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piauí_X DE ONTEM Cinemas de rua desativados brincam de esconde-esconde na paisagem de Belo Horizonte EM DIANTE dezembro

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Grande reportagem sobre os cinemas de rua de Belo Horizonte produzida como Trabalho de Conclusão de Curso em Comunicação Social | Jornalismo - UFMG (2011/2)

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DE ONTEM

Cinemas de rua desativados brincam de esconde-esconde na paisagem de Belo Horizonte

EM DIANTE

dezembro

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04 questões cine-sociográficas

De ontem em dianteCinemas de rua desativados brincam de esconde-esconde na paisagem de Belo Horizonte e acobertam, sob a luz do dia, o passado de uma cidade habitada e vivida em película

JESSICA SOARES

colaboradores

Universidade Federal de Minas Gerais Trabalho de Conclusão de Curso Comunicação Social

Jessica Soares Ferreira de Assis

Orientação: Cláudia MesquitaCo-orientação: Cláudia Fonseca

Belo Horizonte - 2011/2

Capa GIULIA SAGRAMOLAwww.giuliasagramola.itwww.zizicollective.comteiera.blogspot.com

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diagramaçãoJESSICA SOARES

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questões cine-sociográficas

DE ONTEM EM DIANTECinemas de rua desativados brincam de esconde-esconde na paisagem de Belo Horizonte e acobertam, sob a luz do dia, o passado de uma cidade habitada e vivida em película

JESSICA SOARES

“E u sou capaz de lembrar o nome de todos os cinemas do centro da cidade em ordem alfabé-

tica – quer ver? Acaiaca, Art-Palácio, Cine-Theatro Brasil, Candelária, Glória, Guarani, Metrópole, Palladium, Tamoio e Tupi (que depois passou a se chamar Jacques)”. O desafio auto-imposto pelo músico Bob Tostes vem cheio de licença poética. Seria impossível enumerar de cabeça todas as salas de cinema que habi-taram as ruas da cidade de bares e distin-tos horizontes. Quase uma centena e meia de salas abriram e fecharam as portas em Belo Horizonte ao longo de um século – um número inimaginável em um tempo em que cinema é quase sinônimo de shopping center.

Mas são décadas de histórias conta-das dentro e fora das telas, e quem fre-quentava não esquece. A memória pode até faltar aqui e ali – é só começar a prosa para terem início as histórias, a enumeração das salas e um olhar meio abobalhado de saudade de um preté-rito que é perfeito na memória.

A primeira exibição cinematográ-fica no Brasil aconteceu em um longínquo 8 de julho de 1896,

um ano depois da primeira sessão reali-zada na França pelos irmãos Lumière. No mesmo ano fora aprovada a planta da Cidade de Minas, a ser edificada no Arraial de Belo Horizonte. O projeto traduzia o anseio pela superação da vida rural e arcaica do velho lugarejo colonial, ponto de partida para a nova capital. Na virada do século XIX para o XX, jornais, cafés, bilhares e orquestras perseguiam o ideal de uma vida agitada e cheia de passatempos. E, em termos de modernidade, nada ultrapassava a invenção dos irmãos Lumière. Em 1906, a empresa José Poni & Teotônio Caldeira instalou o primeiro cine-matógrafo da cidade no Teatro Paris, localizado à Rua da Bahia, que já se firmava como centro chic da cidade.

Inicialmente destinado à alta socie-dade, na primeira década do século o cinema logo se popularizou. As salas se tornavam exponencialmente maiores e o público mais diverso. Nas décadas de 20 e 30 surgem os grandes cinemas ins-pirados nos movie palaces americanos que, em um período de divertimentos limitados, se tornam os centros de la-zer da cidade.

O cinema estava em toda parte e, em uma Belo Horizonte que ainda dava os primeiros passos, eram comuns pequenas exibições caseiras de filmes, – MGM, Fox e outras grandes empre-sas alugavam filmes em 16 milímetros. “Eu era menina no fim da década de 50, início da década de 60. Uma vez por semana nosso vizinho rico pro-jetava filmes na rua para todo mundo assistir. As aventuras de O Gordo e o Magro eram as mais divertidas, a meni-nada adorava. Era uma festa, todos sentados nas calçadas!”, lembra a jor-nalista Beatriz, enquanto seu marido, o administrador Ubirajara Morais, ajuda a lembrar o nome do tal vizinho. “Sr. Leônidas”, concluem. São amigos desde a adolescência, mas, enquanto para ela o cinema era apenas um even-to social, para ele acabou se tornando, durante oito anos, um trabalho privi-legiado.

Além das exibições caseiras, na dé-cada de 50 a experiência cinematográ-fica em Belo Horizonte foi marcada pelo Cine-Grátis, projeto criado por Márcio Quintino dos Santos que lem-brava o modelo de exibição dos primór-dios do cinema: percorria vários bairros da cidade com apresentações de filmes de longa ou curta metragens em praça pública, aliadas a shows e concursos populares – a programação começava às 19 horas e terminava impreterivel-mente às 22 horas. Durante a semana, os locais de exibição se alternavam: praça da Liberdade; praça Duque de Caxias; praça Raul Soares; praça Ben-

jamin Guimarães; praça João Pessoa. Aos sábados, transitava por diferentes pontos da cidade. A sobrevivência era garantida pela publicidade e, durante 11 anos, cada apresentação chegava a reunir o impressionante número de 2.000 pessoas.

“Foi quando eu me mudei para BH, aos sete anos, que eu conheci o famoso Cine-Grátis. Eu me lembro de dois lugares que ele visitava, a praça Duque de Caxias, no bairro Santa Te-reza, e o outro era em frente ao grupo Barão de Macaúbas, no Bairro Flo-resta – e lá havia uma particularidade: eles projetavam o filme na descida da

rua. A molecada aprontava lá no alto do morro! Quando queriam que al-guém saísse da frente, faziam xixi lá de cima”, gargalha Ubirajara, uma risada gigante, quase perversa, que não deixa dúvidas sobre sua posição no campo de batalha no momento do ataque.

Com o passar do tempo a brinca-deira de menino ficou séria. Aos nove anos já trabalhava como engraxate, mas só tinha olhos para o uniforme com botões de metal e calça com fita vermelha que vestia os vendedores de balas nos cinemas. Tanto insistiu com sua tia que ela finalmente conseguiu para ele um emprego como baleiro

contratado pela Cinemas e Teatros Minas Gerais, empresa do lendário Antônio Luciano, dono da quase total-idade das salas de exibição da cidade até a década de 70. Foi a época em que Ubirajara viveu intensamente o ritual das salas escuras – tinha acesso irrestri-to aos filmes e, a cada temporada, tra-balhava em um dos cinemas do centro da cidade.

Filas davam voltas e mais voltas nas grandes salas da capital. Dos grandes cinemas, com seus dois mil assentos e três andares, até as pequenas salas de bairro espalhadas pela cidade (que não possuíam menos de 400 lugares – mais

assentos do que as maiores salas em shopping centers), o cinema era o lu-gar para se estar nos finais de semana. Mesmo com suas dimensões gigan-tescas, as grandes salas permaneciam lotadas. Às vezes filmes chegavam a ser lançados simultaneamente no Cine-Theatro Brasil e no Cine Acaiaca – lota-vam a primeira sala, de 1.700 lugares, e ainda sobrava gente para subir a Rua da Bahia rumo à segunda. “Era uma tragé-dia chegar ao cinema no domingo e ver lá a plaquinha de ‘esgotado’”, lembra a socióloga e ex-secretária estadual de Cultura, Celina Albano, frequentadora assídua das salas desde a infância.

O cinema era uma parte impor-tante de sua vida, e ela garante que não era exceção. “O grande programa social de Belo Horizonte era ir ao ci-nema. Nós conversávamos com as pes-soas antes ou depois do filme, conhecía-mos quem frequentava. Já na fila você via os amigos, discutia quem estava lá, quem não estava, se ia lotar. Era algo muito excitante! A gente conhecia os amigos até pelo riso – era só ouvir a gargalhada e sabia, ‘o fulano já está aí!’”, brinca Celina. “Você entrava na sala e pouco depois começava o la la la la, la la la – cada sala tocava uma música. A cortina pesada ia se abrindo.

Era uma coisa mágica, você sabia que ia assistir a algo especial”, conta.

P ara fazer bonito, era preciso co-nhecer o perfil de cada sala – e de seus porteiros. Com o do

Guarani não adiantava argumentar: se a censura não permitia, não deixava pas-sar. Já no Cine Candelária o porteiro dava boas vindas a todos que queriam se aventurar pelos filmes europeus. Mas a adrenalina de verdade não en-volvia apenas entrar em filmes proi-bidos para menores de 18 anos – o desafio era conseguir passar sem ser notado.

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Na Rua Curitiba, região central de BH, estrutura e equipamentos do antigo Art-Palácio são ítens de decoração. A estranha convivência entre passado e presente passa despercebida por aqueles que vem e vão - não é preciso desaparecer para conseguir se esconder

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Precoce, Celina fez isso aos oito anos, mas não contou apenas com a própria esperteza. Teve ajuda de um erro de censura que fez com que Um lugar ao sol, filme com Elizabeth Taylor, Montgomery Cliff e Shelley Winters, uma história dramática en-volvendo pessoas de diferentes classes sociais, fosse liberado para todas as idades. Um dia depois, o erro foi cor-rigido. “Eu fiquei um nojo, contando para todos que tinha entrado em um filme com censura 18 anos”, brinca. A história completa só contou muitos anos depois.

Mas, para enganar (de verdade) os porteiros, valia tudo – até se passar por intelectual. “O primeiro filme de cen-sura 18 anos que eu assisti foi no Cine Tupi: Clamor do Sexo, que contava as dificuldades do romance de um casal vivido por Warren Beatty e Natalie Wood. Eu tinha 14 anos. Peguei um livro de filosofia da minha irmã mais velha, que já estava na faculdade, e os óculos de grau da minha mãe. Che-guei lá, comprei o ingresso, dei três voltas no quarteirão, e vlap, entrei! Depois disso foi uma maré de ser bar-rado em todos os filmes”, lembra com orgulho o músico (e cinéfilo precoce) Bob Tostes, apresentador do programa Cinema Songs, na Rádio Guarani.

Ele conhecia bem cada uma das salas, que frequentava assiduamente desde os 10 anos de idade. “O Metró-pole, por exemplo, era o cinema para você paquerar as meninas, era mais spot, passava filmes mais elegantes – que podiam ser tanto longas de Hitch-cock como comédias românticas e musicais da MGM”, conta.

Para filmes mais sérios e de arte, Candelária, Art-Palácio, Jacques e Pathé eram boas opções. Se quisesse ver aventuras e filmes mais populares e de aventura desenfreada, era só ir ao Cine-Theatro Brasil. “Uma vez a gente estava no prédio da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, no Centro, e um colega passou gri-tando ‘Vamos gente, está na hora de ir pro Cine Brasil!’ Mas como, o filme já está acabando?! ‘Exatamente, está quase na hora dos índios começarem a perder a guerra!’”, lembra Celina sem conter uma gargalhada. Era assim que funcionavam os faroestes, muitos deles estrelados pelo lendário John Wayne e adorados pelo público.

Mas, para ela, o Cine-Theatro Bra-sil só passou a ser uma opção quando já estava mais velha. Como boa “bur-guesinha” – a definição é dela mesma – na adolescência Celina frequentava principalmente os cines Metrópole, Jacques (que ainda se chamava Tupi), Acaiaca e Guarani. Eram os locais para se estar quando se era “de famí-lia”. Art-Palácio e Brasil, por serem mais populares, quase não entravam nos programas de finais de semana de sua turma. A exigência também vinha das famílias. Além dos casaizinhos que aproveitavam a sala escura (se acen-dessem as luzes, cruzes, que flagra!, como dita a canção), o escurinho do

cinema também tinha outro lado obs-curo – as moças morriam de medo de se sentarem ao lado de “tarados”. Di-zia-se que sessões semanais, no meio da tarde, estavam povoadas por eles.

Também povoavam as salas – sem distinção de horário ou classe social – outros indesejados seres: pulgas. Ape-sar de servirem como desculpa para que muitos denegrissem o bom nome de algumas salas (chamadas, pelo canto da boca, sem pudor ou culpa, de “pulgueiros”), já foram até tema de canção.

“De repente o cinema Pathé,Atacado, devorado pela multidão, Pulgas encerram a matinêOnde um velho filme de amor Teimava em comover A quem não tinha sono na escuridãoNão respeitaram o velho charme do atorQue ia sentindo aos poucosO seu corpo-tela desaparecerFez-se alegre bailado no PathéElas pulam, dançam no arE chupam o sangue de umO peito, a pele, a pena, a alma de umSem se importarSe seu festim agrada ou nãoSe era sua fome santa ou nãoSe o seu delírio agrada ou nãoEsmaga”

Assim escreveram Fernando Brant e Lúcio Tadeu em Baile das Pulgas, homenagem às odiadas inquilinas.

E nquanto os cinemas do centro da cidade eram points nos finais de semana, as salas de bairro eram

extensões dos lares e convites para o desbravamento da cidade. A expansão de BH para além da Avenida do Con-torno estimulou a construção de cine-mas afastados do centro – o primeiro deles foi o São Carlos, em 1939, na Rua Padre Eustáquio. Nos anos seguintes, salas se espalharam por todos os cantos da cidade.

Naquela época não se podia con-tar com a internet e nem mesmo com DVD, VHS ou TV para assistir aos filmes que não se tinha visto no cine-ma. Os três primeiros ainda perten-ciam a um futuro distante, a última caminhava lentamente – ainda era comum que “tele-vizinhos” se reunis-sem para assistir TV nas poucas casas que possuíam o símbolo de status com funcionalidades limitadas (a partir de certa hora da noite, era encerrada a programação e o aparelho voltava a ser só uma caixa vazia).

As grandes estreias sempre aconte-ciam nas salas centrais, e depois segui-am para as demais – era a chance de assistir ao filme que se tinha perdido, ou de ver novamente àquele filme de que se havia gostado muito. “Depois de exibido, o filme sumia, vivia apenas na sua lembrança. Era comum que alguns filmes fossem reprisados – ani-mações da Disney, por exemplo, vol-tavam de tempos em tempos”, lembra o músico Bob Tostes. Mas mesmo as reprises poderiam demorar mais de

cinco anos, período no qual os filmes ficavam praticamente inacessíveis. Isso tudo colaborava para tornar cada exibição um evento único. “Quando você assistia ao filme tinha consciên-cia de que aquilo nunca mais ia voltar (ou pelo menos não tão cedo), então buscava memorizar as falas, aprender todas as músicas”, diz.

Para as crianças, esse exercício de memória se iniciava nas manhãs de do-mingo, que eram sinônimo de matinê. Em bandos, corriam para as salas para acompanhar as aventuras das criações de Walt Disney. Mas a festa mesmo acontecia na matinê das duas horas da tarde, dedicada aos seriados: Roy Ro-gers, Durango Kid, Rock Lane, Flash Gordon. Muita ação, pouca conversa e, no momento de maior tensão, um final em aberto convidava a platéia a voltar na semana seguinte. A molecada se divertia, aplaudia, se emocionava e pedia mais.

Outro sucesso garantido eram as tipicamente brasileiras chanchadas da Atlântida. As comédias carnavalescas Carnaval no Fogo, Aviso aos Nave-gantes, Aí vem o Barão, Nem Sansão nem Dalila (que reuniam os grandes Os-carito, Grande Otelo, Anselmo Duarte, Adelaide Chiozzo, Yvon Curi e tantos outros), faziam sucesso até fora das salas. Era o tema das brincadeiras das turmas, que imitavam coreografias, cantavam e encenavam. Para maior perfeição, as-sistiam aos filmes repetidas vezes.

As turminhas de bairro já compare-ciam em peso aos cinemas – e faziam bem mais confusão do que hoje. Se aparecia na tela uma mulher de bi-quíni, fiu-fiu!, respondia a platéia. Às vezes a bagunça era tanta que era pre-ciso que entrassem em cena os famosos vaga-lumes – nome carinhoso (ou nem tanto) dado à função que correspondia ao nível dois no plano de carreira den-tro dos cinemas. Foi assim que, aos 13 anos, o baleiro Ubirajara foi promovido a lanterninha.

A função do lanterninha era indi-car, empunhando sua luminosa fer-ramenta de trabalho, os lugares vazios para as pessoas que chegavam depois de apagadas as luzes – função que hoje é exercida de forma demasiado pragmática por pequenos pontinhos de luz no assoalho. Também eram os responsáveis por manter a ordem nas salas dessa e de outras galáxias. Mas eles abusavam dessa função.

- Eles, né? – pergunta a esposa em tom de bronca.

- É, eles: eu e todos os outros – ri Ubirajara, que não se dá nem ao tra-balho de fingir constrangimento.

Quando chegava um casal de namorados, os lanterninhas já sabiam que indicar um lugar mais reservado garantia uma gorjetinha. No meio do filme podiam pousar a luzinha pouco discreta no casal que mal assistia ao filme – recebiam mais uns trocados e declaravam encerrado o assunto. Não era uma questão de mero suborno.

Naqueles tempos, bons modos costu-mavam ser levados a sério e desvios de conduta podiam significar a expulsão da sala. Não havia vergonha maior e as-sunto mais instigante para o buchicho nas filas das sessões seguintes. Ao final do filme, uma vistoria na sala garantia mais outros trocados: se encontravam carteiras ou joias esquecidas (porque esse era um tempo em que se usa-vam joias para ir ao cinema), os donos agradecidos distribuíam mais uns cru-zeiros. Dava para juntar um bom caixa dois? Nada significativo, ele garante, mas valia pela diversão.

Ver filmes, tomar sorvete, paquerar. O cinema movimentava a cidade e as crian-ças que cresciam em ritmo mais lento que o número de andares dos arranha-céus. Ir ao cinema era mais do que assistir ao filme escolhido. Era o momento de olhar, sentir, fruir a cidade. “Além da divertida viagem no bonde que descia a Rua da Bahia”, brinca Celina.

A sala escura era a atividade central nessa época das descobertas. “Nessa época mulher não frequentava bar, não era bem visto. Então os primeiros encontros aconteciam no cinema”, conta Valdir Inácio Guimarães, que experimentava o escurinho do cinema de outro ângulo – o da cabine de pro-jeção, na qual trabalha há mais de três décadas. Destaca que, quando

começou, eram os rapazes que compra-vam, também para suas companheiras, os ingressos para o filme. Eram outros tempos, afinal.

Para muitos, são tempos de que se tem saudade.

G uilherme Jabur, da turminha da pesada do bairro Floresta, relem-bra: “Todo mundo do bairro ia

para o Cine Floresta Novo ou para o Cine Odeon – lá a gente brincava de pega-pega antes da sessão, encontrava a turma toda. As pessoas se divertiam mesmo, pra valer”, lembra o conta-dor. Não é preciso conversar por muito tempo com ele para saber que se trata de um típico saudosista que sofre imen-samente ao lembrar-se do passado. Faz questão de registrar seus vestígios: visita e filma por alguns segundos o estado atual das antigas salas – estado que, às vezes, corresponde à inexistência.

A câmera na mão é trêmula, mas não há pretensões artísticas. Guilherme quer só relembrar as salas e os filmes que viu por lá: no Cine Metrópole, não se esquece de Embalos de Sábado à Noite, filme com John Travolta que fez a fila dar voltas no quarteirão. Do Cine Regina, se lembra de Horizonte Perdido, clássico de Frank Capra que conta a história de Shangri-la, terra da juventude eterna e felicidade plena. É

um pouco como Jabur encara o pas-sado – no presente, só vê desilusão.

Isso porque o destino foi cruel com quem ainda sabe situar as salas no espaço urbano. As que não foram demolidas estão escondidas em meio à paisagem de concreto, difíceis de lo-calizar. Das dez mais famosas salas do Centro, três guardam ainda seu caráter cultural. Desde 2008, o antigo Cine Guarani, localizado na Rua da Bahia, abriga o Museu Inimá de Paula, com mostras permanentes do pintor minei-ro que dá nome ao espaço e exibições itinerantes. O Palladium viu suas por-tas reabrirem em 2011, não como cine-ma, mas como complexo cultural de-nominado SESC Palladium, com um grande teatro de 1.321 lugares, teatro de bolso com 80 lugares, galeria de arte, espaço multiuso, café e uma pequena sala de cinema com apenas 90 assentos e programação gratuita.

O Cine-Theatro Brasil, renomeado V&M Brasil Centro de Cultura, segue a mesma linha, mas deve manter sua origem de cine-teatro e inaugurar uma sala com mais de mil lugares. A assesso-ria de imprensa da V&M do Brasil afir-ma que, além de teatro, serão exibidos longas-metragens no espaço. Que tipo de filme reúne hoje mais de mil pessoas? Resta aguardar para ver. Só não se sabe bem quando a espera terá fim – depois de

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sucessivos atrasos nos prazos anunciados desde 2006, quando as obras foram inicia-das, a empresa não divulga mais previsão oficial para reabertura da sala.

Nos vídeos de Jabur, o resto do passeio pela cidade é melancólico. O Cine Acaiaca, localizado no subsolo do famoso prédio belorizontino, abriga hoje uma igreja, como tantos outros cinemas de bairro. Do Cine Cande-lária, um dos maiores cinemas da capi-tal, localizado na Praça Raul Soares, só resta uma fachada pela metade. Foi destruído por um incêndio em 2004, nove anos depois de sua desativação. Hoje é movimentado apenas pelo entra e sai de carros. Quem olha com aten-ção para o interior do estacionamento pode ver uma pintura na parede que guarda o último suspiro do passado.

Já o tradicional Cine Jacques (antes Cine Tupi) está localizado sob o Shop-ping Cidade, um destino parecido com o dos cines Glória e Art-Palácio, que abri-gam lojas no interior de suas estruturas modificadas. O último, localizado na Rua Curitiba, possui ainda intacto o letreiro, escondido entre vários sinais das lojas Ponto Frio, encabeçados por uma placa pouco sutil em que se lê “cineshopping” - afinal, todo mundo sabe que eletrodo-mésticos vendem mais que sonhos.

Guilherme disponibiliza os vídeos de seus fragmentos de memória

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A Usina de Cinema foi inaugurada em 1995 e, sem patrocínio, fechou as portas em 2009

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no YouTube. “Eu faço o vídeo e as pessoas perguntam: ‘Você está com saudade de um antigo amor, de uma namorada, né?’ Respondo que não. É saudade do tempo, daquele tempo que não volta mais”, argu-menta. Evoca John Lennon em tom melancólico. “Acabou”, diz.

I naugurado em 1909, o Teatro Mu-nicipal tinha linhas que aspiravam modernidade. Foi criado para ser

símbolo do progresso e abrigar a pro-gramação cultural de uma cidade an-siosa pelo crescimento. Na década de 30, o art-decó era o que havia de mais atual e refinado na arquitetura e o pré-dio foi reformado para combinar com a paisagem sempre mutante. Não era o suficiente. Na década seguinte, Jus-celino Kubitschek definiu que a cidade precisava de um espaço ainda mais ar-rojado – se anunciava a construção do Palácio das Artes. O estado abre mão do prédio do Teatro Municipal em 1941. O seu destino poderia ter sido o abandono, não tivesse sido adquirido pela empresa Cine Teatral, que re-inaugurou o espaço em 1942 sob o su-gestivo nome Cine-Teatro Metrópole, na confluência das ruas Goiás e Bahia, com capacidade para mil pessoas. Comprado no ano seguinte pela Cinemas e Teatros

Minas Gerais, a sala foi uma das mais importantes da cidade durante os 40 anos que se seguiram.

Para os frequentadores, o ritual do Cine Metrópole começava pela com-pra de balas de coco queimado e cho-colates de mil formas. Lá dentro era uma festa: oferecia três matinês todos os dias da semana e o agitado segundo andar era o preferido da garotada. Jun-to ao Cine-Theatro Brasil, era a sala das grandes estreias, em que enormes filas se formavam para conferir os filmes MGM. Era a época dos famosos musicais, em que Fred Astaire, Judy Garland, Gene Kelly, Frank Sinatra e Cid Charisse encenavam números envolvendo as canções inesquecíveis cantaroladas ao final da película.

Isso até a chegada dos anos 80, mar-cados no país por uma intensa crise econômica, e em Belo Horizonte por violentas modificações no espaço ur-bano. Em 1983, o Metrópole permane-cia como referencial arquitetônico e cultural de Belo Horizonte. Por isso, a comoção foi imediata quando, em 15 de abril, o Banco Bradesco pagou à Cine-mas e Teatros Minas Gerais Cr$ 150 mi-lhões como sinal pela compra do Cine Metrópole. Na tentativa de reverter a situação, a cidade se agita. Entidades culturais, em parceria com o Instituto

Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais e com a as-sessoria técnica da Fundação João Pi-nheiro, pressionam o governo a fazer o ato de tombamento da edificação. Foram meses de reuniões, informa-ções desencontradas e manifestações em frente ao cinema.

Apesar da indefinição, o Metrópole ia desaparecendo lentamente: primeiro foram removidos os cartazes de Tootsie, filme de Sydney Pollack com Dustin Hoffman e Jessica Lange, o último a ser exibido na sala. Em seguida foram as cortinas e cadeiras. Janelas e portas foram tapadas para que o resto do in-terior fosse destruído sem interferên-cia dos incômodos olhares de dor que viam toda uma história ser reduzida a pedaços partidos de concreto. Por fim, a “casca” veio ao chão.

“Ainda hoje, quando subo a Rua da Bahia, a imagem marcante do Cine Metrópole surge na minha memória. E com ela, lembranças das emoções que os filmes me proporcionavam. Como as lágrimas que derramei ao as-sistir a Imitação da Vida, de Douglas Sirk, com Lana Turner; das gargalha-das de perder o fôlego com as aven-turas de Jack Lemmon, Tony Curtis e Marilyn Monroe em Quanto mais quente melhor, de Billy Wilder; ou

as unhas roídas de aflição com as ce-nas apavorantes de Os Inocentes, com Débora Kerr e duas lindas crianças do mal”, conta Celina. Mais que o fim de uma sala, o fechamento marcou o fim de uma era.

“E xijo em nome da lei ou fora da lei que se reabram as por-tas e volte o passado

musical,waldemarpissilândico, sublime agora

que para sempre submerge em fu-neral de sombras

neste primeiro lutulento de janeirode 1928”.

Os versos de O Fim das Coisas, de Carlos Drummond de Andrade, deixam claro: podiam ter pulgas e ruí-dos misteriosos e já estarem fadados ao bater das portas – não importa. A dor sentida ao se constatar o fim até mesmo dos cinemas mais vagabundos é uma mesma dor que atravessa gera-ções. “Fechar cinemas é uma realidade desde que o primeiro abriu suas portas. Abrir e fechar salas é uma espiral que não para. Foi assim a vida inteira”, diz o cinéfilo e pesquisador Ataídes Braga. Muitas das salas nem sequer tiveram sua breve existência registrada. Em 1995, em parceria com a Secretaria

Municipal de Cultura, Ataídes reali-zou um levantamento e estudo apro-fundado para o resgate destes espaços, que resultou no livro O fim das coisas: as salas de cinema de Belo Horizonte.

O livro toma emprestado como título o nome do poema-protesto de Drummond, escrito no final da década de 1920. O motivo do lamento do poe-ta é o fechar das portas do antigo Cine-ma Odeon, então localizado na Rua da Bahia, concreto retilíneo que por tanto tempo reuniu a boemia mineira. “Quero é o derrotado Cinema Odeon, o miúdo, fora de moda Cinema Ode-on”, dizem outros versos de súplica do poeta, nunca atendidos. Não ouve lei ou fora da lei que impedissem a cidade de mudar e estes versos continuaram a ser repetidos nas décadas de luto por outros espaços que tiveram o mesmo fim.

Os cinemas seguiram a urbaniza-ção da capital. Belo Horizonte, cidade planejada para os limites da Avenida do Contorno, viu surgir em cascata na dé-cada de 20 e 30 uma série de espaços de exibição em sua região central. Nos anos 40 e 50 os cinemas se expandiram rumo aos bairros, em reflexo da transforma-ção pela qual passava BH. Era um se-gundo surto de crescimento e moder-nização, permitido pela construção da Cidade Industrial Juventino Dias e do conjunto arquitetônico da Pampulha. A ânsia por progresso e modernidade era visível na paisagem que parecia não tolerar a permanência. A urbaniza-ção mudava as ruas, fechava cinemas, permitia a abertura de outros.

A cidade passou a se movimentar em um ritmo que os 24 quadros por se-gundo não conseguiam acompanhar. A TV ganha força e se torna o entreteni-mento preferido. O surgimento do VHS só consolida a opção pelo sofá de casa, o que provocou, no mundo inteiro, a

queda significativa do público das salas. As famílias passavam a temer a violên-cia crescente nas metrópoles. Se antes as crianças embarcavam sozinhas em ônibus rumo às grandes salas do cen-tro, o programa passou a ser visto como aventura pouco aconselhável.

O público minguou: dados do por-tal Filme B indicam que as platéias que na década de 70 contabilizavam quase 300 milhões de pessoas ao ano, na década de 80 e 90 chegam a quase esbarrar na marca de 50 milhões. As enormes salas começaram a sofrer com a falta de renda e com o descaso dos proprietários. Estruturas decadentes e sem manutenção passaram a abrigar fitas de qualidade duvidosa: os exibi-dores optaram por “investir” em filmes de artes marciais (Bruce Lee era fi-gurinha fácil nas salas) e em filmes de sacanagem, ambos oferecidos ao exibi-dor a um custo muito baixo, prometen-do uma boa lucratividade. Essa opção, no entanto, se mostrou pouco sábia. Passado o efeito de novidade, as pesa-das cortinas começaram a se abrir para uma platéia diminuta ou deixaram de se abrir em absoluto, sucumbindo aos efeitos da crise.

“Eu brinco que fechei todos os ci-nemas. Todos que frequentava durante minha adolescência fecharam durante os anos 80”, lembra Ataídes. Em Belo Horizonte, tratou-se de um efeito em cascata: só em 1980 foram fechadas cerca de dez salas, a maioria localizada nos bairros. No país, só metade das sa-las que existiam nos anos 50 continuava em atividade.

Os grandes espaços “sub-ocupa-dos” por salas de cinema faziam salivar os donos de empreiteiras imobiliárias. Estava decretado o fim das matinês de domingo, dos seriados exibidos nas telonas, do Jornal Canal 100 – e seu resumo do futebol –, dos cinemas de

bairro frequentados por adoráveis ba-gunceiros. É um passado idealizado que, assim como os filmes que fica-vam sumidos por anos, só está vivo na memória.

“O processo de fechamento das sa-las foi mundial, mas no Brasil foi mais violento. Os cinemas foram retirados das ruas, do espaço público, e escon-didos entre as paredes de shoppings. Essa foi a grande perda, essa privatiza-ção”, diz Celina Albano. A socióloga, vizinha do Cine Pathé durante toda a sua infância e juventude, não consegue disfarçar a tristeza na voz. Escreveu suas memórias da sala que, entre 1969 e 1994, foi o mais importante cinema de arte da capital mineira, no livro “Cine Pathé”. Mas hoje evita passar em frente ao espaço que, depois de encerrar ativi-dades como cinema em 2004, já foi loja de informática, estacionamento e hoje mantém atrás de portas cerradas um espaço que abrigou histórias em forma de película, carne e osso. Pediram que tirasse uma foto em frente à sala em ruínas: “Isso eu não faço”.

A inauguração do BH Shopping, em 1979, foi um marco na mu-dança dos hábitos e rituais envol-

vendo as salas escuras. A Paris Filmes inicia na cidade suas atividades como exibidora inaugurando no primeiro centro de compras da capital mineira o Center 1 e 2. O Center 3 veio em 1988. Ao lado de lojas e restaurantes, o grupo inaugura no Shopping Cidade mais três salas. A Paris Filmes se torna a se-gunda maior exibidora em BH. Mais que isso, a iniciativa mostra que o cine-ma voltava a ser empreitada lucrativa, estimulando novos investimentos. Era o início da reconfiguração da exibição cinematográfica na capital. “Eu defino esse fenômeno em três palavras: facili-dade, segurança e estacionamento”,

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diz Ataídes com certo desdém. Cine-ma virou só produto à venda? “Na ver-dade, nem é o cinema. O que vende no shopping é a pipoca e o refrigeran-te. Por isso que eles são hegemônicos e continuarão a ser”, diz.

As novas salas não possuem nomes, mas sim números. Dessa forma não há margens para o engano: não estão ali para intimidade. Entre, desligue o seu celular, não fale durante a sessão. Apagam-se as luzes, acendem-se as lu-zes, próximo! “Este ‘cinemão’ encara o filme como fast food. É tudo muito requintando, mas não há interação, não há interesse em propiciar o encon-tro entre as pessoas. O filme é exibido numa vitrine e pronto”, argumenta a produtora cultural Mônica Cerqueira, que sempre preferiu trabalhar com al-ternativas a esse sistema industrializado de exibição. Seu nome está ligado aos principais espaços de resistência que surgiram a partir do final da década de 70: Cine Humberto Mauro, Cine-clube Savassi, Usina de Cinema, Cine Imaginário e Cine La Bocca.

O Cine Humberto Mauro, locali-zado no interior do Palácio das Artes, foi inaugurado oficialmente em 1978. Seu objetivo era levar ao público filmes não exibidos nos circuitos comerciais e, não por acaso, sofreu durante anos boicote do monopólio da Cinemas e Teatros Minas Gerais, dona da quase totalidade de salas na cidade. A sala deu novo fôlego à atividade cineclubis-ta ao criar um espaço de reflexão e formação cinematográficas. Contan-do apenas com 160 lugares e equipa-mento precário, a sala era atraente pela qualidade de sua programação que contava com filmes importantes da história do cinema, produções não comerciais e trabalhos experimentais. Foi ainda em 1972 que Wagner Corrêa de Araújo começou a reunir colegas

Cine Candelária foi consumido por um incêndio em 2004, nove anos após sua desativação. Hoje sua fachada em ruínas emoldura um estacionamento

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CRUZ

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para exibições no Grande Teatro do Palácio das Artes – com um projetor de 35mm recebido como doação, eram promovidas sessões que chegavam a contar com até 200 pessoas. Elas pas-saram a reivindicar um espaço dentro da Fundação Clóvis Salgado, pedido finalmente atendido seis anos depois.

Mônica começou a trabalhar no Humberto Mauro aos 21 anos, quando ainda cursava Comunicação Social. Era secretária. Por atritos internos, Wagner Corrêa Araújo deixa a programação da sala em 1979. O cineasta Helvécio Ratton assume por alguns meses o tra-balho, e convida Mônica para o cargo de programadora. O fato envolveu muita polêmica – até abaixo assinado contra a jovem foi publicado no Jornal Estado de Minas. Ainda desconhecida e inexperiente, aprendeu na prática o oficio durante os 10 anos que permane-ceu à frente da sala. “Na época em que entrei, o Cine Humberto Mauro era muito pouco conhecido, a programa-ção era irregular e, por isso, as pessoas acabavam não indo”, conta.

Mônica ajudou a imprimir ritmo à sala, a agregar atividades complemen-tares, a transformar o espaço em centro cultural. Deu tão certo que este perfil ainda define as atividades atuais da sala. Com a boa resposta do público, resolveu movimentar, junto a Nélio Ribeiro, Ivar Siewers e Eduardo Cer-queira, a abertura de um espaço inde-pendente.

Foi com receptividade que a ci-dade viu abrir as portas em 1988 o Cineclube Savassi, inaugurado como Savassi Cineclube com o lançamento dos curtas Com o andar de Robert Taylor, de Marco Antonio Simas, e A voz da felicidade, de Nelson Nadotti. Com películas que dificilmente se-riam exibidas em circuito comercial, a integração à vida cultural da cidade foi imediata.

O êxito do empreendimento permi-tiu a expansão do grupo, em 1992, com a inauguração da Usina de Cinema. No local onde existiam galpões e ser-ralheria construídos na década de 1930, o novo espaço abriu com a exibição de Reminiscências – cenas de 1909 a 1920, do pioneiro do cinema mineiro Aris-tides Junqueira. Foi o primeiro cinema de BH a associar movie shop, bombo-niere e bar. No mesmo ano, Elza Ca-taldo e Tâmara Braga inauguraram o Belas Artes, agregando mais três salas ao circuito alternativo. Os filmes O marido da cabeleireira, de Patrice Le-conte, Urga, de Nikita Mikhalkov, e Ladrão de crianças, de Gianni Amelio, deram início às atividades do espaço. Com o fechamento do Cine Roxy, em 1995, os antigos frequentadores do ci-nema de filmes de arte (transformado em pista de patinação) encontraram programação equivalente nas novas salas.

Os três espaços eram patrocinados pela iniciativa privada, sem leis de in-centivo – o acordo era feito por meio de permuta de imagem, “comunica-ção pura”, segundo Mônica. Mas essa comunicação também está sujeita a

falhas e descontinuidades. A Usina de Cinema, palco para um trabalho que envolvia mais que simples exibição (recebia também palestras, cursos, ex-posições), encerrou suas atividades em 2010 por falta de patrocínio – o Itaú adquiriu o Unibanco, antigo patroci-nador, e não tinha interesse em manter o investimento na sala. O ano de 2012 começou com a confirmação do fecha-mento do Cineclube Savassi. Desde a última semana de dezembro o espaço está de portas cerradas, sem grandes ex-plicações. Dos cinemas de rua, só resta agora o Belas Artes, que permanece na luta em um tempo muito distinto daquele de sua inauguração: quando surgiram, o acesso às películas de arte (ou aos longas que simplesmente não chegavam ao circuito comercial) ainda se dava, necessariamente, dentro das salas de cinema.

No ano em que se comemorava o centenário do cinema, surgiu uma nova iniciativa que aliava, em um mesmo lugar, cinema e casa noturna. O Cine Imaginário, no bairro Santa Efigênia, era um espaço diferenciado. Em frente à telona, mesas e cadeiras de bar e um grande palco para apresen-tações musicais – lá tocaram Tom Zé e Arnaldo Antunes. O espaço durou exatos 365 dias, de 1995 a 1996. Dis-cordâncias na sociedade fizeram com que o espaço chegasse ao fim de forma prematura.

Um ano depois foi a vez da aber-tura do Cine La Bocca, que funcionou até 2004. Totalmente independente de patrocínios, possuía, além da sala de cinema de programação popular, bar, sinuca e o ingresso mais barato da ci-dade. “Conseguimos atrair gente que não ia mais ao cinema, ou porque era caro, ou porque tinha perdido o hábito. Gente comum que aprendeu a se (re)aproximar do cinema e tornou aquilo um hábito”, avalia Mônica, programa-dora do cinema. De forma tão banal quanto passar o ponto de uma loja, a sala fechou as portas quando os donos do imóvel resolveram vendê-lo.

Nesses espaços, diferentemente das salas de shopping centers, a atividade complementar não se reduz à praça de alimentação, mas inclui encontros com diretores convidados, apresenta-ções, palestras, o café. “Isso tudo ajuda a garantir a fruição do público com o próprio público, que compartilha in-teresses. O ‘cinemão’ é muito mais fu-gaz”, argumenta Mônica. A comprova-ção dessa relação ainda muito viva veio em uma frase despretensiosa do proje-cionista Valdir: o cinéfilo mesmo gosta até do barulhinho sutil do projetor.

“Q uem diz que não vai às sa-las não pode falar que gosta de cinema”, Ataídes solta

a frase assim, em tom categórico, no meio da conversa. Depois explica: “Não é a mesma coisa assistir na TV, no sofá de casa. Na sala se tem a questão do espaço, da sociabilidade, da relação que você estabelece com o outro – com quem entende nada, com quem entende tudo. Ou seja, é nesse mundo,

nesse mundo das salas de cinema, que se aprende de verdade”.

Para ele, o Centro de Estudos Cine-matográficos (mais conhecido por suas iniciais, CEC) desempenhou esse pa-pel. O cineclube, que surgiu em 1951, esteve presente nas atividades que mo-vimentavam a cena cultural na capital mineira. Lá dentro não só se formaram gerações de cineastas, pesquisadores e críticos, mas também verdadeiros cinéfilos que, mesmo não seguindo a profissão, carregaram a paixão pela sala escura por toda a vida. Com 60 anos de tradição, o CEC hoje realiza ativi-dades espaçadas e sofre com as dificul-dades de se manter vivo sem uma sede fixa e eventos regulares – um proble-ma eterno, enfrentado por todas as gestões. Ataídes foi um dos presidentes e defende a ideia de que um cineclube não precisa de CEP e caixa postal, só precisa que exista algo mais que uma simples exibição. Se existe em algum lugar, seja sala escura ou praça, uma projeção pensada – uma homenagem, uma mostra – com uma série de pes-soas interessadas e dispostas a debater, já existe ali a ideia do cineclube, que é muito forte e não desaparece simples-mente.

Não que tenham faltado ameaças e proclamações sobre o fim do cinema. Assim como todas as teorias apocalíp-ticas que decretam o fim de tudo que veio antes ao menor sinal de uma novi-dade, o cinema sempre esteve prestes a acabar. Os responsáveis por esse po-tencial homicídio qualificado foram muitos ao longo dos anos: primeiro a televisão, depois o VHS, o DVD e então a internet. “O engraçado é que cada uma dessas inovações que chega-ram para acabar com o cinema no fi-nal o reforçaram porque se tornaram divulgadores”, argumenta Bob Tostes. Mais informação está aí, disponível para acesso, o que potencializa a for-mação de um público diferente, talvez até com maior repertório. Quem quiser conhecer a fundo a obra de um autor pode fazer isso com alguns cliques. O que o público busca na sala de cinema é algo a mais.

Para Mônica Cerqueira, o baixo número de pessoas que frequentam o circuito alternativo hoje só indica que muito ainda pode ser feito para con-quistar esse público. Não que isso seja tarefa fácil – o esvaziamento das salas é algo real, mas a aposta deve ser em es-tratégias diferenciadas, em conhecer o público e atendê-lo. “Aumentaram as possibilidades de exibição e multipli-caram-se as formas de ver cinema, mas a nossa necessidade por espaços de convivência não morre”, argumenta.

*

N os grandes complexos, é uma figura anônima. Anda apres-sado, de cabeça baixa e entra

na salinha. Ninguém o vê. Se tudo corre bem, todos vão embora sem se-quer direcionar-lhe um pensamento. O filme preenche a tela, todos riem,

se emocionam e, do lado de lá, ele só ouve os sons abafados, enquanto seu ambiente mantém um zuuum per-manente. Assim são os dias de Valdir Inácio Guimarães, projecionista há 34 anos e quatro meses – faz questão de ressaltar.

Trabalhou em muitas das salas que abriram e fecharam suas portas em Belo Horizonte. Não escolheu a profissão por paixão – queria um trabalho com cartei-ra assinada. Conseguiu o que desejava, quase por acaso, na empresa Cinemas e Teatros Minas Gerais – um amigo o convidou, ele aceitou e, por isso, tem uma filmografia de fazer inveja em qualquer aspirante a cinéfilo. Não está lá só para apertar o “play”. A primeira exibição é sempre assistida com máxi-ma atenção: acertar o foco, conferir a posição da legenda, checar o som e, é claro, conhecer mais um filme. Depois de anos de prática, o trabalho nas salas do Shopping Cidade e Belas Artes é feito com destreza e habilidade.

Só se sente totalmente anônimo nas salas de centros de compras. Nos cinemas de arte sempre encontrou um público diferente, que bate papo. “Às vezes eu faço umas amizades muito boas com essas pessoas”, conta.

Muitas vezes trata-se de uma ami-zade singular, fruto de um momento de quase comunhão que nasce do erro. Se a projeção está prejudicada por algo que ele não pode resolver, aplica uma linguagem própria do ofício: piora ainda mais a situação, volta, piora no-vamente, volta para o ponto inicial. O recado está dado, fez tudo o que podia.

Nessa conversa silenciosa, ele existe por alguns segundos. E depois volta a ser a figura escondida junto à maquina de projetar imagens e sonhos – só espe-rando alguém aparecer para bater um papo.

*

- Agora a gente vai ver o Bambi! – disse animado o pai.

- Não, mas o Bambi eu já vi – res-pondeu a pequena, que saía empolgada da exibição do clássico da Disney.

- Não, agora a gente vai ver o bambi de verdade, filhinha.

- Mas no cinema tudo é de verdade! – disse tão somente, abrindo mão de um possível passeio no zoológico com um argumento que adulto nenhum poderia contestar.

“No cinema tudo é mentira, mas tudo é verdade”, reflete Francisco Rocha, ao contar com sorriso no rosto o caso presenciado. A hipótese não foi submetida à investigação, mas a chance de já se ter assistido a alguma sessão em que ele estava presente é al-tíssima. Ele pode até ter lhe entregado seu ingresso – de tanto frequentar o Cineclube Savassi foi convidado para cobrir as horas vagas do bilheteiro ofi-cial. Passe livre para todas as sessões? Quero sim, obrigado.

Ele faz parte de uma espécie que dizem estar em extinção, um bicho chamado cinéfilo. Alguns ainda habi-

tam a cidade. Não necessariamente andam juntos, mas se reconhecem pelo olhar. São seres odiados em cine-mas comerciais – querem sempre um silêncio incompatível com as salas sem nome, reclamam com o gerente se a projeção foi interrompida antes dos créditos, um horror! Só se sentem em seu habitat natural nas salas em que se conservam os rituais, em que a nature-za está intacta, em que o tempo não corre rápido demais.

*

A única pessoa que corria lá era eu. Você conhece a Auckje? Ela já chegou?, perguntava a porteiros e pas-santes. Com certeza já a tinha visto an-tes – me mandaram procurá-la porque se trata de uma daquelas figurinhas sempre avistadas no Cine Humberto Mauro. Uma velhinha que gosta muito de falar, disseram. E estavam certos quanto à última parte. Erraram feio foi ao descrevê-la como “velhinha”. A começar pelo nome, nada em Auckje Mary Werkema lembra uma mulher frágil.

Já a tinha visto lá antes, como sus-peitei. Sentamos para conversar pou-cos dias depois do término de um fes-tival de curtas. Contou que assistiu a algumas sessões, mas que não era seu tipo favorito de mostra. “É tudo muito rápido, não dá tempo de pensar sobre o que você viu, parece TV. Eu gosto do que dá mais tempo para refletir, ab-sorver. Por isso eu acho essa sala fan-tástica, ela permite isso”, já emendou de início.

A preferência por esse tipo de cine-ma é algo antigo, surgiu nos tempos vividos no Colégio Marconi – fundado em 1937 por imigrantes italianos e ob-tido como espólio de guerra, ela con-tou. Lá estudou com Silviano Santiago e Ezequiel Neves, colegas que viriam a se tornar importantes frequentadores e fomentadores do Centro de Estudos Cinematográficos. Culpa esse tempo por grande parte do que viria a fazer depois. Aprendeu francês e um pouco de italiano na época – os filmes mui-tas vezes chegavam sem legendas e a curiosidade não deixava que o idioma se interpusesse entre ela e as fitas. As-sistia aos filmes franceses da Nouvelle Vague e ficava encantada. “Imagine, aos 15 anos ver toda aquela liberação. Lia Simone de Beauvoir e pensava ‘Meu deus, ela está falando da minha vida!’. Naquele momento eu decidi que nenhum homem mandaria em mim, nunca”, diz com paixão e olha para mim como quem desconfia de que o outro não imagina a dimensão do que está sendo dito. Não imaginava mesmo.

Naquele momento ainda não fazia ideia da história daquela “velhinha”. Aos 73 anos, está longe de se aposen-tar – odeia ficar parada – e sustenta o título de Consultora em Desen-volvimento Sustentável Integrado. E como é essa história? No currículo se vê o diploma do mestrado em Psicolo-

piauí_dezembro

gia, os doze anos como educadora na Universidade Municipal de Santa Bár-bara, na Califórnia, os dois anos em um cargo técnico na Organização das Nações Unidas, em Nova York, e seu tempo como representante adjunta da UNICEF no Vietnam – onde tam-bém atuou como oficial de Programas para as áreas de assistência e educação materno-infantil e na integração e ca-pacitação de excepcionais e vítimas da guerra, por um período de seis anos. É ainda “membro vitalício da Sociedade Honorária de Psicologia”. Os títulos são muitos, mas dizem menos que as histórias que se põe a contar tão logo lhe dão a deixa.

Hoje frequenta o Cine Humberto Mauro porque, em todos esses anos e incontáveis viagens pelo mundo, diz nunca ter encontrado lugar com cultu-ra tão rica como vê ali. Talvez na Fran-ça, mas não teve a chance de morar lá. A vida dela daria um filme, talvez ainda mais interessante que aqueles que a inspiraram e inspiram – será que alguém se aventura a escrevê-lo?

*

O seu andar, ainda que ágil, denun-cia que as pernas já não são as mesmas. Com o cabelo branco, a voz doce e um leve sorriso no rosto, caminha pelo salão, à espera do início do filme.

- Hoje a gente conversa, Dona Mércia?

- Nossa, você lembrou? Eu esqueço tudo! Mas não, não, eu não dou entre-vista não – ri com um sorriso acanhado que desarma qualquer jornalista.

Já havia tentando convencê-la an-tes. Só umas palavrinhas, bater um papinho. Mas ela não queria nem sa-ber. Disse não, não, não, balançando os cabelos brancos e dando um jeito de escapar. “Fala com a Auckje, ela é inteligente”, disse. As pernas frágeis ainda imprimem boa velocidade.

Conversei despretensiosamente com ela depois – como são traiçoeiros os jor-nalistas! Descobri que ela se desloca todos os dias do bairro Sagrada Família para assistir filmes. Ficou um tempo sem aparecer, estava fazendo fisiotera-pia. Tão logo pôde, estava de volta.

- Não fica para os debates?- Não. É cansativo demais – respon-

deu tão somente.- Vem é para os filmes mesmo, né?- Os filmes sim – frase simples, dita

diretamente. Mas foi o sorriso que de-nunciou – Assisto de tudo, sempre.

Logo, logo, já estava lá dentro para o filme seguinte. Às vezes não se pre-cisa de maiores explicações..

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