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A dualidade do discurso: conhecimento e dominação através do Códice
Florentino – Bernardino de Sahagún, México, 1588.
Daniella Machado Fraga1
Resumo: O presente artigo visa problematizar a construção do discurso do franciscano
Bernardino de Sahagún (1499- 1590) através do estudo da sua obra: O Códice Florentino
(1588). O caráter teológico e político e sua circulação entre os diferentes atores sociais são
capazes de nos revelar os traços fundamentais das tensões e a legitimação da dominação
presentes em uma obra que possuía ao mesmo tempo o cunho religioso e abordagens
gramaticais. Logo, as especificidades do discurso do franciscano serão importantes para a
compreensão dos sentidos a respeito da missão e dominação religiosa no México no século
XVI.
Palavras-chaves: Discurso. B.Sahagún. Códice Florentino. México. Evangelização.
Abstract: This article aims to discuss the construction of the Franciscan Bernardino de
Sahagún's speech (1499- 1590) through the study of his work: The Florentine Codex (1588).
The theological and political character and its circulation among the different social actors are
able to reveal the fundamental traits of the tensions and the legitimacy of the present
domination in a work that had both the religious nature and grammatical approaches. Soon the
Franciscan speech specifics will be important for understanding the senses about the mission
and religious domination in Mexico in the sixteenth century.
Key-words: Speech.Sahagún. Florentine Codex. Mexico.Evangelization.
Analisar a construção do discurso religioso na América do século XVI é compreender
que a produção literária, as epístolas, os sermões bem como os catecismos possuíam uma
dupla condição de servir como referencial de conhecimento sobre as diferentes culturas e
também como instrumentos que facilitavam o processo de dominação cultural durante a
colonização. Desse modo, o presente artigo visa problematizar a construção do discurso do
franciscano Bernardino de Sahagún (1499- 1590) através do estudo da sua mais famosa obra:
o Historia General de las cosas de la Nueva España (1588).
1 Daniella Machado Fraga, mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS – UFRJ); Bolsista FAPERJ. Trabalho sob orientação da professora Dra. Juliana Beatriz Almeida de Souza. E-mail: [email protected]
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Reconhecido por muitos estudiosos como primeiro etnógrafo da América, o
franciscano Bernardino de Sahagún representou um dos mais atuantes religiosos que
contribuíram no processo de conquista territorial e cultural empreendido pelos espanhóis nos
séculos XVI e XVII no México. Autor de diversas obras acerca da cultura nativa pré-
hispânica e defensor do conhecimento das experiências socioculturais anteriores à presença
espanhola como estratégia para eliminação das práticas idolátricas, Bernardino de Sahagún
foi acusado muitas vezes de compactuar com a perpetuação dos costumes nativos.
A ação evangelizadora de Sahagún bem como sua produção demonstraram uma
estratégia distinta da tradicional vertente do processo, empreendido nos anos inicias de
conquista militar e espiritual. A diretriz original de destruição de todo o material proveniente
das culturas ameríndias produziu o que Sahagún denominou de “cristianização equivocada”,
que provocaria erros de interpretação acerca dos rituais de adoração, os festejos e as
interpretações sobre os sentidos práticos da cristianização católica.
A destruição dos códices, do material artístico e da substituição dos templos, segundo
a concepção do franciscano, contribuiria para a difusão da idolatria, prática esta que seria a
principal preocupação das diferentes ordens religiosas que se estabeleceram no México, a
partir de 1493. A destruição do templo em honra à deusa-mãe Tonatzin no Monte Tepeyac
que deu origem à primeira igreja em honra a Nossa Senhora de Guadalupe, em 1531, tornou-
se objeto de preocupação do franciscano, que criticou e apresentou desconfianças sobre se a
possível transposição de imagens representaria, de fato, o êxito no processo de cristianização.
Era preciso, portanto, conhecer para dominar e isso só seria possível a partir do
recolhimento de informações que fornecessem subsídios suficientes para a identificação de
elementos idolátricos. O culto a Nossa Senhora de Guadalupe seria confundido
paulatinamente com as antigas práticas ameríndias, portanto, segundo o franciscano, deveria
ser analisado com bastantes ressalvas. Assim, compreender, a partir da leitura de sua obra,
quais os critérios utilizados por Sahagún para diferenciar práticas pagãs e devoções católicas
deverão guiar nossa análise:
El médico no puede acertadamente aplicar las medicinas al enfermo sin que primero conozca de qué humor o de qué causa procede la enfermedad. De manera que el buen médico conviene sea docto en el conocimiento de las medicinas y en el de las enfermedades, para aplicar conveniblemente a cada enfermedad la medicina contraria. Los predicadores y confesores, médicos son de las ánimas; para curar las enfermedades.2
2 SAHAGÚN, Bernardino. Historia General de las cosas de Nueva España- Manuscritos IMP/16, 2,22-23- Biblioteca Nacional- Livro I, Prólogo.
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Observamos na citação acima, a comparação feita por Sahagún em relação aos
esforços evangelizadores dos religiosos com o trabalho de um médico. Para que se aplicasse a
cura de doenças, o médico deveria conhecer a suposta enfermidade, caso contrário, a cura não
se estabeleceria. Desse modo, podemos perceber que as práticas culturais nativas são
compreendidas pelo franciscano como uma enfermidade, algo que deveria ser conhecido e
reconhecido para, então, efetivar o processo de evangelização a partir da pedagogia cristã
franciscana. Reconhecer o “outro” como um agente cultural seria inadmissível a partir do
olhar etnocêntrico que norteou o processo de conquista mexicana, a partir de 1521. Contudo,
era necessário aproximar-se e reconhecer essas estruturas para eliminar as possíveis idolatrias,
resultantes de interpretações equivocadas acerca da fé católica.
A figura de Bernardino de Sahagún certamente foi lida, vista e revisitada de diferentes
formas ao longo do tempo pelos seus principais biógrafos. A utilização destes referenciais
biográficos nos é crucial para nos aproximarmos do contexto, não com o propósito de
reconstituí-lo e, sim, com a intenção de estabelecer uma relação de reciprocidade entre a
personagem, no caso o franciscano, e seu campo de atuação. Assim, traçar o perfil de
Bernardino de Sahagún é problematizar a conexão entre sua experiência individual, sua
geração e, consequentemente, sua produção intelectual.
Existem interessantes trabalhos sobre a biografia do frei e sobre aspectos muito
concretos de seus diferentes escritos. Contudo, foi somente a partir do século XIX que
historiadores começaram a delinear a figura de Sahagún. Este movimento estava inserido no
crescimento do interesse pela etnohistória e a antropologia do México Antigo respaldado nos
interesses de conhecer e reafirmar as políticas de memória do nacionalismo mexicano no final
do século XIX.3
Antes disso, as informações catalogadas acerca da trajetória de Sahagún até o século
XVIII eram feitas pelos próprios companheiros da ordem. As primeiras notícias são dadas
pelos também franciscanos e discípulos das ações sahagutianas, os frades Jerónimo de
Mendieta, na obra Historia Eclesiática Indiana de 1596, sendo o primeiro a se debruçar sobre
os escritos de Sahagún, e Juan de Torquemada, que o cita em sua Monarquia Indiana de
1612.
No decorrer do século XVII e XVIII a tendência pelas pesquisas entre os próprios
3As novas preocupações de pauta entre os historiadores procuravam dar voz aos oprimidos e conhecer os relatos daqueles que foram vencidos, inseria-se no fortalecimento da construção do nacionalismo e patriotismo mexicano que legitimavam as razões históricas que norteariam o México independente. Para mais, consultar: CAÑIZARES- ESGUERRA, Jorge. Como escrever a História do Novo Mundo: Histórias, Epistemologias e Identidades no Mundo Atlântico do século XVIII. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011.
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companheiros da ordem vão sendo adicionadas aos interesses da Ilustração e do
Neoclassicismo. Conhecer aquele que se esforçou em inteirar-se do passado das antigas
civilizações ameríndias estava entre as preocupações de Juan Bautista Muñoz com sua
Cosmografia Mayor de Indias de 1770 e Angelo Maria Bandini e sua publicação do Códice
Florentino em 1793.
Finalmente durante o XIX e XX, podemos destacar os esforços de Francisco del Paso
y Troncoso, que, em 1889, a partir do inquérito em fontes documentais, tanto de autores
indígenas e espanhóis do século XVI, levou-o a publicar seus trabalhos na revista
Proceedings, da National Museum of México. Uma de suas maiores contribuições foi
apresentar o trabalho até então inédito e quase esquecido de Sahagún, que foi apresentado em
Florença dando à publicação o título: História Geral das Coisas da Nova Espanha. Em
Madrid, produziu uma edição parcial dos primeiros registros manuscritos do Historia General
conhecidos como Códices Matritenses divididos em cinco volumes em 1907.
Podemos destacar também as correspondências trocadas entre Paso y Troncoso e
Joaquín García Icazbalceta no início do século XX. Grande historiador, parte do movimento
de construção do nacionalismo mexicano, Joaqúin García Icazbaceta reuniu importantes
materiais históricos sobre o México: crônicas, livros, manuscritos, documentos originais a
partir do século XVI. Visando publicar a biografia de Sahagún, Icazbalceta consultou os
principais dados da vida do franciscano a partir de perguntas e reflexões em cartas trocadas
entre ele e Paso y Troncoso. A biografia nunca foi publicada, mas as cartas trocadas são de
um imenso valor científico para quem estuda a trajetória do franciscano.
Não podemos deixar de citar os trabalhos de Miguel León-Portilla com seu Bernadino
de Sahagún- pioneiro de la Antropología de 1987 que ganhou uma nova versão em 1999
celebrando os 500 anos do nascimento do franciscano. Seu trabalho é considerado juntamente
com o de Icazbalceta os mais completos sobre a análise do panorama intelectual e religioso
vivenciado por Sahagún naquele momento. Ele também alcançou o reconhecimento através
da tradução, interpretação e publicação de várias coleções de obras em náhuatl. Leon-Portilla
liderou um movimento para entender e reavaliar a literatura Nahuatl, não só a partir da era
pré-colombiana, mas na contemporaneidade, porque o Nahuatl continua a ser a língua
materna de 1,5 milhões de pessoas na América Latina.
Desse modo, aos estudarmos a biografia de Sahagún, podemos perceber que o
religioso opta por determinadas ações, pois está inserido em um campo que norteia suas
posições ideológicas, além das relações com os habitus completamente distintos entre as
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populações indígenas e os espanhóis4. Embora estas duas sociedades estivessem dentro de um
mesmo campo, regidos sobre o mesmo contexto histórico, os princípios geradores de todas as
práticas e escolhas particulares são norteadas a partir do habitus da sociedade, segundo
Bourdieu. Isto explica as diferentes percepções e interpretações e as distintas formas de
posicionamento entre os próprios religiosos5, ou seja, uma mesma prática pode abranger
múltiplos significados, seja entre nativos e espanhóis, ou entre espanhóis de uma mesma
ordem inclusive.
Segundo a concepção Bourdiesiana, é impossível pensarmos uma obra ou a atuação de
uma personagem histórica por ela mesma sem a compreensão do campo de possibilidades aos
quais está inserido. A relação campus/habitus, segundo Bordieu, se dá pela mediação entre o
objetivismo e o subjetivismo e, dessa relação, as posições ocupadas pela personagem
conferem o que o autor entende por trajetória. Assim, o estudo das trajetórias individuais
deve ser compreendido através das constantes tensões e um sistema gerador de práticas e
representações como defende o autor.
Logo, as ferramentas bourdiesianas tornam-se indispensáveis no estudo de trajetórias e
representações individuais. E, por isso, a análise do material produzido por Bernardino de
Sahagún virá acompanhada da percepção do espaço social vivido pelo franciscano e de que
maneira ele atua, se adapta e ressignifica seus arcabouços intelectuais em sua formação como
um agente franciscano. As formas de pensar e agir deverão ser legitimadas se consideradas a
experiência ou a estrutura no qual o agente, no caso, Sahagún, estaria inserido.
Seu ingresso na ordem franciscana ocorre em torno de 1524. Tornou-se professor do
Convento de Franciscanos de Salamanca e partiu, cinco anos mais tarde, em 1529, para o
recém conquistado México em missão com outros dezenove religiosos encabeçados por Frei
Antônio de Ciudad Rodrigo6, permanecendo no México até sua morte em 1590. Dedicou
quase toda a sua vida aos estudos linguísticos e culturais ameríndios e, por isso, é considerado
um dos fundadores do estudo de linguística náhuatl e da Etnologia moderna, através de seus
métodos de investigação e recolhimento de informações utilizados pelos pesquisadores para a
4 Nossa análise teve como referência os conceitos elaborados por Bourdieu para facilitar a compreensão dos pensamentos e ações de Sahagún. Neste sentido, cabe salientarmos as noções de trajetória, campo e habitus propostas por Bourdieu. Segundo o sociólogo, trajetória é o resultado construído a partir de um sistema de traços pertinentes, formando marcas geradas pelo habitus, definido como matriz geradora de práticas e sistemas de disposições socialmente construídos em um campo. 5BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007. 6Frei Antonio de Ciudad Rodrigo fez parte da comitiva dos doze primeiros franciscanos, conhecidos como os apóstolos do Novo Mundo, que desembarcam no México em 1524, incentivados por Hernán Cortés. Mais tarde viria se tornar chefe da Intendência dos franciscanos, no qual Bernardino de Sahagún possuía estreitas relações.
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emersão de uma cultura distinta.
Em 1493, os primeiros franciscanos chegaram à Nova Espanha. Em 1523, através das
chamadas Ordenanzas sobre o Descubrimiento de Felipe II, houve a sistematização da vinda
das missões religiosas no Novo Mudo. Em 1526, chegaram os dominicanos e, mais tarde, em
1533, os agostinianos. Estima-se que em meados de 1550, o território mexicano contava com
400 franciscanos, 210 dominicanos e 112 agostinianos.
Em 23 de junho de 1524, chegaram os doze franciscanos à Cidade do México. Com
eles se iniciou o processo sistemático de evangelização, através de métodos e normas
estabelecidas pela ordem, enfrentavam variadas adversidades. Esses freis tinham que viajar a
pé, percorrendo distâncias consideráveis em zonas geográficas muito acidentadas e variados
tipos de clima. Além disso, se depararam também com a resistência indígena e a dificulade de
comunicação devido às inúmeras línguas presentes no território, assim, demostravam a
necessidade de conhecê-las e cortar o mal pela raiz.
Los primeros frailes franciscanos que vinieron designados por Carlos V fueron Fray Juan de Tecto y Fray Juan de Ayora, áquienes acompañó el famoso lego Fray Pedro de Gante. Llegaron en el año de 1522, y desde luego se dedicaron á la instrucción delos índios. Fray Pedro de Gante se estableció en Texcoco con Fray Juan de Ayora, y fundó una escuela en donde les enseñaba la doctrina cristiana, a leer, a escribir, a cantar y tocar algunos instrumentos músicos. Fray Juan de Tecto pasó á México con igual propósito; y aunque no pudo conseguirlo, logró aprender la lengua mexicana. Después vinieron los doce frailes llamados los primeros. Fueron : Fray Martin de Valencia, custodio, Fray Francisco de Soto, Fray Martín de la Coruña, Fray Juan Juárez, Fray Antonio de Ciudad Rodrigo, Fray Toribio de Benavente, llamado después Motolinía, Fray García de Cisneros, Fray Luis de Fuensalida, Fray Juan de Rivas, Fray Francisco Jiménez y los legos Fray Andrés de Córdova y Fray Juan de Palos. Entraron em México el 23 de Junio de 1524, según Betencourt.”7
Nesse sentido, Ricard8chama atenção para o fato de que estas ordens religiosas
tiveram de adaptar seus dispostos originais para atuarem na América. O processo de
evangelização afetou diretamente as ordens, à medida que o ambiente de incertezas e de
intercâmbios culturais trouxe fragilidades às diretrizes iniciais das ordens.
Em 1517, com cerca 50 mil frades: 30 mil observantes (Gómez Canedo, 1977: 23). A autoridade suprema da ordem, capaz de assegurar sua unidade jurídica, era o ministro geral, eleito, a partir de 1517, de seis em seis anos. A cada nova eleição, realizada em um Capitulo Geral, o ministro que deixava o cargo deveria fazer uma exposição de seu mandato. O capítulo era também o supremo corpo legislativo da ordem e as suas reuniões deveriam comparecer dois representantes de cada província americana: o ministro provincial – ou seu
7Consultar o seguinte documento: CHAVERO, Alfredo, 1841-1906.Boletín de la Real Academia de la Historia, tomo 40 (1902), pp. 517-529. página 521. 8RICARD, Robert. La conquista espiritual de México. México: Fondo de Cultura Económica, 1994.
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lugar-tenente – e um “custódio”, eleito, nos capítulos provinciais, para desempenhar funções de procurador em Roma ou na Espanha.”9
A ordem franciscana, por ter sido a primeira a se fixar no México, seguida de
dominicanos, estabeleceu as principais diretrizes dos aspectos evangelizadores. A organização
de escolas e oficinas indígenas sob a tutela franciscana demonstra, assim, o valor dado pela
ordem ao ensino não somente dos preceitos católicos, mas, sim, dos valores referenciais
europeus, através das instituições franciscanas, como o Colégio de Santa Cruz de Tlatelolco,
cuja atuação de Sahagún foi tão importante, como veremos adiante.
Quando implementada na América, essa organização administrativa ganhava novos
contornos. Originalmente missionária, a ordem franciscana manteve sua característica
fundamental na América. Evangelizar através de métodos persuasivos passou a ser o centro de
preocupações dos franciscanos que chegaram à América a partir de 1524. A evangelização
pedagógico-religiosa enquanto finalidade educacional cristã segue os seguintes critérios:
ensino, catequese, evangelização, conversão e adaptação ao cristianismo10.
Especificamente na América, esses métodos ganharam contornos políticos à medida
que as ações missionárias contribuíram diretamente para o processo de conquista territorial na
formação das sociedades coloniais. Através do repúdio às antigas crenças ameríndias, a
evangelização pautada no ensino deveria ser vigilante aos desvios de fé e idolatria
funcionando, assim, como a garantia da nova ordem social, cristã-católica, estabelecida. As
tensões sobre os significados entre bem e o mal, entre as devoções Católicas e as heresias
demonstram o clima de tensões naquele momento.
Entre 1524 e 1577, processo que se iniciou com a chegada dos doze franciscanos até a
proibição dos escritos de Bernardino de Sahagún, podemos perceber as transformações que
contribuíram para a formação de uma nova ordem sociocultural, cuja conquista, embalada
pelo sentimento de euforia da dominação militar e territorial fortaleceu o projeto catequético
desenvolvido pelas ordens religiosas, sobretudo pelos franciscanos. Era na Nova Espanha, que
se poderia estabelecer através do empenho das ordens a vontade divina.
Luis Estevam11 propõe reflexões acerca do perfil dos franciscanos que chegaram à
América. Seria possível traçar um perfil único que nortearia as ações desses evangelizadores?
O autor defende que, se seguirmos essa diretriz, deveríamos afirmar que Sahagún e outros
9FERNANDES, L. E. O franciscanismo espanhol em terras americanas: Os irmãos menores na Nova-Espanha do século XVI. IN: Revista Aulas; Dossiê Religiões. N. 04( abril 20007- julho de 2007) p.4. 10 Idem 11. 11FERNANDES, L. E. O franciscanismo espanhol em terras americanas: Os irmãos menores na Nova-Espanha do século XVI. IN: Revista Aulas; Dossiê Religiões. N. 04(abril 20007- julho de 2007).
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franciscanos contemporâneos a ele, como Montolínia e Mendieta, seguiriam uma mesma
matriz espanhola e tiveram de se adaptar às especificidades americanas. Contudo, estudar a
atuação desses religiosos franciscanos é ir além da concepção maniqueísta e estática e pensar
as inúmeras possibilidades que não necessariamente remeteriam a um passado único. Assim,
devemos considerar inclusive o diálogo com as outras ordens religiosas. Para legitimar esse
ponto de vista, Luis Estevam destaca as palavras do pesquisador Lino Goméz Canedo acerca
dessa problemática:
Con respecto a los franciscanos las dificultades para um tal entendimiento son mayores, por tratarse de una Orden cuya organización – quizá en parte por el gran número de frailes con que contó siempre y su enorme extensión por todas las regiones de la tierra – adoptó formas poco rígidas, que dejaban mucho campo a la iniciativa individual, favoreciendo así los movimientos reformistas dentro de la misma. Ello dio origen a modalidades especiales de gobierno, de alcance internacional, nacional o regional, y al desarrollo de una mentalidad muy variada de acuerdo con tales movimientos, e incluso dentro de cada grupo reformista.12
A Reforma Católica, pautada em uma tentativa de moralização da Igreja que culminou
na organização do Concílio de Trento, teve seus contornos particulares na Espanha. Em 1492,
seguindo recomendação do Cardeal Mendoza, Arcebispo de Toledo, o franciscano Francisco
Ximénez de Cisneros foi nomeado confessor da Rainha Isabel, cargo que aceitou com a
condição de poder continuar vivendo em monastério, assistindo à Corte unicamente quando
fosse convocado. Na mesma época, foi eleito provincial de sua ordem em Castela. Em 1495,
sucedeu a Mendoza como Arcebispo de Toledo, agregando o título à chancelaria de Castela
oferecido por Fernando e Isabel. Ocupando esses cargos, Ximénez foi responsável pelo
movimento conhecido como pré-reforma espanhola, em que modificou instituições estatais e
eclesiásticas. Podemos, destacar, assim, a chamada Reforma de Cisneros13 que tratou de
incentivar a revitalização dos estudos bíblicos e teológicos e, além disso, mais uma
reorganização institucional e reforma do clero, tanto regular e secular, que fez a Igreja
Espanhola em um mecanismo disciplinado, estreitamente ligada à política e aos interesses da
monarquia durante o Antigo Regime.
Durante sua atuação como arcebispo de Toledo, ele empreendeu a fundação da
Universidade de Alcalá (1508), que se tornou um modelo para a formação e reprodução da
elite dominante, tanto da monarquia como da Igreja Católica. O programa de reforma também
incluiu, a fim de relançar a religiosidade popular, a tradução castelhana de obras selecionadas 12 NEVES, L.F.B. O Combate dos soldados de Cristo na Terra dos Papagaios: Colonialismo e repressão cultural. Rio de Janeiro: Forense-Universitaria, 1978. 13GARCÍA ORO, J. Cisneros y la reforma del clero español en tiempo de los Reyes Católicos. Madrid: CSIC, 1971
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da teologia e da Bíblia (especialmente das Epístolas e Evangelhos). A leitura dos clássicos
greco-romanos e o aprendizado das línguas orientais fizeram parte de um contexto muito
próprio na formação de religiosos e, claro, de Bernardino de Sahagún e seus contemporâneos.
Um pequeno trecho das Constituições da Universidade de Alcalá nos sugerem a importância
dada ao ensino de línguas orientais: “porque algunos religiosos y otras personas, inflamadas
del celo de la fe y del amor de Dios, suelen tener el deseo de aprender las lenguas para poder
difundir mejor la palabra divina”14
A chamada pré-Reforma acabou inflenciando demasiadamente as leituras dos
cronistas franciscanos que foram para a Nova Espanha. Os nodos parâmetros contribuíram de
alguma forma nas diretrizes pedagógicas de outras universidades como a de Salamanca (berço
de formação de Sahagún) e alguns conventos da ordem franciscana. Luis Estevam 15 destaca
que o Convento de San Gabriel de Extremadura, de onde vieram os doze primeiros
franciscanos, possuía como cerne a defesa de aprendizado das línguas indígenas que culminou
na primeira grámatica náhuatl, em 1555. Como veremos na seguinte citação:
Inúmeros irmãos menores, na Nova Espanha, afirmaram esses valores: Jerônimo de Mendieta reafirma, a todo o tempo, a importância de conhecer a língua das indígenas. Motolinía, antes dele, fizera o mesmo. Bernardino de Sahagún e Andrés de Olmos chegaram a estudar diversos outros aspectos das culturas autóctones da Nova Espanha. Todos eles afirmavam algo muito próximo com o trecho das Constituciones de Alacalá mencionadas acima (na verdade, referindo-se a ensinamentos de Agostinho): conhecer a língua e costumes pagãos para convertê-los por completo, erradicando o pecado pela raiz.”16
Desde a Bula Inter Coetera17 em 1493, a evangelização dos ameríndios deixou de ser
apenas um dever moral tornando-se uma obrigação jurídica. Desse modo, as ordens religiosas
iniciaram seu processo pedagógico que procurava inicialmente destruir a cultura ameríndia
através dos ensinamentos dos preceitos católicos europeus. A construção de igrejas, de
escolas, o incentivo aos batismos- inicialmente apenas destinados à nobreza indígena e que,
depois, se estenderam aos demais- foram importantes para a institucionalização dos
mecanismos de evangelização.
14BATAILLON, M. Erasmo Y España: estudios sobre la historia espiritual del siglo XVI. México, Fondo de Cultura Económico, 1986. p.18-19. 15Este debate está inserido no seguinte texto produzido pelo autor: O franciscanismo espanhol em terras americanas: Os irmãos menores na Nova Espanha do século XVI. Publicado em: Revista Aulas –Dossiê Religião. N. 04/ abril de 2007. 16 Idem 45.p.8 17 A Bula Inter Coetera, foi definida como um tratado em maio de 1493 pelo Papa Alexandre VI onde ficou estabelecida a divisão do mundo entre Portugal e Espanha. No contexto de Expansão Marítima as duas Coroas saíram na frente na conquista de territórios além-mar demonstrando o poder de influência e decisão da Igreja Católica na conquista dos novos territórios.
10
Los que miran y consideran las cosas conforme à la calidad y necesidad de cada una dellas, no enseñan indiferentemente à los niños hijos de los indicios, sino con mucha diferencia, porque à los hijos de los principales, que entre ellos eran y son como caballeros y personas nobles, procuran de recogerlos en escuelas que para esto tienen hechas, adonde aprenden à leer y escribir y las demás cosas que abajo s e dirán, com que se habilitan para el regimiento de sus pueblos y para el servicio de las iglesias, em lo cual no conviene que sean instruidos los hijos de los labradores y gente plebeya.18
Nesses locais, se faziam valer as etapas tradicionais de ensino franciscano: a
catequese, a evangelização, a conversão e a adaptação. Nas escolas primárias ensinavam-se a
educação moral (pelo olhar europeu), a leitura, escrita e a doutrina cristã. No ensino
secundário ou técnico, o aprendizado dos ofícios e de trabalhos manuais (importantes para a
produção da arte sacra) e, finalmente, o ensino terciário cujo o ensino estava pautado na
gramática, na retórica, na filosofia e no latim (como no caso do Colégio de Santa Cruz de
Tlatelolco). Os preceitos teóricos professados nas escolas estavam reunidos no Códice
Franciscano19 que traduzia, assim, os instrumentos, práticas e viabilidades observadas na
evangelização.
O Historia General,produzido entre 1545 e 1578, reúne os mais variados temas acerca
da organização social, cultural e política das populações astecas anteriores à conquista
espanhola, em 1521. Conhecido também como Códice Florentino, por ter sido preservado na
Biblioteca de Florença20, na Itália, este material é referência para a compreensão dos
principais hábitos culturais ameríndios. Além do objetivo informativo, a obra, segundo o
próprio franciscano, serviria como um dicionário que facilitaria a comunicação entre as
diferentes composições linguísticas presentes na sociedade colonial mexicana21.
O Códice Florentino possui como estrutura a divisão em doze livros repartidos em
quatro volumes e, depois disso, encadernados em três volumes, a estrutura escolhida é o
registro feito em colunas. A coluna da direita é escrita em espanhol e da esquerda, em náhuatl,
além de uma terceira coluna, contendo um glossário e intervenções de Sahagún. É observada
18Códice Franciscano, 1941, p. 55. 19 Manual de conduta da ordem franciscana criada em 1523 que norteava os principais instrumentos no processo de evangelização no México. 20 Em 1576, o monarca Felipe II, acreditando que Sahagún se aproximara demasiadamente da cultura pré-hispânica, ordena o recolhimento de todo o material produzido pelo franciscano, que incluía também o manuscrito do “Historia General de las cosas de la Nueva España”. Dessa forma, a fim de preservar o conteúdo do referido material, Sahagún entregou uma cópia ao intendente da ordem franciscana, frei Antonio de Ciudad Rodrigo, que o leva até a Biblioteca de Florença, na Itália e, portanto, a obra passa a ser conhecida também como Códice Florentino. 21 Segundo Sahagún, o “Historia General de las cosas de la Nueva España” possuía o objetivo de esclarecer quais eram as possíveis condutas que poderiam confundir os religiosos e esconder as práticas pagãs que, sem um conhecimento prévio, mascarariam a adoração aos ídolos astecas.
11
uma ordem hierárquica nos temas abordados estruturados em: Assuntos Divinos, Assuntos
Humanos e Assuntos da Natureza e dos Animais. No último livro, o tema da Conquista, a
partir da visão indígena, também é abordado. No prólogo, Sahagún definiu que os objetivos
do recolhimento destas informações deveriam ser a construção de um acervo indígena que
serviria como base para a organização de um vocabulário e para o reconhecimento das antigas
práticas culturais, à medida que, segundo o franciscano, a cristianização estaria sendo feita de
maneira superficial. Era necessário conhecer para dominar.
O texto foi composto através do recolhimento de informações dadas pelos informantes
de Sahagún. Geralmente, parte da nobreza indígena, alunos de Sahagún, caciques e anciãos
conhecidos como principales que respondiam aos questionários elaborados por ele com a
ajuda de seus alunos. A obra, composta por três vertentes de conteúdo, continha o texto em
náhuatl e em espanhol, além de imagens e intervenções de Sahagún através de prólogos e
comentários. A estrutura escolhida foi justificada por Sahagún como forma de garantir uma
suposta fidelidade destas informações.22
Este material produzido pelo franciscano transmitia as interpretações dadas por ele, a
partir de seus imaginários, sobre o conjunto complexo de culturas presentes anteriormente no
território americano, antes da chegada dos europeus. Mesmo com a presença de tradutores
indígenas, estas informações poderiam ser consideradas, por elas mesmas, mestiças à medida
que os fluxos de informações dadas não necessariamente correspondessem às realidades. O
que foi interessante mencionar, o que supostamente não foi dito e as interpretações de
Bernardino de Sahagún faz desta obra, simultaneamente, um referencial de evangelização
bem como de flexibilização e atuações indígenas para além do que fora permitido no período
colonial.
Em 1536, com a autorização de Carlos V e do vice-rei Don António de Mendoza, o
arcebispo do México Juan de Zumárraga fundou o Imperial Colégio da Santa Cruz de
Tlatelolco, e Bernardino de Sahagún passou a lecionar latim na instituição. O Colégio instruía
acadêmica e religiosamente aos jovens da nobreza indígena conhecidos pelos espanhóis pelo
termo principales - geralmente indivíduos pertencentes às famílias formadoras, grandes
proprietários de terras e comerciantes. Com algumas interrupções, frei Bernardino estaria
ligado ao Colégio até a sua morte. Ali formou alunos que logo seriam os seus colaboradores
22 LEÓN-PORTILLA, Miguel. De la oralidade y los códices a la Historia General; transvase y estructuración de los textos alegados por Fray Bernardino de Sahagún. Estudios de Cultura Náhuatl. México, p.65-141,1999.
12
nas pesquisas sobre a língua e a cultura náuatles. António Valeriano de Azcapotzalco23, por
exemplo, foi o responsável pela organização do primeiro relato em língua náhuatl sobre da
aparição de Nossa Senhora de Guadalupe.
Aunque Mendieta habla de que se reunieron allí al pie de cienniños o mozuelos de diez o doce aros, higos de los señores y principales de los mayores pueblos o provincias de la Nueva España, trayendo dos o tres de cada cabecera o pueblo principal porquetodos participasen del beneficio; el mismo obispo dice que en un principio fueron 60, y el virrey lo repite refiriendo que entraronen su presencia con sus hopas y artes. La elección y envío de los niños al Colegio se había hecho con eficacia, así por ser mandatodel virrey, como porque los religiosos de los conventos poníandiligencia en escoger y nombrar, en los pueblos donde residían, à los que les parecían más hábiles.24
O Colégio de Santa Cruz Tlatelolco, de maneira sistemática e prolongada, com um
intenso programa pedagógico, uma vasta biblioteca e uma intensa rotina de estudos, traduzia
o conhecimento cristão europeu às práticas ameríndias e vice-versa, portanto compreender a
instituição como um pólo de diálogos e negociações entre dois universos culturais distintos
torna-se importante para analisarmos as ações pedagógicas de Bernardino de Sahagún e sua
ideologia missionária. O estudo cuidadoso das metáforas das tradições espanholas e
indígenas, e a busca por expressões que dialogassem com as interpretações indígenas e
espanholas, ou seja, sua preocupação era traduzir histórias cristãs em termos compreensíveis
pelos indígenas. Era necessário, desta maneira, traduzir os dois mundos para ambos
imaginários, segundo a concepção de Sahagún. Sobre o cotidiano do alunado havia um
rigoroso acompanhamento disciplinar administrados pelos professores franciscanos, segundo
o pesquisador Alfredo Chavero na seguinte citação:
Cada colegial tenía su frazada y estera» (petate), y cada uno su cajuela con llave para guardar sus libros y ropilla. Comían juntos en refectorio especial. Al amanecer iban en procesión al coro bajo de la Iglesia à ir misa; pasaban el día en sus estudios; y en la noche eran guardados por vigilantes en su dormitorio, donde siempre ardía luz, así para la quietud y silencio, como para la honestidad.25
23 António Valeriano, nobre letrado indígena, estudou e foi professor no Colégio de Santa Cruz de Tlatelolco dirigido pelos franciscanos. Segundo o próprio Sahagún, Valeriano seria considerado um dos seus alunos mais sábios. Contribuiu diretamente para o fornecimento das informações para a produção do “Historia General de las cosas de la Nueva Espanã”, demostrando, assim a importância dada por Sahagún às negociações com parte dos setores da nobreza indígena. Autor do relato intitulado Nican Mopohua, o primeiro registro em língua indígena acerca da aparição de Nossa Senhora de Guadalupe foi marco dos anos iniciais do culto mariano do México, produzido aproximadamente entre 1552 e 1560. 24CHAVERO, Alfredo Boletín de la Real Academia de la Historia, tomo 40 (1902), pp. 522. Biblioteca Cervantes Virtual. 25Idem 55.
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O aprendizado da língua e o conhecimento das articulações sociais, culturais e
econômicas seriam necessários, segundo a concepção de Sahagún, para efetivar o processo de
evangelização. Segundo ele, o simples processo de substituições de elementos culturais traria
a proliferação de interpretações equivocadas sobre o cristianismo gerando, assim, a chamada
idolatria.
Y si hubiera tenido atención y advertencia a que estos indios hubieran sido instruidos en la gramática, lógica y filosofía natural y medicina, pudieran haber socorrido munchos de los que han muerto; porque en esta ciudad de México vemos por nuestros ojos que aquellos que acuden a sangrarlos y purgarlos como conviene, y con tiempo, sanan. (SAHAGÚN, 1988, p. 636).26
Embora, o diálogo entre professores e estudantes fosse constante, os franciscanos
reconheceriam a cultura nativa com o objetivo de negá-la. Era preciso desarticular todo o
passado pré-colombiano através da formação de jovens que tratariam de reproduzir o modelo
de imaginário ocidental, monoteísta e cristão. O contexto sociocultural do Novo Mundo
estava pautado, portanto, em uma complexa rede de conflitos de representação, modos de
leitura e percepção lidas no aprendizado do evangelho e na desarticulação dos elementos
nativos.
A questão geracional onde Sahagún está inserido nos é notadamente importante para
entendermos como foram ditadas as diretrizes pedagógicas do processo de evangelização e
como o conhecimento do náhuatl para facilitar a comunicação e a conquista não é algo
particular a pessoa de Sahagún.Desse modo, destacaremos a importância dos freis Toríbio de
Motolínia, Andrés de Olmos e Jerónimo de Mendieta que, inseridos nas múltiplas
transformações percebidas, nesse momento, suas produções e atos são resultados dos
processos de adaptação às demandas americanas, cuja ordem franciscana estaria imersa na
produção de seus discursos, catecismos e doutrinários cristãos.
O franciscano Toríbio de Motolínia, nas primeiras décadas de 1500, já havia se
preocupado em escrever um compilado da língua nativa contendo as principais características
culturais dos povos pré-colombianos, chamado de “Historia de los indios de Nueva España” 27 demonstrando, assim, que Sahagún não inaugurou essa tendência e, sim, fez parte de um
direcionamento de evangelização voltado pelo temor à idolatria a partir do conhecimento da
cultura e da língua.
26SAHAGÚN, 1585. 27LEÓN-PORTILLA, Miguel. Códices; os antigos livros do Novo Mundo. Florianópolis: Editora da UFSC, 2012.
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Toríbio de Motolínia chegou ao recém conquistado México, em 1524, e integrava o
grupo dos doze primeiros franciscanos que chegaram ao Novo Mundo, chamados de “Doce
Apóstolos”. Sua “Historia de los indios” descreveu os rituais religiosos e sacrifícios
observados a partir de sua chagada ao México. Sua leitura é imprescindível para a
compreensão das primeiras impressões sentidas pelos religiosos ao se depararem com as
sociedades ameríndias. Motolínia dedicou-se especificamente às práticas religiosas e Sahagún
mais abrangente na reunião de informações sobre a cultura nativa. Contudo, podemos afirmar
que Motolínia inaugura a aproximação com a cultura náhuatl abrindo caminho para outros
religiosos.
Según los libros antiguos que estos naturales tenían de caracteres y figuras, que ésta era su escritura, a causa de no tener letras, sino caracteres, y la memoria de los hombres ser débil y flaca. Los viejos de esta tierra son varios en declarar las antigüedades y cosas notables de esta tierra, aunque algunas cosas se han colegido y entendido por sus figuras, cuanto a la antigüedad y sucesión de los señores que señorearon y gobernaron esta tan grande tierra [...] De todos éstos, del uno, que es el primero, se puede dar crédito, porque habla la verdad, que aunque bárbaros y sin letras, mucha orden tenían en contar los tiempos, días, semanas, meses y años, y fiestas, como adelante parecerá.28
O também franciscano frei Andrés de Olmos, em 1547, já se preocupava em traduzir a
literatura e as práticas mexicanas presentes nos códices. Através dos diálogos com os anciãos
e os principales nobres astecas, a obra Arte para aprender la lengua mexicana29foi o modelo
para o próprio Sahagún e para muitos outros que se seguiram no Novo Mundo.
Andrés de Olmos chegou ao México, em 1528, e sua atuação entre os nativos foi
fundamental para o conhecimento sobre as sociedades indígenas da primeira metade do século
XVI. Autor de uma das primeiras gramáticas em língua náhuatl, Olmos inaugurou a
introdução dos idiomas ameríndios em textos de catequização e doutrina católica. Segundo o
franciscano, para que o processo de evangelização tivesse êxito era necessário conhecer de
perto as estruturas socioculturais e os mecanismos linguísticos dos ameríndios que possuíam
uma estrutura cosmogônica perfeitamente distinta da dos europeus. Além disso, Olmos
reconhecia que essas estruturas eram completamente coerentes e, portanto, as dúvidas e
confusões interpretativas sobre a introdução do imaginário europeu surgiriam a cada
momento.
Na Espanha, Olmos dedicou seus esforços às perseguições às feiticeiras. Autor do
28BENAVENTE, Tóríbio .Historia de los indios de la Nueva España. Madrid: Imprimatur, 1913. Pag.2. 29OLMOS, Fray Andrés de. 1547. Arte de la Lengua Mexicana. Edición, estudio introductorio, transliteración y notas de Ascensión Hernández de León-Portilla y Miguel León-Portilla. 2002. Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM).
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conhecido “Tratados sobre a Feitiçaria”, obra que servira de referência doutrinária para o
combate as heresias na Europa, se aplicou sistematicamente na evangelização indígena. O
franciscano entendia que um dos instrumentos mais eficazes no processo de conquista seria a
organização de um número significativo de batizados. Orgulhava-se dos batismos diários de
cinco a seis mil indígenas, contudo desconfiava da fé repentina entre os nativos e, por isso,
defendia uma maior vigilância no processo de evangelização.
Seu principal biógrafo, Gerônimo de Mendieta, inventariou, em 1585, quatorze obras
produzidas por Andrés de Olmos, sendo mais conhecida “A arte para aprender la lengua
mexicana”, sinalizando, assim, sua importância na construção do náhuatl letrado e a difusão
do conhecimento das línguas nativas desconhecidas entre os espanhóis.
A transformação do imaginário ameríndio estaria pautada na produção de doutrinas,
cartilhas e tratados, contudo, segundo Olmos, a aproximação deveria ser estruturada a partir
do aprendizado do náhualt, como veículo mais eficaz da cristianização. Através do
conhecimento da língua, os religiosos reuniriam condições para o reconhecimento dos
elementos idolátricos que prejudicariam a efetiva cristianização. A língua, por consequência,
transformava-se no melhor efeito persuasivo da evangelização.
Jerónimo de Mendieta (1525 - 1604) foi um frade franciscano espanhol e historiador,
autor da História da Igreja Indiana, que produziu a crônica da evangelização do Vice-Reino
da Nova Espanha. Este trabalho foi publicado apenas no século XIX e proibido, assim como o
Historia Genral de las cosas de la Nueva España de Sahagún, pelo monarca FelipeII. Nascido
em Vitória, Alava, País Basco (Espanha), em 1525, ingressou em 1545 na ordem franciscana
e desembarcou no México em 1554 para efetivar o trabalho evangelizador.
A Historia Eclesiástica Indiana narra a chegada dos espanhóis pelo Caribe, descreve a
situação cultural dos povos encontrados lá e oferece uma cronologia da evangelização.
Jerónimo de Mendieta descreve os evangelizadores como homens de entrega determinados a
abrir as portas do Céu para as almas dos "selvagens". Os missionários que viajaram sem
recursos e territórios solitários, vastos e abstrusos, cheios de perigos desconhecidos, segundo
ele, visando a salvação das almas selvagens.
Todo este material produzido por franciscanos transmitia as interpretações dadas por
eles, a partir de seus imaginários, sobre o conjunto complexo de culturas presentes
anteriormente no território americano, antes da chegada dos europeus. Mesmo com a presença
de tradutores indígenas, estas informações poderiam ser consideradas, por elas mesmas,
mestiças à medida que os fluxos de informações dadas não necessariamente correspondessem
às realidades. O que foi interessante mencionar, o que supostamente não foi dito e as
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interpretações de Sahagún e suas escolhas sobre o que era de fato importante estar no Historia
General de las cosas de la Nueva España fazem desta obra, como as demais desse período,
simultaneamente, referenciais de evangelização bem como de flexibilização e atuações
indígenas, para além do que fora permitido no período colonial.
Logo, os diversos religiosos que compuseram o cenário da colonização
mexicana tiveram de adaptar-se às reais necessidades e ao contexto presente no Novo Mundo.
A variedade de línguas, de valores e interpretações fizeram emergir uma grande quantidade de
flexibilizações e de desconfianças sobre uma suposta falta de ortodoxia no combate à falta de
uma plena ocidentalização do imaginário. Embora alguns autores defendam que no quesito
de evangelização e combate aos desvios de fé os dominicanos e jesuítas foram mais rigorosos
enquanto os franciscanos eram mais flexíveis e adaptáveis, é fato que o papel desses homens
no processo de conquista foi imprescindível.
Esses letrados foram responsáveis por articularem as atividades intelectuais
relacionadas ao desejo de enfraquecimento e destruição das práticas culturais e religiosas dos
povos amerindios. Nesse sentido, segundo Laura de Mello e Souza30, os religiosos
manipulavam os instrumentos simbólicos presentes no período colonial onde conhecimento,
ensinamento e desarticulação através do aprendizado das línguas indigenas, das práticas
socioculturais e da construção de discursos contribuíram para a formação de uma nova
sociedade e, consequentemente, de um novo universo cultural.
Sabe-se que o termo intelectual apareceu pela primeira vez no século XIX no contexto
de reafirmação dos posicionamentos políticos e dos nacionalismos, sobretudo na América no
contexto de independências dos julgos coloniais. Antes disso, segundo Jorge Myeres31, os
vocábulos tais como: letrados, gente letrada ou “ homens de letra”, são mais adequados para
referir-se ao período colonial. Os religiosos possuíam uma cultura letrada sofisticada e
manipularam, assim, os conceitos disponíveis na época através dos referenciais simbólicos
católicos. Especialmente na América Espanhola, os letrados atuavam nos chamados centros
de referência intelectual, tais como universidades, bibliotecas públicas e, claro, em colégios
religiosos como o de Santa Cruz de Tletelolco, principal instituição de trocas culturais cujo
Sahagún teve a atuação tão destacada.
30SOUZA, L. M. Brasil: literaturas e “intelectuales” en el período colonial. In: ALTAMIRO, Carlos. Historia de los intelectuales en América Latina I. La ciudad letrada, de la conquista al modernismo. Madrid: Katz Ediciones, 2008. 31MYERS, Jorge. Los intelectuales latino-americanos desde la colônia hasta el inicio del siglo XX. In: ALTAMIRO, Carlos. Historia de los intelectuales enAmérica Latina I. La ciudad letrada, de la conquista al modernismo. Madrid: Katz Ediciones, 2008.
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