe
3.Determinação social do processo saúde-doença – CASH
4.Ato Médico – Alisson (CAMED-UFS)
5.Métodos avaliativos – Marcela Vieira (Coordenadora
Geral da DENEM)
6.Abertura de novas escolas médicas – Bianca (DAMED/CR-NE1)
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3º Dia: Sábado (08/09)
Manhã: Painel 2 – O médico no mercado de trabalho –Thiago Henrique (Sindicato dos Médicos de
Pernambuco)
_______________________________________________________________________________________
Tarde: Mesa 2: Transformações na educação
médica – O que tínhamos e o que temos hoje?
1.Histórico das transformação no ensino
médico
Thiago Henrique (Sindicato dos Médicos de
Pernambuco)
2.Reforma curricular – Modelo atual
Marcela Vieira (Coordenadora Geral da DENEM)
3.Perfil, críticas e alternativas ao modelo atual –
Humberto Herrera (UFBA)
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Noite: Oficinas 2:
1.Indústria Farmacêutica – Adriana Freitas (CAMED-UFS)
2.Extensão Universitária – DAMED
3.Exame de Ordem – Jota (DAMED)
4.Serviço Civil/Provab
5.Como Funciona a Sociedade – Jean Prestes (CAMED-UFS)
6.Processo de Tomada de Consciência – Mário Soares
(UFBA)
4º Dia: Domingo (09/09)
Manhã/Início da tarde: Plenária Final e Reunião Regional
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Grito dos Excluidos
O Grito dos Excluídos é uma
manifestação popular carregada de
simbolismo. È um espaço de animação
e profecia, sempre aberto e plural de
pessoas, grupos, entidades, igrejas e
movimentos sociais comprometidos
com as causas dos excluídos(as).
O Grito dos(as) Excluídos(as), como
indica a própria expressão, constitui-se
numa mobilização com três sentidos:
denunciar o modelo político e
econômico que, ao mesmo tempo,
concentra riqueza e renda e condena
milhões de pessoas à exclusão social;
tornar público, nas ruas e
praças, o rosto desfigurado dos grupos
excluídos, vítimas do desemprego, da
miséria e da fome;
propor caminhos alternativos
ao modelo econômico neoliberal, de
forma a desenvolver uma política de
inclusão social, com a participação
ampla de todos os cidadãos.
O Grito se define como um conjunto de
manifestações realizadas no Dia da Pátria, 7 de setembro, tentando chamar à atenção da sociedade para as condições de
crescente exclusão social na sociedade brasileira. Não é um movimento nem uma campanha, mas um espaço de participação
livre e popular, em que os próprios excluídos, junto com os movimentos e entidades que os defendem, trazem à luz o protesto
oculto nos esconderijos da sociedade e, ao mesmo tempo, o anseio por mudanças.
As atividades são as mais variadas: atos públicos, romarias, celebrações especiais, seminários e cursos de reflexão, blocos na rua,
caminhadas, teatro, música, dança, feiras de economia solidária, acampamentos – e se estendem por todo o território nacional.
Em 2012 o Grito dos(as) Excluídos(as) traz como tema: “Queremos um Estado a serviço da Nação, que garanta direitos a toda
população!”
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SUMÁRIO
UM POUCO SOBRE A HISTÓRIA DO MOVIMENTO ESTUDANTIL DE MEDICINA............................................13
BRUNA BALLAROTTI
A IDEOLOGIA NOS CURSOS DE MEDICINA.....................................................................................................15
MARCO AURELIO DA ROS
DE QUE MÉDICOS O POVO BRASILEIRO PRECISA?.........................................................................................26
THIAGO HENRIQUE (GAUCHO)
SOBRE A LUTA POR CURRÍCULOS...................................................................................................................28
ARMANDO DE NEGRI
PUBLICO E PRIVADO NA GESTÃO DA SAÚDE..................................................................................................30
RAQUEL TORRES PARA REVISTA POLI
HOSPITAIS UNIVERSITÁRIOS FEDERAIS E NOVOS MODELOS DE GESTÃO: FACES DA CONTRA-REFORMA DO
ESTADO NO BRASIL.........................................................................................................................................38
JULIANA FIUZA CISLAGHI
10 MOTIVOS PARA SER CONTRA A EBSERH...................................................................................................49
PROJETO DO ATO MÉDICO.............................................................................................................................50
ALGUMAS QUESTÕES SOBRE O ATO MÉDICO................................................................................................51
MARCELA VIEIRA E FELIPE XIMENES
CREMESP INSTITUI EXAME OBRIGATÓRIO PARA FORMANDOS EM MEDICINA...........................................52
EXAME DE ORDEM: CARTA DA DENEM (2010)..............................................................................................53
SERVIÇO CIVIL NA MEDICINA – CARTA ABERTA DA REGIONAL SUL 2 DA DENEM........................................58
TRABALHADOR DA SAÚDE: UM OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO.....................................................................60
BRUNO PEDRALVA
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UM POUCO SOBRE A
HISTÓRIA DO MOVIMENTO
ESTUDANTIL DE MEDICINA
Bruna Ballarotti para a edição de Outubro de 2010
do Glasgow 15, jornal do Diretório Acadêmico de Medicina
Francisco Martins Bastos (DAFB) da FURG
Você já deve saber que o Diretório
Acadêmico Francisco Martins Bastos (DAFB) é o
órgão que representa os estudantes de Medicina
da FURG. Pode saber também que
nacionalmente, todos CA/DAs e estudantes de
Medicina do Brasil são representados pela
Direção Executiva Nacional dos Estudantes de
Medicina (DENEM). Mas desde quando surgiu
esse hábito dos estudantes de Medicina se
organizarem? O que motivou e ainda motiva
esses estudantes a se reunirem, se encontrarem e
defenderem
coisas em
comum?
Em
1808, com a
vinda da
Corte Portuguesa para o Brasil, foi fundada a
Escola de Medicina da Bahia, a primeira do país.
No final do século XIX já se tem registro dos
estudantes de Medicina de Salvador se
organizando em Sociedades Acadêmicas, com o
papel de realizar benfeitorias na região e de
debater a qualidade de sua formação. Com o
advento da Universidade, já na década de 1930,
Getúlio Vargas incorpora a estrutura de Centros
Acadêmicos dentro da instituição, numa tentativa
de obter mais controle sobre as diversas mo-
dalidades de organização dos estudantes que
existiam até então. Apesar dessa origem tutelar, a
criação dos Centros Acadêmicos não obedeceu ao
seu suposto futuro de submissão. Pelo contrário,
o feitiço vira contra o feiticeiro, e a criação dos
CAs só faz dar mais organicidade para o
Movimento Estudantil (ME), que não deixou de se
manifestar e de reivindicar suas bandeiras.
É no final da década de 1950 e início da
década de 1960 que o ME amadurece seu
conceito de Universidade. Para os estudantes, a
Universidade deve servir de instrumento para
superar as desigualdades existentes em nossa
sociedade, e deve prover ferramentas para que a
sociedade se mobilize e lute por seus direitos. É
um período onde o país debate as Reformas de
Base do João Goulart, e a UNE, criada em 1937,
alcança grande legitimidade pelos diversos
seminários que realiza e greves que articula, no
sentido de trazer a público a construção sendo
feita pelos estudantes.’
O Golpe Civil-Militar de 1964 interrompe
esse processo. O Regime Militar vai efetuar uma
série de mudanças econômicas, políticas, sociais e
culturais que terão na Universidade e na
organização política um objeto específico de con-
trole. De 1965 a 1968 o Governo Militar vai
aprimorando sua proposta de Universidade. Com
a ajuda da
USAID
(United Sta-
tes Agency
for
International
Development) elabora uma Reforma Universitária
de caráter privatista, que visava sucatear as
universidades públicas através de um drástico
corte de verbas e da inserção do ensino pago
dentro da mesmas. A Reforma Universitária de
1968, que demonstrava ainda mais o autorita-
rismo do Governo Federal e seu controle sobre a
Universidade, faz com que os estudantes, mesmo
proibidos de se manifestar, saiam às ruas em
1967 e 1968, alcançando grande visibilidade e
estabelecendo diálogo com diversos outros
grupos e movimentos sociais, para denunciar o
que estava acontecendo não apenas na
Universidade, mas na sociedade brasileira como
um todo. Em dezembro de 1968 é decretado o AI-
5, que põe fim a qualquer possibilidade de
articulação e mobilização como se conhecia até
então. Muitos grupos nesse momento não vêem
outra opção de combater o regime que não a luta
armada, urbana e rural. O aparelho de repressão
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do Regime Militar vai se aperfeiçoando, e até
1972 quase todos os grupos de luta armada
foram dizimados.
Após esse baque do AI-5, na primeira
metade da década de 1970, apesar do aparente
vazio, se ensaia o retorno aos Centros e Diretórios
Acadêmicos. Os estudantes estão vivendo na pele
as conseqüências da Reforma Universitária de
1968 e precisam se organizar... Mas como? A UNE
estava na ilegalidade, os DCEs e DAs sob controle
da Ditadura. É nesse momento que ganha força
uma outra forma de se organizar, o “Movimento
de Área”, onde estudantes do mesmo curso se
encontram pelo Brasil, nos Encontros de Área,
geralmente com um mote acadêmico/científico,
mas que serve para os estudantes se articularem
politicamente. Esse movimento é o embrião,
quando encerra a ditadura, das diversas
executivas de curso que se oficializam ao final da
década de 80. No nosso caso, foram criados os
Encontros Científicos dos Estudantes de Medicina
(ECEMs) em 1969, que acontecem até hoje, há
mais de 40 anos. E no ECEM de 1986 em Fortaleza
é fundada a DENEM, entidade que representa
todos os estudantes de Medicina no Brasil desde
então. São quase 25 anos defendendo uma
Educação Pública, Gratuita e de Qualidade,
defendendo o Sistema Único de Saúde e seus
princípios, defendendo uma formação médica de
qualidade e comprometida com as necessidades
de saúde da população. Bandeiras que surgiram
ainda na década de 1970 e que fazem sentido até
hoje.
Rondó da Liberdade
É preciso não ter medo, é preciso ter a coragem de dizer.
Há os que têm vocação para escravo, mas há os escravos que se revoltam contra
a escravidão.
Não ficar de joelhos, que não é racional renunciar a ser livre.
Mesmo os escravos por vocação devem ser obrigados a ser livres,
quando as algemas forem quebradas.
É preciso não ter medo, é preciso ter a coragem de dizer.
O homem deve ser livre...
O amor é que não se detém ante nenhum obstáculo,
e pode mesmo existir quando não se é livre. E no entanto ele é em si mesmo
a expressão mais elevada do que houver de mais livre
em todas as gamas do humano sentimento.
É preciso não ter medo, é preciso ter a coragem de dizer.
Carlos Marighella
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A IDEOLOGIA NOS
CURSOS DE MEDICINA
Marco Aurélio Da Ros
A proposta de redigir um trabalho com
esse título pode apontar diversos caminhos. O
entendimento que tive foi o de que o grande
objetivo deveria ser colaborar para entender os
porquês das dificuldades de introduzir (de fato)
uma mudança na formação dos médicos.
Temos, hoje, o
discurso e prática da
Ministério da Saúde, dos
municípios, e o consenso
dos dirigentes do ensino
de medicina sobre as
necessidades de
mudança. Redes de apoio
do porte da Abrasco
(Associação Brasileira de
Pós-Graduação em Saúde
Coletiva) ou da Rede
Unida também participam
ativamente, e mesmo
assim as modificações são
mais lentas que o
desejado.
Como pano de
fundo para justificar essa lentidão, surge a
pergunta: seria a questão da ideologia na
medicina um determinante? A proposta que me
pareceu mais apropriada foi a de começar a
dissecar isso.
Partindo do princípio de que a ideologia,
se não é a única, representa uma causalidade
muito importante, a abordagem do tema se ateve
à tentativa de: entender um pouco do que
significa ideologia, especialmente numa relação
hegemonia/contra-hegemonia; a história dos
movimentos que caracterizam essa relação, como
determinante do pensar médico; uma pequena
reflexão sobre a forma como se produz o
conhecimento (epistemologia); uma tipificação
caricatural sobre o médico “não mudancista”; e
como podemos pensar em transformação com
esse espectro desenhado. Tento usar uma
linguagem que beira o coloquial, a fim de facilitar
a compreensão do tema, e me parece apropriado
iniciar por ideologia.
Alguns entendimentos sobre ideologia
Da profusão de autores que tratam o
tema, Marilena Chauí me
parece a mais adequada,
por estudar diversos
autores e apontar
alternativas para quem
quer se aprofundar mais
no assunto.
O termo, segundo
a autora, surge em 1801
na França, na tentativa de
justificar a gênese das
idéias no período
napoleônico. A partir daí,
foram surgindo outros
usos e significados para o
termo. Marx, por
exemplo, afirma que o
ideólogo é o que inverte
as relações entre as idéias
e o real; Comte assume novos entendimentos
para embasar o positivismo; Durkheim o retoma
para descrever as regras do método sociológico.
Chauí afirma que:
“Ideologia não é sinônimo de
subjetividade oposta à objetividade (...)
não é um pré-conceito nem pré-noção,
mas um “fato” social, justamente porque
é produzida pelas relações sociais (...)
possui razão muito determinada para
surgir e se conservar (...) é uma produção
de idéias por formas históricas
determinadas das relações sociais.”
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Adota e aprofunda a concepção marxista
de ideologia, afirmando, para explica-la, que a
consciência está indissoluvelmente ligada às
condições materiais de existência e que as idéias
nascem, em última instância, das atividades
materiais. Como cada um dificilmente pode
escapar da atividade que lhe é imposta
socialmente, todo o conjunto de relações sociais
aparece nas idéias como se tivesse origem por si
mesmo, e não fosse conseqüência das ações
humanas. Nasce, assim, a ideologia,
propriamente dita, que é sempre a da classe
dominante:
(...) o sistema ordenado de idéias
ou representações, e das normas e regras
como algo separado e independente das
condições materiais, visto que seus
produtos - os teóricos, os ideólogos e os
intelectuais - não são diretamente
vinculados à produção material das
condições de existência (...) As idéias
aparecem como produzidas somente pela
pensamento (...).
Para relacionar o tema ideologia com a
prática médica e com a sua resistência às
mudanças, ainda tomo as idéias de Chauí, a partir
de Marx & Engels.2 Ela afirma que a ideologia
(entenda-se como dominante ou hegemônica) é
possível em função da alienação:
(...) enquanto não houver um
conhecimento da história real, enquanto a
teoria não mostrar a prática imediata dos
homens. Enquanto a experiência com a
vida for mantida sem crítica e sem
pensamento, a ideologia dominante se
manterá.
Ora, é justamente o que penso que ocorre
com a categoria médica hegemonicamente. Ela
conhece a história da prática de sua profissão (a
não ser para alguns contra-hegemônicos) apenas
como mera sucessão de datas, personagens e
inventos, descontextualizada e sem o
entendimento das condições materiais da
existência dos homens e duas relações naquelas
épocas. Pior ainda: está convencida de que não
tem de entender isso. Que já chegou à verdade
científica. A alienação gerada pela ideologia
dominante a faz pensar que sua vida e sua prática
são dirigidas pela ação de entidades como a
natureza, os deuses ou a razão (como se esta não
fosse histórica também).
Marx & Engels2 dizem que “as idéias da
classe dominante são em cada época as idéias
dominantes (...) e aos trabalhadores é dada a
alienação”. Buss3 confirma a mesma lógica e o
papel do Estado nessas circunstâncias, aplicando-
a aos profissionais de saúde. Ou seja, lhes é dado
a imaginar que é natural e verdadeiro que as
coisas sejam pensadas da forma como são.
É claro que se torna muito determinista e
mecânico imaginar que o pensamento atual do
senso comum, e dos médicos por extensão, seja
dado somente porque é assim que o capitalismo
ou neoliberalismo preconizam (já que é neste
modo de produção que vivemos). Isto seria
reducionismo.
Para entender melhor, Gramsci nos
apresenta o conceito de hegemonia: a forma
como o poder dominante se mantém. Mas isso
não significa homogeneidade. Dialeticamente, há
que pensar na construção de um contrapoder:
noutra forma de pensar, que luta contra aquela e
que desnuda a vida real dos homens. No
neoliberalismo, a contra-hegemonia. 5,6,7
Como não pretendo um tratado sobre a
questão ideologia-hegemonia-contra-hegemonia,
e sim um entendimento com base na prática
médica historicamente localizada, acredito que,
se desvendarmos um pouco da história, do século
XIX para cá, a compreensão do pensamento tanto
hegemônico como contra-hegemônico ficará
mais clara. A construção do pensamento na lógica
interna será exposta no item “Um pouco de
epistemologia”, após o entendimento do que
ocorria na história nessa época (contada com
óculos contra-hegemônicos, é claro).
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O início desta história - século XIX
(...) a prática médica está ligada à
transformação histórica do processo de
produção econômica. A estrutura
econômica determina, como acontece
com todos os componentes da sociedade,
a importância, o lugar e a forma da
medicina na estrutura social.
Esta afirmação de Almeida8 confirma o
que tentava discutir na questão ideológica. Há
que se reportar á história.
No início do século XIX, o capitalismo já
uma forma hegemônica da organização da
produção no mundo desenvolvido da época - o
europeu. E este capitalismo funcionava com uma
superexploração da força de trabalho. Filmes
como Germinal ou Daens mostram a vida do
trabalhador da época. Também Engels9 descreve
jornadas de trabalho de dezesseis horas/dia,
grávidas tendo filhos na fábrica, crianças com
menos de sete anos impulsionando teares em
troca de comida (se chegavam a oferecer tanto).
O exército industrial de reserva era abundante, e
a mortalidade, inimaginável para os padrões de
hoje. Nas fábricas não havia janelas, nem vasos
sanitários. Os trabalhadores comiam no chão. A
idéia era aproveitar até a morte a força de
trabalho, depois... o exército industrial de reserva
os substituiria. Nesse contexto, a teoria
prevalecente da origem das doenças ainda era
algo semelhante a miasmática, que iludia as
questões sociais. Nessas condições, a contra-
hegemonia gesta movimentos de transformação
social, de caráter socialista. No seio desses
movimentos sociais é que os médicos
desenvolvem um novo conceito do processo
saúde-doença. Esse movimento, chamado de
medicina social, acompanha as tentativas de
transformação social entre 1830 e 1870,
tornando-se a explicação hegemônica para a
ciência médica da época.
Em 1848, Virchow - considerado o pai da
medicina social - afirmava que as doenças eram
causadas pelas más condições de vida e, com
Neumann, propõe mudanças nas leis prussianas,
objetivando superar a exploração da força de
trabalho e garantir melhores condições de sua
reprodução, colocando no Estado a obrigação de
suprir estas necessidades. 10 leubuscher e
Villermé, na França, Chadwick, na Inglaterra, e
Grotjahn, na Bélgica, trabalham simultaneamente
com concepções semelhantes.
Entre 1870 e 1900, com o
desenvolvimento de diversos campos do
conhecimento, aparentemente díspares, como
patologia, histologia, química, fisiologia e,
principalmente, microbiologia, eclode verdadeira
revolução no conhecimento médico. A partir daí,
seja por interesse do capital e/ou do complexo
médico industrial, ou porque o conhecimento na
área inicia sua fragmentação de fato, ou porque
as tentativas de transformação social fossem
derrotadas, ou mesmo por todos esses motivos,
perde força, na Europa, o entendimento da saúde
como questão determinada socialmente.
18
Behring, em 1898, segundo Rosen10,
sintetiza a ruptura com o modelo de medicina
social, dizendo que, graças à descoberta das
bactérias, a medicina não precisaria mais perder
tempo problemas sociais. A partir desse discurso
de Behring e simultaneamente à teoria dos
germes de Pasteur, a unicausalidade fica
assentada.
A hegemonia, definitivamente, não
gostava das pesquisas e investigações da
medicina social, que apontavam invariavelmente
para mudanças sócias, quer dos capitalistas ou do
Estado que os representava. Teriam que
aumentar salários, conceder direitos sociais aos
menores e às grávidas, diminuir a carga horária
de trabalho, garantir alimento e moradia
decente, saneamento, lazer, etc. Já a
unicausalidade descarregava a culpabilidade do
poder e abria a possibilidade de culpar a vítima -
“não usou equipamentos, não usou sapatos, não
lavou as mãos, etc.” -, abrindo a porta ao
higienismo na saúde pública e ao
desenvolvimento de tecnologia de investigação
para “unicausas” e para os medicamentos que
erradicassem aquela “causa”.
Esta forma parece ser um exemplo típico
de como a hegemonia instala ideologicamente
um jeito de pensar (não se pensa mais na questão
da sociedade). Na Europa, o pensamento
bacteriano convive com o da medicina social em
declínio, mas nos Estados Unidos, por condições
particulares quer da formação social, quer do
modelo médico preexistente, o terreno da
unicausalidade rapidamente se torna
hegemônico. Os médicos norte-americanos,
enfim, faziam as pazes com a ciência. E esta
ciência se pautava na possibilidade de o capital
amealhar grandes dividendos. Instalavam-se as
bases para o chamado complexo médico
industrial:13 de aparelhos de investigação, com
microscópios cada vez mais poderosos, a exames
hematológicos cada vez mais sofisticados; de
medicamentos sintomáticos a antibióticos;
hospitais especializados cada vez maiores e mais
equipados.
Sua base científica era a das ciências
exatas. Abandona definitivamente a possibilidade
de ser também uma arte.11 A medicina sempre
tentou-se valorizar-se como ciência exata.14
Portanto, o biológico era o único pensamento
aceitável enquanto pudesse ser convertido em
dado matemático.11 Nestas condições de
desenvolvimento do capitalismo norte-
americano, de possibilidades de lucro no setor
saúde/doença, com uma teoria que justificava
esta lógica, o terreno era fértil para que
ocorresse uma “revolução científica”, na
linguagem de Kuhn.15
O modelo norte-americano
Em 1910, Flexner, professor da Johns
Hopkins University, financiada pela Rockefeller
Foundation,11 é contratado para realizar uma
investigação sobre o ensino médico nos Estados
Unidos. No início do século XX, havia cerca de 150
faculdades de medicina nos E.U.A., com toda
espécie de ensino e qualidade, mais de vinte
delas ensinando homeopatia, por exemplo.
Flexner produz com sua equipe um relatório
sobre essas faculdades, que aponta um modelo
padrão, o da Johns Hopkins University. Embora
aparentemente fosse um avanço para a época,
mais tarde esse modelo seria caracterizado como
negador de uma forma ampla dos aspectos
psicológicos e sociais.16 Cutulo,17 em sua tese
sobre educação médica, disseca profundamente
o conteúdo desse relatório. Vejamos o que pode
ser um resumo das principais idéias ali contidas:
(...) A ênfase do ensino deve ser
dividida entre básico (dentro do
laboratório) e profissionalizante (dentro
de hospitais) (...) denuncia as chamadas
seitas médicas como a homeopatia (...)
discrimina negros e mulheres (...)
hipervaloriza o ensino de anatomia (...)
não há menção ao ensino de saúde
mental, saúde pública ou ciências sociais.
19
A base diagnóstica deverá ser física e
biológica (...), e o melhor ensino é por
especialidades. Sua concepção de ciência
é manifestadamente positivista.
O chamado modelo flexneriano - e chamar
dessa forma é mais um mecanismo ideológico
para alienar - poderia ser chamado de medicina
positivista ou modelo unicausal, ou modelo da
Johns Hopkins, ou modelo da Rockefeller
Foundation, ou modelo norte-americano, ou
modelo da medicina do capital. Consolida-se nos
E.U.A., e culpa-se
hoje um homem,
escondendo de novo,
dessa forma, as
relações sociais e
econômicas
embutidas na
proposta.
Esse modelo
rapidamente torna-
se hegemônico nos
E.U.A., possibilitando
o desenvolvimento
das bases para o
capitalismo auferir
lucros com a doença -
o chamado complexo
médico industrial. Em
poucos anos,
expande-se para as
Américas do Norte e
Central, mas
encontra dificuldades
de hegemonia na América Latina.
O complexo médico-industrial no Brasil e o
Movimento Sanitário
O modelo flexneriano aporta com toda a
força no Brasil em função do golpe militar de
1964. Já andava entre nós desde 1950, mas não
era hegemônico. Nosso país baseava sua
formação no modelo europeu-eclético.
Com o golpe a algumas de suas
conseqüências - como a reforma universitária de
1968, a criação do Inamps, a expansão das
faculdades de medicina (de 26 em 1963, para 56
em 1973) -, com o conteúdo curricular
determinado pelo governo militar, atendendo aos
interesses do capital, com a supressão do ensino
da terapêutica, com a obrigatoriedade do ensino
centrado no hospital, entrávamos, enfim, na
“modernidade”. Era, então, criado o modelo que
formou quase todos os professores de nossos
atuais cursos de
medicina - o
modelo
flexneriano.
O modelo
de saúde imposto
pelo governo
militar restringia
em muito as
verbas para
prevenção (de 8%
do orçamento em
1963, apara 0,8%
em 1973), e sua
ênfase era posta
na atenção à
doença,
privilegiando o uso
de tecnologia.
Financiava-se com
dinheiro público a
construção de
hospitais privados.
Pagava-se por ações realizadas, e, quanto mais
utilizassem equipamentos, melhor pagamento
recebiam. Isso destacava as especialidades de tal
modo que a formação das universidades se
voltava para esse novo mercado. O local de
trabalho dos sonhos passava a ser o hospital,
bem equipado, com muitos laboratórios e
abundância de medicamentos.
20
A intervenção era curativa, e o Inamps
privilegiava cada vez mais a compra de serviços
em detrimento dos antigos serviços próprios dos
IAPs (Institutos de Aposentadoria e Pensões).11
Os setores que se devolvem são a Federação
Brasileira de Hospitais, a Abifarma (Associação
Brasileira da Indústria Farmacêutica), a medicina
de grupo (Abrange - Associação Brasileira de
Medicina de Grupo) e os produtores de
equipamentos. Hipertrofiam-se as faculdades de
medicina, onde não se ensina mais terapêutica.
Fragmenta-se o curso em múltiplas
disciplinas/especialidades, as aulas são
ministradas pelo especialista mais atualizado (e
não por quem entende de educação). O
estereótipo do profissional subproduto desse
modelo será visto no item “Um pouco de
epistemologia”. Os antigos trabalhadores dos
IAPs e do Ministério da Saúde reivindicam a volta
de melhores condições de trabalho, exigindo mais
verbas para prevenir doenças e serviços próprios,
gerando movimentos denominados,
respectivamente preventivistas e publicistas. A
estes se somam o renascimento do movimento
estudantil na área da saúde (os ECEM - Encontro
Científico dos Estudantes de Medicina) e os
intelectuais das universidades, que pleiteiam a
democratização do país e desenham modelos
alternativos de saúde, organizando-se em grupos
como o Cebes (Centro Brasileiro de Estudos de
Saúde), de caráter nacional. A eles se juntam o
movimento popular de saúde, capitaneado pela
Igreja, e o nascente movimento de medicina
comunitária (Murialdo, no RS, as experiências de
Londrina) e a organização da categoria médica no
Reme (movimento de Renovação Médica).19,13
O que os irmanava era a luta contra a
ditadura, contra a forma de atenção do complexo
médico-industrial e a necessidade de associar
prevenção com cura em um só ministério.
Na segunda metade da década de 1970,
esses movimentos isolados se unem e constituem
um grande ator social coletivo, chamado
Movimento Sanitário ou Movimento pela
Reforma Sanitária.
As políticas de saúde, a partir daí, são
resultantes do confronto entre essas duas forças
(complexo vs. Reforma), com evidente vantagem
para a política dominante até o fim da ditadura
militar.
Quanto a macrotendências ideológicas na
medicina, o final dos anos 1980 mostra esses dois
blocos: complexo médico-industrial vs.
movimento sanitário.
No governo Tancredo/Sarney, realiza-se a
8ª Conferência Nacional de Saúde - grande palco
para a demonstração de força do Movimento
Sanitário em Brasília. Dela se desenha a
necessidade de construir o SUS e resgatar as
bandeiras do movimento de medicina social
europeu do século XIX - que a saúde fosse direito
de todos e dever do Estado.
Do SUS ao Programa Saúde da Família
A aprovação da nova Constituição em
1988 e das Leis Orgânicas em 1990 garante
legalmente um sistema público de saúde que
deve ter equidade, integralidade, universalidade,
controle social e hierarquização da assistência. A
contra-hegemonia descobre, a duras penas, que a
escrita do texto legal não é suficiente para o
enfrentamento de uma hegemonia sanitária
capitalista. Cada palavra destacada nos remte
pensar na extrema dificuldade de sua
implantação num país sem tradição de cidadania
garantida.
Uma entre as múltiplas constatações é a
de que as universidades têm de formar outro tipo
de profissional. Um profissional que praticamente
inexiste na atenção primária/básica. As filas nos
hospitais são enormes em função disso. E a
leitura que a hegemonia faz é de que devem ser
construídos mais hospitais. O aparato ideológico
tenta demonstrar sempre que o serviço público é
ineficaz, que é só para pobres. As tentativas de
reversão da tendência hegemônica são para
21
reforçar o controle social, assumir a
administração de municípios, elaborar portarias e
normas operacionais, criar programas, fomentar
mudanças na trajetória de formação. As histórias
dessas tentativas podem ser simbolizadas pelas
lutas da ABEM desde a década de 1970, mas
muito mais fortemente a partir dos anos 1980. E
1991, cria, com outras entidades, a CINAEM, para
agrupar essa contra-hegemonia na formação e
apontar um modelo formador diferenciado.20
Os anos 1990 trazem perspectivas de
algum grau de mudança, seja pelos dirigentes das
instituições de nível superior na medicina ou por
se iniciar em 1993 (governo Itamar) uma
proposta de ênfase ministerial na atenção
básica/primária/integral da família com a criação
do Programa Saúde da Família (PSF).
A criação e a manutenção do PSF - que
não deveria mais ser chamado Programa Saúde
da Família, mas, sim, de Estratégia de Atenção
Básica, porque é estruturante do SUS - permitem
redimensionar a organização dos serviços de
saúde municipais.
A viabilização de maior aporte de recursos
para o PSF, a partir de 1997, por sobre a verba
irrisória do Piso de Atenção Básica (PAB),
estimula os municípios a contratarem, por salário
mais digno, médicos que tenham alta
resolubilidade e queiram trabalhar oito horas por
dia, em equipe multidisciplinar, promovendo
saúde e trabalhando com grupos terapêuticos nas
comunidades onde se localiza o Centro de Saúde,
fazendo educação e se vinculando a uma
população adstrita.
Pois bem, aí se põe a contradição em
evidência. Os municípios precisam de um
profissional que as faculdades de medicina, na
grande maioria, não estão formando, e não
querem um especialista, nem trabalho no
hospital.
O que nos pode parecer estranho na
verdade tem uma razoável explicação. O
capitalismo internacional, no interesse de
garantir o pagamento de dívidas externas dos
países aos bancos, passa a se interessar por
colaborar com os países que queiram investir em
atenção básica. O entendimento é que esta
atende melhor, com menor custo. Isto permite
que algumas diretrizes do SUS tenham
financiamento internacional. Este fato, associado
à luta do movimento sanitário, começa a criar
outra hegemonia na área da saúde.
Surgem financiamentos internacionais
para garantir um novo modelo de formação de
profissionais de saúde, em especial o médico.
Mas não se pense que o complexo médico-
industrial não luta pela sua manutenção. Ou que
o Banco Mundial e o Movimento Sanitário
pensem da mesma forma.
Ora, se entendemos estes movimentos na
área da saúde, entendemos que cada qual tenta
manter sua hegemonia, impregnar sua ideologia.
Os movimentos que propugnam a
mudança (que também não pensam exatamente
da mesma forma), como ABEM, Rede Unida,
Abrasco e CFM, pressionam o MEC em busca de
mudanças. E estas surgem, como por exemplo, a
aprovação das diretrizes curriculares em 2001,
para modificar os cursos da área da saúde até
2004.
As sucessivas gestões do Ministério da
Saúde aportam mais e mais recursos para
colaborar com a mudança, seja por intermédio do
PROMED ou agora com os Pólos de Educação
Permanente, trabalhando em todos os níveis:
desde parcerias com o serviço às residências ou
mestrados profissionalizantes.
Mesmo assim, nas faculdades de
medicina, a mudança é lenta; com muitas
dificuldades. Parece haver uma tendência a não
mudar, e isto nos remete a pensar nas teorias do
conhecimento.
Um pouco de epistemologia
Fleck,21 médico epistemólogo, ao estudar
estilos/coletivos de pensamento, nos explica
como se dá a instauração de um estilo, como
22
dentro de um coletivo ele se mantém e granjeia
novos “adeptos”, e como um estilo tende a
persistir e a não dialogar com os diferentes.
Na gênese da mudança de um estilo de
pensamento, vários autores adotam, na lógica
construtivista, maneiras semelhantes. Já nos
parece suficientemente explicado que a
determinação é externa, social e ideológica; mas
é preciso esclarecer um pouco mais a lógica
interna. Autores como Kuhn,15 falando de
revolução científica para mudança de
paradigmas, Bachelard,22 tratando de rupturas
epistemológicas, ou Piaget,23 dizendo das
desequilibrações para construir um novo pensar,
nos trazem as dificuldades estruturais internas de
mudança no pensar.
Esquematicamente, podemos dizer que há
três níveis de dificuldade para mudança:
a) Estruturais externas - as que envolvem
o capitalismo internacional e nacional. Da
organização Internacional do Comércio ao
complexo médico-industrial. As do governo,
como a estrutura do MEC, a lógica do Ministério
da Ciência e Tecnologia;
b) Estruturais internas - dependentes do
contexto social: como se constrói um estilo de
pensamento;
c) Conjunturais - GED (gratificação das
universidades federais); não-contratação de mais
professores; professores que não acreditam em
educação; falta de disponibilidade horária para
reuniões; não haver dedicação exclusiva; a
estrutura dos guetos departamentais; a não-
prática acadêmica; a separação básico-
profissionalizante; o reconhecimento de liderança
para chamar uma reunião só se for do “seu time”.
O caso que nos interessa examinar neste
trabalho é a existência de dois grande blocos
ideológicos e a diferença entre eles, para tentar
caracterizar as dificuldades estruturais internas. O
agrupamento a seguir radicaliza as diferenças,
mas a partir delas poderemos pensar em
matizes.24
Grosso modo, hoje as tendências
ideológicas podem ser divididas assim:
É claro que são estereótipos, mas servem
como balizamento para entender os grandes
confrontos ideológicos.
Acredito que uma caricatura de um
exemplo prático seja a forma mais fácil de
decodificar como se dá a entrada de um novo
MUDANÇA NÃO-MUDANÇA
Movimento pela Reforma
Sanitária
Atuação/valorização
do complexo médico-
industrial
Verdade como
processo/provisioriedade Verdade absoluta
Valorização da pesquisa
qualitativa
Só interessa a pesquisa
quantitativa
Valorização da psicologia e do
cultural
Valorização da célula e
da química
Valorização da atuação
multiprofissional/interdisciplinar Todo poder ao médico
Valorização da pessoa como um
todo
Valorização do
conhecimento
fragmentado
Permeabilidade/humildade Onipotência
Flexibilidade Rigidez
Pensamento crítico político Alienação
Centro de saúde/comunidade Hospital/indivíduo
Inclui promoção de saúde Só trará o doente
Educação como relação sujeito-
sujeito, na relação médico-
paciente
Educação com o
médico-sujeito e o
paciente como objeto
Flexibilidade para outras
racionalidades médicas
Fechamento para
outras racionalidades
(chamadas de
charlatanismo, etc)
Valorização da saúde pública Negação à saúde
pública
23
integrante num estilo de pensamento e como
este vai reproduzi-lo depois. Tomemos um
médico, que trabalha como professor vinte horas
por semana num hospital-escola e outras vinte
horas semanais em seu consultório privado,
numa policlínica, em sua especialidade. Faz dois
plantões em emergência por semana. Fez sua
especialização num hospital em Ohio (E.U.A.),
tendo morado lá durante quatro anos. É
professor há dois anos, e seu salário como tal
beira o ridículo. Um de seus alunos na décima
terceira fase do curso
pergunta sobre um
detalhe anatômico raro
num músculo que só
uma cirurgia
especializada consegue
visualizar. O professor
sabe a resposta,
estudou muito sobre
aquilo (aquele pedaço
do corpo), já salvou
vidas em função disto,
ganha dinheiro com
esse saber, fez um curso
recente de atualização e
aprendeu novos exames
e medicamentos a
recomendar. Ele não
lembra o nome de seu
paciente, também não
sabe se tem família ou
em que trabalha; refere-se a ele como “o do leito
14”. Lembra que suas aulas (quando ainda era
aluno) eram para cem alunos, e ele tinha que
estudar muito em casa para decorar novas
inserções musculares (era isso que caía na prova);
teve de “ralar” muito para conseguir fazer sua
residência; teve de copiar o discurso de seus
professores (estudando por cadernos), se não
“rodava”. Lembra quando o professor disse que,
se não usasse as palavras científicas, não seria
aceito no coletivo. Lembra também quando ouviu
o “rolar protodistólico” no leito 37, que o
professor de semiologia tanto valorizou; seus
colegas não ouviram (Ah! Que satisfação tão
grande ganhar uma competição de
conhecimentos...). Portanto, aprendeu um jeito
de falar, teve reforço psicológico por ouvir de
uma determinada forma, tirou notas boas por
decorar técnicas, e em função disso foi aceito
num coletivo. Acabava, dessa forma, de entrar no
estilo de pensamento hegemônico, sem ao
menos saber o que é hegemonia ou os grandes
blocos históricos.7
Além disso, dentro do estilo de
pensamento gerado, ele só será aceito e
respeitado se cumprir
algumas regras do coletivo,
tais como: nossa verdade
científica não aceita que
possam existir outras
verdades (a isso Fleck
chama de
incongruência/incomensur
abilidade entre estilos de
pensamento); os outros
profissionais da saúde
estudaram menos, sabem
menos, tem menos
responsabilidade, portanto
quem deve tudo mandar é
o médico. E, como
conseqüência, trabalho
interdisciplinar não cabe.
Para manter o monopólio
do conhecimento do
fragmento, deve participar
de muitos congressos de especialidade, onde não
existem questionamentos sobre o caráter
geral/social que a medicina deve ter.
Quando for professor vai fazer uma
“suave coerção”21 para que os alunos tenham os
mesmos rituais de iniciação, falem a mesma
linguagem e reproduzam o estilo de pensamento,
e que construam muros para não deixar entrar
outras idéias “alienígenas”. E entende que, para
ser bom professor, basta aprofundar o
conhecimento técnico da especialidade e
despejar este conteúdo no recipiente vazio, que é
a cabeça do aluno.25
24
O objetivo é reproduzir o seu modelo
(considerando que seja bem intencionado), e,
portanto, será o da medicina privada, que lhe dá
dinheiro. Pede muitos exames e receita muitos
remédios porque senão diz que os pacientes não
acreditam nele. E ainda, se não pedir e acontecer
algum contratempo, poderá sofrer uma ação
judicial. Fala uma linguagem de círculo
esotérico/só para iniciados,21 o que lhe dá a
impressão de que os pacientes e os alunos ficarão
embevecidos de ouvi-lo. Tudo o que não esteja
de acordo com o seu pensamento cartesiano é
“falsa medicina”, perda de tempo ou politicagem.
Não conhece o SUS, ou o que seja promover
saúde. Saúde pública é para sanitaristas.
Desconhece ou nega que epidemiologia é a base
de seu raciocínio.26
Acredita que, se a
maioria da categoria
médica pensa de uma
forma, nada vai
mudar nas políticas de
saúde (nem para ele),
por isso não precisa
estar atualizado nelas.
O melhor lugar para
pedir exames é uma
clínica que já tenha
laboratório ou um
hospital. Ah! O hospital!!! Entende que não é
possível saber toda medicina, então se aprofunda
na parte (oportunamente na víscera). Acredita
que sabe tratar prescrevendo: exercício, dieta,
mudança de hábitos, medicamentos e cuidados.
Mas atenção! É aqui que a falácia se estabelece:
- Onde ele aprendeu medicamentos? Na
farmacologia da quarta fase? Como os
representantes de laboratório? Copiando como
verdade o que o professore do leito prescreve?
- O que sabe de dieta, se em seu curso
não gastou mais que (no máximo) vinte horas
estudando alimentos?
- Exercícios adequados ele aprendeu com
fisioterapeuta ou com professor de educação
física? Já que médico tem de ensinar médico,
qual o médico que sabe disso?
- Para mudar hábitos há implicações
pedagógicas. Onde aprendeu educação? Vendo
os seus professores? As propagandas do
Ministério? Já estudou alguma vez Paulo Freire
ou pedagogia problematizadora ou PBL?
Existem, portanto, dois grandes
blocos/macrotendências ideológicas. Dentro
deles, diversas nuanças. O estereótipo acima
pode até nem existir de forma tão radicalizada,
mas... Faz pensar. Como se faz então para que a
mudança, na direção que a contra-hegemonia
deseja, possa acontecer?
As possibilidades de mudança
Se a ideologia está
baseada nas condições
materiais de existência, e
estas produzem o
pensamento hegemônico, a
mudança do mercado de
trabalho é um potente
mecanismo indutor de
mudanças. Com uma nova
lógica de financiamento para a
atenção básica e sendo o grande agente
contratador os municípios - que recebem mais
por terem médicos gerais que promovam saúde -,
há um estímulo para que formação se dê de
forma diferenciada.
Ao lado dessa questão estrutural, as
forças que apostam na mudança têm de investir
numa ruptura epistemológica/revolução
científica/novo estilo de pensamento dentro das
academias. Isso se dá sensibilizando os
serviços/comunidades onde os alunos
começaram a conviver, os diretores das
faculdades e, principalmente, passando pela
ideologia dos alunos e professores dos
departamentos. Aí é que está o nó. Em sua
maioria, os professores não abrem brechas em
25
suas muralhas, não querem conversar, são
impermeáveis, boicotam a mudança, pois esta os
deixa inseguros (isso é a incongruência fleckiana
de pensamento).
As possibilidades nas universidades estão
no trabalho interdisciplinar; no ouvir os alunos;
na inserção precoce destes, em contato com as
pessoas das comunidades; na inclusão do
conteúdo educação/pedagogia nos cursos; na
criação de rodas de discussão (no começo só os
permeáveis virão; é necessária a insistência
permanente na abertura aos outros, às
diferenças).
Portanto, ouvir o outro, respeitar opiniões
diferentes, permitir-se considerar que seu
pensamento não está pronto - que não há um
jeito de olhar, que existem possibilidades boas de
atuações diferentes da sua, que as respostas que
temos dado podem ser muito melhoradas.
O problema é que quem admite essas
premissas já está permeável ou em processo de
mudança, pois está construindo o novo modelo.
Os que não aceitam isso é que não querem o
novo modelo.
Para trabalhar a questão, que é
fundamental, temos que entender cada vez mais
como funcionam “as cabeças” dos médicos do
modelo tradicional. Não adianta iniciar as
discussões por filosofia/epistemologia, porque
eles nem virão se o tema for este. Só admitirão
reconhecer esses assuntos como importantes se
sua “verdade médica” for abalada. É o que
Cutulo17 chama de criar ou buscar complicações
para este raciocínio linear do positivismo.
Desestabilizar as “verdades”. Portanto, trabalhar
com o desmonte dessas verdades médicas que
não incorporam o psicológico, o cultural e o
social.27 Desconstruir o “paradigma” biologicista.
Desmascarar as certezas (saber remédios, dietas,
exercícios, cuidados; onde aprenderam?).
Será necessário formar novos
profissionais, mesmo que o grupo contra-
hegemônico seja minoritário, para que estes
sejam os novos professores. O Ministério da
Saúde tem feito a sua parte, estimulando as
rodas de Educação Permanente, também como
fonte de financiamento para projetos. A Portaria
198 do Ministério da Saúde de fevereiro de 2004
(MS-2004) caracteriza a Educação Permanente
como a continuidade da luta pela reforma
sanitária e a ruptura dos monopólios do saber;
não é a academia que tudo sabe, nem o serviço,
porquanto fruto também dessa academia, mas a
interface dos dois, com os atores do controle
social, que pode apontar as verdadeiras
necessidades da população.
Teremos de continuar a pressionar o MEC,
ampliando o número de aliados nesta direção,
para rever sua política de pós-graduação,
compatibilizar as necessidades da população com
as residências médicas (aliás, por que não
multiprofissionais?), contratar novos professores,
mudar a graduação, etc.
Não se trata de abandonar a prática
médica clínica tradicional, mas redimensiona-la,
ressignificá-la, enquadra-la numa prática
humanizada, crítica, reflexiva, que veja a pessoa
como um todo nas suas relações e que amplie as
possibilidades de resolubilidade. Em suma,
contribuir para que o povo reaja às situações de
opressão física, mental e social, e possa ser mais
feliz. E isso inclui as possibilidades para que o
médico também possa ser.
“Quem tem consciência para ter coragem
Quem tem a força de saber que existe
E no centro da própria engrenagem
Inventa a contra-mola que resiste
Quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade decepado
Entre os dentes segura a primavera”
Primavera nos dentes – Secos e Molhados
26
DE QUE MÉDICOS
O POVO BRASILEIRO
PRECISA?
Por um novo ciclo de lutas pela Educação Médica Brasileira
Thiago Henrique dos Santos Silva
(Gaúcho)
Nestes anos de 2012 nos vemos diante de uma pergunta incômoda: o que de fato mudou nas Escolas de Medicina desde as Diretrizes Curriculares Nacionais de 2001? Será que de fato conseguiu-se imprimir mudança significativa nos currículos médicos? Conseguimos avançar na formação de um profissional ético, humanista e crítico ao mundo que o cerca? Conseguimos construir uma real articulação com o SUS? E essa articulação se dá em que grau? Conseguimos fazer da Educação uma prática de liberdade ou somente implementamos metodologias mais ativas de aprendizagem? Por fim, estamos realmente formando os Médicos de que realmente precisa o Povo Brasileiro? Estas são questões candentes em nosso tempo, e todos e todas que estão envolvidos neste cenário de lutas precisam se debruçar sobre elas. Porém, seria impossível avançar neste debate sem conhecer um pouco da história das lutas pela Educação Médica. No início da década de 90, já no período que marcaria o fim do ascenso da consciência política e de massas na sociedade Brasileira, a categoria médica, organizada em suas entidades representativas, se deparou com o primeiro debate sobre a qualidade da Formação dos Médicos no País. Era a primeira tentativa de impor um Exame de Ordem para os Médicos.
Aliado a isto, as forças progressistas da sociedade tinham em sua agenda política a tarefa principal de efetivar as conquistas da Conferência de 1988, de colocar em cena estas bandeiras democráti cas e de disputa-las com a nossa Elite, que nunca teve interesse em que o Brasil atingisse nem mesmo a Democracia plena, quanto mais uma sociedade justa e igualitária de fato. No grande cenário da Saúde, a tarefa era efetivar o SUS! E no “micro-cenário” da Escola Médica, a tarefa era: formar médicos capazes para atuar bem neste patrimônio do povo Brasileiro, que é o SUS! Neste cenário político, ainda vigoravam à frente destas entidades uma parcela mais progressista da Categoria, que travava
importantes embates com os governos de plantão sobre a necessidade de se avançar na construção do SUS. Diante da crise desencadeada nesta época em que colocava em xeque a formação nas 80 Escolas Médicas e que propunha um exame ao fi nal do curso que penalizava o estudante por toda uma deficiência estrutural da Saúde e Educação Públicas, estas entidades propuseram uma avaliação ampla, aprofundada, que saísse do debate superficial do “erro médico” para chegar às suas causas, e assim trazer à tona quais de fato eram os Determinantes para que a Educação Médica Brasileira
estivesse em crise, e assim expor as fragilidades dos governos que se sucediam desde a reabertura democrática em dar respostas aos anseios da População e para efetivação do sistema único. Assim nasceu o Projeto CINAEM, que atravessou a década de 90 como um espaço de aglutinação de forças em prol de uma Educação Médica a serviço do SUS, e se configurava em mais uma arena de disputa política com os governos de Direita que se sucederam nesta época. CFM, FENAM, Sindicatos, ANDES-SN, DENEM e ABEM (dentre outras) tiveram papel fundamental neste processo, tendo a DENEM durante muito tempo ocupado a vice-presidência de tal comissão.
27
Como anteriormente colocado, essas entidades não estão imunes às outras disputas que ocorrem na sociedade. A década de 90 veio e o Neoliberalismo enfraqueceu bastante as forças que se propunham minimamente a divergir do projeto da Elite Brasileira. Com isso, forças conservadoras foram se apropriando das Direções de algumas destas entidades, provocando rachas importantes, o que culminou com o fim da CINAEM no inicio dos anos2000. No ano de 2001, ainda no governo FHC, foram editadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Medicina, com o produto do que ficou da CINAEM. De lá pra cá muita história se passou e se sucederam os programas governamentais afim de “implementar estas mudanças”, tais como PROMED, PRO-Saúde, PET-Saúde, etc. São 11anos de Diretrizes Curriculares e boa parte dos cursos que hoje funcionam são “adequados” às Diretrizes desde seu nascedouro, e outros tantos passaram por processos de Reforma Curricular para se adaptar. Porém, o que se vê na prática é que não se conseguiu mudar o perfil do egresso do curso de Medicina. Existem problemas de ordem estrutural, que saem da esfera da Escola Médica, que os movimentos “reformistas” optaram por não debater, e ao fazê-lo incorreram em erros de análise que fatalmente levaram à ineficácia da ação. A própria CINAEM não pode ser vista do ponto de vista histórico de forma “romantizada”, pois também apresentava vários problemas internos e muitas disputas, uma vez que era composta por diferentes interesses representados pelas diferentes entidades. O que conseguimos constatar é que à semelhança do que vem ocorrendo com muitos dos ideais da Reforma Sanitária Brasileira, a bandeira da Educação Médica de qualidade e voltada para o SUS vem sofrendo o que se pode chamar de “adequação à ordem”. São diversos os fatores que influenciam para este processo, e não nos cabe neste pequeno texto destrinchá-los. Porém, sabendo que este processo existe, abre-se uma bifurcação, na qual temos necessariamente de fazer uma escolha: ou abandonamos a luta neste cenário político (o da Educação Médica) ou nos debruçamos sobre ele de forma responsável e contundente, avaliando dialeticamente as formulações dos períodos anteriores e superando os entraves e as limitações que apresentaram os movimentos que se sucederam ao longo dos anos.
É sabido que os últimos 20 anos de lutas pela
Saúde tiveram como norte uma determinada
estratégia políti ca, de ocupação dos espaços
institucionais, de formação de quadros políticos
para esta disputa, e a DENEM cumpriu papel
importante, tanto como ator político
determinante neste cenário, como formador de
quadros para tais espaços institucionais. Hoje
conseguimos enxergar, cada dia com mais
clareza, os limites da luta por estes meios, e
emerge para esta nova geração uma tarefa difícil,
porém importantíssima: inaugurar um novo ciclo
de lutas pela Educação Médica Brasileira.
Precisamos redesenhar nossas formulações, nos
permiti r ao novo, no dedicar a escrever e a agir
de modo diferente.
O Movimento Estudantil ao redor de todo o mundo tem mostrado que consegue ser a ponta-de-lança, a vanguarda dos grandes processos de mudança. Na luta pelo SUS e por uma Escola Médica de novo tipo o MEM também cumpriu importante papel. Hoje, num cenário privatizante para todos os lados, de ataques à diretos, de “pasteurização” e tecnificação da política, urge formularmos uma militância de novo tipo, uma militância que ousa mais uma vez se levantar contra as opressões de um sistema que deseja sim formar médicos, mas médicos que sirvam de ferramentas pra conter a fúria popular pela falta de seus direitos, e não médicos(como queremos ser) que sirvam de instrumento de transformação deste mundo injusto, médicos dos quais de fato precisa o nosso Povo Brasileiro!
“Tá vendo aquele colégio moço
Eu também trabalhei lá
Lá eu quase me arrebento
Fiz a massa, pus cimento
Ajudei a rebocar
Minha filha inocente
Vem prá mim toda contente
"Pai vou me matricular"
Mas me diz um cidadão:
"Criança de pé no chão
Aqui não pode estudar"
(Cidadão, Zé Ramalho)
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SOBRE A LUTA
POR CURRÍCULOS
Armando De Negri
A luta por transformações curriculares,
historicamente, tem sido uma das grandes
deficiências do movimento estudantil. Seja pela
não compreensão de sua importância, levando a
uma não implantação dessa luta; seja por uma
compreensão equivocada do objetivo e a forma
de trabalhar estas transformações, levando a um
trabalho especifista e infrutífero. Ambas as visões
são danosas ao movimento e ambas devem ser
superadas.
A importância do estudo dos currículos
decorre do seu papel na formação do futuro
profissional. Na universidade brasileira, que é um
aparelho ideológico (instrumento utilizado para
reproduzir um determinado modo de pensar) da
classe economicamente (consequentemente
politicamente também) dominante, os currículos
são organizados de forma a reproduzir as
relações de produção (forma que os homens se
relacionam entre si, para produzir e distribuir as
riquezas) da nossa sociedade, esterilizando e
compartimentalizando o conhecimento,
desvinculando do contexto global. O
conhecimento transmitido hoje nas universidades
visa formar técnicos que sirvam aos interesses da
classe dominante, técnicos que não tenham uma
visão crítica de sua inserção dentro da sociedade.
É assim que os currículos atuais se caracterizam
pela distância da realidade, a ultra-
especializaçãoe a tecnificação e o fracionamento
do conhecimento.
A primeira dificuldade com trabalho de
currículo é definir qual o nosso objetivo (aonde
queremos chegar e aonde vamos mexer). Ao
nosso ver devemos reivindicar a formação de um
profissional para dar respostas a uma
determinada realidade, que deve ser
tecnicamente preparado e politicamente
comprometido com os problemas mais sentidos
da população (aqui não deve haver qualquer
dicotomia entre a competência técnica
profissional e o comprometimento político).
Um grande erro freqüente na maioria dos
processos de reformas curriculares é o de se
limitar a fazer reformas na grade curricular,
retirando disciplinas, adicionando outras, até
integrando algumas. Achamos que esta forma de
trabalhar é equivocada, pois a principal distorção
na formação não é a grade curricular em si, mas
sim o seu marco conceitual (determinado método
utilizado para conhecer uma determinada
realidade) que está implícito neste currículo.
Assim, de nada vale mexer na organização de
uma grade curricular sem mexer na lógica sobre a
qual se encara o conhecimento, que está
implícito nesta organização. É importante
ressaltar que este marco conceitual (no caso
positivista da análise) não está implícito apenas
nas pessoas que elaboram este currículo, mas sim
na maioria absoluta de docentes e discentes. Por
isso, de nada vale mudar a grade curricular,
mudar sua lógica interna (marco conceitual), se
os professores que vão repassar o conhecimento
e os estudantes que vão recebê-lo ainda têm a
mesma lógica de encarar o conhecimento.
O método positivista de trabalhar o
conhecimento faz parte da ideologia burguesa
(que é a da classe dominante no capitalismo), que
não é exclusividade das universidades, mas que
permeia toda nossa sociedade, que recebe esta
forma de pensar através dos meios de
comunicação, das escolas, e até da educação
informal. Sendo assim, a luta por currículos não
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pode ser travada sem uma ligação com as lutas
mais gerais que trazem em si a luta ideológica, a
luta pela conscientização do nosso povo dos seus
reais interesses e dos seus reais inimigos.
Outro erro bastante freqüente nas lutas
pelas reformas curriculares é a tentativa de
viabilizá-las através de discussões dentro dos
órgãos colegiados, que têm uma composição
autoritária muito desfavorável, nos quais os
estudantes, que estão geralmente a frente desses
processos, estão com representação minoritária,
sendo esta correlação desfavorável e uma
barreira histórica nessas lutas.
O movimento deve trabalhar esforços
para buscar espaços onde esta correlação seja
mais favorável a essas mudanças. A organização
de fóruns paralelos onde o conjunto da
comunidade universitária possa discutir, opinar e
deliberar diretamente e universalmente pode ser
uma forma de demonstrar a distância que existe
entre os interesses da comunidade universitária e
dos senhores de paletó que compõe os órgãos
deliberativos da universidade, fazendo com que a
correlação de forças se inverta e que a
organização independente da comunidade faça
valer as suas posições. Mas isto só não basta, pois
existe uma barreira que tradicionalmente entrava
as transformações que é o estatuto da
universidade.
A organização da comunidade possibilita o
desmascaramento do estatuto e ainda favorece a
possibilidade da realização de “pactos” extra-
institucionais, da desobediência que pode ocorrer
independentemente das legislações, pois
sabemos que o que determina, dentro e fora da
universidade, é a correlação de forças entre
segmentos e classes sociais. Assim, pode-se
estabelecer pactos como a não realização de
chamadas, a mudança do método de avaliação
etc. Como vimos, a luta pela transformação
curricular é uma luta fundamentalmente
ideológica, que não está restrita a universidade e
que deve ser travada globalmente,
demonstrando as contradições que existem entre
os interesses da maioria da nossa população e
uma minoria que determina toda a nossa vida
segundo os seus interesses. Sendo assim, esta
consciência vai brotar de todas as lutas que
seremos obrigados a travar e não apenas de uma
isoladamente. Dessa forma, é impossível que nós
consigamos a formação de profissionais
comprometidos e preparados para dar respostas
às necessidades de nosso povo (pelo menos a
maioria dos profissionais egressos da
universidade) nos marcos do sistema capitalista,
mas podemos abrir espaços de contradição
dentro da universidade, inserindo um contato
maior com a nossa realidade, uma abordagem
mais crítica do conhecimento e da profissão.
Esses espaços não são preestabelecidos, mas
dependem do grau de consciência e organização
da comunidade universitária, ou seja, da
correlação de forças dentro da universidade e da
sociedade em geral.
“Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do
tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
É feia. Mas é flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o
ódio.”
(A flor e a náusea, Carlos Drummond de Andrade)
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Público e Privado na
Gestão da Saúde
Raquel Torres para Revista POLI nº 19
(EPSJV/FIOCRUZ)
Diversos modelos para gerir o SUS têm surgido
nos últimos anos. Quais serão suas implicações?
Experimente perguntar por aí quais são os principais problemas do Sistema Único de Saúde (SUS). Provavelmente, dois itens aparecerão em massa nas respostas: financiamento insuficiente e má gestão. A falta de recursos financeiros para o Sistema é alvo de debates desde a sua criação e você os vem acompanhando em diversos números da revista Poli (edições 1, 4, 5, 9, 15).
No caso da gestão, as discussões também são antigas. Desde os anos 1990 têm sido buscadas alternativas ao modelo proposto na Constituição Federal de 1988 - segundo a qual a saúde é um dever do Estado e as instituições pri-vadas podem participar do SUS de forma complementar, tendo como preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos -, sob a justificativa de que é necessário dar agilidade e flexibilidade a uma gestão considerada morosa e pouco eficiente.
Assim, surgiram e se desenvolveram modelos e regimes de que você certamente já ouviu falar muito, como as Organizações Sociais (OS), as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips), as parcerias público-privadas (PPP) e as Fundações Públicas de Direito Privado, que ficaram conhecidas simplesmente como Fundações Estatais.
Mais recentemente, em dezembro do ano passado, houve ainda uma surpresa: no último dia de seu mandato, o então presidente Lula publicou, com o ministro da Educação Fernando Haddad, uma Medida Provisória (MP 520) autori-zando a criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), voltada para a gestão de hospitais universitários.
Manifestações contrárias a propostas como essas aparecem por todo o país: em diversos estados há fóruns de saúde que têm se
articulado, formando a Frente Nacional contra a Privatização da Saúde. A principal crítica é a de que essas medidas são de cunho privatizante, embora haja quem discorde. Nesta reportagem, você vai entender o que são esses modelos, o que eles implicam e quais são os principais pontos de discussão em cada um deles.
1988: retrocesso?
A possibilidade de administração da ‘coisa pública’ pelo direito privado é antiga na nossa legislação. O decreto-lei 200/1967, que dispõe sobre a administração federal no Brasil, divide essa administração em direta - constituída pelos serviços integrados na estrutura da presidência da República e dos ministérios - e indireta - que compreende as autarquias, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e ainda as fundações públicas, que, segundo esse documento, são dotadas de personalidade jurídica de direito privado.
A partir da Constituição de 1988, muitos juristas passaram a entender que as fundações públicas deveriam passar a ser trabalhadas apenas como de direito público, embora essa nunca tenha sido uma unanimidade. A lei nº 8.080, que regulamenta o SUS, prevê ainda que a participação complementar das entidades privadas só deve ser admitida quando as disponibilidades do SUS não forem suficientes para garantir a cobertura populacional e essa participação complementar deve ser formalizada respeitando as normas de direito público, o que inclui, por exemplo, os processos de licitação.
Mas foi logo na década de 1990, época do avanço do neoliberalismo no Brasil, que começaram a ser pensadas estratégias menos centradas no poder público para gerir áreas como saúde e educação, sob a justificativa de que a legislação “engessava” o aparelho estatal.
Nesse cenário, começou a ser gestado o Plano Diretor da Reforma do Estado, coordenado por Luiz Carlos Bresser-Pereira, ministro de Administração Federal e Reforma do Estado (MARE) no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso. Foi esse Plano que citou as OS, pela primeira vez, como uma saída para melhorar a gestão.
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O documento, de 1995, trazia uma noção de Estado bem diferente daquela concebida na nossa Constituição: um dos itens do Plano se chama justamente ‘O retrocesso de 1988’. O texto aponta, entre os problemas trazidos pela Carta, a “estabilidade rígida” dos servidores civis, o aumento dos gastos com pessoal e a retirada da flexibilidade operacional da administração indireta. Assim, “como resultado do retrocesso burocrático de 1988 houve um encarecimento significativo do custeio da máquina administrativa, tanto no que se refere a gastos com pessoal como bens e serviços, e um enorme aumento da ineficiência dos serviços públicos”, diz o diagnóstico do Plano.
Publicização e privatização
Algumas questões foram pontuadas no documento: o Estado deveria permanecer realizando as mesmas atividades ou algumas poderiam ser eliminadas? Havia atividades que poderiam ser transferidas da União para estados ou municípios, ou ainda para o setor privado ou para o setor público não-estatal? O Estado precisava realmente do contingente de funcionários de que dispunha? As respostas a essas questões, elaboradas ao longo do Plano, apontavam para a estruturação de um Estado responsável não mais por executar políticas pú-blicas, mas apenas por financiá-las e coordená-las. A consequência disso, segundo a professora Maria Inês Souza Bravo, da Escola de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), foi o enxugamento do Estado brasileiro.
“Fizemos nossa reforma no fim dos anos 1980, tentando construir um Estado de direito, na contramão do que estava acontecendo no cenário internacional. As medidas que vieram a
seguir são o resultado de propostas mais conservadoras e, consequentemente, surgiram novos modelos de gestão”, afirma.
O Plano Diretor distinguiu, no aparelho do Estado, quatro setores:
o núcleo estratégico, as atividades exclusivas, os serviços não exclusivos e a produção de bens e serviços para o mercado. E, para cada um desses setores, o controle do Estado deveria variar.
O primeiro - o núcleo estratégico - corresponde aos Poderes Legislativo e Judiciário e ao Ministério Público, além do Presidente da República, os ministros, seus auxiliares e assessores diretos.
Trata-se do “setor que define as leis e as políticas públicas, e cobra o seu cumprimento”.
As atividades exclusivas, por sua vez, são serviços “que só o Estado pode realizar”, porque se exerce o poder de regulamentação, fiscalização e fomentação. É aí que entram a polícia, a cobrança de impostos, a previdência social básica e o serviço de trânsito. De acordo com o Plano, nesses dois primeiros setores, é necessário que o Estado tenha controle absoluto.
No entanto, não é essa a indicação para os dois últimos. Nos chamados serviços “não exclusivos”, em que se encaixam a saúde e a educação, “o Estado atua simultaneamente a organizações públicas não-estatais e privadas” e, segundo o Plano, a propriedade ideal para esses serviços é a pública não-estatal: “As organizações nesse setor gozam de uma autonomia administrativa muito maior do que aquela possível dentro do aparelho do Estado”. É para esses serviços que o Plano propõe a criação das OS, numa estratégia definida como ‘publicização’, que seria a transferência desses serviços para o setor público não-estatal. Assim, o objetivo era transformar as “fundações públicas em organizações sociais, ou seja, em entidades de direito privado, sem fins lucrativos, que tenham autorização específica do poder legislativo para celebrar contrato de gestão com o poder executivo e assim ter direito a dotação orçamentária”.
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Por fim, o setor de produção de bens e serviços para o mercado corresponde à área de atuação das empresas, como o fornecimento de água e luz. Nesse caso, a orientação também era clara: “Dar continuidade ao processo de privatização através do Conselho de Desestatização”.
Grandes marcos
Para Geandro Pinheiro, assessor da vice-direção de desenvolvimento institucional da EPSJV/ Fiocruz, o primeiro grande marco deixado pelo Plano Diretor foi decorrente das próprias proposições do documento, que aponta um Estado fortemente atuante apenas em determinadas áreas. “Tudo o que não foi considerado estratégico ou exclusivo passou a poder ser assumido pela ‘sociedade’ - e a ‘sociedade’ passa então a ser um vernáculo usado para disfarçar o próprio mercado”, diz Geandro.
A partir daí, ocorreram algumas mudanças importantes, como a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (a lei complementar 101/2000); a lei 9.637/98, que instituiu as OS, os contratos de gestão e o programa nacional de publicização; e a lei federal 9.790/99, que instituiu as Oscips.
Geandro considera que a Lei de Responsabilidade Fiscal está na origem de muitas questões na discussão de modelos jurídicos hoje. Isso porque uma das definições dessa lei diz respeito ao percentual da receita corrente líquida que pode ser gasto por cada ente federado com pessoal:
para a União, são 50%, enquanto para estados e municípios são 60%. “Para se adequar à lei, foram criadas verdadeiras cartilhas explicando como municípios, estados e a União deveriam atuar para atingir aquele percentual.
E muitas dessas saídas estavam vinculadas
à terceirização”, explica. A criação de OS e Oscips tem tudo a ver com esse processo, justamente porque permitem contratar pessoal fora da folha direta de pagamento.
Trabalhadores precarizados e ausência de licitações
De acordo com a nossa legislação, o Poder Executivo pode qualificar como OS “pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde”. Essas organizações devem firmar, com o Poder Público, um “contrato de gestão”, para a “formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades”. É esse contrato que discrimina as atribuições, as responsabilidades e as obrigações de cada uma das partes: ele deve conter metas a serem atingidas e prazos de execução.
Outra característica importante diz respeito à extinção de órgãos públicos, como parte do Plano Nacional de Publicização: todos os órgãos responsáveis por exercer as atividades listadas ali em cima deveriam ser extintos, enquanto essas atividades deveriam ser absorvidas pelas OS. Também ficou prevista a cessão de servidores públicos dos órgãos ou entidades extintos para as organizações.
No mesmo ano em que foi aprovada a lei das OS, deu-se entrada na ação direta de inconstitucionalidade (Adin) 1.923/98, justamente para contestar essas características. Preocupada com a cessão de servidores públicos para instâncias privadas, com o método de qualificação das OS e com a sua aplicação nas áreas de saúde e educação, a Adin não foi votada até hoje.
As Oscips também são pessoas jurídicas de direito privado e sem fins lucrativos, mas estão excluídas do rol de entidades que podem ser qualificadas como Oscips os sindicatos, as instituições religiosas e cooperativas, entre outras. A legislação também define quais devem ser as finalidades das entidades para que elas possam ser qualificadas como Oscips - trata-se de objetivos como a defesa do meio ambiente, a
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promoção da assistência social, do voluntariado, do desenvolvimento econômico, dos direitos humanos e da cultura, por exemplo.
Em vez de contrato de gestão, as Oscips fazem, com o Poder Público, um ‘termo de parceria’, destinado a formar um vínculo de cooperação entre as partes. Assim como o contrato das OS, esse termo discrimina os direitos, as responsabilidades e as obrigações das partes. No entanto, diferentemente do que ocorre com as OS, no caso das Oscips não há a prerrogativa de que devam ser extintos órgãos ou entidades administrativas já existentes.
Tanto as OS quanto as Oscips têm autonomia para definir, em seus regulamentos, os procedimentos que irão adotar para a contratação de obras, serviços e compras, além de seus empregados. Assim, elas podem contratar trabalhadores da maneira que desejarem - como prestadores de serviços ou por meio de cooperativas, por exemplo e estão livres de fazer licitações para a aquisição de bens e serviços.
Além disso, segundo Conceição Aparecida Rezende, especialista em Saúde Pública e em Direito Sanitário, essas organizações não prestam contas a órgãos de controle internos e externos de administração pública. No artigo ‘Modelo de Gestão do SUS e as Ameaças do Projeto Neoliberal’, ela escreve também que “o que ocorreu, de fato, com as terceirizações previstas na Lei das OS foi a transferência, pelo Estado, de suas unidades hospitalares, prédios, móveis, equipamentos, recursos públicos e, muitas vezes, pessoal para a iniciativa privada”.
No fim das contas, contratar OS e Oscips pode sair caro para os entes federados, mas faz com que eles consigam se adequar à lei de responsabilidade fiscal. “É um arremedo. Muitas vezes, sai muito mais caro do que pagar trabalhadores na folha direta de salário, e isso faz bastante diferença no orçamento global. No entanto, esse gasto, que de fato é despesa com força de trabalho, não é enquadrado assim na lei. Muitos municípios gastavam 95% de suas receitas com pessoal e passaram a se adequar à lei fazendo planos de demissão voluntária e contratação por terceirização, por cooperativas, por OS”, conta Geandro.
Para a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutora em saúde pública Ligia Bahia, o exemplo mais ‘acabado’ da financeirização na saúde é o das parcerias público-privadas. “Trata-se de uma parceria com entidades privadas não só na gestão como na construção e na operação. É o que acontece nas estradas, por exemplo, em que há uma concessão do poder público para uma entidade privada, por longos períodos. A entidade investe na constru-ção e na conservação da estrada, conserva e cobra pedágios. Imagine transpor isso para a saúde!”, diz a pesquisadora.
Fundações Estatais
Em 2007, o poder executivo apresentou ao Congresso Nacional o projeto de lei complementar 92/07 para resolver o ‘problema’ das fundações públicas: afinal, quais deveriam ser suas áreas de atuação? E essas fundações deveriam ser regidas pelo direito público ou pelo privado? O projeto diz que, mediante lei específica, pode ser instituída ou autorizada a instituição de fundações sem fins lucrativos, integrantes da administração pública indireta, com personalidade jurídica de direito público ou privado.
A definição da personalidade jurídica deve ser feita com base na atividade a ser desempenhada: para atividades que não sejam exclusivas do Estado - como saúde, assistência social, cultura, desporto, ciência e tecnologia, meio ambiente, previdência complementar do servidor público,
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comunicação social e turismo - elas devem ser de direito privado.
Para muitos pesquisadores e sanitaristas, as Fundações Estatais são vistas como um bom modelo de gestão. O artigo ‘Fundação Estatal e o Fortalecimento da Capacidade de Atenção do Estado’, escrito pelo diretor de Atenção Básica da Secretaria de Saúde da Bahia, Hêider Pinto, pelo professor da UFF Túlio Franco e pelo professor da UFRJ Emerson Merhy diz exatamente isso. De acordo com os autores, a Fundação Estatal “é a combinação de uma autarquia - com todas as vantagens que essa tem em termos de descentralização administrativa e autonomia e agilidade na tomada de decisões operacionais; com uma empresa estatal, buscando nessa a agilidade e autonomia na gestão de pessoal, orçamentária, contábil e relacionada a compras e aquisições”.
Eles explicam que, assim como as empresas estatais, as Fundações Estatais estão subordinadas ao código civil no que diz respeito a compras, contabilidade e gestão de pessoal. E, apesar de estarem subordinadas à lei nº 8.666, que trata das licitações, elas podem também ter um regime próprio e especial para compras, o que traz agilidade.
Divergências
Mas nem todo mundo vê as Fundações Estatais com tanto otimismo, e o projeto da sua criação causou muito rebuliço desde que foi anunciado. De acordo com o jurista Dalmo Dallari, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), o texto se baseia em falsos pressupostos e improbidades conceituais. No artigo ‘Fundações Estatais: proposta polêmica’, ele diz que vem se desenvolvendo um processo que visa a “reduzir a participação do Estado nas atividades sociais, transferindo para a iniciativa privada a atribuição de prestar determinados serviços, tradi-cionalmente qualificados como serviços públicos, como a saúde e a educação”.
Segundo Dallari, um dos motivos para isso é o pressuposto de que “a iniciativa privada é sempre mais competente do que o Estado”, mas, para o jurista, essa premissa não é verdadeira. Além disso, o autor diz que a proposta é inconstitu-cional.
Isso porque a Constituição permite que as leis complementares definam as áreas de atuação das fundações, mas não a sua personalidade jurídica, como quer a proposta.
Privatização?
Como as OS e Oscips envolvem terceirização, há um certo consenso entre os estudiosos do tema de que elas significam a privatização da gestão. Já no caso das Fundações Estatais, formadas dentro do poder público, as opiniões se dividem. Para Maria Valéria Correia, professora da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), o fato de essas fundações serem regidas por direito privado “encobre a natureza de privatização que tem essa proposta”.
Ela reconhece que existem pontos positivos em relação aos modelos de terceirização - a subordinação à lei de licitações e os contratos feitos necessariamente por meio de concurso público são exemplos disso. Entretanto, Maria Valéria diz acreditar que, mesmo assim, o Estado abre mão de gerir a coisa pública. “Essas melhorias são uma ‘embalagem’: os efeitos são menos nefastos, mas a natureza do projeto continua sendo privatizante”, diz.
Sara Granemann, professora da Escola de Serviço Social da UFRJ, concorda: “O fio condutor que alinhava e torna iguais, na dimensão mais profunda, iniciativas como OS, Oscips e
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Fundações Estatais, é a flexibilização da legislação para poder transferir fundos públicos a capitais privados. Como chamar de fundação estatal algo que é de direito privado? Se é estatal, tem que ser de direito público”, defende.
A jurista Lenir Santos tem uma posição diferente. Em 2005, ela participou da elaboração das Fundações Estatais por uma demanda do Grupo Hospitalar Conceição, de Porto Alegre e, depois disso, foi colaboradora do Ministério do Planejamento quando ele decidiu trazer para si essa discussão.
De acordo com ela, as fundações não podem ser consideradas privatizantes:
“Nada nessas Fundações é privado. O que elas podem é usar elementos do direito privado dentro do público. Elas continuam totalmente públicas, mas com o orçamento desa-marrado e podendo contratar por CLT, por exemplo.
Não se trata de repassar a gestão a uma entidade privada. Privatizante é o que põe para fora, como as OS”, defende.
Ela explica que, em relação à gestão, o modelo das Fundações é igual ao das empresas públicas.
“A única diferença entre empresas públicas e Fundações Estatais é que as primeiras podem explorar alguma atividade econômica ou trabalhar com serviços tarifados.
A Fundação, como não atua com lucro, tem também imunidade tributária”, pontua, acrescentando ainda que o argumento de que as Fundações seriam inconstitucionais, como aponta o professor Dallari, já não são mais verdadeiras, pois o Supremo Tribunal Federal já se posicionou pela sua constitucionalidade.
Para Francisco Batista Júnior, ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde, o fato de as Fundações Estatais estarem sob a responsabilidade do poder público, sem constituírem empresas privadas contratadas, não muda a “lógica” presente no modelo das OS e Oscips. “Isso porque elas permitem, por exemplo, que se nomeiem, para a administração do serviço público, pessoas ligadas a determinados grupos políticos ou corporativos. Essa é a principal denúncia que temos hoje em relação a algumas fundações no país. Acaba-se tendo uma instituição forte, com absoluta autonomia, com orçamento garantido e dominada por um
determinado grupo político”, aponta.
De fato, um dos pontos mais discutidos quando se fala nesses novos modelos é o do controle social, que, segundo os críticos, tem sido desconsiderado. “Nenhum desses modelos traz conselhos paritários”, diz Maria Inês.
Além do mais, a implantação de modelos como OS e Oscips desconsideram as resoluções das últimas Conferências Nacionais de Saúde e do próprio Conselho Nacional de Saúde, que já deliberou contra qualquer forma de terceirização da gestão e contra a proposta das
Fundações Estatais. De acordo com Batista Júnior, em geral as OS, Oscips e Fundações Estatais têm sido criadas sem a aprovação nos conselhos estaduais de saúde. “E ainda por cima a prestação de contas tem sido deixada de lado”, critica.
Força de trabalho
Existe outra questão nas Fundações Estatais que vão contra o que a Frente Nacional contra a Privatização da Saúde defende:
apesar de contratarem trabalhadores por meio de concurso público, o vínculo empregatício é o da CLT. “Defendemos o regime estatutário, mais
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estável”, diz Maria Valéria. Sara completa: “As novas formas jurídicas todas identificam, no trabalho estável, o grande problema da gestão. Por trás dessa formulação, existe a reivindicação de se poder contratar e demitir a qualquer tempo e em qualquer circunstância”, critica a professora.
Lenir Santos identifica a questão da força de trabalho como sendo o centro de “toda a briga”:
“No fundo, acredito que o que está por trás das pessoas que são contra as Fundações Estatais é basicamente o regime da CLT. Não vejo essas pessoas olhando se a proposta é boa para a saúde, se vai melhorar, se é bom para o povo. Eles parecem querer saber apenas se é bom para a categoria que defendem”, critica.
Batista Júnior se preocupa com o fato de que a lei estabelece que cada Fundação deva ver seus salários.
“Se há dois hospitais, cada um com sua fundação, cada um vai estabelecer o salário que quiser. Isso significa correr o risco de ter dois enfermeiros trabalhando em hospitais vizinhos, um ganhando três vezes mais que o outro. Situações como essa inviabilizam o SUS. Em vez de batalharmos para criar uma carreira em que todos os profissionais sejam tratados da mesma forma, priorizando a qualificação, a dedicação exclusiva e a estabilidade, estamos aprofundando as dificulda-des que já existem”, diz.
Para Geandro Pinheiro, um ponto importante dessa questão é a necessidade de as fundações se adequarem ao mercado em relação ao pagamento de pessoal. “Diz-se muito que o mercado oferece salários maiores a determinados profissionais, como gestores ou cirurgiões, do que o SUS. E que, para conseguir os melhores profissionais, é preciso poder oferecer maiores salários nesses casos. Isso faz com que toda a luta que temos na área pública de planos de cargos e salários, de um plano de carreira vinculado a critérios de isonomia, vá por terra. Acaba-se criando uma hierarquia de funcionários na instituição - e sob os critérios do mercado, e não das necessidades do SUS”, diz o pesquisador.
Privatização mais tênue
No entanto, existe uma crítica mais profunda que perpassa todas essas ‘saídas’ que vêm sendo apontadas para os problemas de gestão da saúde. “O fato de considerarmos um modelo privatizante se relaciona muito menos ao seu formato propriamente do que ao propósito, ao fim último que esse modelo propõe às instituições. Privatizar não é apenas colocar um serviço nas mãos de uma empresa ou outra entidade privada”, diz Geandro.
De acordo com ele, é preciso ter cuidado tanto ao criticar os novos modelos como ao fazer o que ele considera uma “defesa cega” das autarquias. “Não são apenas as OS, as Oscips, a EBSERH e as Fundações Estatais que privatizam. Sob esse ponto de vista dos propósitos, pode-se dizer até mesmo que há autarquias extremamente privatizadas, pois estamos trabalhando com grupos corporativos ou políticos que fazem com que esses órgãos, de administração direta, atendam e beneficiem a determinados grupos em vez de à população em geral”, afirma o pesquisador.
Assim como Dalmo Dallari, Geandro acredita que os estudiosos que defendem os modelos da empresa ou das Fundações Estatais, por exemplo, estão sendo levados pelo fetiche de que o bom modelo de gerência é aquele vincula-do ao modo privado. “No fim das contas, o que se coloca são modelos de Estado. Há grupos que defendem um Estado forte e público.
Ao mesmo tempo, outros grupos defendem a incorporação de novas modalidades, orientadas para o benefício da sociedade e para a melhoria da qualidade do atendimento ao cidadão, sem que o meio para isso importe muito”, explica o pesquisador. De acordo com ele, quem está no poder tem apostado nessas saídas de novas modalidades jurídicas, quando o que se faz necessário é desenvolver um debate amplo sobre os nós presentes na administração pública.
A reforma necessária
Como o decreto-lei da administração federal é ainda da época da ditadura, Geandro diz que reformá lo é mais do que necessário, mas isso não tem sido pautado pelos governos. “A lei está caduca e precisa ser melhorada. Vemos que há constrangimentos em relação ao orçamento, à gestão dos trabalhadores e dos recursos
37
financeiros. O importante é ver que tipo de saídas conseguimos arrumar”, aponta.
E um dos nós que precisam ser desatados é justamente a Lei de Responsabilidade Fiscal. “Ela é um absurdo. Hoje, um prefeito não pode realizar um concurso público se o gasto com profissionais já estiver no teto máximo, mas pode contratar profissionais por terceirização.
Isso precisa ser revisto com urgência”, diz Batista Júnior.
Outro ponto é o fortalecimento e a qualificação da gestão pública.
O CNS tem defendido, segundo Batista Júnior, a profissionalização da gestão em primeiro lugar. “Defendemos a regulamentação de todos os cargos, até o de diretor, com critérios de profissionalização e de avaliação. Queremos que todos os cargos sejam preenchidos por meio da construção de uma carreira profissional”, diz.
Para Geandro, há ainda um outro ponto que merece atenção: o envolvimento e a responsabilização do servidor público no seu trabalho.
De acordo com o pesquisador, não se pode usar o argumento de que a estabilidade dos servidores leva à ineficiência, mas é preciso que os sindicatos e as corporações enfrentem esse problema. “Não defendo que ninguém seja demitido sem razão, e o regime estatutário, como se sabe, proporciona ao servidor um alto grau de defesa. Mas sabemos que quando se identificam casos de corrupção, de falta de responsabilidade, de desrespeito e descompromisso com a coisa pública, há, no direito público diversos instrumentos para substituir o servidor sem arbitrariedades: pode-se abrir inquérito, sindicância, uma série de processos. No entanto, isso não acontece com muita frequência e os casos de substituição são raríssimos.
Mesmo se contarmos apenas os casos de corrupção identificados, vamos verificar que eles não correspondem aos casos de substituição. Isso precisa ser revisto”, acredita.
De acordo com ele, as discussões nos últimos anos têm sido desarticuladas e individuais: cada instituição tem olhado apenas o seu lado,
discutindo modelos para instituições específicas, e não para o Brasil como um todo. Em 2007, o Ministério do Planejamento convocou um grupo de altos juristas brasileiros para discutir os entraves da administração pública e propor uma reforma. O documento final dessa comissão traz um anteprojeto de lei que, entre outras coisas, define as Fundações Estatais e as
‘entidades de colaboração’, termo que abrange entidades não estatais como OS e Oscips. Para Geandro, o anteprojeto merece ser analisado e criticado. “Mas a proposta tem o mérito de trazer uma discussão da administração pública que, ao ir para o Congresso, vai permitir um debate mais amplo da sociedade em relação a isso”, acredita.
Debate mais amplo
Apesar da importância das novas propostas para a gestão da saúde pública, existe um outro fator que, segundo Ligia Bahia, tem sido deixado de lado e que é o verdadeiro ‘vilão’ no que diz respeito à privatização da saúde: “Privatizar a saúde é aumentar os planos privados.
Se observarmos o alcance que têm tido as OS, as Oscips, as Fundações Estatais e até mesmo as parcerias público-privadas, veremos que esse fenômeno é, na verdade, menos importante que a financeirização e a privatização via mercado de planos de saúde”, aponta a pesquisadora.
Na próxima edição da Poli, vamos dar continuidade ao tema da privatização abordando esse lado da história. Além disso, o site da EPSJV (www.epsjv.fiocruz) traz uma série especial de reportagens sobre o assunto. Acompanhe!
38
Hospitais Universitários
Federais e novos
modelos de gestão:
faces da
contrarreforma do
Estado no Brasil
Juliana Fiuza Cislaghi
O debate sobre necessidades de mudança na
gestão dos hospitais universitários está
amplamente relacionado a todo o processo de
contrarreformas do Estado implementado em
maior ou menor grau na quase totalidade dos
países do mundo (Behring,
2003). A partir da década de
1970, como resposta a
queda das taxas de lucro, a
perspectiva neoliberal
torna-se hegemônica. A
correlação de forças entre
capital e trabalho passa a
ser amplamente vencido
pelo primeiro com o
fracasso das experiências do
chamado “socialismo real”. Essa retomada das
taxas de lucro exige uma reversão no fluxo dos
fundos públicos, que passam a servir quase
exclusivamente às necessidades de acumulação
do capital, em particular para o capital financeiro
através da dívida pública dos Estados. O Estado
reduz o financiamento público de políticas sociais
para os trabalhadores, reduzindo o campo dos
direitos sociais. Assim, abre-se espaço para a
mercantilização de todas as esferas da vida social,
que passam a ser novos espaços de valorização
para o capital (Harvey, 2008). As políticas sociais
passam a ser direcionadas apenas para a
população mais pauperizada: pontuais, caritativas
e assistencialistas. No Brasil, observamos ao
desmonte das políticas de “espírito welfariano”
inscritas na Constituição de 1988, substituídas
por novas políticas adaptadas a esse novo
contexto, marcadas pelo “trinômio privatização,
focalização/seletividade e descentralização”
(Behring e Boschetti, 2007). Nesse contexto é que
vem se discutindo a necessidade de
“reestruturação dos hospitais universitários”.
A proposta dos organismos internacionais para a
contrarreforma dos hospitais universitários
Uma característica importante do processo de
contrarreformas é que ele tem ocorrido em todo
o mundo em diversos graus e vem sendo
orquestrado por organismos internacionais como
o Banco Mundial, o Fundo Monetário
Internacional e a Organização Mundial da Saúde.
No Brasil, é o Banco Mundial que vem
capitaneando a discussão da
reestruturação
dos hospitais universitários
propondo-se, inclusive, ao
financiamento das
iniciativas de mudanças. Em
março de 2010, ocorreu em
Brasília um evento que
reuniu o Ministério do
Planejamento, da Saúde e
da Educação, os gestores
dos 46 hospitais universitários além do Banco
Mundial e representantes da Espanha, de
Portugal e dos Estados Unidos, expondo seus
modelos locais. No Brasil foram considerados
exemplares as experiências
de São Paulo baseadas em organizações sociais e
do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, que é
uma empresa pública de direito privado. Nas
palavras do diretor de Hospitais Universitários e
Residências em Saúde da Secretaria de Educação
Superior do MEC, José Rubens Rebelatto “este
encontro nos indicará caminhos para o processo
de reestrututuração que está em curso”,
referindo-se ao REHUF – Programa Nacional de
Reestruturação dos Hospitais Universitários
Federais. No mesmo evento, anunciou-se o
39
empréstimo de 756 milhões103 para
financiamento desde programa, recursos
oriundos do Banco Mundial104, que serão
divididos entre 46 unidades hospitalares no país
até 2012.
Medici (2001)105 em trabalho realizado para o
BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento
–– resume os principais diagnósticos e propostas
sistematizados a partir de Seminário realizado
pela OMS – Organização Mundial de Saúde em
1995 que gerou o texto “The Proper Function of
Teaching Hospitals Within Health Systems”. O
autor chama atenção que, então, o debate acerca
da reforma nos hospitais de ensino só estaria
começando, mesmo nos países desenvolvidos.
O primeiro diagnóstico apresentado é que esses
hospitais seriam caros. Responsáveis por cerca de
10% dos atendimentos na maioria dos países
podem ser responsáveis por desde 9% até 40%
do total de gastos na área da saúde. Segundo
dados da ABRAHUE, Associação Brasileira de
Hospitais Universitários e de Ensino, a realidade
brasileira em 2001 era de que 9% dos leitos, 12%
das internações e 24% dos recursos do SUS
estariam nessas instituições. Essa realidade,
porém, decorre dos altos custos da alta
complexidade dos procedimentos realizados por
esses hospitais. É necessário levar em
consideração que esses hospitais realizaram no
mesmo período 50% das cirurgias cardíacas, 70%
dos transplantes, 50% das neurocirurgias e 65%
dos atendimentos na área de malformações
craniofaciais, o que justifica seu alto custo de
manutenção.
Para resolver essa questão, Médici aponta como
a solução para a OMS, primeiro uma maior
integração as redes locais de saúde, alegando a
possibilidade de um desperdício de recursos no
excesso de uso de tecnologia nesses hospitais,
questão, que apesar de não comprovada, estaria
de acordo com a filosofia do SUS e dos
defensores da saúde pública. Da mesma forma os
documentos apontam a necessidade da formação
dos profissionais de saúde não se dar
restritamente em hospitais de alta complexidade,
o que seria responsável por uma visão e uma
prática hospitalocêntrica hegemônica na
formação. Essa também é uma afirmação comum
aos defensores da saúde pública e do SUS, e que
pode ser resolvida da mesma forma com uma
maior integração entre os hospitais universitários
e a rede de saúde. É sabido, porém, que os
problemas de referência e contra-referência não
se restringem aos HUs e os governos muito pouco
ou nada tem feito para reverter esse quadro,
bastando observar que o atual carro chefe da
política de saúde são as UPAS, unidades de
emergência.
Esse argumento, no entanto, leva o documento
da OMS à outra conclusão qual seja:
“reformular o conceito de ensino em saúde sem
vinculá-lo necessariamente a existência de
hospitais universitários. Neste último caso haveria
abandono da idéia de HU, ainda que pudessem
ser contratados hospitais terciários [...]” (2001,
p.152).
Em outra passagem o autor faz mais uma vez essa
afirmação dizendo que “vem crescendo
rapidamente o número de hospitais e outros
estabelecimentos não universitários que exercem
essas funções (de ensino). [...] HUs não são
imprescindíveis. Ao contrário são cada vez mais
dispensáveis” (2001, p. 153).
No Brasil, a Portaria Interministerial nº 1000 de
15 de abril de 2004, é a primeira que abre
caminho para a extinção dos HUs, conforme
existem hoje. Essa portaria passa a unificar
hospitais universitários (vinculados e geridos por
40
universidades), hospitais escola (vinculados e
geridos por escolas médicas isoladas) e hospitais
auxiliares de ensino (hospitais gerais que
desenvolvem atividades de treinamento em
serviço, curso de graduação ou pós-graduação
através de convênio com instituição do ensino
superior) sob a mesma denominação: hospitais
de ensino. Sua regulação e as requisições para
sua certificação também passam a ser iguais. Na
prática isso rebaixou o estatuto dos hospitais
universitários, que na sua relação orgânica com
as universidades reconhecidamente sempre
garantiram melhores condições de formação com
indissociabilidade entre pesquisa, ensino e
extensão.
Outra medida que caminha nessa direção é a
Portaria nº 4 de 29 de abril de 2008, que deu
autonomia na gestão financeira aos HUs federais,
criando unidades orçamentárias próprias107 .
Esse processo, no entanto, não se trata de
autonomia, palavra de conotação positiva sempre
reivindicada pelo movimento organizado da
comunidade universitária. Trata-se sim de uma
extinção dos hospitais universitários, que passam
a ser igualados a qualquer hospital que exerça
atividades de ensino, favorecendo o ensino
privado e abrindo portas para privatização da
gestão por meio dos chamados “novos modelos”.
Médici (2001), entretanto, não acredita na
extinção dos hospitais universitários devido,
segundo ele, às pressões corporativas de
médicos, professores universitários e
funcionários do hospital, mesmo motivo que
dificultaria sua inclusão em sistemas de
referência e contra-referência. Mas uma vez isso
se torna num argumento para uma solução
contrária a defesa da saúde pública. Pois sua
conclusão é que essa dificuldade ocorre onde os
hospitais são financiados pela oferta e, portanto,
esses deveriam ser financiados pela demanda, ou
seja, contratos de gestão e serviços diretamente
pagos, o que, segundo ele, geraria competição
com outras instituições. Em resumo:
“Trata-se nesse caso de desenvolver redes
docentes-assistenciais não universitárias que
respondam às demandas sociais por serviços,
docência e tecnologia, especialmente em
atividades mais ligadas aos níveis primário e
secundário de atenção” (2001, p.155).
O autor segue apresentando um diagnóstico de
deterioração do atendimento tendo como razão
o mau gerenciamento e aponta a necessidade de
mudanças nas práticas gerenciais e de regulação
contra os interesses corporativos, que poderia ser
exercida pelo Estado ou pelo mercado.
Em relação ao financiamento, as conclusões do
documento publicado pela OMS e expostos por
Medici são de que os HUs são 12% mais caros do
que hospitais não-universitários de alta
tecnologia, o que é natural se além de serviços
assistenciais eles também desenvolvem ensino e
pesquisa. Assim, afirma que dificilmente seriam
competitivos ou atrativos para seguros médicos.
Mesmo assim, defende a necessidade de que se
busquem fontes alternativas de financiamento
em relação ao público, sendo elas a “venda ou
asseguramento de serviços de alta tecnologia em
saúde para o Governo, Planos de Saúde e as
pessoas físicas e jurídicas” (2001, p. 154), ou seja,
através da contratualização ou simplesmente da
privatização dos serviços, isso sim de interesse da
iniciativa privada, que não quer arcar com as
necessidades “mais caras”, mas quer usufruir dos
serviços de alta complexidade com qualidade a
preços que garantam seus lucros. Hoje, segundo
41
os dados do MEC, 231 dos 10.340 leitos dos HU
federais estão privatizados, o que representa
2,2% do total.
Já é parte da realidade da política de saúde no
Brasil que os planos privados só realizam serviços
de baixa complexidade, deixando os serviços de
maior complexidade e maiores custos para o
setor público. Segundo Salvador (2010, p. 313):
“Na prática essa forma de atendimento é
excludente, reforçando a privatização dos
sistemas de saúde, pois significa dois tipos de
cidadãos: “sem planos de saúde”, que dependem
da restrita oferta de vagas nos hospitais públicos
e que terão atendimento apenas básico na rede
privada; e os “com plano de saúde”, que têm seu
limite de atendimento no limiar da rentabilidade
econômica, ou seja, quando deixam de ser
rentáveis financeiramente são encaminhados
para o hospital público.” (grifo nosso)
Não são melhores as propostas para pesquisas. A
primeira conclusão é de que o papel dos HUs na
pesquisa em saúde vem sendo substituído por
institutos de pesquisa e indústrias farmacêuticas
e de equipamentos médicos, graças à redução do
seu financiamento público. Ora, essa tendência
não é natural e suas conseqüências são perversas
na medida em que significam a privatização e o
aprisionamento em patentes de toda a pesquisa
em saúde que passa a responder às necessidades
do lucro e não da sociedade. A solução, segundo
o autor, seria uma parceria dos HUs com essas
empresas, ou seja, mais uma vez a iniciativa
privada ficando com a melhor parte do bolo, se
utilizando do público para seus interesses.
Problemas de gestão ou subfinanciamento?
Todo o debate atual das contrarreformas nas
políticas sociais termina no embate entre duas
explicações causais para a falência das políticas
públicas: problemas de gestão ou de
subfinanciamento público.
É característica do período neoliberal a redução
dos recursos públicos para políticas sociais. No
caso das universidades, e associadas a elas os
hospitais universitários, o subfinanciamento se
faz sentir desde o governo Cardoso, seguindo no
período do governo Lula. Ainda que se percebam
aumentos nominais nos recursos das
universidades federais, sobretudo após 2006, em
relação ao crescimento do PIB a série histórica é
claramente descendente e mais recentemente
estagnada.
No caso específico dos hospitais universitários, a
realidade demonstra, segundo os próprios dados
do Relatório REHUF, que apenas os HUs federais
acumulam por ano um déficit total de 30 milhões
entre o que é produzido e o que é pago,
problema que se origina nos valores defasados da
tabela SUS, levando a uma dívida acumulada de
425 milhões de reais, mais da metade de todo
recurso emprestado pelo Banco Mundial para o
REHUF.
Além do déficit no pagamento dos
procedimentos a falta histórica de reposição de
pessoal através de concursos leva os hospitais a
utilizarem a maior parte de sua verba de custeio
para a contratação de pessoal terceirizado, em
média 36% no ano de 2001 segundo a ABRAHUE
ou até 45% dos recursos recebidos do SUS em
hospitais de menor porte, segundo os dados do
Relatório REHUF. Durante algum tempo essa
contratação se deu via fundações de apoio ou
cooperativas, sem garantia alguma de direitos
aos trabalhadores e com baixíssimas
remunerações, prática condenada pelo TCU. A
passagem dos contratos para as universidades fez
estourar mais ainda a dívida dos HUs - só na UFRJ
foi de 26 milhões a dívida com pagamento dos
chamados extra-quadros em 2009. A soma da
dívida das universidades e das fundações de
apoio encontra-se no gráfico 2. Já a situação de
precarização da força de trabalho nos HUs
federais pode ser vista no gráfico 3.
Ou seja, os dados do Ministério da Educação
comprovam que a situação da força de trabalho e
o déficit na tabela de procedimentos geraram
imensas dívidas nos HU federais, situação que
42
não é diferente nos Estados e que vem sendo
denunciada desde o início dos anos 2000 mesmo
por associações de gestores como a ANDIFES -
Associação Nacional de Dirigentes das
Instituições Federais de Ensino Superior e a
ABRAHUE.
Em documento de 2008, a Comissão de Hospitais
Universitários da ANDIFES afirma que:
“O governo pensa em, nos moldes do REUNI,
elaborar junto com os dirigentes projeto de
reforma com expansão dos HU das IFES, o que
obrigará a transitar um novo modelo, o qual, na
opinião do Dr. Paim [representante do MEC], seria
o de Fundação Estatal. No que diz respeito a
questão de pessoal (...): não se vislumbra, por
parte do governo, solução via contratos de curta
duração (seria necessário contratação temporária
de cerca de 15000 trabalhadores, número
considerado gigantesco pelo governo, que fugiria,
assim do escopo da CTU – Contratação
Temporária da União). Paim voltou a destacar
que a solução para a questão de pessoal só virá
com a adoção de novo modelo, e o governo
trabalha com a idéia de Fundação Estatal.”
Na opinião dos dirigentes da ANDIFES, por sua
vez, há necessidade de um novo modelo de
gestão109, mas não havia consenso sobre qual.
Em documento de 2006, a ANDIFES aponta para
possíveis caminhos: empresa pública (o modelo
do RS), autarquia, fundação estatal, organizações
sociais (o modelo de SP), a oficialização das
fundações de apoio através de mudanças na Lei
das Fundações, transformação das atuais
fundações em OSCIPs também através de
mudanças legais e livre escolha, deixando claro
que a maioria dos dirigentes é a favor de soluções
não autárquicas.
Mesmo sendo a favor de novos modelos de
gestão a ANDIFES é unânime em afirmar que:
“Fica claro que qualquer que seja o eventual
modelo adotado, o mesmo só será factível com
novos recursos orçamentários a serem previstos
para sua implementação!”
Ou seja, mesmo para a ANDIFES o problema do
financiamento é anterior ao do modelo de gestão
que não pode resolver automaticamente os
problemas colocados para os HUs que têm na
falta de recursos financeiros e humanos a
natureza principal de seus impasses, ainda que
possam existir eventualmente problemas na sua
gestão.
A partir da implementação do REUNI, as
universidades federais passaram a ter seu
financiamento não só pelo modelo incremental e
por fórmulas (Matriz ANDIFES). É introduzida na
universidade a lógica dos contratos de gestão.
Esse mecanismo de financiamento é originário da
Reforma do Estado de Bresser Pereira, que inclui
universidades e serviços de saúde, com exceção
dos serviços básicos, no chamado “terceiro
setor”, um setor de serviços não-exclusivos onde
o Estado deve atuar ao lado das “organizações
públicas não-estatais e privadas”.
Esse setor seria idealmente ocupado por
propriedades públicas não-estatais, que são
organizações sem fins lucrativos que, segundo o
documento, apesar de não exercerem o poder de
Estado estariam diretamente orientadas para o
interesse público. Desse debate se origina a
proposta de repassar a gestão tanto de
universidades como de hospitais para
organizações sociais, fundações públicas de
direito privado e, mais recentemente, para
empresa pública. O documento que orienta a
contrarreforma do Estado de Bresser Pereira
chama esse processo de “publicização”. Essas
organizações público/privadas passariam a ter
sua dotação orçamentária atrelada à celebração
de contratos de gestão com o Estado. O objetivo
seria o aumento da eficiência e da qualidade dos
serviços a um custo menor.
A suposta publicização, entretanto, significa
exatamente seu oposto. Na verdade um processo
de privatização que autonomizaria a gestão e
prestação de serviços sociais do âmbito dos
mecanismos de controle democrático
possibilitando contratação temporária,
43
inexistência de concursos públicos, inexistência
de licitações públicas, de controle social
democrático sobre gastos e recursos e de
garantia da continuidade dos serviços entre
outras coisas. Uma estratégia que orienta-se
numa perspectiva “desuniversalizante,
contributivista e não constitutiva de direito das
políticas sociais” (Montaño, 2008, p. 46).
O governo Cardoso chega a apresentar o
documento “Etapas para a viabilização da
aplicação da Lei de Organizações Sociais na
recriação da Universidade Pública a ser
administrada por Contrato de Gestão”. Graças à
rejeição da comunidade universitária, a proposta
foi, por ora, deixada
de lado.
Mas durante todo o
governo Cardoso a
proposta de
financiamento por
contrato esteve
presente, atrelada
aos debates sobre a
concepção de
autonomia
universitária, que
substituía a idéia de
autonomia da
gestão financeira
pela de autonomia
financeira, isto é,
responsabilizando a própria universidade pela
captação de seus recursos.
O debate da autonomia universitária é central
para a compreensão crítica do financiamento por
contratos de gestão. A legitimidade da autonomia
na formação da universidade moderna é a
reivindicação da independência do conhecimento
face à religião e ao Estado. No Brasil, a
universidade nunca pode exercer plenamente sua
autonomia, graças às característicascautoritárias
do Estado, que restringiam a autonomia das
universidades em relação a ele (Mancebo, 2006,
p. 20). As políticas de contrarreforma
universitária, marcadas pela redução do
financiamento, têm levado a autonomia
universitária a adquirir novos contornos. O
aumento da autonomia financeira (e não da
gestão financeira) significa, na prática, a
impossibilidade da autonomia didático-científica
e administrativa colocada na Constituição. O
financiamento “autônomo” precisa do mercado e
do próprio governo que atrela as universidades
aos seus interesses exatamente através de
mecanismos como os contratos de gestão.
Segundo Amaral (2003), as iniciativas de
implementação de contratos de gestão estiveram
travestidas de Planos de Desenvolvimento
Institucional e
Contratos de
Desenvolvimento
Institucional, que não
obtiveram apoio das
IFES- Instituições
Federais de Ensino
Superior - no governo
Cardoso. Para o autor
essas ações
constituiriam “uma
verdadeira
‘antiautonomia’
universitária, por
obrigar as
instituições, mediante
contrato de gestão, a
cumprir determinadas
metas definidas numa negociação, em que há
claramente um lado mais frágil no embate com o
governo: as próprias instituições” (AMARAL,
2003, 132). Só no governo Lula, com o decreto
REUNI, a contratualização como mecanismo de
financiamento, consegue ser implementada. Nos
hospitais universitários federais, a lógica do
contrato de gestão se impõe definitivamente a
partir do decreto que instituiu o REHUF.
Reestruturação dos hospitais universitários
federais: o REHUF
44
O REHUF, aos moldes do REUNI, foi decretado
pelo governo federal em 27 de janeiro de 2010.
Suas diretrizes são: estabelecimento de um novo
mecanismo de financiamento que será
progressivamente compartilhado entre MEC e
Ministério da Saúde até 2012 (hoje 70% é
garantido pelo MEC), melhoria dos processos de
gestão, adequação da estrutura física,
recuperação e modernização do quadro
tecnológico, reestruturação do quadro de
recursos humanos e aprimoramento das
atividades através de avaliação permanente e
incorporação de novas tecnologias.
As medidas concretas para o alcance desses fins
são extremamente vagas no decreto. O
procedimento a ser adotado era a
obrigatoriedade de apresentação de um Plano de
Reestruturação para cada universidade que
deveria conter: diagnóstico situacional das
condições físicas, tecnológicas e de recursos
humanos e impactos financeiros da
reestruturação além de um cronograma para
implementação do Plano com atividades e metas.
O decreto falava ainda da necessidade de uma
pactuação global de metas anuais de assistência,
gestão, ensino, pesquisa e extensão entre
Ministério da Educação, do Planejamento e da
Saúde, gestores do SUS e hospitais universitários,
de acordo com a lógica do financiamento por
contrato de gestão.
“As disposições necessárias para a
implementação desse decreto, bem como o
cronograma do REHUF”, isto é, a regulamentação
que realmente interessava, só deveria ser
publicada até o final de maio, conforme apontado
no artigo oitavo do decreto REHUF.
O REHUF foi regulamentado, com atraso, pela
Portaria Interministerial n. 883 em 5 de julho de
2010. O disposto deve ser aplicado nos 46 HUs
federais, sendo exceções o Hospital de São Paulo
e o Hospital das Clínicas de Porto Alegre que,
como mencionado, já têm regimes de gestão
público/privados e onde só se aplicará “o que
couber”, segundo a portaria. Sua
regulamentação, entretanto, frustou
expectativas. A ABRAHUE, em carta manifesto em
14 de julho de 2010, protestava sobre a falta de
solução para a questão dos recursos de custeio e
para a contratação de pessoal.
Aonde ia o REHUF, se nos limitássemos ao
decreto e a sua regulamentação, era bastante
nebuloso. Mas, como já dissemos, sempre foi
interesse do governo a adoção de “novos
modelos de gestão” nos HUs. Por isso, a
elaboração de Seminários com o Banco Mundial.
Em 2008, em aguda crise dos HU o governo já
tinha proposto a implementação de fundações,
na ocasião rechaçada pelas comunidades
universitárias.
As brechas da regulamentação do REHUF,
entretanto, só encontrariam solução em 31 de
dezembro de 2010, quando o governo tira da
manga a MP 520. Não há mais argumentos,
então, para afirmar, como faziam alguns reitores,
que o REHUF nada tinha a ver com um novo
modelo de gestão.
Um novo modelo entra em cena: a empresa
pública
No apagar das luzas de 2010, e antes da
implementação efetiva do REHUF, o governo
Lula, como uma de suas últimas ações, assinou
uma medida provisória que autorizava o Poder
Executivo criar a EBSERH – Empresa Brasileira de
Serviços Hospitalares. A “urgência” da medida foi
justificada pela necessidade de resolver o
impasse dos terceirizados dos hospitais
universitários federais visto que o TCU declarou
ilegal a situação dos 26 mil contratados
precarizados e deu um prazo até 31 de dezembro
de 2010 para que o governo resolvesse a situação
(Acórdão 1520/ 2006). Só que essa determinação
do TCU ocorreu em 2006. O governo teve quatro
anos para fazer concursos públicos repondo o
quadro de servidores e não o fez. Confirmava-se,
então, a intenção do governo de retirar a gestão
dos hospitais universitários das mãos das
universidades por meio de um modelo de gestão
de direito privado. Foi escolhido o modelo da
45
empresa pública, o que não foi oficialmente
acordado com a ANDIFES, que foi pega de
surpresa pela MP.
A MP 520 previa a criação de uma empresa
pública de direito privado, ligada ao Ministério da
Educação. Apesar da questão da força de
trabalho dos HUs ter sido usada como
justificativa, a MP abria a possibilidade da nova
empresa pública administrar quaisquer unidades
hospitalares no âmbito do SUS.
A MP chegou a ser apreciada e modificada pelo
Congresso Nacional. Contra a proposta da MP
ficaram várias entidades representativas de
trabalhadores como a Associação Nacional de
Docentes do Ensino Superior - ANDES e a
FASUBRA, bem como reitores e Conselhos
Universitários. No dia 05 de junho de 2011 em
conturbada sessão do Senado Federal, o prazo de
votação da MP se encerrou, sem que ela fosse
votada. Com isso restou ao governo recolocar a
MP, agora como Projeto de Lei (PL 1749), o que
foi feito pelo Ministério da Educação junto ao
Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão. O conteúdo da proposta se manteve.
Algumas modificações realizadas pelo Congresso
foram desconsideradas recolocando-se a
proposta original quase na sua totalidade. Na
próxima seção faremos uma análise, ainda que
preliminar, das implicações (perversas) trazidas
pela EBSERH, caso ela se efetive.
EBSERH: a destruição dos princípios da
Constituição de 1988 e do SUS
A primeira implicação da centralização da gestão
da saúde em uma empresa pública é sua retirada
do capítulo da ordem social na Constituição,
passando a ser regulada pelos critérios da ordem
econômica. Isto é, ainda que pública, uma
empresa como tal, se gere pela finalidade do
lucro.
Mas se as atividades da empresa serão
exclusivamente para o atendimento do SUS como
obter esse lucro? Apresentaremos algumas
hipóteses.
Em primeiro lugar as atividades de assistência à
saúde ocorrerão no âmbito do SUS mas nada é
dito sobre as atividades de ensino e pesquisa, que
seguem podendo ser vendidas a entidades
privadas por meio de “acordos e convênios com
entidades nacionais e internacionais” uma das
fontes previstas de recursos da EBSERH no artigo
8º do PL.
Em segundo lugar o PL prevê o “ressarcimento de
despesas com o atendimento de consumidores e
respectivos dependentes de planos privados de
assistência à saúde” (artigo 3º, § 3º) conforme já
era previsto pela lei nº 9656 de 1998. Essa lei
nunca foi devidamente regulamentada, e as
cobranças nunca realizadas. No entanto nessa
conjuntura, há o risco do ressarcimento ser
entendido como reserva de leitos para planos,
regulamentando a dupla porta. Em SP, a partir de
lei criada no fim de 2010, 25% dos leitos geridos
pelas OSs já podem ser vendidos aos planos.
Discute-se ainda a ampliação da venda de leitos
no Hospital de Clínicas da USP para 12%, prática
também realizada no Hospital de Clínicas de
Porto Alegre, gerido por empresa pública. A
EBSERH criaria assim nova fonte de recursos para
além do orçamento da União.
46
Além das possibilidades de lucros, a criação da
EBSERH como sociedade anônima – S. A.- abre o
caminho para a privatização definitiva da saúde,
pela via da financeirização. Essa modalidade de
empresa pública foi colocada na MP 520 e
suprimida quando apreciada pela Câmara de
Deputados que transformou a empresa em
unipessoal, ou seja, necessariamente de
propriedade apenas do Estado, mas recolocada
na PL 1749, demonstrando que é prioridade do
governo sua criação como sociedade anônima.
Essa forma jurídica significa que, apesar da PL
dizer que todas as ações pertencem ao governo,
a qualquer momento isso possa ser alterado,
abrindo seu capital para ser negociado na bolsa,
como ocorre hoje
com a Petrobras.
Mas não se resume a
lógica privatizante o
retrocesso trazido à
saúde brasileira pela
EBSERH. A
centralização de toda
gestão da saúde em
uma empresa e suas
subsidiárias
desmonta a
descentralização
preconizada pela
Constituição de 1988 reconstruindo um órgão
burocrático nos moldes do INAMPS que poderá
gerir também “instituições congêneres”,
entendidas pelo PL como “instituições públicas
que desenvolvam atividades de ensino e pesquisa
na área da saúde e as que prestem serviços no
âmbito do SUS” (artigo 6º, § 3º), ou seja unidades
de saúde e hospitais universitários de nível
estadual e municipal.
Retrocede também o controle social que passa a
ser exercido na EBSERH por Conselho Consultivo,
ao invés dos conselhos deliberativos do SUS, com
composição paritária entre sociedade civil e
Estado, sem qualquer referência a forma como
será eleito .
Para garantir a efetivação de tantos retrocessos é
necessário reduzir as resistências que têm na sua
vanguarda as entidades de trabalhadores do SUS
e das universidades. A serviço desse objetivo está
o fim da estabilidade dos trabalhadores, que
passarão a ser contratados pela CLT. Não
necessariamente com contratos definitivos
assinados em carteira visto que “a EBSERH
poderá celebrar contratos temporários de
emprego” (atigo13º) conforme o previsto pela
CLT, o que favorecerá a regulamentação da
precarização , a rotatividade e a insegurança no
emprego. Fica assim facilitado o avanço da
privatização.
No caso dos HUs,
acaba-se com a
gestão pública das
universidades,
caminho já aberto
com a separação das
unidades
orçamentárias em
2008, e abre-se a
possibilidade do setor
privado usar essas
instituições para
ensino e pesquisa,
além dos serviços, o
que já utiliza. A diferença na qualidade da
formação de força de trabalho para a saúde entre
o ensino público e privado, que é exatamente a
existência dos HUs, acaba, favorecendo as
universidades privadas na competição pelos
alunos. Mais ainda, as universidades privadas
passam a poder comprar espaços de ensino para
seus alunos nos HU, através de contratos com a
EBSERH, que se não são previstos também não
estão proibidos pela nova legislação. Quando os
atuais servidores públicos se aposentarem, os
HUs não terão mais qualquer relação com a
universidade, a não ser por contratos e convênios
para uso dos seus serviços.
47
Considerações Finais
Toda a lógica de contratualização definida pelo
REHUF e a lógica privada de gestão, agora
materializada na EBSERH, deriva dos
pressupostos da Reforma do Estado bresseriana,
que defende que serviços não-exclusivos do
Estado só sejam regulados nos seus resultados,
deixando sua execução para entidades
público/privadas prestadoras de serviços.
O argumento ideológico que sustenta essas
propostas é a idéia do mercado e não do Estado
como provedor de bem-estar e de democracia. A
autonomia que deriva dessa concepção significa,
segundo Chauí (1999), “gerenciamento
empresarial da instituição” captando recursos de
outras fontes e fazendo parcerias com empresas
privadas.
Junto à idéia de autonomia acompanha a de
flexibilização: flexibilização de contratos e direitos
trabalhistas, fim de licitações e prestações de
contas, flexibilização de currículos na formação
dos profissionais de acordo com os interesses do
mercado, fim da pesquisa pública. Autonomia e
flexibilização que constam na justificativa da
criação da EBSERH.
A terceira idéia do “léxico da reforma”, conforme
apontado por Chauí, é a de qualidade. Qualidade
que na verdade é produtividade medida por
quantidade: ao invés de o que se produz, como se
produz e para quem se produz, os critérios
passam a ser quanto se produz, em quanto
tempo se produz e qual o custo do que se produz.
Nesses marcos, apesar da verborragia
transformista característica dos ideólogos
neoliberais, o processo a que paulatinamente
passam os HUs em particular, e a saúde pública
em geral, tende a beneficiar, sobretudo, a
iniciativa privada e, portanto, a obtenção de
lucro. O governo criou o problema e agora,
vende, com seus parceiros, uma solução, que vai,
porém, no sentido oposto dos anseios de
usuários, estudantes e trabalhadores destas
instituições. Não se tratam de soluções técnicas,
mas de propostas políticas, caminhos atrelados
ao lugar aonde se quer chegar.
A solução para os problemas dos HUs passa
necessariamente pelo financiamento público,
negado pelos governos neoliberais que
direcionam os recursos do fundo público para o
mercado financeiro, e pela ampliação da
participação da população nos espaços de
controle social podendo, dessa forma, avançar na
solução dos problemas de gestão a seu favor, e
de acordo com os princípios do SUS, e não a favor
do mercado, como propõe o governo com suas
soluções privatizantes.
“Vamos amigo, lute!
Vamos amigo, lute!
Vamos amigo, lute! Uoou!
Vamos amigo, ajude!
Senão
A gente acaba perdendo o que já conquistou...”
Lute – Edson Gomes
48
49
10 MOTIVOS PARA SER CONTRA A EBSERH
Sem a EBSERH Com a EBSERH 1
A universidade e o serviço de saúde público têm
autonomia 1
A universidade e o serviço de saúde seguem o
interesse de um empresário
2 Estão sob o controle social do SUS 2 Não precisam se preocupar em prestar contas e
seguir o controle social do SUS
3
Não tem interesse de lucro nas suas atividades. O
objetivo é servir bem a população e construir novos
conhecimentos
3
O lucro será o objetivo final. Quem ganhará? A saúde
do trabalhador, a qualidade da assistência? Ou o lucro
do empresário?
4
Os trabalhadores são ligados por diretrizes federais. Tem
sindicatos nacionais que representam seus direitos. Os
avanços e as lutas se fazem para todo o servidor
independente do estado federativo que trabalha
4
Os trabalhadores podem ser fragmentados por seus
estados federativos de origem. Com desigualdades
regionais nos direitos. Dificultando a luta nacional
unificada e aumentando a precarização do trabalho
em saúde
5
Se mantém vivo o sonho e a luta de um SUS 100%
estatal, de qualidade, autônomo ao capital privado e sob
administração direta do Estado
5
Legalizaremos as fundações Estatais de Direito
Privado que já estão implantadas ilegalmente em
alguns estados federativos, bem como, criaremos
outras modalidades privadas de gestão do SUS
6
O servidor tem vínculo RJU e ingressa sob concurso
público, com estabilidade e condições de lutar pelos
seus direitos. Tem condições de pensar no seu futuro e
no futuro do SUS
6
O trabalhador será contratado por CLT. Pode ser
contratado por indicação e demitido a qualquer
momento. Não possui condições de lutar por seus
direitos e pensa no máximo se no mês seguinte ainda
estará empregado
7 A porta de entrada dos usuários é 100% pública 7
A porta de entrada será divida entre quem tem plano
de saúde e condições de pagar e quem não tem.
Aumenta a desigualdade de acesso e rompe com a
universalidade do SUS
8 A pesquisa é de responsabilidade da universidade
pública. O produto das pesquisas também! 8
O EMPRESÁRIO poderá usar os serviços e os
trabalhadores para enriquecer com as pesquisas
feitas nos locais públicos, retirando a autonomia das
universidades Estatais
9 O material comprado e a tecnologia adquirida por
compra ou pesquisa sempre será público! 9
Todo material e tecnologia comprada ou adquirida
por pesquisa durante a gestão da EBSERH será dela.
Permitindo inclusive ao final da gestão O
EMPRESÁRIO levar tudo. Deixando o serviço e o
servidor público em terra arrasada!
10
Os serviços públicos e a pesquisa nas universidades
públicas no Brasil são patrimônio público! Nos permite
lutar por eles e buscar a melhora da qualidade, das
condições e direitos do trabalhador e da saúde do povo
brasileiro!
10
Os argumentos são os mesmos da defesa das
fundações Estatais de Direito Privado. Mostrando e
escancarando a contra-reforma do Estado que está
em curso atualmente.
Entregando aos empresários os serviços públicos,
colocando o lucro em rota de colisão com a qualidade
da assistência, a saúde do povo brasileiro e os direitos
do trabalhador da saúde!
Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde
50
Ato médico: Texto
aprovado pela CCJ
em 8 de fevereiro de
2012 (PL 7.703/2006)
Art. 1º O exercício da Medicina é regido pelas disposições desta Lei.
Art. 2º O objeto da atuação do médico é a saúde do ser humano e das coletividades humanas, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo, com o melhor de sua capacidade profissional e sem discriminação de qualquer natureza.
Parágrafo único. O médico desenvolverá suas ações profissionais no campo da atenção à saúde para:
I – a promoção, a proteção e a recuperação da saúde;
II – a prevenção, o diagnóstico e o tratamento das doenças;
III – a reabilitação dos enfermos e portadores de deficiências.
Art. 3º O médico integrante da equipe de saúde que assiste o indivíduo ou a coletividade atuará em mútua colaboração com os demais profissionais de saúde que a compõem.
Art. 4º São atividades privativas do médico:
I – formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica;
II – indicação e execução da intervenção cirúrgica e prescrição dos cuidados médicos pré e pós-operatórios;
III – indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos, sejam terapêuticos, sejam estéticos, incluindo os acessos vasculares profundos, as biópsias e as endoscopias;
IV – intubação traqueal;
V – coordenação da estratégia ventilatória inicial para a ventilação mecânica invasiva, bem como as mudanças necessárias diante das intercorrências clínicas, e do programa de interrupção da
ventilação mecânica invasiva, incluindo a desintubação traqueal;
VI – execução de sedação profunda, bloqueios anestésicos e anestesia geral;
VII – emissão de laudo dos exames endoscópicos e de imagem, dos procedimentos diagnósticos invasivos e dos exames anatomopatológicos;
VIII – indicação do uso de órteses e próteses, exceto as órteses de uso temporário;
IX – prescrição de órteses e próteses oftalmológicas;
X – determinação do prognóstico relativo ao diagnóstico nosológico;
XI – indicação de internação e alta médica nos serviços de atenção à saúde;
XII – realização de perícia médica e exames médico-legais, excetuados os exames laboratoriais de análises clínicas, toxicológicas, genéticas e de biologia molecular;
XIII – atestação médica de condições de saúde,doenças e possíveis sequelas;
XIV – atestação do óbito, exceto em casos de morte natural em localidade em que não haja médico.
§ 1º Diagnóstico nosológico é a determinação da doença que acomete o ser humano, aqui definido como interrupção, cessação ou distúrbio da função do corpo, sistema ou órgão, caracterizada por no mínimo dois dos seguintes critérios:
I – agente etiológico reconhecido;
II – grupo identificável de sinais ou sintomas;
III – alterações anatômicas ou psicopatológicas.
§ 2º Não são privativos do médico os diagnósticosfuncional, cinésio-funcional, psicológico, nutricional eambiental, e as avaliações comportamental e das capacidades mental, sensorial e perceptocognitiva.
§ 3º As doenças, para os efeitos desta Lei, encontram-se referenciadas na versão atualizada da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde.
§ 4º Procedimentos invasivos, para os efeitos desta Lei, são os caracterizados por quaisquer das seguintes situações:
51
I – invasão da epiderme e derme com o uso de produtos químicos ou abrasivos;
II – invasão da pele atingindo o tecido subcutâneo para injeção, sucção, punção, insuflação, drenagem, instilação ou enxertia, com ou sem o uso de agentes químicos ou físicos;
III – invasão dos orifícios naturais do corpo, atingindo órgãos internos.
§ 5º Excetuam-se do rol de atividades privativas do médico:
I – aplicação de injeções subcutâneas, intradérmicas, intramusculares e intravenosas, de acordo com a prescrição médica;
II – cateterização nasofaringeana, orotraqueal, esofágica, gástrica, enteral, anal, vesical e venosa periférica, de acordo com a prescrição médica;
III – aspiração nasofaringeana ou orotraqueal;
IV – punções venosa e arterial periféricas, de acordo com a prescrição médica;
V – realização de curativo com desbridamento até o limite do tecido subcutâneo, sem a necessidade de tratamento cirúrgico;
VI – atendimento à pessoa sob risco de morte iminente;
(Rejeitado pelo relator)
VII – a coleta de material biológico para realização de análises clínico-laboratoriais;
VIII – os procedimentos realizados através de orifícios naturais em estruturas anatômicas visando à recuperação físico-funcional e não comprometendo a estrutura celular e tecidual.
§ 6º O disposto neste artigo não se aplica ao exercício da Odontologia, no âmbito de sua área de atuação.
§ 7º O disposto neste artigo será aplicado de forma que sejam resguardadas as competências própriasdas profissões de assistente social, biólogo, biomédico, enfermeiro, farmacêutico, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, nutricionista, profissional de educação física, psicólogo, terapeuta ocupacional, técnico e tecnólogo de radiologia.
(Rejeitado pelo relator)
Art. 5º São privativos de médico:
I – direção e chefia de serviços médicos;
II – perícia e auditoria médicas, coordenação e supervisão vinculadas, de forma imediata e direta, às atividades privativas de médico;
III – ensino de disciplinas especificamente médicas;
IV – coordenação dos cursos de graduação em Medicina, dos programas de residência médica e dos cursos de pós-graduação específicos para médicos.
Parágrafo único. A direção administrativa de serviços de saúde não constitui função privativa de médico.
Art. 6º A denominação de “médico” é privativa dos graduados em cursos superiores de Medicina, e o exercício da profissão é privativo dos inscritos no Conselho Regional de Medicina com jurisdição na respectiva unidade da Federação.
Art. 7º Compreende-se entre as competências do Conselho Federal de Medicina editar normas para definir o caráter experimental de procedimentos em Medicina, autorizando ou vedando a sua prática pelos médicos.
Parágrafo único. A competência fiscalizadora dos Conselhos Regionais de Medicina abrange a fiscalização e o controle dos procedimentos especificados no caput, bem como a aplicação das sanções pertinentes em caso de inobservância das normas determinadas pelo Conselho Federal.
Art. 8° Esta Lei entra em vigor sessenta dias após a data de sua publicação.
52
Algumas
questões sobre o
Ato Médico
Marcela Vieira e Felipe Ximenes
O Ato Medico surgiu como uma proposta
lançada no Senado em meados do ano de 2002
com o objetivo de regulamentar a profissão
médica. Entendia-se que os 80 anos de
regulamentação prática da profissão não eram
suficientes e existia uma grande preocupação em
relação à invasão das competências de outros
cursos sobre as da medicina, como diz o próprio
texto do primeiro Ato médico:
“CONSIDERANDO que o campo de
trabalho médico se tornou muito concorrido por
agentes de outras profissões e que os limites
interprofissionais entre essas categorias
profissionais nem sempre estão bem definidos;
CONSIDERANDO que quando do início da vigência
da Lei nº 3.268/57 existiam praticamente só cinco
profissões que compartilhavam o campo e o
mercado dos serviços de saúde, quais sejam, a
Medicina, a Veterinária, a Odontologia, a
Farmácia e a Enfermagem, e que os limites entre
essas carreiras profissionais estavam ajustados
milenarmente em quase todos os casos;
CONSIDERANDO que agora, diferentemente, a
área da saúde e da doença está pletorada de
agentes profissionais sem que haja clara definição
dos limites dos seus campos de trabalho;
CONSIDERANDO a necessidade de haver uma
melhor definição das atividades profissionais
típicas e privativas de cada categoria profissional,
dos limites de cada uma, das relações entre as
atividades limítrofes e das relações de cada uma
delas com a Medicina, por ser, de todas, a mais
antiga e a de campo mais amplo de atuação, vez
que interage com todas as outras;” (CONSELHO
FEDERAL DE MEDICINA, 2001)
Mas, para entendermos o Ato Médico,
bem como a regulamentação das profissões, é
necessário compreendermos algo tão cotidiano à
nossa formação e talvez por isso mesmo pouco
nos perguntemos: O que é Saúde?
O conceito de saúde envolve uma imensa gama
de olhares: a ausência da doença já não é uma
definição mais concebida; hoje se compreende a
necessidade de buscarmos a questão psicológica
e biológica como fatores de adoecimento, mas
sobretudo, o fator social, ou seja, o meio e as
relações de trabalho, como grande causador das
doenças, aquilo que determina a forma como
adoeceremos.
A determinação social do adoecimento nos
coloca a necessidade de nos identificarmos todos
como sujeitos e trabalhadores, todos temos um
papel importante a cumprir diante da realidade
que adoece, e no âmbito da saúde, a
interdisciplinaridade traz a reflexão acerca da
perspectiva integral da saúde, de nos
entendermos como parte importante tanto
quanto todos os demais profissionais da saúde,
de compartilharmos o cuidado.
Trazendo esses conceitos para o tema do Ato
Médico, portanto, percebemos o quanto ele fere
a concepção da saúde uma vez que sequer
esboça a necessidade de buscar junto às demais
profissões da saúde, a construção de uma
53
regulamentação geral, de todos que atuam na
área. O médico sanitarista Emerson Merhy define
dois termos que são importantes para a
compreensão da necessidade da
multidisciplinaridade e das diferentes áreas de
atuação das profissões da saúde. Segundo Merhy,
há núcleos de saber, que são atividades
exclusivas de cada profissão e campos de saber,
que são atividades compartilhadas e que
permitem a perspectiva multiprofissional: são
justamente esses campos e núcleos que deveriam
estar sendo debatidos, discutindo a superposição
em determinados momentos e visando sempre o
melhor atendimento da população, mas de forma
coletiva, construída em conjunto.
Entretanto, o PL do
Ato Médico
expressa tão
somente a
regulamentação da
profissão médica,
dos procedimentos
exclusivos e se
esquece do que há
de mais
importante: a
saúde dos
usuários.
O Ato Médico traz
a tona duas
questões que precisamos entender: a inversão de
responsabilidade e o desvio do foco.
A inversão de responsabilidade se dá a medida
em que não é a falta de regulamentação que
prejudica a saúde da população e não será a
regulamentação que a protegerá contra o mal
exercício da profissão. Esse raciocínio nega todos
os problemas da nossa saúde, a exemplo do
subfinanciamento e se esquece que o mau
exercício da profissão é consequência direta da
falta de recursos, da superlotação dos hospitais e
unidades de saúde, da carga horária de
trabalho...e em nenhum momento o Ato Médico
aborda essas questões que dizem também
respeito a regulamentação das profissões da
saúde. Já o desvio de foco ocorre a partir da
inversão da lógica: deixa-se de lutar por melhores
condições de trabalho, estrutura, financiamento
para os serviços de saúde – que para ser posto
em prática exige a unidade dos profissionais da
saúde; e abre-se um profundo fosso entre os
médicos e os demais profissionais da saúde,
pondo em lados opostos aqueles que deveriam
estar juntos na defesa da saúde da população:
priorizam-se os conflitos, em função da disputa
por quem exercerá determinada função no
serviço de saúde, em detrimento da construção
unitária de pautas que de fato incidirão sobre os
serviços de saúde e a assistência.
Um projeto de
regulamentação das
profissões de saúde
poderia sim proteger
a população, caso
houvesse uma
verdadeira
construção coletiva
em um espaço amplo,
como o Conselho
Nacional de Saúde.
Mas se consideramos
o Sistema Único de
Saúde e o alicerce de
multidisiciplinaridade
que fundamentou a sua construção, é
inconcebível nos pautarmos por uma
regulamentação exclusiva de uma área, num
momento em que vivenciamos mais e mais as
perdas de direitos dos profissionais e somente a
união nos fará caminhar. Nós, estudantes de
medicina precisamos nos entender, antes, como
futuros trabalhadores da área da saúde e, se nos
imbuímos do cuidado, da saúde, não podemos
nos perder em meandros que em nada alteram a
situação do SUS e a assistência a população.
Quanto tempo mais perderemos discutindo um
ato médico que não melhora em nada a saúde da
população e assistiremos passivamente às
54
sucessivas políticas de terceirizações e
privatizações dentro do SUS?
A saúde realmente precisa de profissões melhor
valorizadas, mas em conjunto.
Para os que virão
Thiago de Melo
Como sei pouco, e sou pouco,
faço o pouco que me cabe
me dando inteiro.
Sabendo que não vou ver
o homem que quero ser.
Já sofri o suficiente
para não enganar a ninguém:
principalmente aos que sofrem
na própria vida, a garra
da opressão, e nem sabem.
Não tenho o sol escondido
no meu bolso de palavras.
Sou simplesmente um homem
para quem já a primeira
e desolada pessoa
do singular - foi deixando,
devagar, sofridamente
de ser, para transformar-se
- muito mais sofridamente -
na primeira e profunda pessoa
do plural.
Não importa que doa: é tempo
de avançar de mão dada
com quem vai no mesmo rumo,
mesmo que longe ainda esteja
de aprender a conjugar
o verbo amar.
É tempo sobretudo
de deixar de ser apenas
a solitária vanguarda
de nós mesmos.
Se trata de ir ao encontro.
(Dura no peito, arde a límpida
verdade dos nossos erros. )
Se trata de abrir o rumo.
Os que virão, serão povo,
e saber serão, lutando.
55
CREMESP INSTITUI
EXAME DE ORDEM
OBRIGATÓRIO PARA
FORMANDOS EM
MEDICINA
O Conselho Regional de Medicina do Estado de São
Paulo (Cremesp) tornou obrigatória a participação em seu
exame de todos os médicos recém-formados para adquirir o
registro profissional. A aprovação não é necessária para
adquirir o registro, somente a participação na prova. O
objetivo do Conselho é fiscalizar a qualidade do ensino e
ajudar as universidades a aperfeiçoarem os seus cursos.
Em sete anos de história, o exame constatou que 46,7% dos participantes saíram das faculdades despreparados, sem condições mínimas de exercer a Medicina. “Esperamos que com a divulgação desses resultados, que certamente serão ruins, a sociedade discuta a questão da qualidade do ensino. Estamos fazendo isso em defesa da sociedade. Nenhum paciente merece ser atendido por um médico mal formado”, disse o presidente do Cremesp, Renato Azevedo Júnior.
O conselho apoia e espera estimular a aprovação do projeto de lei 217/2004, do Senado Federal, que cria o Exame Nacional de Habilitação para médicos e o define como pré-requisito para o exercício da Medicina.
Todos os formados em 2012 e os médicos que ainda não tem registro no Cremesp devem fazer a prova. Estão dispensados os médicos que já possuem inscrição em outros conselhos regionais, e que solicitam inscrição secundária ou transferência para o Cremesp; médicos que já possuem inscrição ou pedido de inscrição em andamento.
Será enviado um boletim de desempenho para o participante da prova, com sua nota geral e o desempenho por área da Medicina. As faculdades também irão receber o relatório de desempenho dos seus alunos, comparado com as
notas médias de todos os participantes, mas será divulgado somente o resultado geral.
Novos cursos Em junho deste ano, o Ministério da
Educação (MEC) autorizou a criação de mais 2.415 novas vagas de Medicina em universidades federais e particulares. A decisão foi criticada pelo Cremesp e pelo Conselho Federal de Medicina. “Temos muita preocupação com a abertura indiscriminada de novos cursos, sem nenhuma preocupação com a formação. O Ministério da Saúde tem atuado de maneira demagógica, afirmando que o problema da saúde é a falta de médicos. Essa é uma resposta medíocre”, critica Braulio Luna Filho, primeiro-secretário do Cremesp.
Luna Filho participou de uma Comissão de Supervisão dos cursos de Medicina, formada pelo Ministério da Educação, durante a gestão de Fernando Haddad na pasta. A recomendação da equipe foi o fechamento de cursos e não abertura de novas vagas. “Temos 380 mil médicos no País, mas eles não vão trabalhar onde o governo quer, porque eles pertencem à classe média alta. Não se resolve o problema da distribuição de médicos aumentando o número de profissionais”, afirmou.
O Cremesp é o primeiro conselho regional de Medicina do País a instituir um exame obrigatório para a concessão do registro profissional. Até então, a prova aplicada era opcional e, na última edição, apenas 16% do total de formados participou da avaliação.
A entidade afirma contar com o apoio dos sindicatos, de conselhos regionais, associações médicas e de pelo menos 16 das 28 instituições de ensino superior do Estado de São Paulo que formam médicos neste anos. Outras duas faculdades ainda não formaram turmas em 2012.
Fonte:http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2012-07-24/cremesp-institui-exame-obrigatorio-para-formados-em-medicina.html
56
EXAME DE ORDEM PARA
MEDICINA – CARTA DA
DENEM (2010)
Olá Estudantes de Medicina do Brasil!
O texto abaixo tem a intenção de colocar a
discussão que fazemos sobre o Exame do
CREMESP/Exame de Ordem que muito vem sendo
discutido atualmente pelas diversas entidades
médicas brasileiras. A
implantação de um Exame
de Ordem para os
egressos do curso de
medicina, no estilo do
exame proposto pela OAB
(Ordem dos Advogados do
Brasil), gerou bastante
controvérsia na categoria
e pretendemos abordar
essa discussão abaixo,
dialogando sobre como
esse projeto é inválido e
prejudicial ao ensino
médico.
O Exame de Ordem
A avaliação da
qualidade do ensino
médico nas faculdades de medicina do Brasil é de
extrema importância para a busca da melhoria
desse ensino e da possibilidade de formação de
profissionais capazes de se apropriar de todo o
conhecimento produzido na área. Buscam-se,
dessa maneira, maneiras de se avaliar essas
escolas e os estudantes, objetivando a descoberta
de falhas durante o curso e possível correção
destas.
Um dos maiores projetos que surgiram no
Brasil para a avaliação das escolas médicas foi a
CINAEM (Comissão Interinstitucional Nacional de
Avaliação do Ensino Médico), criada em 1991 e
tendo a participação de inúmeras entidades
(CREMESP, CFM, DENEM, ABEM, FENAN, ANMR,
etc.). Propunha-se a realizar uma avaliação
diagnóstica sobre as escolas médicas brasileiras e
dividiu-se em três fases: as duas primeiras
investigavam as escolas médicas, para realizar
essa avaliação diagnóstica e a terceira fase era de
elaboração de uma proposta. A CINAEM teve
como principal resultado a criação das Diretrizes
Curriculares Nacionais para os Cursos de
Medicina, aprovadas em 2001 e que norteiam as
atuais reformas curriculares que acontecem no
ensino médico no Brasil.
Ao mesmo tempo,
iniciativas de se avaliar o
egresso do curso de
medicina, ou seja, o
estudante que está
concluindo o curso
também vem sendo
pensadas. A idéia de se
realizar um exame de
ordem para os cursos de
medicina no Brasil surgiu
inicialmente, em 1989, e
logo as principais
entidades médicas e o
movimento estudantil da
área (a DENEM)
começaram o debate
sobre o tema, avaliando a
proposta e se posicionando criticamente à
mesma. Nos últimos anos, diversos projetos de lei
vêm sendo encaminhados ao congresso para a
criação de uma avaliação que possa selecionar os
egressos para o mercado de trabalho. Essa
avaliação tem recebido diversos nomes, entre
eles, Exame de Ordem, Exame de Habilitação para
o Exercício da Medicina, Exame Nacional de
Proficiência em Medicina, etc.
O CREMESP como Pioneiro na Proposta de um
Exame de Ordem
57
A entidade pioneira na realização e na
defesa da instituição de um Exame de Ordem
para a Medicina é o CREMESP (Conselho Regional
de Medicina do Estado de São Paulo). Desde o
ano de 2005, essa entidade vem realizando
exames terminais não obrigatórios para os
estudantes de medicina do estado de São Paulo
que estão no último ano do curso. Essas provas se
propõem a ser uma experiência para a avaliação
das escolas e dos estudantes, deveria ter durado
o período de três anos, como uma fase de testes;
mas vem se estendendo ano a ano, para outras
localidades do país, objetivando uma possível
instituição de um exame de ordem nacional
parecido com este que é realizado pelo CREMESP,
para a retirada do mercado de trabalho de
profissionais considerados incompetentes por
terem reprovado no exame.
A justificativa daqueles que defendem
esse modelo de avaliação e que se propõe a
organizá-lo é de que é necessário proteger a
população brasileira dos erros médicos e de que é
necessário colocar um entrave para a abertura
indiscriminada de novas escolas médicas de baixa
qualidade. Ambas as justificativas são bastante
discutíveis.
O Porquê de sermos Contra o Exame de
Ordem/Exame do CREMESP
É inegável que o número de erros médicos
tenha aumentado nos últimos. Devemos,
entretanto, questionar-nos se esse aumento de
erros médicos é causado apenas pelos médicos
recém-formados. E aqueles que se formaram há
alguns/muitos anos? Como avaliaremos a
conduta desses profissionais mais velhos? Será
que eles não cometem erros no exercício de sua
profissão? A culpa das condições de saúde em
que se encontra a sociedade seria decorrente
apenas dos médicos recém-formados?
É inegável, também, que houve um
aumento substancial do número de escolas
médicas no Brasil. Mas afirmar que o exame de
ordem seria um entrave para a abertura
indiscriminada de novas escolas é negar a
história, já que há provas de que isso é
amplamente discutível. Estudos mostram que
após a implantação do exame da OAB, o número
de escolas de direito quintuplicou no Brasil em
um período de menos de dez anos; seguindo a
lógica de que existe uma prova que selecionará os
alunos “bons”, excluindo os “ruins” do processo,
não há a preocupação em se criar escolas de boa
qualidade, o que permitiu a criação de mais de
500 escolas de direito no Brasil em curto período
de tempo.
Posicionamos-nos contrários ao Exame de
Ordem por diversos motivos além dos já citados,
que começaremos a discutir com mais
aprofundamento a partir de agora!
Avaliação Terminal, Limitada
O Exame de Ordem é um modelo de
avaliação limitado, constituindo-se por um prova
terminal (no final do curso), aplicado em apenas
um momento da formação. Apenas por isso, já
fica claro que essa prova não permite o
diagnóstico das falhas durante o ensino (que são
seis anos de curso) e, muito menos, permite a
correção dessas falhas. É uma avaliação que não
avalia a progressão do estudante ao longo do
curso, não avalia suas habilidades e, por fim, não
permite um diagnóstico das deficiências ao longo
do currículo médico.
Desresponsabilização da Escola Médica e
Culpabilização do Estudante
58
Essa avaliação terminal acaba por
provocar uma desresponsabilização da Escola
Médica na formação do médico, culpabilizando
apenas o estudante pelo seu desempenho final
na prova, já que não possibilita a avaliação de
itens imprescindíveis para uma adequada
avaliação de como anda o curso: a infra-estrutura
do curso (rede de laboratórios, salas de aula,
equipamentos adequados, etc), os campos de
prática (hospitais, ambulatórios, enfermarias,
unidades básicas de saúde), o corpo docente, o
currículo médico. A responsabilidade de se
passar na prova, dessa maneira, fica por conta
apenas do estudante, não sendo uma maneira de
se diagnosticar falhas no ensino e muito menos
de propor correções a estas
Criação de Subprofissão e Agravamento da
Precarização nas Relações de Trabalho
Outra questão importante a ser abordada
sobre esse assunto é: o que o estudante egresso
que não passar no Exame de Ordem poderá
fazer? A resposta para essa pergunta é simples!
Tornar-se-á um bacharel em medicina! Então,
surge outra questão: o que o bacharel em
medicina faz? Resposta: Nada! Ou melhor, não
poderá exercer sua profissão. Esse fato se torna
bastante complicado se analisarmos a questão de
que existe a possibilidade daqueles que não
passarem no exame, entrar no mercado
ilegalmente, criando uma subcategoria de
trabalho e intensificando as relações de
exploração e precarização do trabalho médico.
Reserva de Mercado
Enxergamos, além disso, uma intenção
muito clara daqueles que se propõem a organizar
essa prova de criar uma reserva de mercadopara
o trabalho médico. Mas o que é isso?
A reserva de mercado é caracterizada
como a regulação de vagas para a entrada no
mercado de trabalho de profissionais, visando a
manutenção salarial daqueles que já estão
trabalhando e a estabilidade dos mesmos. É uma
medida totalmente corporativista (já que os
defensores dessa avaliação são médicos já
inseridos no mercado de trabalho) que
pretendem regular a entrada daqueles que
podem e que não podem exercer sua profissão.
Além de ser uma medida absurdamente
corporativa, demonstra um verdadeiro descaso
com a sociedade, já que a reserva de mercado
visa somente atender aos interesses do médico já
empregado, desconsiderando o contexto social
em que esse profissional se insere e podendo até
prejudicar a sociedade.
Rankeamento e Proliferação de Cursinhos
Questionamos a intencionalidade
daqueles que se propõem a organizar essa
avaliação, como o CREMESP, sobre o que será
feito com os dados estatísticos obtidos a partir da
realização da prova pelos egressos. A experiência
nos mostra que esses dados são utilizados apenas
para se fazer um rankeamento das escolas
médicas, propagandeando aquelas aos quais os
estudantes vão bem, e ridicularizando aquelas
aos quais os estudantes não passam. A instituição
de um Exame de Ordem apenas agravaria o que já
59
vem acontecendo com
os resultados desse
exame proposto pelo
CREMESP e ainda
tornaria o quadro muito
mais obscuro, já que
ocorreria uma
proliferação dos
cursinhos preparatórios para o exame de ordem
(algo que já ocorre com relação às provas de
residência). Essa proliferação de cursinhos faria
com que o estudante focasse sua graduação no
aprendizado da prova, deixando de lado a
imprescindível formação teórica e prática para
uma adequada prática clínica, o que é um
agravante para a piora do estado em que se
encontra o ensino médico no Brasil.
A Falsa Proteção da População
Surpreende-nos a abordagem feita sobre a
necessidade de se implantar um Exame de Ordem
urgentemente para a proteção da população, que
estaria sujeita a riscos de maior adoecimento
devido a erros médicos. Mas, se estão tão
preocupados com a proteção da sociedade,
porque não lutam pela melhoria da organização
do sistema de saúde? Pela transformação social?
Questões como essas vêm a nossa cabeça no
momento em que se utiliza de argumentação tão
falsa como essa. Precisam entender que há
diversos problemas no nosso sistema de saúde
que impedem o acesso da população ao mesmo,
sendo este fato verdadeiramente preocupante.
Um desses problemas é a questão do
financiamento da saúde. Como se pode querer
promover o acesso de qualidade a toda a
sociedade ao sistema de saúde, se este não tem
um financiamento adequado? Estima-se que o
gasto público com o sistema de saúde (tanto
público quanto privado) seja de 7,6% do PIB
atualmente, muito abaixo daquele previsto pela
EC-29 (emenda constitucional que regulariza o
financiamento do SUS) e extremamente
preocupante para a manutenção do sistema. É só
olharmos para os hospitais de ensino nos quais
atuamos: filas imensas para a realização de
exames, controle do pedido de exames,
tecnologia ultrapassada, etc.
Outro problema bastante relevante e atual
são as privatizações e terceirizações na área da
saúde. Há um movimento cada vez mais amplo de
privatizar a gestão dos hospitais, ambulatórios e
unidades básicas de saúde, com a justificativa de
melhor planejamento e gestão do dinheiro. A
criação de projetos de Organizações Sociais de
Saúde (OS´s) e Fundações Estatais de Direito
Privado (FEDP) são a prova de que os governos
estão cada vez mais preocupados em passar a
responsabilidade da gestão para o setor privado.
Isso faz com que as relações de trabalho sejam
totalmente precarizadas submetendo o
trabalhador a intensa exploração (lembre-se que
você, estudante de medicina, é futuro
trabalhador!!!). Salientamos a falsa idéia de que a
gestão privada é melhor do que a pública: casos
comprovando esse fato estão cada vez mais
aparecendo na mídia ultimamente, como o caso
da Fundação Zerbini – do INCOR – e da SPDM –
Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da
Medicina.
A questão da super exploração do
trabalhador em saúde também é bastante
preocupante, pois o submete a se empregar em
dois ou mais empregos diferentes, saturando-o e
possibilitando o desenvolvimento de diversas
enfermidades psicológicas nesse trabalhador,
tornando seu emprego estressante e sua prática
prejudicial ao paciente.
Concluímos, a partir dessas análises, que a
questão da proteção da população e da garantia
60
de uma assistência de saúde de qualidade a
mesma, perpassa por muito mais problemas e
questões sociais do que a capacidade de um
egresso passar em uma prova ou reprovar na
mesma. Precisamos nos atentar para esse debate
sobre a organização da assistência em saúde no
Brasil ao invés de nos preocuparmos apenas em
regular o mercado de trabalho. Questionamo-nos
sobre o porquê de os grandes idealizadores dessa
proposta de exame de ordem não se
preocuparem com o fato de o sistema de saúde
do nosso país estar aos frangalhos e se utilizarem
de uma falsa proteção à sociedade para justificar
a existência de uma avaliação como a proposta.
Falsa Sensação de Segurança
Uma das últimas questões que
gostaríamos de abordar nesse resumido texto é a
falsa sensação de segurança que a instituição de
uma prova como a proposta poderia causar na
sociedade. Segundo o CREMESP, a existência do
Exame de Ordem faria com que os maus
profissionais ficassem fora do mercado de
trabalho e não pudessem exercer sua profissão.
Essa questão abriria uma brecha para que
houvesse uma diminuição da fiscalização e do
acompanhamento das escolas médicas no Brasil
(já que haveria uma “peneira” depois), e
permitiria a abertura indiscriminada de novas
escolas. Isso é um problema bastante grave, e
devemos nos alertar sobre essa falsa sensação de
segurança.
Nossas Propostas
Agora todos devem estar se perguntando:
“Mas e aí, já sabemos que o exame é ruim, mas o
que podemos e devemos fazer?”.
Bom, para todos aqueles que acham que o
movimento estudantil não tem proposta, é só
reler o texto até aqui e perceber que nossas
críticas já estão todas embasadas de propostas
que temos a fazer!
Entendemos que o problema da educação
médica no Brasil é grave e não será resolvido com
uma solução simples e pontual como o Exame de
Ordem. Nós queremos ser avaliados; mas
queremos uma avaliação que contribua para a
melhoria da Escola Médica, que possibilite a
avaliação da infra-estrutura, do corpo docente.
Uma avaliação que avalie o estudante ao longo da
formação e permita a este e à escola, reparar as
deficiências no ensino.
Exigimos melhores condições de trabalho,
cargos e salários dos profissionais médicos.
Lutamos por uma saúde 100% pública, estatal,
gratuita e de qualidade para toda a população.
Exigimos a abertura de novas escolas somente
com qualidade e comprovada necessidade social
Frisamos que não somos contrários a ser
avaliados; pensamos que a avaliação deve ser
seqüencial e deve envolver diversos setores da
sociedade. Queremos debater e chegar a uma
solução em conjunto!
Por isso, nesse ano, junte-se a nós à
campanha “Não ao Exame de Ordem para
Medicina”. Vamos mostrar nossa voz e sermos
ouvidos contra a realização do Exame do
CREMESP.
BOICOTE!
“Se você não apoia, não faça a prova!”
61
Carta aberta:
Serviço Civil na
Medicina
DENEM – Regional Sul 2
A Coordenação Regional Sul-2 da DENEM em reunião com os Centros e Diretórios Acadêmicos de São Paulo e Paraná na cidade de Campinas nos dias 15 e 16 de outubro se posiciona em relação à proposta do governo federal que Institui o Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica, estabelecido pela PORTARIA INTERMINISTERIAL Nº 2.087, DE 1º DE SETEMBRO DE 2011.
Reconhecemos a necessidade da
expansão com qualidade dos serviços públicos de saúde e a importância de políticas permanentes de interiorização e fixação dos profissionais de saúde. Compreendemos “a necessidade de valorização, aperfeiçoamento e educação permanente do profissional que trabalha na Atenção Básica” como justificado na portaria supracitada. Entendemos que os profissionais da atenção básica estão extremamente desestimulados devido ao sucateamento das unidades de saúde e a dificuldade de uma atenção integral a população. Assim, justamente por essa sintética análise sobre a necessidade de
mudanças e readequação do serviço de saúde analisamos que a tentativa do governo federal de promover a expansão do acesso da população de maior vulnerabilidade social no país e que habita regiões de difícil acesso não cumpre o seu papel em essência. Apropria-se habilmente de bandeiras históricas de luta dos movimentos sociais pela saúde e as transforma em ações pontuais e superficiais que não agem na raiz dos problemas do sistema de saúde pública no país.
Primeiramente, quando discutimos a questão da interiorização e fixação do médico é importante lembrar que as condições de trabalho e infraestrutura das cidades são questões centrais nesse processo. Desse modo, uma política de estimulo não pode ser pautada, em nossa compreensão, em ações como recompensas a partir de bônus para residências – as quais têm a maioria de vagas concentradas no eixo sul e sudeste – além disso, não pode ser pautada somente por estimulo salarial, pois na atualidade salários muito acima da média são oferecidos em regiões afastadas dos grandes centros econômicos no país e não tem a capacidade de atrair profissionais.
Outro ponto chave nessa avaliação é
desmistificar o discurso de que a política de Valorização do Profissional da Atenção Básica irá trazer incremento na qualidade do atendimento à população. O envio de médicos e demais profissionais de saúde recém formados para áreas onde não há um serviço de retaguarda eficiente com hospitais terciários, serviços secundários e/ou de especialidades, onde a falta de infraestrutura é gritante e onde haverá uma contundente ausência de supervisão acadêmica constante, nos parece uma política panfletária que visa dar uma resposta populista a crise na saúde. Isso fica ainda mais claro quando observamos que um corte de 600 milhões de reais foi realizado no orçamento para a saúde em 2011, assim, é óbvia a falta de perspectivas do governo em investir em infraestrutura e recursos tecnológicos que assegurem de fato uma expansão e interiorização com qualidade dos serviços de saúde.
62
Além disso, reforçamos o entendimento de que esse projeto coloca em risco a fixação profissional e o acompanhamento continuado dos pacientes, precarizando os vínculos com os profissionais de saúde e dificultando a implantação de projetos a longo prazo na atenção primária. O envio de profissionais recém formados que não possuem nenhuma experiência em ações de prevenção e promoção de saúde para os rincões do país cumpre claramente o papel de oferecer um atendimento não integrado e que pela ausência de estrutura adequada para acesso dos pacientes aos demais níveis de atenção ficará restrito a ações de medicalização, ou seja, somente as manifestações das doenças serão tratadas deixando-se de lado um processo integral de atenção à saúde. Ademais, o grau de rotatividade de profissionais que será criado, inevitavelmente, nas unidades de saúde que receberão esse projeto impossibilitará, a longo prazo, a criação de vínculos com a população, destruindo, desse modo, um dos eixos centrais da Estratégia de Saúde da Família.
Diante de tudo isso, colocamos novamente a necessidade de um debate franco e aberto sobre os projetos que impactam profundamente na vida social de toda população brasileira. Parece-nos demasiadamente oportuno para o governo federal a aprovação deste projeto de forma rápida, sem discussão ampla e que tem inicio previsto para um ano de eleições municipais. A necessidade de mudanças no sistema de saúde pública é inegável. Vivemos uma crise geral do SUS e os ataques através de privatizações e da falta de verbas são evidentes. Assim, é urgente que o processo saúde doença
seja encarado como reflexo das condições de vida, determinado pelas relações sociais de produção, conduzindo assim o foco neste ponto central. Somente através de uma análise acurada sobre ele encontraremos caminhos para deixarmos esta crise na saúde e em várias outras áreas.
Dessa forma, as ações não podem ser pontuais, mas devem propor uma readequação geral do sistema. Assim, são necessários maiores investimentos em infraestrutura que garantam o acesso da população a todos os níveis de complexidade de atenção à saúde, são necessárias políticas permanentes e sustentáveis de valorização e formação dos profissionais de saúde e é urgente a abertura de universidades públicas gratuitas e de qualidade e especializações em regiões com ausência de profissionais.
“A televisão mostra o que acontece? Em nossos países, a televisão mostra o
que ela quer que aconteça ; e nada acontece se a televisão não mostrar.
A televisão, essa ultima luz quete salva da solidão e da noite, é a realidade. Porque a vida é um espetáculo: para os que se comportam bem,
o sistema promete uma boa poltrona.” (A televisão/2, Eduardo Galeano)
63
Trabalhador da
saúde: um operário
em construção
Bruno Pedralva
Toda a riqueza produzida em nossa
sociedade é fruto do trabalho dos trabalhadores.
E satisfazem necessidades humanas, do
estômago ou da fantasia (MARX, 1867). Uma
peça de roupa, os alimentos, uma casa ou um
carro só existem porque os trabalhadores, com
divisão de trabalho, transformaram o minério,
um vegetal e o petróleo em mercadoria, com os
esforços de seus músculos, nervos, energias e
capacidades.
E no setor de saúde não é diferente.
Todos os recursos que utilizamos em nosso
trabalho são fruto do trabalho dos trabalhadores.
O cuidado a uma pessoa só ocorre graças ao
trabalho de um trabalhador. E as determinações
sobre nossas condições de trabalho no setor
saúde, mesmo na assistência, devem ser
compreendidas no contexto geral da compra e
venda da força de trabalho (Girardi, 2011).
Por isso, precisamos entender a história
do povo brasileiro e do capitalismo em nosso país
para desvelar a realidade dos determinantes de
nosso trabalho.
O SUS como vitória do povo brasileiro
Em toda a história do povo brasileiro,
nunca houve um projeto de nação que se
preocupasse efetivamente com a saúde de seu
povo. No período colonial, os coronéis cuidavam
da higienização para garantir a saúde dos
europeus exploradores, com apoio da Igreja. Na
república velha, o sanitarismocampanhista
preocupava-se em banir doenças para garantir a
exportação do café. E no século XX, forjou-se a
indústria médico-hospitalar para garantir o lucro
das corporações privadas ligadas à assistência
médica e das grandes empresas transnacionais de
equipamentos e medicamentos. (Andrade, 2004)
No final dos anos 70, no contexto das
lutas dos movimentos sociais por direitos sociais
e democracia, no meio sindical, popular,
estudantil e camponês, surge o Movimento da
Reforma Sanitária. Sua principal bandeira era a
construção do Sistema Único de Saúde, firmado
na constituição de 1989, que inseriu em lei o
direito à saúde e a determinação social da saúde
e doença. A correlação de forças à época, apesar
de favorável, não garantiu a exclusividade estatal
dos serviços de saúde, permitindo a participação
privada em caráter complementar.
No entanto, no início dos anos 90, o
contexto mundial de hegemonia das idéias
liberais e a crise na alternativa socialista
limitaram a real construção do SUS. E, apesar de
avanços na construção de serviços de saúde, o
povo brasileiro não teve garantidos direitos
sociais básicos, submetido a salários baixos,
condições de trabalho precárias, educação de má
64
qualidade, moradias inadequadas, alimentos
insalubres contaminados por agrotóxicos.
Determinantes fundamentais para a saúde de um
povo. E para nós, os trabalhadores da saúde.
Trabalho em saúde no Brasil
A assistência em Saúde no Brasil envolve
4,5 % da população ocupada, 10% da massa
salarial do setor formal, 3,9 milhões de postos de
trabalho, sendo 2,6 milhões formais, 690 mil
informais e 611 mil autônomos. Nos 24 anos de
SUS, observamos a tendência a municipalização e
expansão de estabelecimentos e empregos,
maior participação das mulheres e precarização
das relações de trabalho (Machado, 2010).
Dois elementos centrais na precarização
do trabalho em saúde são o sub-financiamento
crônico e as privatizações.
Apesar da existência do SUS, os sucessivos
governos nos últimos 20 anos não assumiram sua
construção efetiva. Os gastos públicos em saúde
em 2009 representaram apenas 3,8% do Produto
Interno Bruto (PIB), em 2009. E o gasto privado,
investido pelas famílias, chegou a 4,9% do PIB no
mesmo ano. Em países com melhores resultados
em saúde, como Cuba, o investimento chega a
18% do PIB. Em contrapartida, no Brasil, mais de
45% do orçamento da união ainda é gasto com
juros e amortizações da dívida pública.
Outra tendência são as privatizações na
saúde. Nos anos 90, com o avanço do
neoliberalismo na América Latina, os projetos de
privatização do Estado proliferaram. E os
trabalhadores foram submetidos às políticas de
flexibilização do trabalho e terceirizações no
processo de produção. No Brasil, durante o
Governo do PSDB, Fernando Henrique Cardoso,
foi criado o Ministério da Administração Federal e
Reforma do Estado, sob o comando de Bresser
Pereira, com a tarefa de privatizar empresas
estatais e serviços públicos. Os argumentos
principais eram que o Estado deveria ser reduzido
e assumir a tarefa de administração de setores
que envolvem poder de Estado (forças armadas,
polícia, receita federal). A gestão de serviços
públicos para a garantia de direitos sociais
deveria ficar a cargo de empresas privadas e
organizações sociais de direito privado,
coordenadas por agências reguladoras.
Após duas décadas de experiência com
organizações sociais, as conseqüências são
evidentes: aumento da ineficiência dos serviços
de saúde e corrupção através de “caixa dois” e
favorecimentos em licitações. No estado de São
Paulo, as empresas que atuam em 18 hospitais
públicos acumularam déficit de 147 milhões em
2010, enquanto os gastos da Secretaria Estadual
de Saúde com OS saltaram de 910 milhões para
1,96 bilhões entre 2006 e 2009. Outros exemplos
são a denúncia de um ex-secretário de Saúde de
Natal de que a Trade Rio, empresa que
administra ambulâncias do SAMU, tentou lhe
subornar oferecendo o custo da sua campanha
em troca da renovação de contrato. Em Minas
Gerais, a Construtora Tratenge Engenharia
ganhou a licitação para construir o Hospital
Metropolitano e é processada pelo Ministério
Público Eleitoral em 2011 por doação de recursos
para eleições acima do limite legal.
Quantas vezes mais uma pessoa tem acesso a
médicos se estiver na Rede Privada?
Bahia 12 vezes mais
São Paulo 2 vezes mais
BRASIL 4 vezes mais
Fonte CFM, 2011.
Para os trabalhadores da saúde, esse
modelo aumenta a precarização das relações de
trabalho, achata os salários, amplia as políticas de
gestão por metas e aumenta o adoecimento dos
trabalhadores (SANTOS, 2007). Além disso,
65
enfraquece a organização sindical, pois o risco de
demissões aumenta e a unidade entre
trabalhadores é fragilizada com diferentes
patrões e vínculos empregatícios.
O que fazer?
As lutas dos trabalhadores da saúde por melhores
salários e condições de trabalho são
fundamentais como ponto de partida. E
possibilitam, com uma direção sindical
comprometida com a Revolução Brasileira, a
superação das lutas econômicas e compreensão
de um projeto de saúde dos trabalhadores para o
povo brasileiro.
Nosso projeto, dos trabalhadores, é claro: saúde
como um direito, determinada socialmente,
possível somente com direitos sociais garantidos
e com serviços públicos de saúde eficientes,
orientados pela atenção primária em saúde. E
somente será possível com um Projeto Popular
para o Brasil.
E o fruto do trabalho, de quem trabalha será!
“E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edificio em construção
Que sempre dizia "sim"
Começou a dizer "não".
(Operário em Construção, Vinícius de
Moraes)