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1 DIÁRIO DE BORDO, Por Fernando Évora e Gonçalo Condeixa A vida são escadas. Escadas que se sobem e se descem. Há quem não as queira subir, quem as evite, quem comodamente procure os elevadores. A Educação é a vida. É prepararmo-nos para a viagem, ajudarmos o outro a subir as escadas sem se deslumbrar com as vistas ou combater o medo da vertigem. É saber que nas escadas um degrau se pode quebrar e então temos de suster o pé, conservar o equilíbrio, repará-lo. Entre as escadas há nuvens. Nuvens passageiras, nuvens de conhecimento, nuvens que chocam entre si e desencadeiam violentas tempestades. Chegámos a Follonica no projeto “aprender juntos”. Viemos ver como funciona uma escola em Itália. Viemos subir escadas, olhar o mundo de uma nova perspetiva. Viemos aprender porque sabemos que estamos sempre a aprender juntos e porque sabemos que só podemos ensinar se aprendermos mais e mais. Aprender com os nossos alunos e, agora também, com os alunos e colegas italianos. Aprender para fazer melhor. Que há tanto para aprender!

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DIÁRIO DE BORDO,

Por Fernando Évora e Gonçalo Condeixa

A vida são escadas. Escadas que se sobem – e se descem. Há quem não as queira subir, quem as evite,

quem comodamente procure os elevadores.

A Educação é a vida. É prepararmo-nos para a viagem, ajudarmos o outro a subir as escadas sem se

deslumbrar com as vistas – ou combater o medo da vertigem. É saber que nas escadas um degrau se pode

quebrar e então temos de suster o pé, conservar o equilíbrio, repará-lo.

Entre as escadas há nuvens. Nuvens passageiras, nuvens de conhecimento, nuvens que chocam entre si e

desencadeiam violentas tempestades.

Chegámos a Follonica no projeto “aprender juntos”. Viemos ver como funciona uma escola em Itália.

Viemos subir escadas, olhar o mundo de uma nova perspetiva. Viemos aprender porque sabemos que

estamos sempre a aprender juntos e porque sabemos que só podemos ensinar se aprendermos mais e

mais. Aprender com os nossos alunos e, agora também, com os alunos e colegas italianos. Aprender para

fazer melhor. Que há tanto para aprender!

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Buogiorno, Follonica!

DIÁRIO DE BORDO,

Por Fernando Évora e Gonçalo Condeixa

Follonica, 7 de maio de 2018

Chegámos ao ISIS! Não, não viemos para o Estado Islâmico. O nosso ISIS é o Istituto Statale Istruzione

Superiore em Follonica.

Chegámos eram 7:30 que as aulas aqui começam ao quarto para as oito. O ISIS é um Liceo – como aqui se

chama. Tem alunos a partir dos 14 anos. O último ciclo de estudos em Itália começa no que corresponderá

ao nosso 9º ano e dura cinco anos (os alunos fazem treze anos desde as primeiras letras à entrada da

Universidade). No ISIS de Follonica há as opções de Ciências Humanas, Científico, Ciências Aplicadas e

Linguística, isto no que corresponderá aos nossos “científico-humanísticos”.

Fiquemos com as primeiras impressões:

O edifício da escola é antigo. Muitas salas têm com pouca luz, o betão domina, o mobiliário é obsoleto,

está longe de ser um espaço fisicamente agradável; há aulas de Filosofia dadas nas salas de informática

com dificuldades para o contacto visual.

Outro aspeto que mereceria reparos em Portugal é a ausência de um bufete. Há apenas máquinas com

comida de estilo bimbo. Ideia a não ser copiada.

Os nossos colegas foram muito simpáticos. Assistimos às aulas da manhã. Cinco aulas de uma hora.

Lembrámo-nos quando as aulas ainda não eram de noventa minutos e tivemos saudades (e inveja dos

nossos colegas que só trabalham 18 tempos letivos, nada mais). De um modo geral as turmas são mais

pequenas que as nossas (ai que bom!). Nas aulas a que assistimos houve grande dinamismo – os

professores eram excelentes comunicadores, expressavam-se muito bem (eu, finalmente, percebi a

questão estética em kant – e explicada em italiano). Os alunos pareceram muito empenhados, de um

modo geral bem mais empenhados e participativos do que os nossos – e terá de haver explicação para

isto.

Julgo que entendemos muito razoavelmente as aulas em italiano – é giro falar do Cartasio e do Bacone,

que são o Descartes e o Bacon, de Shakespeare, dos conceitos de inteligência, a arte de aprender a ver em

Klimt, Caravaggio ou Van Gogh. Respirava-se aquele ar entusiasmante do conhecimento, sentia-se a

curiosidade, os alunos não se coibiam de dar a sua opinião, faziam-se pontes com notícias atuais ou filmes

recentes.

Alguma dificuldade existiu no nosso contacto com alguns professores que falam pouco inglês (entre eles

parece dominar o francês e nós os dois somos trapalhões na língua de Voltaire). Mas com os alunos

falámos em inglês. E falámos bastante. Sempre simpáticos e curiosos, trocámos opiniões e os desenhos do

Gonçalo foram um motivo de aproximação e boa disposição.

Acabámos as aulas à uma da tarde e a escola fechou, que aqui não há aulas depois do almoço. São sempre

e apenas de manhã, mas também são ao sábado. Contas feitas acabam por ser mais ou menos as mesmas

que em Portugallo.

Ainda é só o começo.

Amanhã damos mais novidades.

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DIÁRIO DE BORDO,

Por Fernando Évora e Gonçalo Condeixa

Follonica, 8 de maio de 2018

As boas impressões continuam. A capacidade dos alunos para argumentar, expor as

suas ideias, falar fluentemente sobre os diversos assuntos – desde Piaget, Freud,

Rafaello ou Leonardo – causa-nos espanto. Talvez o segredo esteja no paradigma

da avaliação que passamos a explicar em seguida.

A maior parte da avaliação das diversas disciplinas é baseada nas “interrogaziones”.

O termo português mais próximo talvez seja “chamadas orais”. Já assistimos a

várias por aqui. O professor junta três alunos e coloca-lhes questões à vez, fazendo

três ou quatro voltas por todos. São questionários relativamente longos e

profundos (admira-nos como os alunos sabem tanto daquelas matérias) que

podem durar a aula toda (55 minutos). Estes são os principais elementos de

avaliação dos professores e em alguns casos são mesmo os únicos (até em

disciplinas como História ou Filosofia).

Talvez este hábito, que é sistematicamente aplicado desde a primária, desenvolva

nos alunos a sua capacidade, que tanto nos tem espantado, de falar sobre os mais

diversos assuntos.

Perguntamos como são os exames escritos no final dos 13 anos de secundário. A

maioria funciona por tema (lembrem-se que estamos a falar sobretudo de alunos

da área de Humanidades). Os alunos têm um tema vasto, de conhecimentos que

adquiriram ao longo dos cinco anos do “Superior” (entre os 14 e os 19 –

explicaremos depois como está organizado o ciclo de estudos) e elaboram uma

composição sobre esse tema.

Quanto às aulas tendem, na maior parte dos casos, para se transformarem numa

espécie de “brainstorming”.

Amanhã há mais!

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DIÁRIO DE BORDO,

Por Fernando Évora e Gonçalo Condeixa

Follonica, 9 de maio de 2018

Como em todas as escolas existem turmas calmas e ponderadas em que os alunos

intervêm de forma organizada e outras mais caóticas e anárquicas. Contudo ainda

não vimos turmas amorfas em que as intervenções precisem de ser tiradas a saca-

rolhas. E isso não para de nos espantar. Talvez que se deva, como apontámos

antes, a este hábito das chamadas orais e ao estímulo continuado à discussão;

talvez se deva à personalidade expansiva que é uso ligarmos aos italianos; talvez às

duas coisas ou talvez que a educação estimule a maneira de ser do italiano

comunicativo.

As matérias ensinadas são muito curiosas. Hoje, no 5º ano (o ano anterior à

entrada na Universidade, correspondente a um 13º ano) falava-se de alunos com

necessidades educativas especiais, a formulação teórica da sua integração escolar e

a legislação existente. Isto é matéria escolar para os alunos. Numa outra aula,

sobre Leonardo Da Vinci fiquei a perceber – finalmente! – que caminho poderei

seguir para demonstrar aos meus alunos a importância da Gioconda. O Gonçalo

enfim teve o seu momento de felicidade e assistiu a uma aula de desenho técnico,

daquelas com assistente e tudo. É que nesta escola não funciona a opção de artes

no “superior”.

Expliquemos então a organização dos ciclos em Itália:

Há um primeiro ciclo de 5 anos (a materna), um segundo ciclo de 3 anos e um final

de outros cinco (a que chamam o “superior”). A escola que nos recebeu é uma

“superior”, aqui chamada “Liceo”. Neste superior, e além dos cursos técnicos e

profissionais, há as seguintes opções de estudos: científico (que se pode desdobrar

em “ciências aplicadas”), humanístico, clássico (com enfoque no latim e grego),

linguístico (línguas estrangeiras), artístico e musical. Na escola de Follonica existem

as opções de Ciências, Ciências aplicadas, Humanidades e Linguístico (além de

profissionais e técnicos). Quem quiser seguir outras opções terá de ir para Grosseto

(sede do distrito) a 40 quilómetros. Os planos de estudos, contudo, são

abrangentes: todos os alunos, seja de que opção forem, têm História e História da

Arte; os alunos de Humanidades têm Biologia ou Matemática (com menos horas do

que na opção científica)

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Agora uma nota diversa, menos positiva. E tem a ver, novamente, com as

instalações. Desta vez as casas de banho: sem água, sem papel, em mau estado. Os

alunos ficam invejosos quando sabem que nós temos bufetes e uma grande

biblioteca (é mesmo verdade: os alunos italianos leem livros e não sentem

vergonha por isso) e até uma papelaria. Nesta escola não há nada disso (e repetem-

nos que não é a pior). Ficamos a pensar que se houvesse opção de artes talvez que

os espaços pudessem estar melhor arranjados. Sobretudo se houvesse por cá um

Gonçalo.

Amanhã damos mais notícias.

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DIÁRIO DE BORDO,

Por Fernando Évora e Gonçalo Condeixa

Follonica, 10 de maio de 2018

É o nosso penúltimo dia. Começam já as saudades do que há-de vir. É que é bom

estar nestas aulas. Aprendemos, falamos com os alunos. Sentimos que gostam da

nossa presença.

Uma aluna aproxima-se de nós. É do 4º ano de humanidades (o penúltimo ano

escolar). Chama-se Blu e é uma admiradora de Fernando Pessoa. Recita-nos a

autopsicografia de Pessoa “O poeta é um fingidor…”. Diz-nos que há dois anos foi a

Lisboa e visitou a casa de Fernando Pessoa. Que chorou. É bom saber que os nossos

poetas são os nossos melhores embaixadores. Mas que não gosta só de Pessoa.

Fala-nos também de música brasileira, de Chico Buarque e de Caetano e de

Bethânia. Que tenta traduzir para italiano as suas letras.

E isto traz-nos de volta a questão da cultura, a paixão da arte. Em muitas aulas

vimos essa paixão e percebemos que os programas apontam muito para as

referências culturais. Talvez que os programas portugueses o pudessem fazer

melhor. Nos últimos anos, no nosso país, com o argumento que esse conhecimento

que é, reconhecemo-lo, em parte empírico e está facilmente disponível na internet,

abandonou-se – ou, pelo menos, desvalorizou-se – o conhecimento das referências

artísticas e literárias. Temos dúvidas que esse seja um bom caminho.

Hoje o dia foi diferente. Enquanto eu, Fernando Évora, permaneci nas aulas

escolares, o Gonçalo foi convidado para assistir ao dia do “Tiro”. Todos os alunos

do último ano (que corresponderia ao nosso 13º) foram “atirar” aos pratos. Uma

longa sessão de preparação (2 horas) e depois campo de tiro com todo o quinto

ano. Trata-se de uma iniciativa desta escola animada por um professor de

Educação Física que na palestra referiu a tradição italiana na modalidade – várias

medalhas olímpicas. Ainda teve tempo o Gonçalo para assistir ao torneio de

Voleibol.

Eu despedi-me do Andrea Nuti, professor de Ciências Sociais que não tem aulas

amanhã. Um professor que nos perdurará na memória: excelente comunicador,

muito atento, sempre assertivo.

Arrivederci, Andrea. O primeiro dos arrivederci.

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DIÁRIO DE BORDO,

Por Fernando Évora e Gonçalo Condeixa

Follonica, 11 de maio de 2018

Último dia.

Começamos com uma aula de História. A professora pede-me para falar sobre a

História de Portugal. Faço um apanhado muito rápido. Pedem-me que detenha na

questão dos Descobrimentos. Porque, diz um aluno, ao fim e ao cabo foi a viagem

de Vasco da Gama à Índia que levou à crise veneziana. Precisamente. E qual a

razão, perguntam-me, porque não aceitou D. João II a proposta de Cristóvão

Colombo? Debatemos o assunto. Tento-lhe explicar no meu melhor inglês. Depois a

conversa vem parar ao século XX e á ligação entre Mussolini e Salazar. E aproveito

para falar do último rei de Itália – Umberto II – que viveu em Portugal quando em

1946 foi proclamada a República em Itália. E que esse mesmo rei, que era Duque

de Sabóia, visitou uma terra com o mesmo nome perto do local onde vivo. Curioso.

A aula decorre depressa. Talvez depressa demais que este é dia da dolorosa

despedida.

Numa outra aula vimos uma mesa com livros vários, já usados. Pergunto do que se

trata. É um projeto da turma, explica-me a aluna que teve a ideia: os alunos trazem

livros que já leram e que gostavam que os amigos lessem. Luccia mostra-me

orgulhosa o “Billy Elliot”. Entre os livros encontro o “Afirma Pereira” de António

Tabucchi, cuja ação decorre em Portugal nos anos trinta. Conheço a aluna que o

leu. Afinal estamos tão próximos. A literatura aproxima os povos, cada vez me

convenço mais.

O fim aproxima-se. Os alunos rodeiam-nos, querem ver os desenhos do Gonçalo.

Agora que nos estávamos a conhecer melhor vão-se embora. Falam na

possibilidade de fazermos um intercâmbio. Seria bom, sempre nos voltaríamos a

ver. Talvez, dizemos. Vamos pensar no assunto. Falo com a nossa colega Elena,

lançamos as primeiras pedras de visitas entre os nossos alunos.

Os arrivederci, as últimas fotografias. Levamo-nos na memória, gostámos de todos

vós. Como se diz saudade em italiano?

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