cohn, amélia. a questão social no brasil

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J: '!': .ir Viagem Incompleta f\ EXPERlÊNCIA BRASILEIRA (1500..2000) A GRful\,JDETRf\NSAÇAo ~------- Carlos Guilherme Mota (ORG1\NlZADOR) \ Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câma" Brasileira do Livro, SP, Brasil) r~A 5 -+ A {LI Viagem incompleta: a experiência brasilei..a (1500-2000) : a grande tr"osação / Carlos Guilherme Mota organizador. - São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000. "li:irios autores. Bibliografia. ISBN 85.7359-111-0 1. Brasil- Civilização 2. Brasil- Condições sociais 3. Bra. sil- História - 1500-2000 4. Brasil- Política e governo 5. Lite- ..atura brasileira 6. Raças - Brasil!. Mota, Carlos Guilherme, 1941-. 00-0077 CDD-981 1. Bra,il: Histó.-ia: ~500-2000 981 EDITORA C===:J senac 00 CO-I'di. ão: Índi~es I' .ra catálogo sistemático: SAoPAULO SESC SÃO PAULO

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COHN, Amélia. A questão social no Brasil: a difícil construção da cidadania. In: MOTA, Carlos Guilheme (org.). Viagem incompleta: a experiência brasileira (1500-2000): a grande transação. São Paulo: SENAC, 2000.

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Page 1: COHN, Amélia. a Questão Social No Brasil

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Viagem Incompletaf\ EXPERlÊNCIA BRASILEIRA (1500..2000)

A GRful\,JDETRf\NSAÇAo~-------

Carlos Guilherme Mota

(ORG1\NlZADOR)

\ Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câma" Brasileira do Livro, SP, Brasil)

r~A 5 -+ A{LI

Viagem incompleta: a experiência brasilei..a (1500-2000) : agrande tr"osação / Carlos Guilherme Mota organizador.- São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000.

"li:irios autores.

Bibliografia.ISBN 85.7359-111-0

1. Brasil- Civilização 2. Brasil- Condições sociais 3. Bra.

sil- História - 1500-2000 4. Brasil- Política e governo 5. Lite-..atura brasileira 6. Raças - Brasil!. Mota, Carlos Guilherme,1941-.

00-0077 CDD-981

1. Bra,il: Histó.-ia: ~500-2000 981

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CO-I'di. ão:Índi~es I' .ra catálogo sistemático:

SAoPAULOSESCSÃO PAULO

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Rbreza, desemprego, violência, trabalho infantil, meninos de rua,seca no sertão nordestino, favelas e criminalidade nos centros metropolita-nos são imediatamente identificados pelo senso comum como problemassociais e, portanto, como uma questão social. Mas não é por acaso que nestepaís questão social assim como cidadania e cidadão são no geral utilizadosde forma ambígua e imprecisa nos mais diferentes textos e contextos. Éexatamente esse o eixo que será perseguido no desenvolvimento deste tematão complexo: sintetizar os vários conteúdos - e suas conseqUências - que aquestão social assume no decorrer deste século, sem a ilusão de que selogre ser menos ambíguo e impreciso, exatamente pela condição a que éconfinada de sempre constituir uma área-problema.

Questão social: de problema social a obieto da política

"Questão social", a maior parte das vezes, aparece em nossa vastaliteratura referida às nossas mazelas sociais, como sinônimo portanto de"problemas sociais". Estes, por sua vez, tendem a ser decodificados comoexpressando um fenômeno social (ou um conjunto de fenômenos sociais)que ultrapassa um determinado nível considerado como "normal" a partirde dete~inados critérios. E são assim identificados como tal seja por crité-rios predominantemente éticos - fome, pobreza, trabalho infantil, dentre

outros -, seja por critérios predominantemente morais - violência, tráfico econsumo de drogas, devastação do meio ambiente, prostituição infantil,dentre outros. Na essência, no entanto, claro que ambos esses critérios sem-pre estão referidos à permanência da ordem social vigente, o que na atualconjuntura, é bom que se ressalve, não significa necessariamente assumirum cunho conservador. Haja vista as numerosas e variadas experiências de

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386 AméliaCohn

governos locais no sentido de enfrentar criativamente as questões sociais,promovendo políticas e programas estruturantes de novas práticas e identi-dades sociais.

Por outro lado, é claro que essas duas dimensões - ética e moral - nãose manifestam dissociadas entre si, sendo mesmo extremamente difícil ou

quase impossível - dada a sua artificialidade quando confrontada com arealidade - identifIcá-Iasde forma isolada e estanque quando da classifica-

ção de um determinado fenômeno social como ferindo - enquanto questãosocial ou problema social- valores morais ou éticos. Até porque é semprebastante estreita a associação que se tende a estabelecer entre a presença dedeterminada questão social e o que ela representa, em termos reais mastambém potenciais, enquanto ameaça à segurança social.

Senão vejamos: fenômenos como a pobreza, a fome, a velhice desam-parada, a alta taxa de analfabetismo entre crianças em idade escolar (e toaa-via significativamente bastante inferior à que se verifica entre os adultos)hoje no país tendem a ser concebidos como injustiças sociais, e como talinaceitáveis; no entanto, a associação entre eles e a ameaça à ordem socialainda é indireta e longínqua no imaginário social, tornando-as então passí-veis de ser socialmente toleradas. Já homicídios, violência no trânsito, la-

trocínio, por exemplo, tendem a ser imediatamente identificados pelasociedade como ameaça à ordem social e, portanto, à segurança individualdo cidadão, devendo como tal ganhar a prioridade dos governantes.

Dessa forma, determinados fenômenos sociais tidos como mais ou

menos indesejáveis, porém toleráveis, tendem a se tornar socialmente into-leráveis quando, e somente quando, associados à segunda bateria de fenô-menos sociais acima referidos. E como tal devem ganhar prioridade para oseu imediato enfrentarnento. Exemplos não faltam em nossa sociedade: a

forma pela qual se relaciona a pobreza à violência; as crianças fora da esco-la à pobreza e à violência; o consumo de drogas à pobreza, à Aids e à vio-lência; etc. Note-se que nesses casos o que sempre está em jogo é a complexadelimitação entre as dimensões legal e ilegal dessas práticas sociais, e por-tanto sua natureza legítima ou ilegítima; ou ainda, em termos dos mores, oque vem a ser socialmente definido como "o normal e o patológico".

Essa associação entre pobreza e problemas sociais dominante no ima-ginário brasileiro salta aos olhos numa simples conferência das principaisnotícias cotic;Iianasveiculadas pelos nossos meios de cOn,1unicação.No en-tanto, é a partir dessa associação básica - forjada através de um longo e

.

A questõo social no Brasil: a difícil construçõo do cidadania 387

doloroso processo de construção da cidadania no Brasil - que a "questãosocial" é equacionada, traduzida em programas e políticas sociais, eimplementada.

No final do século XIX, quando as aglomerações urbanas assumemmaior presença no país e apresentam um ritmo de crescimento mais acele-rado, associado às reformulações de nossa economia e à exploração do tra-balho livre, os problemas sociais são vinculados a dois elementos básicos:carência de recursos (materiais e intelectuais) que possibilitem a sobrevi-vência dos indivíduos por sua própria conta e, conseqUentemente, a pobre-za sendo um problema individual, o seu combate é também concebido comopertinente à esfera da responsabilidade privada e individual de cada um,sendo valorizado sobretudo o caráter voluntário das ações então imple-mentadas. Problemas sociais são da esfera da responsabilidade da filantropia,à época estreitamente associada à Igreja Católica. O exemplo mais clássicoa respeito são as Santas Casas de Misericórdia, de longa tradição entre nós.

À esfera pública, e portanto ao Estado ou, na época, mais propriamen-te, aos estados, dada a autonomia dessas esferas subnacionais no então re-

cém-instaurado regime republicano, pertence a responsabilidade porcontrolar e prevenir exatamente aqueles episódios e eventos que ameacema ordem pública, vale dizer, a segurança dos cidadãos. E quem eram estes?Exatamente a elite econômica e política do país, a oligarquia agrária.

Em resumo: q~estão social'é tida e havida como objeto da filantropia(mais uma v~z das elites que dispunham recursos Pará tanto), à qual se asso-

ciava pre~~íg!.~~oc::~a!;~.d~vinculada do trabalhe:>:-I:'0~r.eéJáp criminoso, ovio!en.~0!.5~_queameaça..a ordem' pública e'vi:1Íde encon~rol1.osbons co.stu.-mes, dada sui;'sTtu~ã() de "carência" no sentido absoluto do termo: a uma.~ ~H .0.'_ ._ . ..0. . _.__

~i.~~~ç~<2-~l.e_p.riyA.ç,~?_~_~F~~ursos mater:!.~i.~.~~~2~J.a-~t? a~~.s~~c:ia de recllrso~

intelectuais ~. ~lIJt~~aispr6pri"õs-cjüepermitam ao indivíduo superar por simesmo tal estado d;privação.-Àq'~elã-éP'~~~:"port~~t~:'q~~stão s~cial eraalgo pertiriente'à esferap'rivada, devendo nesse âmbito ser tratada.

Nas primeiras três décadas do século XX - até a Revolução de 1930-,

a questão social no país é sempre encarada como um fenômeno excepcionale episódico, demandando iniciativas porituais do Estado e largamente sob aresponsabilidade da filantropia, e portanto uma vez mais como algo perti-nente à esfera privada. Recorde-se, no entanto, que as décadas de 10 e 20deste século foram marcadas por profundas mudanças econômicas e sociaisno país, acelerando-se o processo de urbanização, intensificando-se o co-

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mércio exterior alavancado pelo café, e emergindo as primeiras iniciativas,nos grandes centros urbanos da época (São Paulo em particular), dos em-briões do que seriam posteriormente grandes unidades industriais produ-tivaso Esse processo de acelerada modernização da sociedade vemacompanhado também de um vigoroso movimento dos novos segmentossociais então emergentes nesse novo cenário social em constituição, e quesão as classes assalariadas urbanas. Associados a sucessivas políticas emedidas de incentivo à imigração, os primórdios desse setor industrial pas-sam a contar com a força de trabalho européia, com fortes raízes na lutaoperária em seus países de origem, em especial de inspiração anarquista.

Assiste-se, então, nos "centros nervosos" desta nação do além-mar (as-sim considerados quer por critérios econômicos quer por critérios políticos),a um p~ríodo marcado por grandes movimentos de luta operária reivindican-do um conjunto mínimo de direitos básicos no âmbito do mundo do trabalho.A síntese do teor das inúmeras greves que se verificam nesse período poderiaser esta: luta por melhores condições de vida e trabalho.

É a partir de então que se cristaliza no país a concepção de que a"questão social", da ótica da responsabilidade pública por um patamar mí-nimo de bem-estar dos cidadãos, é algo que passa a ser estreitamente asso-ciado ao trabalhú. Cidadão, portanto, distingue-se agora dos pobre's: questãosocial dos trabalhadores, ou das classes assalariadas urbanas, passa a seconstituir, a partir de 1930, como uma questão da cidadania; enquanto aquestão da pobreza, dos desvalidos e miseráveis -exatamente por não esta-rem inseridos no mercado de trabalho -continua sendo uma questão socialde responsabilidade da esfera privada, da filantropia.

É portanto via trabalho que determinados problemas sociais da reali-dade brasileira transformam-se em questão social, e como algo pertineJ Ite àesfera pública. Vale dizer, passa ao âmbito da política, uma vez que começasistematicamente a ser remetida para a responsabilidade do Estado. Issosignifica, em outros termos, que se assume aqui uma diferenciação bbsicaentre problemas e questões sociais: enquanto os primeiros dizem mais res-peito a coisas e fenômenos indesejáveis, porém aceitáveis de com elf's seconviver, as segundas remetém à esfera do reconhecimento de alguns .jen-tre esses fenômenos como leg(timos, e como tal devendo ser enfrentadospela coletividade, constituindr. .se eregulando-se assim determinados pa-drões de solid~edade social. E mais que legítimas, as questões sociais pas-sam a ser conce')idas e de.:ifradas não mais como fenômenos excepcionais

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Aquestão sociol no Brosil: o difícil construçóo do cidodonio389

e episódicos, mas como regulares e permanentes. vale dizer, assumidas comoalgo de caráter estrutural.

Questão social e direitos sociais: cidadania e trabalho

Sem o risco de incorrer em erro e exageros, pode-se afirmar que no

Brasil a questão social tem como regra de ouro a ser religiosamente respei-tada o não onerar os cofres públicos. Por outro lado, qualquer padrão desolidariedade social que se constitua em cada sociedade implica necessaria-mente o estabelecimento de um pacto distributivo dos recursos - semprelimitados e escassos -'existentes na sociedade para se enfrentar a questão

dos gastos sociais. I Note-se, de imediato, que esse pacto distributivo - nosentido estrito de origem, distribuição e alocação dos recursos - necessaria-mente não significa que se obedeça a um determinado padrão de justiçasocial, vale dizer, que seja efetivamente redistributivo, tal como ocorre nosmodelos de Estado de bem-estar social dos países europeus, especialmenteos nórdicos. Como se verá adiante, o caso brasileiro não obedece, no pre-sente, como não obedeceu, no passado, a esse padrão de proteção socialcivilizador, característico das sociedades modernas.

Também pode-se afirmar que a questão social no Brasil, ao estar des-de sua origem marcada pelo criv'o do vínculo do indivíduo ao mercado detrabalho, e portanto não surgindo com o traço fundamental da cidadania

que é a sua universalidade, trouxe consigo certos aspectos que se revelamainda hoje determinantes do c~áter perverso das nossas póÍíticas sociais.Assim, não é por outro motivo que os direitos sociais no Brasil até hojetraduzem-se em políticas e programas sociais que se dirigem a dois públi-cos distintos: os cidadãos e os pobres. Cidadãos são aqueles que, por exem-

plo, estão cobertos por um sistema de proteção social ao qual têm direitoporque cóntribuem para com ele. Os pobres são aqueles que, por não apre-sentarem capacidade contributiva, uma vez que nem sequer apresentam ca-

pacidade de formas autônomas de garantia de patamares mínimos desobrevivência, são alvo de políticas e programas sociais de caráter filantró-

G. Esping-Andersen, Los tres mundos dei Estado dei Bienestar(Valência: lVEI, 1993) e G. Esping-Andersen (ed.), Welfare States in Transition (Londres: SageIUNSRID, 1996).

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390 AméliaCahn

pico e/ou focalizado em determinados grupos reconhecidos como mais ca-rentes c "socialmente mais vulneráveis".

Cristalizam-se assim no país três tipos paralelos de políticas sociais:aquelas que dependem dos recursos pr6prios da União - saúde pública, porexemplo; aquelas que dependem igualmente do orçamento da União, T1asque têm seus recursos previamente vinculados - a educação, ambas no ge-ral voltadas para ações de caráter coletivo; e aquelas que contam com fon-tes específicas de recursos não p,ovenientes dos cofres públicos, como é ocaso da previdênda social.

Daí deriva uma terce ra característica da forma tortuosa com que nes-te país a questão social ve:n sendo historicamente construída, e que hojerepresenta o círculo de ferro com o qual a questão social no país se defron-ta: de um lado, o traço p<.ternalista com que a questão social é tratada nopaís, e, de outro, o traço clientelista do padrão de atuação do Estado brasi-leiro no setor, em seus distintos níveis de poder. Isto é, a característica de aspolíticas sociais comandadas pelo Estado reproduzirem a subalternidadedos segmentos mais pobres da população, reforçando assim seu auto-reco-nhecimento como sujeitos :lependentes dos favores personalizados2 do Es-tado ou individuais de membros das elites políticas, locais, estaduais ~/ounacionais.

À dicotomia anteriormente apontada - políticas sociais dependentesdo orçamento da União ~ políticas sociais contributivas -, que data dosprim6rdios dos anos de 1900 e prevalece até os dias atuais, corresponde adivisão clara dos níveis de abrangência, do montante de recursos disponí-veis, e dos distintos perfis de apropriação, por parte dos diferentes segmen-tos, das diversas políticas sociais, e que forjam o que vai sendo concebido elegitimado como sendo de responsabilidade do Estado na área social. As-sim é que, tradicionalmente, cabem ao Estado políticas de caráter coletivona área da saúde - saneamento, vacinação em massa, combate a endemias,dentre outras, sempre levadas a cabo com recursos orçamentários da Uniãoe dos Estados (e ap6s 1988, dos municípios), políticas de preservação domeio ambiente e dos recursos naturais, no geral associadas no caso brasilei-

Não é de surpreender. portanto. em nossa cultura política a frequência com que as lideranças.sobretudo os governantes. são identificadas através de suas características pessoais. e não atra-

vés do programa de governo. da legenda partidária. etc. Talvez a expressão mais cabal disso sejaa qualificação dada pelos eleitores a alguns candidatos a postos elegíveis no governo. tal como océlebre "rouba mas faz".

A questão sacial na Brasil: a difícil construçõoda cidadania391

ro à defesadasfronteiras nacionais,educaçãobásica- também financiadacom recursos orçamentários - e regulamentação do trabalho (neste caso,mais especificamente, legislação trabalhista e sindical).

Nesse ponto chegamos a duas características fundamentais da formapela qual a questão social é enfrentada no país desde o início do século,independentemente do traço mais ou menos democrático e/ou autoritáriodos n~gimes políticos e dos governos: 1) a antinomia que sempre prevale-ceu - emb( ra interpretada de diferentes formas - entre políticas econômi-casepolíticas sociais;e 2) o traçofortementecentralizadodo aparatosocialdo Estado, com políticas sociais verticalizadas, concebendo-se sempre oEstado como o grande agente modernizador da sociedade.

Não é por acaso, portanto, que nos anos 30, quando da legitimação daquestão social no Brasil via trabalho, lê-se em documentos do então recém-criado Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio que:

Justifica-se o sindicato pela fraqueza econômica do operário. elemento socialmente

desamparado quando isolado; da união advém a força da resistência em quantidade

suficiente para criar valores novos e fazer valê-Ios; disciplinar essas correntes e dar-lhes o curso que devem seguir, é a função do Estado.

"

E mais: "Há um interessedeordempúblicae desegurança,aoladodeum espírito de humanização e de bondade, que vem presidindo à formaçãoe ao desenvolvimento do direito operário'?

É esse "espírito de humanização e de bondade", associado à incapaci-dade atribuída pelas nossas elites políticas de então aos assalariados de "pre-veremagarantiadesuasobrevivênciafutura",quenorteiaeditáa legitimaçãoda questão operária no país, nessa primeira metade do século, como "ques-tão social". E nesse sentido, entende-se não só o caráter assistencialista daestrutura sindical montada à mesma época, como a simbiose e a promiscui-

dade presentes até os dias de hoje em nosso sistema de proteção social ex-pressas em direitos sociais que se confundem com filantropia e assistênciasocial, no caso dos pobres, ou com privilégios no caso daqueles segmentosassalariados inseridos no mercado de trabalho.

Boletim do Ministério çioTrabalho, respectivamente n. 35, de julho de 1937. e n. 36. de agostodo mesmo ano. pp. 109 e 89. apud: Gisálio Cerqueira Filho. A "Questão social" no Bra.\'il-crítica do discllr.1'Opolítico (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1982), p. 81.

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392 AmeliaCahn

De fato, essa é a grande herança e o grande traço de nosso sistema de

proteção social e que ainda hoje permanece: desde sua origem, por vincu-lar-se ao trabalho, ou à ocupação como analisa brilhantemente WanderleyGuilherme dos Santos,4 a "questão social" é enfrentada de forma segmenta-da e fracionada, fazendo com que sua implementação, ao contrário de pro-mover a inclusão social dos cidadãos, assuma o significado da diferenciação

e reprodução da subaltemidade das classes assalariadas do país.Em resumo: o enfrentamento da "questão social" no país é sempre

estreitamente vinculado à modemidade atribuída às nossas elites políticas,

e por conseqUência ao Estado brasileiro, que a regula e legitima segundoseus próprios interesses, preservando assim sempre "por antecipação" aordem social vigente.

É portanto a partir da década de 20 que a "questão social" no Brasil

passa 11ser incorporada pelo Estado, via trabalho, formalizando-se assim oestatuto de cidadania para determinados segmentos sociais, enquadrando-ojuridicamente num aparato que reunia e articulava legislação trabalhista,legislação sindical e legislação previdenciária. Mas reforçada no entantopelo próprio traço oligárquico e patrimonialista do Estado e da cultura polí-tica brasileiros, verifica-se no país a consolidação de um sistema de prote-

ção social que apesar de se desenvolver em duas vertentes paralelas - a dosdireitos sociais e a da filantropia - não as diferencia quanto ao seu traçopaternalista e conservador, associando a "igualdade perante a lei" à políticado favor, do compadrio, do favoritismo que; como registra Schwarz,s "setinha a vantagem de trazer para a frente alguns de nossos assuntos decisi-vos", não se deve esquecer que "uma doutrina autoritária, em que a família

dá o paradigma à sociedade, se entrelaçava com naturalidade às nossas tra-dições católicas e patriarcais". Em termos de direitos e cidadania, instaura-se a velha regra de que "para os amigos tudo, para os inimigos a lei", criando,como assinala DaMatta,6 uma dupla rede de sociabilidade - a do indivíduoe a da pessoa -, ou o famoso "sabe com quem está falando 7". Compreende-se, portanto, a facilidade com que, nos dias atuais, direitos são interpretadospelas elites politicas contemporãneas e socialmente aceitos como "privilé-

Wanderley Guilherme dos Santos, Cidadania ejustiça (Rio de Janeiro: Campus. 1979).Roberto Schwarz. Ao vencedor as batatas (Silo Paulo: Duas Cidades, 1977), pp. 63-5.Roberto DaMatta, A casa e a rua ,- Espaço, cidadania, mulher e ;norte no Brasil (Silo Paulo:Brasiliense, 1985).

~ ;"

A questão social no Brasil: a difícil construção do cidadania 393

gios", tomando-se viáveis, sem muitas tormentas, reformas desse aparatode proteção social que anulam direitos diferenciados conquistados histori-camente por distintos setores de trabalhadores, em nome de uma eqUidadeque nivela tendo como parãmetro os patamares mínimos de benefícios soci-ais que já vêm sendo praticados.

Questão social: cidadania e mercado

Este é um país em que os paradoxos não se restringem aos contrastesda natureza. O brasileiro, este "homem cordial", foi sendo assim moldadoatravés de nossa história tendo exatamente como um dos mecanismos cen-

trais as políticas sociais. Trajetória essa tão paradoxal que, quando se acom-panha a cronologia da implementação dos direitos sociais neste país,constata-se que estes são estendidos a novos segmentos de trabalhadoresem períodos de regimes autoritários. Cuidado. no entanto, para inferênciasapressadas: esse fato por si só não autoriza que se depreenda que no casobrasileiro os períodos autoritários e totalitários foram exatamente aquelesmais sensíveis e permeáveis à questão social. Pelo contrário. quando sedebruça sobre os dados relativos a quem ou que segmentos sociais mais seapropriam das políticas e dos b,enefícios sociais neste país, o que salta aosolhos é, de uma parte, o traço perverso de nosso sistema de proteção social,uma vez que quem mais se apropria dele são em primeiro lugar os nãopobres, seguidos dos pobres, e estes dos mais pobres dentre os pobres.' e deoutra, exatamente seu traço autoritário e dominador.

Em resumo, apresenta-se aqui a tese, compartilhada por numerososanalistas e estudiosos das políticas sociais no país, de que no caso brasileiroelas não só reproduzem as desigualdades sociais já existentes (ao contráriodo que oporre nos países com os modelos clássicos de Estado de bem-estarsocial), como também reproduzem a subalternidade dos dominados. Quan-to a estes últimos, as indicações são inúmeras e de distintos tipos Não é de

se admirar, por exemplo, que prevale9a a representação social entre mora-dores da periferia de uma metrópole como São Paulo, já em plena décadade 80, de que consiste direito social todo e qualquer benefício de caráter

República Federativa do Brasil, Relatório Nacional Brasileiro - Clípula Mundial para o DeJ'en.

vo/vimento Social, Copenhague, 1995. Relatora geral: Amélia Cohn.

Page 7: COHN, Amélia. a Questão Social No Brasil

394 AméliaCahn

contributivo, seja ele compulsório ou contratado, como é o caso hoje dosplanos de saúde empresariais ou individuais, forjando, portanto, a concep-ção de que direito social é, ou tem que ser, pago. E a contraface dessa mes-ma moeda, de c;ue o serviço gratuito (leia-se serviços públicos estataisfinanciados com recursos do orçamento do governo) é caridade, filantropiado Estado, ou do agente público, uma vez que sempre se está na dependên-cia da boa vontade deste, da sua disposição em exercer o "trabalho voluntá-rio", por este assim entendido em que pese sua condição de assalariadoformalmente contratadoS pelos órgãos públicos. O usuário desses serviçosnão se configura como um cidadão, mas efetivamente como um carente, ecomo tal, não portador de direitos, mas sim dependente da boa vontade dosagentes estatais, sejam eles do quadro político ou administrativ09. Nessa

) nossa cultura política, ~s!ed~s sociai~ :__as._~~zades transforIE.~~~~~~. valioso capital soci~l, uma vez que é através delas que o cidadão comumi

)

ter{ alg~ma chance de acesso aos bens de consumo coletivo e aos ben~fí-cios sociais básicos.

Para além disso, há que se especificar as distintas relações que se e~ta-beleceram entre cidadania e mercado nessa trajetória tortuosa das políticassociais no Brasil. Ela foi m..lI"cac.\ por basicamente três grandes padrões, emsucessão cronolé gica de dominância:

1) Esse sistt:ma de proteção social surge, em 1923, tendo como pilar aprevidÔncia social para os .>etoresassalariados urbanos da iniciativa priva-da. São as Caix<.,sde Apo:;entadorias e Pensões, instituídas pela Lei ElóiChaves, e que tir.ham con \0 objetivo prover, financiados pela contribuiçãocompulsória dos empregadores e dos trabalhadores, pensões, aposentado-rias e assistêncih médica a seus filiados e dependentes. Após 1930, elastransformam-se nos Institutos de Aposentadorias e Pensões, agora organi-zados não mais por empresas como era até então, mas por ramos de ativida-de econômica - comerciários, industriários, marítimos, bancários, dentre

outros -, tendo o mesmo objetivo que as CAPs.

,A. Cohn et alii, A saúde como direito e como serviço (2. ed. São Paulo: Cortez/Cedec. 1999).Talvez a expressão mais acabada desse fenômeno seja a afmnação de ilustre cirurgião e respeita-da figura pública que ocupou por várias vezes postos de destaque na área da saúde no país, oministro Adib Jatene, quando afirma que "o problema do pobre no Brasil não é ser pobre; é teramigos pobres".

....

A questõa sacial no Brasil: a difícil construçõo da cidadania395

..

Previdência social, responsável por instituir um padrão de solidarie-dade social entre os trabalhadores do setor privado da economia, legislação

trabalhista e legislação sindical, voltadas para a regulamentação da relaçãocapital-trabalho, compõem o eixo fundamental desse padrão.

Padrão esse que se caracteriza, tal como emergiu, por estar centradono trabalho, ou no sistema de ocupações, resgatando mais uma vez aqui

Wanderley Guilherme dos Santos. Esse padrão tem, portanto, como núcleocentral a condição do assalariado, força de trabalho livre, com inserção nocrescente, desde então, mercado formal de trabalho. Esse padrão prevaleceaté o final dos anos 90, quando as propostas de "reforma do Estado" atin-

gem esse sistema de proteção social, que passa a ser combatido pelas elitesdirigentes do país, por elas interpretado como se revelando agora onerosoem termos da capacidade competitiva de nossa economia na nova ordem

global. ,2) Tendo como eixo central aquele padrão, a partir sobretudo dos anos

50, verifica-se a superposição de um novo perfil de articulação entre cida-dania e mercado: o Estado provendo os direitos sociais paulatinamente con-

quistados, e com isso garantindo mercado ao setor privado de serviços.Através de subsídios e da compra de serviços privados pelo Estado, flores-ce e se constitui um robusto setor privado dt' p"odução de serviços, cabendo

à educação e à saúde os ramos de atividade paradigmáticos que ilustramesse processo.

Verifica-se, portanto, um processo de privatização da produção de ser-viços sociais sem que esses ramos de atividades enfrentem as insegurançase os riscos do mercado: o mercado consumidor passa a ser garantido atra-vés de subsídios estatais (a renúncia fiscal, uma vez mais no caso da saúde

e da educação, é um exemplo típico) ou através da compra pelo Estado dosserviços produzidos pela esfera privada da economia (convênios entre es-tado e empresas privadas, com ou sem fins lucrativos, constituem nessecaso um outro exemplo típico). Através desses mecanismos, o Estado pas-

sa a garantir um "mercado cativo" para a esfera privada pr.odutora dessesserviços.

Esse processo acentua-se durante o período pós-64, quando esse setorprivado de produção de serviços passa a ser não só concebido como fontede lucro, mas também assume importante papel no processo de acumulaçãoe reprodução do capital. Basta lembrar, tomando-se os dois ramos acima, ainformatização do ensino e a indústria de equipamentos de apoio em diag-

Page 8: COHN, Amélia. a Questão Social No Brasil

396 AmélioCohn

nóstico terapêutica vinculada ao atendimento hospitalar, para não mencio-nar a própria indústria farmacêutica.

3) A partir da segunda metade da década de 90 assiste-se aos ensaiosde uma terceira modalidade de articulação entre cidadania e mercado: nãoprevalece mais o mercado de trabalho para definir as diretrizes de um novopadrão de solidariedade social, mas sim o mercado de consumo. Vale d1zer,acompanha o processo de ajuste estrutural de nossa economia através daeleição por nossas elites dirigentes de um modelo de "ajuste passivo", utili-zando o termo de Maria da Conceição Tavares ,10um processo de desins-~ -titucionalização de direitos, sejalJl eles .atine!:lt~_s..à.~!!fenu!.çU!..nb~!.h.~_<?l!~esfera da garanti~ do acesso aos bens.~~~~n.çi~l~_~e_~~.n_~u~Q_~o.let!vo,inde-pendentemente do nível de renda de cada um, e portanto de sua .posiçãono mercado.

Essa fase é marcada pela assim denominada "t1exibilização das rela-ções d(: trabalho", terceirização de parcelas do processo produtivo, e outrosmecanismos visando a diminuição dos "custos sociais" da produção, emnome da competitividade na economia global. Entre estes, claro, incluem-se os bl~nefícios e os serviços sociais básicos, de responsabilidade do Esta-do, segundo o contrato social vigente.

Não obstante, esse modelo de ajuste estrutural da economia implica -na condição de "um país emergente", segundo a classificação que nos éatribuída pelos organismos internacionais, o que não deixa de ter certa iro-nia - o controle da dívida pública. Traduza-se: redução do tamanho do Es-tado, e mais, do gasto público.

Redução do tamanho do Estado: significando privatização, tercei-rização, parcerias com a iniciativa privada, de caráter lucrativo e não lucra-tivo, e com a sociedade. Nesse sentido, busca-se racionalizar os custosdistinguindo-se o Estado provedor do Estado produtor de bens e serviços.

Redução do gasto pÚblico: significando a desinstitucionalização dosdireito&sociais acompanhada de profundas alterações no acto de solidarie-dade social até então vigente. É quan o, então, busca-se uma "grande tran~s~CIe refõ'fi-na de nossõ" sistema de proteção social: passa agora aprevalecer não mais a situação do cidadão no mercado de trabalho, mas sua

- h_ u__,___ .. _

10Mo Co Tavares, "As políticas de ajuste no Brasil: os limites da resistência", em Mo Co Tavares &

Jo L. Fiori. Deomjuofle global e modernização conservadora (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993).

A questõo social no Brasil: o difícil construçõo do cidadania 397

co~ção de cidad_~()~~quanto capacidade de consu~o _e_~eP~~P~_~9a}~di--

v~~~ O mercado, agora, passa a prevalecer como mercado de consumo: oacesso à satisfação de necessidades sociais básicas diferencia-se dos direi-

tos, e torna-se função da capacidade de poupança individual de cada umo

o~.alta-se de um modelo 4..tUQH.Q!J.riÇ.9AQ~..~Q~!~!~~'p_~rfi1geracion~!i~t~~s/

inativos, o conceito e':1 si já ~~~otr_~f!1~rr1o~.nt~.!~fel~~Learaa lel de "cada um

por si'\ retirando-se ~~sse siste~a de proteção socialto.~~~oq~~9..l!.:!~ará-ter de solidariedade social redistributr"Oaecompensatória das desigualdadesso~i!!io~oo o- 0-_o ."_0. 000.0000.' _00..000- - __"

Uma vez mais, instiga o fato de ser exatamente quando da consolida-ção da ordem democrática.no país que se assiste ao "desmonte" dos direitos

sociais básicos do cidadã()~~~_03ul?_r~!TIetede imediato para a questão de queo'país, vale dizer nossâiélites políticas, tal como desde tempos imemoriais,continua não enfrentando a questão central da articulação entre democraciapolítica e democracia social. Não é por outro motivo que, traduzindo o co-nhecido "jeitinho brasileiro", o Brasil consegue estar ao mesmo tempo entreas dez maiores economias do mundo e ser o país que apresenta uma dasmaiores taxas de desigualdade social do mundo. Ou, como aponta Hobsbawm,constituir "um monumento à negligência social"Y

Francisco de Oliveira,13em textorecente,analisaexatamenteesse pro-cesso atual de "anulação da poJítica" e de "privatização do público" atravésdo qual destituindo-se os direitos sociais, n~~.ititq(Q.9~)~ij,o tral}s!adadospara a esfera da responsabilidade individual. Trata-se agora de direitos indi-.. . _O u . '_..4 .

v_~~~aiJenJiomais. sociãTS;-e-põrÚiiito'universais, tr~.nsfo~~ando õ iic:éssoàsatisfação de determinadas necessidades sociais básicas - não mais tidocomo direito - à capacidade de consumo de cada um: aposentadoria e pen-sões, por exemplo, tal como ocorre no Chile desde a época de Pinochet,

;..~

11 Não é fáto deslocado da atual conjunlura a proposta de iniciativa do governo, e em tramitação noCongresso Nacional, de reforma da legislação trabalhistao Em nome da modernidade e para o"fortalecimento da aprendizagem do exercício democrático dos trabalhadores", o executivo pro-põe a partir do final de 1999 projeto de lei que transfere direitos trabalhistas clássicos - taiscomo décimo terceiro salário, férias remuneradas. dentre outros - para a condição de objetos denegociação entre patrões e empregados.

'2 Eric J. Hobsbawm, A era dos eXlremos- O breve o\'éCllloXX (/914-/99/) (São Paulo: Companhiadas Letras. 1995), p. 555.

13 F. de Oliveira. "Privatização do públieo. destituição da fala e anulação da poJ(tica: o totalitaris-mo neoliberal", em Fo de Oliveira & M. Co Paoli (orgso), Os o\'entidoo\Oda democracia - Polftica,\'

do diofo\Oenowe hegemollia global (Petr6polis: Vozes, 1999), ppo 55-820

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398 AméliaCohnA questõo social no Brasil: a difícil construçõo da cidodania 399

passam a ser função da capacidade de p~uP~~ç~J1!c!L~~dualde cada ulTI!independentemente da sua condição no men::~49.Qetrabalho. A recente re-fOl1l1ado sistema previdenciário de 1999, por exemplo, desvincula a contri-buição previdenciária da relação de trabalho assalariada que garante a fontede renda, ao substituir para cálculo de apQsentadoria tempo de trabalho portempo dé contribuição. P~~~_prevalecer assiJ!1não mais o mer9do _çl~~ral:>alho~~_ capacidad~ contributiva de cada indivíduo, independente-l1l~nte de estar ou não empregado, e independente de qualquer inserçãoforlTlalsua no mercado de trabalho, como vigia até recentemente. Registre-se, de passagem, que uma das maiores conquistas sociais de 1988, que foi aconcepção de seguridade social no texto constitucional, vem sendo gradativae paulatinamente destruída, retomando-se, através do esquartejamento dasrefol1l1as da seguridade social reformas estanques e autônomas entre si daprevidência social, da assistência social e da saúde, à velha e arcaica con-cepção de seguro social.

. A "questão s0cial" no Brasil de hoje.passa a ser. ~~s.im_.!1~-,!.maisumaquestão de inclusão social via trabalho, fOrma clássica de re.guJ~s.~o~<?<;ial

no capitalismo moderno, mas via consllffiQ,2.9uefl1:zco~ qu.~pre.~~I.~9~m.'sobretudo nos países "emergente~" (periféricos nas análises de antanho),nõ\iõs padrões de regulação social e que consistem ~xata1!l~l'!tenum pro-cesso de desregulação dos direitos de cid~ania regulada até ~ntão vigentese de ruptura de contratos sociais pr.eestabelecidos., l(:vando ao que Francis-co de Oliveira naquele mesmo texto denomina "totalitarismo neoliberal", eBoaventura de Souza Santos, "fascismo social".'4

14 B..S. Santos. Pela mã I de Alice - () ~'oda/ e o po[(tico na pós-modernidade (São Paulo: Cortez,1995).

u C. Orre, "Trabalho: a \;ategoria so :io1ógicachave?", em Capitalismo desorganizado (São Paulo:Brasiliense, 1989).

tam para a "opacidade social" que vem caracterizando a sociedade contem-porânea, e sua conseqüência em termos de se equacionar na atualidade a"questão social".

Fitoussi e Rosanvallon, que utilizam o conceito de "sociedade opaca"para designar essa nova realidade, chamam a atenção para o desl~c_~rn.c::Il!.(,Jque a que~tl!Q.§QÇjaLYe_m.s9XrenQ():~l.~qi!.m.que~<::"p'assoude uma análise

glo~~Ld~_sistema (em termos de exploração, d; repartição:-etcS~ara.~map~!spectiva focalizada nos_~.,:~~~ntos m~i~vulne!~~~~~__~a.'p'()P . !-Ilação:Eque, em decorrência, não sÓ"a luta contra a exclusão polarizou ã--atenção,mobilizou as energias, provocou a compaixão", como também uma simpli-ficação do social por parte do coletivo, reforçada pela perda da força dasidentidades coletivas nessa nova ordem. Mas os autores chamam também a

atenção para o fato de que as desigualdades, mesmo que não apresentemmais necessariamente a amplitude do passado, não s6 permanecem acentua-das, como ainda a sua natureza mudou na atualidade. 16

Claro que a referência desses autores é a sociedade francesa contem-porânea. Mas debruçando-se sobre nossa realidade também com essereferencial, e sobretudo resgatando a atenção para o fato de os autores, comotantos outros, apontarem que nas sociedades atuais não são mais as identi-dades coletivas relativamente estáveis que são necessárias de ser descritas eincorporadas, mas que também os percursos individuais e sua variação notempo ganham importância, fica claro que na realidade brasileira as desi-gualdades brutais de renda que persistem e tendem a se acentuar, às quais seassociam as condições da "velha" e da "nova" pobreza - aquela, a pobrezaestrutural, e esta fruto do ajuste estrutural de nossa economia -, configuram

.um quadro muito mais radical.Isso porque, ~ não mais prevalec<: o padrão de integração/exclusã?

~ocial pautado pelo trabalho, e ~~~__~C?~_..~~isv~~~!!9..<? 95?!I1p'r.2~.a_daaimpossibilidade (reconhecida atualmente até pelo Banco Mundial) de se-..~ --~f~abelecer um padrão de integraçã.?_~~~~.~~~~_!TI.C?~~~<:!.<?-,_as .~_~~~gu..~~~~~~

sociais .endem a se manifest~vés de_o)Jtrasformas de polarização, ~~não mais somente a tradicional de classe. Essa "nova" polarização expres-sa-se como: globalizáveis/não-globalizáveis (recuperando aqui um termode Fiori; incluídos/excluídos; e organizados/não-organizados. À opacidade

Questão social: a naturalização da pobreza

A literatura s::Jcio16gicaatual é farta e rica quando trata da comple}<i-dade social com que hoje no:-defrontamos, nessa nova realinade global, emque, recuperando r)ff~, ISse ques.. ona até que ponto o trabrJho permanececomo uma categor a sociol6rica chave. Esses autores, na sua maioria, apon-

16 J.P. Fitoussi & P. Rosanvallon, Le nouve/ âge des inegalités (Paris: Seuil, 1996), especialmente

o capítulo 1.

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400 Amélialohn

social associa-se assim a raJicatização das segmentações e desigualdadessociais estruturalmente pre ,entes na sociedade brasileira. Dos inúmerosexemplos que nos saltam aos olhos talvez seja a violência em suas distintasformas de manifef tação, praticada tanto pelos incluídos como pelos excluí-dos, o mais paradigmático dentre eles.

Naturaliza-se a pobreza. Ela agora faz parte de uma fatalidade, frutoda globalização, e portanto criada por um fator externo à nossa realidade. É

eSS.l a mensagem de nossas elites governamentais, 9ue associam na sua~Ii~nça es>lítica represemtantes das oligarquias as mais tradicionais eâõSsetores industriais potencialmente mais modernos, numa estranha combi-._-nação que favorece o retorn,) ao ~ssado: a questão da pobreza passa a serum "problema social" que ganha presença no cenário político quaQdo, e

somente quando, decodificada tecnicamente como "questão social'''. Po~r~-=-_)za é então enfren'ada por meio de ~íticas sociais focalizadas naquelesgrupos identificados segundo determinados parâmetros técnicos como "so-cialmente mais vulneráveis", conclamando-se o setor privado e a sociedadepara colaborarem nessa empreitada que busca promover o "alívio da pobre-za" em que vivem.

Naturaliza-se a pobreza porque a questão social agora passa a ser re-metida, no debate político, a esse campo restrito de alívio da pobreza, toma-da sempre em termos absolutos, e não em termos da desigualdade socialvigente. As propostas de políticas de combate à pobreza advindas de nossaselites políticas vêm assim, na maioria das vezes, acompanhadas de dis-

cursos sobre a_=,~assez d.e recursos 0~9!l'?:~tá.ri()sp~r~.Ja.!1.to,_sol>..r~~...ineficiência inerente a tudo o que venha a s~~e.statal, asdistorções qu~inquestionavelmente existem na apropriação dessas políticas por par.te 9.0S..-)

distiritos segmentos sociais, se~pre em detrimen!.9 d~~ -m~~ p()br~s ~_d~~ Ipobres, e sobre a necessidade de _se.buscar nov~s.fo.r.mas çle solidarjç.cia.d~ \social, uma vez que "o Estado não pode fazer tud.Q'~,_ __)

É portanto pautado nesse ideário que se opõe o atrasado ao moderno,num jogo invertido, em que o que anteriormente era concebido como mo-derno - os direitos sociais -, passam hoje a ser classificados como produtodo atraso, ou do que vem sendo denominado pelos governantes atuais comosendo de uma obtusa postura de "fracassomania" por parte dos seusopositores.-' A política que vem sendo atualmente praticada consiste, pois, em trans-

por para a esfera da responsabilidade privada a garantia. da satisfação de

.'I !~I

.

Aquestõo social no Brasil:o diffcil construçõoda cidadania 401

determinadas necessidades sociais básicas: família, vizinhança, filantropia,enfim, através de novas e velhas redes sociais, a ser revividas e construídas.No entanto, essa proposta vem sendo praticada numa sociedade com umdos maiores índices de Gini, de 0,59, atestando uma situação de brutal desi-gualdade social, fruto da absurda concentração de renda vigente no país: aose comparar o rendimento dos 40% mais pobres da população com os 10%mais ricos, verifica-se que a renda média destes é nada menos que 20,6vezes maior que a daqueles.17

Só esse dado deixa suficientemente claro que ao mesmo tempo que sefala na necessidade de políticas e programas de combate à pobreza - para

tanto criando-se fontes alternativas e no geral ad hoc de recursos -, e quesão aprésentados e implementados programas nesse sentido, tal realidadecom tamanha desigualdade social demanda necessariamente a presença do

Estado, uma vez que sua função redistributiva torna-se central e crucial.._O que está em jogo portanto, hoje, não é a questão do tamanho do

Estado, mas sim de qual o Estado necessário para se enfrentar o desafiorepresentado pela crescente distância que vem se dando no país entre de-mocracia formal e democracia real. Ou, noutros termos, o desafio hoje con-siste em se bus~.,!_~o~as formas de se articular o binômio desenvolvimento

_ e democraci~~~~!lf!.<?~~~_~!1to das desigualdades sociais, o que implica.resgatar iic;ntralidade do Estado, e mais do que isso, a democratização do

próprio Estado, até hoje não ati~gida, apesar de a "Constituição Cidadã" de1988 garantir ~números espaços de participação social sediados nos Conse-lhos Nacionais (e seus equivalentes estaduais e municipais) sobretudo naárea social.

.

Considerações finais: nem tudo está perdido

Em que pese a complexidade da situação atual, parece que, felizmen-te, nenhuma experiência contemporânea nega o fato de a história continuarsendo produto das lutas sociais. O que se revela necessário então é exata-mente desenvolver a sensibilidade e o instrumental necessário para, de umaparte, se detectar e compreender os novos espaços de construção de identi-

17 IBGE, Síntese de indicadores sociais - 1998, Rio de Janeiro, IBGE, 1999.

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402 AméliaCohn

dades sociais que vêm se constituindo, e sua outra ponta, o Estado, semcontudo se abandonar o arsenal teórico, e suas conseqüências empíricasimediatas, relativo às dimensões estruturais de sua conformação.

Trata-se, portanto, de ultrapassar as velhas fronteiras clássicas quedelimitam o espaço da política numa ordem burguesa, e que na atualidadevem se traduzindo na destruição do espaço público no país. O que não sepode negar, hoje, e nesse caso até favorecido pela sua diversidade, riqueza,e imen~idão, é que este país se transformou num enorme laboratório deexperiências locais de constituição de novos espaços de construção de no-vas identidades sociais, e de novos padrões de integração social, até o mo-mento rebeldes ao nosso modo clássico de pensar e interpretar essesfenômenos.

E se o país ainda enfrenta os efeitos da forma singular em que aqui sedeu a revolução burguesa, como analisa Florestan Fernandes,18 isso nãosignifica que se esteja num círculo de ferro que impeça de se lutar pelaconstrução de uma ordem social mais democrática, em que se supere de veza subordinação das questões sociais aos ditames dos parâmetros éconômi-cos, herança ainda não suplantada do período de predomínio do ideáriodesenvolvimentista. Até p0rque, à época, desenvolvimento vinculava-se àgeração de empregos, e estes ao acesso a determinados direitos sociais; oavesso portanto da realidade atual.

A grande tarefa que ainda está para ser enfrentada neste país consisteportanto em efetivamente se constituir e consolidar uma ordem democrática.

Desafio não de pequena monta, uma vez que implica deslocar a questão so-cial do âmbito da pobreza para o da desigualdade social, vale dizer, de trans-formar a questão social numa questão redistributiva de riqueza e poder.

Ii Florestan Fernandes. A revolução burguesa no Brasil - Ensaio de interpretação sociológica(Rio de Janeiro: Zahar. 1979). Um resumo analítico dessa mesma obra encontra-se em LourençoDantas Mota (qrg.), Introdução ao Bra~'il . Um banquete no trópico (São Paulo: Editora SENACSão Paulo, 1999).

..

A questõo social no Brasil: a difícil construçõo do cidadania 403

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