UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (DOUTORADO)
JULIANE FERREIRA VIEIRA
IDENTIDADE DE ACADÊMICOS SEM TERRA DO MATO GROSSO
DO SUL: UMA ANÁLISE BAKHTINIANA DAS VOZES
CONSTITUINTES DE SEUS RELATOS PESSOAIS
MARINGÁ - PR
2018
JULIANE FERREIRA VIEIRA
IDENTIDADE DE ACADÊMICOS SEM TERRA DO MATO GROSSO
DO SUL: UMA ANÁLISE BAKHTINIANA DAS VOZES
CONSTITUINTES DE SEUS RELATOS PESSOAIS
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras (Doutorado) da Universidade Estadual
de Maringá (UEM) como parte dos requisitos
para obtenção do título de Doutora em Letras.
Área de Concentração: Estudos Linguísticos
Orientador: Prof. Dr. Edson Carlos Romualdo
MARINGÁ – PR
2018
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Biblioteca Central - UEM, Maringá, PR, Brasil)
Vieira, Juliane Ferreira
V658i Identidade de acadêmicos sem terra do Mato Grosso
do Sul: uma análise Bakhtiniana das vozes
constituintes de seus relatos pessoais / Juliane
Ferreira Vieira. -- Maringá, 2018.
315 f : il., quadros.
Orientador(a): Prof. Dr. Edson Carlos Romualdo.
Tese (doutorado) - Universidade Estadual de
Maringá, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes,
Programa de Pós-Graduação em Letras - Área de
Concentração: Estudos Linguísticos, 2018.
1. Identidade. 2. Signo ideológico. 3. Gênero
discursivo. 4. Relato pessoal. 5. Acadêmicos sem
terra. I. Romualdo, Edson Carlos, orient. II.
Universidade Estadual de Maringá. Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação
em Letras - Área de Concentração: Estudos
Linguísticos. III. Título.
CDD 21.ed. 410.1
AHS-CRB-9/1065
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Prof. Dr. Edson Carlos Romualdo
Universidade Estadual de Maringá – UEM
– Presidente –
_________________________________________________
Prof. Dr. Neil Armstrong Franco de Oliveira
Universidade Estadual de Maringá – UEM
_________________________________________________
Profa. Dra. Flávia Zanutto
Universidade Estadual de Maringá – UEM
__________________________________________________
Profa. Dra. Terezinha da Conceição Costa-Hübes
Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE
___________________________________________________________
Profa. Dra. Luciane de Paula
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP – Assis
MARINGÁ - PR
2018
Àqueles que lutam por justiça social e
por educação de qualidade para Todos.
Tecendo a manhã1
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
João Cabral de Melo Neto
1 MELO NETO, J. C. de. A educação pela pedra. In: Poesias Completas. Rio de Janeiro, Ed. Sabiá, 1968.
NO FIAR DE UMA TESE: OS AGRADECIMENTOS
Assim como uma manhã, uma tese não se fia sozinha.
Para concretizar esta pesquisa, que ora apresento, precisei de muitas mãos e de muitas
vozes para me ajudar a tecê-la. Algumas já estavam comigo, ombro a ombro, fiando outros
trabalhos, outros objetivos. Outras chegaram, recentemente, não menos relevantes, juntaram-
se a mim e se colocaram a trilhar comigo este caminho. Pude sentir a força de seus braços
erguidos a me encorajarem nessa luta que é tesear.
Em um movimento dialógico, algumas pessoas encarregaram-se de contribuir com suas
vozes experientes, de me orientarem, de me lançarem luz teórica, de me conduzirem a um
Bakhtin ainda pouco conhecido por mim. Outras apanhavam minha voz, às vezes, insegura,
confusa, desesperançada e me devolviam coragem, confiança, entusiasmo, esperança.
Então, não poderia ser diferente, sou uma pesquisadora-sujeito sócio-historicamente
constituída. O meu interior e a minha palavra não são soberanos, pois o outro – meus
professores, familiares e amigos – me constitui. Desse modo, quando olho para dentro de
mim, olho vocês nos olhos ou me vejo por meio de seus olhos. Sou, então, como um
enunciado, parafraseando Bakhtin (2011), plena de ecos e ressonâncias de outros. Assim, é
com gratidão e respeito que agradeço àqueles que contribuíram para que esta pesquisa
passasse de uma teia tênue para uma Tese Bakhtiniana e, também, àqueles que me
dispensaram sua atenção e amizade durante esses cinco anos de estudos.
Ao meu orientador, Professor Edson Carlos Romualdo, por me aceitar como sua
orientanda e, também, pela confiança, orientação e competência com a qual me guiou nesse
processo de doutoramento. Por sua generosidade em compreender minhas necessidades,
morando em Dourados-MS e, de repente, em Regensburg. Agradeço, Professor, por
apresentar-me a face discursiva de Bakhtin e me desafiar a descortiná-la e, também, por me
levar a interagir com conceitos e noções bakhtinianos, às vezes, tão incompreensíveis para os
iniciantes como eu, mas que, com suas explicações ficavam mais e mais compreensíveis.
Obrigada, Professor. Sua voz me constitui.
Ao meu esposo, Magno Trindade, pelo companheirismo, encorajamento, apoio,
amizade, incentivo, paciência e carinho. Obrigada, por trilhar esse caminho comigo, e por me
oportunizar compartilhar contigo minhas análises bakhtinianas.
À minha amiga Silvia Caroline Gonçalves e aos seus pais, Silvio Gonçalves e Ester
Gonçalves, pela amizade, palavras de incentivo e orações. Por serem meus braços direito e
esquerdo para assuntos de PLE. Também pelos nossos cafés, conversas e descontração. Meus
amigos, presentes de Deus, nossa amizade me trouxe grandes aprendizados. Gratidão e
admiração sempre.
À CAPES, pelo apoio financeiro concedido durante dois anos desta pesquisa. Espero
que esse apoio seja constante e continue incentivando a pesquisa no Brasil.
Às amigas e coordenadoras do curso de licenciatura em Ciências Sociais Alzira Salete
Menegat e Marisa de Fátima Lomba de Farias, pela amizade de sempre. Obrigada pelo
convite para fazer parte da equipe do curso, pelo aprendizado, pelo exemplo de pesquisadoras
e professoras que vocês são. Sou grata pelas horas de explicações/aulas sobre terra, reforma
agrária, educação do campo, movimentos sociais e, também, pela biblioteca emprestada.
Agradeço, imensamente, pelos socorros dados, via whatsapp e e-mail, ou a qualquer sinal de
pedido de help! Enfim, pelo caminho de amizade, tão longo e tão significativo em minha vida.
Suas vozes ecoam nesta tese e vocês me constituem. Obrigada, Meninas!
Às graduandas e aos graduandos do curso de licenciatura em Ciências
Sociais/Pronera, por me proporcionarem adentrar suas histórias, trilhar por seus caminhos,
desvelar suas identidades por meio de seus relatos pessoais. Obrigada por suas vozes ecoarem
contra a exclusão e exploração, por erguerem seus braços fortes para lutar por uma educação
do campo de qualidade e libertadora. Aprendemos com vocês.
À professora Áurea Rita de Ávila Lima Ferreira, pela amizade e por dividir comigo as
disciplinas no curso de Ciências Sociais e, também, suas experiências e conhecimentos.
Aos professores que comporam a Banca de Qualificação do Doutorado, Neil Armstrong
Franco de Oliveira e Terezinha da Conceição Costa-Hübes, pela leitura atenta e pelas
valiosas contribuições.
Aos professores das nove disciplinas cursadas no PLE: Juliano D. Antonio, Luciana Di
Raimo, Roselene de Fátima Coito, Cristiane C. Capristano, Sonia Lopes Benites, Maria
Regina Pante, por toda aprendizagem, pelo profissionalismo e por compartilharem conosco
seus conhecimentos e contribuírem para nosso crescimento como pesquisadores e professores.
Em especial, ao professor Renilson José Menegassi, por suas aulas, que, em 2013, me
apresentaram o PLE e foram fundamentais para que eu quisesse fazer parte do Programa
como aluna. Suas aulas me conquistaram. Pela sua didática, pelo seu profissionalismo, por
dividir conosco suas experiências bakhtinianas, obrigada.
Ao secretário do PLE, Adelino Marques, pelo suporte dado nos diversos momentos
vivenciados como aluna do PLE, sempre fazendo o possível para nos atender, especialmente,
aos de fora e aos de longe.
Aos meus pais, Fatima F. Vieira e Eurides Vieira, pelo incentivo aos estudos.
Aos amigos Maria Luzia Lomba de Souza e Paulinho de Souza, pela amizade de sempre
e pela acolhida em Maringá, como ocorreu no mestrado em Três Lagoas. Também por me
buscaram, de madrugada, na rodoviária de Maringá. Esse suporte foi muito valioso para que
eu continuasse minha caminhada rumo ao doutorado. Obrigada, Amigos!
À Elaine de Moraes Santos, pela amizade, confiança e incentivo.
Ao Guilherme Rocha Duran, que tão prontamente me possibilitou ler sua tese.
À Giana Amaral Yamin, pela amizade e pela luz que é na minha vida.
Pela amizade, positividade, encorajamento, reflexões e experiências compartilhadas das
amigas Paula Cartapatti, Míria Campos, Edilaine Buin, Renata Raffa, Tatiana V. Grigoletti e
às minhas meninas Iara Cartapatti, Marina Cartapatti e Maria Julia V. Grigoletti. À Larissa
X. Valenzuela, pela amizade e contribuição nos momentos de necessidade. Também à dona
Nelci Bevilaqua e à sua filha Jennifer Bevilaqua, pela amizade e por me acolherem em seu
pensionato em Maringá.
À minha sempre professora e orientadora Maria das Dores Capitão Vigário Marchi,
pela amizade e pelo incentivo ao doutorado, desde a iniciação científica.
Aos amigos do PLE, Fatima Sena, Daiane Jodar, Aline B. Züge, Rejone Machado,
Silvia Gonçalves, Adriana Gisele Estevão, Nataly Rosa, Tainara Cangussú, Valéria C. de
Oliveira, Rafael Petermann, Edh Carlos Pagani e tantos outros, com os quais dividi
momentos de estudo e de descontração. Em especial, ao Bruno Ciavolella e à Sônia
Bervegliere, por me encorajarem quando eu ainda era aluna não regular.
A Deus, pela força e proteção na vida e, especialmente, nas viagens Dourados-Maringá-
Dourados. Obrigada por me proporcionar dialogar e interagir com todos esses sujeitos sócio-
historicamente construídos.
Bakhtin, sua teoria me energiza.
VIEIRA. J. F. Identidade de acadêmicos sem terra do Mato Grosso do Sul: uma análise
bakhtiniana das vozes constituintes de seus relatos pessoais. 2018. 315f. Tese (Doutorado
em Letras). Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2018.
RESUMO
Esta pesquisa tem como objeto a constituição da identidade dos acadêmicos sem terra do
curso de licenciatura em Ciências Sociais da Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD), pelo viés das relações histórico-sociais da história da terra. Trata-se de uma pesquisa
ancorada nos pressupostos da Linguística Aplicada, adotando como aporte teórico-
metodológico os estudos do Círculo de Bakhtin. Concebe-se, assim, o homem como social, o
sujeito como sócio-historicamente constituído e como ponto norteador para a pesquisa a
seguinte pergunta: “Como se constitui a identidade dos acadêmicos do primeiro curso voltado
especificamente para este grupo social?” Diante dessa questão, propõe-se a tese de que a
identidade dos graduandos sem terra do curso de Ciências Sociais (UFGD) é sócio-
historicamente constituída nos caminhos de construção dos signos terra, reforma agrária e
educação do campo. Para verificar a viabilidade dessa tese, traça-se como objetivo geral
compreender as vozes sócio-históricas que constituem a identidade dos graduandos, por meio
de seus relatos pessoais, dos referidos signos e do Projeto Político Pedagógico do curso (PPP).
A análise busca, no encontro da palavra com a contrapalavra na constituição dos signos e do
PPP, delinear a identidade do sujeito acadêmico sem terra via seus relatos. O olhar para os
relatos pessoais pela perspectiva bakhtiniana demonstra que o centro organizador das
identidades dos acadêmicos sem terra não está nelas mesmas, mas no mundo exterior, nos
elementos extraverbais, na relação com o outro. Verifica-se que os signos terra, reforma
agrária e educação do campo foram deixando de significar uma realidade em si e passaram,
na relação dialógica, a serem ideológicos por carregarem em si realidades sócio-histórico-
discursivas múltiplas, ora conflitantes, ora consensuais. Além disso, pode-se perceber como se
desenhou o ensino-aprendizagem nas escolas rurais do Brasil, principalmente, o de Língua
Portuguesa, muitas vezes, caracterizado pela exclusão e pela reafirmação de preconceitos.
Observa-se, enfim, que o gênero relato pessoal foi primordial para se delinear a identidade
dos acadêmicos sem terra, além de evidenciar que a preocupação com o ensino da escrita não
deve estar somente no produto em si, mas na sua relação com as valorazações e ideologias de
quem escreve, levando-se em conta o contexto sócio-histórico do qual faz parte.
Palavras-chave: identidade, signo ideológico, gênero discursivo, relato pessoal, acadêmicos
sem terra.
VIEIRA. J. F. Identity of landless undergratuation students from Mato Grosso do Sul,
Brazil: a Bakhtinian analysis of the voices that constitute their personal reports. 2018. 315f.
Dissertation (Doctor's Degree in Letras). Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2018.
ABSTRACT
This study aims at establishing the identity of landless undergraduation students of Social
Sciences of the Federal University of Grande Dourados (UFGD) through the bias of socio-
historical relations that constitute the land history. It is a research anchored in the assumptions
of Applied Linguistics, adopting as theoretical-methodological contribution the studies of the
Circle of Bakhtin. Man is thus conceived as social, subject as socio-historically constituted
and as guiding point for research the following question: "How is constituted the identity of
the undergraduate students of the first course designed specially to the landless clientele?"
Facing this issue, the thesis proposed is that the identity of landless undergraduates of the
Social Sciences course (UFGD) is socio-historically constituted in the ways of constructing
the signs terra, reforma agrária and educação do campo. To verify the feasibility of this
thesis, our general aim is to understand the socio-historical voices that constitute the identity
of those students, through their personal reports of those signs and the Political Pedagogical
Project (PPP) of the course analyzed. The analysis seeks, in the encounter of the word with
the counterword in the constitution of the signs and the PPP, to delineate the identity of the
academic subject without land via his reports. The approach to personal reports from the
Bakhtinian perspective shows that the organizing center of the landless undergraduates’ voice
is not in themselves, but outside the outer world, in extraverbal elements. It can be noticed
that the signs terra, reforma agrária and educação do campo no longer signified a reality in
themselves and, in the dialogical relationship, started to reflect another reality, for being
ideological and carrying within themselves multiple realities, sometimes conflicting,
sometimes consensual. Besides that, it is possible to notice how the teaching-learning process
was designed in rural schools in Brazil, mainly regarding Portuguese language, often
characterized by exclusion and reassertion of prejudices. Finally, it can be observed that the
genre personal report was extremely important for us to design the identity of the landless
undergraduates, besides evidencing that the preoccupation with the teaching of writing must
not be only with the product itself, but with its relation with valorizations and ideologies of
the one who writes, taking into account the social-historical context that he/she is part of.
Keywords: Identity; ideological sign; discursive gender; personal report; landless
undergraduates.
LISTA DE SIGLAS
ACD – Análise Crítica do Discurso
CAN – Colônias Agrícolas Nacionais
CPMI – Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
CPT – Comissão Pastoral da Terra
CEBs – Comunidades Eclesiais de Base
CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CUT – Central Única dos Trabalhadores
ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio
FCH – Faculdade de Ciências Humanas
FAF – Federação de Agricultura Familiar de Mato Grosso do Sul
FETAGRI/MS – Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Mato Grosso do Sul
UNESCO – Fundo das Nações Unidas para a Ciência e Cultura
UNICEF – Fundo das Nações Unidas para Infância
GO – Goiás
GT-RA/UnB – Grupo de Trabalho de Apoio à Reforma Agrária da Universidade de Brasília
ENERA – Encontro Nacional das Educadoras e Educadores da Reforma Agrária
IBAD – Instituto Brasileiro de Ação Democrática
IBGE – Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística
IMAD – Instituto de Meio Ambiente e Desenvolvimento
IPES – Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
MT – Mato Grosso
MEC – Ministério da Educação
MMC – Movimento de Mulheres Camponesas de Mato Grosso do Sul
MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
MS – Mato Grosso do Sul
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
PCB – Partido Comunista Brasileiro
PT – Partido dos Trabalhadores
PPP – Projeto Político Pedagógico
PRONERA – Pronera Nacional de Educação na Reforma Agrária
SESU – Secretaria de Educação Superior
SAPP – Sociedade Agrícola de Plantadores e Pecuaristas de Pernambuco
SNA – Sociedade Nacional de Agricultura
SRB – Sociedade Rural Brasileira
TCC – Trabalho de Conclusão de Curso
UFGD – Universidade Federal da Grande Dourados
UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
UDN – União Democrática Nacional
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Síntese dos sentidos construídos pelas vozes opositoras para os signos ideológicos
terra, reforma agrária e educação do campo..........................................................................87
Quadro 2: Síntese dos sentidos construídos pelas vozes consonantes para os signos
ideológicos terra, reforma agrária e educação do campo.....................................................152
Quadro 3: Estrutura Curricular do Curso de Ciências Sociais/Pronera-UFGD....................199
Quadro 4: Estrutura Curricular do Curso Regular de Ciências Sociais – UFGD –
Licenciatura............................................................................................................................200
Quadro 5: Atividades Avaliativas para o Tempo Comunidade ............................................205
Quadro 6: Atividade Avaliativa para o Tempo Comunidade ..............................................206
Quadro 7: Síntese dos sentidos construídos no PPP do curso para os signos ideológicos terra,
reforma agrária e educação do campo ..................................................................................209
Quadro 8: Assuntos presentes nos relatos pessoais dos graduandos sem terra ....................235
Quadro 9: Divisão dos Assuntos em Macrocategorias .........................................................236
SUMÁRIO
INICIANDO O DIÁLOGO ................................................................................................... 15
CAPÍTULO I – A CONSTITUIÇÃO DOS SIGNOS IDEOLÓGICOS TERRA,
REFORMA AGRÁRIA E EDUCAÇÃO DO CAMPO: VOZES HISTÓRICO-SOCIAIS
DISCORDANTES À DISTRIBUIÇÃO DE TERRAS ........................................................ 32
1.1 Vozes Teóricas ................................................................................................................... 34
1.1.1 Construção do Signo Linguístico, Social e Ideológico no Círculo de Bakhtin ............... 35
1.1.2 Infraestrutura e Superestrutura ........................................................................................ 39
1.2 Vozes Histórico-sociais ...................................................................................................... 41
1.2.1 Período Monárquico: o sistema de Sesmarias ................................................................. 43
1.2.2 Lei de Terras de 1850 e Constituição Federal de 1891 ................................................... 51
1.2.3 Constituição Federal de 1946 .......................................................................................... 58
1.2.4 Associações Rurais .......................................................................................................... 61
1.2.5 Governo Militar e o Estatuto da Terra ............................................................................. 67
1.2.6 Igreja Católica.................................................................................................................. 75
1.2.6.1 Carta Pastoral de Dom Inocêncio ................................................................................. 76
1.2.6.2 TFP (Tradição, Família e Propriedade) ........................................................................ 80
CAPÍTULO II – A AÇÃO RESPONSIVA NA CONSTITUIÇÃO DOS SIGNOS
IDEOLÓGICOS TERRA, REFORMA AGRÁRIA E EDUCAÇÃO DO CAMPO: VOZES
HISTÓRICO-SOCIAIS CONSOANTES AO PROJETO DE DISTRIBUIÇÃO DE
TERRAS .................................................................................................................................. 93
2.1 Vozes Teóricas ................................................................................................................... 95
2.1.1 Responsividade ................................................................................................................ 96
2.2 Vozes Histórico-sociais ...................................................................................................... 99
2.2.1 PCB (Partido Comunista Brasileiro) ............................................................................. 100
2.2.2 Ligas Camponesas ......................................................................................................... 106
2.2.3 João Goulart e o seu Projeto de Reforma Agrária ......................................................... 116
2.2.4 Igreja Católica................................................................................................................ 120
2.2.4.1 Teologia da Libertação e CEBs (Comunidades Eclesiais de Base)............................ 120
2.2.5 Movimentos Sociais Rurais: CPT e MST ..................................................................... 132
2.2.5.1 CPT (Comissão Pastoral da Terra) ............................................................................. 135
2.2.5.2 MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) .......................................... 140
CAPÍTULO III – MULTIPLICIDADE DE VOZES NO PROJETO POLÍTICO-
PEDAGÓGICO DO CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS VOLTADO AOS SEM
TERRAS ................................................................................................................................ 157
3.1 Vozes Teóricas ................................................................................................................. 161
3.1.1 Polifonia ........................................................................................................................ 162
3.2 Vozes Histórico-sociais .................................................................................................... 169
3.2.1 Manual de Operações do Pronera .................................................................................. 169
3.2.2 PPP (Projeto Político Pedagógico) do Curso de Licenciatura em Ciências Sociais ...... 177
3.2.3 Organização do Projeto Político Pedagógico (PPP) ...................................................... 183
3.2.4 Vozes na Caracterização do Curso de Licenciatura em Ciências Sociais/Pronera........ 184
CAPÍTULO IV – OS RELATOS PESSOAIS: VOZES CONSTITUINTES DA
IDENTIDADE DE ACADÊMICOS SEM TERRA ........................................................... 218
4.1 Vozes Teóricas ................................................................................................................. 220
4.1.1 Gêneros Discursivos ...................................................................................................... 220
4.1.2 O Gênero Discursivo Relato Pessoal ............................................................................. 232
4.1.3 Identidade e Alteridade em Bakhtin .............................................................................. 236
4.2 Vozes Histórico-sociais .................................................................................................... 240
4.2.1 Análises: Desvendando a Identidade de Acadêmicos Sem Terra ................................. 240
4.2.1.1 Vozes da Infância ....................................................................................................... 242
4.2.1.2 Vozes da Adolescência ............................................................................................... 263
4.2.1.3 Vozes da Maturidade .................................................................................................. 268
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 298
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 302
15
INICIANDO O DIÁLOGO
Analisar um fenômeno social contemporâneo pelas lentes da teoria do Círculo de
Bakhtin2 significa realizar um exercício de rememoração do passado, já que presente e
passado estão absolutamente indissociáveis por um determinar o outro. Isso evidencia que a
história é sempre revisitada pelos interesses atuais, pelos sentidos do presente, sendo sempre
reformatada.
O caráter de descontinuidade marca a história em decorrência de a linguagem criar e
recriar o mundo histórico e valorativo. Sob a luz dos pressupostos bakhtinianos, entendemos
que a história é móvel e aberta, já que está sempre sendo reconstruída no discurso do sujeito,
no caso o contemporâneo. Desse modo, não há sentidos absolutamente mortos, pois há
qualquer momento eles podem emergir das lembranças e se lançar ao novo enunciado
dialogicamente. Por isso, Bakhtin (2011, p. 410) salienta que “[...] em determinados
momentos do sucessivo desenvolvimento do diálogo, em seu curso, tais sentidos serão
relembrados e reviverão em forma renovada (em novo contexto)”.
A história é uma memória do passado e, também, uma memória do futuro, de modo
que não “[...] há nada no presente, mesmo o orgulho e o contentamento, que não se complete
por conta do futuro (o que se revela através de um discurso satisfeito, seria a tendência de se
antecipar a si mesmo)” (BAKHTIN, 1997, p. 141). Desse modo, a história é o veículo que traz
para o presente todo signo já produzido e o relaciona com o que ainda está por vir, com o que
ainda será dito. Essa emergência da história faz-se a cada novo acontecimento, a cada nova
produção ideológica, de forma a atualizá-la, a recompô-la, a reescrevê-la. Por isso, o
pensamento bakhtiniano destaca que a história não é estagnada, não é pronta, não é concluída
e não é já-dada, mas se presentifica no uso dos signos.
2 Conforme Pires (2003, p. 36), Bakhtin fundou, em 1919, círculo multidisciplinar de estudos, cujos integrantes
eram “[...] filósofos, poetas, cientistas, críticos de arte e literatura, escritores e músicos que discutiam as questões
relevantes para as ciências sociais, norteados pela concepção de que a linguagem não deveria ser somente um
objeto de estudo da ciência linguística, mas deveria ser vista como uma realidade definidora da própria condição
humana. O Círculo de Bakhtin teve uma intensa produção escrita entre 1920 e 1929, a partir daí, com os
expurgos políticos, vários membros do círculo desapareceram e Bakhtin passou a trabalhar sozinho e em
silêncio, ele mesmo exilado na Sibéria”. A esse respeito, Geraldi (2013, p. 10) salienta que obviamente “[...] o
Círculo jamais existiu como algo institucionalizado, vinculado a alguma academia específica, em cujos arquivos
se poderiam encontrar seus rastros. Mas seus componentes, nem sempre os mesmos em todas as cidades, se
reuniam como comprovam tanto as repercussões na imprensa (desde Nevel) quanto as fotografias que ainda
circulam entre nós”.
16
Os signos são construídos ao longo da história, ao longo das interações humanas, no
intercâmbio comunicativo social vivo (VOLOCHINOV, 2013, p. 196) constituindo-se, como
afirma Miotello (2006, p. 283), “[...] no lugar onde se dá o encontro do Eu e do Outro. Logo,
lugar social, dialógico”, construído sócio-historicamente, pois, como lembra Volochínov
(2013, p. 158), não podemos chegar à constituição de “[...] qualquer enunciação – por
completa e independente que ela possa parecer – se não tivermos em conta o fato de que ela é
só um momento, uma gota no rio da comunicação verbal, rio ininterrupto, assim como é a
própria vida social, a história mesma”. Desse modo, podemos pensar que, por ser um lugar
social e de encontros, os signos tornam-se lugares de concordâncias e, também, de
discordâncias ideológicas entre um Eu e um Outro. Logo, eles guardam até mesmo as
pequenas nuances de ideologia dos sujeitos de uma determinada época. Nessa perspectiva,
Bakhtin nos mostra que todo signo é uma arena de disputas ideológicas e, no processo de sua
constituição, ideologias incorporam-se ao signo linguístico, tornando-o signo ideológico. Daí
a assertiva bakhtiniana de que “tudo que é ideológico é um signo” (BAKHTIN, 2002, p. 31).
Dessa premissa, compreendemos que são os homens, em suas relações sociais, que constroem
os signos, por isso eles carregam as ideologias de grupos sociais antagônicos e não as de um
indivíduo. Nessa ótica, a luta de classes é o motor da história social, como defende
Volochínov (2013).
Pelo olhar de Bakhtin, a história não é um marco recortado no tempo, mas é um
fluxo ininterrupto de interações entre sujeitos do hoje e do ontem, ligados pelos milhares de
fios dialógicos retomados nos variados gêneros discursivos do tempo presente, em um jogo de
aproximação e distanciamento entre passado e presente. A realidade objetiva não é, segundo
Volochínov (2013, p. 196),
[...] imóvel, não é uma realidade estática como uma escultura de bronze; sem
conhecer nem desenvolvimento nem movimento, o homem estaria imóvel. A
realidade efetiva na qual o homem vive é a história, este mar eternamente
agitado pela luta de classe, que não conhece quietude, não conhece paz. A
palavra, ao refletir esta história, não pode não refletir as contradições, o
movimento dialético, a sua ‘constituição’.
Esse olhar bakhtiniano para a história como descontínua, fluxo ininterrupto de
relações sociais entre sujeitos, interação entre o hoje e o ontem, sendo tecida por milhares de
fios dialógicos leva-nos a refletir a respeito da distribuição de terra no Brasil e da construção
identitária de estudantes envolvidos diretamente nessa problemática, tendo como ponto de
partida os relatos pessoais escritos por graduandos sem terra do curso de licenciatura em
17
Ciências Sociais, da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). A partir desse
posicionamento teórico, levamos em consideração que o sujeito dos relatos pessoais tem sua
identidade construída sócio-historicamente na alteridade, nas relações com o outro. Assumir
essa premissa bakhtiniana leva-nos a situá-lo em seu contexto social mais imediato, envolto
em suas relações com a família, a religião, os movimentos sociais, mas também em um
contexto mais amplo: trabalhador rural sem terra, herdeiro das relações excludentes e
exploratórias entre propriedade e distribuição de terra.
O curso de licenciatura em Ciências Sociais traz para o cenário universitário da
UFGD um novo sujeito, marcado pela exclusão, pelo preconceito e pela crítica de grande
parcela da população brasileira. Ele chega à universidade trazendo sua história para compor as
relações com professores, colegas, companheiros de militância, bem como com o próprio
curso, no que se refere à metodologia, conteúdos e atividades avaliativas. Nessa história, a
aprendizagem nunca é uma luta fácil de vencer, pois a escola, para ele, significa metodologias
tradicionais, conteúdos desvinculados de sua realidade, professores sem formação na área de
atuação, desvalorização do seu conhecimento e lugar onde políticas hegemônicas acentuam a
exploração no campo, condenando filhos e filhas de camponeses à reprovação, desistência,
abandono, enfim, à ignorância.
É nesse cenário educacional que o curso de licenciatura em Ciências Sociais insere-
se, ao assumir-se como um lugar social, específico, para assentados rurais do Estado de Mato
Grosso do Sul, considerando sua história e sua identidade sem terra, e ao buscar apresentar
aos graduandos e aos professores uma ressignificação do ver e fazer o ensino-aprendizagem
na universidade.
Tendo em vista essa relação entre sujeito, identidade e ensino-aprendizagem, este
estudo insere-se na linha de pesquisa Ensino-aprendizagem de línguas, pois, ao pensarmos
um problema local, que se refere ao dos graduandos sem terra de Mato Grosso do Sul,
queremos pensar macroproblemas, como o papel do ensino na constituição da identidade dos
estudantes, sejam eles do campo ou não, já que a identidade é um complexo que se move em
um curso próprio. Refletindo a partir dessa premissa, a Linguística Aplicada possibilita-nos
investigar as dificuldades enfrentadas por estudantes em contextos de exclusão, assim como
trilhar pelos caminhos de suas relações sociais, as quais conduzem suas identidades a um
estado cambiante (LEFFA, 2012).
Os relatos pessoais oportunizam-nos focalizar questões de uso concreto da
linguagem em um contexto específico e com sujeitos determinados, os quais apresentam em
seus textos propósitos comunicativos e interacionais múltiplos. Ao nos depararmos com o
18
emaranhado de vozes que tecem os relatos pessoais, a Linguística Aplicada, por seu caráter
multidisciplinar, é fundamental, ao oportunizar um diálogo com a Sociologia Rural, a História
e a Educação, viabilizando-nos o encontro com diferentes vozes localizadas em variados
momentos sócio-históricos brasileiros.
Ao compreendermos a linguagem como prática social, a Linguística Aplicada
permite-nos acessar processos de análise dos problemas concretos do uso da linguagem e,
assim, questionar como se constitui a identidade dos sujeitos graduandos sem terra do curso
em análise, pois é, no uso da linguagem, que nos constituímos e vemos quem somos
(MASTRELLA-DE-ANDRADE, NORTON, 2011). Chegar à resposta para esse
questionamento requer conhecer suas interações sociais, já que é no contexto social que as
identidades constituem-se e manifestam-se (LEFFA, 2012). A relação com o outro oportuniza
ao eu-graduando sem terra enxergar-se como sem terra pela diferença, por exemplo, pelo
olhar do latifundiário, e enxergar-se como militante sem terra pelo olhar do seu companheiro
de luta. É um sujeito abastadamente inconcluso. Como já dizia Manoel de Barros (1998, p.
79): “A maior riqueza do homem é sua incompletude. Nesse ponto sou abastado”.
Assim, caminhamos por uma Linguística Aplicada como a desejada por Moita Lopes
(2009), por: (i) abandonar a natureza aplicacionista e solucionista de problemas vinculados à
sala de aula; (ii) abdicar à restrição de operar, exclusivamente, em contextos de investigação
de ensino e aprendizagem de línguas; (iii) construir teorizações no entrecruzamento com
outros campos do saber. No sentido desejado por Moita-Lopes (2009), os linguistas
reinventam-se para atuar de forma transdisciplinar, adentrando contextos mais amplos que a
sala de aula, a fim de compreender problemas macrossociais de ensino-aprendizagem em sua
totalidade, o que, consequentemente, se reflete nas aulas de Língua Portuguesa, por exemplo.
Pela perspectiva da Linguística Aplicada, delineamos nosso objeto de pesquisa: a
constituição da identidade dos acadêmicos sem terra do curso de licenciatura em Ciências
Sociais da UFGD pelo viés das relações sócio-históricas constituintes da história da terra,
alinhavada na construção dos signos terra, reforma agrária e educação do campo.
Trabalhamos com o homem real, social, como defende Bakhtin (2011, p. 319): “[...] O objeto
real é o homem social (inserido na sociedade), que fala e exprime a si mesmo por outros
meios”.
Por conceber o homem como social e, consequentemente, o sujeito como sócio-
historicamente constituído, elegemos a teoria discursiva de Bakhtin e de seu Círculo para
nortear todo o nosso diálogo com as vozes histórico-sociais selecionadas, a fim de entender o
problema da terra no Brasil e, assim, chegarmos a delinear a identidade dos acadêmicos sem
19
terra. Conceitos e noções bakhtinianos são refletidos, nesta pesquisa, de forma dialógica com
as vozes histórico-sociais, a fim de demonstrar a construção sócio-histórica dessas vozes, logo
do problema da terra no Brasil. As vozes histórico-sociais retratam eventos/acontecimentos
histórico-discursivos, entendidos, neste trabalho, por exemplo, como o Sistema de Sesmarias,
a Lei de Terras de 1850, a Constituição Federal de 1946, o Estatuto da Terra, as Ligas
Camponesas, o grupo católico Tradição, Família e Propriedade (TFP), a Teologia da
Libertação, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST). A análise dialógica das vozes histórico-sociais é subsidiada pela teoria da
Filosofia da Linguagem, do Círculo de Bakhtin, sendo também ancorada nas discussões de
seus explicadores, como Miotello (2000, 2005, 2006) e Ponzio (2012, 2016). Ainda, por seu
caráter interdisciplinar, estabelece um diálogo com a História, a Sociologia Rural e a
Educação, por meio de estudos de Morais (1997), Martins (1998), Oliveira (2007), Stedile
(2012), Freire (1975, 1996) dentre outros.
Entendemos por vozes histórico-sociais aquelas que ecoam nos documentos e
eventos históricos analisados (leis, decretos, projetos, discursos parlamentares, como também
carta pastoral, livro religioso, estatuto), as quais estão lado a lado à voz do sujeito falante,
evidenciando que os discursos estão povoados de vozes alheias, ou seja, de palavras de outras
pessoas, no sentido de enunciados. A noção de voz está associada à noção de tom, uma vez
que aponta para o valor axiológico, a valoração, o ideológico, da mesma forma que está
relacionada à entonação, entoação, acento, tonalidade (BAKHTIN, 2011).
Nessa perspectiva, a voz do sujeito do discurso está emaranhada entre outras vozes,
sejam elas concordantes ou discordantes à sua ideologia. Nas palavras de Bakhtin (2011, p.
383), “[...] No diálogo as vozes (a parte das vozes) se soltam, soltam-se as entonações
(pessoais-emocionais), das palavras e réplicas vivas extirpam-se os conceitos e juízos
abstratos [...]”.
Não desvinculamos a teoria dos eventos histórico-discursivos, pois a teoria
bakhtiniana nos permite entender o complexo movimento dos acontecimentos. No campo
pessoal, nosso interesse por essa teoria já constitui nossa história acadêmica, pois trabalhamos
com ela desde a iniciação científica, quando desenvolvemos uma pesquisa tendo como corpus
causos pantaneiros, narrados por moradores do Pantanal sul-mato-grossense, descrevendo
elementos da organização composicional e aspectos do estilo do gênero causo. Também, no
Mestrado (VIEIRA, 2007), a teoria de Bakhtin é fundamental para a análise do gênero
Relatório Final de Perícia em Terra Indígena, o qual é analisado quanto à relação entre
escolhas linguísticas, condições de produção e relações de poder. Se nos estudos anteriores
20
nosso interesse na teoria bakhtiniana centra-se mais aos aspectos relacionados ao gênero do
discurso, nesta pesquisa procuramos realizar uma abordagem mais discursiva, enfatizando os
aspectos sócio-histórico-ideológicos que a teoria do Círculo de Bakhtin nos permite
empreender.
Ancorados em Bakhtin, temos como ponto norteador a seguinte pergunta de
pesquisa: “Como se constitui a identidade dos acadêmicos do curso de licenciatura em
Ciências Sociais, o primeiro voltado especificamente para assentados sem terra?”
Em decorrência dessa pergunta norteadora, outras se formularam: “As vozes de tais
acadêmicos em seus relatos de vida demonstram relações dialógicas com outras vozes sócio-
históricas que problematizam a questão da terra?”; “Como se institucionalizou o problema da
terra no Brasil?”; “Quais signos ideológicos estariam na base da constituição de tais vozes?”;
“Como o Projeto Político Pedagógico, voltado a esse grupo social, trouxe para sua
constituição tal problemática?”.
Tais perguntas levam-nos a propor a tese de que a identidade dos graduandos sem
terra do curso de Ciências Sociais (UFGD) é sócio-historicamente constituída nos caminhos
de construção dos signos terra, reforma agrária e educação do campo.
Para verificarmos a validade dessa tese, objetivamos, de forma geral, compreender as
vozes sócio-históricas que constituem a identidade dos acadêmicos sem terra do referido
curso, por meio dos relatos pessoais, do caminho percorrido pelos signos terra, reforma
agrária e educação do campo e do Projeto Político Pedagógico (PPP) do curso.
Como objetivos específicos, elegemos:
analisar como os signos terra, reforma agrária e educação do campo são
construídos por vozes discordantes à distribuição de terras no Brasil;
examinar como os signos terra, reforma agrária e educação do campo são
construídos em um movimento de responsividade pelas vozes consoantes à
redistribuição de terras no País;
investigar as vozes constitutivas do PPP do curso de licenciatura em Ciências
Sociais, trilhando por seu percurso de criação, suas características como um
curso específico para uma população marginalizada, assentados rurais do
Estado de Mato Grosso do Sul;
analisar como as vozes no bojo dos signos terra, reforma agrária e educação
do campo constituem a identidade dos acadêmicos nos relatos pessoais.
21
O interesse por estudos a respeito da terra começou quando fui professora em escolas
indígenas, no município de Dourados. O Estado de Mato Grosso do Sul abriga a segunda
maior população indígena do Brasil, o que, consequentemente, nos leva a pensar que a terra
nesse Estado é um problema constante e histórico. No Mestrado, desenvolvi a pesquisa
intitulada Uma análise crítica das relações de poder no gênero relatório: o caso dos Kaiowá
da Aldeia Panambizinho. Objetivamos, nessa pesquisa, analisar as relações de poder presentes
no discurso de um pesquisador e cientista das Ciências Sociais, antropólogo, verificando a
construção de seu discurso diante de uma situação de impasse com relação à posse de terras
entre duas sociedades com visões de mundo diferentes e de uma situação enunciativa peculiar:
índios kaiowá e colonos não índios. O discurso é analisado com base na concepção da Análise
Crítica do Discurso (ACD), particularmente no modelo tridimensional (texto, prática
discursiva e prática social) construído por Fairclough (2001). Já o gênero Relatório Final de
Perícia, concebido como formas-padrão relativamente estáveis de discursos, é analisado à luz
dos estudos de Bakhtin (2011), tendo em vista aspectos do tema, da organização
composicional e do estilo e, também, o pressuposto de que os gêneros são marcados sócio-
historicamente, pois estão ligados diretamente às situações de interação pela linguagem.
O trabalho desenvolvido no Mestrado contribui para um convite para integrar a
equipe de professores do curso de Licenciatura Indígena, da UFGD, na área de Linguagem.
Nesse curso, atuei como professora e coordenadora da área. Tive a oportunidade, durante
quatro anos, de desenvolver trabalhos na universidade e em aldeias, em que o ensino de
Língua Portuguesa pode ser diferenciado daquele ensinado para falantes de português como
primeira língua e presente na maioria dos cursos superiores e escolas. Neste caso, o português
é a segunda língua dos acadêmicos indígenas e o ensino busca respeitar o direito a uma
educação diferenciada, bilíngue, intercultural e autônoma. As aulas são ministradas, ao
mesmo tempo, por dois ou três professores da área de Linguística, com os objetivos de,
primeiro, aproximar-se da forma coletiva de ensino guarani-kaiowá e, segundo, demonstrar ao
sistema de ensino que o conhecimento pode ser construído coletivamente, o que resulta em
um diálogo entre áreas do conhecimento que se complementam.
Em 2007, um novo convite surge, agora, para integrar a equipe de professores do
curso de licenciatura em Ciências Sociais, assumindo as disciplinas de Língua Portuguesa e
Produção de Texto. Diante dessa oportunidade, pensei em continuar a construir uma
metodologia em ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa que fugisse do tradicional e
mostrasse que era possível duas professoras ministrarem as aulas ao mesmo tempo, em um
movimento coletivo de construção do conhecimento entre as professores e os graduandos.
22
Como minha parceira nessa empreitada, convido a professora Áurea Rita de Ávila Lima
Ferreira para construirmos as disciplinas. Ela é uma profissional com muita experiência,
altamente respeitada no Estado, e docente, à época quase aposentada, do curso de Letras, da
UFGD. Ali há um encontro: uma professora experiente e eu, tantas vezes sua orientanda,
como sou até hoje. Tornamo-nos parceiras, como dizem os graduandos: o dueto da Língua
Portuguesa.
Com a minha bagagem trazida da Licenciatura Indígena e a experiência da
professora Áurea, as aulas no curso de Ciências Sociais são pensadas tendo como parâmetro a
dinâmica vivida pelos acadêmicos sem terra. Por isso, levamos variados gêneros discursivos
para sala (músicas, poemas, reportagens, propagandas, contos, textos acadêmicos) e
realizamos análises linguísticas, com o objetivo de que os alunos percebam a leitura como
construção de sentidos de um texto e não como uma mera decodificação. As aulas iniciavam-
se com a mística3 e, durante o dia, temos os momentos das poesias, das músicas
acompanhadas por um violão de um aluno. Os relatos pessoais mostram que os acadêmicos
esperavam “mais uma aula chata de língua portuguesa”. Inferimos, a partir dessa declaração,
que eles pensavam que fossem decorar verbos, concordâncias, regências. Acredito que
realizamos um trabalho que, além de discutir aspectos linguísticos, possibilita aos acadêmicos
e a nós uma nova forma de ver o mundo, o outro e o ensino de Língua Portuguesa.
No trabalho realizado na disciplina de Produção de Texto, em 2009, no terceiro
semestre do curso, elegemos como avaliação a elaboração de um relato pessoal. As
finalidades da produção dos relatos são apresentadas em sala. A primeira consiste em uma
atividade avaliativa da disciplina e a segunda prevê a publicação de um livro com os relatos
daqueles que aceitassem a publicação. Expomos também que os leitores seriam os mais
diversos, pois o livro seria distribuído na UFGD, assim como em outras universidades
brasileiras e escolas de assentamentos. Aqueles que disponibilizaram seus relatos para a
publicação assinaram um documento de autorização para revisão e publicação. Dos 56 textos
3 Segundo Coelho (2010), a mística no MST é feita em forma de teatro, contendo músicas, poesias e muitos
símbolos em seu interior, como a bandeira do Movimento. Trata-se de uma prática cultural e política, em que o
Movimento consegue se comunicar de maneira eficaz com os sujeitos, construindo representações sobre tudo
aquilo que compõe o modo de ser Sem Terra. A mística tornou-se um instrumento essencial e estratégico na
organização do MST, sendo ela dotada de poder, isto é, desencadeadora de memória, representação e ação
política. É uma herança herdada pelos movimentos sociais rurais da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
23
produzidos, 35 são disponibilizados por seus autores para publicação, o que resulta no livro
Do Cheiro da Terra aos Fios da Memória4.
O corpus desta pesquisa de tese é composto por esses 35 relatos, os quais são
originalmente enviados pelos estudantes, sem a revisão das organizadoras do livro. Além
disso, importa salientarmos que, no momento da proposta aos graduandos e da avaliação dos
relatos, não há a intenção de analisá-los em uma pesquisa, o que ocorre somente no momento
do Doutorado.
Para nortear a escrita dos graduandos, apresentamos um roteiro de relato no qual
estão indicadas algumas informações que poderiam ser levantadas junto a familiares e a
pessoas de suas comunidades no momento da escrita, como origem e escolha do nome de
cada um, momentos de infância, de adolescência, de experiências escolares, de relações
familiares, de participação nos movimentos sociais, de permanência nos acampamentos, de
vivências nos assentamentos, de entrada na Universidade e, também, de expectativas para o
futuro. Os relatos são produzidos durante o Tempo Comunidade, quando os graduandos
desenvolvem as atividades avaliativas do curso em suas comunidades.
O curso de licenciatura em Ciências Sociais da UFGD, que conta com 56
acadêmicos5 (31 mulheres e 25 homens), é desenvolvido em forma de projeto para somente
uma turma (2008-2012). É oferecido pela UFGD em parceria com os movimentos sociais
rurais do Estado de Mato Grosso do Sul e, também, com alguns setores governamentais
Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) e Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e o Movimento de Desenvolvimento Agrário
(MDA).
No cenário nacional, o curso destaca-se por ter sido o primeiro a ser oferecido
especificamente para pessoas de assentamentos federais do estado de Mato Grosso do Sul.
Esse fato merece destaque por ser Mato Grosso do Sul um estado marcado pelo latifúndio, em
que grandes extensões de terra estão sob a propriedade de apenas uma pessoa; além disso, há
grandes fazendas improdutivas, outras de propriedade de multinacionais e outras de políticos
4 VIEIRA, J. F.; FERREIRA, Á. R. A. L. Do cheiro da terra aos fios da memória. Dourados: Editora UFGD,
2013. 5 Os acadêmicos tiveram oportunidade de participar de projetos de pesquisa de Iniciação Científica, como
também de projetos de extensão. Destacamos que os graduandos do referido curso não receberam nenhum apoio
financeiro específico, apenas a infraestrutura, como alojamento, alimentação e transporte do alojamento para
Universidade, foi subsidiada pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA).
24
influentes. O Estado, embora jovem por ser resultado da divisão do antigo Estado de Mato
Grosso, em 11 de outubro de 1977, já nasce marcado pelas disputas por terra6.
Além disso, esse curso destaca-se nacionalmente por ter sido oferecido mediante
uma demanda apresentada pelos trabalhadores rurais sem terra por meio dos movimentos
sociais rurais, CPT e MST, aos professores e pesquisadores da Faculdade de Ciências
Humanas (FCH - UFGD). A FCH aceita a demanda com a condição de que participem do
curso todos os movimentos sociais rurais do Estado. Com isso, esse curso também é destaque
por ser o primeiro a ser oferecido em parceria com os movimentos sociais rurais. No contexto
da universidade, essa participação implica a presença de representantes na construção política
do curso, nas reuniões pedagógicas; já no contexto do assentamento, os movimentos são
imprescindíveis para mobilizar os trabalhadores rurais para participarem do processo seletivo,
auxiliar os graduandos no transporte para a Universidade, além do apoio com relação à
atenção saúde durante as aulas na Universidade, por exemplo. Esse apoio é sempre dividido
entre os diferentes movimentos. Dessa forma, contar com a parceria dos movimentos é
fundamental para que a desistência do curso fosse mínima.
Esses aspectos contribuem para o ineditismo do nosso estudo. Primeiro, marcado
pelo gênero relato pessoal, escrito por sujeitos sociais determinados – acadêmicos sem terra,
pertencentes a diferentes movimentos sociais rurais, o que nos leva a perceber evidências de
subjetividade e de coletividade em sua construção identitária. Segundo, por analisar a
constituição da identidade desses acadêmicos por meio da construção histórico-discursiva dos
signos terra, reforma agrária e educação do campo e do Projeto Político Pedagógico do
curso.
Nossa hipótese é a de que esses relatos são marcados sócio-historicamente e estão
ligados diretamente às diferentes situações de interação pela linguagem (BAKHTIN, 2011).
Entendemos que esses relatos pessoais, ao apresentarem tomadas de posição de sujeitos sem
terra, entram em um movimento dialógico com o presente e o passado mediante a retomada
de vozes do passado. Dialogar com discursos anteriores é um dos princípios absolutos do
enunciado apontado por Bakhtin (2011, p. 297), o qual também acrescenta que cada “[...]
enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela
identidade da esfera de comunicação discursiva”.
6 O consenso quanto à posse de terras no Estado nunca ocorreu, de forma que sempre os pequenos camponeses
assim como os indígenas precisaram lutar para continuar em suas terras.
25
Analisar os relatos pessoais pela perspectiva bakhtiniana, leva-nos a observar que o
centro organizador da voz dos acadêmicos sem terra não está nelas mesmas, mas está fora
delas, no mundo exterior. Isso porque acreditamos que os sujeitos acadêmicos sem terra não
estão imunes aos acontecimentos do passado, como se seus nascimentos fossem apenas
físicos, e do passado e dos outros não herdassem já-ditos, práticas sociais ou comportamentos.
Na visão dialógica, o sujeito além de nascer fisicamente também nasce socialmente, o que
acontece na interação com o outro; no caso analisado, isso é evidente quando o trabalhador
rural torna-se um sem terra, quando se torna um militante de um movimento social. Nesse
nascimento social, os sujeitos deparam-se com signos já presentes na sociedade, os quais são
dotados de uma herança sígnica que dá corpo ao estabelecimento de um signo (DURAN,
2016).
Podemos compreender que, ao nascermos socialmente, deparamo-nos com um
universo de signos já construído sócio-historicamente por nossa sociedade. Somos herdeiros
das milhares de experiências passadas, as quais povoam nosso discurso com seus sentidos
reconstruídos em nosso presente. Por esse viés, entendemos que o discurso do sujeito
acadêmico sem terra não é uma pura reação natural a um estímulo, mas é uma tomada de
posição ideológica, a qual está relacionada ao sócio-histórico, onde mergulha e de onde
emerge como sujeito dialogicamente constituído.
Ao trabalharmos com o gênero relato pessoal de graduandos sem terra do curso de
Ciências Sociais (UFGD), assumimos que este estudo é fundamental para pensarmos o
problema da distribuição de terras no Brasil, a qual sempre esteve ancorada em interesses
pessoais, econômicos e políticos, o que impede que a terra seja distribuída de forma
igualitária entre os brasileiros camponeses. Da mesma forma, um estudo como este é um
marco na cadeia discursiva da história da terra por possibilitar pensarmos a relação entre terra
e trabalhadores rurais sem terra em um Estado altamente marcado pelo latifúndio e
historicamente caracterizado pela disputa, o que sempre justificou ações violentas para
resguardar a posse de terras, mesmo que sua aquisição tenha sido feita por meio de grilagem,
influência política ou pela expulsão de pequenos camponeses.
Pensamos ainda que este estudo mostra para nós, professores de Língua Portuguesa,
como se delineou o ensino-aprendizagem nas escolas rurais do Brasil, muitas vezes,
caracterizado pela exclusão dos filhos de camponeses e pela reafirmação de preconceitos.
Assim, com esta pesquisa, podemos refletir sobre o ensino da Língua Portuguesa, na educação
básica e na universidade, como uma ferramenta de libertação para muitos alunos que, ainda,
chegam com dificuldades às esferas escolares, como também podemos continuar refletindo
26
sobre as situações concretas de língua que construímos e, ainda mais, como nós e nossos
métodos constituem a identidade dos estudantes.
No que tange aos procedimentos metodológicos, inicialmente, realizamos leituras
teóricas acerca da teoria do Círculo de Bakhtin e, em seguida, de textos das áreas de
Sociologia Rural, História e Educação. Essas leituras nos levaram a conhecer acontecimentos
históricos a respeito da terra no Brasil e suas vozes. Visualizamos uma variedade de vozes
histórico-sociais, porém, devido à necessidade de um recorte, selecionamos vozes entre o
Período Monárquico (1530) e a criação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST) (fim da década de 1970). Nosso olhar voltou-se para as vozes que dialogavam entre si,
em um jogo de palavra e contrapalavra, constituindo um continuo na história da luta pela terra
no Brasil. Essas vozes juntaram-se às vozes do Projeto Político Pedagógico (PPP) do curso de
licenciatura em Ciências Sociais da UFGD também analisadas à luz da teoria bakhtiniana e
dos pressupostos teóricos das áreas de Sociologia Rural, História e Educação.
Por fim, debruçamo-nos sobre as vozes dos relatos pessoais, os quais também foram
analisados em um movimento dialógico com as vozes histórico-sociais anteriormente
examinadas, objetivando verificar em que medida a identidade dos graduandos sem terra é
constituída pelas vozes sócio-históricas da luta pela terra no Brasil.
Quanto ao método, seguimos os caminhos delineados por Bakhtin ao apontar o
método sociológico, tendo como princípio norteador o dialogismo. Toda tese movimenta-se
da palavra à contrapalavra, no sentido de que relacionamos as vozes consoantes ou destoantes
ao projeto de reforma agrária assim como as vozes dos relatos pessoais à teoria bakhtiniana.
Dessa maneira, nossa investigação compõe em uma conversa, como postula Bakhtin (2011, p.
319), quanto aos caminhos da metodologia:
[...] A investigação se torna interrogação e conversa, isto é, diálogo. Nós não
perguntamos à natureza e ela não nos responde. Colocamos as perguntas
para nós mesmos e de certo modo organizamos a observação ou a
experiência para obtermos a resposta. Quando estudamos o homem,
procuramos e encontramos signos em toda parte e nos empenhamos em
interpretar o seu significado.
Entendemos que o método sociológico contempla o caráter social da arte, o que não
era realizado pelo método formal, como defendido por Bakhtin e Volochinov (1926) em O
discurso na vida e o discurso na arte. Nessa perspectiva, o método sociológico é uma
alternativa ao método completamente formalista de análise das obras, como destacam Pereira
27
e Rodrigues (2014). Bakhtin e Volochinov (1926, p. 4) continua sua reflexão acerca do
método sociológico salientando que os
[...] métodos que ignoram a essência social da arte tentam encontrar sua
natureza e distinguir características apenas na organização do artefato são
obrigados realmente a projetar a inter-relação social do criador e do
contemplador em vários aspectos do material e em vários procedimentos
para estruturar o material. [...]. A comunicação estética, fixada numa obra de
arte é, como já dissemos, inteiramente única e irredutível a outros tipos de
comunicação ideológica. [...]. O que caracteriza a comunicação estética é o
fato de que ela é totalmente absorvida na criação de uma obra de arte, e nas
suas contínuas recriações por meio da co-criação dos contempladores, e não
requer nenhum outro tipo de objetivação. Mas, desnecessário dizer, esta
forma única de comunicação não existe isoladamente; ela participa do fluxo
unitário da vida social, ela reflete a base econômica comum, e ela se envolve
em interação e troca com outras formas de comunicação.
Por contemplar a vida social dos sujeitos dos enunciados, refletir a base econômica,
envolver-se com a interação social, o método sociológico é fundamental para este estudo, uma
vez que estamos preocupados com a inter-relação entre as formas concretas da língua e suas
condições extraverbais. O extraverbal carrega a dimensão social, sendo o lugar onde o
enunciado constitui-se e se afirma, isto é, é o lugar onde o trabalho da ideologia e da
valoração ocorrem (PEREIRA; RODRIGUES, 2014).
Para chegar a esse pressuposto, trilhamos os caminhos metodológicos, apresentados
por Bakhtin (2002, p. 44), como fundamentos para estudar a evolução social dos signos:
1. Não separar a ideologia da realidade material do signo (colocando-a no campo
da “consciência” ou em qualquer outra esfera fugidia e indefinível).
Seguindo essa regra metodológica, nosso trabalho procura não dissociar os valores
ideológicos dos signos terra, reforma agrária e educação do campo, pois um não existe sem
o outro. Para issso, realizamos uma leitura histórico-discursiva dos referidos signos, por meio
de fatos que marcam os delineamentos da distribuição da terra no Brasil. É a ideologia dos
grupos sociais envolvidos, antagônicos, que dita os caminhos possíveis de instalação dos
singos, enquanto material concreto de elaboração do homem concreto (MIOTELLO, 2001).
O segundo procedimento metodológico apresentado por Bakhtin (2002, p. 44) expõe:
28
2. Não dissociar o signo das formas concretas da comunicação social (entendendo-
se que o signo faz parte de um sistema de comunicação social organizada e que não
tem existência fora deste sistema, a não ser como objeto físico).
A partir desse princípio, delimitamos o sujeito social de nossas análises, graduandos
sem terra do curso de Ciências Sociais, da UFGD, moradores de assentamentos localizados no
estado de Mato Grosso do Sul. Somente esse grupo social, vivendo sua vida material ao redor
de “[...] construtos simbólicos específicos e estabelecendo relação comunicativa mais direta e
eficiente” (MIOTELLO, 2001, p. 20), pode produzir material ideológico presente nos relatos
pessoais.
A terceira proposta metodológica de Bakhtin (2002, p. 44) apresenta:
3. Não dissociar a comunicação e suas formas de sua base material (infra-estrutura).
Como aponta Miotello (2001), se há um discurso hegemônico é preciso verificar
como ele é recepcionado pela infraestrutura, refletido ou refratado, na forma como a
sociedade estabelece sua produção material e não nas construções dadas ao acaso.
Seguindo o dialogismo como norteador da metodologia desta pesquisa, concordamos
com Amorim (2004, p. 16), quando a autora traça aspectos da metodologia para Bakhtin. A
palavra nos dirige no sentido de que o dialogismo é nosso ponto norteador para
empreendermos as análises e realizarmos a investigação das vozes histórico-sociais.
Debruçamo-nos sobre os textos considerados, aqui, a representação do outro, os graduandos
sem terra e os demais sujeitos constituintes da cadeia discursiva do problema da terra no
Brasil, uma vez que todo texto tem um sujeito, um autor. O texto é, como salienta Bakhtin
(2011, p. 307), a “[...] realidade imediata (realidade do pensamento e das vivências) [...].
Onde não há texto não há objeto de pesquisa e pensamento”. Nessa perspectiva, o “[...]
método constrói-se na relação com o texto estudado. Pedindo ao texto que responda às nossas
questões” (AMORIM, 2004, p. 211).
O sujeito enunciador é visto, portanto, em seu processo de constituição histórico-
social, em suas relações com o outro e suas vozes, ou seja, em uma relação de alteridade.
Nessa ótica, buscamos relacionar as vozes levantadas e analisadas nos capítulos um, dois e
três às vozes dos acadêmicos sem terra analisadas no capítulo quatro.
29
No que se refere ao estado da arte, sabemos que os estudos de Bakhtin geram
perspectivas distintas de trabalhos no Brasil e no mundo. No nosso caso, propomos um
trabalho que considere a constituição sócio-histórica dos signos ideológicos terra, reforma
agrária e educação do campo e a construção do PPP do curso, com vistas a compreendermos
as vozes que constituem a identidade dos graduandos sem terra do curso de Ciências Sociais
da UFGD.
Ao pesquisarmos no Banco de Teses e Dissertações da CAPES, com os descritores
Bakhtin + Terra; Bakhtin + Reforma Agrária; Bakhtin + Educação do Campo, não
encontramos estudos que versem acerca da perspectiva bakhtiniana com os mesmos signos
ideológicos aqui analisados. Também realizamos uma busca com os seguintes descritores:
Signo Bakhtiniano + Terra; Signo Bakhtiniano + Reforma Agrária; Signo Bakhtiniano +
Educação do Campo. O Banco de Dados nos apresentou, na primeira página, 20 trabalhos, os
quais são das áreas de Sociologia, Direito Agrário, Ciências Jurídicas, Ciências Agrárias,
Desenvolvimento e Meio Ambiente, Educação, Economia Rural, Economia, Geografia,
Engenharia de Produção. Dos 20 primeiros, apenas um é de um Mestrado em Letras,
intitulado Percursos da significação: um olhar sobre a identidade do aluno assentado do
MST da região de Juti – MS (COELHO SOUZA, 2016, p. 12), do Programa de Mestrado da
UFGD. Trata-se de uma dissertação que objetiva “[...] mostrar como os estudantes de uma
escola pública no município de Juti, Mato Grosso do Sul, se posicionam discursivamente em
textos produzidos durante as aulas de Produção Interativa”. Porém, não é um estudo que se
enquadre na teoria bakhtiniana em nenhum aspecto.
Além do Banco de Dados da CAPES, também pesquisamos o banco de Dissertações
e Teses do Programa de Pós-Graduação em Linguística, da Universidade Federal de São
Carlos (UFSCar), pelo fato de nesse Programa haver pesquisadores que desenvolvem
pesquisas com um olhar discursivo para os signos, segundo a perspectiva bakhtiniana, como
Miotello e Moura. A nossa pesquisa não identificou nenhum trabalho que verse acerca da
perspectiva bakhtiniana com os signos terra, reforma agrária e educação do campo. Mas
encontramos três estudos que trabalham com signos na perspectiva bakhtiniana.
O primeiro é o estudo de Oliveira (2007) a respeito da realidade do signo América
Latina, tendo como perspectiva teórica os estudos do Círculo de Bakhtin em diálogo com as
teorias de Rancière e Hard e Negri. Oliveira (2007, p. 18) defende que o estudo de um signo
pelo viés bakhtiniano não pode levá-lo em consideração “[...] como algo isolado ou mesmo
transparente, pois nele as relações cronotópicas e sociais se manifestam materialmente, em
fenômenos externos e internos ao homem”. O autor, ao buscar a diversidade de relações e a
30
dialogia dissensual, analisou diferentes fatos discursivos a respeito da América Latina,
publicados no jornal Folha de São Paulo e na página da agência Carta Maior, entre os anos
de 2005 e 2006. Oliveira observou que o signo “América Latina” parece ser guiado por dois
elementos: mídia e economia, pois eles “[...] definem e delimitam os termos dentro da
América Latina” (2007, p. 131), o que aponta para uma leitura monologizada desse signo.
Outro trabalho que também destacamos é o de Scherma (2010), no qual a autora
traça um estudo a respeito das relações e das lutas discursivas estabelecidas nas bases
materiais da sociedade. Adota como perspectiva teórica os estudos do Círculo de Bakhtin,
defendendo que essas relações e lutas efetivam-se “[...] por meio dos discursos que se
produzem sobre as atividades econômicas ligadas ao agronegócio” (2010, p. 8). O objetivo do
trabalho é “[...] compreender de que maneira as ações da base concreta são preparadas,
justificadas e modificadas por meio de discursos, via palavra, via signo” (SCHERMA, 2010,
p. 8). A autora não seleciona um gênero discursivo específico para análise, mas elege vários,
como propagandas, textos do Ministério da Agricultura, samba enredo de uma escola de
samba, a fim de compreender as concretudes dos enunciados, “[...] em função de concepções,
valorações e tomadas de posição divergentes em relação às atividades agrícolas e pecuárias
em larga escala, o agronegócio” (SCHERMA, 2010, p. 8).
Além desses estudos, o trabalho de Duran (2016) também se propõe a analisar pela
perspectiva bakhtiniana como Brasil e França servem-se da leitura em seus exames de alcance
nacional, no caso o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o Baccalauréat,
respectivamente. Essa proposta leva em consideração que Enem e Baccalauréat são signos e
suas construções são históricas, considerando, assim, que ambos são dotados de uma herança
sígnica que encorpa o estabelecimento de um signo.
Os trabalhos de Oliveira (2007), Scherma (2011) e Duran (2016) apontam, assim
como o nosso, que o caminho para se estudar a constituição de um signo começa pelas suas
condições históricas, as quais mostram o trajeto feito pelo signo e os significados que ele foi
incorporando durante este trajeto histórico. No caso deste trabalho, deparamo-nos com uma
história de mais de 500 anos, o que nos levou a selecionar alguns eventos histórico-
discursivos que influenciassem os caminhos tortuosos da luta pela terra. Além disso, para nos
guiarmos nesse trajeto entre presente e passado, elegemos como norteadores uma tríade de
signos que acreditamos ser fundamentais para compreender a constituição da identidade dos
acadêmicos sem terra do curso de licenciatura em Ciências Sociais, da UFGD. Defendemos
que os signos terra, reforma agrária e educação do campo carregam em si valores
ideológicos de grupos sociais antagônicos de determinadas épocas, os quais vivenciaram
31
determinado contexto social, político e econômico, momento em que foi necessário tomar
posições e resistir a outras, para garantir a força de suas ideologias sobre as outras, dando,
assim, corpo aos signos.
Estruturalmente este estudo apresenta-se organizado em quatro capítulos.
Destacamos que, em cada capítulo, apresentamos, inicialmente, uma síntese teórica dos
principais conceitos bakhtinianos desenvolvidos nas análises das vozes histórico-sociais.
Ademais, outros conceitos são mobilizados e discutidos teoricamente por meio da inter-
relação com as vozes histórico-sociais no decorrer dos capítulos.
No primeiro capítulo, analisamos vozes discordantes – monárquicas, políticas, legais,
sociais, religiosas – à distribuição de terras pelo viés da teoria bakhtiniana, verificando como
elas constituem os signos terra, reforma agrária e educação do campo.
No segundo, como um movimento de contrapalavra, apresentamos uma análise
dialógica das vozes consoantes ao processo de reforma agrária no Brasil. Nosso caminho
passa pelos discursos políticos, pelas ligas camponesas e a criação dos movimentos sociais
rurais sem terra.
No terceiro capítulo, enfatizamos o discurso do PPP do curso em análise.
Observamos, em especial, a gestação do curso de Ciências Sociais que não se iniciou na
UFGD, mas que é resultado de um caminho institucionalizado, marcado pelos movimentos
sociais rurais. Buscamos, ao analisar as diretrizes do curso de licenciatura em Ciências
Sociais, conhecer as vozes presentes, não só as discordantes, respondidas, contrariadas, como
também as consonantes, aliadas. Nesse percurso, investigamos também o processo de
implantação do curso, o perfil desejado dos graduandos, os objetivos do curso, as metas, os
pressupostos teóricos e metodológicos, os resultados esperados.
Já no quarto capítulo, empreendemos um olhar para a construção identitária dos
sujeitos estudantes sem terra por meio da investigação dos seus relatos pessoais. Esses relatos
são visualizados como um fenômeno da atualidade que retoma vozes anteriores e entra no
fluxo da história. Acreditamos que, ao buscarmos compreender a identidade dos estudantes
sem terra por meio da relação estabelecida entre o hoje e a história, podemos produzir
sentidos novos para esses sujeitos e, também, para as lutas pela reforma agrária no Brasil.
32
CAPÍTULO I – A CONSTITUIÇÃO DOS SIGNOS IDEOLÓGICOS
TERRA, REFORMA AGRÁRIA E EDUCAÇÃO DO CAMPO: VOZES
HISTÓRICO-SOCIAIS DISCORDANTES À DISTRIBUIÇÃO DE
TERRAS
Como marcamos na Introdução deste trabalho, analisar a identidade de acadêmicos
sem terra na perspectiva bakhtiniana não significa apenas olhá-la como um fenômeno
contemporâneo, nascido do momento em que os sujeitos se colocam a escrever seus relatos de
experiências. Ao contrário, analisar os relatos pessoais de sujeitos sem terra pressupõe um
diálogo com o passado para, assim, compreender o presente. Partindo da premissa bakhtiniana
de que o signo constitui-se nas práticas interativas de uma determinada sociedade e carrega
em si as marcas históricas com as quais vivencia, para este estudo é fundamental apresentar
uma análise dialógica da história da estrutura fundiária no Brasil e da educação do campo,
construindo os caminhos de constituição dos signos terra, reforma agrária e educação do
campo, realizando um apanhado das vozes que se entrecruzam para constituir esses signos,
sejam elas legais, partidárias, religiosas, de modo que nos leve a compreender como esses
signos se articulam entre o real e o ideológico.
O elo unificador dessa tríade de signos é a terra, motivo de disputas por grupos
antagônicos que a concebem de formas diferentes ao longo da história do Brasil. Essa situação
faz com que aqueles que vivem da terra e veem nela sua existência tenham cada vez mais
dificuldades para obter a terra como direito, pois são várias as ações de grupos dominantes
para coibir o acesso por meio do direito. Diante disso, os dois grupos antagônicos – elite
política e ruralista e camponeses/foreiros – desenvolvem práticas para garantir o direito à
terra. Neste capítulo, trazemos à cena vozes discordantes ao processo de reforma agrária, que
ecoam desde o Período Colonial. São vozes que se põem contra o direito de terra para aqueles
que nela querem trabalhar, defendendo uma estrutura fundiária baseada no latifúndio e na
concentração de terra. Por meio de estratégias políticas e jurídicas, essas vozes levantam-se
contra as medidas tomadas pelos camponeses que buscam reverter o cenário de latifúndio no
Brasil.
33
Analisar vozes discordantes – monárquicas, políticas, legais, sociais, religiosas – à
distribuição de terras pelo viés da teoria bakhtiniana, verificando como elas constituem os
signos terra, reforma agrária e educação do campo, é objetivo deste capítulo. Na busca para
alcançar esse objetivo, verificaremos que o signo terra já, no Período Colonial, durante a
vigência do Sistema de Sesmarias, é alvo de disputas entre índios e colonizadores. Mais tarde,
a Lei 601, de setembro de 1850, é implantada pelo Rei com o apoio político dos fazendeiros, a
fim de conter possíveis ocupações de terra por parte dos recém-libertos e dos imigrantes
europeus, os quais, ao verem uma grande extensão de terras devolutas, podem ocupá-las sem
o pagamento ao governo. Por isso, a Lei 601 determina que a única forma de obter o título de
terras no Brasil é por meio do pagamento de uma taxa ao governo. Com isso, ex-escravos,
imigrantes pobres e camponeses que vivem à beira de fazendas ou em terras mais no interior
do País estão impossibilitados de requerer o direito ao título de terras, por não possuírem
condições financeiras para pagar por elas. Outra medida para coibir o direito à terra está
presente na Constituição Federal de 1946, a qual os políticos de oposição usam para
conceituar a terra como “propriedade” e como “bem-estar social”. Esse conceito não exclui a
possibilidade de distribuição de terras, mas apresenta como condição para acessá-la a
indenização por parte da União ao proprietário, o que na prática não acontecerá.
Outro evento histórico-discursivo que realiza estratégias para coibir a ideia de
reforma agrária no Brasil é a criação das associações rurais, que reúnem latifundiários
herdeiros das fazendas de café, sobretudo, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Trata-se de uma
resposta às inciativas políticas e, também, às ações de organizações de trabalhadores rurais,
ocorridas a partir da década de 1940. As associações rurais defendem a propriedade privada
da terra, bem como atacam os apoiadores da reforma agrária. Para isso, utilizam-se da mídia
impressa e da influência política para garantir que suas terras continuem pertencendo a apenas
um proprietário. Atualmente, estão espalhadas pelo Brasil e desenvolvem forças contra os
movimentos sociais rurais seja por meio de ações violentas durante as ocupações seja
financiando partidos políticos para manter a ordem do latifúndio no Brasil.
Em 1964, com o Golpe Militar, o presidente João Goulart é deposto, dando início à
ditadura no Brasil. Os militares marcam a história da terra no Brasil com a aprovação do
Estatuto da Terra, sendo esta a primeira lei que compreende o direito à terra. No entanto, esta
Lei não sai do papel e aos trabalhadores rurais resistentes à inércia militar cabe sofrer com
ações violentas, como perseguições e assassinatos. O Estatuto da Terra leva em consideração
a função social da terra, o que os movimentos sociais rurais questionam, uma vez que, na
prática, não se vê a função social, mas sim a função capitalista.
34
Em um cenário de combate aos levantes sociais contra o latifúndio e contra a
propriedade privada, a Igreja Católica, em um primeiro momento, é uma forte aliada dos
interesses dos políticos e dos latifundiários fazendo oposição à reforma agrária. A Igreja
trabalha para naturalizar um discurso contra a distribuição de terras, o qual já está presente em
países europeus, principalmente, na União Socialista Soviética, onde o latifúndio é extinto,
passando as terras a serem coletivas e gerenciadas pelo governo. Para alguns religiosos, a
distribuição de terras aos trabalhadores rurais é, então, uma porta de entrada para o
comunismo no Brasil, além de ser uma ofensa à estrutura social deixada por Deus, na qual
cada membro da sociedade tem um papel no Corpo Místico de Cristo.
São essas as vozes que ecoam, neste primeiro capítulo, e são analisadas à luz da
teoria do Círculo de Bakhtin. Elas mostram o dialogismo entre os discursos contra a reforma
agrária no Brasil. Respondem, questionam e negam discursos de defesa do direito à terra.
1.1 Vozes Teóricas
Ao trabalharmos com a constituição dos signos terra, reforma agrária e educação do
campo, observamos não ser suficiente a análise apenas do momento sócio-histórico atual do
qual foram capturados esses signos – no nosso caso, os relatos pessoais de acadêmicos sem
terra. Isso porque partimos do princípio bakhtiniano de que os signos apresentam uma
historicidade, uma relação com fatos exteriores que o fazem viver e se movimentar em um
grupo social. Trazer esses signos para arena da compreensão é mostrar os índices de valor que
eles têm no grupo do qual fazem parte e, também, demonstrar como esses índices entram em
confronto com valores opostos, o que constitui um duelo de classes.
Em uma ação dialógica e responsiva, procuramos conhecer os embates sociais e o
papel da linguagem nesses contextos para, então, seguirmos pelos caminhos da constituição
dos referidos signos. Entendemos que os signos ideológicos guardam em seu bojo as nuances
da interação social, por isso compreender o seu caminho de constituição é fundamental para
refletirmos acerca da história da terra como também da identidade dos acadêmicos sem terra.
Propomo-nos, assim, a compreender as razões de os signos terra, reforma agrária e educação
do campo serem ideológicos a partir de uma análise que se atém nas lutas de classes, pois,
conforme Bakhtin (2011, p. 319), “[...] qualquer estudo dos signos, seja qual for o sentido em
que tenha avançado, começa obrigatoriamente pela compreensão”.
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1.1.1 Construção do Signo Linguístico, Social e Ideológico no Círculo de Bakhtin
O signo como um produto ideológico faz parte de uma realidade seja ela natural ou
social, como ocorre com um corpo físico, um instrumento de produção, um material
tecnológico, mas, contrariamente a estes, ele também reflete e refrata uma realidade que está
fora de si, no exterior. A realidade mencionada por Bakhtin não é imóvel e estática, ao
contrário ela conhece desenvolvimento e movimento, já que o próprio homem não é inerte.
Segundo Volochínov (2013, p. 196), a “[...] realidade efetiva na qual o homem real vive é a
história, este mar eternamente agitado pela luta de classes, que não conhece quietude, não
conhece paz”. O signo, por trazer em seu bojo a realidade exterior, a realidade da luta de
classes, é sócio-histórico e, também, ideológico: “[...] tudo que é ideológico é um signo. Sem
signos não existe ideologia” (BAKHTIN, 2002, p. 31), a qual é entendida por Volochínov
(2013, p. 138) como “[...] todo o conjunto de reflexos e interpretações da realidade social e
natural que se sucedem no cérebro do homem, fixados por meio de palavras, desenhos,
esquemas ou outras formas sígnicas” (grifos do autor). Contrariamente ao signo, um corpo
físico não carrega valor em si, uma vez que não significa nada e se remete a sua própria
natureza, o que implica não ser ideológico: “Nenhum fenômeno da natureza tem ‘significado’,
só os signos (inclusive as palavras) têm significado. Por isso, qualquer estudo dos signos, seja
qual for o sentido em que tenha avançado, começa obrigatoriamente pela compreensão”
(BAKHTIN, 2011, p. 319).
Bakhtin (2002) defende, no entanto, que um corpo físico pode ser convertido em
signo, não deixando de fazer parte da realidade material, mas passando a refletir e a refratar
outra realidade. O autor apresenta o exemplo da foice e do martelo, dois instrumentos de
produção que em si não apresentam sentido, apenas função: servem para realizar um trabalho
manual. Contudo, quando esses instrumentos passam a representar um país, como no caso a
antiga União Soviética, eles adquirem sentido ideológico. Da mesma forma ocorre com
produtos de consumo, como o pão e o vinho, os quais em rito católico tornam-se um
sacramento, a eucaristia, a presença do Cristo em corpo e sangue no altar; um signo
ideológico. Porém, Bakhtin adverte que em si os produtos, pão e vinho, não são signos. Outro
exemplo que podemos tomar é a lona preta que abriga, nos barracos dos movimentos sociais
pela terra, os acampados pela reforma agrária à beira das rodovias. A lona preta, que tem a
função de proteger, quando usada pelos movimentos sociais rurais é um signo que produz o
36
sentido de resistência ao modelo capitalista vigente de distribuição de terra, bem como o
sentido de travessia, de passagem entre um momento de sacríficos e de privações e a
conquista do lote no assentamento. Já para os latifundiários, a mesma lona representa uma
ameaça aos seus interesses, uma resistência e uma oposição ao sistema elitista de distribuição
de terra no Brasil. Volochínov (2013, p. 192) explica que, com a lona, assim como com todo
objeto: “[...] Aconteceu que um fenômeno da realidade objetiva tornou-se um fenômeno da
realidade ideológica: o objeto se transformou em signo (obviamente, igualmente objetivo,
material)”.
Em vista disso, na concepção do Círculo de Bakhtin, o signo apresenta a natureza de
refletir e a de refratar uma realidade: “[...] Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou
apreendê-la de um ponto de vista específico” (BAKHTIN, 2002, p. 32). Isso significa que o
signo carrega em si uma valoração externa ideológica, por isso o domínio do signo e o do
ideológico são mutuamente correspondentes: “[...] Ali onde o signo se encontra, encontra-se
também o ideológico” (BAKHTIN, 2002, p. 32). Volochínov (2013, p. 199) destaca a
importância do caráter de refração do signo, pois “[...] somente graças a esta refracção das
opiniões, avaliações e pontos de vista o signo é vivo e móvel e é capaz de desenvolvimento”.
A refração demonstra que o signo faz parte da luta de classes por ser o resultado de uma
avaliação. Quem fala pertence a uma classe, e suas palavras são pronunciadas dentro de um
contexto sócio-histórico e diante de um interlocutor (presente ou ausente), dessa maneira “[...]
um enunciado absolutamente neutro é impossível” (BAKHTIN, 2011, p. 289), já que “[...] as
palavras do falante estão sempre embebidas de opiniões, de ideias, de avaliações que, em
última análise, são inevitavelmente condicionadas pelas relações de classe” (VOLOCHÍNOV,
2013, p. 196).
A compreensão de um signo, para Círculo, efetiva-se na aproximação com outros
signos já conhecidos, isto é, “[...] a compreensão é uma resposta a um signo por meio de
signos” (BAKHTIN, 2002, p. 34). Observamos, assim, a constituição de uma cadeia única e
continua de compreensão ideológica, em que se percebe o deslocamento de um signo em
outro signo para um novo signo. Essa cadeia ideológica constitui-se de consciência individual
em consciência individual, fazendo entre elas ligações em um processo de interação do qual
os signos emergem. Nessa relação de interação, a consciência torna-se consciência por estar
impregnada de conteúdo ideológico.
O ideológico tem seu lugar no material social dos signos criados pelos homens de um
mesmo grupo social. Sua natureza específica está no fato de ele se situar na interação social
entre indivíduos organizados; desse modo, a consciência individual é um fato sócio-
37
ideológico (BAKHTIN, 2002). Nessa perspectiva, entendemos que os signos só podem
emergir em um terreno interindividual, posto que é entre os indivíduos organizados
socialmente, os quais comungam das mesmas experiências sociais que os signos podem
constituir-se. Os signos alimentam a consciência individual que reflete sua lógica e suas leis.
Essa lógica da consciência é a “[...] lógica da comunicação ideológica da interação semiótica
de um grupo social” (BAKHTIN, 2002, p. 36). A consciência é formada pelo conteúdo
semiótico e ideológico, desse modo se tirá-los dela, nada sobra.
A palavra é um fenômeno ideológico por excelência, posto que a realidade da
palavra é absorvida por sua função de signo. Ela é a forma mais pura e mais sensível da
relação social. Por isso, a palavra é um objeto imprescindível no estudo das ideologias, pois
ela carrega as nuances e as mudanças mais sutis de um grupo social. Uma das características
da palavra destacada por Bakhtin (2002) é a sua ubiquidade social, isto é, sua capacidade de
estar em todo lugar e ao mesmo tempo. Ela é capaz de penetrar em todas as relações entre
indivíduos, é, ainda, constituída de milhares de fios dialógicos e serve de enlace a todas as
relações sociais. Por seu caráter de ubiquidade, a palavra é o “[...] indicador mais sensível de
todas as transformações sociais” (BAKHTIN, 2002, p. 41), até mesmo daquelas que ainda não
apareceram, mas despontam ou que ainda não tomaram forma.
Por carregar as transformações sociais, o signo é resultado de um consenso entre
indivíduos organizados socialmente no processo de interação social, de modo que “[...] as
formas do signo [são] condicionadas tanto pela organização social de tais indivíduos como
pelas condições em que a interação acontece” (BAKHTIN, 2002, p. 44). Se ocorrer
modificações em uma dessas formas, haverá também modificação no signo. Logo, o signo
sofre dupla influência: o signo determina o ser, e o ser é influenciado por ele, o que demonstra
uma evolução social do signo, já que ele guarda modificações sociais. Para estudar essa
evolução, Bakhtin (2002) propõe não separar a ideologia da realidade material do signo, não
dissociar o signo das formas concretas da comunicação social, e não separar a comunicação e
suas formas de sua base material, a infraestrutura.
Por realizar-se no processo da relação social, o signo ideológico é marcado pelo
horizonte social de uma época, de um período histórico e de um grupo social determinados:
“[...] um certo horizonte social definido e estabelecido que determina a criação ideológica do
grupo social e da época a que pertencemos, um horizonte contemporâneo da nossa literatura,
da nossa ciência, da nossa moral, do nosso direito” (BAKHTIN, 2002, p. 112). O valor de um
objeto depende da sua ligação com as condições sócio-econômicas de um grupo social, por
isso um signo pode ser avaliado como falso, verdadeiro, correto, justificado. O objeto apenas
38
entrará no horizonte social de um grupo se for compartilhado pelos indivíduos desse grupo,
portanto é imprescindível que, primeiro, tenha significação interindividual, pois, assim, “[...]
ele poderá ocasionar a formação de um signo. Em outras palavras, não pode entrar no domínio
da ideologia, tomar forma e aí deitar raízes senão aquilo que adquiriu um valor social”
(BAKHTIN, 2002, p. 45). Todos os índices de valor que se caracterizam ideologicamente são
índices sociais de valor por fazerem parte do consenso social, por serem compartilhados pelos
indivíduos de um grupo. É por esse compartilhamento que os signos se exteriorizam no
material ideológico. O ser reflete-se no signo, mas também nele se refrata. O que determina
esta refração do ser no signo ideológico é o confronto de interesses sociais ocorridos no
interior de uma mesma comunidade semiótica, a luta de classes. Uma comunidade semiótica é
aquela que se utiliza de um único e mesmo código ideológico de comunicação. No entanto, as
visões de mundo, os pontos de vista entre os indivíduos de uma comunidade não são os
mesmos, o que gera conflitos. Por isso, todo signo ideológico apreende índices de valor
contraditórios, o que caracteriza o signo como uma arena onde se desenvolve a luta de classes,
onde se revela e se confrontam valores sociais contrários que lutam entre si constituindo
relações de dominação, de adaptação, de resistência às instâncias de hierarquia e poder. São
os encontros entre os índices de valor contraditórios que tornam o signo vivo e móvel,
evoluindo por meio dos entrecruzamentos. Sem esse contato, sem vivenciar tensões da luta de
classes, ou se estiver à margem da luta de classes, o signo não evolui, consequentemente, irá
se debilitar, se degenerará, não sendo mais um objeto vivo e racional para a sociedade
(BAKHTIN, 2002).
A luta de classes torna o signo ideológico vivo e dinâmico, fazendo dele um
instrumento de refração e de deformação do ser. A classe dominante costuma conferir ao
signo ideológico um caráter inatingível e acima das diferenças de classe, de forma que as
diferenças sejam vistas como naturais. Com isso, objetiva-se ocultar ou abafar a luta dos
índices sociais de valor travada no interior dos signos, querendo fazer do signo ideológico
monovalente, assim, objetivando naturalizar e cristalizar o seu sentido. Mesmo assim, o signo
vivo continua guardando as contradições ideológicas de um grupo social, o que evidencia sua
latente dialética. A esse respeito Bakhtin (2002) afirma que são nas épocas de maior crise
social e de comoção revolucionária que esse caráter se torna mais evidente, pois os diferentes
índices de valor de um signo emergem em meio à tensão. Em tempos sem crises sociais, a
contradição em todo signo ideológico é acobertada, já que a ideologia dominante estabelecida
tenta ocultar a natureza um pouco revolucionária do signo e tenta ainda estabilizar o sentido
39
anterior da corrente dialética da evolução social e valorizar o sentido de ontem como válido
hoje.
É no entrecruzamento de índices de valor, de confrontos e de constituição dos signos
ideológicos que também se dá a relação entre infraestrutura e superestrutura, um dos
problemas cruciais do marxismo, segundo Bakhtin (2002). O filósofo russo mostra que esse
problema está intimamente ligado aos problemas da filosofia da linguagem (BAKHTIN,
2002).
1.1.2 Infraestrutura e Superestrutura
Os conceitos de infraestrutura e superestrutura foram cunhados por Marx e Engels,
os quais observam que a sociedade está dividida entre essas duas estruturas que se relacionam
por meio da linguagem. A infraestrutura é o conjunto de forças de produção, formada pela
matéria-prima, pelos meios de produção e pelos trabalhadores. Nesse tipo de estrutura,
estabelecem-se as relações de trabalho entre empregados e empregados, patrões e
empregados, as quais são marcadas pela exploração da força de trabalho no interior do
processo de acumulação capitalista (MARX e ENGELS, 2001). Enquanto a infraestrutura –
conjunto de trabalhadores que movimentam os meios de produção –, trata-se da realidade, de
forças produtivas e das relações sociais de produção que formam a base sobre a qual se
constituem as demais instituições sociais, a superestrutura está representada pelas grandes,
tradicionais e poderosas instituições ideológicas de uma sociedade, como Estado, política,
religião, justiça, comunicação, ciências. Para os autores, a superestrutura é resultado de
estratégias dos grupos dominantes para a consolidação e perpetuação de seus domínios, já as
instituições que criam leis, julgam, e que comunicam ao povo suas decisões, por exemplo,
fazem parte de seu círculo de poder. Entre as estratégias utilizadas pelas classes dominantes a
fim de se perpetuar e se consolidar no poder estão a força e a ideologia (MARX e ENGELS,
2001). Uma vez que detém o poder do Estado nas mãos, a classe dominante pode utilizar-se
da força física para atingir seus objetivos, o que é legitimado pela ideologia de seu grupo e
acobertado por suas instituições. Marx e Engels (2001) defendem que o Estado tem sempre a
incumbência de defender os interesses da classe dominante, objetivando manter seu poder
sobre os trabalhadores. A ideologia é, portanto, um instrumento para fazer com que ações e
ideias sejam vistas como verdadeiras e aceitáveis pela sociedade, apesar de serem fruto de
estratégias da classe dominante para se manter no poder. O pensamento dessa classe é
40
também, em todas as épocas, os pensamentos predominantes de uma sociedade: “[...] a classe
que é o poder material dominante numa determinada sociedade é também o poder espiritual
dominante” (MARX e ENGELS, 2001, p. 48). É possível entender, assim, como que a classe
dominante consegue chegar aos seus objetivos: ela dispõe dos meios de produção material e
dos meios da produção intelectual, de forma que os pensamentos da classe trabalhadora estão
submetidos ao pensamento dominante.
A dialética social apresentada pelo marxismo (infraestrutura e superestrutura) e a
influência que a infraestrutura opera sobre a superestrutura são observadas por Bakhtin
(2002). O autor afirma que o “[...] problema da relação recíproca entre a infra-estrutura e as
superestruturas [...] pode justamente ser esclarecido, em longa escala, pelo estudo do material
verbal” (BAKHTIN, 2002, p. 41). O cerne desse problema está em saber como a
infraestrutura estabelece um signo e, ainda, como o signo reflete e refrata a realidade em
mudança. Da mesma forma, é fundamental também saber em que medida a linguagem
determina a consciência, a atividade mental e em que medida a ideologia determina a
linguagem.
Podemos entender pela perspectiva bakhtiniana que a prática social produz índices
axiológicos, os quais são percebidos na interação social, visivelmente presentes no material
verbal, mas não somente nele, como ressalta Duran (2016, p. 26-27):
[...] Estão também nesta rede de materialização das práticas o material
imagético, os gestos, os extratos culturais como um todo e até mesmo a
organização do tempo (período de estudos, de trabalho, momentos para
exercício da religiosidade, de compras, atenção à saúde, o modo como
exprimimos nossos sentimentos de amor e ódio etc.). Toda essa gama de
práticas sociais determina aquilo que é chamado pelo Círculo de Bakhtin de
infraestrutura.
Percebemos, assim, que infraestrutura e superestrutura estão em constante relação, de
maneira que uma é indissociável a outra. Elas agem de forma que uma se delimita em razão
da outra. Essa relação é vista no signo, pois ele carrega as relações de produção e estruturas
jurídico-político-econômicas (DURAN, 2016).
Bakhtin, em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2002), analisa que a palavra
enquanto signo ideológico é o mais adequado material para nos levar a entender as mudanças
sociais, pois ela acumula as mais sensíveis transformações sociais. A psicologia do corpo
social realiza-se sob a forma de interação verbal (situação dinâmica em que as posições
axiológicas, os valores sociais entram em jogo). Por isso, a psicologia do corpo social não se
41
localiza em outro lugar que não seja o exterior: “[...] Nada há nela de inexprimível, de
interiorizado, tudo está na superfície, tudo está na troca, tudo está no material, principalmente
no material verbal” (BAKHTIN, 2002, p. 42).
O indivíduo, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata, o
que é determinado pelo confronto de interesses sociais em uma mesma comunidade
semiótica: a luta de classes. Esse confronto dá vida e dinamicidade ao signo ideológico e faz
dele um mecanismo de refração e de deformação do ser. Embora a classe dominante tente
conferir ao signo ideológico uma natureza “intangível” e encobrir as diferenças de classe, a
fim de obscurecer os confrontos sociais de valor, caracterizando o signo como monovalente, o
signo vivo é ambivalente, uma vez que carrega em seu bojo a crítica e o elogio, a mentira e a
verdade, aspectos que lhes confere dialética interna, pois, ao falar, toma-se posição, ao mesmo
tempo em que se nega a posição contrária. Como ressalta Bakhtin (2002), em tempos em que
o confronto de interesses é maior, observa-se com mais nitidez a dialética dos signos
ideológicos, uma vez que se percebe a divisão da sociedade. Trata-se do mesmo signo, mas
tomado em posições ideológicas diferentes. Caso o signo com sentido da classe dominada
ecoe mais forte, seja ouvido nas ruas, a classe dominante tende a criar estratégias para abafá-
lo e ocultá-lo, encobrindo as diferenças, com o objetivo de perpetuar o seu sentido, o
tradicional, o conservador. Suas instituições trabalham em favor de cristalizar o sentido
pretendido pelos interesses dominantes, obscurecendo e naturalizando as diferenças de
classes. Como explica Bakhtin (2002): na ideologia da classe dominante, o signo ideológico é
sempre um pouco “reacionário” e objetiva familiarizar e valorizar a sua verdade e fazê-la
valer como única e fundamental.
1.2 Vozes Histórico-sociais
Para analisar a constituição da identidade de acadêmicos sem terra do curso de
Ciências Sociais, da UFGD, a partir de uma perspectiva bakhtiniana, devemos entendê-la
dentro de um processo dialógico de forma que sua construção não se faz no imediato do texto,
mas é um elo da cadeia dialógica. Tomando por base essa visão, os relatos pessoais são vistos
como textos que congregam variadas vozes, tanto as concordantes, ao dialogarem com as
vozes dos movimentos sociais, quanto as discordantes, ao dialogarem com os latifundiários e
42
o governo conservador, os quais também fazem parte da constituição dos sujeitos expressivos
e falantes objeto deste estudo.
As vozes histórico-sociais a serem analisadas, o Período Monárquico, com o regime
de Sesmarias, a Lei de Terras de 1850 e a Constituição Federal de 1891, a Constituição
Federal de 1946, as Associações Rurais, o Governo Militar e o Estatuto da Terra, a Igreja
Católica, no que se refere à Carta Pastoral de Dom Inocêncio e ao grupo conservador
Tradição, Família e Propriedade, a seguir, demonstram como os signos terra, reforma agrária
e educação do campo foram sendo gestados pelo grupo social opositor à redistribuição de
terras no Brasil. Ou seja, os documentos analisados, como leis, decretos, estatuto, cartas
pastorais e livros religiosos marcam como esses signos deixaram de ser linguísticos para
serem signos ideológicos. Nessa perspectiva, observamos que o trajeto percorrido pelos
referidos signos está associado aos acontecimentos extraverbais dos quais participam os
opositores ao projeto de reforma agrária e, também, os defensores desse projeto. Nesse
sentido, percebemos como a escravidão e o seu fim foram decisivos para a constituição da
terra como bem de capital, demonstrando a relação estreita entre o extraverbal e o signo
ideológico.
Da mesma forma, examinamos como os religiosos católicos conservadores tiveram
influência crucial na constituição dos signos terra e reforma agrária, bem como no de luta
pela terra, uma vez que a sociedade brasileira, tanto abastados como marginalizados, ao
associar a luta pela terra e a reforma agrária ao comunismo vivenciado na Rússia,
entenderam-nas como sinônimos de comunismo, blasfêmia a Deus, pecado, furto, dentre
outros. Esse discurso ainda perdura na sociedade conservadora, a qual concebe a luta por
direitos, seja pela terra, por educação, por justiça social, como um ato prejudicial à ordem já
estabelecida. Ressaltamos ainda a voz do Governo Militar, o qual concebeu a terra como
“função social”, vendo no campo a oportunidade de criar uma classe média do campo a fim de
aumentar a produtividade e diminuir o êxodo rural.
Assim, as vozes histórico-sociais a serem analisadas, a seguir, sejam políticas ou de
grupos sociais conservadores, demonstram como a ordem e o progresso foram bandeiras
levantadas e defendidas pelos grupos da elite brasileira e, ainda, como esses discursos
perduram e fortalecem os governos conservadores e os latifundiários, delineando os caminhos
dos signos terra, reforma agrária e educação do campo.
43
1.2.1 Período Monárquico: o sistema de Sesmarias
A teoria bakhtiniana aponta que o signo é resultado da construção consensual de
indivíduos pertencentes a uma determinada sociedade organizados em um processo de
interação, por isso os signos são condicionados pela organização social desses indivíduos e
pelas condições em que as interações ocorrem. Quando acontece uma modificação dessas
formas, há uma modificação no signo. Porém, essas mudanças ocorrem devido ao caráter
intrinsecamente dialético do signo, em que há uma influência mútua entre o signo e o sujeito.
Podemos compreender, assim, que os signos terra, reforma agrária e educação do campo são
dialéticos por refletirem e refratarem sentidos que não são únicos, mas por serem signos
construídos na interação entre grupos sociais discordantes nos conflitos da vida diária, sendo
resultados de significações diferentes que cada grupo atribui. Os signos, então, carregam em
si marcas desses sujeitos e desses conflitos que se refletem neles, mas também se refratam,
pois o resultado dessa refração passa pela arena de conflitos, de interesses sociais, de
dissidência de opiniões. Essa refração de opiniões, de pontos de vista, de avaliações faz “[...]
o signo vivo e imóvel e é capaz de desenvolvimento” (VOLOCHINOV, 2013, p. 199). Ao
contrário, o signo que está alheio às relações de classe e que aparentemente esteja além da luta
de classe é um signo que se debilita, se degenera, e chega à morte: “[...] Destes signos
ideológicos mortos, incapazes de se tornarem arena dos interesses sociais vivos, está cheia a
memória histórica da humanidade” (VOLOCHINOV, 2013, p. 199).
Bakhtin (2002, p. 31) discute que um produto ideológico é também integrante da
realidade, assim como todo corpo físico, mas por ser ideológico “[...] ele reflete e refrata uma
outra realidade, que lhe é exterior”. Nesses termos, a terra como corpo físico – superfície
sólida da crosta terrestre, chão, solo, pó, poeira7 – passa de um signo linguístico para um
signo ideológico quando entra no processo interativo dos sujeitos e passa a carregar a
ideologia desses grupos. No nosso caso, terra incorpora sentidos de grupos antagônicos por
carregar em si a ideologia desses grupos sociais, o que dará a ele sentidos diferentes, como
veremos neste estudo. Na visão bakhtiniana, o corpo em si não tem valor, mas passa a ter ao
incorporar a ideologia dos grupos sociais8, pois tudo “[...] que é ideológico possui um
significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico
7 Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, 2009.
8 A esse respeito, Bakhtin (2002, p. 32) apresenta os exemplos da foice e do martelo que de instrumento de
trabalho, na União Soviética, passaram a ter sentido ideológico.
44
é um signo. Sem signos não existe ideologia” (BAKHTIN, 2002, p. 31). Por carregar a
ideologia, a palavra para Bakhtin é uma arena de lutas, em que se estabelecem os conflitos de
classes, os confrontos de valores sociais contraditórios. O signo terra deixa de significar uma
realidade em si mesma e passa a refletir outra realidade que excede o simples significado em
si. Para Volochínov (2013, p. 196), isso acontece, pois o enunciador pertence a uma classe,
tem uma profissão e um grau de desenvolvimento cultural. São essas condições sócio-
econômicas, organizadoras da forma de sua enunciação, a fonte do discurso do enunciador, o
qual tem suas palavras “[...] embebidas de opiniões, de ideias, de avaliações que, última
análise, são inevitavelmente condicionadas pelas relações de classe”.
Desse modo, concordamos com Duran (2016) quanto à existência de uma herança
sígnica. Os signos, terra, reforma agrária e educação do campo, carregam em si “valores
hereditários” que justificam a razão de a terra ter se tornado um problema no Brasil. Esses
valores hereditários podem ser revisitados a partir de um olhar para a história, já que o
presente convive dialogicamente com o passado de forma a receber dele influências. Assim, a
história está sempre sendo revista e reconfigurada, por meio de sua presença nos discursos do
presente.
Como já dissemos, ao pensarmos nos relatos pessoais, via perspectiva bakhtiniana,
não concebemos que o nascimento deles tenha se dado na ação imediata de escrita, mas sim
entendemos que são um elo na cadeia dialógica, de forma que seus discursos refletem e
refratam outros discursos, outras vozes. É nessa perspectiva que a presença dos fatos
históricos, neste trabalho, é fundamental, pois são eles que desvelarão as vozes que
constituem os signos, como também os relatos pessoais dos acadêmicos sem terra. Por meio
da história, podemos compreender o horizonte social de cada época que é constituindo os
signos em análise e, a partir disso, perceber como os sujeitos acadêmicos sem terra são
sujeitos inacabados, ativos, capazes de produzir e de serem produzidos por uma história
descontinua. Na visão de Bakhtin, a história carrega o caráter de descontinuidade por estar em
relação com o presente. Neste caso, a história não é um fenômeno social acabado, absoluto,
pronto e estagnado, mas sim é móvel, inconcluso, inacabado. E esse movimento de
descontinuidade é dado pela linguagem que cria e recria o mundo histórico e valorativo
(GEGe, 2013). Nas palavras de Miotello (2006), a história é sempre revisitada pelos interesses
atuais e pelos sentidos do presente, sendo, assim, reformatada. Pela visão dialógica, o passado
sempre volta e vive no presente, sendo retomado pelas várias vozes que constituem os
discursos. É esse jogo de relação entre passado e presente que faz com os sentidos
permaneçam, sejam ressuscitados, sejam compartilhados por indivíduos de um mesmo grupo
45
social, a “[...] conservação se dá por conta dos significados, e a filtragem é uma rede de
relações que conserva aquilo que de alguma forma precisamos. A ‘Memória do passado’ tem
a cara que o presente lhe atribui” (MIOTELLO, 2006, p. 280). O passado está sempre sendo
atualizado no presente de forma dialógica, conservando e reformatando sentidos. Como
ressalta Miotello (2006), nas relações de ordem dialógicas, não há sínteses, mas se constrói a
história. O autor declara ainda que “[...] dialogia não é dialética. Na dialética os opostos se
anulam para uma nova síntese. Na dialogia os sentidos opostos convivem enquanto diferentes,
e geram sentidos novos” (MIOTELLO, 2006, p. 280).
Compreender dialogicamente a constituição dos signos terra, reforma agrária e
educação do campo é dialogar com o passado, ressaltando a natureza social e ideológica dos
signos. Ao analisarmos dialogicamente a constituição do signo terra, deparamo-nos com o
Sistema de Sesmarias, que vigora no Brasil do período colonial até 1822. Trata-se de um
sistema de doações de terras instituído em Portugal, tendo como preceito a tradição e as
relações de amizade com pessoas “[...] aos puros de fé e puros de sangue, ou seja,
portugueses, católicos e ‘brancos’ abastados” (NARDOQUE, 2014, p. 44-45).
O Sistema de Sesmarias caracteriza-se pelo modelo de exploração econômica do tipo
mercantilista, trata-se de um sistema “[...] concessões de sesmarias, economicamente
financiadas pelo capital mercantil, em especial associado ao holandês, e baseada no trabalho
compulsório, escravo” (COUTO, 2008, p. 22). O Rei, no entanto, não concede aos seus a
posse das terras, mas garante que eles as administrem. Assim, não são os donos e não podem
repassá-las a título de usufruto a terceiros. Nesse sistema, as terras são patrimônio do monarca
de Portugal, o qual pode vendê-las ou doá-las a quem ache melhor. O referido sistema é “[...]
perfeitamente compatível com os objetivos econômicos da acumulação mercantilista”
(COUTO, 2008, p. 22). Na acumulação mercantilista,
[...] os processos de produção estão subordinados ao capital comercial ou
mercantil. Além de representar uma alternativa de ocupação, defesa e
exploração do território colonial a um custo de produção superlativamente
inferior ao que seria necessário ao desenvolvimento e estruturação de um
amplo processo de migração e colonização (COUTO, 2008, p. 22).
Nesse período, a terra não é preocupação, há em abundância, é virgem e fértil e pode
aumentar conforme as ambições dos colonizadores. Podemos inferir que esse sistema dialoga
com o feudalismo, uma vez que os beneficiários com a terra devem fazê-la produzir sem
receber por esse serviço e sem ter a posse das terras. Como autoridade maior, no sistema do
Brasil Colônia, o Rei pode tanto conceder a terra como também retirá-la, expulsando os que
46
não seguem suas normas. Há, contudo, uma falta de interesse de pessoas pela terra, mesmo
sendo de propriedade da Coroa, o que aponta para o fato de que nesse período poucos
valorizam estar na terra, já que o valor monetário das terras é baixo, estando o mercado
interessado no produto extraído dela, como ouro e madeira.
Outra iniciativa do Rei é a nomeação de Tomé de Souza como governador geral de
todas as capitanias e terras da costa do Brasil. Essa nomeação é acompanhada pela
homologação de um Regimento9, de 17 de dezembro de 1548, o qual limita direitos,
atribuições, isenções aos donatários de sesmarias, concentrando nas mãos do Governador
Geral a administração das terras (MALHEIROS, 1867). Ao fidalgo, o Regimento não permite
distribuir as terras da ribeira, mas concedê-las aos que possuam condições financeiras
suficientes para construir engenhos de açúcar, dentre outros estabelecimentos semelhantes,
desde que se edifiquem torres ou fortes que sirvam de defesa contra os invasores
(MALHEIROS, 1867). Segundo Lima (1988), com o Regimento de 1948, dá-se início à
transformação do regime sesmarial, já que necessita adaptar-se ao vasto território da Coroa
Portuguesa, marcando, assim, a estrutura de concentração de terras no Brasil. Nessa época, a
terra passa a ser motivo de preocupação ao Rei, principalmente, as costeiras por concentrar
ataques de índios e de invasores estrangeiros que chegam pelo mar. O Regimento expõe que
“[...] um princípio novo veio a vigorar, trazendo-lhe o prestígio da lei escrita, o espírito do
latifúndio” (LIMA, 1988, p. 39). A lei escrita passa a vigorar e a se estabelecer como um
discurso de autoridade, pois ela representa o Rei.
Com essa iniciativa, a terra passa a ter um sentido diferente, pois antes poderia ser
concedida a quem interessasse ao Rei (católicos, brancos, abastados), mas com o Regimento
ela passa a ser conferida àqueles que possuam condições financeiras para construir engenhos e
realizar a defesa da costa brasileira. Nessa direção, na perspectiva bakhtiniana, o signo terra,
que antes é um “bem do Rei”, ganha sentido de “mercadoria de troca” entre a Coroa e os
beneficiários do regime de sesmarias, de modo que o Rei concede as terras e os beneficiários
garantem o desenvolvimento econômico e a proteção delas. Percebemos que se trata do
nascimento de um signo, pois a terra começa a ganhar outros sentidos de interesse de um
grupo que não aquele de solo, pó e vastidão.
9 Regimento de 17 de dezembro de 1548. Disponível em:
<http://lemad.fflch.usp.br/sites/lemad.fflch.usp.br/files/1.3._Regimento_que_levou_Tom__de_Souza_0.pdf>.
Acesso em: 20 set. 2016.
47
O Regimento assinado pelo Rei determina aqueles que podem ter a guarda da terra,
ou seja, aqueles que dispõem de condições econômicas necessárias. Determinar quem guarda
as terras costeiras e as faz produzir é um movimento ideológico que silencia as vozes daqueles
que também poderiam cultivá-las, mas não dispõem de condições financeiras para mantê-las
conforme o Regimento estabelece. Assim, o Regimento é uma voz de autoridade que dá o
tom, como afirma Bakhtin (2011), das relações com a posse da terra. Vemos que, nessa época,
nesse círculo social, há discursos que são seguidos, citados, imitados e até confrontados. As
palavras do Regimento são, à época, assimiladas pela população brasileira que se forma e
dialogicamente faz parte das experiências discursivas dos indivíduos e de seus
comportamentos. Como aponta Bakhtin (2011, p. 295), as “[...] palavras dos outros trazem
consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos, e
reacentuamos”. A voz do Regimento ecoa pelas sesmarias e dialoga não somente com os
aliados do Rei, que pretendem usufruir das terras, mas também com aqueles que, em solo
brasileiro, chegam vindos de Portugal, e guardam legalmente as terras contra os ataques dos
índios, os quais organizam resistências contra a “política de grande terror”10
assegurada no
Regimento.
O documento régio dialoga com os interlocutores, mostrando de quem são as terras, e
quais as punições àqueles que não cumprirem com as normas estabelecidas. Ademais, a voz
do Regimento é a voz do Rei, a qual deve ser a primeira e a última voz com relação à guarda
das terras monárquicas. O signo terra como “propriedade da coroa” e “moeda de troca” nasce
do entrelaçamento entre o ideológico, o social e o histórico, refletindo a ideologia da Coroa e
refratando a ideologia de resistência dos indígenas. Verificamos aqui a coexistência de duas
forças ideológicas, uma do Regimento – amparado pelo poder do Rei, pelo poder da escrita e
pelas ações asseguradas pela “política de grande terror” –, e outra pela resistência dos
indígenas em defender seus territórios e seu modo tradicional de viver. A natureza de
resistência das minorias à política do dominante nasce, no Brasil, na resistência dos índios, os
quais dão suas vidas em defesa de seus territórios, característica que marca a relação com
10 A “política de grande terror” foi recomendada por D. João III e consistia em coibir resistências de indígenas
com ações violentas, como em amarrar aquele que praticara algum delito à boca de um canhão, fazendo-o
explodir. No século XVI, “a Confederação dos Tamoios, primeiro movimento de resistência a reunir vários
povos indígenas, como tupinambás, goitacases e aimorés, teve o apoio de huguenotes franceses, terminando com
milhares de índios mortos e escravizados. O conflito, conhecido como Guerra de Paraguaçu (1558-59), destruiu
130 aldeias. Por essa época, multiplicavam-se as revoltas do gentio, com assaltos a núcleos de colonização e
engenhos, mortes de brancos e de escravos negros” (DEL PRIORE; VENANCIO, 2010, p. 18).
48
terra das gerações futuras tanto de índios quanto de pequenos agricultores e, mais tarde, do
MST. Nesse contexto, a classe dominante vê nascer a luta pela terra em solo brasileiro. Esse
caráter de resistência ao poder elitista constitui os discursos dos relatos pessoais, quando os
sujeitos demonstram como suas vidas são marcadas por enfrentamentos, pois o direito
presente na Lei não cabe a eles, por isso precisam empreender lutas para que seus direitos
sejam efetivados. Isso mostra que os discursos dos sem terras acadêmicos do curso de
Ciências Sociais relacionam-se dialogicamente com discursos históricos, sendo elos na cadeia
discursiva, de forma que não são os primeiros discursos de resistência, como também não
serão os últimos.
O sistema sesmarial já é uma solução conhecida pela Coroa Portuguesa, pois quando
“[...] D. João III resolve ocupar-se da colonização do Brasil, estende aqui a fórmula ensaiada,
primeiramente, no reino e, depois, nas ilhas atlânticas” (CAETANO, 1980, p. 13) –, e,
consequentemente, o tratamento dado à terra, demonstrando que o signo e o contexto social
estão indissoluvelmente ligados, de modo que o sistema semiótico, no caso a escrita, serve
para exprimir a ideologia e, por isso, é moldada por ela (BAKHTIN, 2002). Sendo a língua
determinada pela ideologia, também o são a consciência, o pensamento e a atividade mental.
A língua é a expressão das relações e lutas sociais, propagando e sofrendo os efeitos desta
luta, prestando-se como instrumento e material (BAKHTIN, 2002).
Como expressão de relações sociais, o regime de Sesmarias, com o tempo, ganha
novos contornos, já que novos interlocutores fazem parte da cadeia dialógica. Com a chegada
cada vez maior de europeus, que encontram grandes extensões de terra vazias, em 1695, a
Coroa determina o pagamento de taxas à Coroa, cobradas conforme a extensão e a qualidade
das terras. A cobrança é mais uma forma de responder àqueles que aqui chegam, silenciando-
os e demonstrando que a terra é destinada aos que têm condições de pagar os impostos. Com a
cobrança, demonstra-se que as concessões são de domínio administrativo sob um bem
público, isto é, as terras ainda são de propriedade da Coroa, mas estão sendo apenas
usufruídas pelos donatários de sesmarias. O regime colonial apresenta sentidos mais
específicos à terra, já que passa a concebê-la como um instrumento para gerar riqueza. No
entanto, para continuar seu projeto de acumulação, utiliza-se de uma legislação especial, um
conjunto de normas e providências isoladas, para mantê-las sob o poder do Rei (LIMA,
1988).
A terra, nesse contexto, é um produto ideológico que reflete uma realidade exterior,
os interesses públicos. Neste caso, o signo terra possui os sentidos de “propriedade da Coroa”
e “moeda de troca”, o que se reflete no contexto social. A ideologia monárquica e os discursos
49
por ela produzidos acentuam que a terra não é para todos, o que é uma marca na história
fundiária brasileira. Dessa forma, aqueles que a querem cultivar, explorar e especular
precisam atender às normas do Rei ou driblá-las. Já os que não dispõem de capital para pagar
os impostos nem de influência política não podem legalmente adquiri-las, instalando-se nas
faixas entre as grandes fazendas. O sistema das Sesmarias, ideologicamente idealizado,
proporciona a instalação de grandes propriedades e alta concentração fundiária,
principalmente, nos arredores das aglomerações populacionais, já no Brasil Colonial.
O que é ideológico, nesse contexto inicial da história, é a terra, que carrega as visões
de mundo, as pretensões de um grupo social dominante, que, mesmo querendo-se
monológico, ou seja, ao não levar em consideração a condição de outros sujeitos envolvidos
no processo de distribuição de terras e tratá-los como objeto, já desenvolve discursos para
limitar as ações dos outros, dos lavradores e dos índios, e, assim, marcar o Brasil como o país
do latifúndio. Podemos entender pelo olhar de Bakhtin (2002, p. 31): tudo “[...] que é
ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos,
tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia” (grifos do autor).
Notamos que a estrutura social sinaliza para os contornos das grandes propriedades e da posse
de pessoas influentes política e economicamente.
Sendo o contexto histórico um ponto chave na teoria de Bakhtin e constitutivo dos
discursos dos acadêmicos sem terra do curso de Ciências Sociais, buscamos continuar nosso
aprofundamento nas raízes sociais para entendermos a construção do signo terra, neste
primeiro momento. O caráter inconcluso e dialógico da história mostra que a relação do poder
público e da sociedade brasileira com a terra não se estagna com as normas estabelecidas pelo
Rei durante o período das Sesmarias. A história continua e mostra que as resistências pela
posse da terra só aumentam, mas também se multiplicam os apossamentos irregulares da terra
por parte dos latifundiários.
A partir de 1822, inicia-se um período de vacância do sistema sesmarial, o que faz
com que a questão fundiária fique em aberto e possibilite o agravamento de apossamentos
irregulares da terra. Nesse período, as posses são marcadas conforme os olhos dos grandes
fazendeiros, tendo como limites riachos, encostas e serras. No entanto, um novo sujeito surge
nesse contexto, os novos posseiros, os quais, já organizados e influentes em suas freguesias,
resistem às investidas dos grandes senhores, os conservadores, e mostram que também
querem o poder e a terra. Entretanto, os antigos senhores têm o poder político em mãos que
contorna a situação em seu favor. Mesmo assim, é necessário que o governo e os fazendeiros
conservadores apaziguem as disputas com os novos posseiros latifundiários/os liberais, bem
50
como criem um novo regime de distribuição de terras, o qual atenda aos interesses dos dois
grupos, impedindo novos apossamentos e o surgimento de outros novos posseiros
latifundiários. O discurso monologizado do Rei, do início da colonização, já não é o único a
ecoar, pois outras vozes levantam-se para garantir a posse das terras, a ponto de surgir os
novos posseiros, antigos lavradores, que percebem quais devem ser as ações realizadas para
garantir a posse da terra, o que inclui a influência na região, ou seja, já se pensa em uma
organização para se manter na terra.
Podemos perceber que o discurso da grande propriedade chega aos pequenos
posseiros, de forma que aquilo que é uma humilde posse de terras cultiváveis passa a se
impregnar do espírito do latifúndio. O surgimento desse novo sujeito – novos posseiros –
indica que os pequenos lavradores relacionam-se e incorporam os discursos dos grandes
proprietários, por observar neles a possibilidade de ascensão social. Notamos que a ideologia
das grandes propriedades chega aos novos posseiros, que têm força física e experiência para
trabalhar a terra e aprendem que é necessário ter influência política para defender e aumentar
suas posses. Sendo a consciência individual um fator sócio-ideológico, ela ganha outros
membros da sociedade outrora contrários aos interesses da elite latifundiária. Agora, querem
juntar-se a ela, fazer parte da mesma cadeia, do mesmo grupo social. Do ponto de vista
bakhtiniano, a terra como signo ideológico recebe sentidos de “propriedade”, “capital” e
“influência política”, os quais refletem a lógica e as leis de um grupo social, com interesses
coesos, o que sustenta a constituição do signo ideológico. É por isso que os signos só podem
surgir em um terreno interindividual, na relação com o outro, onde haja organização dos
membros do grupo (BAKHTIN, 2002, p. 35).
Volochínov (2013, p. 195) ressalta que “[...] o arbítrio individual não pode,
obviamente, ter qualquer significado. O signo se cria, de fato, entre indivíduos, no ambiente
social, na sociedade”. A própria consciência individual abriga-se nas palavras (leis, decretos,
Constituições, debates, gritos por justiça), nos gestos significantes, nas imagens, de modo que
fora desses materiais semióticos o que existe é simplesmente um ato fisiológico (BAKHTIN,
2002). A herança das lutas mostra aos sem terra de hoje que a força está no discurso, fator que
fará com que os movimentos sociais rurais contemporâneos enxerguem na palavra um
instrumento fundamental para suas lutas. São lemas, hinos, documentos e cartilhas
incorporados à luta pela terra, a fim de também fazerem parte da cadeia de enunciados de um
contexto sócio-histórico e responderem aos discursos hegemônicos. São eventos sociais, ou
seja, enunciados na perspectiva bakhtiniana. Segundo Bakhtin (2011, p. 371), não há
enunciados isolados, pois ele está sempre dialogando com enunciados anteriores e posteriores:
51
“[...] Ele é apenas um elo na cadeia e fora dessa cadeia não pode ser estudado”. Bakhtin e
Volochinov (1926, p. 4) também discorrem que “[...] na vida, o discurso verbal é claramente
não autossuficiente. Ele nasce de uma situação pragmática extraverbal e mantém a conexão
mais próxima possível com esta situação.”
Desse modo, tanto vozes discordantes como vozes consoantes à reforma agrária
enxergam no discurso o poder para que seus planos sejam concretizados. Exemplo disso é a
Lei de Terras de 1850, a qual marca o contexto histórico da estrutura fundiária no Brasil, por
ser a primeira Lei que institui o valor monetário da terra, excluindo, assim, aqueles que não
dispõem de condições financeiras para arcar com os custos da terra. Mediante essa Lei, outros
mecanismos legais são criados para excluir os camponeses do direito à terra, como
discutiremos a seguir.
1.2.2 Lei de Terras de 1850 e Constituição Federal de 1891
Em outro momento histórico, o contexto com relação à posse de terras apenas se
agrava com disputas armadas no campo e, também, judiciais, o que leva o Parlamento a
discutir o desenvolvimento de um projeto que organize as posses de terras e diminua os
conflitos entre pequenos lavradores e grandes senhores do café e, também, entre pequenos
lavradores e outros pequenos lavradores. As discussões iniciam-se, em 1843, com os políticos
conservadores, que entregam um projeto ao Parlamento, o qual não é aprovado pelo Partido
Liberal. Engavetado, em 1844, o projeto apenas volta a entrar na pauta de discussões em
1849, tendo sua aprovação em setembro de 1850. A Lei 601 é mais conhecida como a Lei de
Terras de 1850.
O ano de 1850 também assinala a história brasileira com o fim do tráfico negreiro
por meio da promulgação da Lei Eusébio de Queirós. Com isso, a aristocracia já sabe que
cedo ou tarde a escravidão será extinta11
. Com essa previsão, latifundiários e monarquia
pensam na necessidade da entrada de mão-de-obra imigrante12
e livre para desempenhar o
11 A Inglaterra já havia aprovado o Abolition Act, em 1807, proibindo o tráfico de escravos, e, em 1833, é abolida
a escravidão nesse país; em 1810, um tratado de amizade entre Inglaterra e Portugal propôs o fim gradual da
escravidão nas colônias portuguesas; na França, já em 1794, uma convenção republicana aprovou a lei que
extinguia a escravidão em suas colônias, mas somente em 1848 os escravos foram emancipados; no Chile, em
1823, uma lei também proibiu a escravidão. 12
O momento pelo qual passava a Europa era favorável à saída dos europeus para outros países, pois estavam
passando pela fome endêmica que se tratou do esgotamento do solo e da doença da batata. No caso da Irlanda,
52
trabalho que antes o africano realizara. Há, no entanto, uma dúvida quanto à reação dos
imigrantes europeus ao verem grandes extensões de terras devolutas vazias. Pensando na ação
do outro, que pode ser a de adentrar essas terras e depois requerê-las, o poder público
antecipa-se e insere na Lei de Terras13
a norma de que as terras devolutas não podem ser
ocupadas mediante outro título que não seja o de compra (MARTINS, 1998), como aponta o
Artigo 1º: “Ficão prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o
de compra” (BRASIL, 1850). Já o Artigo 2º reza que os:
[...] que se apossarem de terras devolutas ou de alheias, e nelas derrivarem
matos, ou lhes puzerem fogo, serão obrigados a despejo, com perda de
bemfeitorias, e demais soffrerão a pena de dous a seis mezes de prisão, e
multa de cem mil réis, além da satisfação do damno causado (BRASIL,
1850).
quase todo território era ocupado pela agricultura, o que pressionava as terras, extremante produtivas, e
aumentava em larga escala a renda. Nesse período, a batata, tubérculo mais plantado e consumido no território,
começou a apresentar a “doença da batata”, a qual se espalhou pelo território, contaminando o solo por longos
anos, assolando a população altamente dependente do tubérculo. Diante desse cenário, muitos camponeses
irlandeses não tiveram condições de pagar suas dívidas e foram expulsos das terras que cultivavam, sendo
obrigados a se dirigirem para as cidades. A crise também se espalhou para outros países, como Inglaterra, que
veem o preço das sementes subirem por causa das más colheitas vistas em toda Europa. Diante disso, milhões de
irlandeses emigraram, principalmente, para a América do Norte e deram início ao êxodo dos europeus. Também
contribuiu para imigração a falta de empregos causada pela Revolução Industrial na Inglaterra, ocasionada pelo
avanço tecnológico gerado pela presença de diversos maquinários no chão das fábricas, as tensões entre
trabalhadores e grandes proprietários, o desflorestamento, a opressão fiscal dentre outros problemas que
pareciam ser solucionados com a emigração para países como o Brasil. Havia ainda uma grande propaganda feita
pelas agências que faziam o transporte de imigrantes em navios para o Brasil e aqueles que aqui já estavam
também propagavam, por meio de cartas, notícias positivas sobre a vida na nova terra. 13 Conforme Motta (1998): “Proclamada como uma lei inauguradora, capaz de “firmar a propriedade territorial”,
dando ao proprietário “tranqüilidade e seguridade”, a Lei de Terras de 1850 não esteve acima da sociedade que a
criou. Inspirada – segundo alguns – pelo sistema de colonização de Wakefield, ela não foi, no entanto, mais um
mero reflexo da inspiração baseada num modelo externo e, muito menos, resultado das elucubrações teóricas de
dois redatores Aprovada no mesmo ano que pôs fim ao tráfico negreiro, a Lei de Terras também não esteve
automaticamente ligada ao problema da famosa transição do trabalho escravo para o livre. Debatida, discutida,
virada pelo avesso ao longo de sete anos (de 1843 a 1850), ela também não foi apenas resultado das clivagens
partidárias do período e também não refletiu como espelho os interesses dos cafeicultores fluminenses Ela foi
isto tudo (certamente não de modo tão esquemático) e muito mais. Para os advogados, ela inaugurou conceitos
jurídicos ainda hoje utilizados no Brasil. Outros ainda vêem na lei um recurso para a defesa dos interesses do
Estado em relação a suas terras devolutas ou na defesa de pequenos posseiros em processo de expulsão. Ela foi
também isso; e ainda mais. Como toda e qualquer lei, ela esteve imbricada nas relações pessoais, teve uma
história e buscou assegurar critérios universais, legitimadores dos princípios jurídicos que procurou consagrar.
Como qualquer lei, ela esteve intimamente ligada ao passado e foi para dar conta dos problemas dele advindos
que homens de várias tendências entraram e debateram, criticaram e defenderam na Câmara e no Senado. Mas o
passado nada tem de singular. Para cada um dos representantes no Parlamento havia uma interpretação – que
conflitava com outras – para explicar a história da ocupação territorial do Brasil e lhe conferir um sentido. Para
alguns, era o direito dos posseiros que deveria ser salvaguardado; para outros, era preciso diferenciar s
cultivadores dos meros invasores dos terrenos alheios. Para outros ainda, o importante era salvaguardar os
interesses dos sesmeiros, os titulares das terras. Neste debate de interpretações, o texto da Lei de Terras não
deixou de expressar esta arena de lutas”.
53
No próximo Artigo (3º), a Lei de Terras declara que terras devolutas são aquelas que
não estão “[...] no domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem havidas por
Sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Província, não incursas em comisso por
falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura”. A Lei aponta que a
terra que não estiver documentada pelo Governo Geral é considerada devoluta (vasta extensão
de terra de propriedade da União); já aquela que estiver no domínio particular, tem seu
proprietário. Percebemos que a Lei assegura a incapacidade de qualquer pequeno posseiro,
que trabalha na lavoura, ter acesso à terra, pois ele não tem como obter a escritura dela
mediante o pagamento do valor estipulado pelo governo colonial. Ocorre aqui o afirmado por
Volochínov (2013, p. 144): “[...] Em certo sentido, a palavra sacraliza, com sua antiga
autoridade mágica, as leis vantajosas para uma minoria dirigente que favorecem a servidão da
maioria submetida”.
A força da palavra Legal e a da voz de autoridade do Rei garantem a oportunidade de
posse àqueles que têm os títulos documentados e que na terra habitam ou que nela coloquem
alguém para representá-lo. Observamos como o discurso está alicerçado em outras vozes,
como também está orientado aos outros. A Lei de Terras, como todo discurso, apresenta dois
princípios absolutos da teoria bakhtiniana, primeiro o diálogo com a história da Europa no
que diz respeito à saída de imigrantes para outros países, visualizando-os como prováveis
interessados pelas terras devolutas e, também, com o próprio contexto brasileiro de libertação
dos escravos, e segundo por dialogar com os anseios dos pequenos posseiros brasileiros em
requererem os títulos de posse, o que é negado pela Lei. A Lei de Terras não é neutra, pois
carrega em si o horizonte social do grupo que a utiliza. Do mesmo modo, a Lei, no processo
dialógico, demonstra que as palavras não são de ninguém por retomarem discursos e
comportamentos passados. Porém, elas carregam uma força ideológica que responde, limita e
intimida os seus interlocutores: “[...] em si mesmas nada valorizam, mas podem abastecer
qualquer falante e os juízos mais diversos e diametralmente opostos dos falantes”
(BAKHTIN, 2011, p. 290). Assim, pelo fato de em si não terem sentido, entendemos que a
força do signo terra enquanto bem de capital está no fato de seu significado ser compreendido
e aceito por um grupo social, no caso monarquia, conservadores e liberais, o que acentua o
caráter interindividual dos signos: “[...] não se pode entrar no domínio da ideologia, tomar
forma e aí deitar raízes senão aquilo que adquiriu um valor social” (BAKHTIN, 2002, p. 45).
Volochínov (2013, p. 195) também a esse respeito explica que para:
54
[...] fazer com que um objeto, qualquer que seja o tipo de realidade à qual
pertença, entre no horizonte social de um grupo e provoque uma reação
semântica, ideológica, é necessário que este objeto esteja ligado com as
premissas socioeconômicas essenciais da realidade objetiva do grupo dado, é
necessário que toque, mesmo marginalmente, a base da realização material
do grupo.
Importa destacarmos que a Lei de Terras, representante dos interesses da classe
dominante em suas linhas, garante a todos o acesso à terra desde que haja o pagamento do
valor estipulado pelo governo e não afirma em momento algum que pequenos lavradores não
podem obter o título de posse. Há um discurso falso acerca do acesso igualitário à terra, já que
ela se torna uma mercadoria. Podemos notar que a classe dominante oculta as diferenças de
classe e de possibilidade de obtenção do título de terra. Pela Lei, qualquer pessoa que pague
pelo título pode ter acesso a terra, de modo que a Lei não distingue pessoas da classe
dominante da classe minoritária. Trata-se de um discurso que objetiva convencer a sociedade
(em seus variados grupos) que terra é para quem pode pagar por ela. Essa noção perpetua-se
pela história, pois, além das leis, que associam a posse da terra ao pagamento de um valor
monetário, a Igreja Católica também mostra aos seus fiéis que a divisão da sociedade entre os
que dispõem de dinheiro e os que não dispõem é oriunda da vontade divina, sendo, assim, é
pecado contrariar essa lei. Notamos a exclusão dos pequenos posseiros de forma naturalizada,
tendo em vista que eles são aqueles que não dispõem de dinheiro nem de influências para
requerer o título. Entendemos que a “[...] classe dominante tende a conferir ao signo
ideológico um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de
ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava, a fim de tornar o signo
monovalente” (BAKHTIN, 2002, p. 47). A lei é, portanto, para todos, porém apresenta um
caráter dialético, pois uns são por ela excluídos e outros são por ela privilegiados.
O signo terra reflete a ideologia do grupo social dominante e é produto da história
humana, uma vez que se pode ver nele a imagem desse grupo, ou seja, o seu horizonte social,
os valores perseguidos e os caminhos percorridos para que encarne significados, mas também
se refrata ao dialogar, mesmo que pelo silenciamento, com os imigrantes e os pequenos
posseiros. Isso significa, segundo Volochínov (2013, p. 195), que “[...] num único signo se
refletem e acompanham-no relações de classe diversas. Nenhuma palavra reflete com absoluta
precisão (‘objetivamente’) o seu objeto, o seu conteúdo. A palavra não é, de fato, a fotografia
daquilo que denota”. A luta de classes determina o caráter de refração do ser no signo, já que
a refração é o resultado do sentido passado pelo crivo do sujeito lavrador. A refração desvia e
deforma os sentidos únicos apontados pelo grupo dominante, fazendo o signo terra
55
multiplicar-se em sentidos diversos, originários do contato com sentidos construídos por
outras classes. Para Marx e Engels (2001), as classes emergem na base econômica, quando ela
se ergue sobre modos de produção antagônicos, organizados em torno de diferentes
modalidades de exploração do trabalho. “[...] Classes diferentes têm também pontos de vista
diferentes; na linguagem de cada classe existe uma medida particular de correspondência da
palavra com a realidade objetiva” (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 198). O signo é, então, uma
arena onde se desenvolve a luta de classes, por ser no signo que se efetiva o entrecruzamento
de significações distintas, fazendo dele um fenômeno plurivalente. “Esta plurivalência social
do signo ideológico é um traço da maior importância. Na verdade, é este entrecruzamento dos
índices de valor que torna o signo vivo e móvel, capaz de evoluir”, conforme Bakhtin (2002,
p. 46), e, assim, chegar aos relatos pessoais dos acadêmicos sem terra já ressignificado,
reformatado, resultado de relações conflituosas.
A Lei de Terras de 1850 é considerada por Martins (1998) um marco na história da
terra no Brasil, por ser efetivada em um contexto que muda a relação do homem brasileiro
com a terra. Mesmo que ela já fosse considerada um bem de capital por meio do pagamento
ao Rei, essa Lei e, posteriormente, outras leis e seu Regulamento de 185414
garantem a
negociabilidade da terra. Além disso, outro ponto com o qual a Lei dialoga refere-se à
condição de transição do valor de capital e de acumulação que passa do escravo – que até
aquele momento é garantia de crédito nos bancos para custear as lavouras de café – para as
terras. Desta forma, a Lei de Terras dialoga com a futura “libertação dos escravos”.
Diante do cenário que aponta para a libertação dos escravos e do amparo dado pela
Lei de Terras e de seu Regulamento de 1854, já em 1873 o governo concede crédito
hipotecário tendo como garantia de pagamento a terra e a propriedade, o que acentua o caráter
do signo terra como “mercadoria”, o que antes é conferido ao escravo. No entanto, a terra
ainda não é bem vista por banqueiros e comerciantes como garantia de pagamento, pois a eles
não interessa ser fazendeiros; logo, a solução dada pelos donos de Banco é a penhora do fruto
pendente e do fruto colhido, o que constrói um cenário no qual aquele que tem mais terras
para produzir pode adquirir mais créditos bancários. Assim, observamos uma corrida pela
14 Em 1854, foi promulgado o Regulamento para execução mais fiel da Lei de Terras/Lei 601, de 1850, o qual
estabeleceu prazos para a regularização dos títulos de terras por meio da medição realizada por funcionários do
Governo. Estabeleceu-se que todo o posseiro que possuísse ou não o título de sesmarias ou o estipulado pela Lei
601, de 1850, deveria procurar o juiz comissário ou os agrimensores para realizar as medições. No entanto, o
Art. 37 aponta que apenas poderiam requerer a medição aqueles que tivessem culturas formadas, o que não seria
o caso de “simples roçados, derribadas, ou queimas de matos, e outros actos semelhantes”, conforme aponta o
Regulamento.
56
terra, uma vez que possuir mais terras significa o aumento da produção e, consequentemente,
do crédito bancário. O signo terra, logo, está impregnado de valor ideológico de um novo
grupo social que entra no processo de interação, os banqueiros. Para eles, o sentido de terra
está relacionado à garantia de pagamento pelos créditos feitos pelos fazendeiros por meio dos
frutos que ela produz. Do mesmo modo, os fazendeiros também criam o sentido de “crédito
bancário” para terra, pois é ela que assegura o investimento na produção de café e o aumento
de riqueza. Dessa forma, o signo terra é encorpado de novos sentidos, o que é resultado da
participação de novos sujeitos sociais, os banqueiros, os quais entram no jogo discursivo e
reformatam o sentido de terra, haja vista que, nesse contexto social, terra já não é planeta, solo
ou pó, mas carrega os resultados das negociações existentes entre os grupos envolvidos.
A esse respeito, Miotello (2005, p. 170) destaca que, para os pensadores do Círculo,
“[...] objetos materiais do mundo recebem função no conjunto da vida social, advindos de um
grupo organizado no decorrer de suas relações sociais, e passam a significar além de suas
próprias particularidades materiais”. É isso o que notamos na constituição do signo terra, um
deslocamento do significado original (terra: planeta, pó, solo) para um significado
incorporado da ideologia do grupo social dominante. O signo, então, é composto por duas
faces, uma no sentido físico-material e outra no sentido sócio-histórico-ideológico. No
entanto, não se pode falar que um grupo social tem seu signo, mas seu universo de signos,
conforme Bakhtin, que o serve e o mantém em coesão. Além da face dupla, o signo recebe um
ponto de vista, pois, como afirma Miotello (2005, p. 170), “[...] representa a realidade a partir
de um lugar valorativo, revelando-a como verdadeira ou falsa, boa ou má, positiva ou
negativa, o que faz o signo coincidir com o domínio do ideológico. Logo todo signo é
ideológico”. A terra é vista, assim, do lugar valorativo da situação sócio-historicamente
construída pela classe dominante.
Na transição do século XIX para o século XX, logo depois da proclamação da
república, vigora no Brasil a Constituição Federal de 1891, a qual acentua os direitos dos
latifundiários à propriedade, em destaque para os cafeicultores, ao estabelecer, em seu
parágrafo 17 que o direito: “[...] de propriedade mantem-se em toda a sua plenitude, salvo a
desapropriação por necessidade, ou utilidade pública, mediante indemnização prévia”
(BRASIL, 1891)15
. Podemos notar que a linguagem é utilizada para assinalar o direito à
propriedade privada, como também para assegurar que o poder das terras mantenha-se nas
15 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm>. Acesso em: 21 set.
2016.
57
mãos da elite cafeicultora. A Carta Magna, como lei maior do País, é uma ação responsiva do
governo e de seus aliados aos levantes de resistência que podem ocorrer advindos dos
imigrantes que aqui chegam, bem como dos pequenos lavradores que se veem cada vez mais
encurralados pelas grandes fazendas. Dialogicamente, a Lei interage com os movimentos de
resistência ao apontar que a desapropriação pode acontecer, porém somente com indenização,
o que na verdade é um empecilho aos pequenos lavradores, já que a União não garante ter
verba para custear as indenizações. Assim, o poder dos grandes latifundiários sobre as terras é
novamente acentuado.
A Constituição Federal de 1891 é um elemento que também entra no fluxo da
história como um instrumento que mantém o poder da elite sobre as terras e, por ser uma voz
de autoridade, a qual deve ser obedecida, ela forma e molda uma sociedade que já nasce
tutelada, pois seus direitos são vedados, enquanto a concentração de grandes extensões de
terra nas mãos de poucas pessoas mantém-se. Trata-se de mais uma via legal utilizada pela
classe dominante para frear as ações de resistência, ainda tímidas, que se vê pelo Brasil.
Importa destacarmos que o signo terra, ao ser visualizado no curso da história, da
chegada dos europeus colonizadores com a implantação do sistema de Sesmarias, a
promulgação da Lei de Terras de 1850 e da Constituição de 1891, assimila as mudanças
sócio-econômicas vivenciadas pelos grupos dominantes e dominados. Inicialmente, terra é de
propriedade da Coroa, moeda de troca de favores. Aos nobres é dado o incentivo de povoá-la
e fazê-la produzir. Porém, aspectos econômicos externos, como o fim da escravidão nos
países europeus e a esperada libertação dos escravos, criam para o signo terra o sentido de
“mercadoria”, “bem de capital” e “crédito bancário”, passando a considerar a terra como um
produto negociável, desencadeando o interesse pela legitimação das propriedades. Em um
processo contínuo, notamos que a renda adquirida por meio do escravo transforma-se em
“renda territorial capitalizada”, de forma que a terra, que antes é livre, passa a ser cativa e o
escravo, que é cativo, passa a ser livre (MARTINS, 1998).
O regime de Sesmarias, a Lei de Terras (1850-1854) e a Constituição de 1891 são
fatores preponderantes para o amplo apossamento de terras e para a limitação da posse ao
camponês, o que resulta na formação de latifúndios, avançando sobre as pequenas
propriedades, expulsando o pequeno lavrador (SMITH, 1990). Esses discursos introduzem, no
Brasil, a gênese da propriedade capitalista da terra, disseminando a ideologia de que terra não
se conquista, terra se compra, o que regula as relações entre a classe dominante e a classe
dominada no Brasil, “[...] limitando o acesso à terra aos trabalhadores do campo, separando-
os dos meios de produção, subordinando-os ao latifundiário e ao capital ou expulsando-os da
58
terra” (NARDOQUE, 2014, p. 45-46). Por isso, analisar esses três fenômenos históricos é
fundamental para este estudo, pois são eles que norteiam as próximas ações tanto da classe
dominante quanto da dominada e influenciam as novas leis como também as resistências por
parte dos camponeses. São três elementos histórico-sociais e jurídicos que entram no fluxo da
história e são retomados nos fios discursivos dos acadêmicos sem terra quando retratam os
enfrentamentos que precisam realizar para acessar a terra, ao mesmo tempo são também
constitutivos de discursos futuros. Esses fenômenos não estão, portanto, estagnados no
passado, mas estão vivos na cadeia discursiva. Os relatos pessoais são tomados pelos
discursos dos outros, por milhares de fios dialógicos, de toda carga ideológica que
carregamos.
Podemos perceber, por meio do trajeto histórico até aqui percorrido, que o signo
terra deixa de significar uma realidade em si mesma (pó, poeira, solo) e passa a refletir outra
realidade que ultrapassa o significado do próprio objeto terra. Portanto, é um signo
ideológico, o qual carrega sentidos múltiplos – conflitantes e consensuais –, que marcam o
lugar que este signo frequenta, os grupos sociais nos quais está inserido.
O signo terra também é constituído, como demonstraremos a seguir, por outras leis.
A Constituição Federal de 1946 incentiva o trabalhador rural a permanecer no campo, por
meio de planos de colonização e de aproveitamento de terras públicas, o que está
condicionado ao pagamento por parte da União das terras desapropriadas. Porém, essa é mais
uma lei que na prática não se efetiva em decorrência da defesa dos privilégios da classe
dominante.
1.2.3 Constituição Federal de 1946
Em 1946, uma nova Constituição Federal é outorgada. Em um cenário em que a
reforma agrária já é um ponto discutido entre políticos de oposição e os a favor, a Lei Maior
do País concebe a terra como “propriedade” e como “bem-estar social”, sendo possível a
distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos, mediante a indenização. A
Lei não se refere à reforma agrária, mas a uma redistribuição de terras, o que muda a
perspectiva, pois antes as terras são apenas adquiridas por meio da compra do título, agora
passam a ser objeto de desapropriação, podendo ser redistribuídas, a todos de modo igual. A
falta do termo “reforma agrária” leva-nos a inferir uma tentativa de silenciamento das vozes
defensoras da reforma agrária como fragmentação do latifúndio, divisão, coletivização e, ao
59
mesmo tempo, ao se referir à terra como “bem-estar social”, há uma tentativa de acalmar os
ânimos daqueles que já se organizam reivindicando por reforma agrária. A Lei trata de direito
à terra, porém isso é condicionado à indenização por parte União, o que pode ser um
empecilho para a efetivação da distribuição de terras.
O Art. 156 expõe o incentivo ao camponês para sua fixação no campo por meio de
planos de colonização e de aproveitamento de terras públicas: “A lei facilitará a fixação do
homem no campo, estabelecendo planos de colonização e de aproveitamento das terras
públicas. Para esse fim, serão preferidos os nacionais e, dentre eles, os habitantes das zonas
empobrecidas e os desempregados” (BRASIL, 1946 Art. 156). Esta é a política defendida
pelo Presidente Getúlio Vargas que, na verdade, objetiva incorporar novas terras, proteger as
fronteiras e aumentar a produção de alimentos, o que leva o Presidente a instituir, por meio do
Decreto-lei nº 3059, as Colônias Agrícolas Nacionais (CAN). Esse programa prevê a
ocupação de terras, ditas pelo Governo, “devolutas” em áreas de fronteiras ou ainda pouco
povoadas, como as do sul do Estado de Mato Grosso (MT), hoje Mato Grosso do Sul (MS)16
.
Essa ação do governo de Vargas é conhecida como Marcha para o Oeste.
No entanto, quando os chamados colonos chegam às terras encontram problemas,
como a presença de grupos indígenas e a falta de infraestrutura. Esse programa não chega a
atender todo o País, deixando os trabalhadores rurais do nordeste de fora da distribuição. O
que se vê, então, é uma Lei que, no papel, assegura o direito do homem de se fixar na terra, o
que não é a realidade, pois os grandes senhores de terras ainda mantêm poder político,
dinheiro e influências sociais para não permitir que a parcela mais pobre de trabalhadores
rurais seja beneficiada com essa Lei.
O programa Marcha para o Oeste não se trata de reforma agrária, uma vez que o
intuito não é a distribuição de terras, a permanência dos camponeses nas terras e a afirmação
de um direito. Na verdade, é uma forma de povoar as áreas de fronteiras e pouco povoadas,
protegendo-as das ocupações dos países vizinhos. Ao restante dos trabalhadores rurais do País
cabe desenvolver ações de resistência para fazer valer a Lei. A política de distribuição de
terras está prevista em Lei, mas está atrelada à disponibilidade financeira de o governo em
custear as despesas com as indenizações, resultando na ineficácia da Lei para aqueles que têm
esperança de que o direito valha para todos.
16 Em 1977, houve a divisão do Estado de Mato Grosso em dois Estados, resultando no Estado de Mato Grosso
(MT), cuja capital é Cuiabá, e o Estado de Mato Grosso do Sul (MS), cuja capital é Campo Grande. Neste
trabalho, nosso foco é o Estado de Mato Grosso do Sul (MS).
60
A autoridade da Lei é utilizada para congregar interesses de grupos majoritários e
acalmar as minorias que pedem por reforma agrária. A Constituição resulta de um jogo de
forças em que a ideologia dos dominantes tem poder sobre a dos dominados. As leis
representam a ideologia oficial, uma ideologia mais organizada, mais concreta, mais
estabilizada, caracterizada também por sua “[...] estrutura e conteúdo, relativamente estável”
(MIOTELLO, 2005, p. 169), e demonstram que, a cada época, as classes dominantes
constroem forças ideológicas a fim de assegurar seu poder e manter o mundo como é. No
entanto, as vozes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a dos movimentos de camponeses
que surgem pedindo a reforma agrária, como veremos no capítulo dois, ecoam na
Constituição de 1946, mas é uma voz presente-ausente ao mesmo. Isso porque a Lei apresenta
a possibilidade de desapropriação de terras para distribuição igual a todos, porém condiciona
esse direito à indenização por parte do Governo, o que na prática não se efetiva.
Podemos notar que a ideologia do cotidiano, a ideologia da realidade, da vida
concreta dos camponeses interfere na ideologia oficial, no caso da Justiça, a ponto de se
atestar a distribuição de terras, mas não a reforma agrária. Assim, há uma disputa instaurada
nesse discurso, em que se observam ideologias diferentes. Essa disputa entre classes
diferentes demonstra o caráter ideológico da linguagem, o que contraria a ideia de unicidade
da língua. O signo reforma agrária é uma arena de lutas, uma vez que congrega a ideologia
da sociedade dominante e, ao mesmo tempo, apresenta um alento aos defensores da reforma
agrária, o que evidencia a dialética do signo, as duas faces de Jano. Por isso, o signo, segundo
Bakhtin, comporta em si índices de valores que propagam e constituem os signos que os
utilizam e a realidade por onde circulam. O signo terra, na Constituição de 1946, é visto
como “propriedade”. Parte-se do princípio de que a terra pertence a alguém, para depois
apontar a característica de “bem-estar social”, evidenciando que terra deve atender ao bem-
estar daquele que da terra necessita para viver.
O discurso legal demonstra que as leis são feitas pela classe dominante para defender
seus próprios interesses. Porém, na década de 1940, o Brasil assiste ao surgimento de
movimentos camponeses em prol da luta pela terra. Com isso, a elite latifundiária sente-se
ameaçada pela organização dos trabalhadores rurais, o que a leva a também se organizar em
associações rurais, a fim de garantir que seus interesses sejam mantidos, conforme
mostraremos a seguir.
61
1.2.4 Associações Rurais
Partindo da premissa bakhtiniana de que nenhum discurso pode ser creditado a um
sujeito singular tomado isoladamente, entendemos que os discursos não pertencem ao sujeito,
mas sim ao seu grupo social. Desse modo, observamos que todo o discurso reflete um
acontecimento social que marca a história. Por isso, Bakhtin preocupa-se com os laços mais
longos, amplos e sólidos aos quais estão entrelaçados discursos do hoje,
[...] em cuja dinâmica se elaboram todos os elementos do conteúdo e as
formas dos nossos discursos interior e exterior, todo o acervo de avaliações,
pontos de vista, enfoques etc., através dos quais lançamos luz, para nós
mesmos e para os outros, sobre os nossos atos, desejos, sentimentos e
sensações (BAKHTIN, 2014, p. 86).
Ao estudarmos a dinâmica do problema da terra no Brasil pelo olhar bakhtiniano,
percebemos, conforme afirmamos anteriormente, que os discursos não têm sua origem em si,
mas estão em constante diálogo com a história, pois todo discurso é histórico. Por isso, os
discursos da classe dominante mostram que para entrar no fluxo da história não basta nascer
fisicamente, é necessário um segundo nascimento, o social. Dessa premissa, entendemos que
o homem não nasce como um organismo biológico abstrato, mas nasce como um sem terra ou
um fazendeiro, como um brasileiro ou como um russo. Este é o principal nascimento. É a
relação com o social e o histórico que torna o homem real e “[...] lhe determina o conteúdo da
criação da vida e da cultura” (BAKHTIN 2014, p. 11).
Podemos perceber, assim, que a razão de os sentidos de discursos dominantes
permanecerem vivos e renovados no presente está no fato de que o sujeito latifundiário banha-
se no sócio-histórico para se tornar real e sujeito na história. A partir dessa ótica, Bakhtin
(2014, p. 11) salienta que “[...] nenhum ato do homem integral, nenhuma formação ideológica
concreta (o pensamento, a imagem artística, até o conteúdo de um sonho) pode ser explicada e
entendida sem que se incorporem as condições socioeconômicas”. É preciso, então, levar em
consideração o espaço social e as relações sociais do sujeito para entendê-lo em plenitude.
Assim, para compreender os discursos da elite da terra da década de 1960, é preciso
levá-los em consideração dentro de um fluxo histórico, que mostra as relações dialógicas
entre os discursos da década de 1960 com os do passado. A razão de trazermos para este
estudo os discursos das associações rurais está no fato de eles serem a base dos enunciados
dos latifundiários de hoje, aos quais os acadêmicos sem terra combatem discursivamente.
Percebemos que a ideologia da classe dominante não muda, ela é apenas alimentada e
62
reformulada, por isso consegue permanecer e tomar espaços sociais como uma verdade. No
início da década de 1960, o que se vê é uma elite dominante sofrendo a pressão feita pelos
movimentos populares, como as Ligas Camponesas, que pedem e lutam fervorosamente por
reforma agrária, sendo apoiados pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e pelo presidente da
república João Goulart, como discutiremos no próximo capítulo. Mesmo assim, a classe
dominante não deixa de se fortalecer por meio de aparelhos de hegemonia da sociedade,
levantando discussões acerca da questão agrária no Brasil.
Entre esses instrumentos ideológicos destacam-se o Instituto de Pesquisas e Estudos
Sociais (IPES) e a Sociedade Rural Brasileira (SRB)17
. O IPES, formado por empresários
ligados a empresas multinacionais, exerce forte oposição ao governo do presidente João
Goulart18
, o que ocorre por meio de centenas de reuniões de estudos a respeito da reforma
agrária e da elaboração de um anteprojeto sobre o tema.
Os membros do IPES não podem negar à época a necessária discussão a respeito da
reforma agrária, já que se trata de um assunto efervescente no Brasil, logo é preciso marcar
uma opinião. Com esse intuito, o IPES juntamente com o Instituto Brasileiro de Ação
Democrática (IBAD) organizam recomendações sobre o assunto, formalizadas em um projeto.
De acordo com o documento, a reforma agrária democrática é aquela que objetiva distribuir
terras ao maior número de pessoas “aptas” a cultivá-las. Assim, os aspectos de segurança,
independência e responsabilidade são difundidos entre os trabalhadores rurais. As duas
organizações defendem que a terra não pode ser doada, mas vendida a preços baixos e a
prazo. Essas organizações buscam a criação de uma classe média rural próspera, com o intuito
de aumentar a produção agrícola (MENDONÇA, 2008).
Vale destacar que o projeto apresentado pelo IPES é marcado pelo cunho técnico ao
conceituar a terra como propriedade familiar, latifúndio, minifúndio, empresa rural,
colonização. O discurso técnico objetiva-se isento de marcas ideológicas, porém, ao querer-se
17 Havia outras associações de agricultores, como a Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), do Rio de
Janeiro. O posicionamento da SNA quanto à reforma agrária era semelhante ao da SRB, mas seus discursos eram
mais moderados e defendiam a ideia de que alguma reforma agrária era necessária, conforme os estudos de
Mendonça (2010) e Natividade (2013). Para este estudo, o foco está no IPES e na SRB pelo fato de essas
associações serem contra a distribuição de terras pelas vias do direito. Logo, empreenderam discursos contra a
reforma agrária, inclusive utilizando-se do periódico A Rural, como também buscaram apoio de políticos
conservadores, a fim de que qualquer projeto de reforma agrária fosse barrado no Congresso Nacional. 18
Essa forte oposição efetivou-se em decorrência do projeto de reforma agrária apresentado ao Congresso
Nacional pelo presidente João Goulart, como mostraremos no segundo capítulo. Segundo o projeto, a União
compraria terras improdutivas ou subutilizadas, a fim de distribuí-las aos camponeses. Embora objetivasse
diminuir a desigualdade no campo e aumentar a produtividade, o projeto de Goulart sofreu uma forte oposição
por parte da classe contrária, formada por latifundiários influentes e políticos conservadores, pois ela
considerava o projeto um passo decisivo para a efetivação do comunismo no Brasil.
63
neutro, já aponta para uma tomada de posição a respeito da reforma agrária. A proposta de
reforma agrária do IPES coloca-se como um verdadeiro oponente ao projeto de Goulart e à
bancada esquerdista, já que pretende levar ao campo a racionalização do uso da terra e a
modernização das áreas rurais. Dessa forma, o modo tradicional de cultivar a terra, particular
a diversos grupos de camponeses como também a indígenas, é negado pelo IPES, já que o
cultivo tradicional não objetiva a exploração da terra nem altas produções de alimentos a
serem exportados.
O IPES cunha suas defesas em estudos técnicos. Apoiar-se em uma voz de
autoridade garante uma isenção quanto aos seus interesses ocultados. Além disso, pretende-se
criar um efeito de autenticidade, pois o discurso técnico é aquele que realiza pesquisas por
meio de metodologias e teorias reconhecidas pela sociedade científica. Cria-se um efeito de
distanciamento entre o IPES e o relatado pelos estudos técnicos, o que apresenta por parte do
IPES uma suposta neutralidade e objetividade quanto ao estudo realizado.
O cunho técnico esconde uma sofisticada e multifacética campanha política,
ideológica e militar. Assim, mostra-se como um grande articulador político, pois, para muitos,
trata-se de um grupo de estudos e sem partido. Porém, com seu discurso técnico, implanta um
plano de governo para a reforma agrária, o que está presente no Estatuto da Terra do governo
militar, conforme discutiremos a seguir. O IPES consegue, assim, fazer das necessidades de
seu grupo políticas públicas (DREIFUSS, 1981).
O signo reforma agrária é constituído mediante a ideologia desse grupo que não
nega a necessidade de uma reforma na estrutura do campo em decorrência do grau de
visibilidade que o problema toma, mas considera que reforma agrária deve ser feita para quem
estiver “apto” a cultivar a terra. Ser apto para cultivar a terra significa ter condições
financeiras, o que garante capital para fazer a terra produzir. Por isso, a IPES defende a
compra das terras a preços baixos por parte dos camponeses e não a distribuição, o que mostra
que eles têm condições financeiras de cultivar a terra. O signo reforma agrária é revestido
com a função de servir como um instrumento para transformar os camponeses em uma classe
média, detentora de capital, o que contribui para a produção nacional, além de racionalizar o
uso da terra e modernizar as áreas rurais. Ademais, o signo terra é concebido ideologicamente
como um bem de capital, o qual pode ser comprado e vendido, conforme a lei de mercado.
Outro grupo que também se opôs ao projeto do presidente João Goulart e ao da ala
esquerdista quanto à reforma agrária é a Sociedade Rural Brasileira (SRB), de São Paulo. Por
meio dessa entidade de classe, os produtores rurais empreendem seu repúdio aos projetos
64
populistas de reforma da estrutura fundiária que tramitam no centro do poder à época. A SRB
defende a
[...] modernização da agricultura colocando-se, muitas vezes, contra as
políticas macroeconômicas do governo que obstaculizassem a continuidade
do processo. Na lógica de seus dirigentes, a solução para consolidar o papel
da agricultura e dos empresários enquanto pilares da economia e sociedade
brasileiras residia na aplicação maciça de tecnologia no campo, antecipando,
em certos aspectos, o processo que mais tarde viria a ser conhecido como
agribusiness (MENDONÇA, 2008, p. 145).
A SRB apresenta-se como a legítima representante do patronato rural, visto ser
composta por dirigentes da atividade da cafeicultura, a qual é considerada por eles a atividade
mais rentável economicamente ao Brasil. Enxergam-se também como um grupo dotado de
forças políticas. Ademais, ressaltam a importância que o estado de São Paulo tem para a
economia brasileira, sem deixar de indicar que suas propostas são também de cunho nacional
(RAMOS, 2011).
Também utiliza como ferramenta de divulgação de suas ideias o periódico A Rural.19
Os estudos de Mendonça (2010) mostram que os editoriais da revista dos anos de 1963 e
1964, consultados pela autora, apresentam a reforma agrária como uma ameaça à agricultura
nacional e o produtor rural como um desprotegido e esquecido pelo Estado. Além disso, os
estudos de Natividade (2011, p. 107) apontam que, para a SRB, a divisão de terras não é uma
medida urgente ao homem do campo “[...] e, sim a eliminação de intermediários e a
diminuição de impostos”. Isso acerta em cheio as necessidades dos produtores rurais e não as
do trabalhador do campo. Outra questão destacada pela autora refere-se à posição defendida
pela SRB de que “[...] a população agrária no Brasil, ‘vivendo da locação das forças de seus
braços’, não estava pronta para receber terras, ‘não está em condições de assumir
proveitosamente a responsabilidade de um patrimônio agrícola’” (NATIVIDADE, 2011, p.
107).
19 A revista A Rural teve seu primeiro número editado em 1920, intitulado “Annaes da Sociedade Rural
Brasileira”. Permaneceu com edições até 2011, mas já com outro título “Informativo A Rural”. Trata-se de uma
revista da Sociedade Rural Brasileira (SRB) que ao longo do tempo tem o objetivo de propagar as ideias do
grupo quanto a situações vivenciadas no campo pelos agricultores e pecuaristas. De acordo com a SRB, a
associação representa a classe rural brasileira e tem como missão conquistar “o bem estar do produtor rural e
do cidadão brasileiro, através de ações políticas e educativas, buscando o incremento da produtividade, o
abastecimento do mercado interno e a geração de excedentes exportáveis”. Disponível em:
<http://www.srb.org.br/institucional>. Acesso em: 25 set. 2016.
65
Podemos perceber que a defesa da SRB para assegurar a propriedade das terras está
ancorada no fato de que, para a associação, os trabalhadores rurais, que apenas vivem da
locação de mão-de-obra, não dispõem de outros atributos necessários para gerenciar com
responsabilidade o “patrimônio agrícola”. Há uma negação da cultura tradicional de se
cultivar a terra, além de um desmerecimento aos trabalhadores, que, na época, são quase todos
analfabetos. A questão imposta é se esses trabalhadores, ao receberem terras doadas pelo
governo, têm condições técnicas e até intelectuais para gerenciá-las, assim como os atuais
agricultores de São Paulo demonstram ter. Desse modo, doar as terras é um simples detalhe
quanto à reforma da estrutura agrária, pois o problema está em quanto a terra ainda pode
produzir.
O periódico A Rural tem um importante papel como espaço para denunciar a ameaça
que a reforma agrária representa aos setores políticos e econômicos. Exemplo disso está no
editorial de junho de 1963, intitulado Rejeitada a Reforma Constitucional:
AUTÊNTICA VITÓRIA DA SRB – O presidente da SRB, sr. Sálvio de
Almeida Prado, prestou informações, em reunião da entidade, sobre sua
atuação em Brasília para derrubar a emenda constitucional que possibilitaria
a reforma agrária, através da desapropriação de terras, em títulos da dívida
pública. Segundo ele, a luta não terminou, pois urge que levemos avante,
com toda energia, uma autêntica reforma agrária, dando-se uma
organização racional à nossa agricultura dentro da qual lhe sejam
proporcionadas condições de produção econômica e a custo baixo (A Rural,
junho, 1963, p. 5) (Grifos nossos).
Notamos, no editorial, uma forte rejeição ao modelo de reforma agrária apresentado
pelo então presidente João Goulart, que objetiva distribuir terras, ao demonstrar como
objetivo da Sociedade “derrubar” a emenda constitucional que possibilita a desapropriação de
terras para fins de reforma agrária. Mais uma vez o grupo defende a “autêntica reforma
agrária”, proposta que está ligada à produtividade e à racionalização do campo. Isso significa
produzir para o mercado interno, mas, pricipalmente, para fins de exportação, além de mostrar
a relevância da mecanização da agricultura, o que pode tornar a produtividade mais viável,
considerando, assim, as formas tradicionais de cultivo da terra como ultrapassadas. A falta de
espaço para a cultura tradicional do campo também aponta para a diminuição de mão-de-obra,
o que leva os trabalhadores rurais a não terem mais trabalho no campo. A proposta da SRB
leva a mais um êxodo rural.
Em 1964, a SRB tem conhecimento do Decreto nº 53.700, formulado por João
Goulart, que previa desapropriações em áreas próximas a rodovias e ferrovias e a grandes
66
cidades. A SRB não reconhece a legitimidade do Decreto que considera a desapropriação de
terras por “interesse social”. O sentimento de repúdio ao Decreto é externalizado em um dos
números do periódico A Rural: “As entidades representativas de todas as atividades agrárias
de São Paulo julgam-se no dever indeclinável de manifestar seu repúdio ao decreto baixado
pelo Governo Federal, que declara de interesse social vastas zonas do território nacional” (A
Rural, março, 1964, p. 6).
O poder é, assim, relativo entre as duas classes, pois, a cada força ideológica
empreendida, o poder muda de mãos, revelando um processo sociointeracional. Isso ocorre,
porque não há poder fixo e estável e, também, porque há resistências oriundas dos dois lados
desse cabo de guerra. O que está em jogo nessa relação de forças ideológicas não é, segundo
Bakhtin (2002), a simples correlação ou a verdade destes discursos, mas os sentidos
construídos pelos sujeitos que pertencem às classes em disputa. Esses sujeitos falam de um
lugar social, de uma posição sócio-histórica construída e mediante uma valorização
compartilhada pelo grupo social. Uma classe fala do lugar de dominantes, herdeiras de
famílias cafeeiras de São Paulo, participantes das decisões políticas, influentes
economicamente. A outra fala do lugar de trabalhadores rurais, na maioria analfabetos,
herdeiros da exploração, além disso, fala também do lugar de membros de partidos políticos
perseguidos, com princípios socialistas, que lutam contra a desigualdade social e defendem a
coletivização dos meios de produção. São os sujeitos dessas duas classes que empreendem
forças ideológicas em favor de seus princípios, e essa disputa efetiva-se no campo do signo
ideológico, o qual, como disserta Miotello (2006, p. 283), constitui-se “[...] no lugar onde se
dá o encontro do Eu e do Outro. Logo, lugar social, dialógico”.
A classe dominante vê-se mais forte com a instauração da ditadura militar, em 1964.
Embora os governos militares sejam responsáveis por instituir o Estatuto da Terra,
concebendo a função social da terra, a lei nunca sai do papel. O Estatuto da Terra prevê a
desapropriação de terras pelo governo e a sua distribuição aos camponeses, tendo em vista o
seu caráter social. Isso seria o reconhecimento das lutas empreendidas pelos camponeses,
porém, na verdade, o Estatuto da Terra recebe diversas críticas e não coloca em ação o que
promete na letra da lei, fato que leva os movimentos sociais rurais a se organizarem para
efetivar o Estatuto.
67
1.2.5 Governo Militar e o Estatuto da Terra
Trazer para a nossa discussão a voz dos militares é fundamental, porque ela marca a
história da terra no Brasil com a aprovação do Estatuto da Terra, sendo esta a primeira lei que
compreenderá o direito à terra e, a partir dela, outras leis são pensadas. Além disso, os
militares são os responsáveis por ações violentas contra os trabalhadores rurais, ação
multiplicada por latifundiários e setores púbicos de segurança, o que ecoa no presente nos
relatos dos acadêmicos sem terra como um discurso a ser combatido. Os militares implantam
um projeto de crescimento elevado da economia, porém esse crescimento é conquistado com
o sacrifício da população para quem o milagre não acontece. Com a justificativa de elevar a
economia, o governo militar desenvolve os chamados anos de chumbo, os quais são os mais
repressivos àqueles que tentam denunciar ou contrariar as ordens militares. São perseguições,
fechamento de sindicatos, assassinatos, prisões de operários, camponeses e religiosos. O
governo, que promete “fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”, apenas fez a economia
crescer e privilegiar seus apoiadores, não deixando ao povo a sua fatia do bolo. No campo, a
aprovação do Estatuto da Terra é uma esperança de que a reforma agrária será efetivada, mas
é mais uma lei a ficar no papel, o que impulsiona a efervescência dos movimentos sociais no
final da década de 70.
O primeiro presidente militar20
, Castello Branco, assume o governo com o aumento
dos poderes do presidente por meio do Ato Institucional Nº 1 (AI 1). As propostas de reforma
na estrutura agrária do Brasil não são agradáveis ao novo Governo, que se vê envolto a
pressões internas e externas a respeito da aprovação de um projeto que resolva a problemática.
Está nos planos do governo militar de Castello Branco efetivar uma lei de reforma agrária,
porém recebe resistências de deputados, como a do mineiro Último de Carvalho (1964, p.
335), que se manifesta contrário à proposta do Governo, afirmando que com reforma agrária:
[...] não pode haver produtividade no país. Os demagogos querem fazer a
reforma agrária em termos agrimensura, prometendo terra para acontecer
aqui como aconteceu na Rússia, onde verificada a revolução socialista não se
deu terra a ninguém, deixou o povo sem terra como antigamente.
O signo reforma agrária está sendo constituído pela oposição, retomando a voz da
revolução russa e do comunismo, com o sentido de que se trata de um “atraso na produção”
20 O golpe militar ocorreu em 1º de abril de 1964.
68
agrícola do País. Essa afirmação decorre do fato de que os latifundiários plantam em grandes
extensões de terra produtos para exportação, o que gera lucro para várias instâncias. O signo
também carrega a herança da Revolução Russa, a qual possibilita a divisão das terras, o que,
segundo o deputado, não prospera. Observamos um embate ideológico entre grupos
tradicionalmente pertencentes ao mesmo lado (militares e políticos conservadores)21
, o que se
revela nos discursos de cada grupo, na base material e nas ações empreendidas para efetivar
seus princípios ideológicos. O embate partidário é ideológico, por isso é captado pelos signos.
Nesse processo, as mudanças socioeconômicas de cada grupo refletem e refratam nos signos
terra e reforma agrária.
É possível perceber que o signo reforma agrária congrega interesses da classe
patronal e de uma parte de militares contrários à reforma agrária. Os militares objetivam a
fixação do camponês na região rural, o que contraria os princípios da União Democrática
Nacional (UDN), que visam a retirar do campo o excedente de lavradores, fixando-os como
trabalhadores das indústrias urbanas (CASTELLO BRANCO, 1977). Assim, pretende-se
garantir a estrutura arcaica das terras no Brasil, como também o aumento significativo da
exportação de grãos a preços maiores que os taxados dentro do País. Nesse processo, um jogo
de poder é observado no sentido de que cada grupo defende seus interesses. Esse jogo dá-se
no campo da realidade material e é sustentado e defendido por jogos discursivos, já que a luta
travada é ideológica. Os discursos são moldados conforme os interesses políticos,
econômicos, sociais dos grupos, por isso os discursos que surgem na materialidade ora
defendem os interesses de todo o grupo, ora dividem o grupo em subgrupos, questionando,
justificando a defesa pelas mudanças sociais e legais.
Esses grupos representam de um lado o governo militar e de outro os políticos
conservadores, os latifundiários e os empresários de corporações estrangeiras. Os dois grupos
lutam pela manutenção do mesmo, da mesma ordem, mas cada um tem objetivos diferentes
quanto à população do campo. Por isso, muitas são as especulações em torno do projeto do
Estatuto da Terra a ser enviado para o Congresso. O próprio presidente Castello Branco não
apresenta detalhes a respeito da suposta lei, o que gera especulações de todos os partidos.
Porém, diante da forte pressão vinda de partidos políticos, o presidente militar dedica-se
pessoalmente à organização do Estatuto e inicia uma demarcação mais ferrenha quanto ao seu
21 Segundo Salis (2014, p. 501), a “Revolução de Março” teria sido articulada contra o projeto de distribuição de
terras malfadado do governo anterior, João Goulart. Os agora opositores aos militares destacavam que caso o
governo levasse à frente o projeto de reforma agrária, poderia sofrer retaliações tal como ocorreu com João
Goulart.
69
posicionamento com relação ao Estatuto e demonstra publicamente o trabalho minucioso de
entendimento pessoal com as bases políticas22
.
O governo militar vê o fenômeno do êxodo rural como um dos problemas do campo,
o que se reflete nos centros urbanos, como também no próprio campo e na economia. Já os
parlamentares da União Democrática Nacional (UDN) defendem a modernização do campo e
não a reforma agrária. De acordo com Salis (2014, p. 508), o objetivo de o governo militar é
incluir o homem do campo no processo de desenvolvimento capitalista do campo, criando
uma classe média rural. Para tanto, são necessários distribuição de terras, geração de
empregos e incentivo à produção. Nesse contexto, o signo reforma agrária não congrega um
direito do trabalhador rural nem se trata de uma justa distribuição de terras, mas sim é um
instrumento para fazer fixar os camponeses no campo e aumentar a produção capitalista, o
que faz dos trabalhadores rurais uma nova classe social, a classe média do campo. Nesse
cenário, os trabalhadores são massa de manobra de ambos os grupos, que não estão
preocupados com a existência dos camponeses ou com seus direitos, mas sim com a produção
e a economia do Brasil.
Após um confronto entre governo e antirreformistas, um processo de concessões
conciliatórias desenvolve-se. Conforme Salis (2014, p. 513), de fato, “[...] nenhum
instrumento considerado imprescindível foi suprimido da Emenda Constitucional ou do
Estatuto da Terra, mas sem dúvida, os pontos alterados de alguma forma prejudicaram a
sistemática do projeto original”. O Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de 30 de novembro de
1964) dispõe no primeiro artigo os princípios e as definições da Lei:
Art. 1º Esta Lei regula os direitos e obrigações concernentes aos bens
imóveis rurais, para os fins de execução da Reforma Agrária e promoção da
Política Agrícola.
§ 1º Considera-se Reforma Agrária o conjunto de medidas que visem a
promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de
sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao
aumento de produtividade (BRASIL, 1964).
O Estatuto da Terra resulta de um jogo de forças ideológicas mediado pela
linguagem, pelos discursos, os quais são essenciais para justificar, defender, empreender e
22 De acordo com Salis (2014), Castello Branco necessitaria de habilidade política para aprovar o Estatuto da
Terra. Para isso, iniciou um ciclo de reuniões nas quais reunia parlamentares e representantes da classe
minoritária, objetivando diminuir os atritos. No entanto, o resultado dos encontros não foi favorável ao governo, pois lideranças políticas acusavam que o governo militar pretendia atingir uma ditadura comunista. Logo, era
preciso defender a propriedade privada.
70
fortalecer os interesses políticos, sociais e econômicos de cada grupo. As vozes que
constituem o Estatuto da Terra são as das Ligas Camponesas e a de outros movimentos
sociais, quando observa que a reforma agrária visa a uma “melhor distribuição” de terras,
sendo um instrumento para a justiça social. As vozes do governo de João Goulart e as do
governo militar também ecoam quando à reforma agrária cabe o “aumento da produtividade”.
Importa também destacar que o termo “propriedade” não está presente no primeiro parágrafo
do Artigo que abre o Estatuto da Terra, sendo modificada por “posse”.
O direito de “posse” permite ao possuidor a faculdade de usar e gozar desse direito
sem que para isso tenha o título de propriedade, por isso um possuidor não poderia vender,
doar ou transferir a terra a um terceiro. A propriedade garante a um indivíduo “possuir” a terra
por meio do direito conquistado mediante a compra em algum momento, o que dá ao
proprietário o direito de perseguir aquele que a ameace. De acordo com o Código Civil (Art.
1.231, 1993), a propriedade é um direito perpétuo, sendo perdido apenas sob a hipótese de
perda prevista em lei. É também plena pelo fato de todos os poderes serem inerentes ao
proprietário, e exclusiva, pois o proprietário pode impedir que outra pessoa exerça sobre suas
terras poderes que possam ser entendidos como o de propriedade. Ao que parece, a Lei
atendia aos interesses das organizações populares, pois trata da distribuição da terra como um
princípio de justiça social.
Em um País marcado pela luta das Ligas Camponesas e de outros movimentos
camponeses, do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e de outros setores da sociedade urbana,
ter uma Lei que assegurasse a distribuição de terras tendo como princípio a justiça social seria
uma vitória contra uma estrutura fundiária baseada na relação de poder político e econômico.
No entanto, o que se vê, conforme Oliveira (2007, p. 121), é uma Lei para ficar no papel e não
para ser colocada em prática. O discurso da Lei incorpora as necessidades dos camponeses e,
ainda, assume que se trata de uma ação de justiça social. O signo reforma agrária mostra-se
como um agregador de interesses sociais, ao demonstrar um caráter de justiça. Trata-se da
concordância do Governo em relação às lutas empreendidas no passado, as quais buscaram a
distribuição de terras pelo princípio da justiça social. Espera-se, então, que a partir da Lei, a
reforma agrária passe a ser uma realidade Brasil. Contudo, trata-se de uma “farsa histórica”,
conforme as palavras de Oliveira (2007), no sentido de reconhecer as lutas dos camponeses
pela reforma agrária no papel, mas, na verdade, de empreender ações para desarticular as
organizações camponesas.
O Estatuto da Terra, tendo em vista os acontecimentos históricos, sociais e políticos
em torno da posse da terra, organiza as necessidades da infraestrutura e as traz para a
71
superestrutura, ou seja, para o campo do jurídico, das leis, onde o ideológico da classe
dominante predomina. Essa passagem da infraestrutura para a superestrutura efetiva-se por
meio da linguagem, a qual é a responsável por materializar essa mudança nas estruturas
sociais das ideias da sociedade. Por isso, os discursos constituem-se nesse processo, mas
também são constituídos dele e são ideológicos, o que faz com que sejam parte da
superestrutura. Assim, percebemos que há uma passagem da base ideológica da infraestrutura,
por meio da linguagem, para a superestrutura. Nas palavras de Bakhtin (2002, p. 41), essas
mudanças passam pela palavra, pois ela
[...] constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas
de mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade
ideológica, que ainda não tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica
nova e acabada. A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais
íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais.
O problema da relação recíproca entre a infra e a superestrutura está nas questões de
mudanças ideológicas (originadas na infraestrutura), reveladas nos discursos e, também, no
como a realidade determina os signos. Para Bakhtin (2002, p. 41), esse problema pode ser
esclarecido: “O problema da relação recíproca entre a infra-estrutura e as superestruturas,
problema dos mais complexos e que exige, para sua resolução fecunda, um volume enorme de
materiais preliminares, pode justamente ser esclarecido, em larga escala, pelo estudo do
material verbal”. Desse modo, o material verbal – leis, decretos, estatutos, índices
econômicos, documentos religiosos, sermões, homilias, atas de reuniões, pedidos por justiça
no campo –, ou seja, os discursos ideologicamente construídos é o que possibilita
compreender a relação recíproca entre infra e superestrutura. Bakhtin (2002, p. 41) destaca
que nessa relação recíproca o mais importante é “[...] saber como a realidade (a infra-
estrutura) determina o signo, como o signo reflete e refrata a realidade em transformação”
(grifos do autor). A essencialidade do problema da relação recíproca está na ubiquidade social
da palavra pelo fato de ela penetrar todas as relações entre os sujeitos, sejam elas políticas, de
colaboração, de base ideológica, sejam elas de encontros cotidianos.
Além de assegurar a reforma agrária, o artigo 2º do Estatuto da Terra traz um novo
sentido ao signo terra, ao apresentar a sua “função social”:
Art. 2º É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra,
condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.
§ 1º A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social
quando, simultaneamente:
72
a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela
labutam, assim como de suas famílias;
b) mantém níveis satisfatórios de produtividade;
c) assegura a conservação dos recursos naturais;
d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho
entre os que a possuem e a cultivam (BRASIL, 1964) (grifos nossos).
O signo função social é apresentado como condicionante à propriedade da terra, de
modo que a propriedade deve atender a essa função que contempla o bem-estar dos
proprietários e funcionários, níveis de produtividades, conservação dos recursos naturais e,
ainda, observa as relações justas de trabalho. É, em um primeiro momento, um avanço e uma
vitória das organizações camponesas e de seus defensores. A Constituição de 1891 garante a
direito à propriedade como também a desapropriação por necessidade pública mediante
indenização, o que não se efetiva na prática. Da mesma forma, a Constituição Federal de 1946
também assegura o direito à propriedade: “§ 16 - É garantido o direito de propriedade, salvo o
caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante
prévia e justa indenização em dinheiro” (BRASIL, 1946).
Percebemos que o direito à propriedade está assegurado assim como a
desapropriação, mas os trabalhadores rurais que esperam os resultados das desapropriações
não os veem chegar. Assim, o Estatuto da Terra modifica o conceito de propriedade vigente
até o momento, pois condiciona o título de propriedade à “função social” da terra. Logo,
podemos entender que a Lei apresenta uma manobra para assegurar à classe de trabalhadores
rurais a reforma agrária, mas não abate o princípio da propriedade para os latifundiários, pois,
como podemos notar na letra da Lei, a “função social” não só está associada ao bem-estar do
proprietário e do trabalhador, mas também aos níveis satisfatórios de produtividade. Os níveis
de produtividade, no entanto, serão avaliados conforme os valores da bancada latifundiária, a
qual produz mais para exportação e menos para a alimentação da sociedade. Desse modo,
dificilmente, um camponês atingirá o mesmo nível de produção obtido por um latifundiário,
em decorrência, por exemplo, da falta de crédito bancário. Nesse contexto, não atingir o nível
de produção esperado significa, primeiro, não cumprir com a função social da terra e,
segundo, não estar apto a gerenciar uma propriedade.
O signo função social está carregado de uma carga ideológica que neutraliza
qualquer tipo de questionamento, dúvida e conflito, tendo em vista que ele reflete uma
realidade de harmonização entre latifundiários e camponeses. No entanto, ele sustenta as
reclamações por reforma agrária por parte dos camponeses, organizados pela CPT. A noção
de terra como “função social”, porém, privilegia a satisfação das necessidades sociais do
73
proprietário, de sua família, de seus funcionários e da sociedade envolvente, o que demonstra
que a função social é resultado do trabalho desempenhado na terra. Dessa forma, a terra deve
pertencer àqueles que trabalham nela e a fazem produzir e garantir satisfação à sociedade em
seu entorno.
Podemos entender que, nesse cenário, o signo terra passa de “bem de capital” para
“bem de produção”. Logo, a produtividade é um fator preponderante para o alcance da função
social da terra. Porém, aos pequenos lavradores fica a dúvida acerca da baixa produção de
suas terras, o que legitimamente leva o governo a desapropriá-las em nome da coletividade.
Ademais, aqueles que cultivam as terras com uma visão diferente da do sistema capitalista,
como os indígenas, podem ter suas terras legalmente tomadas pelo governo, pois estes não
estarão usando a terra como devido, conforme fica claro no Artigo 13: “O Poder Público
promoverá a gradativa extinção das formas de ocupação e de exploração da terra que
contrariem sua função social”.
O objetivo do governo é a utilização da terra para produtividade e seus resultados
econômicos, além da satisfação de seus usuários, o que garante sustento pelo próprio trabalho.
Nesses termos, a “função social” da terra não abarca na prática a viabilização da reforma
agrária, já que, ao demonstrar usar a terra para produzir e contribuir para a economia do País,
um latifundiário garante sua posse; diferentemente do pequeno lavrador, que não dispõe de
meios econômicos para transformar sua propriedade em uma referência social e econômica
para sua região. Sobre os casos de desapropriação, o Estatuto da Terra declara, no Artigo 18,
que a
[...] desapropriação por interesse social tem por fim:
a) condicionar o uso da terra à sua função social;
b) promover a justa e adequada distribuição da propriedade;
c) obrigar a exploração racional da terra;
d) permitir a recuperação social e econômica de regiões;
e) estimular pesquisas pioneiras, experimentação, demonstração e assistência
técnica;
f) efetuar obras de renovação, melhoria e valorização dos recursos naturais;
g) incrementar a eletrificação e a industrialização no meio rural;
h) facultar a criação de áreas de proteção à fauna, à flora ou a outros recursos
naturais, a fim de preservá-los de atividades predatórias (BRASIL, 1964).
O Estatuto da Terra assegura a desapropriação por “interesse social”, o que leva a
acreditar que haveria terra para quem nela quisesse viver e trabalhar. O “interesse” existe para
aquilo que se é importante para uma sociedade. Neste caso, o interesse social leva a
desapropriar terras que não cumprem com sua função social. O interesse social é um signo
74
que carrega uma carga ideológica que refrata uma realidade de ações visando ao bem-comum
e à obtenção de condições de bem-estar para a sociedade e não as de um indivíduo. Assim,
garante a sustentabilidade social e econômica da sociedade, melhorando a qualidade de vida e
assegurando que os homens vivam em maior igualdade social. Contudo, a Lei faz referência a
finalidades da desapropriação por interesse social, como “obrigar a exploração racional da
terra”, “permitir a recuperação social e econômica de regiões”, “estimular pesquisas pioneiras,
experimentação, demonstração e assistência técnica”, “incrementar a eletrificação e a
industrialização no meio rural”, que apontam para a difícil tarefa de o camponês atingir a
“função social” da terra e, desse modo, assegurar a posse da terra por falta de condições
econômicas e administrativas.
A Lei designa ao signo terra a “função social”, o que leva a compreender o signo
terra como um “bem de capital” que pode ser vendido e comprado, sendo esta relação
mediada pelo pagamento do valor adequado. Ademais, a terra como função social é entendida
como responsável pelo bem-estar de todos os envolvidos no processo de cultivo, tanto de
fazendeiros como de trabalhadores rurais. O signo reforma agrária ganha contornos dos
sentidos construídos pelos políticos conservadores, sendo entendido como um atraso na
produção agrícola e, desse modo, como inviabilizador da exportação de grãos. Já pelo olhar
dos militares, o signo reforma agrária apresenta-se como um instrumento para fixar os
camponeses no campo, criando uma classe média do campo, aumentando, assim, a produção
agrícola. Já a educação do campo não é lembrada pelos militares, os quais acentuam a
educação rural, uma forma adaptada do modelo urbano implantada no campo. Ademais, os
militares perseguem duramente os religiosos e leigos católicos que, na cidade e no campo,
desenvolvem ações de educação do povo, as quais objetivam que o próprio povo busque a sua
liberdade.
No entanto, como veremos a seguir, a voz da Igreja Católica não ecoa apenas a favor
do povo, há outras vozes audíveis, que se colocam contra a reforma agrária. A ala
conservadora da Igreja Católica apresenta um discurso condenando ações em prol da
distribuição de terras no Brasil, relacionando-as à falta de crença em Deus. Para isso, seus
discursos ao povo mostram o pecado presente na Rússia com a instalação do regime socialista
e com a coletivização das terras. A Igreja defende que reforma agrária trata-se de uma ofensa
a Deus, uma vez que objetiva desconstituir a ordem divina da sociedade, fazendo, assim, com
que o povo aceite sua condição de explorado.
75
1.2.6 Igreja Católica
Para este estudo, que pretende, como já mencionamos, analisar a identidade de
acadêmicos sem terra do Curso de Ciências Sociais, por meio da construção dos caminhos
históricos que constituem os signos terra, reforma agrária e educação do campo, é
fundamental ouvirmos as vozes que ecoam nos signos analisados. São vozes emaranhadas de
outras vozes, evidenciando a relação dialógica entre aos discursos e a construção constante da
história.
Observarmos que dialogar com discursos dos sujeitos religiosos é basilar para
entendermos a construção dos sujeitos acadêmicos sem terra do presente. Entre esses sujeitos,
a Igreja Católica é um dos sujeitos mais atuantes nas discussões a respeito do direito à terra e
à reforma agrária, seja para defendê-la ou para combatê-la. Trazer para arena de análise as
vozes da Igreja Católica é imprescindível por ela ser uma instituição historicamente aliada aos
interesses dos governantes, defendendo-os por meio da influência sobre os fiéis pobres, ao
apaziguá-los acerca de suas condições sociais e ao levá-los a aceitar a condição de membros
inferiores do Corpo Místico de Cristo e, consequentemente, da sociedade. Aos que se
revoltassem a essa premissa religiosa, restava enfrentar a ira de Deus.
Dentre as atuações da Igreja Católica com relação à questão da terra e da reforma
agrária no Brasil, elegemos quatro movimentos da Igreja que julgamos serem fundamentais
para mostrarmos como ela passa por momentos distintos em relação à reforma agrária, os
quais vão do conservadorismo ao progressismo: a carta pastoral de Dom Inocêncio, a TFP, a
Teologia da Libertação e as CEBs. O primeiro e o segundo momentos apresentaremos neste
primeiro capítulo, e o terceiro e o quarto serão discutidos no capítulo 2.
O início do envolvimento da Igreja Católica com a reforma agrária pode ser
observado no documento Conosco, sem nós ou contra nós se fará a reforma rural, que se
trata de uma carta pastoral escrita por Dom Inocêncio Engelke, bispo do município de
Campanha, em que ele demostra uma visão tradicional e conservadora com relação à reforma
agrária. Além disso, a carta apresenta, como discutiremos a seguir, a primeira análise acerca
da qualidade da educação rural, a qual, para a Igreja, seria uma das culpadas pelo êxodo rural.
76
1.2.6.1 Carta Pastoral de Dom Inocêncio
Na década de 1950, a Igreja Católica é vista e se coloca como a guardiã das leis
cristãs. Como uma instância oficial, à época, tem uma atuação diversificada, com pastorais,
declarações, manifestos, entrevistas de bispos e de padres, e com o desenvolvimento de
programas de ação social (CARVALHO, 1985). No que tange ao campo, essas manifestações
quanto à situação social, política e econômica acompanham as transformações existentes
nesse lugar. No início do período populista no Brasil, momento de transição da ditadura de
Vargas à democracia, o discurso episcopal a respeito da reforma agrária é difuso, secundário,
o que não preocupa a hierarquia da Igreja. Ao assumir um papel de guia espiritual, a Igreja
aconselha seus fiéis e, também, faz propostas a eles, mas é no campo do político que sua
atuação reverbera os valores universais, colocando-se como responsável e guardadora desses
valores. Ao tratar especificamente da questão agrária, observamos uma defesa ao direito à
propriedade particular (CARVALHO, 1985).
Para atuar na sociedade, a Igreja escolhe o seu organismo tido como mais dinâmico,
a Ação Católica. Com essa Ação, a Igreja objetiva organizar um planejamento de ação social
a ser aplicado em todo o País, indicando sua participação efetiva na reestruturação da
sociedade brasileira. No entanto, não há, nessa época, referência da Igreja à reforma agrária,
mas há uma indicação de que a união entre as classes se dá por meio do respeito, da
dignidade, da justiça e da fraternidade. Essa defesa da Igreja Católica não abre caminhos para
mudanças sociais, mas para a pacificação e aceitação da condição dada aos camponeses.
Sendo pacíficos e tementes a Deus e à Igreja, os trabalhadores rurais não lutam pela
distribuição de terras e não necessitam se organizar em classe para reivindicar direitos, o que
dá ao Estado uma tranquilidade. Desse modo, a Igreja faz um papel de pastora, de
apaziguadora e de guardiã dos privilégios da elite. É, na década de 1950, momento marcado
pelas revoltas no campo de norte a sul, que a palavra reforma agrária aparece nos
pronunciamentos episcopais (CARVALHO, 1985).
Os anos de 1950 são marcados pela consolidação do populismo no Brasil, quando se
destaca a carta pastoral23
Conosco, sem nós ou contra nós se fará a reforma rural24
, escrita
por Dom Inocêncio Engelke, bispo do município de Campanha, Minas Gerais (MG). O
23 Carta pastoral é uma carta aberta escrita por um bispo e dirigida ao clero católico e à sociedade em geral.
Objetiva expor a opinião da Igreja acerca de um tema de interesse social. 24
A carta foi transcrita foi Stedile (2012).
77
documento é produzido durante a Primeira Semana Ruralista, realizada no município, na
ocasião de uma reunião que conta com a presença fazendeiros, padres, freiras e professores de
escolas rurais, sendo liderada por Dom Inocêncio. Na carta, o bispo dialoga com os discursos
do Papa Pio XI e do Monsenhor Montini. Dom Inocêncio discorre acerca da visão da Igreja
sobre o êxodo rural, a revolução russa e a educação rural mediante os tópicos: Antecipemo-
nos à revolução, Antecipemo-nos à legislação social, Ação social inadiável e Reforma social.
Notamos que a Igreja é a primeira a se manifestar, dentre os discursos analisados até este
momento do estudo, a respeito da educação rural, a qual é caracterizada pela Instituição como
uma “adaptação” da educação urbana presente nas escolas da zona rural e, também, como
uma das culpadas pelo êxodo rural e, consequentemente, pelo aumento de ateus nas cidades.
Desse modo, o signo educação do campo tem suas raízes no signo educação rural pela
oposição, já que o caráter de “adaptação” é negado pelos movimentos sociais que lutam pela
terra e pela educação de qualidade nas escolas dos assentamentos.
A carta Dom Inocêncio é considerada como o primeiro envolvimento da Igreja
Católica com a questão agrária. Apresenta um teor conservador e anticomunista ao criticar
negativamente a Revolução Russa e ao não questionar a propriedade privada da terra.
O documento inicia-se destacando a quantidade de presentes na reunião: “[...] 60
párocos rurais, 250 fazendeiros, mais de 270 professoras rurais” (ENGELKE, 1977, p. 29).
Isso demonstra a preocupação do enunciador em acentuar a importância do documento. Os
números expressivos de participantes evidenciam uma grande quantidade de pessoas
preocupadas com a causa, como também indica que essas pessoas comungam das ideias da
Igreja. Segundo o Monsenhor Montini, ao traduzir a mensagem do Papa, e a quem o
documento faz referência, os novos problemas advindos do campo não devem “apanhar de
surpresa os Cristãos” (ENGELKE, 1977, p. 30). A voz do Monsenhor dialoga com o
problema da perda dos fiéis da cidade para outras religiões ou para uma vida ateia, o que é,
para o Papa Pio XI, o maior escândalo do século XIX para a Igreja. Por isso, não aceitam
perder também os trabalhadores do campo.
A voz da Igreja reage às ações de partidos comunistas empreendidas nas cidades, o
que significa uma possibilidade de perda de fieis, pois comunistas são vistos como ateus e,
sem acreditar em Deus, os operários não acreditam na Igreja. Por isso, é necessário fazer
justiça, mas não com as próprias mãos: “[...] Antecipai-vos à revolução. Fazei por espírito
cristão o que vos indicam as diretrizes da Igreja” (ENGELKE, 1977, p. 32). O discurso da
Igreja antecipa-se a uma provável revolução socialista no Brasil, em que o direito à terra é
uma das bandeiras principais. Esse discurso que aconselha a própria Igreja e os fiéis a se
78
anteciparem à revolução responde, no sentido bakhtiniano, aos acontecimentos mundiais, em
que países, como Rússia e Cuba desencadearam revoluções contra governos ditadores e
monarquias, ou seja, contra a presença do sistema capitalista. Os revolucionários russos e
cubanos têm como norteadores os princípios socialistas, marcados pela coletivização dos
bens, tendo a supressão da propriedade como um dos ideais mais acentuados.
De acordo com a carta de Dom Inocêncio, uma das razões da saída do homem do
campo para a cidade é a escola artificializada do campo e a falta de acesso à terra:
[...] Humanizar, portanto, o trabalho, promover a difusão do ensino escolar
adaptado às necessidades do homem do campo, [...] facilitar-lhe o acesso
à propriedade da terra para o cultivo, [...] eis os pontos fundamentais para
uma séria reforma social agrária que há de permitir a recuperação humana e
cristã do trabalhador rural (ENGELKE, 1977, p. 37-38) (Grifos nossos).
Notamos que o discurso do religioso refere-se à educação rural como um ensino
urbano adaptado à escola do campo, marcando o signo educação rural como uma
“adaptação”. Esse ensino adaptado faz parte da vivência dos acadêmicos sem terra do curso
de Ciências Sociais quando eram crianças. As escolas rurais, conforme relatam os graduandos
sem terra do curso de Ciências Sociais, caracterizam-se pela falta de professores formados
para ministrarem aulas, por salas multisseriadas e, ainda, pela ausência de disponibilidade de
escolas perto dos locais de moradia dos alunos. Consequentemente, os filhos dos
trabalhadores rurais deixam a escola muito cedo. Podemos analisar que o signo educação
rural está na gênese do signo educação do campo, porém este signo nega os contornos da
educação rural, pois o primeiro tem um sentido artificializado com relação à vida no campo.
Isso porque ser “adaptado” significa atraso e falta de qualidade, o que para os trabalhadores
rurais das Ligas Camponesas e, posteriormente, para os movimentos sociais rurais não são
características que a educação do campo deva ter.
Ainda percebemos que a proposta do bispo incide sobre dois aspectos fundamentais:
o temor e a ação preventiva. O temor está no fato de a Igreja já ter perdido uma grande
quantidade de fieis da cidade e que agora teme perder os do campo. Isso ocorre devido às
ideias comunistas ateias encontradas nas cidades, as quais se distanciam de Deus e, por
conseguinte, da Igreja. Nesse cenário, a Igreja coloca-se na cena política como uma
instituição que pode ajudar o governo e os fazendeiros a não perderem o poder no campo e
acima de tudo se coloca como a única instituição que pode congregar os trabalhadores do
campo, mostrando-os que todos são filhos de Deus, não permitindo que eles usem da força
para lutar pela propriedade da terra. Trata-se de uma força nacional alicerçada nos valores
79
universais de família e de propriedade e em um discurso de autoridade que, com o passar dos
tempos, não fixa raízes no passado, mas acompanha as transformações sociais sem perder o
caráter de tradição, sempre marcando presença de forma singular. A Igreja também se coloca
como uma instituição ativa e privilegiada da sociedade civil e, assim, situa-se acima de
regimes políticos, buscando participar do momento político populista, mostrando sua
influência entre os trabalhadores rurais e os fazendeiros, bem como entre os políticos, pois ela
é a guardadora dos valores cristãos.
A vida, o vivido, assim como as relações sociais e econômicas e os interesses de uma
classe entram em um enunciado a fim de ocultar a visibilidade dos trabalhadores rurais e a
necessidade de uma reforma agrária efetiva. A Igreja, guardadora da moral e dos preceitos de
Deus, representa a ideologia oficial, mais organizada, mais estabilizada, mais dotada de
conteúdo e de princípios universais. Desse modo, pretende ocultar a ideologia do cotidiano,
presente nas ruas, nas manifestações no campo e na cidade. Percebemos que a organização da
ideologia oficial – em documentos religiosos, em leis – tem sua origem na ideologia do
cotidiano, pois, ao observar o movimento da vida concreta, cria estratégias para reverter os
impulsos por direitos dos trabalhadores rurais. Desse modo, documentos são vistos como uma
resposta a esses movimentos impulsivos que brotam nas ruas. Nesse caso, a orientação da
palavra não é para um interlocutor, mas é para uma classe, uma coletividade, que organiza os
trabalhadores rurais. Como aponta Bakhtin (2002, p. 113), toda palavra apresenta dupla
orientação, ela é determinada pelo fato de que procede de alguém e também para alguém. A
figura central da palavra é o destinatário, a quem o enunciador se dirige e a quem se quer
convencer, responder, afiançar. Ela é uma “[...] uma espécie de ponte lançada entre mim e os
outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu
interlocutor” (BAKHTIN, 2002, p. 113). O enunciador religioso, ao trazer para seu discurso e
de seu grupo a expressão “reforma social agrária”, demonstra que esta expressão é partilhada
pelos dois grupos, tanto pelo grupo que representa (Igreja, latifundiários, governo), quanto
pelos camponeses e seus apoiadores políticos. Mas esse compartilhamento é apenas com
relação à expressão e não ao signo reforma agrária, pois mediante o que cada grupo concebe
como reforma agrária, cada um defende um lado da moeda.
Essa primeira tomada de posição da Igreja Católica com relação à questão agrária
estende-se para outros setores de dentro da Instituição, como, por exemplo, a TFP, a qual
defenderá expressivamente o valor da propriedade privada e a organização das classes
conforme o Corpo Místico de Cristo.
80
1.2.6.2 TFP (Tradição, Família e Propriedade)
Outro discurso católico fundamental para este estudo refere-se ao discurso
conservador da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP)25
,
uma Sociedade caracterizada por membros herdeiros de fortunas do café, que desenvolvem
ações e discursos para que a ordem natural e divina da sociedade não seja desfeita. Esses
discursos não ficam no âmbito da TFP, mas marcam um caráter conservador de parte dos
membros da Igreja e de seus fiéis tanto da classe dominante quanto da classe dominada. Isso
decorre principalmente pela presença de um discurso que demonstra que a vontade divina não
deve ser desfeita. A reforma agrária é amplamente combatida pelos membros da TFP por ser
considerada uma reação contra Deus e contra sua divina vontade. Esse discurso acentua que
lutar pela terra é lutar contra Deus. Por pregar a pacificidade entre os membros do Corpo de
Cristo, a ideia de reforma agrária como pecado chega à contemporaneidade e alicerça as
defesas dos latifundiários ao justificarem que os movimentos sociais querem tomar suas terras
ou querem implantar o comunismo no Brasil. Tal noção justifica ações violentas em defesa da
propriedade como também projetos políticos que dificultam a desapropriação de terras
improdutivas. Desse modo, é esse discurso, baseado na organização do Corpo Místico de
Cristo, que os sem terra também combatem na contemporaneidade.
O discurso da TFP mostra um movimento de ação e reação diante das ações da
população e de membros da própria Igreja, pois diferentes grupos foram criados dentro da
Igreja Católica, o que demonstra que uma mesma instituição pode apresentar posições
querendo ser mais neutras com relação ao problema da terra e da reforma agrária, como
também mais conservadoras, chegando também a posições de apoio. No entanto, não se trata
de um discurso de combate à reforma agrária nascido no Brasil, mas tem suas raízes na
própria postura do Papa Pio IX que culpa o comunismo pela perda dos fiéis e pelo ataque à
propriedade, como pode ser visto em uma das encíclicas desse período:
25 Em 26 de julho de 1960, a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP) foi criada
por Plínio Correia de Oliveira, Dom Geraldo de Proença e um grupo de intelectuais. É um grupo de católicos
conservadores dos valores morais da Igreja e do Estado. Conforme Pedriali (1985, p. 31), o tripé da TFP
defendia que: “A Tradição é o conjunto de ensinamentos acumulados pela Igreja durante os séculos, a soma de
conhecimentos adquiridos desde o início dos tempos, a preservação dos ensinamentos dos patriarcas, profetas e
apóstolos. A Família é a cellula mater da sociedade: sem ela não há harmonia social, sem ela não há educação,
sem ela não há prosperidade. E a Propriedade é o instrumento do progresso social, do bem-estar da família e da
realização profissional do homem” (grifos nossos). Mais informações acerca da TFP ver
<http://www.tfp.org.br/>. Acesso em: 26 set. 2016.
81
[...] tal é a doutrina perversa, máxime em matérias filosóficas, que seduz e
corrompe miseravelmente a juventude incauta, propinando-lhe fel de dragão
em cálice de Babilônia; tal é a nefanda doutrina do comunismo, contrária ao
direito natural, que, uma vez aceita, lança por terra os direitos de todos, a
propriedade, a própria sociedade humana; tais as insídias tenebrosas
daqueles que, em pele de ovelhas, mas sendo lobos rapaces, insinuando-se
fraudulentamente com sua aparência de piedade sincera, de virtude e
disciplina, intrometem-se humildemente, captam com brandura, atacam
delicadamente, matam às ocultas, afastam os homens de toda religião,
sacrificam e destroçam as ovelhas do senhor [...] (1960, p. 8-9) (Grifos
nossos).
O discurso apresenta para as pessoas não católicas um juízo de valor, o qual resulta
da relação entre o sujeito e o outro. Isso demonstra que ninguém pode ocupar uma posição
neutra em relação ao eu e ao outro (BAKHTIN, 2011). No discurso do representante máximo
da Igreja Católica, a visão bakhtiniana fica evidente quando se atribui características negativas
aos comunistas e ateus. Observamos que a Igreja age e constrói uma posição singular diante
da Revolução Russa e da perda de fiéis católicos. Como destaca Bakhtin (2010, p. 87): “[...]
Viver uma experiência, pensar um pensamento, ou seja, não estar, de modo algum, indiferente
a ele, significa antes afirmá-lo de uma maneira emotivo-volitiva”.
O signo comunismo é delineado por um juízo de valor que o caracterizada como um
sistema contrário à lei natural, ou seja, à lei divina, já que apresenta como lema a
coletivização das terras ao buscar abolir a propriedade privada e efetivar a coletiva. O
discurso está moldado pelos valores dados pela Igreja e, consequentemente, por seus
interesses. O discurso Papal adjetiva a “doutrina do comunismo” como sendo “nefanda”,
escolha lexical que aponta para algo abominável, perverso, execrável. O sentido de direito
natural em relação à propriedade, defendido pelo discurso conservador da Igreja Católica,
refere-se ao direito divino, que pode ser explicado pela organização feita por Deus, colocando
cada ser humano em uma posição adequada dentre da sociedade. Desse modo, não há razão
para reclamar da ação de Deus e da consequente diferença social. A relação entre Deus e a
terra se estabelece no temor, no medo e na aceitação, pois aqueles que lutam pela terra lutam
contra Deus, do mesmo modo ser contrário à lei natural é ser contrário à propriedade e, assim,
à vontade de Deus. O discurso do Papa, assim como todo discurso, dialoga com discursos
passados, com o já-dito pelas leis, pelas defesas dos latifundiários, mas também recupera uma
herança grega e romana em que já se defendia a propriedade privada. Neste caso, “pele de
ovelha” está associada à pessoa que tem más intenções, mas disfarça-se de ovelha, de
inofensiva para ter confiança do cristão. Podemos notar, ainda, a presença de diferentes vozes,
entre elas a da Bíblia, do livro de Mateus (7: 15), a fim de convencer os fiéis acerca dos falsos
82
profetas: “Guardai-vos dos falsos profetas. Eles vêm a vós disfarçados de ovelhas, mas por
dentro são lobos arrebatadores”. Os falsos profetas são aqueles que aparentemente são do
bem, mas que, na verdade, são maus e, como acrescenta o livro de Mateus, são aqueles cujos
frutos são maus e, sendo árvores más, devem ser cortadas. Neste caso, o discurso é consoante
ao discurso da Bíblia e contribui para fortalecer sua ideologia, apresentando duas figuras que
podem ser comparadas como antagônicas, a ovelha e o lobo. A ovelha é o animal manso, o
cristão católico; já o lobo é o animal feroz, os anticristãos, os comunistas, os revolucionários.
Ao analisar o discurso Papal, percebemos que nele habitam diferentes vozes consoantes e
discordantes, as quais marcam posições ideológicas e sociais. Desse modo, o discurso é uma
arena onde diferentes vozes se confrontam e se coadunam, já que se marca como um lugar
inerente à presença do outro (BAKHTIN, 1988). Como ressalta Bakhtin (1988, p. 330): “[...]
não existem palavras sem voz, palavras de ninguém. Em cada palavra há vozes às vezes
infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais (as vozes dos matizes lexicais, dos
estilos, etc.), quase imperceptíveis, e vozes próximas, que soam concomitantemente”
(BAKHTIN, 1988, p. 330).
No caso analisado, a voz que se levanta é a da Bíblia, o livro sagrado para os
católicos, o qual apresenta as verdades de Cristo a serem seguidas; já a figura do lobo aponta
para as vozes dos oponentes ao catolicismo, os revolucionários, os comunistas que
apresentam a Igreja Católica como um membro da burguesia e de seu poder.
A solução para não perder mais fiéis e para o retorno daqueles que se afastaram da
Igreja está no resgate da influência da Santa Sé em razão do enfraquecimento do catolicismo
nacionalizado. Em nome dessa defesa, alguns bispos insistem em uma visão conservadora da
Igreja e de sua missão, como é o caso de Dom Geraldo de Proença Sigaud, bispo mineiro de
Belo Horizonte, filho de pai ex-fazendeiro e comerciante e neto de médico de origem
francesa. Em seus discursos, justifica a desigualdade social e combate a luta de classes.
Segundo o Bispo:
Nenhum bispo pode se desinteressar pelo que passa no conjunto das dioceses
a que pertence a sua, não só pelo vínculo de caridade que deve unir entre si
todos os membros do Corpo Místico de Nosso Senhor, senão também por
aquela misteriosa e palpável reciprocidade que há entre os membros deste
organismo, pois que nós fomos batizados em um Espírito e dentro de um
Corpo, tanto o Judeu como o Gentio, o servo como o livre: E todos fomos
desalterados com a água de um só espírito. É claro que o corpo não é um
membro só, mas muitos membros. Se o pé argumentasse:- ‘Eu não sou mão,
logo não pertenço ao corpo: com isto deixaria de ser parte do corpo? E se um
dia a orelha dissesse: - Eu não sou olho: - logo não sou parte do corpo-
porventura deixaria de ser parte do corpo? - pensai: se todo corpo fosse olho
83
- onde ficaria o ouvido? Se todo fosse ouvido, onde ficaria o olfato?... Logo,
concluímos que os membros são muitos e todos fazem o corpo que é um. E
não pode o olho dizer à mão: - não preciso de teus préstimos; nem a cabeça
poderá dizer aos pés: - não tenho necessidade de vós. - Se sofre um membro
todos os outros sofrem juntos; quando um membro passa bem, todos
compartilham seu bem estar. E vós? Sois o Corpo de Cristo, e sois membros
de seus membros (DIOCESE DE JACAREZINHO, 1947, p. 8).
D. Geraldo afirma que cabe a todo bispo interessar-se pelos assuntos de sua diocese,
o que é justificado pelo fato de ele poder exercer a caridade para com os outros e, também,
pela reciprocidade entre os filhos de Deus. O discurso do Bispo também apresenta fios
dialógicos com o discurso bíblico, o que se mostra na metáfora do Corpo Místico de Jesus,
presente no Livro de I Coríntios, no qual se aponta que todos foram batizados no mesmo
espírito e fazem parte do corpo de Cristo, tanto os servos quanto os livres, ou seja, tanto as
minorias quanto a elite, porque
[...] como o corpo é um todo tendo muitos membros, e todos os membros do
corpo, embora muitos, formam um só corpo, assim também é Cristo. Em um
só Espírito fomos batizados todos nós, para formar um só corpo, judeus
ou gregos, escravos ou livres; e todos fomos impregnados do mesmo
Espírito. Assim o corpo não consiste em um só membro, mas em muitos.
Se o pé dissesse: Eu não sou a mão; por isso, não sou do corpo, acaso
deixaria ele de ser do corpo? E se a orelha dissesse: Eu não sou o olho; por
isso, não sou do corpo, deixaria ela de ser do corpo? Se o corpo todo fosse
olho, onde estaria o ouvido? Se fosse todo ouvido, onde estaria o olfato?
Mas Deus dispôs no corpo cada um dos membros como lhe aprouve. Se
todos fossem um só membro, onde estaria o corpo? Há, pois, muitos
membros, mas um só corpo. O olho não pode dizer à mão: Eu não preciso de
ti; nem a cabeça aos pés: Não necessito de vós. Antes, pelo contrário, os
membros do corpo que parecem os mais fracos, são os mais necessários. E
os membros do corpo que temos por menos honrosos, a esses cobrimos com
mais decoro. [...]. Se um membro sofre, todos os membros padecem com
ele; e se um membro é tratado com carinho, todos os outros se
congratulam por ele. Ora, vós sois o corpo de Cristo e cada um, de sua
parte, é um dos seus membros. Na Igreja, Deus constituiu primeiramente
os apóstolos, em segundo lugar os profetas, em terceiro lugar os doutores,
depois os que têm o dom dos milagres, o dom de curar, de socorrer, de
governar, de falar diversas línguas. São todos apóstolos? São todos profetas?
São todos doutores? Fazem todos milagres? Têm todos a graça de curar?
Falam todos em diversas línguas? Interpretam todos? Aspirai aos dons
superiores. E agora, ainda vou indicar-vos o caminho mais excelente de
todos (BIBLIA, CORÍNTIOS, 12, 12-31) (Grifos nossos).
O texto bíblico adverte aos fiéis acerca da revolta que alguns membros do Corpo de
Cristo podem desenvolver. Segundo o texto bíblico, Jesus não aceita que um membro se
revolte com a condição do outro, pois cada um tem o seu valor e a sua tarefa. Assim, como
84
um corpo único, se um membro sofrer, os outros membros também sofrerão. No entanto, o
texto já apresenta uma distinção entre eles, já que Deus constitui apóstolos, profetas e
doutores, de modo que ninguém é igual ao outro. Apóstolos são apóstolos e não são profetas.
Nessa perspectiva, o discurso bíblico apresenta uma aceitação da condição estabelecida por
Deus, ou no caso analisado pela sociedade dominante: aqueles que são dominados nunca
serão dominadores, pois esta é a lei. Ao fazer remissão à constituição do Corpo de Cristo, o
sujeito enunciador acredita e objetiva afetar o outro, convencê-lo de que essa metáfora é
verdadeira. Consoante aos objetivos do discurso do Bispo, a metáfora do Corpo Místico de
Jesus mostra uma unidade entre os membros batizados no mesmo espírito, o que silencia as
diferenças sociais. O outro é, assim, levado a acreditar que sua condição social é vontade
divina. Logo, a revolta por parte de um membro faz com que todo o corpo padeça, o que
quebra com a unidade da própria igreja e do próprio Cristo que é a cabeça da Igreja e,
consequentemente, da sociedade. O discurso de D. Geraldo demonstra que todo discurso é
tecido por milhares de fios dialógicos, os quais servem de alinhavo para os discursos
anteriores, o já-dito, e os discursos que estão por vir, os movimentos dos interlocutores, suas
respostas. O discurso do bispo apresenta a voz da Igreja ao justificar a razão de um bispo
dever preocupar-se com as questões de sua diocese. Assim responde àqueles que são contra a
interferência da Igreja em questões políticas, por exemplo. Como justificativa apodera-se do
discurso religioso e traz para o discurso um dos sacramentos máximos do católico, o batismo.
Com isso, pretende convencer o fiel da necessidade de se ter um bispo preocupado com as
questões que transcendem a paróquia.
Ademais, também traz à cena os discursos daqueles que defendem uma revolução no
Brasil ou que denunciam as diferenças sociais, sendo destoantes ao discurso da Igreja. O
bispo explica a metáfora do Corpo Místico de Jesus e demonstra como cada membro do corpo
é fundamental para que o propósito de Cristo seja realizado. Dessa forma, busca-se a
comunhão com os fiéis, o convencimento destes e uma ação contra os discursos adversários.
Para isso, o discurso do bispo fala à razão dos seus interlocutores, utiliza-se de fatos e signos
que são importantes para eles, prova a verdade sobre aquilo que fala, além de emocionar o
outro e sensibilizá-lo. Pretende-se, portanto, o convencimento e a adesão do outro, mas
também uma ação prática em defesa do que é dito. A metáfora do Corpo Místico de Jesus
justifica o lugar e a condição de cada um dentro da sociedade. Podemos inferir que sendo a
Igreja a representante de Cristo na sociedade, ela é a cabeça da sociedade, aquela que
determina ou interfere nas demandas sócio-políticas por meio da influência tida sobre os fiéis.
Isso se evidencia também no pedido feito por Geraldo aos seus seguidores: “[...] Após todas
85
as missas dominicais se rezem de acordo com as rubricas as orações de Leão XIII, precedidas
das seguintes fórmulas: Rezemos pela conversão da Rússia e pela derrota mundial do
comunismo” (DIOCESE DE JACAREZINHO, 1947, p. 8).
A preocupação do bispo justifica-se pelo fato de a Rússia26
representar para o mundo
a força do comunismo e do fim da propriedade privada. São essas vozes do contexto russo e
daquilo que os outros enxergam deles que ecoam no discurso do Bispo, mostrando que todo
discurso está apegado aos discursos anteriores, é heterogêneo e mobiliza diferentes vozes. A
voz do comunismo, neste caso, destoa da voz da Igreja do bispo, mas não deixa de constitui-la
e de constituir seu enunciador. Como aponta Faraco (2009, p.60), ancorado em Bakhtin
(1988), o discurso é o ponto de encontro entre diferentes vozes: “[...] todo dizer é
internamente dialogizado: é heterogêneo, é uma articulação de múltiplas vozes sociais (no
sentido em que hoje dizemos ser todo discurso heterogeneamente constituído), é o ponto de
encontro e confronto dessas múltiplas vozes”.
Diante desse contexto, a imagem do socialismo é associada pelos conservadores
católicos a um regime ligado a “legiões satânicas”. Diante disso, a Igreja coloca-se como uma
defensora do “bem” (SILVA JÚNIOR, 2006). Notamos que o bispo e seus seguidores
apoiam-se no conservadorismo do passado para resolver os problemas do presente, o que se
fazia por meio da linguagem. É a linguagem bíblica, a metafórica, e a dos comunistas que
constituem os discursos do bispo no presente a fim de combater os “maus frutos”. O discurso
conservador27
católico mostra, então, a naturalidade de a elite continuar a fazer do campo um
espaço de poder político e econômico e de subjugar o trabalhador rural.
Os fios que alinhavam o discurso da TFP não são novos, mas têm sua fonte nas
sociedades grega e romana, herança conservada pela Igreja. Os princípios fundantes dessas
sociedades são a religião doméstica, a família e o direito de propriedade. Conforme Fustel de
Coulanges (2006, p. 88), essas três coisas “[...] tiveram entre si, na origem, uma relação
evidente, e que parece terem sido inseparáveis”. Tendo como base a tradição, a família e a
26 Em outubro de 1917, Lênin defende o lema “Paz, pão e terra” e inicia seu governo na Rússia, decretando a
formação do Conselho de Comissários do Povo. Entre as medidas do novo governo estavam a nacionalização
dos bancos e a reforma agrária que pretendia distribuir terras aos camponeses (ARAÚJO, 2012). Com a morte de
Lênin, em 1924, tomou o poder Stálin, ao derrotar Trotsky. O governo de Stálin caracterizou-se pela repressão
política aos dissidentes comunistas, pela rígida planificação central e pelo alto controle do Estado sobre a
economia. No que se refere à reforma agrária, o governo impôs a coletivização das terras e dos rebanhos por
meio da violência, assassinando em massa os camponeses que resistiam à medida. 27
Segundo Oliveira de Carvalho (2005, s/p.), “[...] o conservador enfrenta a transformação com a ordem. Não
há a negação do movimento constante das sociedades humanas; ao contrário, ele é naturalizado, as sociedades
humanas naturalmente caminham para o progresso, logo não há necessidade do rompimento da ordem
estabelecida, até porque ela assegura completamente o progresso” (Grifos da autora).
86
propriedade, a TFP combate a reforma agrária defendida pela esquerda e pelos trabalhadores
rurais, chegando a publicar o livro Reforma Agrária Questão de Consciência (1960), no qual
se analisa a questão fundiária sob o olhar integrista. Essa obra é escrita por Dom Antonio de
Castro Mayer, Dom Geraldo de Proença Sigaud, Plínio Corrêa de Oliveira e Luiz Mendonça
de Freitas e objetiva contribuir para as discussões acerca da reforma agrária no Brasil. O livro
evidencia o combate que essa ala da Igreja faz contra ao agrorreformismo, julgando-o como o
primeiro passo para a implantação do comunismo no Brasil (ZANOTTO, 2010).
O signo reforma agrária, nesse contexto, é constituído como a presença do
comunismo no Brasil, sendo considerado um sistema que poderia abalar a desigualdade social
e econômica no País pelo fato de as terras dos latifundiários serem coletivizadas. Do mesmo
modo é um signo que carrega a blasfêmia a Deus, por contrariar sua vontade divina. O signo é
então “[...] um objeto material, um fenômeno da realidade objetiva, que adquiriu uma função
ideológica” (PONZIO, 2016, p. 174).
No que tange à questão agrária, a TFP é uma força ideológica que reforça as defesas
do latifúndio e as do futuro governo militar. Seus livros e suas pregações são formas de
“catequizar” o rebanho católico quanto à ideia da reforma agrária no Brasil. Mayer et al.
(1960) referem-se à reforma agrária revolucionária, esquerdista e malsã com iniciais
maiúsculas e entre aspas: “Reforma Agrária”, o que constrói um sentido de um movimento
agressivo, violento e revolucionário. A proposta de reforma agrária defendida pelo grupo seria
aquela que contribuísse para o progresso do campo e da produção agropecuária, o que seria
uma reforma sadia. De acordo com Mayer et al. (1960):
[...] Assim, pode-se falar de uma reforma agrária sadia, que constitua
autêntico progresso, em harmonia com nossa tradição cristã. Mas também se
pode falar de uma reforma agrária revolucionária, esquerdista e malsã,
posta em desacordo com esta tradição. Este último tipo de reforma agrária
importa em golpear a fundo ou até em eliminar a propriedade privada. Por
isto mesmo ele deve ser tido como hostil também à família. Com efeito,
como veremos, propriedade e família são instituições correlatas e fundadas
nos mesmos princípios.28
(Grifos nossos).
O discurso dos autores deixa revelar que a “reforma agrária sadia” está ligada à
tradição cristã, o que resulta em aceitar a condição já posta na sociedade há muito tempo.
Contrariamente, está a reforma agrária esquerdista, para a qual se utiliza as qualificações
28 Disponível em: <http://www.pliniocorreadeoliveira.info/livros/1960%20-
%20ReformaAgrariaQuestConci%C3%AAncia.pdf>. Acesso em: 2 out. 2016.
87
“revolucionária”, “esquerdista” e “malsã”. No primeiro caso, utiliza-se um adjetivo para
caracterizar a reforma agrária como uma ação ligada às revoluções vistas, naquele momento,
no mundo. Ser revolucionário está associado a uma ação anarquista, em que o povo por não
aceitar a condição dada por Deus sairia às ruas reivindicando o que não lhe é de direito. O
item lexical “esquerdista” refere-se aos partidos de esquerda, presentes em alguns países,
como Rússia e Cuba, como também às ações de cunho social que desenvolvem, como a
extinção da propriedade em prol da coletivização. Considerar a reforma agrária “malsã”,
significa entendê-la como maléfica, nociva e mórbida. Verificamos que as escolhas lexicais
não são aleatórias, mas sinalizam para uma posição ideológica, revelando que o signo capta as
menores nuances de ideologia.
Além disso, o livro também apresenta consonância com as palavras do Papa Pio XII
quando este condena uma estrutura agrária organizada somente de pequenas propriedades,
embora afirme que sabe da importância que ela tem na vida rural, porém há uma necessidade
de propriedades mais vastas, economicamente rentáveis. O signo terra está banhado de
interesses econômicos e políticos, por seu caráter de rentabilidade, o que a reforma agrária
pretendida pelos comunistas ameaça. Ademais, o discurso da TFP congrega a voz consoante
da Bíblia, da religião e, também, em um discurso destoante, dos opositores, que não passam
em branco em seus discursos. A TFP busca os olhares dos opositores para traçar seu próprio
discurso para, então, poder refutá-los, respondê-los, desafiá-los. Como explica Bakhtin (2011,
p. 341), o “[...] homem não tem um território interior soberano, está todo e sempre na
fronteira, olhando para dentro de si ele olha o outro nos olhos ou com os olhos do outro”.
No referido livro, Mayer et al (1960) defendem que “[...] a adesão de um católico a
uma reforma agrária “socialista e confiscatória” contraria violentamente a lei de Deus,
especialmente quanto às regras estabelecidas no sétimo e décimo mandamentos, ou seja, ‘Não
furtarás’ e ‘Não cobiçaras as coisas alheias’”. Neste caso, o argumento da TFP para defender
a propriedade privada está ancorado nos Dez Mandamentos da Lei de Deus, presentes no livro
de Êxodo (20:1). Segundo a Bíblia, Deus teria ditado a Moisés as dez leis que devem ser
seguidas pelos homens. A Igreja Católica institui esses mandamentos como a lei maior da
Igreja, de forma que o Catecismo da Igreja Católica apresenta diferentes passagens fazendo
referências à importância dos Dez Mandamentos, como “Guardar os Mandamentos é
corresponder à sabedoria e à vontade de Deus, expressas na sua obra da criação”
(CATECISMO, 348). Podemos notar que trazer os Mandamentos significa uma voz de
autoridade para os católicos por apresentar a própria voz de Deus. Assim, o discurso da TFP
busca vozes de autoridade, a Bíblia e o Catecismo Católico, para justificar e endossar seus
88
argumentos. A voz da TFP não é uma voz desvinculada de outras vozes, mas é uma das vozes
dentro de uma corrente de enunciados religiosos e conservadores.
Desse modo, a reforma agrária é um signo revestido de pecado e comparado ao
“furto” de um bem de um terceiro, o que evidencia que aqueles que lutam pela reforma
agrária, lutam pelo furto, pelo roubo da coisa alheia, agindo como um ladrão. Sendo assim,
lutar pela reforma agrária e reivindicar terras e direitos igualitários no campo são atitudes de
ladrões. Zanotto (2010, p. 83) acrescenta que se “[...] os cristãos recebessem essas terras, não
seria correto receber os sacramentos da confissão, eucaristia ou enfermos antes de restituir os
bens recebidos e redimir este pecado”. Percebemos, então, como o signo reforma agraria é
revestido do sentido de pecado, de roubo, de cobiça e de deslealdade às leis de Deus. Nesses
termos, o cristão aceita a diferença entre classes, pois pela lei divina ele tem a plena condição
de existir como ser humano e sua riqueza está no céu. Esse discurso de diferença entre os
homens pela vontade divina ecoa até hoje entre os mais abastados e, também, entre a
população marginalizada, o que contribui para sustentar a desigualdade social. Há uma ideia,
por parte da classe dominante, de que a ordem deve continuar assim: há pessoas que devem
ser exploradas e há pessoas que devem explorar. Desse modo, não há discursos totalmente
mortos, pois cada discurso tem seu momento de reavivação (BAKHTIN, 2011). No curso da
história, a classe dominante continua a financiar políticos, igrejas, associações rurais que
desenvolvem ações para manter a ordem social.
Um olhar dialógico para a constituição dos signos terra, reforma agrária e educação
do campo demonstra que os discursos não são produzidos no vazio, mas estão sempre
alicerçados em outros discursos. Desse modo, os signos em análise constroem-se mediante a
articulação entre sujeitos e fatos sócio-histórico-ideológicos. Isso pode ser constatado no
Quadro 1, que apresenta uma síntese dos sentidos constitutivos dos signos terra, reforma
agrária e educação do campo enunciados neste capítulo. Esses signos são produzidos nas
relações sócio-interacionais pelos sujeitos discordantes ao projeto de redistribuição de terras,
conforme podemos notar a seguir:
89
Quadro 1: Síntese dos sentidos construídos pelas vozes opositoras para os signos ideológicos
terra, reforma agrária e educação do campo
Vozes Histórico-
sociais
Terra Reforma Agrária Educação
do Campo
Período
Sesmarias
Patrimônio do Rei
Propriedade da coroa
Bem público desprovido de
valor monetário
Moeda de troca
Influência política
Lei de Terras Terra devoluta
Instrumento para gerar riqueza
Produto negociável
Mercadoria
Propriedade
Bem de capital
Produto negociável
Crédito bancário
Bem estar social
Constituição
Federal de 1946
Propriedade
Bem-estar social
Redistribuição de terras
Associações
Rurais
Propriedade familiar
Latifúndio
Minifúndio
Empresa rural
Instrumento de colonização
Bem de capital
Patrimônio agrícola
Distribuição de terras a
pessoas “aptas”
Transformação dos
camponeses em classe
média
Aumentar a produção
capitalista
Governo Militar e
Estatuto da Terra
Posse
Função social
Bem de produção
Atraso na produção agrícola
Instrumento para fixar o
homem no campo
Aumento da produção
capitalista
Inviabilizador da exportação
de grãos
Igreja Católica –
Carta Pastoral
Propriedade Reforma social agrária
Revolução
Igreja Católica –
TFP
Propriedade privada
Rentabilidade
Presença do comunismo
Blasfêmia a Deus
Pecado
Furto e cobiça
Deslealdade às leis de Deus
Elaborado pela autora (2018).
90
Conforme observamos no Quadro 1, o signo reflete a ideologia do grupo social ao
qual pertence e o momento histórico do qual faz parte, de forma que os referidos signos
carregam pontos de vista, opiniões e visões de mundo próprios de seu grupo, mas também do
grupo opositor ao evidenciarem as mudanças que os signos ganham conforme o contexto
social. Como observa Bakhtin (1988, p. 88), “[...] o discurso nasce no diálogo com sua réplica
viva”, o que evidencia que todo discurso está orientado para o outro, seja nas respostas a
discursos do passado seja na antecipação a discursos futuros. É a linguagem viva e concreta
que nos permite perceber os tons valorativos dos signos terra, reforma agrária e educação do
campo sobrepostos em diferentes gêneros discursivos, como leis, decretos, estatutos,
editoriais, cartas e livros religiosos. Os enunciados concretos possibilitam-nos perceber como
os governos conservadores e a elite latifundiária buscam meios para garantir e perpetuar a
propriedade privada e o latifúndio no Brasil.
Dessa forma, os discursos dos acadêmicos sem terra não são os primeiros a criarem a
cadeia discursiva da terra, da reforma agrária e da educação do campo, mas eles fazem parte
de um discurso continuo e histórico, o qual responde a diversas ações passadas desenvolvidas
para naturalizar o latifúndio e, consequentemente, a desigualdade social. O signo terra, pelo
horizonte social dos opositores à reforma agrária, é concebido como patrimônio do Rei, bem
público e desprovido de valor monetário. Já em um outro momento, ganha contornos de
moeda de troca, instrumento para gerar riqueza, propriedade, bem de capital, produto
negociável, possibilitador de crédito bancário e bem estar social. Como podemos notar, o
signo terra não apresenta apenas um único sentido, pois acompanha as mudanças do contexto
social e econômico do qual faz parte os grupos envolvidos. Isso demostra que os signos são
vivos, móveis, vivem e evoluem no contexto social.
O signo reforma agrária começa a ser constituído pela classe dominante no Brasil
por meio dos discursos de oposição ao socialismo russo. Assim, a reforma agrária significa a
coletivização das terras, o fim do latifúndio e da propriedade privada, o que não é de interesse
dos governantes e seus aliados. O signo reforma agrária é entendido como possibilitador da
criação de uma classe média do campo, ameaça à agricultura nacional, incentivador da
permanência dos trabalhadores rurais no campo e ataque à propriedade privada. Como
salienta Bakhtin, não se trata do discurso de um individuo, mas de um grupo social que
comunga dos mesmos interesses sócio-econômicos.
Já o signo educação do campo mostra-se ainda em gestação, não sendo discutido por
nenhum grupo em destaque, pois, nos períodos históricos analisados, a educação rural é o
sistema de ensino que vigora no campo. O signo educação rural apresenta sentidos de
91
adaptação do ensino da cidade para o campo, sem levar em consideração as especificidades
políticas e intelectuais do povo camponês. A educação rural não apresenta garantias aos
camponeses de viver da terra e de lutar por ela, mas é um sistema que limita as ações políticas
dos trabalhadores rurais por falta de conhecimento de suas necessidades.
Como podemos perceber, os signos terra, reforma agrária e educação do campo são
constituídos pelo olhar do opositor, evidenciando uma visão individualista, capitalista e
excludente da terra, conforme mostramos no Quadro 1. Há, então, uma força centrípeta sendo
impulsionada contra os defensores da reforma agrária e, consequentemente, contra os direitos
sociais, revelando-se nas estratégias políticas, judiciárias e até mesmo no uso da violência, a
fim de evitar mudanças sociais. Evidencia-se, assim, o valor axiológico que o grupo
dominante atribui à terra, à reforma agrária e à educação do campo, o que os constitui como
signos ideológicos.
Nossas análises, até este momento, mostram que infraestrutura e superestrutura
mantêm entre si uma relação recíproca, o que pode ser observado pelo exame do material
verbal que destacamos. Percebemos que ambas estabelecem os signos terra, reforma agrária
e educação do campo, os quais refletem e refratam a realidade em mudança. Ao buscarmos
perceber em que medida a linguagem determina a consciência e em que medida a ideologia
determina a linguagem, notamos que a infraestrutura está representada pela força produtiva
enquanto a superestrutura constitui-se pelas tradicionais instituições ideológicas, como
monarquia (rei), religião (Igreja Católica), justiça (Constituição, decretos, regimentos) e
política (Governo Militar). O exame das vozes histórico-sociais em destaque revela que a
superestrutura utiliza-se de estratégias para se consolidar e se perpetuar seu poder. Entre essas
estratégias estão a criação de leis, decretos, regimentos e estatutos, como também a defesa de
discursos de naturalização das desigualdades e, inclusive, o uso da violência para coibir
manifestações contrárias. Assim, a ideologia é um instrumento que possibilita que ações e
ideias sejam aceitas pela sociedade e tornem-se verdades incontestáveis.
No próximo capítulo, analisaremos discursos de políticos de oposição, da Igreja
Católica, do governo federal e dos movimentos sociais rurais favoráveis à reforma agrária, os
quais constituem os signos terra, reforma agrária e educação do campo. Entendemos que
essa constituição é edificada como um movimento de resposta às vozes destacadas neste
primeiro capítulo. Enquanto as vozes discordantes objetivam ocultar os problemas no campo,
assim como a existência de trabalhadores rurais sem terra, a desigualdade social no Brasil e,
ainda, condicionar a educação dos filhos de camponeses a uma educação rural “adaptada”, as
vozes consoantes a um projeto de reforma agrária buscam evidenciar as desigualdades,
92
mostrar a existência de uma classe trabalhadora rural, como ainda demonstrar a necessidade
de luta por direitos, não só à terra, mas também à igualdade social e à educação do campo.
Nessa perspectiva, os movimentos de luta pela terra não só têm como bandeira a reforma
agrária, como também defendem o investimento na educação do campo, a qual deve
contemplar a formação intelectual e política da população rural.
93
CAPÍTULO II – A AÇÃO RESPONSIVA NA CONSTITUIÇÃO DOS
SIGNOS IDEOLÓGICOS TERRA, REFORMA AGRÁRIA E EDUCAÇÃO
DO CAMPO: VOZES HISTÓRICO-SOCIAIS CONSOANTES AO
PROJETO DE DISTRIBUIÇÃO DE TERRAS
Em uma perspectiva bakhtiniana, a ação dialógica constitui os sujeitos como únicos
e, ao mesmo tempo, como relacionados com outros sujeitos. O mundo das relações existentes
em torno da terra é, assim, um “[...] mundo unitário e singular concretamente vivido: é um
mundo vísivel, audível, tangível, pensável, inteiramente permeado pelos tons emotivo-
volotivos da validade de valores assumidos como tais” (BAKHTIN, 2010, p. 117).
Por meio de uma ação dialógica, que propõe mostrar o diálogo existente entre as
vozes que constituem a história da terra no Brasil, objetivamos, neste capítulo, examinar
vozes consoantes ao direito dos trabalhadores rurais à terra, verificando como elas constituem
os signos terra, reforma agrária e educação do campo, opondo-se de forma respondente aos
discursos discordantes próprios da elite latifundiária.
Como observaremos, neste capítulo, diante de um contexto histórico de exploração,
expulsão, silenciamento e violência, os pequenos lavradores necessitam desenvolver ações de
resistência contra a visão de terra como bem de capital, propriedade privada e moeda de troca.
Essas lutas são contra o monologismo das leis, que objetiva reduzir o individuo a um objeto, e
contra as ideologias limitantes, as quais encorporam o signo terra já nas primeiras linhas da
história brasileira, marcando-o de sentidos que fazem parte de uma herança sígnica (DURAN,
2016).
Assim, exploramos, nesse capítulo, a noção de reforma agrária que chega ao Brasil
por meio do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que, no Congresso Nacional, faz uma
exposição a favor da reforma agrária e, também, resiste às empreitadas dos grupos opositores,
fazendo da reforma agrária um signo ideológico. Também voltamos nosso olhar para a
organização dos camponeses nordestinos para a criação das Ligas Camponesas, ainda, na
década de 1940.
Também no cenário político, observamos a defesa de um projeto de reforma agrária
do governo do presidente João Goulart, o qual é levado ao Congresso Nacional, mas não
94
alcança êxito. Abordaremos, ainda, a voz da Igreja Católica, com a criação das Comunidades
Eclesiais, uma forma de prática da Teologia da Libertação, que aproxima o povo dos
religiosos por meio de encontros que, além de evangelizar, também apresentam questões
referentes ao dia a dia do trabalhador da cidade e do campo. Assim, os cursos de formação
ministrados pelos religiosos levam o povo a refletir a sua condição de oprimido e explorado.
Como consequência dessas formações, surgem os movimentos sociais rurais.
Esses movimentos, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), desenvolvem lutas em favor do trabalhador rural
que, agora, não objetiva apenas a terra, mas educação do campo, o fim do latifúndio e a
igualdade social. Para isso, os Movimentos buscam formação intelectual, ideológica e
política, bem como produzem documentos apresentando seus princípios e valores. Uma das
bases dos movimentos sociais rurais é a educação do homem do campo. Por isso, enfatizam o
papel da educação do campo como fundamental para a libertação dos trabalhadores rurais, por
ela possibilitar o acesso do trabalhador sem terra à cultura, ao conhecimento, como também
relacionar os conhecimentos universais à realidade do assentado e do acampado.
A força empreendida pelo MST, em um movimento de responsividade, é uma força
centrífuga, a qual busca “[...] a abertura, a diversidade, a heterogeneidade”, desvelando o
dialogismo constitutivo, contra a força centrípeta, caracterizada pelo “[...] fechamento, a
unidade, a homogeneidade” (FIORIN, 2016, p. 138), aspirando o monologismo, imposto
pelos ruralistas e políticos de oposição. Inspirada em Bakhtin, Py Elichirigoity (2008, p. 183)
caracteriza as forças centrífugas como aquelas que “[...] se empenham em manter as coisas
variadas e apartadas umas das outras; que compelem ao movimento, ao devir e à história; e
desejam a mudança, a vida nova”; já as forças centrípetas, aquelas que “[...] se empenham em
manter as coisas juntas e unificadas; resistem ao devir, abominam a história”.
Podemos observar que essas forças opostas no diálogo das práticas sociais
constituem também a identidade dos acadêmicos sem terra do curso de Ciências Sociais. A
voz do MST dialoga tanto com movimentos anteriores de luta pela terra e por justiça social,
como também com seus adversários. A militância do MST e os trabalhadores rurais sem terra
são preparados política e ideologicamente para resistir às manobras políticas daqueles que são
contra um projeto de justiça social. Em um movimento responsivo, de suas vozes, em seus
documentos e seus lemas não só ouvimos as vozes da Igreja Católica, das Ligas Camponesas
e da vivência do trabalhador rural, mas também as vozes de seus adversários, as quais serão
rebatidas, questionadas e criticadas. Assim, os sujeitos envolvidos estão em uma constante
luta, em um constante movimento, em constante formação política e acadêmica, o que resulta
95
em diferentes estratégias de enfrentamento e, também, na constituição dos signos ideológicos
terra, reforma agrária e educação campo.
2.1 Vozes Teóricas
Como observamos no primeiro capítulo, os governantes ligados à elite, as
associações rurais e os grupos católicos conservadores são vozes que se levantam contra a
reforma agrária no Brasil, concebendo a terra como um bem de capital, tornando-a um
produto comercial e com valor de mercado, o que impede camponeses brasileiros e ex-
escravos de terem a oportunidade de ter um pedaço de terra para sua subsistência e existência
social. Ademais, a educação do campo foi negada aos camponeses, a quem restou a educação
rural, caracterizada por ser uma adaptação da educação urbana, demonstrando que
governantes e latifundiários não estavam preocupados com a formação intelectual dos filhos
de camponeses tampouco com as especificidades de quem mora no campo.
No entanto, essas não são as únicas vozes ouvidas no contínuo da história da terra no
Brasil. Em um movimento de responsividade, grupos sociais levantam suas vozes em favor da
redistribuição de terras e da educação do campo. A vida é dialógica, como afirma Bakhtin
(2011), logo compreendemos que o homem é dialógico, pois mesmo ao querer silenciar as
vozes de seus oponentes, é possível ouvi-los nas respostas, nas críticas, nos questionamentos e
na rejeição.
Assim, observamos que os discursos oponentes estão presentes nos enunciados dos
grupos defensores da reforma agrária, o que demonstra que os discursos são respostas aos
enunciados precedentes e apoiam-se neles para se definirem. Desse modo, ouvimos ecos e
ressonâncias dos discursos opositores nos enunciados dos grupos políticos e dos movimentos
sociais e religiosos, como uma resposta que vai ao encontro do outro.
Tal perspectiva confirma que todo falante é um ser respondente, como demonstra
Bakhtin (2011), uma vez que seu discurso faz parte da cadeia de enunciados da história da
terra. Os grupos consoantes não são os primeiros a debaterem a propriedade da terra e,
também, não são os últimos. Seus discursos respondem a enunciados anteriores como também
dialogam com os discursos do futuro, sejam de seus adversários, sejam de seus
correligionários.
É nesse sentido que o conceito de responsividade é fundamental para este estudo,
pois as respostas estão emaranhadas de ideologia e de valores axiológicos dos grupos sociais
96
em análise, além de evidenciar como os discursos dos adversários foram recepcionados e
compreendidos por diferentes grupos sociais.
2.1.1 Responsividade
A comunicação humana processa-se dialogicamente entre interlocutores, não só entre
dois indivíduos em uma ação interativa, mas também entre discursos. Para Bakhtin (2002, p.
112), “[...] a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados
e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante
médio do grupo social ao qual pertence o locutor”. Na perspectiva bakhtiniana, todo discurso
é orientado para alguém, o qual pode ser um aliado ou um adversário e do qual se espera uma
resposta, isto é, um posicionamento ideológico. Desse modo, os indivíduos vivem um eterno
diálogo. Nas palavras de Bakhtin (2011, p. 348), a “[...] vida é dialógica por natureza. Viver
significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar etc. Nesse diálogo o
homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o
espírito, todo o corpo, os atos”. É o que ocorre na luta pela terra no Brasil. Como vimos no
capítulo anterior, as políticas são efetuadas para barrar o direito à terra aos camponeses que
nela querem viver e trabalhar. Os discursos mostram-se alinhados a uma ideologia burguesa
de exploração do trabalho camponês e da terra. Vários são os discursos que se levantam
contra a reforma agrária, o que cria condições para que a terra fosse inacessível ao trabalhador
rural. No entanto, como veremos neste capítulo, outras vozes se levantam contra o discurso
hegemônico dos latifundiários e da classe política de oposição. Os discursos da elite são
direcionados a eles mesmos na tentativa de perpetuar a forma de trabalho no campo, mas
também é orientado aos seus adversários com o intuito de calar as vozes que se ouvem
pedindo mudanças na estrutura fundiária do Brasil. Em uma perspectiva bakhtiniana, os
discursos de resistência/a favor da reforma agrária serão uma resposta aos discursos dos
latifundiários e de seus correligionários, assim como também serão uma resposta às anteriores
lutas pela terra. Como ressalta Bakhtin (2011, p. 297):
Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os
quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva. Cada
enunciado deve ser visto antes de tudo como uma ‘resposta’ aos enunciados
precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra resposta
no sentido mais amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles,
subtende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta. Porque o
97
enunciado ocupa uma posição definida em uma dada esfera de comunicação,
em uma dada questão, em um dado assunto, etc. É impossível alguém definir
sua posição sem correlaciona-la com outras posições. Por isso, cada
enunciado é pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados, de
doutra esfera da comunicação discursiva.
Essa resposta é um processo de compreensão da palavra do outro; e a cada palavra
enunciada pelo outro, fazemos corresponder palavras nossas, palavras novas, outros atos
responsivos não apenas de aprovação, mas também de desaprovação. Compreender é, nas
palavras de Bakhtin (2002), opor à palavra do locutor uma palavra minha. No processo de
compreensão de luta pela terra, os discursos de políticos, de religiosos, de movimentos sociais
rurais apropriar-se-ão do discurso do outro – opositores à reforma agrária – para construírem
outro discurso, uma resposta, de forma que as palavras dos adversários serão ouvidas nos
discursos de defesa de direito à terra, a fim de serem rebatidas, contra-argumentadas,
contrariadas.
[...] todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau:
porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio
do universo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que usa
mas também de alguns enunciados antecedentes – dos seus e alheios – com
os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles,
polemiza com eles, simplesmente os pressupõe já conhecidos do ouvinte)
(BAKHTIN, 2011, p. 272).
A responsividade é, então, uma reação às palavras alheias, às quais despertam em
nós ecos ideológicos e nos levam a emitir valores. Nas palavras de Bakhtin (2011, p. 131-
132):
[...] Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a
ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada
palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos
corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica.
Assim, a resposta ao discurso do outro é um processo que passa pela refração. Ao
atribuir valores diferentes à terra, reforma agrária e educação do campo, o discurso de
consonância à reforma agrária refrata a significação advinda da classe dominante e constrói
outros sentidos para os referidos signos, cuja significação não é aceita pelos trabalhadores
rurais e por seus aliados. Dessa maneira, por meio da refração, significam, mediante seu
98
horizonte axiológico, a terra, a reforma agrária e a educação do campo, atribuindo a esses
signos novos sentidos, o que faz dos signos uma arena de lutas. Como ressalta Faraco (2013,
p. 174), para o Círculo “[...] não é possível significar sem refratar”, isso ocorre porque
[...] as significações não estão dadas no signo em si, nem estão garantidas
por um sistema semântico abstrato, único e atemporal, nem pela referência a
um mundo dado uniforme e transparentemente, mas são construídas na
dinâmica da história e estão marcadas pela diversidade de experiências dos
grupos sociais, com suas inúmeras contradições e confrontos de valorações e
interesses.
Podemos afirmar que, na constituição dos signos, a resposta é resultado da refração,
o que faz dos signos vivos e móveis. O signo, ao carregar os variados valores axiológicos, é o
lugar de encontro e de desencontros de várias verdades sociais. No entanto, uma força
centrípeta sempre tenta impor a sua verdade como única, assim como tenta controlar os
discursos, monologizando-os, isto é, tornando os outros – adversários – como objetos. Para
Bakhtin (1988, p. 82), sobre a palavra atuam ao mesmo tempo forças que objetivam a
centralização, a estabilidade do sentido, a força centrípeta. Contudo, sempre há uma relação
com outro, o qual reage ao monologismo discursivo, que sempre empreende discursos de
resistência, mobilizando outras formas de resistências; assim, impondo uma força centrífuga.
Para Bakhtin (1988, p. 82), sobre a palavra atuam ao mesmo tempo forças que objetivam a
centralização, a estabilidade do sentido, a força centrípeta e forças que buscam a
descentralização e estratificação do sentido: “[...] Cada enunciação que participa de uma
‘língua única’ – das forças centrípetas e das tendências – pertence também, ao mesmo tempo,
ao plurilinguismo social e histórico – às forças centrífugas e estratificadoras.”
É o que ocorre nos relatos de experiências dos acadêmicos sem terra, uma vez que
suas vozes fazem parte do continuo da história da terra, de modo a ser mais uma voz que
resiste à atuação da força centrípeta, imposta pela elite. Sua resistência dá-se por meio de
estratégias, como acampamentos, marchas, seminários, formação política e, agora, também
por meio da formação acadêmica. É por isso que Bakhtin ressalta que as palavras estão
ligadas diretamente à vida, pois é na vida, na experiência diária, na relação com o outro que as
palavras tomam consistência. Para Bakhtin (2002, p. 179), a “[...] vida começa apenas no
momento em que uma enunciação encontra outra, isto é, quando começa a interação verbal
[...]”. Nesse processo dialógico, não há discurso acabado, mesmo aquele que seja o mais
significativo e o mais completo é apenas uma fração da cadeia da comunicação verbal
ininterrupta, logo a dinâmica enunciador-ouvinte-resposta sempre está em movimento pelo
99
fato de o discurso não ter um acabamento, já que os participantes são ativos e mudam de
papel a todo momento. Assim, na luta pela terra, os defensores da reforma agrária são
enunciadores/respondentes, mas também ouvintes, assim como também o são seus
adversários. Como salienta Bakhtin (2011, p. 297): “[...] Os enunciados não são indiferentes
entre si nem se bastam cada um a si mesmos; uns conhecem os outros e se refletem
mutuamente uns nos outros”.
O caráter da antecipação é constituinte da responsividade, de modo que um
enunciador sempre tem em mente o outro, a sua posição social, o seu posicionamento
ideológico e, assim, para ele formula seu discurso para ir ao encontro do outro. No caso dos
discursos a serem analisados neste capítulo, os políticos de esquerda, as Ligas Camponesas, a
Igreja Católica (Teologia da Libertação e CEBs), os movimentos sociais rurais já conheciam o
discurso da classe dominante e a sua atuação nos setores públicos para frear a reforma agrária.
A partir daí, anteciparam as reações dessa classe e elaboraram seus discursos já para
respondê-las, refutá-las, contrariá-las, desmascará-las. Desse modo, o ouvinte não é um
destinatário passivo, o qual tem a função apenas de ouvir. O destinário, para Bakhtin (2011),
tem sempre a função de responder ativamente ao discurso do enunciador. A resposta pode vir
como uma concordância ou não. Um caráter destacável da resposta é a presença do discurso
do outro, é a presença de enunciados proferidos por outros enunciados que agora emergem de
forma consciente ou não. Por isso, um enunciado é sempre uma resposta a um enunciado
anterior. Em um enunciado ouvem-se diferentes vozes que o antecederam, o que dá
movimento à linguagem e, ao mesmo tempo, garante a ela ser inacabada e sempre renovada.
É esse aspecto que percebemos nas análises dos discursos que seguem. Verificamos
que os discursos consonantes à democratização da terra, à reforma agrária, à educação do
campo são respostas a enunciados de seus oposicionistas. Assim, em suas vozes ecoam seus
próprios dizeres, mas também vozes adversárias.
2.2 Vozes Histórico-sociais
Apresentar vozes consoantes ao projeto de redistribuição de terras no Brasil significa
demonstrar que os contornos da história sempre estão em construção, uma vez que por meio
da linguagem cria-se e recria-se o mundo histórico e valorativo. Desse modo, percebemos que
os sentidos não estão mortos e não pertencem a um grupo social específico, já que em um
movimento responsivo eles emergem dialogicamente, fazendo ecoar vozes alheias. Assim, são
100
as vozes histórico-sociais aqui destacadas, pois elas não são fruto do acaso, mas de uma
continua relação responsiva entre grupos sociais contrários. Desse modo, quando o grupo
social contrário à reforma agrária no Brasil constrói formas, por meio da linguagem, para
banir a oportunidade de os trabalhadores rurais terem seus lotes, os grupos a favor também
constituem suas estratégias discursivas para criar caminhos a fim de garantir o direito à terra.
Nesse sentido, percebemos que os signos ideológicos recebem de ambos os grupos sentidos
para sua constituição, sendo um lugar de encontro entre de ideologias antagônicas.
2.2.1 PCB (Partido Comunista Brasileiro)
Em continuidade ao nosso percurso histórico que procura destacar fatos que
colaboraram para a constituição dos signos terra, reforma agrária e educação do campo,
ressaltamos a proposta de reforma agrária apresentada ao Congresso pelo Partido Comunista
Brasileiro (PCB). Analisar o percurso histórico de signos de tamanha dimensão leva-nos a
perceber jogos entre forças sociais, políticas, econômicas que sustentam a constituição das
faces dos signos analisados, resultados de lutas ideológicas que se dão pela linguagem. O
signo terra, até este momento, não está estabilizado, pois, mesmo com as ações de poder
desenvolvidas pela classe dominante, como a aprovação de leis, regimentos, decretos,
estatutos, há vozes que resistem ao projeto de latifúndio. Por isso, o signo terra constitui-se
como uma arena de lutas entre classes diferentes, uma vez que acumula uma herança
ideológica dos grupos antagônicos.
O Partido Comunista Brasileiro (PCB), inicialmente, com a figura de Luiz Carlos
Prestes e a Coluna Prestes29
mostra-se como uma voz que traz para o cenário brasileiro o
fenômeno social da reforma agrária, herdado da Revolução Russa. Com o lema “Paz, pão e
terra”, Lênin, em 1917, decreta a instituição da reforma agrária na Rússia com o objetivo de
distribuir terras aos camponeses, visando a um caráter coletivo para as terras e para a
produção. A voz das teses de Lênin ecoa no discurso do deputado Luiz Carlos Prestes e do
PCB por meio de uma proposta de reforma agrária levada ao Congresso, em 18 de junho de
1946. O discurso de Prestes destaca que, apesar da entrada dos princípios do capitalismo,
29 Movimento revolucionário também chamado Coluna Miguel Costa-Prestes, que, sob a liderança dos
“tenentes” Miguel Costa e Luís Carlos Prestes, empreendeu longa marcha por vários estados do país entre abril
de 1925 e fevereiro de 1927.
101
observam-se a existência de características feudais nas relações agrárias no Brasil, o que
justifica o atraso na estruturara agrícola brasileira30
. O discurso é, portanto, uma contrapalavra
que se opõe aos anseios capitalistas, culpando esse sistema pelo atraso visto na estrutura
fundiária brasileira. Assim, observamos uma disputa entre os princípios capitalistas e
socialistas. O primeiro que vê a terra como bem de produção, e o segundo que a concebe
como coletiva. Comparar a situação das terras brasileiras ao feudalismo traz à cena o sistema
de suserania e vassalagem entre os senhores do feudo e os seus servos. Realizar essa
comparação é mostrar que as relações no Brasil entre fazendeiros e trabalhadores rurais
assemelham-se à escravidão e à exploração, pois a função preponderante dos vassalos é a de
garantir rendimentos econômicos aos senhores feudais em troca de proteção e de subsistência.
Por isso, o deputado considera a política agrária no Brasil atrasada, uma vez que herda traços
medievais de relação com a terra. O discurso do deputado é uma nova voz na arena de luta
pela terra. Trata-se de um novo sujeito social, que representa a voz de um Partido, de um
coletivo, o qual tem interesses em assumir o poder, e por isso, em uma ação responsiva,
denuncia o monopólio da terra, a propriedade privada e a concentração de propriedades nas
mãos de poucos, o que também leva a inferir que muitos estão sem terra.
Para comprovar sua tese, Prestes lança mãos de dados do Censo do Instituto
Brasileiro de Pesquisa e Estatística (IBGE), de 1940, apontando que “Mais ou menos 18% dos
proprietários possuem 2/3 da área total das propriedades rurais, ou em números absolutos: uns
340 mil proprietários, isto é, apenas 3,7% de todos os que labutam na terra” (STEDILE, 2012,
p. 20), o que seria um pouco mais de 1% dos habitantes do campo. Dialogicamente, o
discurso de Prestes objetiva garantir sua confiabilidade, ao buscar uma voz de autoridade que
se baseia em números para retratar a situação do Brasil com relação à terra. A voz do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou seja, uma voz de um Censo de 1940, é
retomada no discurso de Prestes em 1946, o que demonstra que presente e passado estão em
constante relação, como também evidencia que a história é inconclusa. Na visão bakhtiniana,
a relação com discursos anteriores é inevitável, pois sempre recorremos ao que o outro disse
para criar autenticidade, credibilidade ao nosso próprio discurso.
Segundo o Censo (IBGE, 1940), no Brasil, há aproximadamente 1.000 propriedades
com mais de 10 mil hectares e 60 propriedades com mais de 100 mil hectares, o que
demonstra que 60 pessoas são donas de 6 milhões de hectares, 3,2% das propriedades rurais, o
30 O discurso do deputado Carlos Prestes está transcrito no livro de Stedile (2012).
102
que constitui autênticos latifúndios. A desproporção entre os números revela o universo de
latifúndios presentes no Brasil e, ainda, denuncia a desigualdade social no campo. Notamos
um número pequeno de proprietários para uma grande quantidade de terras, o que
desestabiliza as relações entre latifundiários e camponeses. A presença dos números infere
uma tentativa de convencer seu interlocutor acerca da veracidade dos fatos que defende. Por
meio dos números, o discurso do deputado tenta convencer seus interlocutores a pensarem
como o PCB e a votarem como o PCB.
O deputado também afirma que de “[...] todo o exposto, só cabe uma conclusão: sem
uma redistribuição da propriedade latifundiária, ou, em termos mais precisos, sem uma
verdadeira reforma agrária não é possível debelar grande parte dos males que nos afligem
[...]” (STEDILE, 2012, p. 21). Verificamos a apresentação da reforma agrária como sendo a
solução para os males que afligem tanto o governo quanto a população. No entanto, a
“reforma agrária” deve ser verdadeira. O discurso de Prestes revela uma ação responsiva às
leis anteriores (Constituição Federal de 1891), considerando-as falsas/mentirosas, ao
incluírem em suas letras a possibilidade de desapropriação de terras desde que a União
disponibilizasse de verba para custear a desapropriação, o que não acontece com a
justificativa de que a União não dispor de verba para custear as despesas, iludindo, assim,
aqueles que buscam na justiça o direito à terra. Como afirma Bakhtin (2011, p. 272), “[...]
cedo ou tarde, o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos subsequentes
ou no comportamento do ouvinte”.
O signo reforma agrária é lançado no cenário político e já nasce herdando os
sentidos do signo terra acumulados ao longo da história, bem como dos valores ideológicos
que o acompanham. Concordamos com Duran (2016, p. 90) quando o autor afirma que um
signo não nasce do zero, de um ponto inaugural, sem ter antecedentes, “[...] mas encontra-se
inserido em uma cadeia discursiva que possibilita sua imersão, sua existência”. Dialogando
com a perspectiva bakhtiniana, podemos afirmar que são as condições sócio-históricas e
econômicas, isto é, na interação social que os signos surgem. Desse modo, entendemos que da
história de um grupo social, os signos herdam os valores ideológicos. “[...] O signo não passa
a existir se não a partir de um conjunto de fatos que o possibilitam existir dentro de um
determinado contexto. Esses fatos são a história do signo. Sem esses elementos históricos, é
impossível determinar o estabelecimento de um signo ideológico” (DURAN, 2016, p. 45). No
caso do signo reforma agrária, notamos que a história da relação dos dominantes com a terra
e as resistências dos dominados incorpora-o.
103
O deputado também enumera os problemas relacionados à terra31
e afirma que o
problema da terra precisa ser resolvido e cabe ao Congresso chegar a uma solução para isso, o
que o partido julga necessário para evitar “[...] o caos, a guerra civil, porque o progresso do
país não pode ser barrado por uma classe dominante, senhora da terra, proprietária das
maiores extensões do nosso solo [...]” (STEDILE, 2012, p. 26).
O discurso dialoga novamente a Revolução Russa ao fazer referência à guerra civil
que se institui no País pela resistência dos latifundiários e capitalistas ao modelo de reforma
agrária apresentado por Lênin, o que leva a Rússia a uma guerra que dura três anos e devasta
o país. O enunciado objetiva convencer os deputados de que é preciso aprovar o projeto do
PCB para reforma agrária, para, assim, evitar o caos e a guerra civil. O discurso do deputado é
construído como uma resposta aos seus destinatários, objetivando antecipar-se a eles, e “[...]
essa resposta antecipável exerce, por sua vez, uma ativa influência sobre o meu enunciado”
(BAKHTIN, 2011, p. 302). Ao antecipar-se a seus destinatários, lança sobre os congressistas
uma responsabilidade, levando-os a avaliar a situação e a se sentirem parte do problema.
Ademais, é possível analisarmos a constituição de um sujeito socialista por meio do estilo do
discurso, como nas escolhas lexicais de “classe dominante” e “senhora da terra”, que
encontramos em sua fala. A respeito das escolhas lexicais, Bakhtin (2011, p. 291) afirma:
“[...] Porque se pode pensar que quando escolhemos as palavras para o enunciado é como se
nos guiássemos pelo tom emocional próprio de um palavra isolada: selecionamos aquelas que
pelo tom correspondem à expressão do nosso enunciado e rejeitamos as outras”. O primeiro
caso trata-se de um termo utilizado pela teoria marxista para se referir ao grupo
economicamente abastado e detentor de poderes políticos por meio dos quais conquista o
aparato oficial do Estado e, assim, consegue legitimar seus interesses por meio de leis e
planos econômicos. Já o segundo “senhora da terra” retoma os sentidos de poder, dominação
e influência também ligados ao sistema político e econômico. Percebemos ainda um
julgamento da classe dominante quando a responsabiliza pela situação de caos que assola o
campo brasileiro, pois é ela que não admite a “divisão” (STEDILE, 2012, p. 26). O termo
31 Segundo Prestes, sem a verdadeira reforma agrária, não seria possível diminuir problemas como: a) produção
agrícola baixíssima, rotineira; pouco diversificada e de todo insuficiente para as necessidades de consumo das
nossas populações; b) condições precárias de existência no campo, no que concerne à alimentação, vestuário,
habitação, saúde e educação; c) fraca densidade geográfica (4,8 habitantes por km²); d) falta de mercado interno
para nossas indústrias; e) situação aflitiva de nossos transportes; em que se congregam, de um lado, o estado
deplorável dos equipamentos, obsoletos, gastos e super trabalhados; de outro, a falta de transportes (STEDILE,
2012, p. 21).
104
“divisão” também pode ser lido dialogicamente como recorrente na teoria marxista e no
socialismo russo, particularmente, por indicar sentido de distribuição, coletivização e partilha,
conceitos que retomam a voz do “Decreto sobre a Terra”, de Lênin, que estabelece a abolição
da propriedade latifundiária sem qualquer indenização, tornando a terra
estatizada/nacionalizada.
São vozes do passado retomadas no discurso de Prestes, algumas consoantes outras
destoantes ao seu projeto de reforma agrária, a fim de refutar, discordar, responder, bem como
concordar e compactuar. A presença das várias vozes entrelaçando-se no enunciado leva-nos a
perceber que seu discurso não é o primeiro a falar sobre reforma agrária como distribuição de
terras, como se fosse um “Adão Bíblico” a descrevê-la pela primeira vez, mas é, como aponta
Bakhtin (2011, p. 300), um “[...] elo na cadeia da comunicação discursiva e não pode ser
separado dos elos precedentes que o determinam tanto de fora quanto de dentro, gerando nele
atitudes responsivas diretas e ressonâncias dialógicas”. Desse modo, o discurso do deputado é
mais um discurso que faz parte do fluxo da história da terra no Brasil e, assim, continua
fazendo parte de discursos futuros, como os dos acadêmicos sem terra ao elaborarem
discursos que contrariam os conceitos capitalistas, contra o latifúndio, e a favor da
coletividade e da partilha.
O discurso de Prestes que representa o PCB propõe uma mudança no Art. 164, § 17
da Constituição para a seguinte redação:
A lei facilitará a fixação do homem no campo, tomando as medidas
necessárias para o fracionamento dos latifúndios, para o desenvolvimento
das pequenas propriedades, para a criação de novos centros de população
agrícola, com as terras e as águas que lhes sejam indispensáveis para o
fomento da agricultura e para evitar a destruição dos elementos naturais e
os danos que a propriedade possa sofrer em prejuízo da sociedade
(STEDILE, 2012, p. 27) (grifos nossos).
A reforma agrária parece ser entendida pelo PCB, representado por Prestes, não
como distribuição de terras como direito, mas como uma maneira de fixar o homem no
campo, o que contraria a ideia dos políticos conservadores de que o homem deve sair do
campo para ser mão-de-obra das fábricas. O discurso responsabiliza-se pelo o que afirma, ao
enfatizar que a lei proposta pelo Partido “facilitará” a “fixação do homem no campo”, do
mesmo modo responde às vozes políticas que defendem que o camponês deve sair do campo e
ocupar as cidades. Além disso, percebemos que o signo reforma agrária é concebido pelo
PCB como “fracionamento do latifúndio”, isto é, fracionamento das grandes extensões de
105
terra pertencentes a uma pessoa só, o que significa a divisão, a partilha e a coletivização da
terras entre muitos, herdada de Lênin. Assim, o signo terra, para o PCB, está associado a um
modelo socialista de reforma agrária, e a um projeto maior que visa a implantar no Brasil o
socialismo e, para isso, a reforma agrária é um importante passo. O discurso do PCB é uma
das bases para as resistências empreendidas por grupos de camponeses que se organizam em
torno do pedido de reforma agrária, como acontece com as Ligas Camponesas. Do mesmo
modo, este combate ao latifúndio e ao que ele representa também são recorrentes nos
discursos dos acadêmicos sem terra.
Importa salientarmos ainda que a preocupação do PCB com o desenvolvimento de
pequenas propriedades, a criação de novos centros populacionais agrícolas e com terras e
águas para desenvolver a agricultura são fatores retomados também pelos acadêmicos em seus
relatos pessoais ao defenderem que não basta fazer reforma agrária, é preciso dar condições
para que os lotes (pequenas posses) possam produzir, uma vez que sem essas condições não
há como o homem do campo permanecer de forma digna na terra. No entanto, o que vemos
em muitos casos no Brasil é a desapropriação de terras já esgotadas pela alta produtividade,
sendo necessários grandes investimentos para que elas voltem a produzir, o que não é possível
aos trabalhadores sem terra. O discurso do deputado também dialoga com discursos futuros
dos sem terra à medida que aponta a preocupação com o meio ambiente, pois esta é uma das
bandeiras dos movimentos sociais rurais, como o MST, que pregam a produção agrícola
aliada à preservação ambiental.
O discurso de Prestes é um elo na cadeia discursiva sobre a reforma agrária no
Brasil. É uma voz emaranhada por outras vozes, consoantes e discordantes. Elas são
retomadas para ora responder, combater e discordar de seus adversários políticos, os quais
querem manter o latifúndio como política agrária no Brasil, ora para concordar e compactuar
com vozes que dão ao seu discurso um grau de autoridade e de confiabilidade, a fim de
convencer os demais deputados acerca da coerência de sua proposta. São várias vozes
sobrepondo-se simultânea e independentemente, mas que estão relacionadas de forma
harmoniosa. O PCB, representado por Prestes, é um novo sujeito na arena de disputa pela
terra. Trata-se de uma força de resistência à política agrária vigente. Com bases nos princípios
socialistas, leva a bandeira da reforma agrária para vários cantos do Brasil, plantando
esperança e desenvolvendo ações que fortalecem os trabalhadores do campo. Isso é visto no
incentivo do PCB à luta das Ligas Camponesas pelo acesso à terra. Consideramos as Ligas
uma contrapalavra aos discursos dominantes de latifundiários, usineiros e políticos
conservadores. Elas demonstram a força da união de foreiros, os quais, mesmo diante de um
106
contexto de limitações e dificuldades políticas, organizam-se para lutar contra o sistema de
concentração de terras e de exploração do trabalhador rural no nordeste brasileiro, como
discutiremos a seguir.
2.2.2 Ligas Camponesas
Como vimos no capítulo anterior, a Constituição Federal de 1946 apresenta um
projeto de redistribuição de terras, mas não um de reforma agrária. Com isso, a crise no
campo entre latifundiários e camponeses somente se intensifica. Os camponeses sentem na
pele a falta de uma política agrária que dê direito a eles de trabalharem a terra, de nela
continuarem, de nela existirem, restando a eles a serem guiados pelas mãos dos latifundiários
e de seus interesses econômicos. Contudo, em um processo dialógico, a voz da Constituição e
daqueles que a reverberam não são as únicas ouvidas. Pelo nordeste brasileiro, observa-se o
som de uma nova voz, a voz dos camponeses organizados, unidos em prol da justa
distribuição de terras. Eles são um dos interlocutores da Constituição Federal de 1946, a qual
tenta silenciá-los e acalmá-los, e, em um processo dialógico, eles ouvem, mas não se calam,
pois em todo ato de comunicação há sempre uma resposta. Na interação com seus opositores,
os outros – latifundiários, políticos, usineiros –, os chamados foreiros (camponeses
nordestinos) formulam contrapalavras aos discursos dominantes, reagindo a elas e
desenvolvendo ações contra elas. A contrapalavra é o surgimento das Ligas Camponesas no
nordeste, resultado da união de foreiros, os quais, mesmo em um cenário de limitações e
dificuldades sócio-políticas, ainda na década de 194032
, organizam-se para representar e
discutir os interesses dos trabalhadores rurais. Esse movimento está na base de movimentos
futuros que lutam pela terra, como podemos ver na fala do coordenador nacional do
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), João Pedro Stedile, na ocasião do
aniversário de 40 anos da Comissão Pastoral da Terra (CPT): “O MST é fruto da experiência
histórica do povo brasileiro das lutas por reforma agrária. O MST se sente neto das Ligas
32 Outros movimentos, como os de Canudos (Bahia) e Contestado (Região do Paraná e de Santa Catarina), já
haviam ocorrido anteriormente, mas este estudo centra-se naqueles que tiveram como objetivo a Reforma
Agrária e que também terão seus princípios lembrados pelos Movimentos Sociais do fim da década de 70.
107
Camponesas e filho da CPT, foi por isso que nós erguemos a bandeira da reforma agrária no
bojo das lutas pela redemocratização do país”33
.
As lutas empreendidas pelas Ligas influenciam, assim, a luta dos movimentos sociais
pela terra a partir da década de 70, como também constituem a identidade dos acadêmicos
sem terra do curso de Ciências Sociais, da UFGD. É um processo continuo da história, em
que os acontecimentos do passado são retomados nas práticas, nos comportamentos, nas
formas de luta e nos discursos dos sujeitos que hoje ocupam o lugar social de militantes pela
terra, pela reforma agrária, pela justiça social antes ocupado pelos foreiros34
nordestinos.
Diante da concentração de terra e da expulsão dos trabalhadores rurais do campo, as
Ligas Camponesas são uma ação responsiva elaborada a partir da relação de alteridade, no
sentido de que são contrapalavras às palavras dos outros, dos latifundiários e políticos. Para
Bakhtin, a palavra é sempre alheia, pois a menor tomada de posição já resulta de um diálogo
com o já-dito e com o outro, por isso a “[...] palavra está sempre carregada de um conteúdo ou
de um sentido ideológico ou vivencial” (BAKHTIN, 2012, p. 95). É na relação entre o Eu e o
Outro que a palavra se posiciona. Ela é “[...] a ponte, o elemento de mediação” (GEGe, 2013,
p. 84) entre os participantes de uma atividade verbal. Nessa relação de interação, a palavra
carrega de um para o outro as ideologias de ambos, o que constitui cada um.
As Ligas Camponesas congregam a voz do campo e a voz do PCB contra as vozes de
oposição à redistribuição de terras. O PCB como um partido político oferece às Ligas um
status de organização e de legitimidade, mesmo que o objetivo do Partido não seja a reforma
agrária, mas uma aliança entre o operário e o camponês, o que possibilita repensar a posse de
terras em relação ao latifúndio.
Uma das primeiras formas de resistência dos foreiros acontece em Pernambuco, em
1954, no município de Vitória de Santo Antão, no Engenho Galileia. Os foreiros não obtêm
respaldo no município, por isso, diante da ameaça e da situação de desamparo legal, já que as
Leis do Trabalho, de 1943, não se preocupam com o trabalhador do campo, os foreiros
buscam ajuda em Recife, tendo como principal objetivo o fim da repressão policial. Conforme
Azevêdo (1982), para reverter a situação é necessário abranger o âmbito da associação e
recorrer ao apoio político e jurídico na capital, pois, no município de Vitória de Santo Antão,
33 Disponível em: <http://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes/noticias/cpt-40-anos/2605-ha-40-anos-
nascia-a-cpt>. Acesso em: 22 set. 2016. 34
Foreiro é o termo utilizado por Morais (1997) e Azevêdo (1982) para se referirem aos camponeses,
trabalhadores rurais.
108
os donos de engenho têm poder político nas mãos. Em Recife, os foreiros recebem respaldo
de personalidades da massa popular, a quem os latifundiários apelidam de Ligas Camponesas
(MORAIS, 1997).
Nesse cenário, o advogado e deputado pelo PCB, Francisco Julião, aceita defender a
causa dos foreiros por perceber que se trata de um grupo organizado, por isso sua primeira
providência é conferir base jurídica à Sociedade Agrícola. Portanto, é necessário utilizar-se de
meios próprios de uma estrutura organizada segundo as bases legais para tornar o grupo de
foreiros reconhecido como uma Sociedade pela Justiça Brasileira. Há um movimento da
ideologia do cotidiano em direção à ideologia oficial, a qual dá oficialidade à Sociedade
criada pelos foreiros. Notamos, então, que na luta pela terra não basta o enfrentamento, a
resistência às forças opositoras por meio de marchas, ocupações e protestos, mas é necessário
estar ancorado por bases legais para que as reinvindicações sejam legitimadas pela Justiça.
Nesse caso, há uma necessidade das organizações da base trabalhadora de buscarem o
respaldo da ideologia oficial, das próprias leis criadas pela classe dominante para continuarem
a luta pela terra. A legalidade, conseguida na Justiça pela Liga, liderada por Francisco Julião,
mostra uma relação entre a Ideologia Oficial e a Ideologia do Cotidiano. Nas palavras de
Bakhtin (2002, p. 118), a Ideologia do Cotidiano é
[...] a totalidade da atividade mental centrada sobre a vida cotidiana, assim
como a expressão que a ela se liga [...]. A ideologia do cotidiano constitui o
domínio da palavra interior e exterior desordenada e não fixada num sistema,
que acompanha cada um dos nossos atos ou gestos e cada um dos nossos
estados de consciência.
Em outras palavras, a ideologia do cotidiano caracteriza-se por um conjunto de
experiências vivenciadas concretamente na vida cotidiana, nos encontros e desencontros
sociais, sendo de natureza social e por isso de caráter relativamente instável. Como afirma
Volochínov (2013, p. 152):
Não se creia que a ideologia do cotidiano seja uma coisa inteira, monolítica,
uniforme em todas as suas partes. Nela devemos distinguir uma série
completa de estratos, desde os mais baixos que se movem e se modificam
mais facilmente até os superiores que são limítrofes diretos dos sistemas
ideológicos.
A ideologia do cotidiano está nas ações dos foreiros, na sua organização diária, nos
interesses em comum e nas reuniões do dia a dia. Como afirma Miotello (2005, p. 169), a
ideologia do cotidiano é aquela que “[...] brota e é constituída nos encontros casuais e
109
fortuitos, no lugar do nascedouro dos sistemas de referência, na proximidade social com as
condições de produção e reprodução da vida”. Por fazer-se no dia a dia, por se formular e
reformular nas interações entre foreiros e entre grupos de foreiros, a ideologia do cotidiano
faz-se nos encontros entre ideias, pensamentos e visões que emergem durante as reuniões e as
conversas familiares, logo não é uma ideologia estabilizada, estagnada. Ao contrário, ela está
sempre em movimento, assim como estão seus sujeitos. No entanto, para garantir seus direitos
e lutar por outros, é preciso acessar a ideologia já estabilizada, reconhecida, obedecida e
materializada nas Leis. É na ideologia oficial que os foreiros buscam o reconhecimento
enquanto uma Sociedade de Agricultores. Eles almejam a formalização, a sistematização, a
estruturação e o conteúdo da ideologia oficial a fim de garantir sua oficialidade e poder
responder aos seus opositores também como um grupo organizado e reconhecido
judicialmente.
Pelo caráter sistemático e formal da ideologia oficial e por representar os interesses
da classe dominante, podemos pensar que ela se impõe à classe dominada, o que para Bakhtin
(2002) é impossível. Isso porque as duas ideologias estão em processo continuo de interação,
uma interfere na outra. Exemplo disso acontece com a Liga dos Galileus que, mesmo
utilizando-se de instrumentos legais, amparados pela Constituição de 1946, para solicitar a
terra do Engenho Galileia, também acentuam a solicitação concentrando-se diante da
Assembleia Legislativa e do Palácio do Governo, a fim de pressionar os deputados a votarem
a favor da desapropriação e do sancionamento por parte do governador, transformando o
projeto em lei. A concentração de um bom número de pessoas no centro político de Recife
demonstra que os instrumentos da união e da organização, próprios da ideologia do cotidiano,
são acionados para que também contribuam para o resultado final dado por instâncias oficiais,
a Assembleia e a Governadoria de Pernambuco.
Percebemos, assim, que o sujeito da classe minoritária, por não estar assujeitado à
ideologia oficial, é capaz de refutá-la, negá-la, admiti-la em parte, pressioná-la, e até mesmo
construir um discurso completamente diferente. Desse modo, ideologia oficial e ideologia do
cotidiano relacionam-se diretamente, de forma que à medida que a ideologia do cotidiano se
alimenta da ideologia oficial, esta também se alimenta daquela. Assim, a ideologia do grupo
minoritário não é sufocada nem anulada pela ideologia oficial, longe disso; ambas convivem,
debatem-se, digladiam-se e interagem. Ainda nessa perspectiva, Pereira e Rodrigues (2014, p.
179) afirmam que a ideologia oficial nutre-se da ideologia do cotidiano, explicando que “[...]
os sistemas ideológicos formalizados, como o da ciência, da moral, da arte, da religião etc.,
110
constituem-se a partir da ideologia do cotidiano e, uma vez constituídos, exercem forte
influência sobre esta, dando-lhe o seu tom”.
A solicitação é atendida, de forma que terras do Engenho Galileia são desapropriadas
em 1959. Esse cenário mostra um maior envolvimento político dos camponeses e uma maior
organização do grupo, o que é consequência do aumento da politização, das mobilizações e
das discussões incentivadas pelas Ligas, as quais já tomam novos contornos nos Estados de
Pernambuco e da Paraíba. Assim, o movimento das Ligas deixa de ser considerado apenas
como defensor de pequenas causas locais para, então, tornar-se um movimento de atuação e
de possíveis mudanças sociais. Isso demonstra que a ideologia não nasce da consciência
individual, já que a consciência adquire contornos e existência nos signos, os quais são
ideológicos e criados por um grupo socialmente organizado. Como afirma Miotello (2006), a
luta pela constituição dos signos efetiva-se na coletividade e não na ação arbitrária de um
sujeito. E acrescenta o autor que “[...] isso faz com que sujeitos e signos se constituam
diversamente, carregados de todos os sentidos que se cruzam nesse embate” (MIOTELLO,
2006, p. 285).
Os camponeses, membros das Ligas, juntamente com o PCB demonstram a força de
um movimento organizado e essa organização é um ponto chave nas resistências
empreendidas pelos movimentos sociais rurais a partir do final da década de 1970. Os
movimentos sociais herdam das Ligas e, também, da Igreja Católica o caráter de organização,
de mobilização, mostrando aos seus militantes a força da união e da organização em favor de
seus direitos. Também esse caráter está presente nos relatos pessoais dos acadêmicos sem
terra, quando eles demonstram as formações, as organizações dos acampamentos e a divisão
de tarefas. Tudo isso constitui esse sujeito acadêmico. As Ligas deixam uma herança aos
movimentos sociais que prova a necessidade de se juntar forças para que as terras ocupadas
sejam desapropriadas, conforme prevê a Constituição. Do mesmo modo, também demonstram
a necessidade da organização judicial, do amparo legal vindo de advogados do movimento.
Tudo isso revela uma rede de forças sociais que se tece em favor da luta pela terra, pois ela
sempre pede esforços.
Ir às ruas de Recife evidencia à sociedade, ao poder público e aos fazendeiros uma
voz silenciada em outros momentos históricos do Brasil, mas que agora soa nas ruas e solicita
seus direitos. Pelos pátios da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco e do Palácio
do Governo ecoam os gritos por “terra” e “reforma agrária”. Notamos que o foreiro vai às
ruas, utilizando-se de uma linguagem das ruas, das praças e dos lugares públicos de onde não
podem ser retirados. Trata-se de formas de linguagem utilizadas pela cultura não oficial para
111
se expressar, como gritos de palavras de ordem e solicitações enfáticas (BAKHTIN, 2013). É
na praça pública que os foreiros concentram sua união e sua organização para demonstrar, ao
poder público, sua força de atuação. Para Bakhtin (2008, p. 131), a praça pública “[...] traz a
marca do caráter não-oficial e da liberdade da praça pública”. Ela “[...] é um lugar da
convergência de tudo aquilo que não é oficial e goza de uma espécie de direito de
‘extraterritorialidade no mundo da ordem e da ideologia oficial’” (PONZIO, 2016, p. 125). O
pátio da Assembleia e da Governadoria, a praça pública e as ruas são lugares para todos, onde
é permitido ao povo ocupar e reivindicar seus direitos. Não há entre os sujeitos ali presentes
uma caracterização de superior ou inferior, já que ali a linguagem é familiar, a coesão existe e
os interesses são os mesmos. O que existe é uma ideologia que os une e que os fazem fortes.
Na praça, coexistem linguagens de entusiasmo, de coragem, mas também é um lugar para os
xingamentos e palavras obscenas. As palavras da praça pública é a palavra de um povo, o qual
externaliza o que sente a respeito da situação vivida. É uma linguagem viva, espontânea que
traduz os sentimentos do povo que grita e reivindica. Como aponta Ponzio (2016, p. 125), a
“[...] linguagem popular apresenta um dos fenômenos mais antigos da língua: a duplicidade de
tom”. Essa ambivalência da linguagem da praça é lembrada por Bakhtin (2002, p. 47) na
imagem das duas faces do deus Jano:
[...] Toda crítica viva pode tornar-se elogio, toda verdade viva não pode
deixar de parecer para alguns a maior das mentiras. Esta dialética interna do
signo não se revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de
comoção revolucionária. Nas condições habituais da vida social, esta
contradição oculta em todo signo ideológico não se mostra à descoberta
porque, na ideologia dominante estabelecida, o signo ideológico é sempre
um pouco reacionário e tenta, por assim dizer, estabilizar o estágio anterior
da corrente dialética da evolução social e valorizar a verdade de ontem como
sendo válida hoje em dia. Donde o caráter refratário e deformador do signo
ideológico nos limites da ideologia dominante.
Ponzio (2016, p. 125) explica que, para Bakhtin, os elogios e as injúrias
[...] não são nitidamente distinguíveis na linguagem; os elogios são irônicos
e ambíguos, e no máximo são injúrias; assim, mesmo estas últimas não são
completamente separadas do elogio, mas, ao contrário, têm quase sempre um
sentido carinhoso e elogiativo.
São nas praças, nas ruas, nas rodovias e nos canteiros do Palácio do Planalto e do
Congresso, em Brasília, à beira das cercas de fazendas, que os militantes dos movimentos
sociais fazem ecoar seus gritos por reforma agrária e por justiça no campo, lembrando a
112
organização das Ligas. E lutar por seus direitos é um direito do povo. Nas palavras de Ihering
(2003, p. 21), um dos maiores juristas alemães do século XIX,
A paz é o fim que o direito tem em vista, a luta é o meio de que se serve para
consegui-lo [...]. A vida do direito é uma luta: luta dos povos, do Estado, das
classes, dos indivíduos. Todos os direitos da humanidade foram
conquistados na luta; todas as regras importantes do direito devem ter sido,
na sua origem, arrancadas àquelas que a elas se opunham, e todo o direito,
direito de um povo ou direito de um particular, faz presumir que se esteja
decidido a mantê-lo com firmeza.
Não há direito sem luta, e isso as Ligas Camponesas já têm conhecimento. A
existência de direitos de hoje faz inferir que alguém lutou anteriormente e, ainda, que um
grupo reivindicou, cobrou, foi às ruas e às praças para lutar mediante a linguagem por seus
direitos e pelo direito dos outros. O direito não é, portanto, pura teoria, mas é uma força viva.
Na Constituição Federal, a desapropriação é uma palavra, mas na boca do povo ela passa a
dar existência a um grupo, a mudar sua vida, a mudar seu futuro, mostrando ser uma palavra
viva que bebe na fonte da vida concreta. Por isso, Ihering (2003) afirma que o direito é um
trabalho incessante tanto do Estado quanto do povo.
E a vida dos foreiros/camponeses/trabalhadores rurais/sem terras mostra essa
constante busca das classes minoritárias e organizadas pelo direito. É por meio dessa luta que
a ideologia do cotidiano influencia a ideologia oficial, como ocorre em Pernambuco e em
tantos outros lugares do Brasil, no sentido de que a Constituição Federal, antes não posta em
prática, agora surte efeito nas vidas dos foreiros nordestinos. Para isso, apresentam ao Estado
suas reivindicações, conseguindo, por meio dos instrumentos que legitimam a ideologia
oficial, a posse das terras do Engenho Galileia, como também demonstram o significado do
signo terra como um “bem social” e um “direito de todos”. Assim, os signos terra e reforma
agrária passam a ser ideológicos, pois o significado está fora deles mesmos. Sem esse
revestimento dado aos signos terra e reforma agrária pelos foreiros, não haveria ideologia de
um grupo. Os camponeses não pensam a terra como “pó”, “solo” ou como mercadoria, ou
seja, como um corpo físico ou como um bem de capital, mas a pensam como “direito”,
“existência”, “subsistência”, fazendo da “terra” um signo ideológico. Já o signo reforma
agrária toma seus contornos no campo da ação e da concretização de desapropriações, isto é,
a reforma agrária é o meio pelo qual os camponeses conquistam seu direito à terra previsto na
Constituição de 1946.
No entanto, a ação dos latifundiários e de usineiros não é passiva diante da decisão
judicial. Pelo nordeste vê-se a utilização de outros mecanismos, não legais, para não perderem
113
suas terras, como expulsão de foreiros e proibição de roçados à beira das usinas, chegando até
mesmo ao assassinato do líder e camponês da Liga Sapé, da Paraíba, João Pedro Teixeira.
Após diversas lutas e conquistas, as Ligas veem o seu maior líder e camponês ser assassinado,
mas não contemplam a punição do mandante (OLIVEIRA, 2007). Assim, a violência é vista
como uma ação costumeira, comum à realidade do campo, o que demonstra como se efetivam
as relações entre as classes e os grupos sociais (TAVARES, 2000). A defesa dos territórios
por meio da violência é conhecida desde a época do Brasil Colônia em que sesmeiros podem
colocar índios na boca de canhões e explodi-los, como já vimos no primeiro capítulo, ou
quando escravos africanos e homens livres camponeses podem ser condenados à morte por
um fazendeiro por não seguirem suas normas. Essas práticas fazem parte da história dos
brasileiros e, principalmente, do nordeste, por ter recebido as primeiras levas de europeus e,
consequentemente, suas atrocidades. Ao fazendeiro é dado esse direito de lutar contra aqueles
que se opõem a ele da forma como ache melhor.
Os discursos da aristocracia são tecidos legitimando as ações violentas, de forma que
homicídios têm sua visibilidade obscurecida pelo peso da dominação. Entre esses sujeitos
estão o fazendeiro, o político e o pistoleiro, o qual executa o “serviço”/assassinato para um
mandante. O pistoleiro é um sujeito construído dentro de relações sociais em que matar é um
serviço para o qual ele é contratado e pago. Dessa maneira, o mandante não suja as mãos e
dificilmente pode ser identificado. A figura do pistoleiro, capanga ou jagunço não fica apenas
marcada nas linhas da história das Ligas, ela chega às décadas posteriores ainda sendo
utilizada para resolver pela raiz os problemas dos latifundiários. Isso é relatado por
acadêmicos sem terra que sofrem ataques de jagunços mesmo depois da desapropriação de
uma fazenda em Mato Grosso do Sul (MS). Na ocasião, para os assentados, tudo parecia
perfeito, pois estão dentro da terra conforme determinação judicial, mas o arrendatário da
fazenda resolve mandar jagunços armados para atirarem contra os assentados, a fim de
intimidá-los. É uma tentativa de homicídio contra as famílias assentadas, em que se conta com
a impunidade herdada dos antigos fazendeiros. Ações como estas nos levam a pensar que ser
proprietário de terras em um estado como Mato Grosso do Sul, altamente marcado pelo
latifúndio, é um instrumento de poder, por isso os fazendeiros não querem abrir mão da
possibilidade de continuar mandando e explorando a terra em favor da reforma agrária, já que
perder terras significa perder o poder. A reforma agrária não tem sentido para os latifundiários
e até mesmo para alguns pequenos agricultores, pois eles se veem ameaçados pela
possibilidade de dividir com outros seus ganhos com a exportação, principalmente, de grãos e
de carne bovina.
114
Os signos terra e reforma agrária têm para cada grupo sentidos diferentes, resultado
de um luta de classes construída ao longo da história. Os sentidos dados à terra pelos
latifundiários estão ancorados na propriedade privada, na geração de renda e na exploração da
terra; já os dados pelos sem terra têm por princípios a coletivização, a divisão e a existência
enquanto sujeito de direito. Já a reforma agrária é concebida pelos fazendeiros como uma
ameaça ao seu poder, à sua situação financeira e uma revolução; para o sem terra, a reforma
agrária é uma forma justa de redistribuição de terra, é um instrumento legal que leva à
realização do sonho de ter um lote.
No que diz respeito ao signo educação no campo¸ importa destacarmos que as Ligas
construíram um projeto de educação política, pois seus membros já percebem que a origem da
educação rural da época está “[...] na base do pensamento latifundista empresarial, do
assistencialismo, do controle político sobre a terra e as pessoas que nela vivem”
(FERNANDES; MOLINA, 2004, p. 62), sendo assim um instrumento de controle por parte
dos fazendeiros. Por isso, este tipo de educação não atendia às necessidades dos foreiros, que
se deparam com uma escola artificializada, adaptada e controlada pelos fazendeiros. Diante
disso, autores como Ribeiro (2010) e Fernandes e Molina (2004) defendem a ideia de que a
análise da organização escolar e da educação do campo deve passar pela formação social do
Brasil.
A Liga Camponesa de Sapé, no estado da Paraíba, transforma-se em um espaço onde
os trabalhadores rurais dispõem de orientação democrática, informação e formação
(XAVIER, 2012). Essa ação educativa é feita em parceria com outras instâncias políticas,
como o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e grupos de jovens católicos. O nordeste vê
sendo construída uma nova imagem do camponês que passa do camponês submisso e
resignado para um sujeito político, o qual organiza greves nas fazendas, comícios, passeatas,
interdições de rodovias e confrontos armados (XAVIER, 2012). Como podemos observar, a
educação do campo tem suas origens nas ideias de educação política da Liga de Sapé. O
pensamento de que a educação seria um instrumento libertador já toma conta, principalmente,
dos líderes da Liga. Nesse caso, o signo educação do campo tem sua origem nas necessidades
políticas, já que os foreiros precisam interagir com outros parceiros e também com seus
opositores, por isso precisam de conhecimentos que a educação rural não dispõe, pois ela
representa uma ideologia dominante e controladora que não se propõe a desenvolver um
pensamento político nos estudantes do campo tampouco um ensino que esteja ligado
diretamente às demandas dos camponeses. A Liga proporciona novos espaços de
aprendizagem aos camponeses, novas formas de aprendizagem e de sociabilidade por meio de
115
assembleias, mutirões e reuniões, em que há espaço para os presentes debaterem os problemas
relacionados ao campo, bem como criticarem a autoridade dos latifundiários e do Estado. Esse
espaço de voz dos foreiros chega às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja
Católica bem como às práticas de formação dos movimentos sociais rurais, surgidos a partir
do final da década de 1970. Desse modo, observamos que o espírito de coletividade é um dos
princípios herdados pelos movimentos religiosos e sociais pela terra das Ligas.
A aprendizagem da leitura e da escrita por parte dos camponeses também é
incentivada, vista como elemento fundamental para despertar a consciência política. Essa
preocupação com a educação não é uma ideia nova, mas dialoga com o universo de
representações que toma conta das esquerdas brasileiras. Acredita-se na luta da razão contra a
ignorância e do progresso contra o passado. É preciso aniquilar a ignorância, a fim de que os
camponeses tenham “luz” para enfrentar os inimigos e para construir uma sociedade mais
justa (XAVIER, 2012).
Outro aspecto da educação destacável é a preocupação com o teor das aulas e com os
professores/monitores. As aulas são preparadas mediante um entendimento com as
autoridades de cada município e no contato com os líderes das regiões, de modo que os
monitores são conhecidos dos líderes (SCOCUGLIA, 2003). Isso demonstra que a educação
do campo já nasce de articulações que pretendem aliar o conhecimento escolar à preparação
política dos militantes. Essa também é uma preocupação hoje dos movimentos sociais, o que é
percebido na organização das escolas, na escolha dos professores e dos conteúdos, pois tudo
deve levar à formação humana. O primeiro princípio pedagógico do MST, Educação para
Transformação Social,
[...] define o caráter da educação no MST: um processo pedagógico que se
assume como político, ou seja, que se vincula organicamente com os
processos sociais que visam à transformação da sociedade atual, e à
construção, desde já, de uma nova ordem social, cujos pilares principais
sejam, a justiça social, a radicalidade democrática, e os valores humanistas e
socialistas (MST, Caderno de Educação n. 8, 1996, p. 6).
Percebemos que o MST não nega a importância da característica política da
educação, concebendo a ela o papel de transformadora da sociedade atual. A educação do
campo herda do processo histórico das Ligas esse caráter político, que defende que as escolas
do campo e as do MST devem ser mais que escolas, por necessitarem se inserir na dinâmica
do Movimento, a fim de que a escola contribua para a formação de sujeitos sociais, os Sem
Terra, os trabalhadores do campo. Logo, o signo educação do campo se constitui da voz das
116
Ligas, bom como dos movimentos sociais contemporâneos. As Ligas também investem na
formação de seus membros com a criação da Escola de Quadros que oferece, dia e noite,
cursos de capacitação política para os militantes, nos quais se estuda história da luta de
classes, noções de economia política, revolução brasileira, organização de tipo leninista,
agitação e propaganda e a prática do funcionamento das organizações de tipo leninista
(MORAIS, 2012). Aqueles que são aprovados nesses cursos, imediatamente, são incorporados
à Organização Política das Ligas, a fim de coordenar de forma clandestina o trabalho da seção
com a Organização de Massas. É possível observarmos que a educação de conteúdos oferece
aos estudantes um conhecimento acerca da razão da luta pela terra. Ter esse conhecimento
torna os militantes mais atuantes bem como mais capacitados para dialogar tanto com seus
companheiros quanto com seus opositores.
A luta das Ligas Camponesas mostra que a reforma agrária no Brasil é um problema
a ser vencido no Brasil, o que faz com que novos interesses políticos surjam. No contexto do
governo de João Goulart, a reforma agrária é concebida pelo grupo do, então, Primeiro
Ministro Tancredo Neves, como uma forma levar a mecanização ao campo e formar
cooperativas. Já para o grupo político de Goulart, a preocupação está com o aumento da
produtividade de grãos. Embora não haja uma preocupação com a democratização da terra, o
projeto de Goulart leva, pela primeira vez, a reforma agrária para as discussões no Congresso
Nacional.
2.2.3 João Goulart e o seu Projeto de Reforma Agrária
As mobilizações por parte dos trabalhadores rurais não param, mostrando a
efervescência de radicalização do homem do campo que se apresenta cada vez mais decidido
e preparado para lutar por melhores condições de vida. As esferas oficiais mobilizam-se por
meio de inúmeros projetos de lei enviados ao Congresso Nacional, assim como por
representações de diferentes órgãos administrativos, como a Comissão Nacional de Política
Agrária, para evitar que projetos sobre a reforma agrária sejam aprovados. É nesse contexto
que João Goulart, em 1961, assume a presidência da república após a renúncia de Jânio
Quadros, apesar de os ministros militares serem contra a sua posse, mesmo tendo o título de
vice-presidente. A fim de acalmar os ânimos e manter a democracia, abalada por um
murmúrio de golpe militar, o Congresso aprova o regime parlamentarista no Brasil. O
117
presidente tem seus poderes diminuídos, uma vez que o poder do presidente é passado para o
primeiro-ministro (NATIVIDADE, 2011).
Desde o governo Vargas já se tem a ideia de que o atraso no campo faz com que a
industrialização no Brasil seja deficitária. Essa visão é contemplada por boa parte do setor
político, em 1960. Nesse contexto, a questão agrária é vista por muitos como um dos
problemas mais sérios, pois separa a sociedade brasileira em duas esferas. De um lado, os
latifundiários, que desfrutam do poder, da riqueza, dos privilégios políticos, sociais e
econômicos, de outro, a população pobre, analfabeta, distante dos grandes centros e
subordinada às leis dos latifúndios. Essa disparidade de direitos faz com que grande parte da
população seja excluída do mercado de bens de consumo, o que não desenvolve a economia.
Desse modo, reorganizar a questão fundiária no Brasil significa não só estabelecer a paz no
campo, mas também desenvolver economicamente o País.
A nomeação do usineiro Armando Monteiro Filho para o Ministério da Agricultura
por Tancredo Neves, Primeiro Ministro, demonstra que as mudanças na estrutura agrária
brasileira não avançam os limites impostos pela classe dominante. O ministro defende
conjugar a distribuição de terras aos trabalhadores rurais com a mecanização do campo e a
formação de cooperativas e quanto à indenização das desapropriações aponta como caminho o
aumento do imposto rural.
Nesse caso, os signos terras e reforma agrária são constituídos de princípios
ideológicos oriundos de uma classe que, relembrando o momento sócio-político das Ligas
Camponesas, objetiva fazer do nordeste um campo industrial, negando as pequenas
propriedades e o trabalho dos foreiros no campo. O signo terra é constituído de valores de
mercado e de capital. Já o signo reforma agrária é revestido de sentidos de racionalização da
terra, já que o objetivo é mecanizar o campo a fim de fazê-lo produzir ainda mais. Desse
modo, observamos que o signo reforma agrária é visto como um instrumento capaz de
mecanizar o campo e torná-lo mais produtivo. Percebemos, mediante os objetivos do ministro
e da classe a qual representa, que os signos terras e reforma agrária demonstram uma
associação indissolúvel entre os princípios ideológicos constitutivos desses signos e a situação
social e política na qual são constituídos. Apesar de o projeto do Ministro da Agricultura do
governo de Tancredo Neves silenciar os movimentos de luta pela terra, os signos congregam a
presença social e a atuação dessa classe em prol de seus direitos, ao negá-los e ao silenciá-los,
tornando o terreno dos signos uma arena. “[...] Nessa arena se defrontam valores sociais de
orientação contraditória, e memórias diversas marcam encontro” (MIOTELLO, 2006, p. 284).
118
Do outro lado está o senador Milton Campos, que, a pedido do presidente João
Goulart, está encarregado de elaborar o Estatuto da Terra. O projeto de Campos não faz
referência a uma reforma constitucional e apresenta preocupação com a produtividade das
terras. Os dois grupos que trabalham simultaneamente em um projeto de reforma agrária não
mostram uma preocupação com os pequenos lavradores ou com os expulsos de suas terras, os
quais são obrigados a morar nas cidades. Desse modo, tratam-se de propostas conservadoras
que têm como objetivo a produtividade da terra e o desenvolvimento econômico do País.
Ao observar essa proposta, fica evidente que os signos terra e reforma agrária
carregam em seu bojo princípios ideológicos de uma classe também conservadora, também
dominante, a qual objetiva fazer da reforma agrária um instrumento para aumentar a
produtividade do campo, contribuir para o avanço da economia e não se preocupa com o
direito do camponês à posse de terra. Como vemos, são as transformações sociais e os
princípios ideológicos que estão refletidos e refratados nos referidos signos. Nessa
perspectiva, Bakhtin (2002, p. 95) salienta que a “[...] palavra está sempre carregada de um
conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial”. Por isso, Miotello (2006, p. 284) afirma
que “[...] estudar a evolução da palavra é compreender a memória das condições sócio-
econômicas refletantes e refratantes nela” (grifos do autor).
Por meio da Lei n. 4.13235
(BRASIL, 1962), a reforma agrária passa a ser concebida
como um instrumento de interesse social, o que garante ao governo defender desapropriações
em prol da sociedade e do desenvolvimento do País. Ao tornar essa reforma agrária uma justa
distribuição de terras, o discurso nega o latifúndio que é sinal da concentração de terras nas
mãos de uma única pessoa. O signo terra tem o valor na lei de propriedade, de um objeto que
pode ser comprado, nesse caso pelo governo. A terra como propriedade, segundo a Lei, é
utilizada para o bem estar social, o que significa fazer do campo um instrumento para
desenvolver a agricultura, diminuir a concentração de renda e a exclusão social. Apesar de
trazer em seu bojo o objetivo de diminuir a desigualdade no campo, o presidente precisa
defender que não se trata de uma reforma radical a ser realizada com retaliação ou
expropriação dos latifúndios. Trata-se de uma ação de compra, por meio de títulos públicos,
de propriedades improdutivas e subutilizadas. O presidente, portanto, nega as ofensivas dos
35 Lei n. 4.132 foi aprovada pelo Congresso e sancionada por João Goulart, em 10 de setembro de 1962. Versa a
respeito da desapropriação de terras por interesse social a fim de promover a distribuição da “[...] propriedade ou
condicionar o seu uso ao bem estar social, na forma do art. 147 da Constituição Federal”. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4132.htm>. Acesso em 15 set. 2016.
119
opositores que consideram a reforma agrária um passo para o comunismo, como ocorre na
Rússia. Ao responder aos seus opositores, o discurso de Jango demonstra que apenas podem
tornar-se signos, adquirir significado e entrar no horizonte social de um grupo, os objetos
valorizados por esse grupo. Para Miotello (2006, p. 285), esses objetos são pertencentes a
qualquer esfera da realidade, “[...] e que entre no horizonte social daquele grupo,
desencadeando uma reação semiótica-ideológica, a partir de embates discordantes e
concordantes levados a cabo por tal grupo organizado”. Assim, são os signos terra e reforma
agrária que se tornam signos por fazerem parte do horizonte social dos grupos que disputam
a posse e a propriedade das terras no Brasil, neste momento histórico. O valor atribuído por
esses grupos aos referidos signos origina-se do valor sócio-econômico-ideológico que o
objeto terra tem para estes grupos. Para que esse objeto entre nessa arena de disputas, é
preciso que ele esteja “[...] ligado às condições sócio-econômicas do referido grupo, e que
tenha a ver com as bases de sua existência material” (MIOTELLO, 2006, p. 285).
De modo geral, o projeto de distribuição de terras do presidente João Goulart não
trata da reforma agrária, mas da “desapropriação”, evidenciando que o projeto do então
presidente pode ser visto como uma caricatura de reforma agrária, não constituindo o seu
verdadeiro sentido, defendido pelas classes de trabalhadores rurais. Não se vê a terra como
um direito de todos, mas como um instrumento que pode diminuir as diferenças sociais e
fazer do campo um mecanismo para desenvolver a economia brasileira.
Nesse momento, notamos que o signo terra veicula dois sentidos, um de meio de
produção de subsistência, de existência, de cidadania, de luta, e outro de meio para alavancar
a economia brasileira, valor de mercado, bem rentável, meio para exercer poder. O signo terra
ilustra o que Bakhtin (2002) chama de comunidade semiótica, neste caso duas sociedades
apartadas, uma de pequenos lavradores e outra de latifundiários/políticos. Podemos entender
que, ao mesmo tempo em que o signo terra ganha um sentido específico entre os lavradores,
já integrando seu código ideológico de comunicação desse grupo, também adquire por parte
dos grandes possuidores sentido de mercadoria, de poder e de acúmulo de capital. Nessa
arena, há índices de valor contraditórios, o que traduz realidades diferentes, de grupos
diferentes.
No governo de João Goulart, não percebemos uma preocupação com a educação do
campo, diferenciada e de qualidade para camponeses e seus filhos. Como veremos na próxima
seção, no início da década de 1960, a Igreja Católica desenvolve ações por meio das CEBs, as
quais estão alicerçadas nas orientações da Teologia da Libertação. Assim, a Igreja volta-se
para o povo e desenvolve diferentes ações que buscam formá-lo política e intelectualmente,
120
por meio de uma educação libertadora mediante cursos de alfabetização para adultos e
formações nas CEBs. Com isso, a Igreja Católica forma líderes dos primeiros movimentos
sociais, como também de partidos políticos de esquerda.
2.2.4 Igreja Católica
2.2.4.1 Teologia da Libertação e CEBs (Comunidades Eclesiais de Base)
Como vimos no capítulo anterior, a Igreja Católica usa de sua influência, com os
fiéis, como representante de Deus, para discursar em favor da aceitação das condições de
exploração e de injustiça que os camponeses vivem. Notamos, assim, que no campo católico
os signos terra, reforma agrária e educação do campo não estão estabilizados, pois dentro da
própria Instituição há um discurso discordante daquele proferido pela TFP e seus
representantes.
Na teoria católica, a voz da Teologia da Libertação emerge por meio de um conjunto
de textos, de ideias de teólogos católicos, que defende o princípio de que a Igreja deve ir ao
povo; conhecer suas demandas; formá-lo e levá-lo à organização para que ele se liberte das
amarras dominantes enraizadas na história da sociedade brasileira. As ideias da Teologia da
Libertação encontram eco na cúpula da Igreja Católica que respalda ações antes não
imaginadas de bispos, padres, e de outros religiosos que se voltam ao povo. O documento do
Concílio Vaticano II e o da II Conferência do Episcopado de Medellin fortalecem o
pensamento da Teologia da Libertação e autorizam as ações práticas das Comunidades
Eclesiais de Bases (CEBs). Com esse respaldo, as CEBs chegam aos bairros periféricos e ao
campo, levando práticas que objetivam formar e organizar o povo a fim de que ele mesmo
possa lutar para resolver seus problemas, desde a falta de água no bairro até a expulsão de
trabalhadores rurais do campo. A voz das CEBs ecoa no surgimento de movimentos sociais
pela reforma agrária, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra (MST) e, também, de partidos políticos, como o Partido dos
Trabalhadores (PT).
A voz da Teologia da Libertação e das CEBs é retomada pelos Movimentos Sociais
pela reforma agrária em seus documentos, discursos, formações, como também constituem os
discursos dos acadêmicos sem terra do curso de Ciências Sociais da UFGD. Por isso, é
fundamental conhecermos e analisarmos, ainda que brevemente, algumas ideias da Teologia
121
da Libertação e da prática das CEBs, pois, quando chegarmos ao Projeto Político Pedagógico
e aos relatos pessoais dos acadêmicos sem terra, teremos um repertório para percebermos
como essas vozes estão presentes e constituem a identidade dos sujeitos em análise.
Ao voltar-se para a realidade do povo oprimido, sofrido e explorado, os pensadores
católicos da Teologia da Libertação36
passam a observar com olhos mais atentos e
preocupados o agravamento das questões sociais no Brasil e na América Latina, assim como
as ações opressivas dos regimes militares atuantes nos países latinos. Esse movimento de
ordem teológica, segundo Löwy (2000), está ancorado em alguns princípios, sendo eles: a
libertação humana como antecipação da salvação final em Cristo, uma nova leitura da Bíblia,
uma forte crítica moral e social do capitalismo dependente, o desenvolvimento de
comunidades de base cristãs entre os pobres como uma nova forma de Igreja e, especialmente,
uma opção preferencial pelos pobres e a solidariedade com sua luta de autolibertação. Como
se pode notar, a Teologia da Libertação nega os conceitos tradicionais da Igreja, defendendo e
trazendo para si o lema da Revolução Francesa: “liberdade, igualdade, fraternidade”.
A Teologia da Libertação apresenta aos católicos que o amar a Deus não significa
apenas contemplá-lo, mas sim servir aos pobres, ao povo de Deus (NORONHA, 2012). O
“[...] serviço solidário ao oprimido significa então um ato de amor ao Cristo sofredor, uma
liturgia que agrada a Deus” (BOFF; BOFF, 2010, p. 15). Notamos que o discurso da Teologia
da Libertação está repleto de ecos dos discursos da TFP, grupo católico que prega a aceitação
da condição dada por Deus. Em uma ação responsiva, a Teologia refuta o discurso de
“aceitação” proferido pela TFP para, então, fundamentar-se no discurso da solidariedade com
o próximo, o oprimido. Assim, a Teologia e seus seguidores assumem uma posição ideológica
que contraria a tradição ideológica da Igreja Católica, a qual por séculos está voltada para os
interesses da classe dominante. Numa perspectiva bakhtiniana, a Teologia, ao se preocupar
com o povo, esquecido e humilhado pela sociedade e visar a que esse povo busque a sua
libertação, assume sua posição ideológica correlacionando-a a uma posição contrária37
, a da
36 Entre seus pensadores estão Frei Betto, Maria Clara Luucchetti Bingemer, Clodovis Boff, Leonardo Boff,
Pedro Casaldáliga, Ignacio Ellacuría, Ivone Gebara, Gustavo Gutiérrez. Esses pensadores foram responsáveis
pela elaboração de um conjunto de textos em que expunham as ideias da Teologia da Libertação. Porém, ela
também é feita pelo povo, tendo como base a fé que transforma a história, estando “intimamente ligada à própria
existência do povo – à sua fé e à sua luta” (LÖWY, 2000). 37 A tensão entre grupos dentro de uma mesma instituição, como a Igreja Católica, é explicada por Bourdieu
(2003, p. 81): “A razão de ser de uma instituição e dos seus efeitos sociais, não está na ‘vontade’ de um
individuo ou de um grupo mas sim no campo de forças antagonistas ou complementares no qual, em função de
interesses associados às diferentes posições e dos habitus dos seus ocupantes, se geram as ‘vontades’ e no qual
122
TFP. Como discorre Bakhtin (2011, p. 297), é “[...] impossível alguém definir sua posição
sem correlacioná-la com outras posições. Por isso, cada enunciado é pleno de variadas
atitudes responsivas a outros enunciados, de doutra esfera da comunicação discursiva”.
A teoria católica é a reposta “[...] à problemática pastoral da Igreja, especialmente
colocada no contexto latino-americano, em que a luta pela libertação constitui uma exigência
fundamental do Evangelho e uma antecipação do Reino de Deus” (CATÃO, 1986, p. 63). A
luta pela libertação demonstra a existência de uma luta de classes: “[...] A história de todas as
sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes. Homem livre
e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e companheiro, numa
palavra, opressores e oprimidos” (MARX; ENGELS, 1998, p. 4). Na arena dessa luta, a Igreja
Católica coloca-se como a responsável pela organização da classe dos desfavorecidos e pelo
empreendimento de ações que denunciam a situação precária dos oprimidos.
Ao trazer para o centro o pobre, o sofredor, o oprimido, a Teologia nasce de um
diálogo entre marxismo – como uma metodologia utilizada para entender as causas das
injustiças sociais por meio da práxis – e cristianismo, demonstrando que não há discurso
novo. Essa aproximação entre os discursos dos teólogos e o do marxismo representa, no
contexto dos apreciadores da Teologia da Libertação, um rompimento das barreiras existentes
entre os fiéis católicos e os movimentos políticos de cunho marxista (MUSZINSKI, 2010).
Entre os pontos de convergência está a crítica ao sistema capitalista, às doutrinas liberais e às
visões individualistas de mundo. Também se encontram quanto ao valor dado à comunidade,
à divisão de bens de forma comunitária e à rejeição à afirmação de que o indivíduo é a base
ética (NORONHA, 2012). As duas tendências também dialogam quanto aos pobres, os quais
são vistos como vítimas da injustiça. Dialogam, ainda, quanto ao universalismo, o qual
norteia para uma visão de humanidade como um todo. Além disso, defendem a esperança de
um reino futuro/lugar que possua justiça, liberdade e fraternidade entre a humanidade toda
(LÖWY, 2000).
Bordin (1987) expõe que a Teologia da Libertação, por centralizar o pobre e
oprimido, está ao lado de Marx e ao lado de Cristo ao mesmo tempo. Assim, a Teologia da
Libertação refuta os discursos do Papa Pio IX, o qual caracteriza a “doutrina do comunismo”
como “nefanda”, conforme visto no capítulo anterior. Para os católicos seguidores da doutrina
define e se redefine continuamente, na luta – e através da luta – a realidade das instituições e dos seus efeitos
sociais, previstos e imprevistos”.
123
Papal, a propriedade privada é um direito natural, dado por Deus a alguns, seguindo a
organização do Corpo Místico de Cristo. Desse modo, o povo não está entre os escolhidos por
Deus para serem “proprietários”, mas sim para serem serviçais. Tendo, assim, uma posição na
sociedade e seguindo a vontade divina, o povo não pode contrariar a sua posição na
sociedade, pois isso é um pecado contra Deus. Em uma ação responsiva, para a Teologia da
Libertação, ao povo, a que tudo é negado, cabe a luta pela sua libertação e pelos seus direitos
por meio de sua própria ação.
A Teologia da Libertação surge da práxis, como anuncia Boff (1980), isto é, pela
ação da fé. Ela é resultado de uma prática que objetiva a libertação. Em busca de uma práxis
com relação à transformação social, a Igreja Católica trilha um caminho rumo ao povo com a
criação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)38
, um movimento que até hoje perdura
nas paróquias. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) (CNBB, Doc. 25, n. 3,
1992, p. 1) conceitua as CEBs como um
Fenômeno estritamente eclesial, as CEBs em nosso país nasceram no seio da
Igreja/instituição e tornaram-se ‘um novo modo de ser Igreja’. Podemos
afirmar que é ao redor delas que se desenvolve, e se desenvolverá cada vez
mais, no futuro, a ação pastoral e evangelizadora da Igreja39
.
Com o lema “Um novo modo de ser igreja”, as CEBs surgem “[...] apresentando
novas perspectivas de ação dentro da Igreja e quando assumidas por importantes setores desta
instituição [...] transformou sua estrutura, renovando-a e colocando-a em contato com a
realidade social e os problemas da sociedade contemporânea” (SOARES, 2009, p. 1). O lema
das CEBs já aponta para uma responsividade ao apresentar “Um novo” modo de ser Igreja, já
que o “velho”, o conservador, o dominante e o elitista (representado pela TFP) não contempla
o ser Igreja.
38 De acordo com Frei Betto (1985, p. 7), as Comunidades Eclesiais de Base são pequenos grupos “organizados
em torno da paróquia (urbana) ou da capela (rural), por iniciativa de leigos, padres ou bispos”. Esses grupos
reuniam-se para ler e refletir a palavra de Deus, como um grupo de base, uma célula eclesial menor, como, por
exemplo, os círculos bíblicos, os clubes de mães (TEIXEIRA, 1988). Também podem ser entendidas como um
conjunto de grupos de uma paróquia, definidos conforme bairro, povoado, assentamento (SCHIAVO, 2009). 39
Disponível em:
<http://www.cnbb.org.br/index.php?option=com_docman&view=document&layout=default&alias=87-25-as-
comunidades-eclesiais-de-base-na-igreja-do-brasil&Itemid=251>. Acesso em: 3 out. 2016.
124
O nascimento das CEBs é explicado por dois fatores correlatos: “[...] a expropriação
da terra e a exploração do trabalho” (FREI BETTO, 1985, p. 8)40
. Os oprimidos que antes
veem na Igreja um lugar para sedar seus sofrimentos, agora enxergam-na como um novo lugar
social, onde é possível refletir sobre a realidade e onde se desenvolvem experiências para a
organização dos trabalhadores rurais contra a estrutura fundiária do Brasil. Fernandes (1994,
p. 61) afirma que as CEBs “[...] foram o lugar social onde os trabalhadores encontraram
condições para se organizar e lutar contra as injustiças e por seus direitos”.
Vários são os documentos católicos que respaldam a atuação das CEBs, de acordo
com Teixeira (1988). Um deles é a Declaração de Medellin que já direciona para uma nova
visão acerca do “povo de Deus” assim como para uma reflexão acerca da estrutura agrária:
Assim como outrora Israel, o antigo Povo sentia a presença salvífica de Deus
quando Ele o libertava da opressão do Egito, quando o fazia atravessar o mar
e o conduzia à conquista da terra prometida, assim também nós: novo povo
de Deus não podemos deixar de sentir seu passo que salva, quando se dá o
‘verdadeiro desenvolvimento’, que é, para cada um e para todos, a passagem
de condições de vida menos humanas para condições mais humanas. Menos
humanas: as carências materiais dos que são privados do mínimo vital e as
carências morais dos que são mutilados pelo egoísmo. Menos humanas: as
estruturas opressoras que provenham dos abusos da posse do poder, das
explorações dos trabalhadores ou da injustiça das transações. Mais humanas:
a passagem da miséria para a posse do necessário, a vitória sobre as
calamidades sociais, a ampliação dos conhecimentos, a aquisição da cultura.
Mais humanas também: o aumento da consideração da dignidade dos
demais, a orientação para o espirito de pobreza, a cooperação no bem
comum, a vontade de paz [...] (BISPOS DA AMÉRICA LATINA, 1984, p.
7).
O discurso dos Bispos da América Latina acena para a heterogeneidade do dizer ao,
inicialmente, fazer referência ao povo de Israel. A saga do povo de Israel passa pela
escravidão no Egito, narrada no livro do Êxodo41
, capítulo 1, quando Moises conduz o povo
oprimido à liberdade.
40 Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/freibetto/livro_betto_o_que_e_cebs.pdf>. Acesso
em: 3 out. 2016. 41
De acordo com o Livro: os egípcios impunham aos escravos “[...] a mais dura servidão, e amarguravam-lhes a
vida com duros trabalhos na argamassa e na fabricação de tijolos, bem como com toda sorte de trabalhos nos
campos e todas as tarefas que se lhes impunham tiranicamente” (BIBLIA, ÊXODO, 1: 13-14). Moisés, líder dos
escravos, pediu ao faraó que libertasse seu povo, mas o rei não aceitou. Por isso, o Egito sofreu com várias
pragas enviadas por Deus (rãs, mosquitos, moscas, úlceras, gafanhotos, chuva de pedras, trevas, morte dos
primogênitos). O povo israelita conseguiu fugir depois de 430 anos de escravidão. O faraó, ao saber da fuga,
empreendeu uma perseguição que acabou à beira do mar Vermelho (BIBLIA, ÊXODO, 14). Diante do levante
egípcio, Moisés clamou a Deus e este disse: “E tu, levanta a tua vara, estende a mão sobre o mar e fere-o, para
que os israelitas possam atravessá-lo e pé enxuto” (BIBLIA, ÊXODO 14, 16). As águas do mar Vermelho
125
O discurso dos Bispos é tecido pela voz da Bíblia, livro sagrado, e pelos
acontecimentos narrados em que Deus salva o seu povo da escravidão, da perseguição e da
opressão. Ao referir-se à saga do povo de Israel, o discurso da Igreja sinaliza que o “povo de
Deus” passa por provas, sofrimentos, mas com Deus é possível vencê-las e que a salvação
está na união do povo. Do mesmo modo, deixa uma lição àqueles que querem oprimir o seu
povo, demonstrada na figura dos egípcios sendo afogados pelo Mar Vermelho.
Vale ressaltar ainda que o discurso aponta que, assim como o povo de Israel é salvo
por Deus, “também nós” somos. Primeiramente, importa destacar que o discurso é elaborado
pela Igreja e dirigido à própria Igreja, como interlocutora e, também, aos fiéis, sobretudo, aos
camponeses que podem ver sua realidade de êxodo do campo para cidade. Verificamos que a
Igreja, em um primeiro momento, prevê assemelhar-se ao povo israelita, aos escolhidos,
colocando-se como um povo também escolhido por Deus e dotado das condições de salvação
dadas por Deus. Além disso, visa a marcar a sua genealogia ligada ao povo de Israel,
caracterizado como um povo escolhido, um povo obediente a Deus e às suas leis. Em um
segundo momento, há que analisarmos a presença do “nós”, o qual se refere ao próprio
enunciador e, também, inclui os interlocutores. Há assim o encontro dessas duas figuras do
discurso: “eu” e o “tu”. O “nós”, ao contemplar um “eu” e um “tu”, inclui o enunciador como
povo de Deus, além de demonstrar que este ‘eu’/enunciador também inclui a coletividade
eclesial, o que sinaliza para um chamamento da própria Igreja para se fazer “povo de Deus”.
Ademais, o uso do “nós” indica um comprometimento da Igreja e de seus membros com os
planos de Deus. Os camponeses também são chamados a fazer parte desse “nós”, ao
assumirem, como a Igreja, o papel de “povo de Deus”.
O discurso dos Bispos também responde ao discurso de seus opositores ao afirmar
que “[...] não podemos deixar de sentir seu passo que salva, quando se dá o ‘verdadeiro
desenvolvimento’”. O passo que salva é o passo de Deus, o que é considerado o “verdadeiro
desenvolvimento”, ao contrário do que pregam o governo militar, a burguesia e os
latifundiários que querem racionalizar o campo em prol do progresso e da alta produtividade.
Para isso, visam a explorar a mão-de-obra dos operários e, também, a expulsar os camponeses
de suas terras. O verdadeiro desenvolvimento é “para cada um e para todos” no sentido de que
não há distinção entre o povo de Deus.
abriram-se e o povo de Israel atravessou enxuto por meio do mar. Depois de o povo de Israel atravessar, Deus
pediu a Moises que estendesse as mãos novamente para que o mar se fechasse, voltando as águas contra os
egípcios. Em seguida, o povo de Israel partiu rumo à terra prometida.
126
O “verdadeiro desenvolvimento” está na “passagem de condições de vida menos
humanas para condições mais humanas” no sentido de que a salvação efetiva-se por meio de
condições mais humanas, as quais são entendidas como manifestações de Deus. Assim,
entendemos que, Deus sendo um ser divino para todos, todos devem gozar das condições
humanas. Visualizamos aí uma valorização do discurso da coletividade, da socialização, e
uma crítica ao capitalismo e à exploração dos operários.
Já entre as ações “mais humanas”, os bispos citam “a passagem da miséria para a
posse do necessário, a vitória sobre as calamidades, a ampliação dos conhecimentos”. Embora
sejam denunciadas condições “menos humanas”, como a falta do necessário, o discurso
almeja o necessário e não o supérfluo, não apresenta que a riqueza da burguesia seja dividida
com o povo, como se ele estivesse cometendo os pecados do “roubar” e do “cobiçar as coisas
do próximo”. Ao contrário, o discurso sinaliza para a necessidade do fim da miséria, como
uma passagem, para que o povo possa ter o que é necessário. Além disso, o discurso defende
o fim das calamidades sociais, isto é, da exploração da mão-de-obra, da falta de direitos, da
falta de reforma agrária; condições necessárias ao povo. O discurso também traz à cena a
necessidade de conhecimento, pois, como defendem as CEBs, é ele que leva à observação do
problema da comunidade, ao julgamento desse problema e à ação para resolvê-lo, isto é, o
conhecimento leva o povo à libertação.
O discurso traz à cena discursos anteriores a respeito da saga do povo de Israel,
narrada no Antigo Testamento da Bíblia (livro de Êxodo) e, ainda, apresenta a classe
minoritária e o próprio clero como interlocutores, os quais são chamados a serem o novo povo
de Deus. Além disso, ao trazer para a arena do discurso os dizeres de seus opositores,
responde-os, desafia-os e contraria-os. Ademais, o discurso católico também se orienta para o
povo, os fiéis, os trabalhadores, o clero católico, sendo elaborado para ir ao encontro daqueles
que o sucedem na cadeia verbal. Tudo isso demonstra que todo enunciado “[...] procede de
alguém [...]” e ao mesmo tempo “[...] se dirige para alguém [...]” (BAKHTIN, 2002, p. 113).
Por meio da autoridade concebida pelo discurso bíblico da história do povo de Israel,
o enunciador já estabelece um contrato com o outro/o clero/agentes
pastorais/comunidade/opositores, de forma a pensar a sua reação-resposta diante de tal
enunciado, o que demonstra a influência que o interlocutor tem na constituição do enunciado:
[...] Os outros, para os quais meu pensamento se torna, pela primeira vez, um
pensamento real (e, com isso, real para mim), não são ouvintes passivos,
mas participantes ativos da comunicação verbal. Logo de início, o locutor
espera deles uma resposta, uma compreensão responsiva ativa. Todo
127
enunciado se elabora como que para ir ao encontro dessa resposta
(BAKHTIN, 2000, p. 320).
O diálogo com as perseguições contra os cristãos desvela como eles resistem e
defendem sua fé. Desse modo, os agentes pastorais das CEBs veem-se como esses cristãos
que resistem, embora enxerguem muitos de seus companheiros serem mortos na fogueira do
regime militar42
.
Uma das ações das CEBs é quanto à expulsão dos posseiros, na qual teve o papel de
criar ou fortalecer as maneiras autônomas de organização dessa classe, sem que para isso
necessitem do Estado ou da Igreja. Logo, a palavra “libertação” tem destaque nos cânticos, na
meditação da Bíblia e no plano de ação. Esta palavra refere-se a uma mudança de consciência
social reformista para uma consciência de transformação social e de modificação do modo de
produção capitalista (FREI BETTO, 1985).
A presença das CEBs no campo é destacável, pois os trabalhadores rurais enxergam
nelas um referencial ideológico. Ademais, o camponês por sua religiosidade leva muito em
consideração as palavras dos religiosos, de forma que a palavra da Igreja é a palavra de Deus.
Isso pode ser percebido nos relatos de experiências dos acadêmicos sem terra, ao relatarem
suas experiências religiosas, como dedicação aos dias santos, as idas à igreja, as promessas.
Para os trabalhadores rurais participantes das CEBs, Deus cria a terra para todos os
seus filhos e ela deve estar com aqueles que nela querem trabalhar. Essa premissa norteia as
ações das comunidades rurais e faz com que lutem contra o avanço do capitalismo no campo e
contra os projetos das empresas multinacionais. Observamos que o signo terra é revestido por
uma ideologia carregada de sentido religioso, de modo que a terra não é vista como sendo
propriedade privada, mas como sendo de “todos” por pertencer a Deus, o Pai de todos.
Diferentemente da ideia defendida pela TFP, os filhos de Deus não devem contentar-se com a
42 Com a decretação do Ato Institucional n.º 5, em 1969, o qual marcou o auge das atrocidades do regime militar,
os cristãos católicos, os agentes pastorais e, sobretudo, a Igreja sentiram o golpe da perseguição. Exemplo disso
ocorreu ao saberem do assassinato de um dos auxiliares de Dom Helder. Primeiro, o funcionário foi sequestrado
e, depois, martirizado, sendo seu corpo exposto à rua pelos assassinos (SADER, 1988).
De acordo com Sader (1988, p. 147), um caso como este teria ocorrido com agentes comunitários atuantes (o
padre Giulio Viccini e a assistente social Yara Spadini), na região sul de São Paulo, os quais foram presos “sob a
acusação de terem distribuído panfletos denunciando a morte do operário Raimundo Eduardo da Silva, que se
encontrava preso no Hospital Militar de São Paulo”. Essas ações atribuídas ao Estado demonstravam o objetivo
de os militares em decepar a Igreja; “é o Estado tentando a todo custo desativar as mediações sociais e políticas”
empreendidas pela Igreja em prol das minorias (MARTINS, 1985, p. 121). Nesse contexto, destaca-se a figura de
Dom Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo. Ao saber da prisão dos agentes pastorais, protesta e reclama do
regime militar, levando para seu discurso os direitos humanos como tema insistente. Também em São Paulo, em
1975, a tortura e a morte do jornalista Wladimir Herzog foram duramente criticadas pela Igreja.
128
desigualdade social, mas devem lutar para que ela desapareça, pois isso é viver o Evangelho.
Eles não se perguntam se a luta por meio do Evangelho é violenta ou não violenta, contudo
sabem dos seus desafios e das suas necessidades (FREI BETTO, 1985).
Das CEBs surgem movimentos sociais urbanos43
, movimentos sociais rurais, partidos
políticos, sindicatos, dentre outros setores da sociedade que lutam contra as mazelas sociais e
a opressão do sistema. Além de viabilizar meios para que líderes surjam das comunidades e
subsidiar com estrutura administrativa as comunidades, a Igreja também oferece legitimação
teológica para os anseios do povo. A Igreja, por ser uma instituição milenar que representa
Deus na Terra e por denunciar as misérias do povo, abre caminhos para a legitimação desses
movimentos surgidos nas CEBs. Assim, ouve-se a voz do povo por ele mesmo ou pela própria
Igreja que é o instrumento para a voz da comunidade. Desse modo, a ideia de que o povo faz
parte do Corpo Místico de Cristo, sendo os membros inferiores por vontade divina, não é mais
aceita, de forma que a Igreja sacramenta as necessidades da população, os anseios por
mudança social, tornando-se um lugar onde novas personagens sociais surgem. Porém, essa
relação entre clero e povo não afeta apenas a população, mas também muda a dinâmica do
clero e de seu próprio discurso. Desse modo, o povo realiza reflexões e tem acesso à
alfabetização e a treinamentos, e o clero também incorpora, por meio de seus agentes
comunitários, o vivido pelo povo e realiza ações para fora dos muros das igrejas. A Instituição
também aprende vivendo junto ao povo, “[...] pensado não apenas como o ‘gentio’ a ser
convertido, mas também (ou sobretudo) como encarnação do Espírito, cuja religiosidade
espontânea é valorizada como premissa para a atividade pastoral” (SADER, 1998, p. 163).
As CEBs, que visam à libertação do povo, visualizam na educação o caminho para
que se alcançasse este direito. Por isso, elas organizam grupos que, além de cantar e rezar,
discutem os problemas e as dificuldades. O fio condutor das reuniões é a coletivização dos
problemas, a conversa em grupo, o que é uma característica dos movimentos sociais pela
reforma agrária desenvolvida hoje em suas formações e congressos. Também esse caráter está
presente na organização do curso de licenciatura em Ciências Sociais da UFGD, pois é um
curso pensado primeiramente pelos movimentos sociais rurais de Mato Grosso do Sul e
depois levado à Universidade Federal da Grande Dourados. Além disso, a coletividade marca
43 As CEBs abriram caminhos para que as mulheres atuassem nas bases. Assim, desenvolveram-se organizações
de mulheres, clubes de mães, associações de bairro, o que contribuía para uma reflexão a respeito da condição da
mulher na sociedade e na igreja. Mediante essas reflexões as mulheres puderam se organizar para solicitar
melhores condições de vida como trabalho, escola, creches, postos de saúde, e mais direitos.
129
a organização das atividades dos professores e dos alunos, como veremos na análise do
Projeto Político Pedagógico do Curso e nos relatos pessoais dos acadêmicos sem terra.
O método utilizado pelas CEBs para levar os sujeitos à reflexão, segundo Frei Betto,
é o ver-julgar-agir. Com esse método, pretende-se “[...] efetuar uma reflexão crítica e voltada
para a prática, de modo que as privações vividas deixem de ser consideradas como
fatalidades” (SADER, 1998, p. 159). Os problemas são vistos durante o vivido nas
comunidades. Depois de diagnosticados são levados para o debate nas reuniões, quando serão
julgados. Ao tecerem suas opiniões, os participantes refletem, muitas vezes, acerca das
representações dominantes sobre o assunto, o que é feito tendo como base a palavra de Deus.
O agir está na ação planejada durante as reuniões, trata-se do momento em que as pessoas
pensam em ações possíveis de serem realizadas para contribuir para o fim do problema,
mesmo sendo uma ação pequena. Pensa-se a forma concreta para enfrentar o desafio, como a
organização de mutirões e a elaboração de abaixo-assinados. Alguns dos problemas debatidos
não são resolvidos de imediato, como os casos de expulsão de posseiros que podem levar
dias. Por isso, Frei Betto (1985, p. 10) aponta que “[...] cada reunião é um momento de avaliar
a resistência dos posseiros e combinar as próximas etapas da luta”.
Com o aparelhamento e a participação da comunidade nas discussões dos problemas
– método utilizados pelas CEBs – líderes, não no sentido de comandantes, mas de lideranças
mais coletivas que individuais, sendo flexíveis e representativas das bases. Um dos métodos
utilizados para formar líderes é o treinamento constante, momento em que há reflexão,
quando o agente pastoral (padre, religioso) transmite aos membros conhecimentos adquiridos.
Frei Betto relata que o trabalho das CEBs objetiva que o povo possa assumir uma consciência
de libertação e realizá-la, ele mesmo, sem intermediários, por meio de setores organizados. Ir
ao povo não significa, porém, levar ao povo “coitado” e “ignorante” o conhecimento
acadêmico, o qual se precisa ter para se libertar. Isso seria mais um capítulo do colonialismo.
A realização prática dessa estratégia erudita com o povo não teve êxito em outras
oportunidades, pois ele próprio em seu silêncio responde que se trata de mais um equívoco.
Durante os treinamentos, os militantes são levados a aprofundarem-se em assuntos
como funcionamento da sociedade, uso da Bíblia, entendimento sobre capitalismo, história
das classes operárias, política, fé, política agrária. Utilizam-se da expressão oral e corporal.
Conseguem, assim, apreender ideias, além de desenvolver disciplina e emoção. A dinâmica de
grupo também dá voz a todos os membros e oportunidade para que falem e sejam ouvidos e,
ainda, permite evitar a relação fechada entre educador e educando. Assim, o próprio grupo
lança os temas e, nas discussões, se descobre que se sabia muito a esse respeito.
130
No ano de 1971, equipes de “educação popular” foram constituídas na periferia de
São Paulo, a fim de promover a alfabetização por meio do método de Paulo Freire, que é
proibido no regime militar por apresentar importantes reflexões a respeito dos sujeitos postos
à margem da sociedade do capital. A educação popular, conforme Freire e Nogueira (1993, p.
19): é o “[...] esforço de mobilização, organização e capacitação das classes populares;
capacitação científica e técnica”, tendo uma conotação política, como também é um processo
continuo de “[...] permanente de refletir a militância; refletir, portanto, a sua capacidade de
mobilização em direção a objetivos próprios. A prática educativa, reconhecendo-se como
prática política, se recusa a deixar-se aprisionar na estreiteza burocrática de procedimentos
escolarizantes” (FREIRE, 2001, p. 34).
Paulo Freire defende que toda educação é política. Por isso, vê a educação então
vigente nas escolas brasileiras como um instrumento político para disseminar e perpetuar
valores e princípios de uma determinada visão de mundo e de sociedade, a dominante. Numa
perspectiva dialógica, a concepção de Freire para educação não é nova, mas dialogicamente
está ligada aos princípios defendidos pelas Ligas Camponesas, na década de 1940, pois a
educação popular é um movimento pedagógico voltado ao povo como um instrumento de
libertação e de conscientização (ARROYO, 2004). Nas palavras de Paulo Freire (1975, p. 22):
“[...] nenhuma prática educativa se dá no ar, mas num contexto concreto, histórico, social,
cultural, econômico, político, não necessariamente idêntico a outro contexto”. Para Paulo
Freire, inicialmente, como apresenta Ghiggi (2010), a educação é um instrumento de
transformação revolucionária da sociedade, mas ele sabe que o Estado nunca promoverá uma
revolução contra si mesmo, o que condena a educação brasileira à opressão. A respeito da
relação entre educação e revolução, Chambat (2006, p. 42) declara que pela
[...] força das coisas, educação e revolução não se sucedem no tempo, mas se
superpõem num processo dinâmico e dialético (uma nutre a outra
reciprocamente). A educação liberta o indivíduo das opressões ideológicas
que o aprisionam e o retêm na resignação, tornando-o receptivo à urgência
revolucionária.
No sentido de revolução, a educação possibilita às camadas desfavorecidas a
passagem da opressão à libertação, assim como leva a uma superação do modo de produção
capitalista. Esse princípio é retomado pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST)
como norteador da luta pela igualdade social, pois, para eles, a ignorância é uma das cercas a
serem vencidas. Sem conhecimento, o trabalhador sem terra tem limitações para lutar pela
terra e pela permanência nela. O MST, a CPT, dentre outros movimentos sociais rurais, assim
131
como os acadêmicos sem terra da UFGD e professores do curso sabem que educação é poder
e liberdade, já que proporciona cultura, conhecimento e informação, o que é fundamental para
que os sem terra se relacionem com outros sujeitos. A educação libertária proporciona o livre
desenvolvimento das capacidades de os sujeitos sociais desenvolverem sua autonomia e sua
liberdade.
Paulo Freire entende que as classes menos favorecidas detém um conhecimento
historicamente acumulado não valorizado pela escola tradicional e, consequentemente, pela
sociedade. Seu pensamento leva em consideração que a educação deve partir do
conhecimento do povo e com o povo realizar uma leitura da realidade segundo sua ótica, o
que ultrapassa os limites das letras, das cartilhas e se constitui nas relações históricas e
sociais. Na perspectiva de Paulo Freire, o oprimido deve sair da condição de opressão por
meio da consciência de classe oprimida.
Segundo o método da educação popular, aprender a ler e a escrever deve estar
vinculado ao uso real desses instrumentos, levando a um despertar crítico do educando. Desse
modo, ler e escrever são ações que se efetivam vinculadas “[...] à tomada de consciência das
condições de vida e à elaboração coletiva de projetos de auto-organização” (SADER, 1988, p.
148). O método de Paulo Freire é marcado pela pressuposição do “saber popular”, o qual
necessita de categorias para ser elaborado, o que se opõe a uma concepção de educação como
transmissão de conhecimentos ou como simples inculcação de um conhecimento em um ser
humano ignorante. Os pressupostos de Paulo Freire dialogam com os movimentos sociais
rurais por rejeitar uma educação virtual, neutralizadora e cristalizadora, cujo objetivo é
favorecer as classes dominantes, o que contraria aos princípios dos movimentos sociais rurais.
Esses movimentos pretendem reelaborar a educação tradicional, o que obriga as instituições a
refletirem a respeito da formação de professores, do currículo escolar, da participação da
comunidade e dos movimentos na vida da escola (ARROYO, 2004).
A Teologia da Libertação e as CEBs constituem a base de formação política e
intelectual para o surgimento dos primeiros movimentos sociais rurais, CPT e MST, como
discutiremos a seguir. Por meio de uma teoria que orienta a Igreja e seus fiéis a se voltarem
para o povo oprimido, a Teologia da Libertação abre portas para uma educação libertadora
que, como vimos, busca criar caminhos para que o próprio povo, livre, lute por seus direitos.
As orientações da teoria católica se efetivam na prática das CEBs, que se aproximam da
comunidade e levam para os fiéis a oportunidade de enxergar, discutir e buscar soluções para
seus problemas. Com isso, a Igreja colabora para a formação, no final dos anos de 1970, dos
movimentos sociais rurais, como CPT, pastoral católica voltada para a defesa dos direitos dos
132
trabalhadores rurais, e do MST, movimento social rural expressivo que nasce da união de
trabalhadores rurais em prol da terra como direito. Esses movimentos sociais apresentam
estratégias diferentes para lutar pela terra, mas têm em sua gênese a formação política e
intelectual como formas de libertar o trabalhador rural das amarras da opressão, da exploração
e da ignorância.
2.2.5 Movimentos Sociais Rurais: CPT e MST
O final da década de 1970 testemunha o ressurgimento dos movimentos sociais
rurais no Brasil, os quais estão adormecidos em decorrência das violentas ações do governo
militar. No entanto, nesse período de menor visibilidade, há um investimento em sua
formação e organização devido à aproximação com a Igreja Católica e com os princípios da
Teologia da Libertação. Como sabemos, vários são hoje os movimentos sociais rurais, mas,
neste estudo, destacaremos dois deles: a CPT e o MST por terem maior representatividade
entre os acadêmicos sem terra do curso de Ciências Sociais da UFGD. O surgimento desses
movimentos sociais rurais traz à cena uma contrapalavra ao modelo fundiário no Brasil.
Mediante a criação desses movimentos sociais ocorre o embate entre vozes adversárias. O
outro entra na fundação desses movimentos rurais, porque suas ações, estratégias, discursos
serão combatidos pela CPT e pelo MST. Vamos perceber que a identidade desses movimentos
é construída na alteridade, pois ela não se constitui por si só, mas a partir do outro – Estado,
latifundiário, políticos contrários, multinacionais. É um encontro de vozes contrárias que
demonstram que o problema da terra no Brasil está vivo e atinge milhares de trabalhadores
sem terra. Os movimentos sociais rurais entram na cadeia de discursos sobre a terra no Brasil,
não efetivando uma ruptura, mas demonstrando que a cadeia não se quebra, apenas novos
atores adentram, com seus posicionamentos ideológicos, sem deixar de se relacionar com os
discursos anteriores e com os sentidos já construídos e do mesmo modo também interagem
com os discursos do futuro. É como assegura Bakhtin (2011, p. 410):
[...] Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o
contexto ideológico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem
limites). Nem os sentidos do passado, isto é, nascidos no diálogo dos séculos
passados, podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por
todas): eles sempre irão mudar (renovando-se) no processo de
desenvolvimento subsequente, futuro do diálogo.
133
Da CPT nasce o MST, movimento rural oficializado em 1984 que se destaca no
cenário nacional por uma gama de estratégias para fomentar a luta pela terra. Com o MST, o
Brasil vê a implementação de acampamentos às margens de rodovias, também visualiza a
ocupação de latifúndios, as marchas e os seminários. O Movimento mostra que está em
constante mudança e atualização de suas causas. Inicialmente, a luta é por reforma agrária,
contudo o tempo e as experiências vividas mostrarão que apenas reforma agrária não resolve
os dilemas dos trabalhadores sem terra. É preciso, então, erguer outras bandeiras, como a da
educação, da saúde, do crédito bancário. É uma luta contra a concentração de terras, contra a
concentração de capital e contra a ignorância.
As ações do Estado, dos políticos e dos latifúndios somente se intensificaram com o
passar dos anos, de modo que os movimentos sociais rurais perceberam que se não fossem um
movimento de massa que demonstrasse a coesão e a força da união de milhares de pessoas,
eles são banidos do cenário politico social do Brasil, como já havia acorrido com outros.
Desse modo, os movimentos sociais rurais, CPT e MST, empreendem lutas que respondem a
esse passado de exploração e opressão do povo do campo. Suas ações já serão pensadas como
atos responsivos aos atos dos adversários que há anos impedem a elaboração de uma política
fundiária de distribuição justa de terras no Brasil. Diferentemente das Ligas Camponesas que
objetivam ficar na terra, movimento do qual o MST se considera herdeiro, a luta agora é por
entrar na terra improdutiva, na terra das multinacionais, na terra de latifúndio.
Com os movimentos sociais nascem novos atores, novos sujeitos que de “posseiros”,
“camponeses”, “trabalhadores rurais” identificam-se e são identificados como “sem terra”, os
quais em suas lutas incorporam os acampamentos e os assentamentos como formas de lutar
pelo direito à terra livre e ao trabalho liberto. Seus discursos não são novos, mas são
articulados, pensados com discursos do passado e do futuro, a fim de colocar-se como uma
nova personagem da luta pela reforma agrária no Brasil. Por isso, mostrar, ainda que
brevemente, neste estudo, como eles surgem e em que contexto surgem, é fundamental para
entendermos os discursos seguintes à sua criação: os seus, o de seus militantes e os dos
opositores. É com esse contexto de criação dos movimentos sociais rurais, de suas ações,
bandeiras e filosofias que os relatos dos acadêmicos sem terra do Curso de licenciatura em
Ciências Sociais dialogam e tecem os fios da identidade dos acadêmicos do referido curso.
São novos atores e novos sujeitos que surgem no palco das reinvindicações por terra, fazendo
ecoar múltiplas vozes. Seus discursos e suas ações serão atos responsivos contra a lógica do
capital que, como um rolo compressor, esmaga tudo o que está no rumo da acumulação e de
sua reprodução ampliada.
134
Segundo Touraine (2006, p. 175), o movimento social é “o ator de um conflito,
agindo com outros atores organizados, que lutam pelo uso social dos recursos culturais e
materiais, aos quais os dois campos atribuem, tanto um como outro, uma importância central”.
É possível perceber que os movimentos sociais trazem para a cena uma condição já
experimentada pelas Ligas Camponesas: a força da união. Uma voz não ecoa por muito
tempo, mas várias vozes ecoam, sustentam uma a outra, fazendo com que a coesão seja vista
como não como uma identidade individual, mas coletiva, o que demonstra força, legitimidade,
poder. Por isso, Picolotto (2007, p. 47) salienta que: “[...] são fundamentais na definição de
um movimento social os processos de constituição de identidade, a manifestação de um
conflito com um adversário e a afirmação de um projeto de futuro”. Como afirma Bakhtin, a
identidade se constitui na alteridade, mediante o outro, o outro companheiro, o outro
adversário, o outro Estado. Caracterizado muito mais como uma rede de solidariedade que
como um movimento classista, a identidade coletiva sobressai-se por demonstrar
legitimidade, coesão, resistência, projeto, poder (MELUCCI, 2001). As relações de troca, de
interação, de conflito, de negociação tecem a identidade dos movimentos sociais no final da
década de 1970.
Os movimentos sociais rurais nascem do processo de luta do próprio campesinato no
sentido de que o trabalhador rural deixa a posição de oprimido para assumir um significado
próprio de existência. Um discurso de resistência, de libertação e de autonomia ecoa contra o
discurso dominante, assim como objetiva Teologia da Libertação. É a voz dos trabalhadores
do campo que voltam a se reunir como fazem os membros das Ligas Camponesas; as famílias
organizam-se em núcleos, nos acampamentos e nas mobilizações, para discutir a produção, a
educação, as demandas da comunidade, como pregam as CEBs. Desses núcleos surgem os
líderes – coordenadores e coordenadoras – das ações a serem desenvolvidas.
Para Martins (1991), a luta pela terra desenvolvida pelos movimentos sociais rurais é
mais do que a luta pela “reforma agrária” ou “pela propriedade da terra”. Segundo o autor,
essa é uma luta pela terra, é uma luta pela vida, não pelo pedaço de terra, mas da terra como
instrumento da luta pela vida, não em termos materiais, de ter comida, ter casa. É uma vida
plena, uma vida cheia de significado, de direitos, uma vida em que aquilo que as pessoas
acreditam tem possibilidade de continuar sendo respeitado e existindo. Assim, novos sentidos
são incorporados ao signo terra, que, nessa perspectiva, ganha contornos de existência.
Os movimentos sociais rurais lançam uma contra-palavra no cenário nacional contra
a falta do que eles consideram uma política para distribuição de terras. Estando cercados de
signos, sendo constituídos por eles e os constituindo. Os movimentos sociais estão carregados
135
de palavras para o diálogo com seus opositores e militantes. Essas palavras possibilitam a
compreensão dos discursos que circulam no meio social. São palavras do MST ou da CPT,
mas também são palavras de outros:
É preciso vir carregado de palavras para o diálogo com o texto. E essas
palavras que carregamos multiplicam as possibilidades de compreensões do
texto (e do mundo) porque são palavras que, sendo nossas, são de outros, e
estão dispostas a receber, hospedar e modificar-se face às novas palavras que
o texto nos traz. E estas se tornam por sua vez novas contra palavras, nesse
processo contínuo de constituição da singularidade de cada sujeito, pela
encarnação da palavra alheia que se torna nossa pelo nosso esquecimento de
sua origem (BAKHTIN, 1974, p. 405-406).
A CPT, como uma pastoral católica, tem como base a Doutrina Social da Igreja, que
orienta para uma postura que procura responder aos problemas sociais. Seus princípios
alicerçam-se nas escrituras, na fala dos profetas, principalmente, no Evangelho, sem deixar de
dialogar com teorias e movimentos populares. Como apresentaremos a seguir, seu projeto
social é de cunho político-religioso, pois, ao mesmo tempo busca justiça social, caridade,
fraternidade e doação. Ela é fundamental para a criação do MST, o qual recebe dela
princípios, práticas e formação para empreender a luta contra as cerca do latifúndio, da
ignorância e da exploração do trabalhador rural.
2.2.5.1 CPT (Comissão Pastoral da Terra)
No campo, no final da década de 70, o latifúndio continua a se espalhar e a
agricultura a se mecanizar. A fim de intensificar as ações contra essa estrutura social e
fundiária, as pastorais católicas organizam os religiosos por meio de pastorais, como pastoral
da terra, pastoral familiar, pastoral da juventude, dentre outras. Nesse cenário, nasce, durante
o Encontro de Pastoral da Amazônia, convocado pela CNBB, a Comissão Pastoral da Terra
(CPT), em Goiânia (GO), em 1975.
A CPT é uma pastoral católica que não se afirma como um movimento social rural,
mas como uma Pastoral. Nos assentamentos e acampamentos, viabiliza formação político-
religiosa, assessoria jurídica, mediação de conflitos com o Estado e, também, divulga e
implementa projetos de desenvolvimento econômico nos assentamentos e realiza debates com
estudiosos do meio cientifico e dos movimentos populares. Com esse trabalho, é expressivo o
136
número de trabalhadores sem terra que fazem parte da CPT como movimento social rural. É o
que ocorre com boa parte dos acadêmicos sem terra.
A atuação da CPT leva sempre em consideração a conservação de um núcleo básico
de valores contidos na Doutrina Social da Igreja, que se trata de uma postura que procura
responder aos problemas sociais, tendo como princípios as escrituras e a fala dos profetas,
como também desenvolvendo um diálogo com teorias e movimentos populares (FERREIRA,
2009). Por isso, o projeto da CPT é de cunho político-religioso, pois ao mesmo tempo busca a
justiça social, a caridade, a fraternidade e a doação. Segundo a Comissão Parlamentar Mista
de Inquérito (CPMI)44
da Terra (BRASIL, 2007, p. 109), “[...] a CPT tem acompanhado os
trabalhadores em sua luta por terra, além de denunciar a violência no campo e afirmar a
necessidade da reforma agrária como solução para os conflitos no campo”. Pelo fato de ser
uma pastoral e não fazer parte do conflito, seu objetivo é mediar as relações entre os
trabalhadores rurais e o Estado, tendo como principais tarefas: “Traduzir em linguagem
popular o Estatuto da Terra e a Legislação Trabalhista Rural para que o trabalhador tivesse
consciência dos direitos que a lei lhes garantia” e “Promover campanha em favor dos direitos
dos sem terra”45
(CPT, 2015). Poletto (1985, p. 134) afirma que a ideia de não servir como
coordenação é fundamental, mais ainda “[...] a idéia de colocar-se a serviço de uma causa que
não é dos participantes, nem exclusiva dos camponeses cristãos, mas uma causa dos
trabalhadores rurais”.
A Igreja juntamente com os religiosos da CPT e seus participantes têm na Bíblia sua
fonte para alimentar a luta pela terra, já que, segundo o livro de Levítico, Deus disse: “A terra
não se venderá para sempre, porque a terra é minha, e vós estais em minha casa como
estrangeiros ou hóspedes” (BIBLIA. LEVÍTICO, 25: 23, p. 170). Conforme os princípios
bíblicos, a terra não teria outro proprietário a não ser Deus, de forma que todos os seus filhos
têm o direito de habitá-la e dela tirar seu sustento, sem, no entanto, fazer dela uma
mercadoria, um bem de capital que poderia ser vendido. Todos são habitantes “estrangeiros” e
“hóspedes” na terra de Deus, o que implica entender que não há ligação entre o homem e a
terra, mas sim entre terra e Deus. O signo terra ganha contornos religiosos, pelo fato de ser de
propriedade de Deus. Trata-se de uma das dádivas de Deus posta a serviço de todos os seus
filhos e não de alguns. O signo tem a conotação de “dádiva divina” dada aos filhos de Deus.
44 CPMI - Comissão Parlamentar Mista de Inquérito. Grupo formado por representantes do Senado Federal e
da Câmara dos Deputados com o objetivo de investigar supostas irregularidades no setor público. 45
Disponível em <http://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes/noticias/cpt-40-anos/2605-ha-40-anos-
nascia-a-cpt>. Acesso em: 10 out. 2016.
137
Assim, observamos que o caráter do signo terra para a CPT é diferente daquele apresentado
pela TFP que defendia que os camponeses devem aceitar a estrutura do corpo místico de
Cristo, sendo os membros e não a cabeça.
Ao proteger o direito à terra, a CPT defende o lema “terra para quem nela trabalha”
no sentido de que a terra seria um espaço de trabalho para aquele que dela tirasse seu sustento.
Assim, o signo terra tem significados de moradia, de produção e de dignidade ao produtor, o
que contraria os significados de terra como produto gerador de crédito bancário ou produto de
especulação imobiliária.
A reforma agrária passa a ser incentivada pela CPT, no sentido de que os
trabalhadores precisam assumir seus papéis de sujeitos em busca de sua libertação. A reforma
agrária, para o movimento, no entanto, não é um caminho fácil, mas sim tortuoso, em que
mais se perde do que se ganha. Ela representa a longa caminhada dos hebreus rumo à terra
prometida, sendo guiados por Moisés. Durante a travessia, eles passam por provações,
sacríficos, como os trabalhadores sem terra precisam passar hoje para conquistar seu lote no
assentamento. O signo reforma agrária guarda em seu bojo a herança da grande saga ao
retomar os sacrifícios dos hebreus e projeta uma nova luta a qual os católicos precisam travar,
agora não contra os egípcios, mas contra o Estado e o latifúndio, o que necessita de
organização e formação político-religiosa. O signo reforma agrária representa, para a CPT e
seus membros, a libertação do povo de Deus e a via pela qual chega à terra prometida, à terra
de descanso, de produção, de dignidade, ou seja, ao lote.
Todavia, dentro da própria Igreja, a Pastoral da Terra é testemunha de uma
contradição, no sentido de que as alas conservadoras não apoiam o trabalho pastoral46
. Para
Bakhtin (2002), os sentidos das vozes dependem da situação histórica e social vivida pelo
grupo social. A Igreja é um local onde se encontram vozes e ideologias diferentes. Há uma
diversidade de olhares para a terra e para a reforma agrária dentro da Igreja, o que demonstra
que os sentidos não são únicos e as palavras não têm donos nem lugar específico, mas estão
circulando por vários espaços sociais e gerando novos sentidos.
Com base nos princípios da Teologia da Libertação e na doutrina social da Igreja
Católica, a CPT denuncia que o latifúndio é o responsável pela violência no campo, o que
46 Como exemplo, temos a campanha de repressão articulada por dom Geraldo de Proença Sigaud, membro da
TFP, junto a jornais e movimentos de extrema direita a respeito da atuação de membros do clero na mediação de
trabalhadores rurais em Goiás. Essa denúncia gerou a desconfiança e até uma investigação do Vaticano nas
Igrejas de Goiás e de São Félix, onde membros da Igreja Católica mediavam ações de luta pela terra. Do mesmo
modo, a Pastoral enfrentou o poder dominante da sociedade por trabalhar em prol das classes oprimidas.
138
seria extinto com a democratização da terra. O signo reforma agrária ganha sentido de
“democratização da terra”, “direito de todos”, o que significa oportunizar a todos o direito à
terra, de maneira que a terra não seja monopolizada. O signo terra tem significado de
“propriedade divina”, por isso não tem proprietário na terra. A ideia de democratização
dialoga com os textos bíblicos que atribuem a propriedade da terra pertence a Deus e não aos
homens. Em Êxodo (BIBLIA, 19, 5), Deus disse: “Toda terra é minha”; em Deuteronômio
(10, 14) o narrador afirma: “[...] ao Senhor, teu Deus, pertencem os céus e os céus dos céus, a
terra e tudo o que nela se encontra” e em Levítico (BIBLIA, 25: 23) Deus disse: “[...] A terra
não se venderá para sempre, porque a terra é minha [...]”. O signo reforma agrária herda
sentidos bíblicos ganhando contornos de democratização, igualdade e direito. Há um consenso
entre os religiosos de que a terra não pertence aos homens, mas a Deus, e sendo todos filhos
de Deus, todos devem ter acesso à terra, o que não acontece. A concentração é vista como
uma forma de violência, já que retira a oportunidade de vida de milhões de pessoas viverem
nela (BRASIL, CPMI, 2006). De acordo com Dom Tomás Balduíno, os movimentos sociais
pela terra mudaram a paisagem do Brasil, pois estão em áreas rurais ou à beira das estradas,
evidenciando uma situação de precariedade, mas também de uma “mística profunda e de uma
organização disciplinada” (BRASIL, CPMI, 2006). O bispo também declara que:
Razão tem a elite agrária latifundiária e os que comungam com ela em ver
nos sem-terra um perigo. Confesso que eles realmente são um perigo para a
injusta estrutura fundiária sobre a qual se alicerça nosso País, desde as
capitanias hereditárias até sua consolidação na famosa Lei de Terras de
1850, que, abrindo a corrida à privatização das terras e à sua concentração,
tornou-se responsável pela pobreza, miséria e marginalização da imensa
massa de moradores do campo, que, violentamente expulsos, estão hoje
inchando as periferias das grandes cidades [...] (TOMÁS BALDUÍNO,
BRASIL, CPMI, 2006).
O discurso do bispo chama a atenção ao referir-se aos que consideram os
trabalhadores rurais “um perigo”. Isso demonstra uma resposta aos opositores dos sem terras
que os consideram “revolucionários”, “baderneiros” e “desordeiros”. O discurso acena que os
sem terras “realmente são um perigo para a injusta estrutura fundiária”, que retoma o
socialismo russo e a revolução cubana e suas ações revolucionárias para implantar a reforma
agrária tão combatida pela Igreja nas décadas anteriores a 60. Como afirma Bakhtin (2002, p.
113), através da “[...] palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em
relação à coletividade”. O discurso também dialoga com o discurso do outro ao referir-se à
Lei de Terras de 1850 que, como destacamos, é um marco na história da estrutura fundiária no
139
Brasil, pois se trata de uma estratégia para limitar a posse de terra à propriedade privada e à
concentração de terras, de acordo com o que já foi discutido no primeiro capítulo deste
estudo. A Lei de Terras é considerada uma força ideológica que em seu presente garantiu que
o futuro das terras no Brasil estivesse nas mãos de uma elite latifundiária, a qual financiaria
essa garantia por meios políticos e econômicos. Com a implantação de forças ideológicas, a
elite latifundiária pôde garantir seu poder e, consequentemente, contribuir para “pobreza”,
“miséria” e “marginalização” dos camponeses e quando se vê ameaçada usa da força do
capital para eleger políticos para defender seus interesses. Porém, todo o vivido pelos
camponeses resulta em uma “organização disciplinada”, característica marcante de
movimentos sociais pela terra, como a CPT e o MST, os quais têm na organização, na coesão
e na coletividade a força de luta.
A CPT também se destaca pelo apoio associado à luta pela terra e, também, na luta
na terra, pois na terra é preciso lutar por educação, moradia, participação política, cultura,
lazer, assistência médica, alternativas de produção e comercialização, crédito bancário,
melhores condições de trabalho, preservação ambiental e uso racional dos recursos naturais
(BRASIL, CPMI, 2006). A Pastoral47
é considerada uma sementeira que vem formando,
nesses mais de 40 anos, lideranças de movimentos sociais que, seguindo seus próprios
caminhos, enxergam na CPT uma base de constituição das lutas e dos sujeitos em busca da
democratização da terra, como é o caso do MST. O mais expressivo e conhecido movimento
social rural do Brasil é o MST. Ele tem sua origem ideológica nas Ligas Camponesas e na
CPT, porém busca ser independente em suas estratégias de luta. Como discutiremos, a seguir,
o MST mostra ao povo do campo a força da união e da perseverança em prol do tão sonhado
lote, no entanto suas experiências sócio-históricas evidenciam que a terra é apenas um dos
direitos a serem conquistados pelos trabalhadores rurais, pois existem outras demandas, como
educação do campo e justiça social.
47 Em comemoração aos 40 anos da CPT, alguns líderes de movimentos sociais expressaram como consideram o
trabalho da CPT:
Valdir Misnerovicz – Coordenador Nacional do MST: “Nós nos consideramos filhos da CPT, e como bons
filhos, nós seguimos a nossa luta, seguimos lutando pela causa mais justa desse planeta que é a democratização
do acesso à terra e o cuidado com a terra [...]”.
João Pedro STEDILE - Coordenação Nacional do MST: “[...] O MST é fruto da experiência histórica do povo
brasileiro das lutas por reforma agrária. O MST se sente neto das Ligas Camponesas e filho da CPT, foi por isso
que nós erguemos a bandeira da reforma agrária no bojo das lutas pela redemocratização do país”.
Disponível em: <http://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes/noticias/cpt-40-anos/2605-ha-40-anos-
nascia-a-cpt>. Acesso em: 10 out. 2016.
140
2.2.5.2 MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra)
No final da década de 1970, o campo brasileiro passa por uma alta mecanização com
a chegada da tecnologia avançada, assim a concentração de terra progredia em passos largos
e, consequentemente, a exclusão social aumenta significativamente. Diante desse cenário,
observamos, não oficialmente, o nascimento social do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST), em 1979, não oficialmente, o que traz para a arena de luta pela terra novos
sujeitos que passam de arrendatários, parceiros, meeiros e filhos de pequenos agricultores a
serem Sem Terra. É um novo sujeito que se apresenta nessa nova temporalidade que o MST
apresenta. Esses sujeitos sentem o peso da chegada da mecanização nas lavouras do Sul do
País com a perda das terras que habitam e com a perda dos empregos. Ademais, também
surgem novos valores axiológicos e ideológicos, os quais são construídos sócio-
historicamente.
O Movimento passa a existir porque os trabalhadores rurais sem terra não querem
sair do campo, deixar suas raízes, suas formas de existência e caminhar sem rumo para a
cidade, como tantas vezes se viu no cenário brasileiro. Trata-se de uma forma de organização
e de luta para continuar na terra. Das Ligas Camponesas, o MST herda a independência
partidária como também a sindical, pois elas “[...] com base na bandeira de luta ‘Reforma
agrária na lei ou na marra’, e, mais do que os sindicatos, se constituíram como a referência da
luta pela reforma agrária” (STEDILE; FERNANDES, 2005, p. 18). As experiências das Ligas
Camponesas foram assimiladas pelo MST, porque ele faz parte do continuo da história da
terra no Brasil, o que viabiliza a ele também criar novas formas de luta. Nas palavras
bakhtinianas, a história é sempre um continuo, pois não há uma ruptura para, então, começar
de novo. Da mesma forma, os discursos dos acadêmicos de Ciências Sociais também fazem
parte desse continuo, uma vez que também buscam, em seus movimentos sociais e em seus
assentamentos, continuar a luta empregada pelas Ligas Camponesas, como também a
independência sindical e partidária. O MST, os militantes, os trabalhadores rurais sem terra e
os acadêmicos não são os primeiros a lutar pela terra no Brasil, mas são os primeiros a
ampliar as formas de luta e de reivindicações para o campo. Então, o que há é um continuo
em que o mesmo sempre reaparece, ainda que com uma nova roupagem.
141
O MST atribui sua base ideológica ao trabalho da Comissão Pastoral da Terra (CPT)
e da Igreja Luterana48
. A CPT instaura uma autocritica à Igreja Católica que apoia a ditadura
militar e, com os trabalhos da Comissão, o clero católico volta-se contra a mecanização e a
expulsão dos camponeses do campo (STEDILE; FERNANDES, 2005, p. 18). A CPT é a
aplicação da Teologia da Libertação, o que leva aos camponeses um aspecto ideológico ainda
não visto, como a autonomia, a busca pela liberdade e a necessidade de organização.
Diferentemente do pregado por bispos como os da TFP, já apresentado anteriormente:
“Espera que tu terás terra no céu”, a Igreja passa a pregar: “Tu precisas te organizar para lutar
e resolver os teus problemas aqui na Terra” (STEDILE; FERNANDES, 2005, p. 18). O MST
é uma contrapalavra que se coloca na nova temporalidade. Ele é um movimento que se forma
intelectualmente e ideologicamente nas formações da Igreja Católica, onde conhece mais a
fundo a história da terra no Brasil, as lutas empreendidas antes (Ligas, Canudos, dentre
outras) e as estratégias da classe dominante para consolidar no País uma estrutura fundiária
baseada no latifúndio. Enfim, os integrantes do MST, na base intelectual e na realidade do
campo, já conhecem as estratégias políticas e jurídicas desenvolvidas pelo Estado, assim
como pelos latifundiários, partidos de oposição e multinacionais para frear a reforma agrária.
Diante disso, ele produz enunciados que respondem aos de seus interlocutores. É uma
contrapalavra formulada no diálogo com o outro, com os interlocutores da cadeia de discursos
da luta pela terra. Esses enunciados estão acompanhados de novas formas de luta, como
massificação, organização e formação, assim como pelas marchas, acampamentos e
ocupações, as quais passam a fazer parte do continuo histórico do problema da terra no Brasil.
O MST mostra que compreende a história da terra no Brasil e demonstra uma reação às
palavras de seus interlocutores adversários, as quais despertaram nele ressonâncias
ideológicas. Essa compreensão é realizada em um processo dialógico, pois, para Bakhtin
(2002, p. 132): “[...] Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra”. É um
efeito da interação entre os interlocutores. “[...] A cada palavra da enunciação que estamos em
processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma
réplica. Quanto mais numerosas e substanciais forem, mais profunda e real é a nossa
compreensão” (BAKHTIN, 2002, p.132). Também é um movimento dialógico com seus
interlocutores parceiros, como a CPT, a qual teve papel fundamental de aglutinar a si os
movimentos de luta vigentes naquele momento. Caso não tivesse esse caráter aglutinador,
48 A Igreja Luterana também teve participação na formação do MST, mas, neste estudo, não percorreremos esse
aspecto.
142
outros movimentos seriam gestados, o que poderia levar a luta a uma fragmentação e ao
fracasso (STEDILE; FERNANDES, 2005, p. 18). É possível perceber que na relação com o
outro, o MST, como afirma Bakhtin (2011, p. 14), espreita “[...] tensa e permanentemente,
captamos[captou] os reflexos da nossa vida no plano da consciência dos outros; os reflexos de
momentos isolados e até do conjunto da vida [...]” para se lançar como um movimento de
massa de luta pela terra.
O contexto nacional também é um fator fundamental para o nascimento do MST.
Nas cidades, havia os movimentos de greves que fortalecem a luta pelo fim da ditadura
militar, o que se soma ao movimento do campo pela reforma agrária. O acampamento
Encruzilhada Natalino, em Ronda Alta (RS), em 1981, reúne cerca de 30 mil pessoas vindas
do Brasil inteiro com o objetivo de apoiar a luta camponesa contra a ditadura militar. Stedile
atribui, assim, o surgimento do MST ao apoio da sociedade brasileira, uma vez que se não
houvesse essa grande concentração no acampamento em Encruzilhada Natalino, o MST
poderia ter demorado mais para surgir e surgir sem a força social que obteve (STEDILE;
FERNANDES, 2005, p. 23). O acampamento é um espaço-tempo em que se reúnem
diferentes experiências de vida, em que se cruzam diferentes visões de mundo, tanto as a
favor da reforma agrária quanto as contra. O acampamento mostra o quanto a diferença social
no Brasil é grande e como os grupos antagônicos, MST e Estado, relacionam-se com essa
diferença social, revelando o aspecto sócio-histórico múltiplo do Brasil. O acampamento é um
novo espaço em que se inicia uma nova percepção do tempo. Segundo Bakhtin (1988), o
tempo e o espaço são indissociáveis, já que o tempo só transcorre em determinado espaço. O
MST traz para o Brasil uma nova temporalidade, já que nunca antes se tinha visto
organização, formação, ocupações e acampamentos sendo desenvolvidos, simultaneamente,
em diferentes partes do Brasil. Os brasileiros conhecem o que é latifúndio, o que é terra
improdutiva e o que é sem terra por meio das ações do MST. O Movimento demonstra a
existência de valores diferentes entre o eu MST e o outro Estado, latifundiários,
multinacionais, políticos opositores. São diferentes planos de visão e de juízo de valores que
estarão sendo contrapostos em diferentes ações. De um lado o MST com as ocupações e
acampamentos, de outro o Estado com estratégias já conhecidas para reverter as lutas pela
terra.
143
Exemplo disso ocorre no acampamento Encruzilhada Natalino49
, onde a organização,
característica fomentada pela Igreja Católica por meio das CEBs e da CPT50
, é realizada por
meio da instituição de comissões internas no acampamento, com distribuição de funções em
que os próprios trabalhadores lideram a mobilização. No entanto, essa organização51
ganha
repercussão nacional e forças para continuar na luta pela terra, o que leva o governo federal a
enviar para lá a tropa do tenente-coronel Sebastião Rodrigues de Moura52
, conhecido como
major Curió. O militar monta barreiras policiais, controla a entrada e saída de pessoas do
acampamento como também a de alimentos, chegando a impedir a entrada de membros da
CPT e da comissão de Direitos Humanos. Junto aos trabalhadores sem terra, Curió trabalha
para convencê-los a deixar o acampamento e seguir para projetos do governo em outros
estados. Além disso, também infiltra agentes entre os colonos, compra colonos a fim de que
delatem as ações do Movimento e expulsa colonos do local (TEJERA, 2012).
Como podemos notar, os dois lados empreendem atos responsivos às ações de seus
adversários. Inicialmente, o Estado utiliza como contrapalavra a violência e a intimidação, o
que, gradativamente, torna-se inválido em decorrência da repercussão nacional e, também,
internacional, embora no campo os latifundiários com o aval do Estado continuem com as
ações de jagunços. Violência, intimidação, compra de informações e demora nas negociações
farão parte da estratégia responsiva do Estado, amparado por latifundiários, multinacionais,
contra o MST. Na relação com o seu outro, o Estado se torna falante. Como Bakhtin (2011, p.
271) afirma:
[...] o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do
discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição
responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o,
aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa posição responsiva do ouvinte se
49 O acampamento Encruzilhada Natalino foi formado pelos trabalhadores sem terra expulsos da aldeia
caingangue, em Nonoai, onde arrendavam terras dos índios por meio de um acordo com a Fundação Nacional do
Índio (FUNAI) (TEJERA, 2012). Esse acampamento é uma marca no nascimento social do Movimento pela
forma como foram constituídas as ações e, também, pela participação significativa dos camponeses, o que ilustra
as ações posteriores do MST. Até abril de 1981, o acampamento era constituído por algumas dezenas de
barracos, mas, a partir dessa data, muitas famílias de meeiros, colonos, arrendatários chegaram em busca do
direito à terra. 50
A CPT foi a responsável por sustentar o movimento no que se refere à reflexão, por meio da mística. 51
“[...] Essa organização interna deu solidez à mobilização que passou a ser reconhecida publicamente,
recebendo da imprensa cobertura sistemática, além de começar a contar com o apoio de várias organizações,
como sindicatos, que se mobilizavam para atender às necessidades de alimentação e saúde dos acampados, que
viviam em situação precária, o que gerou a ampliação do número de pessoas solidárias aos colonos de
Encruzilhada Natalino” (TEJERA, 2012, p. 86). 52
O tenente-coronel era conhecido nacionalmente por sua atuação contra a Guerrilha do Araguaia (TEJERA,
2012).
144
forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o seu
início [...].
Em uma ação responsiva, como estratégia para resistir à pressão, o Movimento passa
a esconder suas ações internas e a sugerir que ninguém se apresente como liderança,
instituindo uma réplica às investidas do Estado. Outros participantes da rede de discursos,
bispos e prefeitos53
, denunciam as ações do tenente-coronel Curió, como também a gênese do
problema: política fundiária no Brasil.
A terra chega para os acampados do Encruzilhada Natalino quando a Cáritas
Regional Passo Fundo adquire uma área para onde são transferidos os colonos. Trata-se de um
assentamento de transição, a fim de abrigar de forma mais digna os camponeses. Em 1982,
outras áreas são adquiridas pelo governo do Rio Grande do Sul para fins de assentamento em
Cruz Alta, Palmeira das Missões e Ronda Alta. A importância do acampamento Encruzilhada
Natalino para o MST não está no “[...] espaço geográfico, pelo pedaço de terra conquistado, e
sim porque foi uma vitória” (STEDILE e FERNANDES, 2005, p. 24). Percebemos que o
signo terra para o MST não se refere a um pedaço de terra, ou seja, ao fenômeno material,
porém terra significa a vitória da organização, da resistência, da massificação e das relações
com outros movimentos sociais rurais de luta pela terra. O signo terra ganha um revestimento
ideológico, pois, ao alcançar seu objetivo, o MST mostra à classe dominante que é possível
fazer reforma agrária no Brasil, além de demonstrar que a luta está apenas começando e quais
os caminhos a serem percorridos para isso. De um lado, o movimento reveste a conquista da
terra de uma vitória ideológica e de princípios; de outro lado, a classe dominante vê que seu
poder sobre a terra está sendo questionado e ameaçado. Há um embate em torno da valoração
atribuída por cada parte ao signo terra. Como afirma Volochínov (1981 [1930], p. 254): “[...]
Nós operamos com o conceito de valor ideológico, que não objetiva a nenhuma
‘universalidade’, mas que carrega uma significação social e, mais precisamente, uma
significação de classe” (grifos do autor). Essa contradição de avaliação que reveste o signo
terra continua sendo vista nos relatos dos acadêmicos sem terra do curso de Ciências Sociais
da UFGD, como veremos no capítulo 4.
53 Diante da situação, bispos do Rio Grande Sul mostraram-se contra as ações do coronel Curió por meio de uma
nota oficial e demonstraram que os problemas eram oriundos de uma estrutura fundiária falida. Também se
manifestaram prefeitos de 28 municípios do Alto Uruguai, os quais assinaram um documento de apoio aos
acampados. Em agosto de 1981, os interventores se retiraram do acampamento (TEJERA, 2012).
145
Com a ação de resistência desenvolvida no acampamento e a repercussão nacional, o
MST mostra-se ao Brasil, o que torna o Encruzilhada Natalino um marco na luta pela terra no
Brasil e demonstra ainda que a luta pela reforma da estrutura fundiária no País está reavivada.
Do mesmo modo, podemos afirmar que para o Estado, como também para os latifundiários,
as multinacionais e os políticos de oposição, o cenário da terra no Brasil havia mudado. Não
se vê mais um grupo pequeno de camponeses resistindo em sair das terras do latifúndio, mas
o que se visualiza é um movimento massificado, formado intelectual e ideologicamente, que
obtém respaldo de parte da sociedade, como de intelectuais e professores universitários, e
objetiva entrar na terra.
A oficialização do MST deu-se em 1984, em Cascavel, Paraná. Com a bandeira de
luta “Ocupação é a solução”, o Movimento reivindicou a reforma agrária, a criação de novas
leis e instaurou criticas ao Estatuto da Terra (CRUZ, 2010). Dialogicamente, essa crítica
estava ancorada no fato de que a reforma agrária prevista no Estatuto da Terra nunca saiu do
papel. O MST fundamenta sua crítica no fato de a terra ser caracterizada no Estatuto por sua
“função social”, devendo, assim, proporcionar bem-estar a todos os envolvidos na terra, o que
incluiria os trabalhadores rurais, contudo eles não tiveram seus direitos efetivados. A bandeira
de luta mostra que para realizar a reforma agrária no Brasil era preciso ocupar as terras. Essa
seria a solução. Essa era uma resposta aos anos de dominação do campo: “[...] cedo ou tarde,
o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos subsequentes ou no
comportamento do ouvinte [...]” (BAKHTIN, 2011, p. 272).
O MST nasce para ser um movimento de lutas de massas, pois sem luta a reforma
agrária não chega. No encontro de Cascavel também ficam definidos os objetivos do MST, os
quais resumem o programa do Movimento: “[...] era para lutar por terra, mas decidimos fazer
também a luta pela reforma agrária e por mudanças sociais, porque vivíamos o clima das lutas
pela democratização do país” (STEDILE; FERNANDES, 2005, p. 50). Observamos que o
MST amplia seus objetivos ao lutar por terra, reforma agrária e mudanças sociais. Apenas
entrar na terra não é o suficiente, uma vez que a desigualdade social no Brasil é expressiva; é
preciso lutar pela justa distribuição de terra, ou seja, pela reforma agrária. Esse signo ganha a
roupagem de “justiça social” para os trabalhadores rurais. Além disso, o signo mudança social
também entra nos discursos do Movimento, porque ele solicita mudanças na ordem social do
Brasil, o que requer mudanças políticas e ideológicas. Para isso, o Estado necessita
desenvolver ações que acabem com a pobreza extrema, o difícil acesso à educação e à saúde,
por exemplo. A mudança social é para todos e de uma forma ampla atende às necessidades do
povo brasileiro.
146
O signo reforma agrária, no MST, não significa assistencialismo, situação que leva
ao abandono da luta quando se consegue o lote, ou seja, abandona-se a causa. Ao contrário, o
signo carrega um valor histórico e social de exploração do trabalhador rural e da terra, por
isso a luta continua mesmo depois de entrar no lote, pois ainda há camponeses sem terra e
ainda há injustiça social. Fazer reforma agrária54
no Brasil, para o MST, é fazer “[...] com que
milhões tenham acesso à terra, à escola, construam suas casinhas, num curto espaço de
tempo” (STEDILE; FERNANDES, 2005, p. 121). Assim, o signo reforma agrária agrega o
sentido de igualdade e de socialismo, diferenciando-se do significado atribuído por alguns
governos, como, por exemplo, o de Fernando Henrique Cardoso, que, diante da resistência do
MST e de outros movimentos sociais rurais, conseguia algumas áreas de terras públicas,
desapropriadas ou negociadas, para assentar as famílias (STEDILE; FERNANDES, 2005, p.
159). Para governos como o de Fernando Henrique, o signo reforma agrária teria o sentido de
distribuição de terras; já para o MST a essência do signo reforma agrária está na “[...]
distribuição da propriedade da terra, ou seja, a democratização da estrutura fundiária. [...]
reforma agrária é sinônimo de desconcentração da propriedade da terra” (STEDILE;
FERNANDES, 2005, p. 159). O signo reforma agrária tem significado de um projeto maior
que é acabar com a pobreza e a desigualdade social e econômica no Brasil, já que miséria e
pobreza são tão expressivas no País, contudo também a concentração de riqueza é expressiva,
o que leva à luta e à necessidade de buscar a igualdade social. Diante disso, Bogo (1996)
afirma que se há diferenças tão gritantes, não há como acabar com a luta de classes. O autor
54 A reforma agrária é necessária para o MST por cinco motivos principais. Primeiro porque toda pessoa
necessita de alimentos vindos da agricultura para viver: “[...] A agricultura ainda é a fonte de subsistência
humana” (BOGO, 1996); segundo porque a reforma agrária é uma forma barata e simples para reintegrar os
excluídos ao processo de produção. Trata-se de natureza humana buscar seu próprio alimento. Isso é possível
desde que ele esteja livre para cumprir este papel: “[...] É preciso lembrar que os empregos ficarão cada vez mais
difíceis no capitalismo, devido à competitividade e a agricultura, mesmo sendo explorada de forma rudimentar,
poderá produzir excedentes que facilitará desenvolver politicas sociais com alimentação farta” (BOGO, 1996). O
terceiro aponta que a reforma agrária é o ponto de partida para defender a terra, o ser humano e a natureza, pois,
para o MST, a ecologia só poderá ser defendida se houver a redefinição da estrutura agrária brasileira,
desmatando apenas o que for necessário e reflorestando de forma obrigatória onde for necessário (BOGO, 1996).
O quarto ponto afirma que com a reforma agrária pode-se produzir sem a utilização de agrotóxicos: “[...] Com a
realização da reforma agrária toda a população seria beneficiada, desde quem produz, até quem consome”
(BOGO, 1996) com uso de tecnologias que não prejudiquem o homem e a natureza. A reforma agrária também
diminui o custo de produção e dos produtos alimentícios, possibilitando às pessoas da cidade consumirem
produtos mais baratos e com melhor qualidade. “[...] Estas e tantas outras vantagens a população em geral poderá
ter, se implantada uma verdadeira reforma agrária no País, principalmente porque, se chegarmos a isso, já
estaríamos comemorando a construção de um nova sociedade” (BOGO, 1996). A reforma agrária é um elemento
impulsionador da luta de classes.
147
acrescenta que velhos conceitos precisam ser resgatados, como: enquanto houver classes
sociais, há lutas de classes.
O Movimento se coloca no cenário político e social de luta pela terra não como um
movimento doutrinário, mas como um movimento que reflete acerca da realidade social
brasileira. Esse caráter dialoga com a Teologia da Libertação. Trata-se de estar aberto a todas
as verdades e não apenas a uma, pois esta única pode não ser verdadeira. A CPT ensina o
MST a estar aberto a todas as doutrinas a favor do povo. A partir dessa concepção, o MST se
abastece teoricamente (STEDILE; FERNANDES, 2005), lendo Lenin, Marx, Engels, Mao
Tsé-Tung, Rosa Luxemburgo, James Petras e Marta Harnecker, dentre outros. Dessas leituras,
captam-se ideias universais que podem ser aproveitadas no cenário brasileiro, tendo em vista
que cada autor trabalha com realidades diferentes das vivenciadas pelo MST. Não se trata de
cópia, mas da análise das ações e das reações vivenciadas em diferentes contextos. Do mesmo
modo, o Evangelho, não como religião, mas como uma doutrina, também é uma fonte de
leitura, que influencia nos valores, na cultura, na forma de ver a mística, na forma de ver
diferente (STEDILE; FERNANDES, 2005, p. 60). Pensadores brasileiros a favor e contra55
a
reforma agrária também abasteceram o MST com seus trabalhos, pois é preciso conhecer os
pensamentos que pairam a respeito da terra no Brasil. São lidas as obras de Florestan
Fernandes e Paulo Freire, como também as de Caio Prado Júnior, Clodovis Boff, Leonardo
Boff, Frei Betto, dom Tomás Balduíno e dom Pedro Casaldáliga. Com relação às experiências
vividas, também conhecem os contextos de luta de Luís Carlos Prestes, Ernesto Che Guevara
e José Martí (STEDILE; FERNANDES, 2005). A formação ideológica do MST é realizada
por múltiplos fios dialógicos. Palavras a favor e palavras contra entrecruzaram-se para formar
os fios ideológicos do MST como também dos acadêmicos sem terra de Ciências Sociais. A
base ideológica do MST e dos acadêmicos de Ciências Sociais é construída ao longo da
história dos grupos sociais envolvidos com a terra. É o resultado de ações que deram certo
como também de sistemas que não se efetivaram. Assim, eles buscam banharem-se da
55 Stedile lembra que foi lida a obra de Josué de Castro, Geografia da Fome. Esse autor fazia parte de um partido
da elite, de modo que sua leitura foi criticada por acadêmicos e membros do PT, segundo Stedile. Mas para o
MST o que importava era o que o autor tinha a dizer acerca das causas da fome principalmente no nordeste. Do
mesmo modo, leram Manuel Correia de Andrade para entender como funciona uma usina e o latifúndio; Celso
Furtado, por ver a reforma agrária apenas pela lógica do mercado interno e da industrialização, mas suas ideias
ainda poderiam ainda estar circulando, por isso era importante conhecê-las. Stedile também cita Darcy Ribeiro
que como escritor deixou uma obra importante acerca da formação étnica e cultural do brasileiro. Novamente
setores da esquerda criticaram os membros do MST por estarem estudando Darcy ribeiro, pois ele, enquanto
senador, prejudicou o campo na elaboração da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), mas o
fundamental era seu livro (STEDILE; FERNANDES, 2005).
148
presença do outro, das experiências do outro para fortalecer a sua base intelectual e
ideológica, já que eu “[...] não posso passar sem o outro, não posso me tornar eu mesmo sem
o outro; eu devo encontrar a mim mesmo no outro, encontrar o outro em mim (no reflexo
recíproco, na percepção recíproca). [...] Do outro eu recebo meu nome, e este existe para os
outros (autonomeação – impostura)” (BAKHTIN, 2011, p. 342). São os outros do passado
com os quais o Movimento dialoga de forma a tomar suas palavras como suas e reproduzi-las
em seus contextos; são os outros parceiros de luta que inspiram o movimento com seus ideais
e atitudes de resistência à hegemonia da classe dominante; são os outros adversários, a quem
o MST quer conhecer para, então, rebater/responder aos seus enunciados que julgam a
reforma agrária como um atraso, evidenciando que não “[...] pode haver enunciado isolado.
Ele sempre pressupõe enunciados que o antecedem e o sucedem. Nenhum enunciado pode ser
o primeiro ou o último. Ele é apenas o elo na cadeia [...]” (BAKHTIN, 2011, p. 371). A ação
do MST em conhecer o outro para então voltar ao eu a fim de responder aos discursos
adversários confirma a premissa de Bakhtin (2011, p. 383) de que é preciso conhecer o outro
“[...] entrar até o fim no mundo dos outros como outro” para dele, então, emergir pronto para
atuar na vida viva.
A formação intelectual e ideológica do MST contribui para que a educação do campo
seja um dos objetivos a serem alcançados. A reforma agrária não tem sentido, para o MST, se
não estiver “[...] casada com a democratização da educação. Não é possível viabilizar a
democratização da terra e do capital com uma multidão de analfabetos” (STEDILE;
FERNANDES, 2005, p. 162). Nessa perspectiva, os signos reforma agrária e educação do
campo constituem-se ao mesmo tempo no MST, haja vista que um não pode ocorrer sem o
outro. Por isso, logo depois de sua oficialização, há a criação do setor de educação e do
Encontro Nacional de Educadores da Reforma Agrária (ENERA). O setor representa um salto
de qualidade para o Movimento, não teórico, mas mostra à sociedade a importância que o
MST atribui à educação e que sua luta não é apenas por terra. Para Stedile, a “[...] frente de
batalha da educação é tão importante quanto a da ocupação de um latifúndio ou a de massas.
A nossa luta é para derrubar três cercas: a do latifúndio, a da ignorância e a do capital”
(STEDILE; FERNANDES, 2005, p. 74). O signo cerca, para o MST e para os trabalhadores
rurais sem terra, é marca da propriedade privada e o símbolo da falta de justiça na terra. A
cerca marca a fronteira entre a luta pela terra e a entrada na terra. Para os latifundiários, o
signo cerca significa a proteção de suas propriedades, o limite entre o que é “meu” e o que é
do “outro”. Desse modo, adentrar a cerca de sua fazenda significa quebrar essa fronteira,
invadir propriedade privada e causar danos ao patrimônio, o que lhe garante o direito de
149
“defender-se” com os meios que lhe são próprios, como contratação de jagunços/pistoleiros.
Para o MST e os trabalhadores rurais sem terra, a cerca do latifúndio representa a perpetuação
do status quo das elites proprietárias de terra e a falta de democratização de um direito de
todos que da terra querem viver. Romper com as cercas, então, significa tirar a terra do
cativeiro, libertar o trabalhador rural das correntes da dominação das elites fundiárias, fazer
justiça social e democratizar a terra.
A cerca da ignorância também deve ser rompida, sendo esta uma batalha do MST e
de outros movimentos sociais. Para eles, o trabalhador rural sem terra ignorante tem
limitações em lutar pela terra e pela permanência nela. O signo educação do campo ganha
significado de poder, já que o Movimento entende que na sociedade vigente cultura,
conhecimento, informação é poder; por isso é necessário que todos os camponeses tenham
acesso a esses conhecimentos, e o caminho para isso é a democratização da educação
(STEDILE; FERNANDES, 2005, p. 162). A educação é que vai tirar a sombra da opressão
que esmaga os trabalhadores rurais. Essa premissa dialoga com as palavras de Paulo Freire
(1975, p. 37), ao considerar que expulsar “[...] esta sombra pela conscientização é uma das
fundamentais tarefas de uma educação realmente liberadora e por isto respeitadora do homem
como pessoa”.
Por isso, a educação é um setor que recebe muita atenção no MST e,
consequentemente, nos acampamentos e nos assentamentos. Democratizar o conhecimento é
tão importante quanto conquistar a terra. Para tanto, o MST luta, desde 1984, “[...] pelo acesso
à educação pública, gratuita e de qualidade em todos os níveis para as crianças, jovens e
adultos de acampamentos e assentamentos” (MST, 2010, p. 23). O MST defende que
escolarizar “[...] é incentivar a pensar com a própria cabeça, é desafiar a interpretar a
realidade, elevando o nível cultural. É criar condições para que cada cidadão e cidadã
construam, a partir dos seus pontos de vista, seus destinos” (MST, 2010, p. 23). Nesse
contexto, educação do campo significa dar liberdade ao trabalhador rural sem terra e a seus
filhos para que saiam da condição de oprimido, elevando-os à categoria de homem e mulher
pensantes, dotados de cultura, capazes de pensar seus próprios caminhos e não seguir aqueles
que lhe são impostos. Além disso, lutar contra a ignorância não significa apenas acabar com o
analfabetismo, pois isso é simples, o que importa para o MST é “[...] democratizar o
conhecimento para um número maior de pessoas. O desenvolvimento depende disso”
(STEDILE; FERNANDES, 2005, p. 75).
É possível percebermos que uma educação libertadora é diferente da educação rural,
a qual nega aos trabalhadores rurais o direito à educação de qualidade, já que o campo é visto
150
como um lugar de atrasado e uma realidade a ser superada. A educação rural é evidenciada
nos relatos de experiências dos acadêmicos sem terra quando os sem terra apontam as
dificuldades para chegar à escola, pois ela é distante e não havia transporte para vencer os
quilômetros de distância, o que leva muitos filhos de camponeses a abandonarem a escola
muito cedo; também é revelado quando se relata que os professores não têm formação
adequada para ministrarem aulas e, ainda, quando revelam não possuírem condições de terem
material escolar para frequentarem as aulas. Desse modo, observamos que o signo educação
rural é gestado segundo uma ideologia dominante que objetiva condenar os trabalhadores
rurais e seus filhos à ignorância. Com isso, a educação rural impõe aos camponeses uma
condição de marginalizados, de esquecidos e de explorados, já que deles se quer apenas sua
força de trabalho. Notamos, assim, que todo signo carrega em si um sentido ideológico ou
vivencial (BAKHTIN, 2002). O signo educação do campo é, então, uma proposta de
educação que refrata a educação rural ao negar para os trabalhadores rurais sem terra e a seus
filhos uma educação “adaptada” da cidade para o campo. O signo educação do campo por ser
constituído sócio-historicamente propõe um ensino que contemple cultura e conhecimento
para os trabalhadores rurais sem terras como também que esse ensino seja no campo, perto da
realidade dos estudantes sem terra, com professores inseridos na ideologia dos sem terra.
Tudo isso para que o ensino seja de qualidade e o trabalhador rural sem terra possa ser
instruído, ter cultura e conhecimento não precisando para isso sair do campo.
O signo educação do campo refrata as forma de cristalização de modelos políticos de
desenvolvimento econômico, cujos interesses apenas servem à classe dominante. Também
carrega em seu bojo a realidade dos trabalhadores rurais sem terra, os quais precisam se
relacionar não só com os sujeitos da escola, mas também com os sujeitos do Movimento, das
prefeituras, das universidades, dentre outros. O signo educação do campo constitui-se da
junção entre trabalho intelectual e trabalho manual, pois contempla o todo da vida dos
trabalhadores sem terra. Para o MST, o trabalho intelectual não está aquém do campo e não
alcança superioridade em relação ao trabalho manual, mas entre eles há uma relação de troca
de conhecimentos, de modo que um pode caminhar com o outro, o que contribui para que os
trabalhadores sem terra não precisem sair do campo para buscar educação, como também não
fiquem no campo sem acesso ao conhecimento.
O MST apoia-se na Constituição Federal de 1988, que garante educação para todos, e
nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, a qual assegura adequações
necessárias às especificidades do campo, para desenvolver lutas em prol da educação do
campo. Com adequações asseguradas pela Lei, o signo educação do campo ganha contornos
151
legais, assegurando à escola do campo poder desenvolver conhecimentos que contribuam para
o benefício e o bem-estar dos trabalhadores rurais assentados ou acampados por meio de uma
nova concepção de vida rural. Essa nova concepção de vida rural aponta que o campo mudou,
pois os trabalhadores rurais sem terra querem viver plenamente no campo, tendo educação de
qualidade, saúde e lazer, sem que para isso seja preciso deixar o campo e seguir para cidade.
Por isso, o Movimento luta para explicar aos governos, aos educadores e aos elaboradores de
políticas públicas que a escola para crianças do campo não pode ser na cidade, ela deve ser no
campo, no assentamento, no acampamento (STEDILE; FERNANDES, 2005), o que gesta um
novo signo: educação no campo, o qual se constitui, por meio da herança sígnica (DURAN,
2016), do signo educação do campo. Estar no campo significa estar perto da realidade dos
estudantes sem terra e, ao mesmo tempo, fazer integrar essa realidade, já que a escola no
campo agrega a vivência do assentamento no que diz respeito à interação com as
peculiaridades do campo, como plantio e colheita, e, ainda, à atuação dos movimentos sociais
rurais. Assim, a escola no campo é um lugar de formação acadêmica e, também, de formação
política, por ser um espaço ideologicamente constituído. Logo, o signo educação no campo é
mais um instrumento da luta dos trabalhadores rurais sem terra que refrata a educação urbana
e a proposta da classe política conservadora em tirar o estudante sem terra do assentamento e
levá-lo para estudar na cidade com o intuito de que ele tenha educação de qualidade. O signo
educação no campo já nasce para negar essa proposição defendida historicamente pelos
governantes, pois ir para cidade pode, mais uma vez, dar ao campo contornos de atraso e de
subjugação, além de contribuir para que a proposta de libertação do trabalhador rural sem
terra não siga em frente.
O signo educação do campo, presente nos documentos oficiais a respeito da
Educação56
, passa a representar a garantia das particularidades do campo, assim como de suas
demandas, seus saberes, sua cultura e seus valores. Essa preocupação com uma política
específica para o campo é pensada e defendida pelas Ligas Camponesas, que buscam
assegurar uma educação voltada à formação política e, também, à realidade dos camponeses.
Dessa maneira, o signo educação do campo é integrante da luta pelo desenvolvimento do
campo. Notamos, assim, como “[...] o signo e a situação social em que se insere estão
indissoluvelmente ligados. O signo não pode ser separado da situação social sem ver alterada
sua natureza semiótica”, conforme Bakhtin (2002, p. 62). Há, então, uma indissolúvel relação
56 Conforme “Educação do campo: marcos normativos”. Disponível em <
http://pronacampo.mec.gov.br/images/pdf/bib_educ_campo.pdf>. Acesso em: 23 out. 2017.
152
entre a luta dos trabalhadores sem tem terra e o signo educação do campo, pois um constitui o
outro.
Apresentar a CPT e o MST e os sentidos atribuídos por eles aos signos terra,
reforma agrária e educação do campo mostra que esses Movimentos renovam as forças dos
trabalhadores rurais sem terra, além de trazerem à cena um novo sujeito: o sem terra. Os
movimentos sociais rurais conseguiram que sua luta fosse conhecida nos cenários nacional e
internacional, principalmente, a do MST. Não se trata de uma luta nova, como já
demonstramos aqui ao apontar as resistências indígenas contra as invasões de seus territórios
pelos europeus e, também, a organização das Ligas Camponesas no nordeste. Como afirma
Bakhtin (2011, p. 410):
[...] Em qualquer momento do desenvolvimento do diálogo existem massas
imensas e ilimitadas de sentidos esquecidos, mas em determinados
momentos do sucessivo desenvolvimento do dialogo, em seu curso, tais
sentidos serão relembrados e reviverão em forma renovada (em novo
contexto). Não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa
de renovação. Questão do grande tempo.
O MST, por meio de sua formação política e ideológica, reaviva discursos
esquecidos, mas que não estão mortos. Traz um novo tempo para as discussões acerca da
propriedade da terra no Brasil, bem como para a desigualdade social. Busca desestabilizar o
estado de estagnação no qual se encontram as mudanças no direito à terra.
Podemos perceber que, no continuo da luta pela democratização da terra e das
estratégias de conservação do latifúndio, tomando a perspectiva bakhtiniana, as forças da vida
social, linguística e ideológica – força centrífuga e a força centrípeta – colocam-se como
contrárias. Bakhtin, por meio da verificação de atuação dessas duas forças na constituição do
sentido, aponta que a circulação das vozes sociais está submetida ao poder. Como ressalta
Fiorin (2016, p. 36):
[...] Não há neutralidade no jogo das vozes. Ao contrário, ele tem uma
dimensão política, já que as vozes não circulam fora do exercício do poder:
não se diz o que se quer, quando se quer, como se quer. [...] estão em causa
todas as relações de poder, que se exercem desde as relações do dia a dia até
o exercício do poder do Estado.
No jogo de poder entre o Estado, o latifúndio e o MST, este, em um ato responsivo,
mostra-se como uma força centrífuga, pois se coloca contra a concentração de terra, contra a
desigualdade social; sendo capaz de produzir formas/estratégias de resistência à força
153
centrípeta imposta pelo Estado e pelas classes dominantes. As forças centrífugas são “[...]
permeáveis à impregnação por outras vozes, à hibridização, e abrem-se incessantemente à
mudança” (FIORIN, 2016, p. 61). Elas produzem o movimento dos trabalhadores rurais sem
terra, impulsionando-os a lutarem contra a opressão advinda da classe majoritária; ao mesmo
tempo acelera a resistência ao criarem estratégias de luta, como acampamentos, ocupações,
marchas, assentamentos.
Com isso, a força centrífuga consegue sustentar uma rede de relações entre
trabalhadores rurais, movimentos sociais rurais, partidos de esquerda e Igrejas, os quais
contribuem para que, no atrito com a força centrípeta, ela despenda uma força de resistência
capaz de sustentar a luta pela conquista de seus objetivos, assim como de descortinar as
desigualdades sociais do cenário brasileiro. É uma força alicerçada nos princípios do
socialismo, ao defender uma sociedade sem desigualdade social e econômica, como também é
apoiada nos valores de igualdade social que preveem que a desigualdade social não é
acidental, mas é fruto de um conjunto de medidas históricas de exploração do trabalhador,
sendo necessário igualar os direitos entre os sujeitos sociais para que todos tenham acesso à
terra, à educação, à cultura. Já forças centrípetas, “[...] impermeáveis, resistentes a impregnar-
se de outras vozes, a relativizar-se” (FIORIN, 2016, p. 61), caracterizam-se como forças
alicerçadas nos valores tradicionais de propriedade de terra, que vem se enraizando desde os
primórdios das sociedades grega e italiana e já foram amplamente defendidos pela Igreja
Católica, como visto no primeiro capítulo. O discurso de proteção à propriedade privada
reverbera até hoje nos discursos sociais, inclusive, no dos mais pobres, que aceitam a
condição de explorados em detrimento da manutenção de uma ordem divina, em que os
membros inferiores devem trabalhar para os membros superiores, embora isso signifique
exploração.
Outra base de sustentação da força centrípeta são os valores do capitalismo, ao fazer
da terra um instrumento de obtenção de lucro, de créditos bancários, de acesso a programas
federais de empréstimo e, também, ao aumentar as diferenças de remuneração salarial entre
categorias de emprego. Para se afirmar no poder, defende medidas contra os direitos sociais e
políticos dos trabalhadores. A ascensão dos movimentos sociais, como o MST, é vista pela
força centrípeta como criadora de ingovernabilidade, como uma potência que inibe a
liberdade de mercado. Ao negar qualquer racionalidade que não seja a do mercado, a força
centrípeta pretende ocultar as particularidades, naturalizar as desigualdades, relacionar os
setores socialistas à barbárie, fazendo valer, fazendo parecer inevitável a exploração do
trabalho e o latifúndio.
154
Este trabalho, até este momento, acentua que em uma relação dialógica, a potência
imposta por cada uma dessas forças demonstra que a luta de classes é historicamente
construída, sendo um fenômeno existente nos embates de classes. Não se trata de um
fenômeno em que apenas a classe subordinada envolve-se, ao contrário, os dois lados estão
ativos na luta, de forma que cada um atua para bloquear a força do outro por meio de
estratégias escolhidas para chegar aos seus objetivos, o que os leva a vitórias e derrotas
(BARKER, s/d, p. 1).
É na relação entre as duas classes que a luta se efetiva, sendo a linguagem a arena de
disputa entre ambas. O Círculo de Bakhtin caracteriza a linguagem como social e dialógica,
sendo um instrumento de mediação entre o homem e a natureza e dos homens entre si. Essa
característica da linguagem é fundamental para este estudo, pois, ao mostrarmos vozes que
ecoam na história da luta pela terra no Brasil, observamos o diálogo existente entre elas, o que
marca o caráter contínuo da história, o diálogo entre discursos e a constituição da identidade
pela alteridade. São vozes consoantes e contrárias que se confrontam na arena da luta de
classe, a fim de defenderem seus posicionamentos ideológicos, políticos, econômicos. Por
isso, Bakhtin afirma que a consciência só pode se materializar como realidade por meio dos
signos. Os signos não apenas refletem a realidade, mas também a refratam, pois já se banham
nas águas da avaliação e da negação dos sujeitos.
Ao trilharmos alguns dos caminhos percorridos pelos signos terra, reforma agrária e
educação do campo, percebemos que para compreendê-los temos de aproximá-los de outros
signos, o que cria uma cadeia semiótica continua de compreensão. Ademais, os discursos
demonstram que esses signos não estão estabilizados, pois sofrem constantemente influências
das interações sociais entre esses dois grupos envolvidos. Podemos afirmar que os sentidos
dos signos em análise construídos pelas vozes consonantes ao projeto de redistribuição de
terras efetivam-se por meio de uma ação responsiva às vozes discordantes, a quem se quer
negar e refutar. Conforme podemos notar, no Quadro 2, os sentidos para os signos terra,
reforma agrária e educação do campo não estão estabilizados, mas adquirem no processo de
interação social as nuances da ideologia do grupo que os constrói.
155
Quadro 2: Síntese dos sentidos construídos pelas vozes consonantes para os signos
ideológicos terra, reforma agrária e educação do campo
Vozes Histórico-
sociais
Terra Reforma Agrária Educação do Campo
PCB Solução para os
problemas do Brasil
Divisão
Fracionamento do
latifúndio
Partilha e coletivização
da terras
Ligas Camponesas Direito
Existência
Subsistência
Concretização de
desapropriações
Educação política
Conhecimento
escolar
João Goulart Bem de mercado
Bem de capital
Propriedade
Bem estar social
Instrumento para
diminuir as diferenças
sociais
Subsistência
Meio para exercer
poder
Racionalização da terra
Instrumento capaz de
mecanizar o campo
Ferramenta para tornar
o campo mais
produtivo
Ferramenta de interesse
social
Diminuição da
desigualdade no campo
Desapropriação
Igreja Católica
Teologia da
Libertação e CEBs
Propriedade de Deus
Bem de todos os
filhos de Deus
CPT Propriedade de Deus
Dádiva de Deus
Libertação do povo de
Deus
Democratização da
terra
Direito de todos
MST Vitória da
organização, da
resistência e da
massificação
Justiça social
Igualdade e socialismo
Democratização da
estrutura fundiária
Poder e liberdade
Fim da opressão
Incentivo a pensar
com liberdade
Democratização do
conhecimento
Negação da educação
rural
Contemplação da
cultura e do
conhecimento
Instrumento da luta
dos trabalhadores
Integrante da luta
pelo
desenvolvimento do
campo
Elaborado pela autora (2018).
156
Como podemos notar no Quadro 2, os signos são construídos de acordo com a
ideologia dos sujeitos sociais. Assim, cada um traz para a arena de constituição dos signos
suas visões de mundo e opiniões. Desse modo, não há um sentido para os signos, mas uma
pluralidade de sentidos, pois os sujeitos que os constituem são também plurais por interagirem
sócio-historicamente com outros sujeitos, tantos os a favor a um projeto de redistribuição de
terras no Brasil quanto com os contra.
Assim, verificamos como contexto sócio-histórico e os sujeitos sociais contribuem
para que a estrutura capitalista da terra seja questionada e combatida em um país marcado
pela desigualdade social e pela pobreza estrema. Os trabalhadores rurais sem terra observam a
importância da coletividade, da união, do mutirão e, também, da formação intelectual e
política, o que garantiu que eles mesmos fossem às ruas, às rodovias, à beira de fazendas
lutarem por seus direitos, legislando eles mesmos a seu favor.
Como verificamos a luta pela educação do campo, ainda que não utilizando esse
termo, não se inicia com os movimentos sociais, a partir da década de 1970, mas é pensada
pelas Ligas Camponesas e, também, pela Igreja Católica. Suas origens na formação política e
intelectual e na libertação do sujeito ecoam no Projeto Político Pedagógico do curso de
licenciatura em Ciências Sociais da UFGD para assentados de reforma agrária. A gênese do
curso já demonstra uma relação dialógica entre os movimentos sociais rurais de Mato Grosso
do Sul e a Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), já que o curso é o primeiro no
Brasil a ser proposto pelos Movimentos e a ser desenvolvido em parceria com os movimentos
sociais rurais. Há que se destacar também que todos os movimentos sociais rurais do estado
de Mato Grosso do Sul estiveram presentes na efetivação do curso, o que também é um dos
diferenciais. Desse modo, o curso congrega assentados rurais pertencentes a diferentes
movimentos sociais rurais, os quais se caracterizam por diferentes posições com relação à luta
pela terra. Notaremos que o Projeto Político Pedagógico do curso de licenciatura em Ciências
Sociais da UFGD não é o primeiro a tratar do significativo papel da educação na luta pela
terra, na formação de um sujeito liberto da opressão e questionador do sistema capitalista
vigente. O discurso do PPP constitui-se de um emaranhado de outras vozes com as quais
dialoga. Esses discursos nos levam a conhecer melhor o universo do signo educação do
campo¸ assim como o de sua constituição e o de sua atuação nas práticas sociais dos
acadêmicos sem terra, dos movimentos sociais rurais, da universidade e do governo federal.
157
CAPÍTULO III – MULTIPLICIDADE DE VOZES NO PROJETO
POLÍTICO PEDAGÓGICO DO CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
VOLTADO AOS SEM TERRAS
Para realizarmos este estudo também importa conhecermos e analisarmos as vozes
que compõem o Projeto Político Pedagógico (PPP). No entanto, essa análise passa,
anteriormente, pela do Manual de Operações do Programa Nacional de Educação na Reforma
Agrária (PRONERA), pois esses documentos norteiam os pressupostos teóricos e a
metodologia do curso, bem como apresentam as diretrizes, o perfil dos acadêmicos, os
objetivos, dentre outras características do curso. São vozes que não inauguram uma cadeia
discursiva própria do curso, mas que dialogam com uma gama de sentidos já construídos
durante a história de luta pela terra no Brasil, conforme discutimos nos capítulos anteriores.
Analisar o percurso da criação política e institucional do curso, as suas características
e como o seu contexto se materializa na linguagem, partindo do Manual de Operações do
Pronera, são aspectos fundamentais para investigarmos quais as vozes constitutivas do PPP.
Isso porque o PPP é elaborado por professores da UFGD mediante a entrega da proposta feita
pelos movimentos sociais rurais de Mato Grosso do Sul. Desse modo, importa enfatizarmos
que não se trata apenas de um PPP de um curso universitário, elaborado por professores, mas
de um documento construído por sujeitos ideologicamente engajados na luta pela reforma
agrária, os quais apresentam uma trajetória de pesquisa e de militância que focaliza a luta pela
terra e pela educação do campo. É também um documento que congrega as demandas
apresentadas pelos movimentos sociais rurais que representaram os assentados de Mato
Grosso do Sul. Além disso, a elaboração conta com o apoio do Governo Federal, do então
presidente Luiz Inácio Lula da Silva57
, por meio do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA) e do Instituto de Meio Ambiente e Desenvolvimento (IMAD).
57 O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva governou o Brasil nos períodos de 1º de janeiro de 2003 a 1º de janeiro
de 2007, e de 1º de janeiro de 2007 a 1º de janeiro de 2011. Disponível em:
http://www2.planalto.gov.br/acervo/galeria-de-presidentes Acesso em: 15 dez. 2017.
158
Mediante a premissa bakhtiniana de que enunciar é responder, tomamos o Manual e
o PPP como documentos resultantes de uma tomada de posição social avaliativa, de uma
posição diante de outras posições sociais – consoantes e destoantes –, uma vez que ele é
elaborado em um contexto saturado de valorizações tanto a favor quanto contra a reforma
agrária e, do mesmo modo, a favor e contra um curso específico para assentados.
Incluir os assentados no ensino superior é uma das propostas do curso de Ciências
Sociais e, também, do então Governo Federal, uma vez que pretendem corrigir processos de
exclusão educacional vividos por esse grupo. Como já demonstraram vozes enunciadas nos
primeiros capítulos deste estudo, ao campo sempre é destinada uma educação “adaptada”, de
baixa qualidade, com professores não formados, em escolas improvisadas e sem transporte
público. Essas condições levaram filhos de camponeses a abandonarem os estudos, como os
relatos pessoais evidenciam.
Diante desse trajeto sócio-histórico, advém a demanda por um curso superior voltado
à realidade dos trabalhadores rurais sem terra. Trata-se de uma proposta gestada em reuniões,
assembleias, congressos dos movimentos sociais rurais no Estado de Mato Grosso do Sul e,
também, em outras localidades do Brasil. Com chegada dessa demanda à Universidade,
primeiro a proposta é pensada coletivamente entre UFGD, MST e CPT para, posteriormente,
contemplar todos os movimentos sociais rurais do Estado. Essa característica torna o curso o
único, até então, no Brasil, a ser pensado e desenvolvido em parceria com os movimentos
sociais rurais. Por isso, esse curso de licenciatura em Ciências Sociais não é um curso como
outros que se desenvolveram em outras universidades pelo País. É um curso pensado
coletivamente, constituído por vozes consoantes do campo, da Universidade – professores e
pesquisadores –, mas também por vozes destoantes, como a de professores de cursos
tradicionais, os quais são contrários ao projeto de reforma agrária e à presença de assentados
na Universidade.
Assim, o curso além de herdar os sentidos das lutas de outros grupos sociais, como
Ligas Camponesas, PCB, Igreja Católica (CEBs, Teologia da Libertação), CPT, MST,
também é constituído por vozes contrárias, como governo militar, associações rurais, Igreja
Católica (TFP), no sentido de ser mais uma voz que reage valorativamente a outras vozes.
Mediante essa herança, para nós, ele se apresenta como uma força centrífuga, que entra no
fluxo da história da terra, da reforma agrária e da educação do campo no Brasil para também
constitui-la ao resistir à força centrípeta que objetiva a unificação e a centralização, ou seja, à
manutenção da exploração da força de trabalho do camponês. Como uma força centrífuga, o
Manual e, principalmente, o PPP empenham-se por descentralizar e desunir o que é dado
159
como cristalizado pela força centrípeta. Os documentos entram no movimento da história,
desejam mudança e justiça social.
A preocupação dos trabalhadores sem terra com a educação confirma o que
mostramos no decorrer do capítulo dois: a terra é fundamental, mas já não é a única fonte de
luta dos trabalhadores rurais, pois na terra outras necessidades surgem, como a educação,
condição primária, segundo os trabalhadores rurais, para a legitimidade social e política de
reconhecimento da identidade sem terra. Com isso, aumenta a responsabilidade dos
professores da Universidade, das escolas do campo e dos movimentos sociais rurais, pois os
trabalhadores rurais veem na educação uma forma de transformar a realidade social, por meio
do conhecimento e da cultura (MENEGAT; FARIAS, 2009).
Em meio a essas demandadas, a UFGD lidera o processo de criação e de implantação
do primeiro curso superior direcionado a moradores de assentamentos federais do Estado de
Mato Grosso do Sul. O objetivo do curso é formar educadores político-sociais para atuarem
em suas próprias comunidades, nas escolas, nos grupos do assentamento, em sindicatos, em
associações e em situações educativas e de apoio às famílias assentadas. Partindo desse
objetivo, a UFGD implanta o curso de turma única (2008-2012), desenvolvido por meio da
Pedagogia da Alternância, o que é fundamental para a construção do conhecimento apoiado
na coletividade do processo pedagógico, pois oportuniza que a distância física entre a
Universidade e os assentamentos seja vencida, assim como possibilita a estreita relação entre
os processos educativos da Universidade e as experiências do campo.
Ao pensarmos a história do curso de licenciatura em Ciências Sociais, da UFGD,
realizamos um recorte para separá-lo da história de um curso regular de licenciatura em
Ciências Sociais que aconteceria em qualquer Universidade e para alunos não
particularizados. Como nosso percurso histórico mostrou nos capítulos anteriores, pensar a
história de um curso para assentados, solicitado por eles, em um Estado marcado pelo
latifúndio, Mato Grosso do Sul, é jogar com forças políticas e ideológicas que sustentam e
reagem contrariamente à efetivação do projeto.
Pensando a partir da perspectiva bakhtiniana, essas lutas ideológicas efetivam-se na
materialidade linguística do Manual de Operações do Pronera e do PPP e nos levam aos fios
discursivos que constroem a história dos sem terra, dos movimentos sociais e dos acadêmicos
sem terra. Sabemos que os discursos que constituem dos documentos são tecidos por um
emaranhado de vozes que se entrecruzam para dar sustentação a um projeto maior que é a
reforma agrária, a educação do campo e a justiça social.
160
Consideramos que o curso de Ciências Sociais é um dos elementos da luta de classes,
uma vez que o acesso à Universidade no Brasil é, tradicionalmente, um privilégio da classe
mais abastada. Por isso, o Programa Federal de Ampliação de Universidades, criado no
Governo do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, possibilita que outras classes tivessem a
oportunidade de também cursarem uma universidade. Esse Programa reestrutura a rede
federal de educação superior permitindo o aumento de 45 universidades, em 2003, para 63,
em 201458
. Além disso, outras modalidades de cursos foram criadas para atender às
populações específicas, como assentados sem terra e indígenas, por meio de metodologias
apropriadas às especificidades destes grupos. No entanto, a implantação desses cursos não é
uma iniciativa bem aceita nas Universidades, um lugar sócio-historicamente marcado pela
presença da classe dominante, já que objetiva trazer para o cenário da academia grupos
marginalizados e combatidos sócio-históricamente.
Percebemos, assim, que a Universidade não é um lugar de coesão, ela também é um
lugar onde há lutas ideológicas e lutas de grupos contrários. Há um discurso ideologicamente
formado por professores pesquisadores de variadas áreas do conhecimento, que compreendem
e defendem um projeto de reforma agrária; mas há também, em grande parte, a ideologia de
um grupo de professores que representa a classe dominante, a elite, os latifundiários e os
políticos conservadores, os quais são docentes, na maioria das vezes, de cursos tradicionais.
Estes não compreendem o processo de luta pela terra como um problema sócio-historicamente
construído, em que há um contexto de expulsão dos camponeses em prol do latifúndio, mas é
visto como uma forma que foge aos padrões tradicionais para obter uma propriedade, como
um fenômeno que objetiva expulsar os latifundiários de suas terras. Desse modo, é contra essa
força centrípeta, que está ancorada na cadeia discursiva da história da terra no Brasil, como
descrevemos nos capítulos anteriores, que o curso também precisa lutar. Assim, verificamos o
problema da relação recíproca entre infraestrutura e superestrutura, ou seja, entre os
trabalhadores em terra e a Universidade.
Como vimos no primeiro capítulo, sempre houve tentativas da classe dominante em
estabilizar e oficializar os signos terra e reforma agrária por meio de legislações que
determinam os sentidos para cada um dos signos. Porém, a reação aos sentidos construídos
por parte do PCB, do governo de João Goulart, das Ligas Camponesas, da Igreja Católica e
dos movimentos sociais rurais mostra que os signos não estão instabilizados, refletindo a
58 Informações disponíveis em: <http://www.brasil.gov.br/educacao/2015/04/reitores-relatam-crescimento-das-
universidades-por-meio-do-reuni>. Acesso em: 27 fev. 2017.
161
mútua negociação entre infra e superestrutura, como mostramos no segundo capítulo. Na
perspectiva bakhtiniana, se a estabilização desses signos fosse efetivada, o caráter polêmico
que eles carregam em si seria perdido, tornando-os estéreis socialmente.
Este capítulo objetiva, assim, desvelar a multiplicidade de vozes sociais –
independentes e contrárias – presentes no Manual de Operações do Pronera e no Projeto
Político Pedagógico do curso de licenciatura em Ciências Sociais, verificando a polifonia, as
relações dialógicas e, também, a responsividade, as forças centrípetas e centrífugas, os
diferentes pontos de vistas que se relacionam por meio da linguagem e constituem os signos
terra, reforma agrária e educação do campo, bem como a identidade dos acadêmicos sem
terra.
Para demonstrar como a implantação do curso de licenciatura em Ciências Sociais é
um dos fios que compõem a rede discursiva da terra no Brasil e, principalmente, em Mato
Grosso do Sul, iniciaremos o capítulo apresentando a voz teórica a respeito da Polifonia em
Bakhtin para, em seguida, analisarmos a multiplicidade de vozes no Projeto Político
Pedagógico (PPP) do curso.
3.1 Vozes Teóricas
Como demonstramos nos capítulo um e dois, os discursos não são únicos ou
isolados, uma vez que eles estão em constante diálogo e por serem constituídos de enunciados
alheios. Assim como todo discurso, o PPP do curso de Ciências Sociais é constituído por um
emaranhado de outras vozes, sejam consoantes ou discordantes. Isso evidencia que no plano
discursivo do PPP as vozes, mesmo as opositoras, não são apagadas ou silenciadas. Ao
contrário, elas também fazem parte do coro de vozes regido pelo sujeito enunciador. Nessa
perspectiva, a polifonia é um conceito primordial para desenvolvermos as análises deste
capítulo, uma vez que evidencia que os discursos são constituídos de uma multiplicidade de
vozes. Assim, a polifonia nos permite ouvir a variedade de vozes e as consciências
independentes, as vozes plenivalentes e as consciências equipolentes.
162
3.1.1 Polifonia
Todo discurso é dialógico, para Bakhtin, não somente no sentido de ser produzido
face a face, mas por ser constituído por milhares de fios de outros discursos, consoantes e,
também, discordantes. Dessa forma, o discurso está sempre a reviver discursos de outras
épocas, de outros lugares e de outros grupos sociais, o que faz dele uma arena onde se
encontram diferentes vozes, pontos de vista e valores axiológicos a respeito de um mesmo
signo. Os signos carregam, então, em seu bojo as mudanças socioeconômicas do grupo do
qual faz parte.
Como orienta Bakhtin (2002, p. 41), as “[...] palavras são tecidas a partir de uma
multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os
domínios”. Na linguagem em uso, viva e concreta, podemos perceber diferentes tons
valorativos sobrepostos nos enunciados, já que eles são “[...] pleno[s] de tonalidades
dialógicas” (BAKHTIN, 2011, p. 298). Por essa perspectiva, observamos que Bakhtin nega o
discurso monológico, o qual aparenta se constituir de apenas uma única voz, por acreditar que
todo dizer é orientado e produzido mediante o outro. Mesmo a forma imóvel da escrita é uma
resposta a alguém ou a alguma coisa. Quem escreve sempre tem em mente o outro, que pode
ser um conhecido, um auditório de interlocutores especialistas em uma área, mas também
pode ser o outro desconhecido. No entanto, mesmo o desconhecido faz parte da construção do
enunciado, pois é para ele que se escreve, no caso. Não há, então, discurso monologizado,
pois todo dizer está ancorado no outro. A esse respeito, Faraco (2009, p. 76), explica que
Bakhtin
[...] se posiciona contra qualquer tendência de monologização da existência
humana, isto é, de negar a existência de um outro eu com iguais direitos e
iguais responsabilidades. Uma atitude monológica ou um modelo
monológico do mundo é autocentrado e insensível às respostas do outro; não
as espera e não reconhece nelas nenhuma força decisiva; pretende ser a
última palavra.
Ao contrapor as modalidades monológica e polifônica, na estrutura do romance,
Bakhtin observa que na primeira categoria o autor concentra em si todo processo de criação,
sendo o centro irradiador da consciência, das vozes e dos pontos de vista da narrativa. Desse
modo, nessa categoria, não há consciência responsiva e isônoma do outro, não existe o tu,
pois o monologo é “[...] algo concluído e surdo à resposta do outro” (BAKHTIN, 2011, p.
348). Já na categoria polifônica, admite-se a consciência do outro, em que este outro é uma
163
consciência que participa da interação, não sendo apenas um objeto da consciência de um eu
que tudo controla. No enfoque polifônico, as personagens são concebidas como sujeitos e
como consciências capazes de falar e de responder por si mesmas. A autoconsciência da
personagem é, nessa categoria, um aspecto dominante na formação de sua imagem, o que é
uma posição radicalmente nova do autor.
Conforme Bezerra (2005, p. 193), essa posição nova trata-se “[...] precisamente da
descoberta de um aspecto novo e integral do homem (do indivíduo ou do homem no homem),
que requer um enfoque radicalmente novo do homem, uma nova posição do autor”. O homem
no homem significa o outro no eu, de modo que um constitui o outro: “[...] outro eu a quem
cabe auto-revelar-me livremente” (BEZERRA, 2005, p. 193). É na relação com o outro que o
eu se define, se caracteriza, pois o olhar do outro reflete quem é o eu. Como postula Bakhtin
(2011, p. 341): “[...] Eu tomo consciência de mim e me torno eu mesmo unicamente me
revelando para o outro, através do outro e com auxílio do outro. Os atos mais importantes,
que constituem a autoconsciência, são determinados pela relação com outra consciência (com
o tu).” O homem existe na relação com o “tu”, pois é pelo olhar do outro que o “eu” se
enxerga e se constitui. Assim, entendemos que todo o interior está voltado para as relações
exteriores, mesmo que se queira isolar. A vivência efetiva-se nessa fronteira entre o interior
do “eu” e a exterioridade do “tu”. Nessa visão, a solidão é ilusória, pois o “ser” significa
conviver de algum modo com o outro. Nesse caso, o outro seria seus antepassados ou seus
descendentes ou, inclusive, aquele que se quer negar. É pelo olhar desse outro que o homem
se orienta, norteia suas ações e age sobre o homem e sobre o mundo. O outro é, portanto, uma
figura constante na vida do homem: “O próprio ser do homem (tanto interno quanto externo) é
convívio mais profundo. Ser significa conviver” (BAKHTIN, 2011, p. 341).
A posição radicalmente nova, que concebe o outro em sujeito, tem no dialogismo seu
caráter marcante, uma vez que esse procedimento demonstra que todo homem não se basta a
si, está sempre voltado para seu exterior, ao diálogo com o outro, em que vivências interiores
se encontram, se digladiam e se respondem na tensão criada pelo diálogo, colocando a
vivência interior na fronteira com a vivência do outro, já que o “[...] homem não tem um
território interior soberano, está todo e sempre na fronteira, olhando para dentro de si ele olha
o outro nos olhos ou com os olhos do outro” (BAKHTIN, 2011, p. 341). Bakhtin é contrário à
natureza do homem viver sozinho, pois o “eu” só pode ter vida real em um contexto povoado
por uma multiplicidade de sujeitos interdependentes e isônomos. Ao projetar-se ao outro, o eu
observa que o outro também se projeta em mim em uma comunicação dialógica que faz
164
emergir a existência de duas multiplicidades de eu, de duas multiplicidades de “[...] infinitos
que convivem e dialogam em pé de igualdade” (BEZERRA, 2005, p. 194).
Bakhtin (2011, p. 330) defende que todo discurso é um
[...] sistema de relações muito complexo e multiplanar. Na relação criadora
com a língua não existem palavras sem voz, palavras de ninguém. Em cada
palavra há vozes às vezes infinitamente distantes, anônimas, quase
impessoais (as vozes dos matizes lexicais, dos estilos, etc.), quase
imperceptíveis, e vozes próximas, que soam concomitantemente.
O discurso é, então, constituído de diferentes vozes, as quais são trazidas de outros
discursos, de outros contextos comunicativos e de outros grupos sociais. Como afirma Tezza
(1988, p. 55), nossas “[...] palavras não são ‘nossas’ apenas; elas nascem, vivem e morrem na
fronteira do nosso mundo e do mundo alheio; elas são respostas explícitas ou implícitas às
palavras do outro, elas só se iluminam no poderoso pano de fundo das mil vozes que nos
rodeiam”. São vozes consoantes e discordantes que se harmonizam pela polifonia, conceito
bakhtiniano responsável por orquestrar a diversidade de vozes independentes e, assim,
produzir diferentes sentidos. Bakhtin (1981, p. 6) sustenta que a polifonia é a “[...] pluralidade
de vozes independentes e não-fundidas, uma polifonia genuína de vozes plenamente válidas”.
Como explica Faraco (2009, p. 77), no mundo polifônico, a “[...] multiplicidade de vozes
plenivalentes e de consciências independentes e não fundíveis tem direito de cidadania –
vozes e consciências que circulam e interagem num diálogo infinito”.
Recordemos que o termo polifonia é utilizado por Bakhtin na obra Problemas das
obras criativas de Dostoiévski, reeditada, em 1963, com um novo título: Problemas da
poética de Dostoiévski, de 1929. A obra dedica-se a examinar os procedimentos formais que
passam pelo romance de Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Bakhtin destaca no romance de
Dostoiévski a forma como a voz do autor e a voz da personagem são orquestradas no mesmo
plano: cada personagem fala por voz própria, sofrendo o mínimo de interferência do autor:
A voz do herói sobre si mesmo e o mundo é tão plena como a palavra
comum do autor; não está subordinada à imagem objetificada do herói como
uma de suas características, mas tampouco serve de intérprete da voz do
autor. Ela possui independência excepcional na estrutura da obra, é como se
soasse ao lado da palavra do autor coadunando-se de modo especial com ela
e com as vozes plenivalentes de outros heróis (BAKHTIN, 2008, p. 3).
Segundo Clark e Holquist (2004, p. 259), o efeito pretendido seria criar um novo
gênero. Bakhtin denomina esse novo gênero de “romance polifônico”, por apresentar variados
165
pontos de vista, “[...] muitas vozes, cada qual recebendo do narrador o que lhe é devido”.
Conforme Brait (2010, p. 41), o romance polifônico
[...] não se subordina a nenhum esquema histórico-literário existente: todos
os elementos de sua estrutura são determinados pela tarefa de construir um
mundo polifônico e um herói cuja voz se estrutura do mesmo modo como se
estrutura a voz do autor do romance. A personagem não é apenas objeto do
discurso do autor, mas sujeito desse discurso. [grifos da autora].
O termo polifonia é emprestado por Bakhtin da arte musical por designar um tipo de
composição musical em que várias vozes, ou várias melodias, sobrepõem-se simultânea e
independentemente, mas estão relacionadas de forma harmoniosa. Emerson (2003, p. 178)
enfatiza esse aspecto associativo-comparativo da polifonia musical à polifonia dialógica na
literatura, que Bakhtin utilizou com o “[...] objetivo de evocar pelo menos a imagem
(sonoridade) de uma textura de múltiplas harmonias, um tecido de distintos fios entrelaçados
que seja, para os outros, receptivo e convidativo”. Faraco (2009, p. 79) explica que o termo
polifonia, tão maltratado mundo afora, pode ser considerado uma metáfora capaz de recobrir a
utopia bakhtiniana, vista por Bakhtin “[...] materializada no projeto artístico de Dostoievski –
um mundo de vozes plenivalentes em relações dialógicas infindas”.
Para o filósofo da linguagem, polifonia apresenta características específicas,
visualizadas e definidas por seus estudos da obra de Dostoiévski. O autor de romances russo é
considerado por Bakhtin um dos maiores inovadores no campo da forma artística por ter
criado um novo pensamento artístico chamado de tipo polifônico, categoria que coloca em
jogo uma multiplicidade de vozes ideologicamente distintas, resistindo ao discurso do autor.
A importância dessa criação, segundo Bakhtin, vai além dos limites da criação de romances,
abrangendo alguns princípios basilares da estética europeia. A respeito da estrutura do
romance de Dostoiévski, Bakhtin (2011, p. 338) afirma que a
[...] estrutura totalmente nova da imagem do homem é a consciência do
outro, rica em conteúdo e plenivalente, não inserida na moldura que conclui
a realidade, consciência essa que não pode ser concluída por nada (nem pela
morte), pois seu sentido não pode ser solucionado ou abolido pela realidade
(matar não significa refutar).
O conceito de polifonia, questão central de Problemas da poética de Dostoiévski, é
estendido por Bakhtin a todo gênero romance, pois as múltiplas vozes sociais ora se
orquestram, ora se digladiam impondo-se ao autor como forma uma de mostrar a diversidade
dos contextos sociais a que representam na escrita. “[...] Dostoiévski não cria escravos mudos
166
(Zeus), mas pessoas livres, capazes de colocar-se lado a lado com seu criador, de discordar
dele e até rebelar-se contra ele” (BAKHTIN, 2008, p. 4).
Nesse viés, a polifonia é parte imprescindível de toda enunciação, já que em um
mesmo texto existem variadas vozes que se expressam e pelo fato de todo discurso ser
formado por diferentes discursos. Faraco (2009, p.60) lembra que, para Bakhtin, em seu
manuscrito O problema do texto,
[...] todo dizer é internamente dialogizado: é heterogêneo, é uma articulação
de múltiplas vozes sociais (no sentido em que hoje dizemos ser todo discurso
heterogeneamente constituído), é o ponto de encontro e confronto dessas
múltiplas vozes. Essa dialogização será ou não claramente mostrada, isto é, o
dizer alheio será ou não destacado como tal no enunciado.
Bakhtin (2011, p. 339) sustenta que “[...] Dostoiévski destrói o antigo plano artístico
da representação do mundo. Pela primeira vez a representação se torna pluricadenciada”. Essa
constatação fundamenta-se em características associadas à polifonia, como realidade em
formação, inconclusibilidade, não acabamento e dialogismo. A inconclusibilidade e o não
acabamento são caracterizados como decorrentes da “[...] condição do romance como um
gênero em formação, sujeito a novas mudanças, cujas personagens são sempre representadas
em um processo de evolução que nunca se conclui” (BEZERRA, 2005, p. 191). A obra de arte
é, assim, viva e está aberta a novos diálogos e a novas interações: “[...] a obra de arte nunca
chega a ser acabada” (CLARK; HOLQUIST, 2004, p. 262). Da mesma forma também são
todos os textos, pois a cada leitura e a cada novo interlocutor, é possível construir novos
efeitos de sentido.
O dialogismo e a polifonia estão associados ao caráter amplo e multifacetado do
universo do romance, à presença de um grande número de personagens, bem como “[...] à
capacidade do romancista para recriar a riqueza dos seres e caracteres humanos traduzida na
multiplicidade de vozes da vida social, cultural e ideológica representada” (BEZERRA, 2005,
p. 191-2). Vale ressaltarmos que o dialogismo como vimos anteriormente, é um aspecto
inerente e constitutivo da linguagem, já que o homem não se separa das relações com o outro,
seja o outro do passado ou o outro do presente. Como salienta Bakhtin (2011, p. 348):
[...] A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo:
interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. nesse diálogo o homem participa
inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o
espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra, e essa
palavra entra no tecido dialógico da vida humana, no simpósio universal.
167
O dialogismo é condição inerente da linguagem e de todo discurso, pois, ao enunciar
é impossível não tocar no já-dito, no já explicado e no já descrito. Assim, o enunciado está
repleto de tonalidades dialógicas, ou seja, é tecido a partir de milhares de fios discursivos. Por
isso, para entendê-lo, é necessário levar em consideração esse entrelaçamento entre os
discursos. Nessa perspectiva, todo enunciado faz parte da cadeia de comunicação discursiva,
pois não há a primeira ou a última palavra, pois todo enunciado é tecido mediante outros
enunciados: aqueles que o precederam e aqueles que o sucederão, ou seja, “[...] o enunciado,
como a mônada de Leibniz, reflete o processo do discurso, os enunciados do outro, e antes de
tudo os elos precedentes da cadeia (às vezes os mais imediatos, e vez por outra até os muito
distantes – os campos da comunicação cultural)” (BAKHTIN, 2011, p. 299). Observamos que
o filósofo da linguagem sustenta que qualquer que seja o objeto do qual se queira enunciar,
ele não é pela primeira vez objeto do discurso, isso porque o objeto já está “[...] ressalvado,
contestado, elucidado e avaliado de diferentes modos; nele se cruzam, convergem e divergem
diferentes pontos de vista, visões de mundo, correntes” (BAKHTIN, 2011, p. 300). Como
mostramos nos capítulos anteriores, os enunciados a respeito da terra, da reforma agrária e da
educação do campo fazem parte da cadeia discursiva sobre a situação fundiária no Brasil, a
qual já é delineada no Brasil Colônia. Da mesma forma, o PPP do curso de Ciências Sociais e
os relatos pessoais, assim como todos os enunciados, também são constituídos mediante o já-
dito. São enunciados que se constituem dialogicamente com outros enunciados, a fim de que
possa reafirmá-los, ressaltá-los, fundamentá-los, refutá-los, desmascará-los, como no caso dos
enunciados a respeito da questão fundiária no Brasil, sejam eles a favor ou contra a reforma
agrária e à justiça social. Todo enunciado é, assim, por natureza dialógico, porque, como
sustenta Bakhtin (2002, p. 86):
[...] todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o qual
está voltado sempre, por assim dizer, já desacreditado, contestado, avaliado,
envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos
de outrem que já falaram sobre ele. O objeto está amarrado e penetrado por
idéias gerais, pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações.
Orientado para seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente
perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações.
Já a polifonia tem como traço marcante a posição do autor como o regente de uma
multiplicidade de consciências, de vozes interdependentes e iguais que constituem o processo
dialógico. O autor rege vozes que ele cria e recria, mas permite que elas se manifestem de
168
modo autônomo e revelem no homem a outra consciência, o outro “eu” infinito e inacabável
(BEZERRA, 2005). Como bem observa Brait:
A consequência do tratamento dialógico recebido pelo herói é que a palavra
do autor se constitui como palavra sobre alguém presente, que escuta e
responde, participa como agente do discurso, não como simples objeto do
mundo do autor. A palavra do autor é dialogicamente orientada para o herói,
é discurso sobre o discurso: ele não fala do herói, mas com o herói. (2010, p.
43).
Observamos, então, um ativismo por parte do autor e não uma passividade. Pelo viés
bakhtiniano, entendemos o autor como “[...] profundamente ativo, mas o seu ativismo tem um
caráter dialógico especial” (BAKHTIN, 2011, p. 339), pois não se é ativo diante de um objeto
morto e inerte, mas se é ativo em relação à consciência do outro, a qual é viva e se coloca na
arena para responder, desafiar, denunciar, concordar ou discordar. Assim, na cadeia da
comunicação verbal, o autor permite que o outro se abra até o fim, podendo esse outro
condenar-se ou responder a si mesmo em um movimento tenso de resistência à consciência do
outro.
A polifonia caracteriza-se pelos fios dialógicos de vozes de outros que constituem o
texto, de forma a completar ideias, a responder outras. Bezerra (2005, p. 194-195) define a
polifonia
[...] pela convivência e pela interação, em um mesmo espaço do romance, de
uma multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis,
vozes plenivalentes e consciências eqüipolentes, todas representantes de um
determinado universo e marcadas pelas peculiaridades desse universo [...].
Importa destacarmos que as vozes e as consciências não são objeto do discurso do
autor, mas são os próprios sujeitos dos discursos. A consciência do eu é a consciência do
outro, que não é objeto, não se fecha, porém está sempre aberta à interação com as demais
consciências, sendo apenas no processo de interação que se revela e mantém sua
individualidade, sua imiscibilidade: “[...] Essas vozes possuem independência excepcional na
estrutura da obra, é como se soassem ao lado da palavra do autor, combinando-se com ela e
com as vozes de outras personagens” (BEZERRA 2005, p. 194-195).
Nas palavras de Barros (1999, s/p), a polifonia caracteriza “[...] um certo tipo de
texto, aquele em que se deixam entrever muitas vozes, por oposição aos textos monofônicos,
que escondem os diálogos que os constituem”. Assim, visualizamos no discurso o resultado
do embate, do contato de várias vozes sociais e de pontos de vista diferentes ou semelhantes.
169
São vozes que, em vezes, deixam-se escutar, em outras, mascaram-se, escondendo-se nos fios
do enunciado, construindo novos sentidos para o texto. São essas vozes que objetivamos
descortinar, nas próximas análises, pois acreditamos que ao ecoarem elas revelam sentidos
constitutivos dos signos terras, reforma agrária e educação do campo.
3.2 Vozes Histórico-sociais
A luta dos trabalhadores rurais sem terra e dos movimentos sociais, mesmo com a
entrada nos lotes, somente aumenta, pois outras demandas surgem, como a educação. Porém,
no governo de Fernando Henrique Cardoso, a preocupação está em diminuir o número de
analfabetos no campo, o que não corresponde com as necessidades dos filhos e filhas de
camponeses que também querem acessar, além do ensino básico, o ensino superior e a pós-
graduação. É somente no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva que o Pronera
garante o acesso ao ensino superior, por meio de cursos voltados especificamente para
assentados de reforma agrária, como é o caso do curso em análise. Desse modo, observamos
que a educação para assentados também faz parte do continuo da história da terra no Brasil,
pois conhecimento e cultura são sinônimos de poder na sociedade capitalista. Assim, os
governos conservadores e seus apoiadores objetivam garantir que a ignorância perdure entre
os camponeses, no entanto movimentos sociais rurais, governos populares e professores de
universidades, cujas pesquisas e reflexões estão voltadas para os problemas da terra no Brasil,
objetivam criar caminhos para que os trabalhadores rurais cheguem à Universidade e nela
permaneça, estabelecendo uma ligação estreita entre os conhecimentos do campo e os da
universidade.
3.2.1 Manual de Operações do Pronera
Na perspectiva bakhtiniana, a palavra é o elemento capaz de assimilar qualquer fase
transitória da mais íntima as mais rápidas mudanças sociais (BAKHTIN, 2002). Por isso, em
um estudo bakhtiniano, é necessário analisar o discurso dialogicamente, percebendo as vozes
que nele ecoam e, também, examinando como o contexto, a materialidade e a vida está
inserida no enunciado. Por isso, Bakhtin (2011, p. 300) salienta que “[...] o enunciado é um
elo na cadeia da comunicação discursiva e não pode ser separado dos elos precedentes que o
170
determinam tanto de fora quanto de dentro, gerando nele atitudes responsivas diretas e
ressonâncias dialógicas”. Por esse viés, após percorrer alguns dos fenômenos histórico-sociais
que influenciaram o problema da terra no Brasil, objetivamos agora perceber quais as vozes
que compõem o PPP do curso de Ciências Sociais.
O fato de as vozes serem ideologicamente distintas é fundamental, neste estudo, já
que o PPP do curso traz vozes que não são apenas as dos movimentos sociais, as dos sem
terra, as da ala progressista da Igreja Católica (Teologia da Libertação e das Comunidades
Eclesiais de Base), as de pesquisadores da reforma agrária (Universidade), mas também as
dos latifundiários, as das leis contrárias aos camponeses, a dos políticos conservadores, as das
áreas conservadoras da Igreja Católica. São vozes que dentro do seu grupo social orquestram-
se e com seu grupo adversário digladiam-se, impondo-se ao autor como uma forma de mostrar
a diversidade dos contextos sociais que se representam no discurso.
Bakhtin (2008) postula que Dostoiévski não cria sujeitos mudos, mas pessoas livres,
as quais são capazes de estar lado a lado com seu criador, de discordar dele e, inclusive,
rebelar-se contra ele, o que caracteriza o romance polifônico. Nesse viés, a polifonia é parte
imprescindível de toda enunciação, já que em um mesmo texto existem variadas vozes que se
expressam e todo discurso é formado por diferentes discursos. Faraco (2009, p. 60) lembra
que, para Bakhtin, em seu manuscrito O problema do texto, “[...] todo dizer é internamente
dialogizado: é heterogêneo, é uma articulação de múltiplas vozes sociais (no sentido em que
hoje dizemos ser todo discurso heterogeneamente constituído), é o ponto de encontro e
confronto dessas múltiplas vozes”.
Notamos que pensar a criação de um curso específico para assentados rurais infere
refletirmos que essa necessidade nasce de um contexto em que várias vozes se sobrepõem,
pois os cursos universitários já existem, mas sua existência não contempla sujeitos como os
assentados sem terra, os quais negam a tradição dos conteúdos tradicionais das universidades
e da escola e, também, um ensino voltado para o individualismo, em que apenas o estudante
ganha com a sua formação. Ao navegarem contra a corrente do capitalismo, os assentados
também são excluídos dos cursos superiores, pois a eles não é dada a oportunidade de estudar
conforme as suas especificidades, como, tempo de trabalho no campo, conteúdo desvinculado
da realidade e localização dos assentamentos distantes das universidades. Essas são algumas
barreiras que o ensino superior impôs à classe minoritária capensina sendo, portanto, um
privilégio quase que exclusivo das classes mais abastadas. Desse modo, não ter assentados de
reforma agrária nos bancos das universidades no Brasil é um efeito das forças ideológicas da
classe dominante que vê no estudo o poder e a mudança. Por isso, os movimentos sociais
171
rurais precisam ampliar suas lutas, de forma que a terra é necessária, mas não é a única
bandeira de luta, pois a educação do campo de qualidade e a entrada do assentado no curso
superior passam a ser demandas dos trabalhadores rurais sem terra.
A primeira ação que envolve a formação superior dos assentados ocorre com a
criação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), em 1997,
durante a realização do I Encontro Nacional das Educadoras e Educadores da Reforma
Agrária (ENERA), em Brasília. Esse encontro é resultado de uma parceria entre o Grupo de
Trabalho de Apoio à Reforma Agrária da Universidade de Brasília (GT-RA/UnB)59
, o
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), e conta também com a participação do
Fundo das Nações Unidas para Infância (UNICEF), do Fundo das Nações Unidas para a
Ciência e Cultura (UNESCO) e da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Podemos notar que as parcerias são essenciais para que os movimentos sociais empreendam
ações em favor das demandas dos acampados e assentados sem terra. Assim como, nas
décadas de 1940 e 1950, as Ligas Camponesas já perceberam que a educação rural não atende
à formação política dos estudantes camponeses, nesse encontro em Brasília, evidencia-se a
necessidade de trabalhos voltados à educação do campo, tendo em vista a oferta deficitária e a
ausência de políticas específicas para essa área no Plano Nacional de Educação. Notamos que
o signo educação rural carrega em si um sentido de ensino deficitário, uma vez que faltam
políticas específicas para garantir um ensino voltado à realidade dos estudantes do campo e da
sua luta pela reforma agrária. O grupo diante do contexto político
[...] examinou as possíveis linhas de ação, decidiu-se dar prioridade à
questão do analfabetismo de jovens e adultos, sem ser excluído o apoio a
outras alternativas. As razões para essa opção foram:
o alto índice de analfabetismo e os baixos níveis de escolarização entre os
beneficiários do Programa de Reforma Agrária;
a preferência do Ministério da Educação pela política de reforço do ensino
regular;
a tendência verificada entre os dirigentes municipais de considerar os
assentamentos áreas federais e, portanto, fora do âmbito de sua atuação
(BRASIL, 2004, p. 13).
59 Estiveram presentes nesse encontro representantes das universidades de Brasília (UnB), Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFTGS), Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), Universidade Federal de Sergipe e Universidade Júlio de
Mesquita Filho (Unesp).
172
O signo educação do campo recebe sentidos contrários do Ministério da Educação60
,
em 1997, ao que é pensado pelos assentados sem terra e pelos movimentos sociais rurais. Ao
preferir investir na “educação regular”, o Governo Federal da época assumiu uma postura de
homogeneização do ensino e dos estudantes no Brasil, pois não leva em consideração as
diferenças entre os grupos de brasileiros. É um trabalho responsivo por parte do governo ao
negar a existência de grupos diferentes no Brasil. Podemos inferir que, assim como todo dizer
é parte integrante de uma discussão cultural e histórica, a preocupação do Governo do então
Presidente Fernando Henrique Cardoso com a educação básica também é cultural e histórica,
uma vez que pretende mais uma vez negar aos trabalhadores rurais a educação de qualidade e
o acesso ao ensino superior. Dar prioridade ao analfabetismo poderia ser umas das estratégias
para a libertação dos educandos. Mas, neste caso, ao contrário, é uma tática para acentuar ao
trabalhador o seu lugar de oprimido, uma vez que se trata de programas voltados a alfabetizar
no modelo “Pedro viu a asa”, já criticado por Paulo Freire (1975) e preocupados com índices
internacionais a serem alcançados. Valorizar a alfabetização seria concebê-la como “[...] um
ato de criação, capaz de desencadear outros atos criadores. Numa alfabetização em que o
homem, porque não fosse seu paciente, seu objeto, desenvolvesse a impaciência, a vivacidade,
características dos estados de procura, de invenção e reivindicação” (FREIRE, 1975, p. 104).
Desse modo, programas de alfabetização automatizados são resultado de uma força centrípeta
empreendida para unificar e centralizar as demandas da educação do campo, de forma a
naturalizar os problemas da educação do campo e calar aqueles que possam reclamar. Além
disso, como postula Paulo Freire (1991, p. 70), não podemos ter a ilusão de que “[...] o fato de
saber ler e escrever, por si só, vá contribuir para alterar as condições de moradia, comida e
mesmo de trabalho [...] essas condições só vão ser alteradas pelas lutas coletivas dos
trabalhadores por mudanças estruturais da sociedade”.
As lutas coletivas em torno da educação superior para trabalhadores rurais veem seus
resultados, em 2004, com o governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando se
priorizaram todos os níveis de educação, o que se evidencia na publicação do Manual de
Operações do Pronera (BRASIL, 2004). Uma atenção diferente é notada com relação à
educação campo por parte do Governo Federal ao enfatizar diferentes níveis de educação e
não somente a alfabetização de jovens e adultos, no caso do campo. O Pronera é uma política
pública, resultado da ação do governo e de movimentos populares, de educação do campo,
60 Período de governo do Presidente Fenando Henrique Cardoso (1995-2002).
173
criado para ampliar os níveis de escolarização dos trabalhadores rurais assentados (BRASIL,
2004, p. 27). O signo educação do campo ganha uma nova roupagem que se refere ao
atendimento não apenas do ensino básico, mas também do nível superior, o que cria vias para
democratizar o ensino superior no Brasil. Podemos perceber que as forças centrífugas
trabalham intensamente para mudar o cenário de exclusão do homem do campo ao ensino
superior. Como ressalta Bakhtin (2002, p. 82), “[...] ao lado das forças centrípetas caminha o
trabalho contínuo das forças centrífugas da língua, ao da centralização verbo-ideológica e da
união caminham ininterruptos os processos de descentralização e desunificação”. Se de um
lado as forças centrípetas não cessam de buscar estratégias para naturalizar os problemas das
minorias no Brasil, de outro lado um trabalho constante dos movimentos sociais, como MST e
CPT, de pesquisadores universitários, de partidos políticos populares desenvolve-se para
desnaturalizar e para criticar a injustiça social.
Em parceria com movimentos sociais, sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras
rurais, instituições públicas de ensino, instituições comunitárias de ensino sem fins lucrativos
e governos estaduais e municipais, o Pronera pretende atuar como um instrumento de
democratização do conhecimento no campo, propondo e apoiando projetos de educação que
utilizem metodologias voltadas ao desenvolvimento das áreas de assentamento (BRASIL,
2004). Notamos que a característica da “parceria” está presente no Programa, pois ele é
pensado em conjunto com os movimentos sociais pela terra, os quais já têm como caráter
principal a união e a coesão, herança das Ligas Camponesas e do trabalho das Comunidades
Eclesiais de Base.
O Pronera propõe cursos de educação básica, técnico profissionalizante, superior e de
especialização, bem como promove capacitações para educadores que atuam nas escolas
como professores e coordenadores locais (BRASIL, 2004). Outra resposta é dada aos
trabalhadores sem terra e aos movimentos sociais ao ver a educação em níveis mais amplos,
chegando à Especialização, o que demonstra uma preocupação com a educação para
transformação social. Trata-se de um Programa que se assume como político, por se associar a
processos sociais que almejam a transformação da sociedade atual, o que é uma característica
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Assim, o Programa leva em
consideração a diversidade cultura e socioterritorial, como também a gestão democrática e a
organização local. Percebemos que, pensar a educação do campo como um projeto político,
não é uma ideia nova, já que é pensada pelas Ligas Camponesas, assim como pelo MST, CPT
e CEBs, o que evidencia que nenhuma palavra é a primeira ou a última, mas ela faz parte da
cadeia discursiva acerca da educação do campo.
174
Como uma política pública, o Pronera assenta-se na gestão participativa e na
descentralização das ações das instituições públicas envolvidas no setor da educação
(BRASIL, 2004), objetivando trazer para as discussões os grupos sociais envolvidos, no caso
os trabalhadores rurais sem terra. O signo educação do campo carrega em si o caráter de
parceria para que um objetivo seja alcançado. Podemos refletir que a voz de Paulo Freire
(1996), ao dizer que “ninguém educa ninguém e ninguém se educa sozinho”, é uma das vozes
que articulam a polifonia de vozes na concepção do Pronera. Trata-se de uma rede de vozes
consoantes que retomam a preocupação das Ligas Camponesas com a formação política dos
trabalhadores rurais. A luta pela educação do campo não é um acidente inesperado na história
social, ela já vem de mãos dadas com a luta pela terra e pela reforma agrária já iniciada desde
a chegada dos portugueses ao Brasil, quando índios forram expulsos de suas terras e, ao
resistirem, viram balas de canhões, como expusemos no capítulo um. Este caminho também é
percorrido por pequenos posseiros e lavradores e mais tarde pelos foreiros das Ligas
Camponesas. Com a entrada da Igreja e com seu aporte, surgiram os movimentos sociais no
final da década de 1970, os quais empreendem lutas contra as forças sociais e políticas da
classe dominante. É possível percebermos que a identidade dos sem terras sempre esteve
marcada pela realidade de luta, de opressão e de busca pela liberdade, o que dialoga com saga
vivenciada pelo povo de Moisés ao fugir do Egito em busca da terra prometida.
No que se refere aos princípios e pressupostos teórico-metodológicos dos projetos,
alerta-se aos proponentes que todas as propostas devem ter como alicerce “[...] a diversidade
cultural, os processos de interação e transformação do campo, a gestão democrática, o acesso
ao avanço científico e tecnológico voltados para o desenvolvimento das áreas de Reforma
Agrária” (BRASIL, 2004, p. 27). As práticas devem ser orientadas pelos princípios do
diálogo, da práxis e da transdisciplinaridade. De acordo com o princípio do diálogo, é
necessário assegurar uma prática de ensino-aprendizagem que respeite a diversidade cultural
do grupo e que valorize os diferentes saberes e a produção coletiva do conhecimento. No que
tange ao princípio da práxis, o Pronera afirma ser necessário que as propostas tenham como
base o “[...] movimento ação-reflexão-ação e a perspectiva de transformação da realidade”
(BRASIL, 2004, p. 27), no sentido de que o processo de ensino-aprendizagem valorize ações
sociais concretas e envolva os educandos nessas ações, contribuindo, assim, para a formação
de cidadãos críticos, capazes de interpretar a realidade e aprofundar-se teoricamente, a fim de
realizar uma ação transformadora. Esse princípio dialoga com Paulo Freire (1996, p. 44)
quando o autor defende que “[...] Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra,
no trabalho, na ação-reflexão”. Dessa maneira, podemos entender que aos trabalhadores rurais
175
é garantida a oportunidade de falar, de criticar e de realizar uma reflexão acerca do seu
contexto. Assim, a educação é libertadora, pois é “[...] um processo pelo qual o educador
convida os educandos a reconhecer e desvelar a realidade criticamente” (FREIRE, 1985, p.
125). Dessa forma, os educandos não são passivos nem objetos, mas são participantes ativos
da construção da cidadania.
Já o princípio da transdisciplinaridade prevê que o processo de ensino-aprendizagem
articule todos os conteúdos e saberes locais, regionais e globais, de forma que os educandos
possam transitar entre os campos de conhecimentos e sejam capazes de identificar suas
necessidades e potencialidades, estabelecendo relações contempladoras da diversidade do
campo em todos os seus aspectos: “[...] sociais, culturais, políticos, econômicos, de gênero,
geração e etnia” (BRASIL, 2004, p. 27). Observamos aqui a retomada dialógica dos
princípios metodológicos das CEBs: ver, julgar e agir. Os participantes das CEBs são levados
a enxergar em seu entorno as demandas que enfrentam e depois a levá-las para as reuniões de
grupo, a fim de serem discutidas, julgadas, com os outros membros e religiosos. Nessas
discussões, tentam encontrar um caminho para pensar soluções, sem necessariamente
desenvolverem ações. É um processo de compreensão ativa, em que o trabalhador participa
intensamente do processo de compreensão que se efetiva na ação de enxergar o problema e
para ele lançar uma contrapalavra, ou seja, buscar suas causas e possíveis soluções. Para
Bakhtin (2002, p. 132), a “[...] compreensão é uma forma de diálogo; ela está para a
enunciação como uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do
locutor uma contrapalavra”. Os problemas dos trabalhadores rurais, como também os dos
membros das CEBs são, portanto, novos objetos a serem refletidos e compreendidos a partir
de uma vivência já conhecida e de informações trazidas pelos membros como também pelos
religiosos. Mediante a reflexão dos problemas, é possível julgá-los, contrapor-se a eles de
forma ativa e pensar em soluções.
A contemplação desses princípios efetiva-se pelo uso de instrumentos didático-
pedagógicos de uma educação “[...] problematizadora, dialógica e participativa” (BRASIL,
2004, p. 27), que contemplam ações, como a investigação acerca dos temas que mobilizam a
comunidade, os quais possam transformar-se em eixos temáticos estruturadores do currículo;
a contextualização crítica desses temas geradores, levando a uma análise histórica, relacional
e problematizadora da realidade; como também a processos de aprendizagem-ensino
relacionados a atividades concretas de “superação das situações-limite do grupo” (BRASIL,
2004, p. 27). Notamos um diálogo consoante com o pensamento de Paulo Freire, ao
contemplar esses três aspectos como princípios de instrumentos didático-pedagógicos, com o
176
conceito de educação problematizadora, a qual consiste em um “ato cognoscente” (FREIRE,
1996). Um dos fundamentos da educação problematizadora é esclarecer os educandos de seu
papel no mundo, levando-os a perceberem a presença da opressão para, assim, poderem lutar
contra ela. Em um movimento dialógico, o MST (1996, p. 6-7) destaca também entre seus
princípios filosóficos a Educação para Ação, que se volta para a formação de sujeitos capazes
de intervir no contexto social e político, ou seja, objetiva
[...] preparar sujeitos capazes de intervenção e de transformação prática
(material) da realidade. [...] Nossa educação deve alimentar o
desenvolvimento da chamada ‘consciência organizativa’, que é aquela onde
as pessoas conseguem passar da crítica à ação organizada de intervenção
concreta na realidade.
De acordo com o Manual de Operações do Pronera (2004), dois pilares básicos
devem alicerçar os cursos superiores do Pronera, o caráter sistemático e o político. O primeiro
envolve planejamento, execução e avaliação do processo de ensino-aprendizagem mediante a
pesquisa-ação-reflexão; o segundo aponta para uma “[...] intencionalidade a favor da inclusão
social da melhoria das condições de vida do(a) assentado(a) e da comunidade entorno”
(BRASIL, 2004, p. 47). O ensino superior não é uma oportunidade individual, para os
trabalhadores sem terra, pois a sua formação contribui para a melhoria do estado de vida nos
assentamentos rurais de reforma agrária, ou seja, da coletividade. Percebemos, portanto, o
princípio da coletividade, que move os trabalhadores rurais e os movimentos sociais, aspecto
herdado das Ligas Camponesas, das CEBs e da Teologia da Libertação, que tinham como um
dos princípios o combate ao pensamento individualista do capitalismo vigente. Esse princípio
também norteia o PPP do curso de Ciências Sociais da UFGD, pois já em sua gênese a
parceria está presente. Desse modo, os conteúdos, a metodologia e a avalição são pensados no
coletivo formado por professores, representantes discentes e dos movimentos sociais rurais.
Ademais, o curso em análise é realizado em um momento político que possibilita à minoria
acessar diversos direitos até então negados, como o acesso à universidade por meio da
ampliação do número de instituições federais pelo Brasil.
Dialogando com o Manual de Operações do Programa Nacional de Educação na
Reforma Agrária, o curso de Ciências Sociais é uma voz que se levanta contra a falta de
acesso dos camponeses à educação superior e à educação de qualidade. Além disso, é uma
voz que responde a um ensino tradicional e elitista, muito presente ainda nas universidades
brasileiras. O PPP evidencia, assim, um respeito às demandas apresentadas pelos
177
trabalhadores rurais, às suas especificidades, bem como a toda trajetória sócio-histórica
vivenciada pelos camponeses durante suas lutas pela terra, pela reforma agrária e pela
educação do campo, da qual também o curso faz parte.
3.2.2 PPP (Projeto Político Pedagógico) do Curso de Licenciatura em Ciências Sociais
O curso de graduação de licenciatura em Ciências Sociais é implantado na
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), em forma de projeto, em julho de 2008,
fazendo parte da Faculdade de Ciências Humanas (FCH). Por ser um curso realizado em
parceria com os movimentos sociais rurais de Mato Grosso do Sul (MS) e, também, por uma
demanda apresentada por eles, podemos inferir que a escolha por esse curso deva-se ao fato
de o profissional de Ciências Sociais ser um interlocutor nos processos sociais de um mundo
em constante transformação e, também, um enunciador dessas mudanças nas escolas e em
outros espaços sociais. O PPP do curso aponta que os educadores político-sociais são
profissionais responsáveis por “compreender e intervir no mundo contemporâneo” (UFGD,
2007, p. 8), cabendo a eles analisar as mudanças políticas, econômicas, sociais e culturais
encontradas na sociedade atual. Esse profissional caracteriza-se por sua visão crítica realizada
por meio de conhecimentos interdisciplinares acerca dos fenômenos sociais, políticos,
culturais e econômicos.
Desse modo, o professor de Ciências Sociais pode, além de desenvolver ações na
escola, atuar em movimentos sociais, organizações governamentais e não governamentais e
partidos políticos. Isso porque o curso forma um professor capacitado para atuar em diferentes
frentes dentro e fora dos assentamentos. Ademais, outro fator chave que devemos considerar é
o aceite da Universidade em desenvolver um curso com características diferenciadas, o que
ocorre pelo fato de na Faculdade de Ciências Humanas (FCH)61
da UFGD haver diversos
professores realizando pesquisas em assentamentos de reforma agrária e em constante
interação com os movimentos sociais rurais de Mato Grosso do Sul62
, o que já os habilitaria a
61 Faculdade de Ciências Humanas (FCH), criada, em 21 de setembro de 2006, pela Portaria nº 432
Reitoria/UFGD, nasceu do então Departamento de Ciências Humanas (DCH), instituído em 1989 pela UFMS.
Com a implantação da UFGD, a FCH passou a ter os cursos de graduação em Ciências Sociais (Bacharelado),
Geografia (Licenciatura e Bacharelado), História (Licenciatura) e Psicologia (Bacharelado). 62
Entre os trabalhos desenvolvidos pelos professores da FCH, destaca-se o grupo Sociedades e Culturas nas
fronteiras de Mato Grosso do Sul, certificado pelo CNPq, o qual atua em assentamentos de reforma agrária. Esse
grupo é composto por pesquisadores colaboradores de diferentes áreas do conhecimento de três instituições de
178
conduzir um processo diferenciado. Outro aspecto a ser destacado é o fato de a reitoria ser
administrada também por um grupo de professores da Faculdade de Ciências Humanas
(FCH), o que oferece maior respaldo político para que o projeto do curso acontecesse. Não
podemos deixar de relembrar que, em 2007, momento em que o curso está sendo gestado, o
Pronera e o Governo Federal também se preocupam em ampliar o ensino superior para
assentados de reforma agrária. Dados do Incra mostram que há um aumento significativo de
vagas para assentados de reforma agrária a partir de 2003. Para o ensino médio e superior, são
atendidos, entre 1998 e 2002, 1.874 assentados; já no período de 2003 a 2010 esse número
salta para 46.891 assentados, o que demonstra a existência de uma política federal preocupada
em formar os assentados em todos os níveis de ensino.
Essa rede política dos movimentos sociais, da universidade e do governo federal está
expressa em um dos objetivos do curso, segundo o qual, a UFGD se responsabiliza por “[...]
proporcionar conhecimentos emancipadores que possam resultar no empoderamento dos
sujeitos sociais da reforma agrária” (UFGD, 2007, p. 4). Esses conhecimentos emancipatórios
querem levar os assentados a uma libertação humana. Se é necessária a libertação, é porque
existe luta de classes, no caso a luta da classe de trabalhadores rurais sem terra e os
latifundiários e políticos conservadores.
A realização do curso é feita pela UFGD em parceria com:
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária –
superintendência de Dourados – MS;
IMAD – Instituto de Meio Ambiente e Desenvolvimento;
COAAMS – Centro de Organização e Apoio aos Assentamentos de Mato
Grosso do Sul;
CPT – Comissão Pastoral da Terra;
CUT – Central Única dos Trabalhadores;
FETAGRI/MS – Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Mato Grosso
do Sul;
MMC – Movimento de Mulheres Camponesas de Mato Grosso do Sul;
ensino superior de Dourados, a saber: a Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Universidade
Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) e Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do
Pantanal (UNIDERP). O objetivo desse grupo de pesquisa é “[...] estudar as questões de fronteira, mais
especificamente os movimentos sociais e políticos” presentes na região (UFGD, 2007, p. 15). Os pesquisadores
ainda visam a estreitar o diálogo com países vizinhos de modo a ampliar as pesquisas na América Latina,
principalmente no que se refere às lutas dos movimentos sociais, cujas dimensões articulam-se com os grupos
campesinos de fronteira, alicerçando uma atuação em redes (UFGD, 2007).
179
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra;
FAF – Federação de Agricultura Familiar de Mato Grosso do Sul (UFGD,
2007).
O Incra é um órgão federal, vinculado ao Ministério de Desenvolvimento Agrário,
que busca com o projeto de reforma agrária a implantação de um modelo de assentamento
rural baseado na “viabilidade econômica, na sustentabilidade ambiental e no desenvolvimento
territorial”63
. O órgão executa as ações do Pronera, possibilitando a viabilização dos recursos
e o seu repasse, bem como emissão de documentos certificando que os candidatos ao curso
são assentados.
Já o IMAD é parceiro que trabalha na região da Grande Dourados, observando a
necessidade de diversificar os processos agroindustriais, o que precisa ser revisado tendo
como base a conservação e a gestão dos recursos naturais, os quais foram responsáveis pelo
crescimento inicial da região de Dourados, mas que agora estão ameaçados e enfraquecidos
pelo uso sistemático e inadequado de insumos, defensivos agrícolas e agricultura intensiva.
Diante disso, a parceria do IMAD está estabelecida pelos princípios da agroecologia. A
presença do IMAD revela a retomada da voz da Via Campesina que, ao congregar pequenos e
médios agricultores de diversos países, objetiva lutar pela preservação ambiental, pela
biodiversidade, pelos conhecimentos tradicionais das culturas locais. Do mesmo modo, os
movimentos sociais rurais também incorporam essa voz de forma que a preocupação com o
meio ambiente é uma de suas bandeiras. Notamos que a preocupação do Partido Comunista
Brasileiro (PCB) com o meio ambiente, no discurso proferido pelo deputado Carlos Prestes,
apresentado no segundo capítulo, em 1946, não é esquecido, mas é retomado pela rede
discursiva de movimentos sociais e parceiros atualmente, o que demonstra que a história está
sempre inconclusa.
O COAAMS juntamente com os demais movimentos sociais rurais, CPT, CUT,
FETAGRI/MS, MMC, MST e FAF são movimentos sociais rurais atuantes no estado de Mato
Grosso do Sul (MS) aos quais os assentados estão vinculados. Vale destacar que a proposta do
curso de Ciências Sociais é levada incialmente por dois desses movimentos sociais: CPT e
MST, com o objetivo de que o curso fosse oferecido somente para assentados vinculados a
esses movimentos. No entanto, os professores da Faculdade de Ciências Humanas apontaram
a necessidade de organizar um curso com assentados de todos os movimentos rurais do
63 Disponível em <http://www.incra.gov.br/reforma_agraria> Acesso em: 27 fev. 2016.
180
Estado, contemplando diferentes trajetórias de luta e de ideologias. A proposta dos
professores é aceita e os outros movimentos entraram na organização do curso. Desse modo,
entendemos a razão de serem estes os movimentos sociais participantes do curso. Organizar
um curso tendo os movimentos sociais rurais apoiando é fundamental para a Universidade,
pois a eles cabe mobilizar os candidatos das áreas de reforma agrária interessados em
participar do vestibular, organizar junto com os parceiros a infraestrutura necessária para o
funcionamento do curso, acompanhar a realização das atividades nos assentamentos; garantir
a frequência dos educandos no curso, acompanhar a aplicação dos recursos e a execução do
Projeto e, ainda, juntamente dos parceiros, avaliar o desenvolvimento do Projeto. Importa
destacarmos ainda que o Curso de Ciências Sociais é o primeiro realizado no Brasil em
parceria com todos os movimentos sociais rurais presentes no Estado e o primeiro do Brasil
em Ciências Sociais. Esse dado é fundamental para entendermos que a organização do curso
conseguiu reunir diferentes visões acerca da reforma agrária e da educação do campo.
Observamos como o signo educação do campo recebe camadas novas de sentidos no
contexto do curso de licenciatura em Ciências Sociais. O signo guarda em si os sentidos da
chegada dos assentados na UFGD, o que pode sim ocorrer em outros cursos, mas, nesses
espaços sociais, eles são sujeitos isolados participando de um curso desvinculado de sua
realidade, além do fato de eles não poderem, às vezes, assumir-se como sem terra. Nessa
perspectiva, o curso possibilita que os alunos sejam vistos e autoidentifiquem-se como sem
terras, já que, para eles, ainda são “sem terra” pelo fato de se solidarizarem com os muitos
companheiros que estão embaixo da lona preta nos acampamentos lutando por um lote, como
também pelo fato de a luta continuar quando entram na terra.
Notamos, assim, que o signo educação do campo é um fenômeno social propiciado
por uma rede de parceiros, o que dialoga com os valores dos movimentos sociais, herdados
também da Igreja Católica e das Ligas Camponesas, que veem na união a força para lutar
contra a opressão feita aos trabalhadores rurais. No curso, o signo educação do campo recebe
sentidos da agroecologia, da capacitação dos sujeitos, da formação de sujeitos pesquisadores,
da valorização do docente de Ciências Sociais, da inserção de assentados sem terra na
Universidade e da pedagogia da alternância que garante a permanência do estudante no tempo
universidade.
No signo educação do campo, ecoam as vozes do governo federal, por meio do
Pronera, da Universidade e de seus pesquisadores, dos movimentos sociais e movimentos pela
conservação do meio ambiente. No entanto, também podemos observar as vozes contrárias
sendo rebatidas, como a voz de um governo que privilegia a educação regular, não
181
contemplando todos os níveis de ensino, o que poderia novamente ser uma instrumento para
silenciar os assentados e ocultá-los da sociedade brasileira, como ocorre no governo de
Fernando Henrique. Há também as vozes contra o curso vindas de dentro da Universidade,
principalmente, de cursos tradicionalmente ligados ao agronegócio. Há a voz da sociedade
que ainda vê os assentados como desocupados e revolucionários. O signo educação do
campo, assim, reflete a ideologia dos grupos envolvidos e refrata a ideologia dos
latifundiários.
O Projeto do curso de licenciatura em Ciências Sociais mostra que as ações
desenvolvidas pela Faculdade de Ciências Humanas (FCH) tanto na graduação quanto na pós-
graduação demonstram o compromisso histórico da faculdade com as reflexões sobre as
demandas sociais, políticas, econômicas e étnico-culturais, o que a certifica a propor a criação
e a implantação do projeto de curso superior para pessoas de assentamentos rurais de Mato
Grosso do Sul, com apoio do Pronera e do Ministério do Desenvolvimento Agrário (UFGD,
2007).
A realização desse curso no estado de Mato Grosso do Sul (MS) merece destaque
ainda pelo fato de o Estado ser marcado historicamente pela luta pela terra, primeiro, entre
indígenas e latifundiários e, após a partir da década de 70, entre trabalhadores sem terra e
latifundiários. Os intensos conflitos por terra em Mato Grosso do Sul têm como uma das
justificativas a ocupação tardia do território por parte dos não índios, o que ocorre apenas a
partir de 1830 e somente se intensifica após a década de 1940.
Já no início do século XX, as terras ao sul do ainda estado de Mato Grosso foram
arrendadas por Thomás Larangeiras, proprietário da Companhia Matte Larangeira, para
explorar os ervais64
. O poder da Companhia aumenta com a sociedade entre Thomás
Larangeiras e Manuel José Murtinho, primeiro presidente do Estado de Mato Grosso e médico
de Floriano Peixoto, o que garantiu à Companhia ampliar e controlar a área concedida. Com
isso, a Matte Larangeira exerce controle e decide a respeito da entrada e da fixação de
migrantes. Segundo Couto de Oliveira (2013), o controle por parte da Companhia Matte
Larangeira é questionado por indígenas, posseiros, produtores independentes e alguns
políticos. Porém, as relações de poder são desiguais ao se tratar da disputa entre os que não
tinham influência política e os que tinham. Desse modo, o parcelamento das terras é adiado.
64 A influência política colaborou para que a área a ser explorada fosse sucessivamente ampliada, chegando a
5.000.000 hectares, abrangendo ao oeste até as margens do rio Paraguai, em Porto Murtinho, e ao leste até
Bataguassu, perto do limite com o estado de São Paulo.
182
O governo de Getúlio Vargas, na década de 1940, observando a ampliação dos
domínios da Matte Larangeira e a articulação entre o privado e o público, cria, por meio do
Decreto-lei nº 3059, o projeto conhecido como Marcha para o Oeste, o que contempla as
Colônias Agrícolas Nacionais (CAN) e, na região de Dourados, a Colônia Agrícola Nacional
de Dourados (CAND); assim, aos poucos, a concessão de terras da Companhia é retirada.
Muitos podem pensar que esse se trata de um projeto de reforma agrária, mas a intenção do
Governo não é redistribuir terras como um direito, mas conter os avanços dos países vizinhos
à fronteira brasileira. Vargas divulga a existência de “vácuos demográficos”, estratégia
utilizada para atrair para a região novos moradores, porém sua propaganda é enganosa,
porque, no então Território Federal de Ponta Porã, encontram-se índios, posseiros, a Matte
Laranjeira e os produtores rurais.
O sul do estado de Mato Grosso já vinha recebendo migrantes brasileiros desde as
três últimas décadas do século XIX. Segundo Queiroz (2008, p. 44), além dos paraguaios,
foram para a região mineiros, paulistas, paranaenses, e uma grande leva de gaúchos em
decorrência da Revolução Federalista, que depois de se desfazerem de suas propriedades,
encaminham-se em carretas de boi para as terras do sul do então estado de Mato Grosso. Os
migrantes, quando chegaram viram grandes extensões de terras vazias, assim puderam
comprar ou se apossar de vasta extensão, já marcando a presença de latifúndios em Mato
Grosso do Sul.
Esse contexto que abrange grandes extensões de terra nas mãos de poucas pessoas, a
presença de indígenas e a chegada de migrantes brasileiros marca o estado de Mato Grosso do
Sul como um território de constantes tensões desenvolvidas pelas resistências indígenas e
camponesas e, também, pelas ocupações de latifúndios improdutivos. Por isso, um curso
como o de licenciatura em Ciências Sociais é tão importante para os trabalhadores rurais
assentados, os movimentos sociais e os pesquisadores e, ao mesmo tempo, por ser um
desestabilizador dos movimentos políticos dos latifundiários e dos políticos conservadores,
que contemplam, agora, o surgimento de um sem terra, formado em curso superior e dotado
de formação política para continuar a luta que somente avança.
Em Mato Grosso do Sul, os movimentos sociais reivindicam a execução de políticas
voltadas à reforma agrária, bem como as para o desenvolvimento das pequenas propriedades
rurais, as quais produzem para abastecer o mercado interno. De acordo com o PPP do curso
de Ciências Sociais (2007, p. 18), os movimentos sociais mostram-se como catalizadores de
entusiasmos e de ações positivas dos educandos ao criar um sentido criativo, coletivo e
facilitador de ações e relações.
183
Como podemos perceber, os trabalhadores rurais e os movimentos sociais do campo
objetivam chegar à universidade, formarem-se e continuarem sua luta na terra. Por isso, o PPP
do curso busca também atender aos aspectos formais de um curso superior, como veremos a
seguir, a fim de que ele seja reconhecido nas instâncias da universidade.
3.2.3 Organização do PPP (Projeto Político Pedagógico)
O Projeto Político Pedagógico (PPP) expõe, inicialmente, a identificação e a
organização do curso. Em seguida, na primeira parte demonstra os aspectos pedagógicos e, na
terceira parte, expõe o orçamento do curso, como pode ser verificado a seguir:
Identificação da proposta
Da instituição proponente
Título do projeto
Meta objeto do convênio
Responsável pelo projeto na instituição de ensino
Coordenação
Equipe de elaboração
Identificação das entidades parceiras
Definição das responsabilidades e atribuições dos parceiros
Identificação do curso
PARTE I
Justificativa
Dos motivos para a solicitação do curso
Da caracterização da Universidade Federal da Grande Dourados
Da Faculdade de Ciências Humanas
Trajetória da FHC em projetos com movimentos sociais
Do curso de Ciências Sociais
Do perfil desejado dos/as graduados/as em Ciências Sociais
Objetivos
Objetivos gerais
Objetivos específicos
Metas
A proposta teórica e metodológica
Pressupostos teóricos
Pressupostos metodológicos e procedimentos operacionais
Procedimentos metodológicos no tempo comunidade
O material didático
A estrutura curricular do curso de Ciências Sociais
As disciplinas oferecidas
As ementas das disciplinas
O processo de avaliação dos/as alunos/as
184
O estágio curricular
O trabalho de conclusão de curso
As atividades complementares
As disciplinas e carga horária nos TU, TC, PR e TR
O cronograma de execução
O público alvo e os critérios de seleção
Recursos humanos necessários e perspectivas/atribuições no projeto
Recursos humanos envolvidos com o curso
Descrição dos critérios de seleção
Descrição da equipe pedagógica: docentes responsáveis pelas disciplinas
Acompanhamento e avaliação do projeto
Impactos ou resultados esperados e benefícios potenciais
Bibliografia
Anexos
PARTE II
Orçamento do projeto
Notamos que o PPP do curso atende aos aspectos formais do gênero discursivo PPP
ao apresentar os objetivos, as metas, as ementas, a justificativa, a proposta teórica dentre
outras características. Isso evidencia que o curso busca a credibilidade em relação aos outros
cursos da Universidade, já que, por ser um projeto, organizado para apenas uma turma e para
assentados, a oferta do curso poderia ser questionada por professores de cursos mais
tradicionais e elitistas. No entanto, se a estrutura do PPP mostra uma preocupação com a
formalidade da universidade, o conteúdo mostra o contrário, já que o documento evidencia a
posição ideológica dos professores e de seus parceiros com relação à educação superior para
assentados e à reforma agrária. Desse modo, o PPP apresenta-se como um discurso
constituído de diferentes vozes, ora consoantes ao projeto de educação superior e à educação
do campo, ora discordantes, como discutiremos a seguir.
3.2.4 Vozes na Caracterização do Curso de Licenciatura em Ciências Sociais/Pronera
A proposta apresentada ao Pronera Nacional para a criação da licenciatura em
Ciências Sociais propõe que o curso atue preferencialmente nas áreas de reforma agrária, “[...]
de forma criativa e crítica, fazendo frente às demandas e aos desafios da sociedade
contemporânea”, relacionando teoria e prática, por meio de uma orientação teórica e
metodológica pluralista (UFGD, 2007, p. 19). Busca-se uma formação em que se articule a
formação epistemológica e a profissionalizante, viabilizando relações entre teoria e prática,
185
ensino e pesquisa, os quais são apresentados aos educandos desde o primeiro semestre. A fim
de garantir uma relação estreita com os problemas e necessidades sociais, o curso propõe
desenvolver atividades complementares e estágios, como “[...] a participação em seminários,
laboratórios de pesquisa, eventos científicos e outros” (UFGD, 2007, p. 19). Objetiva-se,
assim, que essas atividades promovam um processo ativo de construção coletiva de situações
que envolvam o ensino e a aprendizagem, “[...] buscando manter estreita relação com
problemas e necessidades sociais, por meio de atividades complementares” (UFGD, 2007, p.
19), o que nos leva a inferir que a vivência dos educandos e a sua luta diária devem fazer
parte da fundamentação teórico-prática, já que criar formas de os estudantes conhecerem
ainda mais os problemas dos assentamentos e a pensarem em possíveis soluções são meios
para que os laços entre estudantes sem terra e assentamento apenas se estreitem.
Os parâmetros que norteiam a estrutura curricular do curso de Ciências Sociais estão
em consonância com os princípios das Diretrizes Curriculares para o Curso de Ciências
Sociais, estabelecidas pelo MEC/SESU, conforme Lei n° 9.394/96A (Parecer
MEC/CNE/CES492/2001), sendo elas:
Domínio da bibliografia teórica e metodológica básica;
Autonomia intelectual;
Capacidade analítica;
Competência na articulação entre teoria, pesquisa e prática social;
Compromisso social;
Competência na utilização da informática (UFGD, 2007, p. 19) (grifos
nossos).
Importa destacarmos que algumas dúvidas podem surgir quanto à qualidade dos
conteúdos de um curso voltado para assentados de reforma agrária. Podemos perceber que há
uma relação entre os parâmetros curriculares de um curso de Ciências Sociais regular e a de
um curso de ciências sociais para assentados. Dentre os parâmetros, ressaltamos a articulação
entre teoria, pesquisa e prática social. O professor de Ciências Sociais assentado precisa
articular a fundamentação teórico-metodológica às ações do dia a dia, trazendo para as suas
pesquisas e ensino o que ocorre no vivido pelos alunos, nos movimentos sociais e nos órgãos
governamentais e não governamentais. Assim, podemos pensar na formação de sujeitos
capazes de realizar intervenções e transformação prática da realidade, o que dialoga com o
defendido pelo MST. Para o Movimento (MST, 1996, p. 6-7), não “[...] podemos nos
contentar com o desenvolvimento apenas da chamada ‘consciência crítica’, que é aquela onde
as pessoas conseguem denunciar/discutir sobre os problemas as causas, mas não conseguem ir
186
além disso”. Dialogicamente, a voz de Marx (1845)65
também ecoa, pois, para ele, a “[...] vida
social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo
encontram a sua solução racional na praxe humana e no compreender desta praxe”. Com essa
competência desenvolvida, o sujeito consegue passar da consciência crítica para a consciência
organizativa de intervenção direta na realidade dos assentamentos.
Além disso, também se levanta uma voz discordante ao projeto de educação superior
para assentados, aquela que se ouve na sociedade vigente, bem como na universidade, a qual
questiona a razão de se ter um curso específico para pessoas do campo, bem como a qualidade
e os objetivos do curso. Há uma preocupação da sociedade se a universidade formará
baderneiros e comunistas, um pensamento herdado dos sermões da ala conservadora católica,
como a TFP, conforme discutimos no primeiro capítulo. Inferimos que, ao saber desse
discurso de desaprovação das políticas públicas para as minorias, o corpo docente do curso
encarregado de elaborar o PPP apresenta uma proposta que não se desvincula de um curso
regular, estabelecendo uma consonância com as Diretrizes Curriculares para o Curso de
Ciências Sociais, apresentadas pelo MEC/SESU. Assim, as vozes contrárias estão presentes,
não são apagadas, mas são trazidas à tona para serem respondidas, refutadas e questionadas.
Percebemos que o discurso do PPP orquestra diferentes vozes, as consoantes e as
discordantes. Ouvimos um universo de diferentes vozes sociais, as quais estão lado, “[...] em
que todas as vozes são equipolentes” (FARACO, 2009, p. 78).
Quanto ao perfil desejado dos graduandos em Ciências Sociais, o curso, que se
propõe a oferecer adequada formação ao alunado, constrói um perfil relacionado às
necessidades concretas do campo, tendo em vista suas especificidades e diversidade
socioculturais. Pontuar as “necessidades concretas do campo” é um diferencial quando se
compara o perfil dos alunos assentados a de alunos de cursos regulares de Ciências Sociais.
Isso ocorre porque as demandas dos alunos regulares quase sempre são as mesmas de toda
sociedade, já a dos assentados são próprias, mais específicas, refletem o dia a dia deles e uma
situação de opressão e de exploração sócio-historicamente construída, como já apresentamos
anteriormente. Podemos inferir que há um diálogo entre o que o curso propõe e o que os
trabalhadores sem terra e os movimentos sociais esperam dos alunos de ensino superior.
Entendemos, fundamentados nos discursos analisados no primeiro e no segundo
capítulos, que os professores formados continuam a luta pela terra e pela educação, sendo
65 Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/marx/1845/tesfeuer.htm>. Acesso em: 28 fev. 2017.
187
militantes de uma causa que pretende derrubar as cercas do latifúndio e da ignorância. Assim,
espera-se que os futuros professores desenvolvam suas atividades profissionais com
responsabilidade, solidariedade, espírito crítico e com coerência teórica, científica e
metodológica. Ademais, há a possibilidade de atuação em outros espaços educativos,
públicos, privados, instituições diversas e movimentos sociais (UFGD, 2007). Como podemos
verificar, a luta pela terra e pela educação do campo espera um professor engajado nas lutas
dos trabalhadores rurais e não um funcionário de uma escola rural, que esteja apartado da
realidade de seus alunos e de sua escola.
Ao analisar os dois perfis esperados, percebemos que eles são iguais aos
apresentados quando comparamos os perfis dos alunos de um curso regular, de modo que o
Parecer do MEC/CNE/CES 492/2001 e o PPP apresentam os mesmos perfis para o educador
político-social:
Pesquisador/a seja na área acadêmica ou não acadêmica, como
educador/a político-social;
Profissional que atue tanto em docência, comprometido com as questões
sociais e com compreensão crítica da realidade, quanto em planejamento,
como colaboradores em organizações não governamentais, governamentais,
partidos políticos, movimentos sociais e atividades similares (UFGD, 2007,
p. 20).
A respeito dos objetivos, o PPP do curso apresenta dois objetivos gerais e nove
específicos. O primeiro objetivo geral é:
Formar licenciados/as em Ciências Sociais com uma sólida formação
humanística, que sejam capazes de atuar como profissionais críticos da
realidade multidimensional da sociedade brasileira, do processo educacional
e nas organizações dos movimentos sociais, habilitando-os/as a produzir
conhecimentos que resultem em práticas de docência, lideranças de
movimentos sociais, pesquisas e planejamentos (UFGD, 2007, p. 20) (grifos
nossos).
Nesse primeiro objetivo, destacamos a formação humanística, ao apontar para uma
capacitação dos graduandos para serem profissionais críticos da realidade multidimensional,
atuando como educadores nas escolas e nos movimentos sociais. A voz de Marx ecoa nesse
objetivo, pois a formação humanística nos conduz a pensar em uma formação onilateral.
Marx utiliza esse conceito para se referir a uma práxis educativa revolucionária, a qual
congrega diversas esferas da vida humana que o sistema capitalista tenta separar do homem.
A onilateralidade, para Marx (2004, p. 108), ocorre quando o
188
[...] homem se apropria da sua essência omnilateral de uma maneira
omnilateral, portanto, como um homem total. Cada uma das suas relações
humanas com o mundo, ver, ouvir, cheirar, degustar, sentir, pensar, intuir,
perceber, querer, ser ativo, amar, enfim todos os órgãos da sua
individualidade, assim como os órgãos que são imediatamente em sua forma
como órgãos comunitários, são no seu comportamento objetivo ou no seu
comportamento para com o objeto a apropriação do mesmo, a apropriação da
efetividade humana [...].
Nas palavras de Manacorda (2007, p. 89), a onilateralidade é
[...] a chegada histórica do homem a uma totalidade de capacidades
produtivas e, ao mesmo tempo, a uma totalidade de capacidades de consumo
e prazeres, em que se deve considerar sobretudo o gozo daqueles bens
espirituais, além dos materiais, e dos quais o trabalhador tem estado excluído
em conseqüência da divisão do trabalho.
Essa perspectiva considera o homem como um ser real, o qual tem ações em
condições concretas de existência tanto as que são encontradas prontas quanto as que são
produzidas (MARX; ENGELS, 2001). A onilateralidade diferencia-se da unilateralidade, pois
esta se preocupa apenas com um lado da formação do sujeito, ou seja, de uma dimensão,
apenas o intelecto ou apenas as habilidades manuais, somente os aspectos morais ou somente
os políticos. Pela visão marxista, a unilateralidade pode ser entendida como o
[...] resultado e, ao mesmo tempo, reproduz a divisão social do trabalho. A
separação entre o conceber e o executar de acordo com as classes sociais
tende a atar os indivíduos a funções ligadas ao seu lugar na produção da
vida. Esse parcelamento da atividade social promove o embrutecimento das
faculdades e capacidades humanas, já que seu desenvolvimento deixa de ser
amplo e passa direcionado pela fixação social imposta (DELLA FONTE,
2014, p. 390).
Já a formação onilateral prepara o sujeito para variadas práticas sociais e para várias
dimensões que se articulam com a educação. Numa consonância de vozes, essa perspectiva
também é retomada pelo MST, no terceiro princípio filosófico da educação do MST, que
também defende que a educação esteja voltada para várias dimensões da pessoa humana. O
Movimento defende
[...] que a educação no MST assuma este caráter de onilateralidade,
trabalhando em cada uma de suas práticas, as várias dimensões da pessoa
189
humana e de um modo unitário ou associativo, em que cada dimensão tenha
sintonia com a outra, tendo por base a realidade social em que a ação
humana vai acontecer (MST, Caderno de Educação n. 8, 1996, p. 8).
Ao enfatizar a formação humanística, a qual vê o homem em sua totalidade, a voz do
PPP critica a voz do capitalismo, que reduz o homem a um objeto. Tal situação pode ser
verificada em cursos universitários, como também em escolas urbanas, em que crianças são
contabilizadas como números, já que estão associadas a verbas governamentais ou a
mensalidades escolares. Como objetos, crianças e adultos estão condicionados a aprender
apenas para o vestibular ou apenas para se formarem e não para a vida, não para as interações
sociais, como também não para a participação na sociedade como cidadãos dotados de
conhecimentos e senso crítico.
A polifonia ecoa em diferentes vozes que se chocam, pois são contrárias. No entanto,
a voz do PPP harmoniza essas vozes, uma vez que seus adversários também são seus
ouvintes. É preciso, então, também ouvi-los para rebatê-los e rechaçá-los. Por isso, na
polifonia as vozes expressam-se, deixam-se ouvir. Ao contrário de um discurso monológico,
que pretende abafar as vozes discordantes, o PPP faz emergir vozes contrárias, pois elas
precisam ser descontruídas e respondidas. Como afirma Barros (2011, p. 6), nos textos
polifônicos “[...] as vozes se mostram”, nos monofônicos “[...] elas se ocultam sob a aparência
de uma única voz”. O texto do PPP não quer ser a única voz, da mesma forma não quer
apagar as marcas sócio-históricas de opressão presentes na luta pela terra, ao contrário ele
quer trazê-las à tona para descaracterizá-las e para desmascará-las, pois historicamente elas se
quiseram como únicas, considerando os trabalhadores rurais como objetos passivos e sua
situação de opressão como natural.
Se o primeiro objetivo enfatiza a formação humanística dos licenciandos, o segundo
versa acerca do fortalecimento da educação nas áreas de reforma agrária:
Fortalecer a educação e a possibilidade de ação qualificada nas áreas de
Reforma Agrária com conhecimentos teórico-metodológicos voltados às
especificidades, às necessidades e ao desenvolvimento sustentável do campo
para conquista de melhorias na qualidade de vida (UFGD, 2007, p. 20).
O desejo pelo fortalecimento da escola pode ser notado nesse objetivo ao apontar os
conhecimentos teórico-metodológicos como uma ação política, pois as escolas nos
assentamentos devem ser mais que escolas, elas devem ser uma parte do movimento social, de
forma que elas façam parte da dinâmica do Movimento, a fim de contribuir para a formação
de sujeitos políticos. As ações da escola devem estar voltadas para as especificidades, como
190
também para as necessidades, ao desenvolvimento sustentável do campo para que a qualidade
de vida dos assentados melhore. Assim, a educação do campo contribui para que o
trabalhador rural e seus filhos continuem a viver no campo de forma digna, o que reveste o
signo educação do campo de uma responsabilidade em garantir a permanência do trabalhador
no campo, negada historicamente pela situação de desprezo ocorrida com os filhos.
Há, assim, uma preocupação em não fechar a educação nos limites dos
assentamentos ou dos movimentos sociais, pois é necessária uma abertura de horizontes dos
graduandos, de modo que continuem a praticarem os princípios dos trabalhadores rurais e dos
movimentos sociais, porém sem deixarem que nada que seja humano possa lhes ser estranho.
Diante disso, percebemos que a voz do MST também é ouvida nesse objetivo, pois o
Movimento defende que não se deve fechar em si, em um pequeno mundo, perdendo a
capacidade de planejar o futuro, pois “[...] nossa educação precisa nos ajudar a continuar
rompendo cercas” (MST, 1996, p. 8). As vozes do PPP e a do MST contrariam as vozes
sociais que afirmam que os trabalhadores rurais querem fazer do Brasil um país comunista e
fechado em si, como Cuba. Ao contrário, as vozes consoantes demonstram um projeto de
abertura a novos horizontes, a novos conhecimentos e a novas experiências, sem perder de
vista o projeto de justiça social que se objetiva para toda sociedade e não para parte dela. As
cercas são os obstáculos que toda sociedade enfrenta para ter qualidade de vida e educação.
Desse modo, a cerca dos trabalhadores sem terra não está apenas no campo, mas está em uma
sociedade fundamentada em um capitalismo que explora e oprime os trabalhadores.
Dos nove objetivos específicos, destacamos:
Reafirmar o acesso à educação e à escolarização como um direito
constitucional das pessoas inseridas nos projetos de reforma agrária (UFGD,
2007, p. 20-21).
Essa reafirmação é fundamental por apresentar a voz da Constituição Federal de
1988 que garante o direito à educação a todos independente se o aluno residir na área urbana
ou rural. A Constituição Federal (BRASIL, 1988), ao se referir às diferenças existentes na
sociedade brasileira, homogeniza as demandas. Somente na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB - Lei nº 9.394/96), em 1996, um artigo versa sobre a educação para
o povo do campo: “Art. 28. Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas
de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação, às peculiaridades da vida
rural e de cada região”. Como podemos observar, a LDB reconhece a especificidade do
campo, mas ainda não assimila a educação do campo. Mesmo não se referindo à educação do
191
campo, é nesse artigo que os movimentos sociais rurais apoiam-se para solicitar seus direitos,
evidenciando a urgência da organização da Educação do Campo pública no Brasil.
Somente, em 2001, depois das reivindicações dos movimentos rurais foram lançadas
as Diretrizes Operacionais para Educação Básica nas Escolas do Campo conforme Parecer n°
36/2001. As Diretrizes são acompanhadas de um relatório que apresenta o contexto histórico
percorrido pela Educação do Campo, destacando a dívida histórica que o País tem com a
população rural, a qual sempre esteve à margem da sociedade e dos direitos. Alinhada aos
propósitos dos movimentos sociais rurais, as Diretrizes apresentam a educação do campo
como capacitada para emancipar a pessoa humana e para atender às particularidades do
campo, tendo como base a cultura campesina, a identidade dos sujeitos do campo, as relações
socioambientais e as organizações políticas. No cruzamento das vozes da Constituição
Federal, das Diretrizes Operacionais e do PPP, percebemos que os discursos completam-se e
são construídos na situação concreta da enunciação, em que é impossível não tocar nos
milhares de fios dialógicos já existentes, ou seja, na luta histórica dos camponeses.
Com as Diretrizes Operacionais para Educação Básica nas Escolas do Campo, o
signo educação do campo é oficializado. No entanto, ele já circula pela sociedade, captando
sentidos dos signos terra e reforma agrária, pois é construído em um processo sócio-histórico
de lutas e conquistas dos trabalhadores rurais; do mesmo modo é constituído pela oposição ao
signo educação rural, ao qual pretende negar e criticar. A mudança de educação rural para
educação do campo tem um sentido expressivamente significativo, uma vez que o primeiro
signo congrega uma forma de educação para trabalhadores do campo, objetivando capacitar a
mão-de-obra rural para trabalhar nos projetos de racionalização da produção agrícola. Nesse
caso, a educação vem de fora para dentro do campo, no sentido de não ser feita pelos
trabalhadores e não vincular o ensino à sua emancipação e à transformação social. Já o signo
educação do campo refrata a história vivenciada pelos trabalhadores rurais sem terra com a
educação rural e reflete a visão de educação para a transformação social requerida pelos
movimentos sociais rurais e pelos trabalhadores sem terra. O signo, nessa perspectiva,
congrega os sentidos da educação rural para negá-la e para saber o que não se quer para a
educação do campo. Por isso, o signo educação do campo está atravessado pelos sentidos das
lutas sociais já iniciadas pelas Ligas Camponesas e, também, pelas formas de ver a educação
como uma ação libertadora, como pregaram as CEBS, o MST e a Educação Popular de Paulo
Freire. No caso do curso de Ciências Sociais, o signo educação do campo ganha novos
sentidos por adentrar um novo espaço social, a universidade.
192
Outros aspectos do signo educação do campo podem ser analisados no próximo
objetivo do curso:
Contribuir para a formação de profissionais capazes de compreender o
processo histórico da produção do conhecimento científico e suas relações
com os aspectos de ordem política, cultural, social, ética e econômica, para
assim intervir no espaço vivido, com uma concepção de educação
referenciada num paradigma do campo (UFGD, 2007, p. 20-21).
Por meio desse objetivo, podemos observar que o curso visa a contribuir para a
formação de professores capacitados para relacionar teoria e prática. Diante disso, vemos que
o signo educação do campo também encorpa o sentido de agregador de teoria e de prática
social dos assentamentos. Desse modo, reveste-se do sentido de intervenção social, à medida
que há a relação entre o conhecimento vindo da universidade e a prática social dos
assentamentos de reforma agrária.
Esse signo também recebe sentidos da Pedagogia da Alternância, quando o curso
objetiva:
Garantir e fortalecer o princípio da Pedagogia da Alternância, possibilitando
a articulação das atividades tempo-universidade com as atividades tempo-
comunidade, num processo de ação-reflexão-ação do conhecimento (UFGD,
2007, p. 20-21).
Um aspecto fundamental para a ocorrência dos cursos superiores e de pós-graduação,
tendo em vista a distância entre as áreas de Reforma Agrária e as Universidades, é a
Pedagogia da Alternância, segundo a qual os estudos são desenvolvidos de forma concentrada
durante um período nas universidades ou nas escolas do campo e, em seguida, nas
comunidades. Nas universidades, são realizadas discussões teóricas referentes à realidade dos
assentamentos; já nas comunidades, são desenvolvidos estudos teóricos e pesquisas com o
acompanhamento de professores do curso, que possibilitem aos educandos refletirem de
forma teórico-prática acerca das especificidades do campo, o que permitirá intervenções
práticas (BRASIL, 2004).
A Pedagogia da Alternância66
consiste em uma metodologia de organização do
ensino que contempla diferentes experiências formativas distribuídas ao longo de tempos e
66 “Esse método começou a tomar forma em 1935 a partir das insatisfações de um pequeno grupo de agricultores
franceses com o sistema educacional de seu país, o qual não atendia, a seu ver, as especificidades da Educação
para o meio rural” (TEIXEIRA, BERNARTT e TRINDADE, 2008, p. 227).
193
espaços distintos, tendo como finalidade uma formação profissional (TEIXEIRA;
BERNARTT; TRINDADE, 2008). No Brasil, a Pedagogia da Alternância é implantada em
1969, no estado do Espírito Santo, por meio da criação das três primeiras Escolas Famílias
Agrícolas. Essas escolas oferecem o ensino fundamental a filhos de trabalhadores rurais.
Trata-se de uma forma de reconhecer as especificidades do campo, por conceber que
há momentos em que toda família precisa se reunir para plantar e outro para colher, o que
evidencia uma dinâmica diferente dos moradores urbanos. A adoção da Pedagogia da
Alternância é, portanto, mais um elemento que entra na cadeia discursiva da história da terra,
da reforma agrária e da educação do campo no Brasil, por ser uma resposta à negação feita
pela escola e pela universidade aos trabalhadores rurais durante a história do Brasil. Nesse
contexto, a eles foram negadas as oportunidades de acesso à educação pública por meio de
políticas de governos que privilegiaram formas excludentes de ensino. Com a Pedagogia da
Alternância, é possível que os alunos do ensino básico e superior possam passar dias nas
escolas ou universidades e depois voltar para os assentamentos para pôr em prática o que
realizaram nas instituições de ensino, garantindo também que os alunos não percam o vínculo
com o campo e com a família.
Podemos afirmar que um curso como o de Ciências Sociais para assentados em Mato
Grosso do Sul só poderia acontecer por meio da Pedagogia da Alternância, pois como
podemos observar na Figura 1, a seguir, os acadêmicos assentados deslocaram-se de
diferentes e distantes municípios (Anastácio, Bataguassu, Bataiporã, Corumbá, Itahum
(Distrito de Dourados), Eldorado, Itaquiraí, Japorã, Juti, Nioaque, Nova Andradina, Nova
Alvorada do Sul, Ponta Porã, Rio Brilhante, Sidrolândia e Terenos67
) para chegarem a
Dourados, onde está localizada a UFGD.
67
Essas são as distâncias entre o município do assentado e Dourados: Anastácio (285km), Bataguassu (313km),
Bataiporã (188km), Corumbá (570 km), Itahum (71,3 km - Distrito de Dourados), Eldorado (222 km), Itaquiraí
(180 km), Japorã (265 km), Juti (104 km), Nioaque (241 km), Nova Andradina (180km), Nova Alvorada do Sul
(116km), Ponta Porã (120km), Rio Brilhante (70,4km), Sidrolândia (183 km) e Terenos (256 km). Essas
distâncias não contemplam os quilômetros entre o assentamento e o seu município.
194
Figura 1: Mapa do Estado de Mato Grosso do Sul: municípios onde estão localizados os
assentamentos rurais em que residem os acadêmicos sem terra
Fonte: Menegat e Farias (2009, p. 29).
A Pedagogia da Alternância proporciona aos graduandos saírem nos meses de
janeiro-fevereiro e julho-agosto, durante cinco semanas, para estudarem na Universidade em
período integral e, depois, voltarem aos assentamentos para continuarem seus estudos e,
também, seus compromissos com o lote, com a família e com o movimento social. Com isso,
o graduando tem a oportunidade de permanecer na Universidade e de colocar em prática, em
195
sua vivência, o compreendido e, em seguida, levar o que observou nos assentamentos para a
sala de aula.
Essa dinâmica dialoga com a metodologia das CEBs, ver-julgar-agir, praticada
quando os trabalhadores enxergam problemas no seu dia a dia, levam-nos para as reuniões a
fim de que sejam refletidos pelo grupo e, assim, sejam pensadas prováveis soluções. Desse
modo, o trabalhador passa a criticar o seu contexto social e a questionar a sua situação de
oprimido e de esquecido pelo poder público. Além disso, ele passa a fazer projeções para a
resolução do problema, não sendo passivo à situação de opressão. Ao enxergar, questionar e
pensar soluções, o trabalhador toma o caminho da libertação, pois sozinho consegue
questionar outras formas de exploração que a sociedade dominante emplaca sobre ele.
Do mesmo modo, os acadêmicos do curso também têm a possibilidade de analisar o
seu contexto e relacioná-lo com a teoria vista na Universidade, o que garante um diálogo entre
o vivido e o teorizado, muitas vezes, tão distantes da realidade dos estudantes brasileiros. Os
movimentos sociais rurais também se utilizam de uma metodologia de participação ativa dos
militantes e dos trabalhadores rurais na discussão acerca de problemas enfrentados no seu dia
a dia. São congressos, organizações em setores, marchas, acampamentos, reuniões que
oportunizam aos membros dos movimentos dialogarem a respeito do vivido. Observamos que
o signo educação do campo traz em seu bojo as experiências vivenciadas em grupo, a
participação da comunidade na escola e a relação entre teoria e prática, já que o ser sem terra
acompanha os trabalhadores rurais por onde eles forem.
Com relação ainda à Pedagogia da Alternância, podemos afirmar que, em um estado
como Mato Grosso do Sul, ela possibilita que as barreiras da localização dos assentamentos,
na maioria significativamente distantes de cidades, e, consequentemente, da permanência dos
graduandos no curso fossem vencidas. Além disso, propicia aos professores universitários
conhecerem as escolas para visualizarem de perto as condições de ensino nas áreas rurais,
como também a situação real dos assentamentos. Dessa forma, os professores têm a
oportunidade de conhecer os assentados, a família dos graduandos, a escola e a realidade dos
assentamentos. Durante as visitas dos professores aos assentamentos, as atividades de estudos
são discutidas em grupo. Nesses encontros, sempre estão presentes no mínimo dois
professores que juntos mediam as reflexões para que os graduandos também em grupo
possam chegar à compreensão do apresentado no tempo Universidade. Como podemos
perceber não se trata de um processo de educação de mão única tampouco de um processo em
que o contexto sociocultural do educando é deixado de lado. Ambos, professores e
acadêmicos, estão juntos no processo de re-criação do conhecimento. Como afirma Freire
196
(1996, p. 31): “[...] Educador e educandos (liderança e massas), co-intencionados à realidade,
se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvelá-la e, assim,
criticamente conhecê-la, mas também no re-criar este conhecimento”.
O signo educação do campo, nesse contexto, abrange os sentidos mais particulares
dos graduandos assentados, pois nele se compreende as distâncias entre o assentamento e as
cidades, como também se leva em consideração o vivido pelos estudantes sem terra, como o
tempo de plantar, o tempo de colher, os trabalhos nos movimentos sociais, as datas festivas
particulares dos assentamentos e o calendário das escolas. Sem essa compreensão, os
assentados poderiam desistir do curso e reviver a experiência de abandono dos estudos, como
ocorreu com a maioria quando eram crianças, fato que emerge nos relatos pessoais. Desse
modo, o signo educação do campo também está atravessado pelas lutas dos trabalhadores sem
terra para poder acessar a universidade e permanecer estudando.
O projeto discursivo do PPP está ancorado nas condições sócio-históricas relativas à
luta pela terra no Brasil, consequentemente, o signo educação do campo existe nesse
cruzamento de objetivos, de vivências, de vitórias e de perdas, enfim, na interação verbal. O
PPP apresenta posições axiológicas a respeito da reforma agrária, da educação do campo, mas
também acerca das metodologias dos cursos regulares das universidades e das escolas, da
relação entre teoria e prática e da relação entre o professor e a realidade do educando. Assim,
há um caráter de responsividade ao questionar uma metodologia fundamentada na tradição,
em que o conhecimento está com o professor e precisa ser passado para o aluno, quem nada
tem a oferecer no processo de ensino-aprendizagem. O plano discursivo do PPP não é a
primeira palavra a questionar esse modo de educação, mas ele dialoga com os pressupostos já
conhecidos de Paulo Freire (1996). O educador questiona a educação bancária, na qual o
educador está alheio à realidade do aluno e rechaça qualquer forma de companheirismo. O
educador bancário é aquele que detém o conhecimento e deposita-o no aluno, pois o considera
uma folha em branco a ser preenchida, pois não sabe nada. O conhecimento, neste caso, é
algo acabado, encerrado no professor e estático. Freire (1985) critica essa educação que não
possibilita a ação livre, criadora e formadora de consciência. O educador também propõe
uma educação libertadora, a qual se caracteriza como “[...] um processo pelo qual o educador
convida os educandos a reconhecer e desvelar a realidade criticamente” (FREIRE,1985, p.
125).
Lembramos que o PPP não é um documento a ser lido apenas pelos professores de
um curso, ele passa pela aprovação de um conselho universitário formado por professores de
diferentes cursos, com diferentes posições axiológicas sobre a terra e, também, sobre o ensino
197
superior. Desse modo, o PPP projeta deferentes interlocutores a quem quer convencer de que
um curso para assentados é uma forma de rever posições históricas de exploração e de
opressão do camponês, como também é uma possiblidade para a universidade repensar seus
caminhos metodológicos que têm apartado a teoria da prática.
Os interlocutores são vários e distintos e para eles o PPP é enunciado. Inferimos que
de um lado estão os ouvintes do círculo da luta pela terra, como professores universitários da
área de Ciências Humanas, movimentos sociais rurais, trabalhadores rurais, governo federal e
futuros acadêmicos; de outro estão os contrários a um programa de justiça social na terra,
como professores universitários de cursos tradicionais ou de cursos que não trabalham com a
realidade humana, latifundiários organizados em associações rurais, muitas vezes
financiadoras de pesquisas no Estado de Mato Grosso do Sul, políticos e sociedade
conservadores, que, embora explorada, acredita que a reforma agrária traz grandes prejuízos
ao Brasil. Percebemos que o papel do outro no plano discursivo do PPP é significativamente
amplo, como observa Bakhtin (2011), pois desde o início o enunciado é construído para ir ao
encontro dele e de suas atitudes responsivas. É para o outro que “[...] o meu pensamento pela
primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo também para mim mesmo), não são
ouvintes passivos mas participantes ativos da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2011, p.
301).
O próximo objetivo refere-se à formação ética e ao compromisso social:
Contribuir para a formação ética e o senso de compromisso social (UFGD,
2007, p. 20-21).
O compromisso do curso com a ética e com o compromisso social leva em
consideração que, por meio de um comportamento ético, o assentado pensa na união dos
membros do assentamento, os quais colaboram entre si mediante um conjunto de costumes e
virtudes que sustentam a coesão da comunidade, o que ajuda os assentados a serem cidadãos.
Estar em cooperação, em união, como também partilhar e participar de mutirões são
características da vivência nos assentamentos de reforma agrária. Os trabalhadores rurais e os
movimentos sociais rurais concebem que o caminho da história da terra no Brasil é feito de
lutas e de vitórias, mas também de expulsões, de prisões, de perseguições e, inclusive, de
quedas de companheiros por homicídio. Durante a longa caminhada sócio-histórica, puderam
observar que a união é um aspecto diferencial na luta e na conquista por direitos. Por isso, a
coletividade, a divisão de tarefas e a participação em variadas áreas dos movimentos sociais
198
são elementos essenciais na organicidade dos assentamentos, demonstrando uma resposta ao
individualismo e ao egocentrismo pregados pelo sistema capitalista. O curso muitas vezes
acentua o caráter de coletividade entre os graduandos de Ciências Sociais, principalmente,
pelo fato de na mesma sala haver membros de diferentes movimentos sociais rurais, os quais,
às vezes, discordam em determinados temas por terem visões diferentes. Por isso, no curso,
por exemplo, há a delegação de tarefas aos graduandos. Durante uma semana, uma dupla de
estudantes de um mesmo movimento social fica responsável por organizar algumas tarefas do
curso, como noite cultural, reuniões com agentes de fora da universidade, dentre outras.
Assim, a cada semana o curso/coordenação/professores visualiza como cada movimento
social se organiza para desempenhar as tarefas descritas e, também, incorpora algumas dessas
formas em sua organização.
Logo, percebemos que o caráter da coletividade circula pelo curso. É um
compromisso com o coletivo, com o movimento social e com a construção por várias mãos de
um projeto de ensino superior para assentados e não para a pessoa individual. É um ato
responsivo aos cursos que, na prática, não têm compromisso social, uma vez que privilegiam
o individualismo, a competitividade e o produtivismo, características de um capitalismo de
exploração.
Observamos, assim, uma tensão discursiva entre diferentes vozes. De um lado, a voz
dos movimentos sociais rurais que defende a coletividade, o compromisso social e o
compromisso com a formação do outro. De outro, está a voz do capitalismo que advoga a
favor do individualismo, da acumulação, da exploração e da grande valia. A polifonia é
observada nessa tensão de vozes diferentes, as quais não são apagadas, mas ecoam em um
plano discursivo que objetiva fazê-las se digladiar, se colidir, entrarem em luta, a fim de que o
leitor perceba qual é o foco de cada um dos lados dessa luta e recuse a voz do capitalismo.
O signo educação do campo incorpora sentidos do compromisso com a ética e o
social. Diferentemente da escola urbana que, na maioria das vezes, prega a competição entre
os alunos, a educação do campo quer acentuar o compromisso do estudante com a
coletividade, com o assentamento e com o projeto de reforma agrária e justiça social.
Ao apresentar os pressupostos teóricos do curso, o PPP afirma que as reflexões que
envolvem a educação do campo foram construídas em um processo histórico de luta de
movimentos sociais, com o objetivo de construir uma proposta pedagógica baseada no vivido
ao longo das lutas por terra e por cidadania (UFGD, 2007, p. 23). Há, portanto, um
reconhecimento de que a educação do campo é fruto de um processo histórico de lutas dos
199
movimentos sociais rurais, iniciado com as Ligas Camponesas e intensificado no final da
década de 1970.
A escola pública que se espera baseia-se no paradigma “contra-hegemônico”:
Igualmente, reivindica-se uma escola pública do campo, com um paradigma
contra-hegemônico, no qual prevaleçam concepções alicerçadas nos
princípios da educação popular, valorizando pressupostos teóricos e
metodológicos que incentivem a formação de cidadãos/as capazes de
questionar a dominação, a falta de direitos, a desigualdade social, enfim, que
entendam as contradições dessa sociedade, por que elas existem e quais os
mecanismos de manutenção das relações de privilégio (UFGD, 2007, p. 24).
O termo “contra-hegemônico” é discutido por Santos (2004), ao apontar que uma
transição paradigmática parte do esgotamento dos paradigmas clássicos do Direito, da Política
e da Ciência, o que permite a valorização de saberes e experiências alternativas. O “contra-
hegemônico” aponta para inúmeras formas de compreender o mundo e quer pôr em xeque o
pensamento hegemônico que objetiva se impor, constituindo opressão e aniquilando muitos
saberes indispensáveis à vida, mas que são marginalizados por negar a ordem vigente imposta
pela classe dominante.
A voz da educação popular está presente como base teórica por representar um
conjunto de práticas tecidas junto às classes populares (fábricas, sindicatos, igrejas,
universidades, campo), em que se objetiva levar a educação para os trabalhadores em situação
de pobreza, marginalizados, excluídos de seus direitos básicos e abandonados por uma escola
formal. O método da educação popular oferece base a um dos programas de alfabetização de
brasileiros mais ambiciosos da história, que é proposto pelo ministro da educação Paulo de
Tarso, durante o governo de João Goulart. Paulo Freire é o coordenador do então criado
Programa Nacional de Alfabetização, que com seu método pretende alfabetizar 5 milhões de
adultos em mais de 20 mil círculos de cultura em todo País. Trata-se de uma ação educadora
que busca a conscientização por meio da práxis transformadora, da ação e da reflexão no
sentido da emancipação humana.
Ao analisarmos a presença do conceito de “contra-hegemônico” e “educação
popular”, observamos que há uma relação dialógica entre o PPP e a teoria de Santos e a
proposta de educação de Paulo Freire. Isso demonstra que o PPP tem suas raízes em
pensadores que discutem a exploração dos marginalizados na sociedade e como se efetiva
essa exploração. Assim, observamos uma relação direta entre o discurso e o extra-verbal.
Tudo o que é enunciado vem de fora do sujeito falante, do seu exterior, não pertence a ele,
200
pois já faz parte de um já-dito e de um já-conhecido, ou seja, do campo cultural do enunciador
e do interlocutor. Somado a isso, Bakhtin (1988, p. 46) assegura que:
[...] Um enunciado isolado e concreto sempre é dado num contexto cultural e
semântico axiológico (científico, artístico, político, etc.) ou no contexto de
uma situação isolada da vida privada; apenas nesses contextos o enunciado
isolado é vivo e compreensível: ele é verdadeiro ou falso, belo ou disforme,
sincero ou malicioso, franco, cínico, autoritário e assim por diante.
Ademais, percebemos que todo discurso é criado a partir de outro, no caso o discurso
científico do PPP dialoga com discursos de outros pesquisadores, evidenciando que “[...]
alguma coisa criada é sempre criada a partir de algo dado” (BAKHTIN, 2011, p. 326). Porém,
Bakhtin (2011, p. 326) acrescenta que todo dado torna-se criado, já que passa pela avaliação
de um eu: “[...] O enunciado nunca é apenas um reflexo, uma expressão de algo já existente
fora dele, dado e acabado”.
Notamos que no plano discursivo, o PPP está voltado não só para o seu objeto,
educação superior para assentados, mas também para o discurso de outros: discursos
científicos, sociais, políticos e educacionais, os quais fazem parte da cadeia discursiva da
educação no Brasil e, assim, como todo “[...] o enunciado é um elo na cadeia da comunicação
discursiva e não pode ser separado dos elos precedentes que o determinam tanto de fora
quanto de dentro, gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonâncias dialógicas”
(BAKHTIN, 2011, p. 300).
A proposta teórica aponta que o curso pretende colaborar para a construção de uma
identidade profissional que esteja relacionada às experiências vividas durante a luta pela terra,
pela reforma agrária e pela educação do campo:
[...] espera-se colaborar para a construção de uma identidade profissional
articulada às experiências anteriores, constituídas ao longo da trajetória
pessoal e coletiva de luta pela terra e por cidadania, ampliando o
compromisso com a profissão e com a realidade complexa dos
assentamentos de reforma agrária (UFGD, 2007, p. 24).
Percebemos que o curso não visa a capacitar um profissional de Ciências Sociais
desvinculado da luta pela terra e pela cidadania. Objetiva-se que a identidade do professor de
Ciências Sociais esteja constituída de suas experiências individuais e coletivas, de forma que
ele se comprometa cada vez mais com as necessidades dos assentamentos e dos movimentos
sociais. A identificação do professor com a luta é fundamental para a continuação do projeto
de transformação social que os movimentos sociais visam. Desse modo, o professor precisa
201
enxergar-se como professor e sem terra, sem perder de vista a sua trajetória como militante e
como sujeito de uma luta que tem suas raízes ainda no sistema de sesmarias, como discutimos
no primeiro capítulo. A identidade de professor, assentado sem terra e de militante, é o que
define o Eu. Por isso, o curso empreende diversas ações para acentuar essa identidade
múltipla, como início das aulas com a mística, seminários, noites culturais, exposição de
cartazes e, também, atividades de pesquisa nos assentamentos. Observamos, ainda, que o
discurso do PPP objetiva negar a dicotomia homem-mundo, como afirma Paulo Freire, vendo
os homens simplesmente no mundo “[...] e não com o mundo e com outros” homens.
Podemos perceber a relação dialógica entre o PPP e os pressupostos educacionais de
Paulo Freire também na fundamentação teórica do curso:
Pretende-se, ainda, construir um diálogo defendido por Paulo Freire, quando
tudo se troca, tudo se partilha, ou seja, um diálogo entre pessoas que são
capazes de ouvir a outra antes de falar, um diálogo que é estruturado na troca
de experiências qualitativamente diferentes, de aprendizagem do humano,
tudo se aprende e tudo se ensina, sem nenhum tipo de hierarquização do
saber: você-e-eu, nós-e-vocês (UFGD, 2007, p. 24).
A voz do educador ouve-se quando se diz que “[...] tudo se troca, tudo se partilha”,
no sentido de que não há alguém que repassa um conhecimento, mas há uma troca entre os
sujeitos participantes desse processo. Paulo Freire (1996, p. 68), ao afirmar, em A Pedagogia
do Oprimido, que: “[...] Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se
educam entre si, mediatizados pelo mundo”, defende que a aprendizagem se faz em um
contexto de diálogos entre sujeitos. Não há, portanto, um sujeito detentor de um conteúdo que
é repassado a quem não tem conhecimentos. Pelo contrário, no processo da aprendizagem há
trocas de experiências, de forma que o vivido pelos sujeitos envolvidos constitui a
aprendizagem. São as relações humanas e as interações que contribuem para que os homens
eduquem-se. No caso dos acadêmicos do curso, as vivências como empregados nas fazendas,
depois como acampados e, finalmente, como assentados fazem parte da aprendizagem do
curso, pois é este trajeto que os fazem ser sem terra. Por isso, o diálogo é o ponto chave para a
aprendizagem e para a constituição da identidade desses sujeitos. Dialogar com o outro, ser
capaz de ouvir primeiro para depois falar, assim, há o entendimento e a aprendizagem. A
aprendizagem é feita em um diálogo que apresenta o outro, primeiro, e, depois, o Eu.
Consequentemente, há um Nós e um Vocês, o que demonstra uma coesão de ideias. Nessa
perspectiva, o signo educação do campo é constituído pela interação entre o Outro e o Eu,
porque é no diálogo que a aprendizagem é construída.
202
A presença do discurso indireto na proposta do PPP pode ser vista como um discurso
dentro de outro discurso, uma vez que a voz do PPP se harmoniza, se integraliza com a voz de
Paulo Freire, criando um efeito de sentido de sintonia entre os dois e, ao mesmo tempo,
credibilidade e autoridade ao PPP, pois mostra estar fundamentado no dizer de um dos
maiores expoentes da educação do Brasil. Como Bakhtin salienta (2002), o discurso do outro
pode entrar em nosso discurso “em pessoa”, como um elemento integral da construção do
discurso. Ademais, o dizer “ninguém se educa sozinho” também dialoga com a metodologia
das CEBs, desenvolvida durante seus cursos de formação, quando são lançadas questões aos
trabalhadores e a eles cabia refletir. O resultado da reflexão é sempre uma relação com o
vivido, com sua história e a de sua família, o que refletia o vivido por outros tantos
brasileiros. As CEBs estão fundamentadas pela teoria da Libertação, que prega a libertação do
povo por ele mesmo. Porém, como afirma Freire (1996, p. 30), sabe-se que “[...] a
dependência dos oprimidos” é um “[...] ponto vulnerável”, herança de uma educação rural,
utilizada como método opressor, baseada na adaptação de conteúdos da cidade para o campo,
como também em um discurso católico que previa um lugar secundário para os trabalhadores
rurais no Corpo Místico de Cristo, conforme prega a TFP, apresentada no primeiro capítulo.
Por isso, é necessário, segundo essa perspectiva, tentar, “[...] através da reflexão e da ação,
transformá-la em independência” (FREIRE, 1996, p. 30). Consequentemente à prática do
discurso da teoria da Libertação, às ações das CEBs e à proposta educacional de Paulo Freire,
é possível ver emergir movimentos sociais rurais, como MST e a CPT, como discutimos no
segundo capítulo, elementos sociais que transformam a realidade, principalmente, nas décadas
de 1980 e 1990, de luta pela terra e por justiça social no País.
No que se refere à estrutura curricular68
do curso de Ciências Sociais, observamos
que, ao mesmo tempo em que se quer garantir a formação clássica, teórico-metodológica e
pedagógica, também se assegura uma análise da realidade global, brasileira, sul-mato-
grossense, especialmente, no que se refere aos assentamentos rurais (UFGD, 2007, p. 28).
Garantir a formação clássica evidencia que o curso está fundamentado nas Diretrizes do MEC
68 No que se refere ao Estágio Curricular, o curso objetivou criar condições para a realização de discussões
críticas, possibilitando a reflexão do planejamento, a execução e a avaliação das práticas desenvolvidas pelos
graduandos (UFGD, 2007). Segundo o PPP, o estágio seria um momento para articular a teoria e a prática à
atividade política dos graduandos, o que asseguraria a construção crítica do conhecimento e a reflexão da
realidade social. Assim, busca-se, no estágio, “[...] um permanente ato de reflexão sobre os impasses e soluções
da prática político-social dos/as educadores/as a partir da realidade específica em que ela ocorre, provocar
análises que contribuam para pensar a emergência de políticas públicas nas áreas da reforma agrária, bem como
a discussão crítica da educação do campo” (UFGD, 2007, p. 46).
203
para qualquer curso de Ciências Sociais, o que nega discursos que apontam para uma
formação de militantes do MST, de radicais, de baderneiros e de comunistas, o que também
faria o investimento ser criticado. São discursos alicerçados em discursos católicos, como os
da TFP, que defendem a tradição, a família e a propriedade. No discurso do Bispo Geraldo de
Proença Sigaud69
, fica evidente a ideia de que as minorias devem aceitar sua condição de
membros inferiores na sociedade assim como no Corpo Místico de Cristo. Há um ato de
responsividade do plano discursivo do PPP que nega o defendido pela Igreja conservadora
nos discursos do Papa Pio IX, do bispo e da TFP, os quais consideram o comunismo uma
doutrina “[...] nefanda [...], contrária ao direito natural, que, uma vez aceita, lança por terra os
direitos de todos, a propriedade, a própria sociedade humana” (PAPA PIO IX, 1960, p. 8-9),
conforme apresentamos no primeiro capítulo.
Tendo em vista as orientações das diretrizes curriculares para o curso de Ciências
Sociais, a estrutura do curso é organizada em três eixos do conhecimento: Sociologia, Ciência
Política e Antropologia. A dimensão epistemológica leva em consideração o pensamento
científico dos profissionais da área, e é obtida por meio das disciplinas obrigatórias
organizadas em três núcleos: Núcleo de Formação Específica, Núcleo de Formação
Complementar e Núcleo de Prática Pedagógica (UFGD, 2007, p. 28).
O Núcleo de Formação Específica constitui-se pelo conjunto de disciplinas cerne da
formação dos futuros profissionais em Ciências Sociais. Já o Núcleo de Formação
Complementar abrange disciplinas de áreas afins, as quais contribuem para a formação do
futuro professor, como Economia, História, Filosofia, Psicologia, Letras, Estatística,
Informática e Geografia. Por fim, o Núcleo de Prática Pedagógica contempla disciplinas
pedagógicas que culminam no estágio. Esse momento ocorre nas unidades escolares e
contempla atividades de observação, participação e regência, também ocorrendo nos
assentamentos por meio de atividades de elaboração e execução de projetos comunitários que
visem ao ensino, extensão e pesquisa (UFGD, 2007, p. 30).
A seguir, apresentamos dois quadros. No primeiro, expomos as disciplinas ofertadas
nos curso de licenciatura em Ciências Sociais, e no segundo as referentes ao curso regular de
Ciências Sociais da UFGD.
69 O bispo Geraldo de Proença Sigaud teria mais tarde criticado a TFP e apoiado a reforma agrária do governo do
General Médici. Disponível em: http://www.pliniocorreadeoliveira.info/MNF_701007_dsigaud_tfp.htm Acesso
em: 10 nov. 2017.
204
Quadro 3: Estrutura Curricular do Curso de Ciências Sociais/Pronera-UFGD
1º Sem. 2º Sem. 3º Sem. 4º Sem. 5º Sem. 6º Sem. 7º Sem. 8º Sem.
Julh. 2008 Jan. 2009 Julh. 2009 Jan. 2010 Julh. 2010 Jan. 2011 Julh. 2011 Jan. 2012
Teoria Antropológica
Clássica
68h
Teoria
Antropológica
Contemporânea
68h
Informática
68h
Antropologia
Rural
68h
Sociologia
Rural I
68h
Sociologia Rural
II
68h
Geografia Agrária
68h
Relações de
Gênero e Poder
68h
Teoria Política
Clássica
68h
Teoria
Política
Contemporânea
68h
Psicologia
Social
68h
Psicologia da
Educação
68h
Sociologia da
Educação
68h
Estágio Curricular
(Atividade
Prática)
48h
Teoria dos
Movimentos
Sociais
68h
Sociologia
da Comunicação
68h
Introdução
à Sociologia
68h
Teoria
Sociológica
Clássica
68h
Teoria
Sociológica
Contemporânea
68h
História do Brasil
102
Estrutura Social
Brasileira
68h
Pensamento
Social Brasileiro
68h
Políticas Públicas
e Direitos
Humanos
68h
História da África
102h
Filosofia
68h
Metodologia
Científica
68h
Produção de Texto
102 h
Didática I
68h
Didática II
68h
Estrutura e
Funcionamento da
Educação
Nacional
102
História Indígena
102h
Trabalho de
Elaboração
Própria
102h
Língua
Portuguesa
102h
Filosofia e
História
da Educação
68h
Introdução à
Matemática e à
Estatística
102h
Matemática
Financeira
68h
Economia e
Processos
Produtivos
68h
Geografia do
Brasil
102 h
Projeto de
Pesquisa
102h
Língua Brasileira
de Sinais -
LIBRAS
68h
Estágio Curricular
(Atividade
Prática)
*(102h comunidade)
Estágio Curricular
(Atividade
Prática)
*(150h
comunidade)
Estágio Curricular
(Atividade
Prática)
*(100h
comunidade)
Fonte: Adaptado do PPP do curso de Ciências Sociais-UFGD, 2007, p. 31.
* Estágio a ser realizado nos assentamentos rurais durante o Tempo Comunidade.
205
Quadro 4: Estrutura Curricular do Curso Regular de Ciências Sociais – UFGD – Licenciatura
1º Sem.
2º Sem. 3º Sem. 4º Sem. 5º Sem.
6º Sem.
7º Sem.
8º Sem.
Introdução à
Antropologia (72hs)
Antropologia
Clássica (72hs)
Antropologia
Contemporânea
(72hs)
Sociologia
do Brasil (72hs)
Fundamentos de Didática
(72hs)
Prática de Ensino
em Ciências
Sociais
(144hs)
Tópicos Especiais em
Ciência Política
(72hs)
Libras-Língua
Brasileira de
Sinais
(72hs)
Introdução à
Ciência Política
(72hs)
Sociologia
Clássica (72hs)
Sociologia
Contemporânea
(72hs)
Antropologia
do Brasil (72hs)
Psicologia do
Desenvolvimento e da
Aprendizagem (72hs)
Etnologia
Indígena (72hs)
Tópicos Especiais em
Antropologia (72hs)
Política e
Educação (72hs)
Introdução à
Sociologia (72hs)
Ciência Política
Clássica (72hs)
Política
Contemporânea
(72hs)
Política
do Brasil (72hs)
Sociologia
da Educação (72hs)
Política e Gestão
Educacional
(72hs)
Tópicos Especiais em
Sociologia (72hs)
Temas em
Educação
e Ciências
Sociais (72hs)
Formação da
Sociedade Moderna
(72hs)
Formação da
Sociedade
Brasileira
(72hs)
Laboratório de
texto
(Disciplina Comum
à área) (72hs)
Tópicos em Cultura e
Diversidade
Etnicorracial
(Disciplina Comum à
Área) (72hs)
Gênero, sexualidade
e educação (72hs)
Educação e
Direitos Humanos
(Disciplina
Comum à Área)
(72hs)
Tópicos em Ensino de
Ciências Sociais
(144hs)
Eletiva (72hs)
Eixo (72hs) Eixo (72hs) Eixo (72hs) Educação Especial
(Disciplina
Comum à Área)
(72hs)
Estágio
Curricular I (126hs)
Estágio
Curricular II
(126hs)
Estágio
Curricular III (126hs)
Estágio
Curricular IV
(126hs)
Eletiva (72 hrs) Eletiva (72hs)
Eletiva (72hs) Eletiva (72hs)
Fonte: UFGD. Faculdade de Ciências Humanas. Projeto Pedagógico Curricular do Curso de Ciências Sociais – Licenciatura.
206
No Quadro 3, observamos disciplinas que contemplam os três eixos do conhecimento
do curso de Ciências Sociais (PRONERA): Sociologia, Ciência Política e Antropologia. Além
dessas, notamos que também há Informática, Produção de Texto, Língua Portuguesa e
Introdução à Matemática e Estatística. A presença dessas disciplinas nos cursos regulares de
Ciências Sociais, conforme Quadro 4, não é comum, mas no curso em análise elas estão
presentes por terem sido uma solicitação dos movimentos sociais que trazem para a
Universidade os pedidos dos trabalhadores rurais. Verificamos que no curso de Ciências
Sociais (PRONERA), estudos de linguagem são contemplados em duas disciplinas: Produção
de Texto e Língua Portuguesa, cada uma com uma carga horária de 102 horas; já no curso
regular, aparecem na disciplina Laboratório de Textos, cuja carga horária é de 72 horas.
Inferimos que o pedido por duas disciplinas voltadas ao ensino-aprendizagem da linguagem
signifique que, para os trabalhadores rurais de Mato Grosso do Sul, ter conhecimentos
linguísticos é fundamental enquanto assentados e futuros professores, como também são
imprescindíveis para os futuros acadêmicos.
São várias vozes que ecoam no PPP com relação às disciplinas voltadas para o
estudo da linguagem. Podemos pensar, em um primeiro momento, que essa presença deva-se
a um discurso naturalizado na sociedade que aponta para a importância de se “dominar a
língua portuguesa”. Porém, ao analisar a trajetória de luta pela terra no Brasil, assim como a
constituição dos movimentos sociais rurais, observamos que a língua aqui significa poder,
significa que, ao se relacionar melhor com a língua da universidade, pode-se garantir sucesso
nas lutas diárias dos assentados, seja na escola, na prefeitura e nos meios judiciais.
O Documento evidencia um respeito às demandas apresentadas pelos trabalhadores
rurais, bem como a toda trajetória sócio-histórica dos vivenciada pelos trabalhadores rurais
durante suas lutas pela terra, pela reforma agrária e pela educação do campo. Ouvem-se
diferentes vozes, pois os sujeitos envolvidos no processo de elaboração do PPP, de gestação e
de efetivação do curso também fazem parte dessa trajetória sócio-histórica da luta, no papel
de sujeitos pesquisadores, de sujeitos professores e, também, de sujeitos militantes da causa
da reforma agrária no Brasil. Suas vozes também constituem o PPP e as práticas discursivas
do curso, assim como também são constituídas pela interação com os sujeitos sem terra e os
movimentos sociais rurais.
Em um curso destinado a estudantes sem terra, a avaliação é considerada uma ação
fundamental para o êxito do aproveitamento dos alunos, pois é compreendida como uma
atividade política com função de subsidiar a tomada de decisões durante o seu funcionamento
(UFGD, 2007). A proposta curricular é avaliada pelo colegiado do curso de forma contínua e
207
durante o processo de desenvolvimento do curso, a fim de melhorar a proposta inicial e
adequar-se às necessidades que surgissem durante a realização do curso (UFGD, 2007, p. 45).
As reuniões são feitas entre as coordenadoras do curso, os professores das disciplinas
oferecidas durante a etapa, os representantes dos movimentos sociais e, também, os do Incra.
Os professores apresentam os planos e pedem sugestões. Além disso, são tratados assuntos de
infraestrutura, situações de alunos, dentre outros.
No que se refere ao ensino-aprendizagem70
, o PPP objetiva avaliar o processo
epistêmico de construção do conhecimento, compreendendo a avaliação como um processo
pedagógico de interação contínua entre os envolvidos no procedimento (UFGD, 2007, p. 28).
Observamos que, ao selecionar métodos qualitativos para se avaliar, de forma contínua e
mediante diferentes instrumentos, o discurso do PPP nega as formas tradicionais de avaliação
utilizadas no ensino básico e superior. A avaliação no curso não é vista como um instrumento
de controle, de medida, de classificação e de comparação, mas sim como um processo de
construção conjunta do conhecimento. Pensa-se na realidade do aluno e na mediação de
conhecimentos que ele precisa conhecer, refletir e questionar para desenvolver suas atividades
como professor e como um militante da reforma agrária. Leva-se em consideração sua
constituição enquanto estudantes e morador do campo, o qual muitas vezes precisa deixar a
escola por causa da mudança dos pais, pela distância, pela dificuldade para chegar à escola,
pela falta de transporte público ou pelos afazeres no sítio. Na Universidade, aos acadêmicos
serão solicitadas atividades que estejam relacionadas com a sua vivência como universitário e,
também, as que estejam voltadas para sua formação humanística. Por isso, o curso prioriza
resumos, resenhas, artigos, seminários, debates, pesquisa e produção intelectual, estudo
dirigido, desenvolvimento de projetos nas comunidades, resolução de questões temáticas,
como ainda autoavaliação individual e grupal, com ênfase na relação democrática entre
professores e alunos (UFGD, 2007, p. 28). Notamos que esses instrumentos colaboram para
uma formação ampla do universitário, o qual não passa por uma prova para demonstrar que
sabe um determinado conteúdo.
70 As atividades complementares efetivaram-se por meio de simpósios, encontros, mesas redondas, oficinas,
laboratórios e viagens de campo. Nesses momentos, objetivou-se discutir temas voltados às transformações
sociais pelas quais a sociedade vigente passa (UFGD, 2007). Entre as temáticas discutidas destacam-se os
movimentos sociais, as políticas públicas e desenvolvimento rural, os direitos humanos, a educação do campo, a
produção e reprodução das relações sociais, a sustentabilidade, as questões de gênero, a reforma agrária (UFGD,
2007, p. 28).
208
A concepção de avaliação do curso mantém uma relação dialógica com o postulado
por Libâneo (1994, p. 195):
[...] avaliação é uma tarefa complexa que não se resume à realização de
provas e atribuição de notas. A mensuração apenas proporciona dados que
devem ser submetidos a uma apreciação qualitativa. A avaliação, assim,
cumpre funções pedagógico‐didáticas, de diagnóstico e de controle em
relação às quais se recorre a instrumentos de verificação do rendimento
escolar.
Dessa forma, o signo avaliação, no curso de Ciências Sociais, refrata a construção
sócio-histórica da avaliação concebida como um instrumento de intimidação, de medo, de
hierarquização, de controle social, de exclusão, de punição e de disciplina (LUCKESI, 2011).
Ao negar a concepção tradicional de avaliação, o signo avaliação refrata a herança do passado
e, ao mesmo, tempo dialoga com discursos futuros, ao demonstrar para outros cursos e para os
próprios acadêmicos, futuros professores, que é possível construir uma avaliação interativa e
mediada.
Como podemos perceber, o plano discursivo do PPP estabelece uma relação
dialógica com estudos de educadores brasileiros, como Libâneo e Luckesi. A concepção
adotada pelo curso é a defendida por educadores como esses, o que é resultado de uma
posição ideológica do grupo de professores de um processo axiológico acerca da avaliação,
em que se nega a avaliação tradicional para assumir uma avaliação contínua e mediada. Não
se trata de uma ideologia construída no decorrer da elaboração do PPP, mas de uma ideologia
construída por meio das vivências, das recusas, das sustentações e dos estudos feitos por esse
grupo de professores ao longo de suas experiências com a educação. Como afirma Ponzio
(2012, p. 115):
[...] A ideologia é a expressão das relações histórico-materiais dos homens,
mas ‘expressão’ não significa somente interpretação ou representação, mas
também significa organização, regularização dessas relações. [...] no signo
ideológico está sempre presente uma ‘acentuação valorativa’, que faz com
que o mesmo não seja simplesmente expressão de uma ‘ideia’, mas a
expressão de uma tomada de posição determinada, de uma práxis concreta.
(Grifos do autor).
Isso revela o que para o Círculo de Bakhtin é evidente, como ressalta Faraco (2009,
p. 47): não existem enunciados não ideológicos e “[...] ideológico em dois sentidos: qualquer
enunciado se dá numa esfera de uma das ideologias [...] e expressa sempre uma posição
209
avaliativa.” O ideológico também se revela, portanto, por meio das relações dialógicas,
penetradas no íntimo do enunciado. As relações dialógicas demonstram as relações entre
enunciados, completos ou relativamente completos, como sustenta Bakhtin (1981, p. 184):
As relações dialógicas são possíveis não apenas entre enunciações integrais
(relativamente), mas o enfoque dialógico é possível a qualquer parte
significante do enunciado, inclusive a palavra isolada, caso esta não seja
interpretada como palavra impessoal da língua, mas como signo da posição
semântica de um outro, como representante do enunciado de um outro, ou
seja, se ouvimos nela a voz do outro. Por isso, as relações dialógicas podem
penetrar no âmago do enunciado, inclusive no íntimo de uma palavra isolada
se nela se chocam dialogicamente duas vozes (o microdiálogo de que já
tivemos oportunidade de falar).
Por outro lado, as relações dialógicas são possíveis também entre estilos de
linguagem, os dialetos sociais, etc., desde que sejam entendidos como certas
posições semânticas, como uma espécie de cosmovisão da linguagem, isto é,
numa abordagem não mais linguística.
Por último, as relações dialógicas são possíveis também com a sua própria
enunciação como um todo, como partes isoladas desse todo e com uma
palavra isolada nele, se de algum modo nós nos separamos dessas relações,
falamos com ressalva interna, mantemos distância face a elas, como que
limitamos ou desdobramos a nossa autoridade.
No caso das disciplinas de Língua Portuguesa (2008) e de Produção de Texto (2009),
as atividades avaliativas, realizadas no tempo comunidade, objetivaram continuar as reflexões
feitas em sala de aula. Aos acadêmicos foram solicitadas leituras, resumos, análise crítica de
textos e pesquisa com a comunidade, como pode ser visto a seguir na relação de atividades
solicitadas:
210
Quadro 5: Atividades Avaliativas para o Tempo Comunidade
Disciplina: Língua Portuguesa (2008)
Atividade 1: Leia e resuma o capítulo: A leitura de textos, de autoria de João Wanderley
Geraldi. (Geraldi, João Wanderley. Portos de Passagem. São Paulo: Martins
Fontes, 1997).
Atividade 2: Leia e resuma o capítulo: Memória oral, enredo e caracterização, de Walter Ong.
(Walter Ong. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra.
Campinas: Papirus, 1998. [original inglês: 1982]).
Atividade 3: Leia e resuma o capítulo: Decisões preliminares sobre o texto a produzir, de
Lucília Helena do Carmo Garcez. (Garcez, Lucília Helena do Carmo. Técnica de
Redação – o que é preciso saber para bem escrever. São Paulo: Martins Fontes,
2008).
Atividade 4: Leia e resuma o capítulo: Como escrevemos, de Lucília Helena do Carmo
Garcez. (Garcez, Lucília Helena do Carmo. Técnica de Redação – o que é
preciso saber para bem escrever. São Paulo: Martins Fontes, 2008).
Atividade 5: Leia e resuma o capítulo: Verdade e memória do passado, de Jeanne Marie
Gagnebin. (GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar Escrever Esquecer. São Paulo:
Ed. 34, 2006).
Atividade 6: Leia e resuma o capítulo: Memória, história e testemunho, de Jeanne Marie
Gagnebin. (GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar Escrever Esquecer. São Paulo:
Ed. 34, 2006).
Atividade 7: Leia e resuma o capítulo: Sumarização: processo essencial para a produção de
resumos, de Anna Rachel Machado, Lilia Santos Abreu-Tardelli e Eliane Lousada.
(MACHADO, Anna Rachel; ABREU-TARDELLI, Lilia Santos; LOUSADA,
Eliane. Resumo. Vol. 1. São Paulo: Parábola Editorial, 2004).
Atividade 8: Faça um levantamento de elementos culturais de sua comunidade no que diz
respeito à crença, à superstição, a ditados populares, a comidas típicas, que são
conhecimentos passados de geração para geração (benzeção, cuidados com
crianças, ditados populares, causos de assombração, causos de aventura, receitas
de comidas típicas).
Sugestões para realizar a pesquisa e a elaboração do texto:
1) Verificar na comunidade em que você mora quais são as pessoas que podem
lhe passar informações.
2) Marcar um horário com as pessoas escolhidas (roda de tereré, mate).
3) Registrar por meio escrito ou gravado a(s) entrevista(s) feita(s).
4) Em casa, ouvir o que foi gravado ou reler o que escreveu na hora da entrevista.
5) Destacar do material recolhido o que mais chamou a sua atenção e escrever
um texto contando como foi a entrevista, quem foi (foram) o(s) entrevistado(s) e
o que ele(s) contou(contaram).
Atividade 9: Faça uma análise crítica do texto Chapeuzinho vermelho e o lobo torturador,
relacionando o texto ao título e à sua realidade. (BERQUÓ, Alberto. Chapeuzinho
vermelho e o lobo torturador. Brasília: Literatura e Editora Ltda. In: DISCINI,
Norma. Intertextualidade e conto maravilhoso. São Paulo, Humanitas, 2002).
Atividade 10: Escreva um texto em que relate a origem do seu nome.
Atividade 11: Leia o livro Indez, de Bartolomeu Campos Queirós.
Elaborado pela Autora (2017).
211
Quadro 6: Atividade Avaliativa para o Tempo Comunidade (Arquivo Pessoal)
Disciplina: Produção de Texto (2009)
Atividade 1:
Elabore um relato que apresente passagens de sua vida
que julgue importantes.
Elaborado pela Autora (2017).
Como podemos notar, as atividades avaliativas, assim como as aulas não apresentam
preocupação com o ensino de gramática tradicional, mas possibilitam aos acadêmicos lerem
textos que estão relacionados à memória e à oralidade, bem como à sua presença no
assentamento e na própria vida do assentado. Uma das atividades que mais chama a atenção
dos graduandos é a pesquisa de campo que consistiu em entrevistar outros assentados a fim de
levantar traços culturais dos assentamentos. O resultado da pesquisa apresenta receitas típicas,
receitas de remédios caseiros, ditos populares e causos, os quais são socializados em uma
Noite Cultural com a presença de todos dos professores do curso. Na ocasião, serviu-se um
jantar composto por dois pratos típicos, o sarravulho, receita coletada por uma acadêmica da
região de Corumbá, fronteira com a Bolívia, e a sopa paraguaia, cuja receita é apresentada por
outra acadêmica, moradora em um assentamento localizado na fronteira com o Paraguai. Ao
relatarem as experiências vivenciadas na Universidade, muitos graduandos destacam a
atividade de levantamento de traços culturais dos assentamentos como uma experiência
enriquecedora para eles, por não imaginarem que os assentamentos possuíssem seus aspectos
culturais e que basta conversar com os moradores para que as lembranças venham à tona.
Já a disciplina de Produção de Texto (2009) solicita a elaboração de um relato
pessoal, corpus de nosso estudo. Como podemos observar por meio das leituras efetivadas na
primeira disciplina que privilegiaram a memória e a oralidade, os relatos pessoais possibilitam
aos acadêmicos voltar ao passado e avaliar o vivido. Para eles, essa experiência também é
marcante, pois os leva a lembrar de fatos esquecidos, mas que são trazidos à tona com a
atividade.
Da mesma forma que a avaliação no curso de Ciências Sociais nega os aspectos
tradicionais de ensino, o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) também, uma vez que
consiste na realização de uma pesquisa que articule questões teóricas discutidas no curso com
a realidade vivenciada nos assentamentos rurais, sendo orientado por professores da UFGD.
Desse modo, não se trata de um trabalho desarticulado da vivência do acadêmico, mas uma
atividade que interage com o seu interesse e com o de sua comunidade. Não se trata, porém,
de uma atividade apartada das regras universitárias, já que, ao seu término, o TCC é
212
apresentado em formato de artigo científico e depois exposto em seminário realizado no final
do curso.
O público alvo do curso é exclusivamente pessoas residentes em assentamentos
rurais federais do estado de Mato Grosso do Sul (UFGD, 2007, p. 50). Isso demostra a
existência de uma rede de diálogos e parceira entre a Universidade, o Incra e os movimentos
sociais rurais. São órgãos federais e movimentos sociais que concretizam suas ideias em um
curso voltado para sem terra.
Sendo um curso particularmente oferecido para pessoas sem terra, alguns critérios
foram adotados quanto ao vestibular. Os candidatos devem apresentar:
a) Comprovação, no ato da inscrição ao processo seletivo, de que é
assentado/a ou seu dependente (comprovação através de documento emitido
pelo INCRA);
b) Possuir formação concluída em ensino médio, comprovada através de
documento reconhecido pelo MEC (UFGD, 2007, p. 51).
Ser assentado representa uma condição essencial para a realização do curso, pois
todo o curso é pensado dentro de uma perspectiva que retoma a trajetória de luta pela terra e
pela reforma agrária no Brasil e se coloca nesse percurso. Desse modo, as experiências
vivenciadas pelos assentados durante os acampamentos, a chegada ao assentamento e a
participação nos movimentos sociais são fundamentais para que as discussões trouxessem
reflexões acerca de situações particulares e, também, de situações coletivas, o que contribui
em muito para o processo de formação dos graduandos como também dos professores.
O processo de seleção é conduzido pela UFGD e organizado em três fases: produção
de uma redação, prova objetiva, contemplando questões de Matemática, Língua Portuguesa,
História e Geografia, e entrevista (UFGD, 2007). Durante as três etapas, o candidato deveria
demonstrar:
Coerência, coesão e capacidade de expressar idéias;
Conhecimentos da realidade brasileira e das questões agrárias;
Capacidade de enfatizar a trajetória pessoal e os motivos da escolha do
curso em Ciências Sociais;
Expectativas quanto às contribuições do curso para a atuação profissional
como educadores/as político-sociais (UFGD, 2007, p. 51).
A primeira etapa que consta da elaboração de uma redação é eliminatória, devendo o
candidato atingir no mínimo 20 pontos e no máximo 50 pontos. A prova objetiva é
classificatória, sendo formada de questões de múltipla escolha, com pontuação máxima de 25
213
pontos. A entrevista é classificatória, sendo pontuada de zero a 25 pontos. As três etapas
somaram 100 pontos no total (UFGD, 2007).
O PPP ressalta que o processo seletivo respeitaria as especificidades de quem mora
no campo e a dinâmica da construção do conhecimento dessas pessoas. Salienta ainda que se
trata de um processo seletivo diferenciado, tanto na composição das provas quanto nos
critérios de avaliação (UFGD, 2007). O diferenciado já se poderia ser percebido na proposta
de redação:
Leia o texto a seguir.
É possível perceber, entre os camponeses, a capacidade que eles têm de se
erguerem contra esquemas de dominação e subordinação. Os movimentos
sociais são reconhecidos como as principais formas de os camponeses se
rebelar contra a ordem desigual e ainda reivindicar melhores condições de
vida, enfim, transformações sociais. Pelos movimentos sociais, os
camponeses se fazem ouvir e garantem a sua existência [...].
(João Edmilson Fabrini - Adaptado)
O texto lido, de autoria de João Edmilson Fabrini, trata da importância de os
camponeses se organizarem, por exemplo, através de movimentos sociais
para que eles tenham suas reivindicações ouvidas.
Com base no texto lido e nas suas experiências, elabore uma dissertação
argumentativa apresentando a importância da participação dos camponeses
em movimentos sociais para reivindicar melhores condições de vida
(ARQUIVO PESSOAL).
Podemos notar que a proposta não apresenta um tema universal ou um problema
vivenciado por toda sociedade brasileira. Ao contrário, traz para o assentado um tema
presente em seu vivido, no caso a participação nos movimentos sociais. A segunda etapa
também é diferenciada por apresentar questões de diferentes disciplinas voltadas ao contexto
social de luta pela terra e feitas por professores que já tinham pesquisas voltadas à reforma
agrária. Já a terceira etapa consta de entrevistas, em que os professores da Universidade
juntamente com representantes do Incra e dos movimentos sociais rurais lançam perguntas
aos assentados, a fim de conhecer melhor suas trajetórias como assentados sem terra.
As análises da multiplicidade de vozes presentes no PPP do curso de Ciências
Sociais para assentados de Mato Grosso do Sul mostram que o discurso desse documento
congrega vozes do passado de luta dos trabalhadores rurais sem terra a favor da distribuição
igualitária da terra, como a de seus oponentes contrários às reformas fundiárias, como
discutido no primeiro capítulo. Percebemos, nesse cenário de resistências, o papel
214
significativo e a valorizado da educação, visão resultado de experiências amargas e vitoriosas
de camponeses que enxergam na formação política e intelectual o alicerce para o
desenvolvimento de propostas viabilizadoras de justiça social e redistribuição de terras no
Brasil.
O signo educação do campo é oficializado pelas Diretrizes Operacionais para
Educação Básica nas Escolas do Campo. No entanto, os sentidos construídos no PPP apontam
que esse signo constitui-se na relação com os signos terra e reforma agrária, bem como na
oposição ao signo educação rural, como podemos observar no Quadro 7. Desse modo,
podemos inferir que a relação estabelecida entre os três signos demonstra que a luta dos
trabalhadores rurais sem terra não se limita à terra, mas abrange outros direitos dos cidadãos
do campo, como educação.
Quadro 7: Síntese dos sentidos construídos no PPP do curso para os signos ideológicos terra,
reforma agrária e educação do campo
Terra Reforma Agrária Educação do Campo
Contrário ao ensino deficitário
Contempla todos os níveis de educação
Parceria
Contrário à educação rural
Pontua necessidades concretas do campo
Formação humanística
Participa do movimento social
É responsável em garantir a permanência do
trabalhador no campo
Refrata a história vivenciada pelos trabalhadores
rurais sem terra com a educação rural
Privilegia a ação libertadora
Reflete a visão de educação para a transformação
social
Agrega teoria à prática social dos assentamentos
Contempla as experiências vivenciadas em grupo
Privilegia a participação da comunidade na escola
Considera o vivido pelos estudantes sem terra
Compromete-se com a ética
Tem compromisso social
Preza pela coletividade
Compromete-se com a formação do outro
É fruto de um processo histórico de lutas
Elaborado pela autora (2018).
215
Percebemos que os sentidos construídos opõem-se aos de educação rural e de ensino
deficitário, aspectos por muito tempo associados ao campo, o que o caracterizou como lugar
de atraso e de ignorância. Observamos no Quadro 7 que os sentidos do signo educação do
campo no PPP relacionam-se com as lutas empreendidas anteriormente por terra e por
reforma agrária, bem como dialoga com os princípios dos movimentos sociais rurais,
principalmente, MST e CPT, por exemplo, ao privilegiar a parceria, pontuar as necessidades
do campo, contemplar as vivências dos graduandos, buscar uma educação libertadora e ter
compromisso social.
Como podemos perceber, o PPP não apresenta sentidos para os signos terra e
reforma agrária. Inferimos que isso ocorra em decorrência do fato de se pensar a educação do
campo e a educação superior para assentados sempre relacionada à história da terra e da
reforma agrária no Brasil. Assim, quando se pensa em educação para assentados, nesse
contexto, já se parte da existência de uma luta continua por terra e reforma agrária que agora
traz para o cenário político a luta pela educação do campo.
Ademais, os sentidos do signo educação do campo revelam qual é a educação que os
trabalhadores rurais e os movimentos sociais do campo querem para suas escolas. Trata de
uma escola que vincula à realidade do assentamento e às lutas de seus companheiros no
passado. Do mesmo modo, não deixa de buscar uma educação de qualidade para que os filhos
de camponeses tenham o direito de continuar no campo, tendo acesso à cultura e
conhecimento. Assim, a educação do campo tem um papel primordial nos assentamentos,
acampamentos e, também, na luta por reforma agrária, pois ela garante a libertação do povo
do campo, bem como o desenvolvimento sustentável dos assentamentos.
Como sabemos essa luta é árdua e histórica como evidenciam os enunciados
analisados, nos quais ecoam vozes consoantes e destoantes ao processo de reforma agrária e
de educação superior para assentados. As vozes destoantes não são abafadas ou silenciadas
como no discurso monológico. Ao contrário, elas ecoam para que possam ser respondidas,
rechaçadas e criticadas. Desse modo, os enunciados dos documentos analisados mostram que
o curso de Ciências Sociais é uma força centrífuga que objetiva romper o poder imposto pelas
forças centrípetas, centradas na autoridade e na tradição escolar, as quais visam fortalecer o
consenso e a unidade. Ao apresentar um coro de vozes equipolentes e polifônicas, os
enunciados analisados evidenciam que, como uma força centrífuga, o curso pretende
descentralizar o poder do ensino, geralmente, presente nas mãos do professor, imprimir
mudanças no cenário do ensino superior, promover uma crítica às metodologias tradicionais
216
de ensino e valorizar gêneros discursivos, muitas vezes, ignorados pelas forças centrípetas,
como os relatos pessoais, pois são portadores de tendências sociais.
Percebemos que, nos enunciados analisados, cruzam-se as diferentes forças, pois
como observa Bakhtin (2002, p. 82), cada “[...] enunciação concreta do sujeito do discurso
constitui o ponto de aplicação seja das forças centrípetas, como das centrífugas”. Os
enunciados são o palco em que a tensão entre uma multiplicidade de vozes cria processos de
“[...] centralização e descentralização, de unificação e de desunificação” (BAKHTIN, 2002, p.
82), revelando o movimento do discurso, evidenciando seu caráter sócio-histórico, sua
exterioridade e sua vivacidade.
Desvelar a polifonia e as relações dialógicas revela como os discursos estão
organizados fora de si, em seu exterior: “[...] O discurso vive fora de si mesmo, na sua
orientação viva sobre seu objeto: se nos desviarmos completamente desta orientação, então,
sobrará em nossos braços seu cadáver nu a partir do qual nada saberemos, nem de sua posição
social, nem de seu destino” (BAKHTIN, 2002, p. 99). Não estamos com um cadáver nu nas
mãos, mas com a vida concreta, com um fenômeno vivo que se revela em uma multiplicidade
de fios dialógicos. São diferentes vozes que apresentam ideologias de governos conservadores
e, também, dos mais populistas, bem como se relacionam com vozes não governamentais
empreendedoras de ações contra e favor da reforma agrária e, consequentemente, da educação
do campo. Nessa direção, pelo viés bakhtiniano, os enunciados do PPP demonstram ser mais
um elemento da cadeia discursiva de luta pela terra, pela reforma agrária e pela educação do
campo, incorporando a essa luta os olhares da universidade, sejam eles contra e favor e, ainda,
trajetórias vivenciadas pelos trabalhadores rurais sem terra que almejam chegar ao ensino
superior.
Diante disso, o curso é uma ação de resistência empreendida por movimentos sociais,
representantes dos trabalhadores rurais sem terra de Mato Grosso do Sul, professores
universitários, reitoria e governo federal, caracterizados por uma ideologia social, de justiça,
de cidadania e, ainda, por uma política nacional, do então governo federal, de ampliar o
acesso de pessoas assentadas ao ensino superior, como uma forma de democratizar o direito à
educação e viabilizar novos caminhos para a conquista de uma sociedade mais justa.
Veremos, no próximo capítulo, como as ações ideológicas desses sujeitos foram
significativas na constituição da identidade dos acadêmicos, tendo em vista suas trajetórias de
exclusão social vividas desde a infância, quando o sistema de ensino vigente e a falta de
condições financeiras dos pais fizeram com que eles abandonassem a escola e reprovassem
devido à distância, aos trabalhos realizados no sítio e à falta de condições econômicas. Com o
217
curso, eles vislumbram a possibilidade de voltar a estudar – um sonho antigo deles e de seus
pais –, de estar em uma universidade pública e com a oportunidade de terminar o curso para,
assim, continuar a percorrer sua trajetória sempre inconclusa rumo a novos desafios.
218
CAPÍTULO IV – OS RELATOS PESSOAIS: VOZES CONSTITUINTES
DA IDENTIDADE DE ACADÊMICOS SEM TERRA
Neste capítulo, debruçamo-nos sobre os relatos pessoais dos graduandos sem terra,
com o objetivo de percebemos as vozes que constituem suas identidades numa relação
dialógica com as vozes apresentadas nos capítulos anteriores.
Consideramos o gênero discursivo como formas-padrão relativamente estáveis de
discursos, mas que se diferenciam conforme o tema, o estilo e a organização composicional.
São marcados sócio-historicamente e, pois, estão diretamente ligados às diferentes situações
de interação pela linguagem (BAKHTIN, 2011). Os três elementos “[...] fundem-se
indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de
uma esfera de comunicação” (BAKHTIN, 2011, p. 263). Os gêneros refletem a variedade de
utilização da língua feita pelos indivíduos e os enunciados são construídos de acordo com as
condições específicas e as finalidades de cada esfera da comunicação.
A riqueza e a variedade dos gêneros acompanham a infinita variedade da atividade
social humana, e cada esfera (cotidiana, do trabalho, científica, jurídica, escolar, religiosa)
dessa atividade é composta por um repertório de gêneros discursivos que se diferenciam e se
ampliam a partir do desenvolvimento de cada uma (BAKHTIN, 2011). Diante da capacidade
humana de elaborar uma infinita variedade de gêneros, podemos pensar que não há e não
poderia existir um terreno comum para seu estudo, de forma a colocar no mesmo terreno de
análise um relato familiar e uma ordem militar padronizada, cada uma com suas
características particulares.
Ao conceituar os gêneros do discurso como tipos relativamente estáveis de
enunciados, Bakhtin (2011) apresenta a natureza verbal comum entre gêneros e enunciados,
visualizando os gêneros pela sua historicidade, razão pela qual não são de natureza
convencional. O autor analisa-os como tipos históricos, quando relaciona a eles o mesmo
caráter de enunciado, caráter social, discursivo e dialógico. Desse modo, não é possível, para
Bakhtin, ignorar a natureza do enunciado e as suas características particulares de gênero, pois
isso leva ao formalismo e à abstração, desconsiderando a historicidade do enunciado e
enfraquecendo o vínculo existente entre a língua e a prática social. Assim, a língua está
219
inserida na vida por meio dos enunciados concretos, os gêneros discursivos que dão existência
a ela. Da mesma forma, por enunciados concretos, a vida se insere na língua. São os
elementos da língua que adquirem o “[...] perfume específico dos gêneros dados: eles se
adequam aos pontos de vista específicos, às atitudes, às formas de pensamento, às nuanças
e às entonações desses gêneros” (BAKHTIN, 2002, p. 96).
Consideramos que os gêneros também organizam os discursos e guardam as nuances
pelas quais podemos perceber a constituição da identidade. A identidade, na perspectiva
bakhtiniana, é estabelecida dialogicamente com o outro, pois é por meio dos olhos desses
outros que o Eu se reconhece e se projeta como sujeito social. O sujeito, para Bakhtin, é
constituído socialmente em suas múltiplas relações dialógicas com o outro. Não há um sujeito
alheio ao outro. O outro é parte integrante do Eu-graduando sem terra. Desse modo, o sujeito
bakhtiniano é o resultado de uma incessante relação dialógica, na qual ele assimila “[...] vozes
sociais e, ao mesmo tempo, suas inter-relações dialógicas” (FARACO, 2009, p. 84). Essas
vozes, no entanto, não são apenas as do seu grupo social, companheiros militantes, familiares,
mas são também as do grupo social dominante, políticos conservadores, latifundiários.
De acordo com Ponzio (2016), apresentar o outro como elemento primordial na
construção da identidade de um sujeito significa a “revolução bakhtiniana”, em que o outro
não tem lugar central, mas é o eixo de todo trabalho de constituição do sujeito, logo de sua
identidade. Desse modo, a identidade em Bakhtin constitui-se na alteridade, ou seja, na
relação ativa e espontânea com o outro. O eu e o outro são os dois centros de valor, os quais,
mesmo diferentes, estão inter-relacionados. Além disso, o outro é uma figura exigida pelo eu,
pois àquele cabe completar o eu, embora seja essa completude impossível, pois a interação
verbal é dinâmica, constante e sempre pede outras completudes.
Por meio do emaranhado de vozes que compõem os relatos pessoais, vamos
percebendo a intensa relação do eu-acadêmico sem terra com o outro – militantes, religiosos,
familiares, latifundiários, governos conservadores. Assim, podemos perceber visões de
mundo, avaliações dos fatos vivenciados, como também dos movimentos sociais, das
instituições públicas e, principalmente, sobre do sistema excludente e aristocrático que rege a
distribuição da terra no Brasil, caracterizado, como percebemos nos capítulos anteriores,
como injusto e explorador.
220
4.1 Vozes Teóricas
Buscamos nos capítulos anteriores apresentar e analisar vozes sócio-históricas que
fazem parte do continuo da história da terra no Brasil. Assim como essas, as vozes dos relatos
pessoais também fazem parte desse continuo, dialogando com os eventos discursivos
destacados, o que evidencia que a identidade é construída na relação com o outro, ou seja,
com outros discursos e outras experiências precedentes, como também dialogam com
discursos do futuro. Dessa forma, analisar o gênero discursivo relato pessoal é fundamental
para desvelarmos a identidade dos graduandos sem terra, por estabelecerem com o passado
um diálogo, de modo a avaliá-lo e a experiênciá-lo novamente.
A constituição heterogênea dos relatos pessoais revela que a identidade dos
graduandos são constituídas na relação com o outro, ou seja, na alteridade. Desse modo, o ser
se reflete no outro, refratando-se. Nesse processo, o sujeito também se modifica, o que se
efetiva socialmente, na interação com o outro. No caso da identidade dos graduandos sem
terra, observamos que o outro – familiares, companheiros de luta, militantes como também
latifundiários, governos conservadores e grupos religiosos de oposição – é figura
constantemente presente na constituição de suas identidades, sendo elos na correia discursiva
da história da terra.
4.1.1 Gêneros Discursivos
Nos trabalhos do Círculo de Bakhtin (2000, p. 32), observamos uma análise de
grande parte dos domínios das Ciências Humanas, enfatizando questões sobre língua, signo,
enunciação, consciência, atividade mental, ideologia. Como já mostramos nos capítulos
anteriores, todo signo está sujeito aos critérios de uma avaliação ideológica, tendo em vista
que onde se encontra um signo também se encontra o ideológico. Para Bakhtin, existem
diferenças profundas na esfera ideológica ou no domínio dos signos, pois se trata do domínio
da representação, do símbolo religioso e da fórmula científica. Cada esfera social possui seu
próprio modo de se orientar para a realidade e a refrata de acordo com a sua visão. Por isso, os
signos não são uma sombra da realidade tampouco é um reflexo da realidade, mas eles são um
fragmento material da própria realidade. Nessa visão, Bakhtin (2002, p. 33) salienta que “[...]
a própria consciência só pode surgir e se afirmar como realidade mediante a encarnação
material em signos”, o que se evidencia por meio dos gêneros discursivos.
221
Bakhtin (2002) discute que o fundamental nos estudos dos gêneros não é uma
teorização, focalizando o produto, mas o processo de produção (quem é o enunciador, em que
momento e espaço enuncia, quem é o destinatário). A respeito dessa concepção, Fiorin (2016,
p. 68) destaca que, para o Círculo, interessa “[...] menos as propriedades formais dos gêneros
do que a maneira como eles se constituem”. Faraco (2009, p. 126) também explica que “[...] o
Círculo assevera axiologicamente uma estreita correlação ente os tipos de enunciados
(gêneros) e suas funções na interação socioverbal; entre os tipos e o que fazemos com eles no
interior de uma determinada atividade social”.
Partindo da concepção bakhtiniana, percebemos um vínculo direto entre a utilização
da linguagem e as atividades humanas, já que essa perspectiva teórica concebe os enunciados
em sua função no processo de interação. O processo de interação efetiva-se nas esferas de
atividades, como universidade, igreja, escola, judiciário, política, comércio, mídia, redes
sociais e, conforme Fiorin (2016, p. 68), essas“[...] esferas de atividades implicam a utilização
da linguagem na forma de enunciados”, o que leva o autor a afirmar que não existem
enunciados fora das esferas sociais. São essas esferas que acarretam a produção de “tipos
relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2011, p. 262) que estão em constante
movimento entre a estabilização e a mudança, uma vez que vivem na interação entre sujeitos.
Nessa perspectiva, Bakhtin (2002, p. 43) realça que “[...] cada época e cada grupo social têm
seu repertório de formas de discurso na comunicação sócio-ideológica.” Essa afirmação nos
leva a entender que Bakhtin relaciona um gênero a sua historicidade, por ele carregar em si
marcas de sua produção, de seu consumo e de seu tempo-espaço. Por isso, os gêneros
discursivos “[...] são correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da
linguagem” (BAKHTIN, 2011, p. 268).
A discussão acerca dos gêneros é realizada considerando-os como uma atividade
sociointeracional, já que as relações humanas dão-se nesses espaços sociais, ou seja, “[...]
todas as esferas da atividade humana estão sempre relacionadas com a utilização da
linguagem” (FARACO, 2009, p. 126). A esse respeito, Faraco (2009, p. 126) explica que a
“[...] teoria do Círculo assevera axiomaticamente uma estreita correlação entre os tipos de
enunciados (gêneros) e suas funções na interação socioverbal; entre os tipos e o que fazemos
com eles no interior de uma determinada atividade social”. A partir dessa concepção,
entendemos que o nosso dizer e o nosso querer dizer estão sempre vinculados a uma esfera
social, pois nossos enunciados não são produzidos no vácuo, não são produzidos para um
ninguém. Da mesma forma, as esferas de uso da linguagem não são uma ideia abstrata, mas
222
são referência direta a enunciados concretos que se manifestam no discurso (FERREIRA,
2015).
Os enunciados são sempre produzidos dentro de uma situação de comunicação
humana ligada a uma esfera social, seja ela familiar ou amigável, seja religiosa, jurídica,
escolar ou universitária. Percebemos, então, que toda forma de dizer é moldada por um gênero
que faz parte de uma esfera social. Desse modo, a variedade de gêneros é resultado da riqueza
e da variedade dos gêneros, os quais acompanham a infinita variedade da atividade humana, e
cada esfera social é composta por um repertório de gêneros discursivos que se diferenciam e
se ampliam, se remodelam a partir do desenvolvimento de cada uma (BAKHTIN, 2011).
Por serem elaborados e consumidos dentro de esferas, os gêneros não têm caráter
fixo ou estável, uma vez que as relações humanas não o são. Desse modo, a preocupação de
Bakhtin (1981) não está nas formas dos gêneros, pois essas variam como variam as
experiências humanas, mas sua atenção está na historicidade. Conforme Faraco (2009, p.
127):
[...] Dar relevo à historicidade significa chamar a atenção para o fato de os
tipos não serem definidos de uma vez para sempre. Eles são apenas
agregados de propriedades sincrônicas fixas, mas comportam contínuas
transformações, são maleáveis e plásticos, precisamente porque as atividades
humanas são dinâmicas, e estão em contínua mutação.
O caráter “relativamente estável” dos gêneros evidencia que eles estão abertos ao
novo, à mudança, ao rejuvenescimento, à atualização, porém sem perder para sempre alguns
de seus elementos característicos que estão sempre vivos. Bakhtin (1981, p. 106) explica que
o gênero
[...] renasce e se renova em cada etapa do desenvolvimento da literatura e em
cada obra individual de certo gênero. É isso que constitui a vida do gênero.
Assim, mesmo os elementos arcaicos preservados num gênero não estão
mortos, mas sempre vivos; isto é, os elementos arcaicos são capazes de se
renovar continuamente. Um gênero vive no presente, mas sempre tem a
memória do seu passado, das suas origens. O gênero é um representante da
memória criativa no processo do desenvolvimento literário. Precisamente
por isso, o gênero é capaz de garantir a unidade e a ininterrupta continuidade
de seu desenvolvimento.
Ao admitir uma estabilidade relativa e reconhecer a reestruturação e a renovação dos
gêneros, Bakhtin (2011) recusa uma teoria que os estabeleça em fronteiras rígidas e, também,
como um objeto acabado, já que ao levar em conta o caráter histórico dos gêneros, admite
223
suas continuas transformações, bem como suas sua elasticidade estrutural e suas continuas
remodelagens. A esse respeito Faraco (2009, p. 127) explica que o “[...] repertório de gêneros
de cada esfera da atividade humana vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a
própria esfera se desenvolve e fica mais complexa”. Assim, observamos que a remodelagem
dos gêneros é fruto das adaptações feitas conforme nossas necessidades de comunicação, ou
seja, os gêneros assimilam aspectos da realidade, da vida social que combina o recorrente e
novo. Portanto, o “[...] gênero une estabilidade e instabilidade, permanência e mudança”, “[...]
a recorrência e a contingência” (FIORIN, 2016, p. 76), pois é possível perceber em um
conjunto de textos propriedades comuns relacionando-se com propriedades novas, resultado
da interação social. A reiteração oportuniza, então, compreender as ações e,
consequentemente, agir; já a instabilidade possibilita adaptar suas formas a novos contextos
de uso.
Pelo viés bakhtiniano, compreendemos perfeitamente que os gêneros não podem ser
desvinculados de sua esfera de criação, aquela que o produz e o utiliza, como também não
podem ser abstraídos de seu tempo e espaço e das relações entre os interlocutores (FARACO,
2009). É o que ocorre com os relatos pessoais aqui analisados. Seguindo a perspectiva
bakhtiniana, os relatos pessoais são analisados observando a esfera social em que foram
propostos: na Universidade, na aula de Produção de Texto, com interlocutores reais
(acadêmicos sem terra e professoras). Também aspectos, como quem são os graduandos sem
terra, sua origem, onde vivem, quem são seus familiares, a que movimento social pertencem e
quais são suas trajetórias são elementos extraverbais que constituem o sujeito sem terra. Por
isso, Medviédev (2012) defende que um enunciado é um ato sócio-histórico. Por meio deles, é
possível visualizar a realidade vivida, no caso a realidade da constituição da identidade dos
acadêmicos sem terra. Além disso, os relatos pessoais demonstram que os acadêmicos sem
terra dominam o gênero que escrevem, ou seja, eles sabem os modos sociais de dizer do
gênero relato pessoal. A esse respeito, Bakhtin (1981) lembra que muitas pessoas dominam a
gramática de uma língua, mas, ao adentrarem uma esfera social nova, elas podem ter
dificuldades para se comunicarem verbalmente, pois se trata de uma nova esfera, não
conhecida, não dominada, em que saber apenas a gramática não é pressuposto para dominar
os gêneros dessa esfera social (FARACO, 2009). Bakhtin (2011, p. 282-283) discorre que nós
[...] assimilamos as formas da língua somente nas formas das enunciações e
justamente com essas formas. As formas da língua e as formas típicas dos
enunciados, isto é, os gêneros do discurso, chegam à nossa experiência e à
nossa consciência em conjunto e estreitamente vinculadas. Aprender a falar
224
significa aprender a construir enunciados (porque falamos por enunciados e
não por orações isoladas e, evidentemente, não por palavras isoladas).
Ademais, muitas “[...] pessoas que dominam magnificamente uma língua sentem
amiúde total impotência em alguns campos da comunicação precisamente porque não
dominam na prática as formas de gênero de dadas esferas” (BAKHTIN, 2011, p. 284). Não se
trata de pobreza de vocabulário, mas da falta de habilidade e de domínio de todo o repertório
de gêneros, o que é impossível para o homem. Trata-se da “[...] falta de acervo suficiente de
noções sobre todo um enunciado [...], uma inabilidade de tomar a palavra a tempo, de
começar corretamente e terminar corretamente” (BAKHTIN, 2011, p. 285).
Morson e Emerson (2008) ressaltam que Medviédev (2012), concebendo os gêneros
como um modo específico de visualizar uma parte da realidade, da vida concreta, concorda
que a nossa comunicação não é realizada por princípios sintáticos, mas por princípios
genéricos. Podemos afirmar que as professoras, ao solicitar aos graduandos sem terra a
elaboração de um relato pessoal, não puseram o domínio da gramática em primeiro plano,
mas sim o repertório do vivido, as experiências que os sujeitos vivenciaram e seus efeitos na
constituição de suas identidades. Logo, os graduandos tinham o que dizer. Assim, o gênero
relato pessoal é empregado pelos acadêmicos de forma livre, ou seja, sem restrições
estilísticas ou organizacionais, o que nos possibilita descortinar neles a individualidade de
seus sujeitos e, ainda, nos permite refletirmos “[...] de modo mais flexível e sutil a situação
singular da comunicação” (BAKHTIN, 2011, p. 285).
Também importa salientarmos que Bakhtin apresenta uma direção para os estudos
dos gêneros, ao classificá-los em primários (da comunicação cotidiana, mas não
exclusivamente orais) e secundários (da comunicação desenvolvida por meio de códigos
culturais elaborados, como a escrita). A diferença entre eles é extrema e essencial, de modo
que o “[...] estudo do enunciado e da diversidade de formas de gênero dos enunciados nos
diversos campos da atividade humana é de enorme importância para quase todos os campos
da linguística e da filologia” (BAKHTIN, 2011, p. 264).
Os gêneros secundários surgem em situações culturais mais complexas, mais
organizadas e mais tradicionais. Predominam, nesses casos, os gêneros escritos de esferas
sociais, como científica, jurídica, artística, sociopolítica, religiosa. São formações complexas
que se apresentam em circunstâncias de comunicação mais elaboradas. Embora sejam gêneros
complexos, os secundários no processo de sua formação incorporam e reelaboram gêneros
primários (BAKHTIN, 2011), ou seja, constituem-se a partir da absorção e da transformação
225
dos gêneros primários de todas as variedades, elaborados em uma interação verbal
espontânea. Percebemos, assim, a estreita relação entre os dois tipos de gêneros que, para o
filósofo russo, vai além das fronteiras das características de cada tipo de gênero: “A inter-
relação entre os gêneros primários e secundários de um lado, o processo histórico de formação
dos gêneros secundários do outro, eis o que esclarece a natureza do enunciado (e, acima de
tudo, o difícil problema da correlação entre língua, ideologias e visões do mundo)”
(BAKHTIN, 2000, p. 282). Constituídos em interações verbais espontâneas e mais
passageiras, como saudações, despedidas, conversas de salão, piadas, os gêneros primários
“[...] estão em relação direta com seu contexto mais imediato” (FARACO, 2009, p. 132),
como uma conversa familiar, a compra e a venda de objetos, o recado na porta da geladeira.
Vale destacar ainda que Bakhtin realça a relação mútua entre os gêneros primários e
os secundários. Assim, podemos entender que a passagem do primário para o secundário e
deste para aquele é constante nas interações verbais, pois nelas os dois tipos podem se
mesclar. Como exemplo disso, Faraco (2009, p. 133) lembra-se do gênero conferência
acadêmica, pertencente à esfera científica, marcado por formas relativamente estáveis, que
pode se mesclar “[...] com gêneros primários de vários tipos, como, por exemplo, quando o
expositor conta uma piada ou faz uma réplica a uma observação espontânea de um ouvinte”.
Bakhtin (2011, p. 284) exemplifica que o contrário também ocorre, quando uma saudação da
esfera oficial é utilizada na esfera familiar, por meio de um tom irônico, o que é chamado pelo
autor de “reacentuação dos gêneros”. Faraco (2009, p. 133) também exemplifica a
reacentuação de um gênero descrevendo que quando um camelô anuncia seu produto aos seus
clientes, o gênero utilizado, anúncio oral, está relacionado à prática do cotidiano e à
espontaneidade, mas o autor observa que às vezes esse anúncio pode ter características de
uma conferência, pois o camelô pode expor as características do produto, explicar a forma de
utilizá-lo, seguindo uma organização dos itens a serem explicados. Esse exemplo evidencia
que os gêneros primários também são influenciados pelos secundários.
Os gêneros discursivos, nessa perspectiva, são elaborados, primeiro, de acordo com
uma dada função pré-determinada (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana), e
segundo, a partir de dadas características específicas de cada esfera da comunicação, o que
realça o caráter “relativamente estável”, flexível, móvel dos gêneros. As condições de
produção, de sua historicidade e suas finalidades específicas de dadas esferas são refletidas no
estilo, no conteúdo temático e na organização composicional.
Bakhtin (2011, p. 265) atesta que há uma relação orgânica entre estilo e gênero, pois,
na realidade, “[...] os estilos de linguagem ou funcionais não são outra coisa senão estilos de
226
gênero de determinadas esferas da atividade humana e da comunicação”. Ou seja, cada esfera
da comunicação verbal possui seus gêneros dos quais necessita para se comunicar com outras
esferas; por sua vez, esses gêneros possuem seus estilos.
Ademais, o autor russo parte da premissa de que todo enunciado é individual, logo
ele reflete marcas dessa individualidade, isto é, “o estilo individual”. Como destaca Faraco
(2009, p. 136), o Círculo de Bakhtin não faz uma dicotomia entre o individual e o social, mas
aponta para uma “[...] intrincada dinâmica em que todo falante, sendo uma realidade
sociossemiótica, é ao mesmo tempo único, singular, e social de ponta a ponta”. Essa
consideração tem como base a concepção de que a língua é “[...] viva e evolui historicamente
na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das formas da língua”
(BAKHTIN, 2002, p. 124), sendo ela vivida em um espaço de interação verbal. É nesse
movimento de interação entre sujeitos que o estilo constitui-se.
O estilo, como integrante da unidade do gênero, reflete a seleção das formas
linguísticas que o usuário da língua faz para produzir os seus enunciados. Essa seleção está
associada ao outro, uma vez que este influencia a elaboração de um enunciado: “[...] A
escolha de todos os recursos linguísticos é feita pelo falante sob maior ou menor influência do
destinatário e da sua resposta antecipada” (BAKHTIN, 2011, p. 306).
Bakhtin (2011) também defende que o estilo é indissociável de unidades temáticas e
de unidades composicionais. Como explica Discini (2012, p. 78): “[...] A temática e o
conteúdo composicional reverberam no estilo do gênero, e esse estilo repercute nelas
enquanto se firma como expressividade ou tom”. Brait (2005, p. 89) também se ocupa da
temática do estilo e considera-o “[...] depende do tipo de relação existente entre o locutor e os
outros parceiros da comunicação verbal, ou seja, o ouvinte, o leitor, o interlocutor próximo e o
imaginado (o real e o presumido), o discurso do outro etc”.
Nessa ótica e levando-se em consideração que o enunciador escolhe os recursos
linguísticos sob a influência do outro, é possível compreender que o estilo conduz a
determinado tom, pois os gêneros “[...] incluem em sua estrutura uma determinada entonação
expressiva” (BAKHTIN, 2011, p. 284). O estilo é, assim, um dos elementos da unidade de um
gênero; ele pertence ao estilo do gênero, de modo que aquilo que se pode dizer, o que não se
pode e o como se deve dizer já estão pré-determinados pelo gênero a ser utilizado.
Para Bakhtin (2011), há relação direta do gênero com o seu conteúdo temático.
Antes, no entanto, de discorrermos acerca dessa relação, importa discutirmos também, mesmo
que brevemente, os conceitos de tema, significação e assunto, por estarem todos no mesmo
campo semântico.
227
Pensar a relação entre tema e significação leva-nos a perceber que o Círculo de
Bakhtin considera os sentidos de forma ampla, pois concebe os sentidos do signo ideológico
em seu campo linguístico, mas também no discursivo. O tema é considerado por Bakhtin
(2002, p. 128) um termo sujeito a dúvidas, como afirma na nota de rodapé da página 128. Por
isso, ele já esclarece que tema “[...] cobre igualmente sua realização; é por isso que não deve
ser confundido com o tema de uma obra de arte. O conceito de ‘unidade temática’ é o que
estaria mais próximo do nosso”.
Partindo desse esclarecimento, Bakhtin considera o tema indissociável da enunciação
por ser a expressão de uma situação histórica concreta, consequentemente, é único, individual
e não reiterável, pelo fato de participar da constituição do tema “[...] não apenas os elementos
estáveis da significação, mas também os extraverbais, que integram a situação de produção,
de recepção e de circulação”, como detalha Cereja (2005, p. 202). Nessa perspectiva, o tema
emerge de um evento concreto de uso da linguagem, em que há um falante, um interlocutor,
um tempo e um espaço social, condições que mudam constantemente. Como destaca Cereja
(2005, p. 202), “[...] o instável e o inusitado de cada enunciação se somam à significação,
dando origem ao tema, resultado final e global do processo da construção de sentido”. O
caráter irrepetível do tema leva-nos a compreender que uma enunciação não pode ser repetida,
em decorrência do fato de ela ser sempre nova. Mesmo se relacionando a uma enunciação já
elaborada recentemente, a nova não será igual a anterior como também será diferente da
posterior, pois ela estará sendo produzida em outro momento histórico.
O tema caracteriza-se por ser determinado por elementos linguísticos que o compõe,
como também por sua dependência das condições sócio-históricas. Como ressalva Bakhtin
(2002), se perdermos de vista os elementos históricos, ou seja, os não verbais, não
chegaremos à compreensão. Por isso, o autor explica que o “[...] tema da enunciação é
concreto, tão concreto como o instante histórico ao qual ela pertence. Somente a enunciação
tomada em toda a sua amplitude concreta, como fenômeno histórico, possui um tema”
(BAKHTIN, 2002, p. 129). Partindo dessa ótica, Cereja (2005) ressalta que o tema está para o
signo ideológico, pois estes emergem da situação de interação verbal. Já os autores Alves
Filho e Santos (2013, p. 80) resumem a ideia bakhtiniana a respeito do tema da seguinte
forma: o tema é o “[...] sentido que o discurso pode assumir numa dada situação comunicativa
concreta e única”.
Já a significação está associada ao signo linguístico, ao “[...] corpo físico,
instrumento de produção ou produto de consumo” (BAKHTIN, 2002, p. 31). Nessa
perspectiva, a significação refere-se a elementos da enunciação que são repetíveis e
228
equivalentes a cada vez que são repetidos, uma vez que, por estarem associados a elementos
linguísticos, podem ser repetidos em diferentes enunciações. A significação é, portanto,
abstrata, tende à permanência e à estabilidade, por estar associada a elementos da língua, os
quais estão “[...] fundados sobre uma convenção, eles não têm existência concreta
independente, o que não os impede de formar uma parte inalienável, indispensável, da
enunciação” (BAKHTIN, 2002, p. 129).
Por pertencer ao campo da língua, a significação pode ser analisada em distintas
categorias, como sintaxe, morfologia. Diferentemente, o tema possui uma essência irredutível
à análise, pois o que é do campo da situação histórica não pode ser apreendido pelas
categorias gramaticais. Ao considerarmos, por exemplo, o enunciado “Terra para quem nela
trabalha”, compreendemos, pela perspectiva bakhtiniana, que o tema apresenta um sentido
histórico e ideológico por se remeter ao direito à terra para aqueles que nela querem trabalhar,
ou seja, os trabalhadores rurais; por meio do tema, também percebemos que há uma negação
do direito à terra àqueles que somente a querem para especulação ou para obtenção de crédito
imobiliário. Já no campo da significação, o enunciado pode ser segmentado em categorias
gramaticais, como substantivo (terra), preposição (para, em), verbo (trabalha), pronomes
(quem, ela). A significação será a mesma todas as vezes que esse enunciado for proferido,
mas o tema será diferente, porque os elementos extraverbais mudarão. Como, por exemplo, ao
ser dito por um trabalhador rural, o tema tem o sentido de terra como existência, subsistência,
pertencimento; dito por um militante do MST, o sentido revela uma posição política, de
esquerda, socialista, em que a terra é vista como direito social; dito por um membro da Igreja
Católica, o tema tem o sentido de terra como um bem divino, propriedade de Deus, sendo
todos os seus filhos seus herdeiros. Esse exemplo nos leva a compreender a afirmação de
Cereja (2005, p. 202), quando o autor ressalta que “[...] a significação é por natureza abstrata
e tende à permanência e à estabilidade, o tema é concreto e histórico e tende ao fluído e
dinâmico, ao precário, que recria e renova incessantemente o sistema de significação, ainda
que partindo dele.”
Logo, compreendemos que não há entre essas categorias da enunciação fronteiras
fixas, de modo que uma estaria dissociada da outra. Ao contrário, ambas estão inter-
relacionadas no processo de criação e de recriação do sistema de significação. Por isso, para
Bakhtin (2002, p. 129), não “[...] há tema sem significação, e vice-versa”, uma vez que a “[...]
significação é um aparato técnico para a realização do tema” e o tema apoia-se “[...] sobre
uma certa estabilidade da significação; caso contrário, ela perderia seu elo com o que precede
e o que segue, ou seja, ela perderia, em suma, o seu sentido”.
229
É impossível, assim, designar a significação de uma palavra isolada, sem para ela
construir uma enunciação, ou seja, inseri-la em um exemplo Bakhtin (2002). É o que pode
acontecer com o signo linguístico “cerca”, o qual, em termos de dicionário, pode ser utilizado
em diferentes situações de uso da linguagem, obtendo, assim, o sentido de obra feita para
delimitar e proteger um espaço. Mas para entender “cerca” como um signo ideológico, ele
precisa estar em uma enunciação concreta, com interlocutores concretos, em um espaço-
tempo concreto. O enunciado “é preciso romper cercas”, se for dito pelo MST, o tema tem o
sentido de símbolo da elite latifundiária, logo, rompê-la tem o sentido de possibilitar ao
trabalhador rural (àquele que é da terra), o direito de estar na terra, além disso pode ter o
sentido de vencer a desigualdade no campo, vencer a injustiça social, sendo a cerca um
obstáculo social. Já se for dito por um latifundiário, a cerca tem como tema o sentido de
elemento de proteção de propriedade privada, a qual se for rompida dá o direito ao enunciador
de lutar por sua propriedade. Por isso, Bakhtin (2002) realça o tema como uma característica
apenas da enunciação concreta/da língua viva.
Um ponto destacado por Bakhtin como distintivo entre tema e significação é o
problema da compreensão. O autor russo parte da premissa de que qualquer compreensão
deve ser ativa e deve estar na essência de uma resposta, porque compreender “[...] é opor à
palavra do locutor uma contrapalavra” (BAKHTIN, 2002, p. 132). Nesses termos, a
compreensão compreende o encontro de duas consciências, de dois sujeitos (o enunciador e o
interlocutor). Esse encontro trata-se de uma enunciação concreta, do qual o tema emerge. Isso
ocasiona uma relação dialógica com o tema de enunciados passados. Os temas da enunciação
levam o interlocutor a dialogar com temas do já dito e, assim, também orientar sua resposta à
fala de seu enunciador, como uma réplica. Logo, apreende-se um tema por meio de outros
temas. No processo de compreensão, dialogamos com a palavra do outro mediante uma série
de palavras nossas, formando uma réplica e instaurando um diálogo (BAKHTIN, 2002).
Ademais, a significação está relacionada ao valor apreciativo, uma vez que a palavra
usada em uma enunciação possui, além de tema e significação, um acento valorativo. O autor
assevera que não há compreensão sem avaliação, porque o “[...] sujeito da compreensão
enfoca a obra com sua visão de mundo já formada, de seu ponto de vista, de suas posições”
(BAKHTIN, 2011, p. 378). São essas posições que determinam sua avaliação, ou seja, o valor
que ele atribui à obra. Assim, podemos verificar a razão de os signos terra, reforma agrária e
educação do campo serem vistos de formas diferentes por diferentes sujeitos, os quais
ocupam posições distintas na sociedade. Suas posições sociais determinam que o mesmo
signo linguístico seja concebido como signo ideológico com sentidos diferentes, por exemplo,
230
terra como bem de capital e terra como direito social. Bakhtin (2011) ressalta que o
excedente de visão de cada pessoa refere-se à forma particular como cada sujeito valoriza
discursivamente algum acontecimento. Bakhtin (2011) compreende o excedente de visão
como a forma que um sujeito tem de conhecer mais um eu-individuo que ele próprio, em
decorrência de assumir uma posição exterior (exotópica). Essa posição privilegiada o faz
enxergar pontos inacessíveis ao eu-individuo. Como salienta Bakhtin (2011, p. 22):
[...] O excedente de minha visão em relação ao outro individuo condiciona
certa esfera do meu ativismo exclusivo, isto é, um conjunto daquelas ações
internas ou externas que só eu posso praticar em relação ao outro, a quem
elas são inacessíveis no lugar que ele ocupa fora de mim; tais ações
completam o outro justamente naqueles elementos em que ele não pode
completar-se.
No entanto, para que o sujeito possa completar o horizonte do outro, é necessário que
entrar em empatia com o universo do outro individuo. Nas palavras de Bakhtin (2011, p. 23),
é necessário ir além:
[...] ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê, colocar-
me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, completar o
horizonte dele com o excedente de visão que desse meu lugar se descortina
fora dele, convertê-lo, criar para ele um ambiente concludente a partir desse
excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha vontade e do
meu sentimento”.
Podemos inferir que a constituição dos sentidos do tema é determinada pelo
excedente de visão de cada um enquanto enunciador. É o valor apreciativo de um sujeito
pertencente a um grupo social que orientará a seleção e a distribuição dos elementos mais
carregados de sentidos na enunciação, pois: “[...] Toda palavra enunciação compreende antes
de mais nada uma orientação apreciativa” (BAKHTIN, 2002, p. 135).
O Círculo de Bakhtin também trata em seus estudos do tema do gênero o conteúdo
temático. Cada gênero possui uma relativa tipificação mediante o tratamento dado aos
conteúdos ideologizados. Assim, podemos perceber que, em relação ao conteúdo temático, há
características comuns em um conjunto de textos pertencentes a um mesmo gênero. Pensando
na distinção entre tema da enunciação e tema do gênero, de acordo com a visão bakhtiniana,
consideramos o primeiro como concreto, único, não reiterável, instável e não tipificado
(BAKHTIN, 2002); o segundo, como explicam os autores Alves Filho e Santos (2013, p. 82),
situam-se em outra extremidade e caracterizam-se por sua “[...] tipificação, uma vez que é
231
possível identificar em um conjunto de textos, pertencentes a um dado gênero, um tema ou
um conjunto de temas típicos”. A esse respeito, Bakhtin (2011, p. 293) explica que os “[...]
gêneros correspondem a situações típicas da comunicação discursiva, a temas típicos, por
conseguinte, a alguns contatos típicos da comunicação dos significados das palavras com a
realidade concreta em circunstâncias típicas”. No entanto, é preciso atentar-se ao fato de que a
tipificação é relativa, o que possibilita adaptações e mudanças.
Pela ótica bakhtiniana, o tema da enunciação também é concebido como determinado
pelas relações de produção e, também, pela estrutura sócio-política (BAKHTIN, 2002). Por
esse viés, Alves Filho e Santos (2013, p. 82) compreendem que o tema da enunciação está
associado à vontade discursiva do enunciador e ao valor axiológico atribuído por ele aos
acontecimentos sociais, “[...] originando o tema a partir do lugar social que o locutor ocupa”;
o tema do gênero, está vinculado aos “[...] propósitos comunicativos socialmente
compartilhados, razão pela qual se torna mais sujeito às tipificações”.
Nessa ótica, um gênero apresenta características comuns quanto ao conteúdo
temático, que podem ser reconhecidas e aceitas por um grupo social. Nos relatos pessoais dos
acadêmicos sem terra, por exemplo, visualizamos um conjunto de textos em que o conteúdo
temático é o vivido, ou seja, as experiências vivenciadas durante a infância, a adolescência e a
maturidade. Assim, entendemos quando Bakhtin (2002, p. 43) ressalta que “[...] cada época e
cada grupo social têm seu repertório de formas de discurso na comunicação sócio-ideológica.
A cada grupo de formas pertencentes ao mesmo gênero, isto é, a cada forma de discurso
social, corresponde um grupo de temas”. Inferimos, assim, que o conteúdo temático refere-se
ao conjunto de temáticas que um gênero pode abarcar.
Compreendemos que o tema de um gênero pode abarcar e articular uma variedade
assuntos, os quais se referem àquilo que se trata em um texto. Desse modo, um assunto pode
ser repetido várias vezes, mas o tema não, porque a situação histórica muda. Nos relatos
pessoais dos acadêmicos sem terra, o tema é o vivido, o que é tematizado em diferentes
assuntos que compreendem, por exemplo, a origem, os trabalhos realizados quando criança,
as dificuldades para chegar à escola, a desistência da escola, a necessidade de trabalhar para
ajudar em casa, a ida para o acampamento, as dificuldades para se manterem no
acampamento, a chegada no lote, a conquista de uma vaga na Universidade. Esses e outros
assuntos estão articulados ao tema vivido.
Para Bakhtin (2011), a organização composicional também é um elemento que,
juntamente com o estilo e o tema, reflete as condições específicas e as finalidades de cada
esfera social. A organização composicional está associada à estruturação, à organização geral
232
dos enunciados, isto é, a formas mais ou menos estabelecidas, que determinam uma gama de
possibilidades de estilo possíveis. Essa organização reflete formas típicas de um gênero, o que
contribui para que ele possa ser reconhecido por seus receptores. Por isso, a organização
composicional está ligada ao estilo, tendo em vista que a relação estabelecida entre esses dois
elementos determina o tipo de estruturação e de conclusão de um todo, como também o tipo
de relação entre o locutor e o interlocutor. Dessa forma, a mudança no estilo pode revelar
mudanças na organização composicional. Por meio dessa visão, observamos que o enunciador
faz a escolha da organização de seu enunciado e, também, das sequências textuais que
compõem o todo do enunciado.
Observamos que entre a tríade estilo, conteúdo temático e organização
composicional há sempre uma inter-relação. Por isso, Bakhtin (2011) insiste que eles devem
ser investigados conjuntamente e não de forma separada, tampouco isolados das condições de
produção do enunciado e das características da esfera a qual pertence o gênero em análise,
caso contrário, poderíamos cair nas descrições estruturalistas ou formalistas.
Os estudos do Círculo de Bakhtin nos oportunizaram compreender que os gêneros
discursivos são resultado do uso concreto da linguagem, como também são reflexo cultural da
sociedade da qual faz parte e organizadores dos nossos discursos: “[...] Nós aprendemos a
moldar o nosso discurso em formas de gênero” (BAKHTIN, 2011, p. 283). Por serem
intermediadores das práticas sociais, os gêneros influenciam os discursos, o modo de dizer o
que se quer dizer e, assim, constituem relações sociais, valores e identidades. Os gêneros são
instrumentos que, por meio de sua apropriação, oportunizam a transformação, a construção e
a constituição da identidade de seus sujeitos (SCHNEUWLY, 2004) (GOMES, 2008). Nessa
perspectiva, a próxima seção discutirá o conceito de identidade em Bakhtin, mostrando que o
Círculo concebe a identidade na relação entre o eu e o outro.
4.1.2 O Gênero Discursivo Relato Pessoal
Pelo viés bakhtiniano acerca dos gêneros discursivos, que estamos discutindo neste
capítulo, consideramos os relatos pessoais dos acadêmicos sem terra um gênero discursivo
que congrega discursos do presente e retomam vozes históricas, além de também estarem
relacionados aos discursos que ainda serão enunciados sobre o problema da terra, da reforma
agrária e da educação do campo no Brasil. Por isso, não podem ser estudados e explicados
233
isoladamente, fora da relação estreita com a situação concreta de serem produzidos por
sujeitos sem terras.
O gênero discursivo relato pessoal de estudantes sem terra está organizado conforme
as condições específicas sócio-historicamente constituídas, o que se reflete no discurso por
meio do conteúdo temático, do estilo e da organização composicional. Quanto à sua
organização composicional, marca-se por momentos narrativos, descritivos e argumentativos.
Os sujeitos narram, argumentam, descrevem, como sugerido pelas professoras, seus
nascimentos, brincadeiras de infância, entrada na escola, trabalhos realizados em casa e no
campo, participação nos movimentos sociais, vida no acampamento e assentamento, momento
do vestibular, aulas na universidade, expectativas futuras. Ao realizarem esse movimento de
rememoração, argumentam a razão de deixarem a escola quando crianças, de deixarem os
barracos durante a semana para trabalharem de diaristas nas fazendas vizinhas, de os lotes não
produzirem, da necessidade de os acampamentos e assentamentos precisarem de escolas e de
professores do campo e, ainda, da necessidade um curso específico para os assentados de
reforma agrária. Desse modo, seus discursos constituem a história do problema da terra no
Brasil e constituem, ao mesmo tempo, seus sujeitos enunciadores que fazem parte dessa
história.
Por não ser um gênero fixo, imóvel, o relato pessoal proporciona uma liberdade
maior ao sujeito enunciador em apresentar os fatos que julga importantes nesse momento
discursivo. Por isso, eles podem narrar em detalhes seus nascimentos ou o nascimento dos
filhos, bem como as desilusões amorosas, os trabalhos realizados durante a vida. Assim, o
gênero relato pessoal proporciona ao próprio sujeito um momento de problematizar o vivido,
analisá-lo de uma certa distância e tecer sobre os variados acontecimentos um julgamento,
como avalia Marialves no final de seu relato:
Ao escrever a trajetória de minha vida, senti que é muito mais fácil falar ou
escrever sobre outros assuntos do que sobre nós mesmos, eu particularmente,
tenho muita dificuldade em falar sobre mim, especialmente sobre o passado,
pois procuro sempre esquecer as lembranças que me trouxeram felicidade,
entretanto, acredito que foi muito bom a realização deste trabalho, pois me
fez refletir sobre tudo que aconteceu em minha vida, fazendo um paralelo
do antes e o agora. (Marialves, 2009).
Como percebemos, o sujeito enunciador apresenta uma visão mais analítica sobre si e
sobre o vivido, revelando sentimentos antes distantes da memória e agora tão vivos. São
sentimentos de gratidão, arrependimento, alegria, desespero, desilusão e esperança que
234
afloram durante o processo de escrita e constituindo os sujeitos sem terra – camponeses,
filhos, pais, estudantes, militantes. Além disso, importa destacarmos que o referido gênero
também apresenta outros gêneros em sua composição, como músicas, poesias, lemas, cartas, o
que demonstra o seu caráter móvel e plástico. Exemplo disso é a dedicatória recebida por
Maria Aparecida de uma criança que auxilia durante seus trabalhos como conselheira tutelar:
Titia Cida, te ofereço esta foto, com muito carinho. Veja como estou fofinha,
a cada dia ganho mais peso e fico mais saudável. Eu te agradeço por tua
atenção em devolver-me a vida que estava perdendo. Que Deus te abençoe
sempre, nunca vou te esquecer.
Beijinhos da Mariana. (Maria Aparecida)
Em linhas gerais, o estilo dos relatos pessoais dos acadêmicos sem terra caracteriza-
se pela presença do discurso direto, discurso indireto, repetição, verbos no pretérito e no
presente, uso da primeira pessoa, uso da terceira pessoa, especificação de datas, linguagem
poética, linguagem acadêmica. Esses aspectos são escolhidos pelos sujeitos por serem aqueles
que melhor atendem aos seus objetivos de interação, mesmo isso não sendo consciente.
O tema contemplado no conjunto de relatos pessoais é o vivido, o que é próprio do
gênero relato pessoal. É o vivido pelos acadêmicos durante suas experiências enquanto
crianças, filhos e filhas de camponeses, trabalhadores urbanos, trabalhadores rurais,
militantes, acampados, mães, pais, assentados, universitários, que emerge no momento de
escritura do gênero relato pessoal.
A partir desse entendimento, o gênero relato pessoal revela uma diversidade de
assuntos que recobre o tema, evidenciando que a escolha por esse gênero foi fundamental para
que os alunos realizassem um movimento de rememoração do passado, como também uma
seleção e organização de ideias, além de uma avalição das experiências vividas. Os relatos
pessoais demonstraram que é possível valer-se das experiências dos educandos no processo de
ensino-aprendizagem, pois suas experiências são o que se tem a dizer. Evidencia-se que os
graduandos têm maior familiaridade com o gênero relato pessoal, ao se apresentarem como
produtores do gênero com o qual se familiarizam, sendo capazes de usá-lo em diferentes
situações de comunicação. Como aponta Freire (2004), as experiências existenciais dos alunos
devem ser o ponto de partida para o ensino, a fim de que faça sentido a eles e, também, dê a
eles prazer, como aponta Sônia em seu relato:
Este trabalho foi muito gostoso de fazer, quero agradecer as professoras pela
brilhante idéia de nos fazer voltar no tempo, de relembrar o nosso passado e
235
de contar das nossas vidas e confessar que você sempre nos surpreende com
esses tipos de trabalho que parece uma coisa boba, mas que acaba se
tornando tão valioso porque vai lá ao fundo do baú, lá mais profundo do
nosso íntimo onde ninguém consegue chegar, esse conseguiu. OBRIGADA
PROFESSORAS. (2009).
Assim, não há ruptura entre o saber da experiência – “curiosidade ingênua” – e o
saber acadêmico, metodologicamente rigoroso – “curiosidade epistemológica”, como defende
Freire (2004). Há um movimento de superação, quando a curiosidade ingênua criticiza-se,
tornando-se curiosidade epistemológica. É isso o que ocorre nos relatos pessoais, pois, por
meio da rememoração dos acontecimentos vividos, o acadêmico avalia o ocorrido no plano
pessoal, nos movimentos sociais, nas relações com as diferentes instituições públicas e,
principalmente, com relação ao sistema de capital, o qual é negado e criticado durante os
relatos.
Nas palavras de Freire (2004, p. 45), na formação docente, não importa a repetição
mecânica dos gestos, mas a compreensão dos valores, das experiências e dos desejos, das
inseguranças a serem superadas, do medo, que, à medida que o educando entra no universo do
ensino-aprendizagem, gera coragem.
Nessa perspectiva, compreendemos que a produção do relato pessoal é uma
oportunidade de os acadêmicos rememorarem o passado, selecionarem fatos, recordarem e
narrarem os significativos, os quais estão na memória. Desse modo, percebemos que o sujeito
enunciador tem “[...] os vínculos necessários que ligam o passado ao presente vivo, procura
compreender o lugar necessário do passado na continuidade da evolução histórica”
(BAKHTIN, 1997, p. 252). Trata-se de um momento em que se pode rememorar fatos,
repensá-los, avaliá-los, atribuindo à história um novo significado e, ainda, questionar o
presente e abrir novas possibilidades para o futuro. O presente recebe as recordações do
passado, mas não acaba com sua forma sempre viva e ativa.
O leitor dos relatos pessoais é levado a conhecer as decisões mais difíceis tomadas,
as avaliações feitas, os obstáculos enfrentados, como também lugares, pessoas, instituições
governamentais, revelando emoções, sentimentos e reflexões, como também a conhecer os
projetos do futuro, pois passado, presente e futuro estão em constante ligação, já que, como
afirma Bakhtin (1997, p. 132), o “[...] futuro do sentido se dissolve num passado e num
presente que lhe predeterminam”.
A leitura discursiva dos relatos pessoais oportuniza ter acesso ao universo vivido
pelos acadêmicos, como também aos seus anseios, expectativas, planos, desilusões.
Possibilita, ainda, percebermos que eles se colocam como sujeitos de seus discursos, como
236
sujeitos sociais, que se relacionam com outros discursos, com outros dizeres, evidenciando
que sua identidade constrói-se pela relação com o outro e, por isso, está em eterna
constituição, como defende Bakhtin (2011).
4.1.3 Identidade e Alteridade em Bakhtin
Bakhtin inaugura uma nova perspectiva de conceber a identidade, que antes é vista
como construída pelo próprio sujeito. Com Bakhtin, a inter-ação entre o eu e o outro entra em
cena, de modo que é o olhar do outro, o ato responsável do outro constituem a identidade de
um sujeito. Trazer o outro como um elemento primordial na construção da identidade de um
sujeito é visto como a “revolução bakhtiniana” por Ponzio (2016), não sendo o outro aquele
que tem lugar central, mas sendo o eixo de todo trabalho de constituição do sujeito: “A
‘revolução bakhtiniana’ consiste no deslocamento da atenção, em todos esses problemas e
campos, da identidade à alteridade” (PONZIO, 2016, p. 233). A preocupação não está em
mostrar o valor do eu, mas o valor do outro ativamente presente na situação de comunicação.
Para Bakhtin (2014), portanto, a vida concreta visualiza dois centros de valor, os
quais, mesmo diferentes, estão correlacionados: o eu e o outro, de modo que é em torno deles
que a vida concreta se efetiva, se arranja. Como apontam Miotello e Moura (2014, p. 9), “[...]
minha identidade é constituída nessa relação, a identidade é constituída com o outro”. O
conceito norteador da obra do Círculo de Bakhtin, o dialogismo, também é relacionado à
identidade, pois ela não existe de forma independente ou soberana, mas é fruto de um
processo interacional, sócio-histórico, cultural e discursivo. Assim, o sujeito dialoga com
grupos sociais diferentes, discordantes ou consonantes as suas ideias. Há, portanto, na
interação, o compartilhamento de crenças, de valores, de pontos de vistas, de elementos
cognitivos e linguísticos, os quais são marcas de ideologias circulantes pela vida concreta.
Observamos que Bakhtin vai muito além da relação eu-tu proposta pela
fenomenologia, pois em “[...] sua teoria não fica restrito ao movimento de um eu que se
orienta para o outro, mas concebe o outro como condição necessária para a constituição do
eu” (FREITAS, 2013, p. 184). No entanto, não só o outro participa da constituição do eu,
pois Bakhtin (2011, p. 23) aponta que há sempre certa esfera de ativismo do eu, um
excedente de visão nessa relação, no sentido de que há sempre um “[...] conjunto daquelas
ações internas ou externas que só eu posso praticar em relação ao outro, a quem elas são
inacessíveis no lugar que ele ocupa fora de mim; tais ações completam o outro justamente
237
naqueles elementos em que ele não pode completar-se”. O autor acrescenta que as ações são
variadas, tendo em vista a diversidade de situações da vida em que o eu e o outro podem se
encontrar, porém o ativismo do eu é sempre existente (BAKHTIN, 2011). A identidade
constitui-se, portanto, “[...] com o outro, num jogo de alteridade” (MIOTELLO; MOURA,
2014, p. 9) e não da fusão com o outro. Bakhtin apresenta um eu “[...] não sistêmico e,
sobretudo, interpessoal, responsável, no qual o outro é constitutivo do eu, sem o qual o eu
não posso Ser” (FREITAS, 2013, p.190).
A identidade é, assim, uma “concessão do outro”, pois a “[...] iniciativa do diálogo é
sempre do outro” (MOURA; MIOLTELLO, 2014, p. 154). Essa constituição dá-se em um
movimento da constituição do eu, a qual se estabelece no ato responsivo, em um diálogo com
o exterior. É na fronteira entre o eu e o outro que se constitui a identidade de um eu, sendo
construído pelas ofertas do outro. O eu não é constituído, portanto, por ele mesmo, mas pelo
outro, apesar da existência do eu. No encontro do eu com o outro, este completa aquele, por
ser um sujeito sempre em construção: “O ato do outro me incompleta sempre, me traz à vida,
me garante a incompletude necessária” (MIOTELLO; MOURA, 2014, p. 10).
Por esse viés bakhtiniano, podemos afirmar que a identidade é sempre coletiva, já
que o ponto de partida é sempre o outro, pelo fato de o sujeito ser sempre fruto de um
fenômeno socioideológico. Por isso, Bakhtin defende que o conteúdo do psiquismo
“individual” é “tão social quanto à ideologia e, por sua vez, a própria etapa em que o
indivíduo se conscientiza de sua individualidade e dos direitos que lhe pertencem é
ideológica, histórica, e internamente condicionada por fatores sociológicos” (2002, p. 58). O
eu, para Bakhtin, constitui-se, assim, fora de si mesmo, pela ação do outro no eu, mas
também no próprio eu, o qual é determinado não só pela unicidade do meu organismo
biológico, mas também pela “[...] totalidade das condições vitais e sociais em que esse
organismo se encontra colocado” (BAKHTIN, 2002, p. 58). O eu, então, nas brechas e
entremeios, volta-se para seu mundo, fecha a sua constituição, impondo seus limites,
definindo-se, concluindo-se a si mesmo (MOURA; MIOLTELLO, 2014, p. 155). No entanto,
o eu não vive apenas em seu mundo, definido, pronto, completo, mas vive também no mundo
do outro, pois é com ele que o eu irá dialogar, de quem aguardará sempre uma resposta para
os seus enunciados construídos. Nessa direção, o papel dos outros no enunciado do eu é
significativamente grande, pois eles são aqueles para os quais o enunciador lança seus
pensamentos, tornando-os realidade, não sendo meros ouvintes passivos, mas participantes
ativos da comunicação discursiva. Desde o início, o eu espera do outro uma resposta, “[...]
238
uma ativa compreensão responsiva” como se o construísse para ir ao encontro dessa palavra,
dessa possibilidade de completude, de definição do eu (BAKHTIN, 2011, p. 301).
Bakhtin, ao escolher a categoria Outro para pensar a identidade do eu e não o tu,
amplia as possibilidades de relações humanizadoras. O outro é a outra pessoa, é também o
mundo, ou seja, tudo o que está fora do eu e com ele tem relação (MOURA; MIOLTELLO,
2014). O que Bakhtin faz é inverter o eixo de constituição da identidade do eu, uma vez que
ele é reconhecido pelo Outro: “A identidade tem de ser construída pela Alteridade” como
assinalam Moura e Miotello (2014, p. 157). A relação com o outro, para Bakhtin, é eterna,
iniciando-se, ao menos, no nascimento quando o eu recebe o nome de um outro e passa a
existir para os outros. No processo de interação, o outro é figura constante e exigida sempre,
pois a ele cabe completar o eu, mesmo que essa completude seja impossível, pois a interação
verbal é dinâmica e sempre pede outras completudes. Assim, embora sendo o mesmo, nunca
se é o mesmo, já que a diversidade de interações verbais advindas da vida concreta lança
novos desafios, novas exigências, novas negociações determinados pelo outro. Isso torna o eu
sempre em um sujeito de completude incompleta, pois ao querer-se completar, abre-se para a
incompletude. Nas palavras de Geraldi (2010, p. 107), “[...] o Outro é o único lugar possível
de uma completude sempre impossível”.
As interações da vida concreta pressupõem continuamente uma relação entre o eu e
o outro. É impossível estar no mundo sem estar em interação com o outro. Dele o eu leva a
sua marca, mas também deixa a sua, num processo dialógico. É a relação dialógica que une
esses dois sujeitos e essa não é apenas uma relação consoante, tranquila, construtiva, mas é
também a relação contraditória, refutante, turbulenta. Nessa direção, o eu pretende-se
diferente do outro, quer se posicionar diferente do outro, quer demonstrar um lado
desconhecido, novo. Moura e Miotello (2014, p. 160) mostram que essa “[...] é a nossa
riqueza. Esse é o nosso poder. Assim somos construtores. Não sou cópia do Outro. [...] Daí o
esforço de me posicionar diante do Outro como um Eu”.
Os autores defendem que o outro só entra em mim, me constituindo, me destruindo e
me reconstruindo, quando for possível significar o que está sendo negociado na relação. Essa
abertura ao outro é possível por meio de um signo, de modo que o Outro bate no eu como
signo: “a) como materialidade; b) como materialidade sócio-histórica; c) como ponto de vista
humanizador e humanizado” (MOURA E MIOTELLO, 2014, p. 160). Nessa direção, a terra
não é pó e a educação do campo não é educação rural. É o que os autores chamam de
rompimento com a mesmice. Ser o mesmo e o diferente ao mesmo tempo e no mesmo lugar.
Pelo sentido do signo, construído sócio-historicamente, ele tem força no eu, ele significa com
239
o próprio eu e para o eu, isto é, o signo constitui o eu. É pelo signo que os acadêmicos sem
terra valoram o mundo, definindo-o, dando-lhe a importância que lhe cabe, em um
movimento de esforço humano da humanidade de se humanizar. O eu acadêmico sem terra
entra nesse movimento, põe-se em risco, mas não pode fugir do olhar do outro, o qual é
chamado a constitui-lo, com o objetivo de acentuar o eu sem terra.
Assim, vamos percebendo que os outros de agora e de ontem constituem os sujeitos
acadêmicos sem terras de hoje. Na relação entre passado e presente, entre os outros de hoje e
outros de ontem, a identidade desses acadêmicos constitui-se e, por mais que queiram, não há
espaço para o eu-comigo-mesmo, pois o outro é intrinsecamente parte dele. Isso demonstra
que a identidade dos acadêmicos sem terra não são X ou são Y por obra do destino ou por
vontade divina, mas é resultado de movimentos contrários ou consonantes de outras
interações de seu grupo ou de grupos opositores.
Como o discurso é capaz de registrar as nuances mais íntimas e transitórias da
sociedade, é sobre ele, o discurso dos acadêmicos sem terra, via relatos pessoais, que nos
debruçamos a partir de agora com o objetivo de desvendar a identidade dos acadêmicos sem
terra do curso de Ciências Sociais da UFGD, verificando quais são as vozes presentes e,
ainda, como o problema da terra no Brasil é tratado pelos sujeitos sociais, elementos que, na
relação do eu com o outro, constituem a sua identidade.
O pano de fundo que perpassa os relatos pessoais pauta-se na luta, na travessia pela
conquista de terra em acampamentos e assentamentos rurais em Mato Grosso do Sul,
especialmente no período entre as décadas de 1980 e 2009. Visualizam-se relatos elaborados
por homens e mulheres em busca de estratégias de pertencimentos sociais que, com seus
movimentos, produzem questionamentos sobre o modo como é/está organizada a estrutura
social brasileira.
Os relatos pessoais caracterizam-se como gêneros discursivos e permitem afirmar
que há alguns traços/situações recorrentes e similares na vida dos autores dos textos. Há
recorrência quando tratam das dificuldades para estudar quando crianças, da proibição dos
maridos quanto ao estudo, do forte sentimento pelos filhos, da desagregação, temporária ou
definitiva, da família até o momento de pertencimento “oficial” em relação às terras
almejadas. Como enunciados concretos, esse gênero traz à cena vivências amargas e doces de
uma trajetória marcada pela luta por condições melhores no campo, o que nos possibilita
desvendarmos suas identidades constituídas em um continuo do qual essa prática discursiva
faz parte.
240
4.2 Vozes Histórico-sociais
O corpus deste estudo constitui-se por relatos pessoais, escritos por acadêmicas sem-
terra do curso de licenciatura em Ciências Sociais (2008-2012), oferecido pela UFGD em
parceria com o PRONERA, o MDA, o INCRA e os Movimentos Sociais Rurais de Mato
Grosso do Sul. A proposta de feitura dos relatos foi apresentada na disciplina de Produção de
Textos (2009). As finalidades da produção dos relatos foram apresentadas em sala. A primeira
consistia em uma atividade avaliativa da disciplina de Produção de Texto (2009), e a segunda
previa a publicação de um livro com os relatos, a fim de expor a leitores diversos a trajetória
de cada um em busca da terra e, para isso, seria necessário o aceite por parte do autor com a
devida autorização para revisão e publicação. Dos 56 acadêmicos, 35 disponibilizaram seus
relatos para publicação por meio de autorização concedida à Editora da UFGD, a qual foi
responsável pela editoração do livro Do cheiro da terra, aos fios da memória.
Os relatos apresentam fragmentos das trajetórias vivenciadas pelos acadêmicos desde
a infância até a chegada à Universidade. Trata-se de uma trajetória delineada por momentos
amargos, quando retratam, por exemplo, as dificuldades enfrentadas para se estudar quando
eram crianças e a tristeza sentida ao ter de abandonar os estudos. Porém, também retratam
momentos alegres vivenciados durante as brincadeiras de infância, como também a entrada no
tão sonhado lote. Trata-se de um momento de rememoração, em que acontecimentos do
passado são relembrados e, ao mesmo tempo, reavaliados, agora em um outro tempo e de um
outro lugar social: acadêmicos sem terra.
4.2.1 Análises: Desvendando a Identidade de Acadêmicos Sem Terra
Devido às características do gênero relato pessoal e das condições de produção
próprias dos relatos que estamos analisando, esperávamos que muitos assuntos fossem
apresentados pelos acadêmicos sem terra em seus textos, o que realmente ocorreu. Como
podemos observar no Quadro 8, o tema “vivido” é tematizado em múltiplos assuntos, os quais
demonstram as variadas experiências vivenciadas pelos graduandos sem terra até a chegada à
Universidade.
241
Quadro 8: Assuntos presentes nos relatos pessoais dos graduandos sem terra
Acidentes no acampamento Escola Família Agrícola Mudança para o assentamento
Ajudar no sustento da família Escola longe do assentamento Mulheres retomam estudos
Apoio da Igreja Católica e da
CPT
Falta de estrutura do assentamento Ser professor do campo
Apoio dos maridos para estudar Experiência com o trabalho no campo Origem do estudante no campo
Apoio dos movimentos sociais Cursos nos Movimentos Sociais Mudanças durante a vida
Aprendizado nos cursos da
Igreja Católica
Estudo e trabalho na roça com os pais Pais com origem no campo
Assentamento sem escola Expectativas para o futuro Participação em grupos de jovens da
Igreja Católica
Assentamento: dificuldades
para se manter
Estudo noturno Pais vindos de outros estados
Brincadeiras - diversão Falhas na escolha da terra dos
assentamentos
Participação política no assentamento
Busca seu próprio lote Falta de apoio do marido para estudar Perda de lavouras
Colocação no vestibular Falta de condições financeiras para
pagar universidade particular
Produção no campo: fartura
Confrontos nos acampamentos Falta de encanto com a escola rural Relação de gênero
Corrupção dos líderes dos
Movimentos
Falta de escola no assentamento Religião católica
Criança com alta carga de
trabalho
Escolas multisseriadas – Mobral Nascimento de filhos
Cultura popular: causos,
benzeções, remédios caseiros
Formação política nos movimentos
sociais: MST, CUT, CPT
Religiosidade popular
Curso: dificuldades para
entender os conteúdos
História do nascimento Reprovação na escola
Descaso do município com o
assentamento
Identidade sem terra Retorno para cidade
Descrédito com o INCRA Língua Portuguesa na Universidade Sentimento: união e coletividade
Desistência da escola Luta no assentamento Trabalhos para fora quando criança
Desistência do acampamento Luta para conseguir o assentamento Trabalhos solicitados no curso
articulavam a prática e à teoria
Dificuldade para chegar à
escola quando criança
Mudança para Mato Grosso do Sul Mudança para o acampamento
Dificuldade para se manter no
lote
Luta no acampamento Trabalho como professor no
assentamento
Dificuldades com as disciplinas
no curso
Educação urbana Trabalho de diarista perto do
acampamento para sustentar a família
Dificuldades com maridos Escola: primeiro dia de aula Trabalhos diferentes
Distribuição de terras por
Getúlio Vargas - CAND
Falta de apoio do poder público:
escola, saúde, financiamento
Perda do emprego na cidade
Educação familiar História do nome Reprovação nos vestibulares
Escola no assentamento Falta de escola no acampamento Relacionamento com os colegas
UFGD: vestibular,
metodologia, estudos
União de Movimentos Sociais
diferentes
Venda do sítio por causa de
fazendeiros
Vestibular: satisfação em
passar
Vida no acampamento Violência no campo: polícia,
jagunços
Elaborado pela autora (2016).
242
A variedade de assuntos que tematizam o tema vivido leva-nos a estabelecer
macrocategorias de assuntos, as quais norteiam nossas análises. As macrocategorias reúnem
os assuntos relacionados às fases da vida – infância, adolescência e maturidade –, conforme
observamos no Quadro 9.
Quadro 9: Divisão dos Assuntos em Macrocategorias
Infância Adolescência Maturidade
Origem Estudo Participação nos Movimentos Sociais
Escola Diversão Religiosidade
Religiosidade Relacionamento Familiar e Escola
Diversão Acampamento
Trabalho Assentamento
Universidade
Professor do Campo
Elaborado pela autora (2017).
Encaminhamos nosso movimento de análise a partir dessas três macrocategorias,
objetivando contemplar o tema do gênero relato pessoal. Ao trilharmos pelas macrocategorias,
fomos conduzidos por um fio condutor que nos leva a identificar as vozes constituintes da
identidade dos acadêmicos sem terra. Cabe ressaltarmos, em especial, que as vozes
diferenciam-se em um jogo de aproximação e distanciamento quanto à ideologia do sujeito
em análise.
4.2.1.1 Vozes da Infância
A primeira macrocategoria de assuntos a ser analisada refere-se à origem dos
graduandos71
. Como veremos, suas origens estão ligadas ao campo, pois seus pais e familiares
já realizavam serviços na lavoura em terras alheias ou em pequenos sítios para se manterem.
71 Os nomes dos graduandos, apresentados neste estudo, são reais, tendo em vista a autorização efetuada por eles
no momento da publicação do livro Do Cheiro da Terra aos Fios da Memória.
243
Os discursos dialogam com vozes do passado, como as das Ligas Camponesas que lideram
uma oposição ao regime de terras no nordeste. Os graduandos narram que seus pais, a maioria
nordestinos, vieram para Mato Grosso do Sul em busca de terras e atendendo ao chamado do
então presidente Getúlio Vargas que anuncia um plano de distribuição de terras na região.
(1) Tive uma infância alegre e extrovertida meus pais sempre gostaram da roça e
decidiram criar seus filhos todos ali, mesmo morando com meus avós e as
condições de vida difícil, meus pais eram felizes, nada superava o amor que os
meus pais tinham pela família. (Marisete).
(2) É! Logo pela manhã, lindo dia de sol da primavera, 08 de outubro de 1978,
quando a contração se intensificava, iniciado no dia anterior, mamãe ao revelar
a vizinha Vilma, que instantaneamente ansiou-se, já que papai nos cuidados da
lavoura deixara sua ausência, mas de iniciativa a providência. (Zilda).
(3) Lembro-me que moramos em um sítio de um amigo de meus pais, que
trabalhava para ele, era divertido, porém lembro-me vagamente deles
reclamando que o dinheiro era pouco, não costumavam reclamar na nossa
frente. (Vilma).
(4) Passei quase toda minha infância na região de Dourados onde meu pai sempre
trabalhou como administrador de fazendas e assim crescemos, quase não
tínhamos amigos devido ao fato de morarmos afastados. (Rosangela).
(5) Tudo começou em 1.952, quando meus pais chegaram em Mato Grosso do Sul,
antigo Mato Grosso. Vieram de Alagoas em busca de um pedaço de chão. Na
ocasião, estava sendo distribuído lotes de terras na região da Grande Dourados
no então governo de Getúlio Vargas. [...], era apenas um aglomerado de
pessoas, na maioria nordestinos, que vieram em busca da tal Reforma Agrária e
assim como todos, meus pais, muito jovens, começam uma nova vida, com
muita esperança e uma grande espectativa. (Marialves).
(6) Sou de uma família de oito irmãos, meu pai é pernambucano e minha mãe
mato-grossense, sendo o filho caçula, nascido ao primeiro dia do mês de abril
do ano de 1963, na fazenda de propriedade do Sr. José Ferreira (Zé Japonês),
denominada Pontinha no município de Rochedo-MS. (Eder).
(7) Este era o maior sonho deste casal de nordestinos que aos doze anos de idade
deixaram o Pernambuco fugindo da seca, em busca de sobrevivência – comida,
agua, casa. A mãe veio com sua família, o pai veio sozinho e nunca mais teve
noticias de sua família. (Rosemeire).
Como podemos perceber pelos excertos apresentados, a origem dos graduandos é no
campo, vivenciando juntamente com os familiares as experiências de viverem como
camponeses, como no caso do pai de Zilda que cuida da lavoura: “papai nos cuidados da
lavoura”. Os pais são trabalhadores em terras de familiares como explica Marisete: “mesmo
morando com meus avós e as condições de vida difícil” ou terras de fazendeiros, como no
244
caso de Eder que nasce na fazenda onde seus pais trabalham: “na fazenda de propriedade do
Sr. José Ferreira” e como Rosangela, cujo pai “sempre trabalhou como administrador de
fazendas” ou ainda nas terras de amigos para quem os pais trabalham, como mostra Vilma:
“moramos em um sítio de um amigo de meus pais, que trabalhava para ele”. Na perspectiva
bakhtiniana, ao mostrarem suas origens no campo, os discursos dos graduandos dialogam com
vozes adversárias que alegam serem os trabalhadores rurais sem terra oportunistas por não
terem ligações com a terra. O discurso dos graduandos é, assim, uma contrapalavra que ecoa
como uma resposta aos adversários e, também, como um argumento para justificar a luta que
travam para voltarem para campo, seu lugar de origem, onde têm suas raízes, onde foram
criados. Percebemos, ainda, que na oposição aos anseios capitalistas, o discurso dos
graduandos elabora-se na interação entre o Eu e o Outro, mostrando um posicionamento
ideológico do sujeito graduando sem terra. Nessa relação de interação, a palavra carrega de
um para o outro as ideologias de ambos, o que constitui cada um.
Ademais nos discursos quanto à origem, ecoa também as vozes dos camponeses
nordestinos, que, em busca por terra, saíram do nordeste brasileiro para outros estados, como
Mato Grosso do Sul. Isso se evidencia nos discursos quando os graduandos lembram-se das
saídas de seus pais do nordeste: “Vieram de Alagoas em busca de um pedaço de chão”
(Marisete), “meu pai é pernambucano e minha mãe mato-grossense” (Eder), “[...] nordestinos
que aos doze anos de idade deixaram o Pernambuco fugindo da seca, em busca de
sobrevivência” (Rosemeire). Além disso, nesses discursos, ecoam as vozes das Ligas
Camponesas, movimento nordestino que denunciou as restrições à terra nos estados do
nordeste, vistas no capítulo II. Percebemos que os pais dos graduandos saem na época em que
os camponeses nordestinos veem as Ligas Camponesas serem silenciadas pelas estratégias
políticas e violentas do governo e dos latifundiários e usineiros. Desse modo, podemos inferir
que os graduandos são herdeiros da visão ideológica das Ligas Camponesas, que concebia o
signo ideológico terra como um direito de todos aqueles que na terra quisessem trabalhar.
Também compreendemos que os camponeses das Ligas, assim como os graduandos sem terra
e suas famílias, são vítimas de uma política de terras voltada para a elite, o que é gerido desde
a implantação do regime de sesmarias, depois ampliado com a revogação da Lei de Terras, de
1850, e vem sendo consolidado com a promulgação de Constituições Federais, cujos
discursos limitam o direito à terra à compra, o que, consequentemente, as conduz às mãos dos
latifundiários e das multinacionais.
Isso demonstra que os regimes adotados para a distribuição de terras desde o Brasil
Colônia implicaram uma herança negativa para os camponeses daquela época e,
245
consequentemente, para seus descendentes, os quais foram obrigados a deixarem o campo e a
ocuparem as periferias das grandes cidades, entregando-se à exploração no contexto urbano.
No entanto, ao serem herdeiros das Ligas, os graduandos possuem um espírito de resistência
organizada e uma necessidade de formação política e acadêmica. Nesse movimento de
compreensão da palavra dos graduandos sem terra, tendo em vista a visão bakhtiniana,
podemos observar que “[...] fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando
uma réplica. Quanto mais numerosas e substanciais forem, mais profunda e real é a nossa
compreensão” (BAKHTIN, 2002, p.132).
Estar em terras alheias e sofrer as imprecisões oriundas de ser empregado levam os
filhos de trabalhadores rurais a terem dificuldades para permanecerem na escola. Isso se
evidencia na análise da macrocategoria Escola, que veremos a seguir. Nela os discursos
criticam as dificuldades encontradas para continuar na escola, como a financeira, a distância
entre a casa e escola, a falta de transporte escolar e o sistema escolar das escolas rurais, o que
revela falta de investimento e um esquecimento por parte do governo e dos fazendeiros em
relação às escolas rurais da época.
As vozes que se erguem nos excertos denunciam o esquecimento do campo por parte
das autoridades, pois a educação rural não comporta as especificidades dos filhos de
camponeses. Essas dificuldades experimentadas contribuem para a evasão escolar e as
reprovações, por exemplo. Com isso, podemos perceber como a metodologia da pedagogia da
alternância é fundamental para que camponeses e seus filhos possam entrar e permanecer na
escola. As experiências negativas vivenciadas nas escolas rurais também colaboram para a
importância dada ao curso de Ciências Sociais, o qual é visto como uma oportunidade de
realização de um sonho, não só do graduando, mas também de toda sua família.
(1) As dificuldades de uma criança pobre influenciavam o meu desempenho, por
não conseguir comprar a cartilha didática usada na primeira série chamado
Caminho suave, tive dificuldades no inicio do ano letivo. Mas lembro-me que
minha professora ganhou uma cartilha usada e velhinha, e através de uma
disputa entre eu e outra criança, ganhei a cartilha por ler melhor que o outro.
(Alessandro)
(2) O tempo foi passando, fui crescendo, e junto com meus irmãos, a cada ano que
passava, as coisas iam ficando mais apertadas, já não tinham mais mochilas e
nem cadernos; o governo não fornecia material escolar, e meus pais não
tinham condições de manter cinco filhos na escola com materiais adequados.
Tinha só um caderno para todas as matérias e misturava todos os conteúdos.
Por essa razão, não consegui tirar a quarta série quando tinha 9 anos e ganhei
uma surra por ter repetido de ano. (Ivanilda)
246
(3) O pai arriou o cavalo na carroça e arrumou a mudança em cima, fomos a pé
enquanto a carroça levava parte das coisas. (Maria de Fatima)
(4) Com oito anos de idade mudamos para Juti [...]. Fui matriculada no primeiro
ano, [...] só existiam duas salas e dois períodos, depois de dois anos fomos
para uma chácara de quatorze hectares de terra, que compramos. Para terminar
o terceiro e o quarto ano primário, andávamos seis quilômetros de distância,
dois quilômetros de picada dentro da mata, quatro quilômetros de estrada de
muita areia, éramos cinco meninas [...] a mais adulta tinha doze anos, era
divertido a ida à escola, mas muito cansativa a volta da escola pra casa. Foi
muito triste ter que parar de estudar e contentar só com o primário, pois não
havia mais estudos, por ser um lugar muito pequeno. (Alice)
(5) A família crescera bastante, éramos seis filhos e nenhum estudando, o pai e
mãe preocupados resolveram que a saída era vender tudo e irmos para a
cidade. Meu pai vendeu nossas terras, no negócio recebeu a morada do seu
Chiquito Rosa, que havia ficado viúvo. (Dalva)
(6) A escola era novidade, iniciei a vida escolar um pouco tarde aos onze anos na
Escola Estadual Amando de Oliveira, no começo foi muito difícil, as
diferenças de idade, uns com sete outros com quinze. Foi complicado, ficava
meio perdido e fazia o que podia, acabei me adaptando rápido e tendo êxito na
aprendizagem [...]. (Eder)
(7) Aos sete anos de idade começou a estudar na escolinha da colônia
bandeirante, esta com o nome de Escola Municipal José Gonçalves da Silva
[...]. O professor Benedito Ladislal da Silva que não tinha nenhuma formação
profissional para lecionar, mas tinha um conhecimento literário, pois na época
ele tinha o 4°ano primário que era uma formação acima dos conhecimentos da
comunidade, então desde o inicio da colônia começou a trabalhar na educação
e era um serviço que fazia muito bem. (Edmilson)
Os dois primeiros excertos (Alessandro e Ivanilda) demonstram as dificuldades
financeiras enfrentadas pelos filhos de camponeses, sitiantes, para estudar, por não
conseguirem comprar os materiais necessários (“por não conseguir compra a cartilha didática
usada na primeira serie chamado Caminho suave”), ou pela falta de apoio dos órgãos
governamentais para a aquisição desses materiais (“não tinham mais mochilas e nem
cadernos; o governo não fornecia material escolar, e meus pais não tinham condições de
manter cinco filhos na escola com materiais adequados”), o que evidentemente influencia no
desempenho deles na escola. A primeira materialidade discursiva mostra que o filho de
camponês não tinha material didático para estudar, já que a cartilha deveria ser comprada
pelos pais. Sem apoio das autoridades de educação e da escola, ele consegue ganhar a cartilha
por meio de uma disputa com outra criança na mesma condição. Portanto, é na disputa, na luta
que a criança sem terra conseguiu uma “cartilha usada e velhinha” e sair da condição de não
ter material para estudar. A falta de recursos financeiros para custear os materiais também é
sentida pela assentada Ivanilda, a qual juntamente com seus irmãos não tinham “mochilas”
247
nem “cadernos” para levarem à escola, também sofrendo com a falta de apoio do governo e da
escola para continuarem a estudar. A solução encontrada é ter um caderno para todas as
matérias, não tendo a possibilidade de organizar melhor os conteúdos.
Percebemos que a falta de políticas específicas por parte do governo para estudantes
do campo constitui a identidade dos acadêmicos sem terra no sentido de que a eles é negado o
direito de estudar, condenando-os ao analfabetismo e ao abandono da escola. Como define
Bakhtin (2011), é na relação com o outro que se constitui a identidade. Neste caso, o sujeito é
uma concessão do outro, o governo, que nega e impossibilita o acesso à escola, o que marca a
identidade do acadêmico sem terra como um militante pela escola do campo, a qual é capaz
de atender às especificidades das crianças desse lugar.
A situação vivenciada por esses sujeitos levam a um problema frequente entre os
filhos de camponeses: a reprovação. A falta de condições financeiras para comprar os
materiais é um fato recorrente entre esse grupo social, que, na maioria das vezes, precisa
escolher entre o material e a alimentação. Dessa forma, sem condições adequadas para
estudar, os filhos de camponeses foram sendo condenados a reprovações recorrentes, o que
acarretava, geralmente, na saída da escola. Essa situação leva as crianças do campo a serem
marcadas pela sociedade dominante como “burras”, “incultas”, “incapazes”, a quem, então,
não é necessário levar educação, pois seguem os caminhos dos pais como empregados nas
fazendas ou como mão-de-obra barata nas cidades. Já aqueles que transcendem esse contexto
de condenação são vistos como pessoas que não querem trabalhar, que não querem mudar de
vida, discursos que constituem a identidade dos acadêmicos sem terra, que negam essa
afirmação por meio de sua vivência com a escassez de oportunidades. Logo, há um jogo de
resistência a esse discurso que, apesar de constituir a identidade dos estudantes, é negado; por
isso, Bakhtin afirma que o eu é constituído por ele mesmo, mas também pelo outro.
Observamos que a relação de pais e filhos com a escola continua a mesma, pois os
pais eram, na maioria, analfabetos e passaram a ver seus filhos semianalfabetos pelo fato de
todo o trabalho no campo não ser suficiente para garantir a permanência dos filhos na escola e
mudar a situação de precariedade vivida por toda família. A precariedade do contexto das
crianças do campo se incorpora à identidade dos sujeitos em análise, pois elas serão motivo de
lutas, já que os acadêmicos sem terra não querem para seus filhos a mesma situação de
exclusão. O contexto de falta de oportunidades coloca esse sujeito em posição de luta contra o
sistema hegemônico, constituindo a identidade de um sujeito que lutará pela educação não
apenas para ele, mas também para os outros.
248
Outra dificuldade enfrentada pelos filhos de camponeses é a mudança de um lugar
para outro, o que é fruto das relações de trabalho com seus empregadores/patrões e da venda
das terras que possuíam para irem morar na cidade, como ainda de uma busca por melhores
condições de vida para a família, conforme revela Maria de Fatima. Com isso, as crianças não
conseguem terminar o ano escolar na mesma escola, o que prejudica o desempenho delas com
relação aos conteúdos. O relato de Alice evidencia ainda o problema da distância entre o sitio
e a escola que, no caso dela, é de seis quilômetros. São seis quilômetros percorridos por cinco
meninas que precisam seguir por uma “picada” (pequena trilha feita pela mata) para chegar à
escola. A distância, a falta de transporte escolar, a falta de mais escolas no campo fizeram
com que a filha de camponeses precisasse “parar de estudar”, um fato corriqueiro entre as
crianças de seu grupo social, mas triste para ela.
Vemos, assim, que a escola rural não é uma prioridade do sistema escolar brasileiro,
já que elas não recebem apoio dos governantes tampouco dos fazendeiros. O signo educação
rural tem contornos de práticas hegemônicas por ser um instrumento para reafirmar políticas
de exclusão e de exploração. Levar condições de educação para o campo seria uma forma de
libertar filhos de trabalhadores rurais, oportunizar a eles alcançarem a autonomia e de
criticarem o sistema de exploração no campo. Por isso, uma política de educação do campo
não é pensada e defendida antes da chegada dos movimentos sociais rurais, como o MST, que
vê a ignorância como uma cerca a ser rompida. Nessa ótica, a identidade dos graduandos sem
terra é marcada pelos sentidos dos signos educação rural e educação do campo, os quais
apresentam sentidos contrários, demonstrando a relação entre o Eu e o Outro. O primeiro
aponta para uma identidade resultado de processos limitadores e excludentes; já o segundo
incorpora a essa identidade os sentidos de libertação e autonomia. Notamos, assim, que a
identidade dos graduandos sem terra é constituída por estruturas sociais excludentes, mas
também por estruturas que visam à libertação, como o MST, a Teologia da Libertação, as
CEBs e a Educação Libertadora de Paulo Freire. Na visão desses agentes sociais, o signo
educação do campo ganha significado de poder, pois eles concebem que, na sociedade
vigente, cultura, conhecimento, informação é poder; logo é necessário que todos os
camponeses tenham acesso aos conhecimentos, e o caminho para isso é a educação
libertadora. Dialogamos, assim, com Paulo Freire (1975, p. 37) quando o educador sustenta
que tirar o trabalhador da sombra da ignorância “[...] é uma das fundamentais tarefas de uma
educação realmente liberadora e por isto respeitadora do homem como pessoa”.
Já para os pais que não quisessem que seus filhos parassem de estudar, resta “vender
tudo” e seguir para as cidades, onde têm de trabalhar em serviços desvalorizados, recebendo
249
salários baixos e não tendo a terra para garantir a plantação de um alimento para completar o
sustento da família.
A análise dos excertos dos relatos revela, ainda, que os filhos de camponeses podem
entrar “tarde” na escola, por exemplo, “aos onze anos”, como no caso de Eder, o que também
é um fator que dificulta a relação da criança com a aprendizagem. Uma sala com crianças de
sete e outras de quinze anos evidencia um problema social enfrentado pelos camponeses, pois
mostra que essas crianças não entram na escola na idade mais adequada. Estar no primeiro
ano do ensino fundamental aos “onze anos”, antigo primário, pode significar para este sujeito
um atraso, uma desmotivação, uma humilhação, mas indica um problema vivenciado por seu
grupo social: o descaso com a formação escolar desses brasileiros. Essa situação de descaso,
vivenciada pelas crianças do campo, traz à vida o eu-sujeito acadêmico assentado, pois mostra
a sua incompletude e o papel do outro na sua constituição, fazendo-o desenvolver ações para
desconstruir esse cenário de exclusão social, como a entrada nos movimentos sociais e a luta
pela escola do campo. O sujeito acadêmico sem terra é fruto, portanto, pelo viés bakhtiniano,
de um fenômeno socioideológico, já que o indivíduo apenas se conscientiza de sua
individualidade quando se depara com o outro e sua ideologia. Logo, é o outro com sua carga
ideológica que constitui, inclusive, a identidade de resistência e de luta dos acadêmicos sem
terra.
Não sendo o bastante, nas escolas rurais, os professores, como demonstra o discurso
de Edmilson, não tinham formação adequada para assumir a sala de aula, como é o caso do
senhor Benedito Ladislal, o qual, por possuir “conhecimento literário” e por ter “o 4º ano
primário”, é professor da escola da colônia. Notamos o descaso com a educação rural, pois,
embora o professor Benedito fizesse o seu melhor e fosse um bom professor, conforme aponta
Edmilson, não lhe é dada a oportunidade de também continuar os seus estudos e uma
formação para o magistério.
Verificamos que a escola rural e as autoridades públicas não atendem às
necessidades e às peculiaridades dos filhos de camponeses, pois o que se vê são escolas com
poucas salas de aula, professores sem formação adequada, falta de material didático, falta de
escolas e de transporte escolar. Tudo isso cria uma situação desfavorável para estudar,
condenando os filhos dos trabalhadores rurais a continuarem o caminho de seus pais, sem
oportunidades, sem mudanças e sem justiça social. Ouvimos a voz das Ligas Camponesas, as
quais investiram na formação política de seus filhos e de seus membros, já que visualizam a
necessidade de as pessoas do campo terem formação para lutarem por seus direitos. Também
ecoa a voz da Igreja Católica, que também percebe a necessidade de alfabetizar o povo
250
oprimido e levá-lo a uma reflexão acerca do vivenciado, o que é resultado das ideias da
Teologia da Libertação para a qual a educação é um meio de libertação do povo. Por meio das
CEBs, a Igreja Católica lança cursos de formação sindical, política e de alfabetização, bem
como empreende lutas políticas em defesa da justiça social, fazendo surgir na Igreja
movimentos sociais da terra, como MST e CPT, e partidos políticos como o PT (cf. Capítulo
II).
Essas vozes, nessas análises, demonstram, as dificuldades dos camponeses e de seus
filhos para chegarem à escola e permanecerem nela, sentido que é compartilhado pelas vozes
das Ligas Camponesas, da Igreja Católica. Os discursos mostram, porém, que não se trata de
um problema superado, pois muitos assentamentos ainda não têm escolas. São vozes, portanto
consoantes à voz do sujeito acadêmico sem terra. Isso ocorre pelo fato de serem vozes do
passado que já combatem a opressão dos camponeses e a falta de educação a seus filhos. As
vozes do presente retomam os discursos passados e, também, lançam no presente e para o
futuro o discurso da denúncia da escassez de políticas públicas que façam chegar aos
acampamentos e assentamentos os direitos já garantidos no Artigo 205 da Constituição
Federal de 1988: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família [...]” (BRASIL,
1988).
Notamos que essas vozes constituem a identidade dos acadêmicos sem terra no
sentido de que foram incorporadas pelos movimentos sociais rurais, passando a fazer parte
dos discursos dos movimentos e, consequentemente, dos assentados em decorrência dos
cursos de formação e dos princípios filosóficos que norteiam os movimentos. A educação e a
escola são vistos como instrumentos de libertação, sendo uma constante na identidade dos
estudantes assentados. Eles herdaram das Ligas, da Teologia da Libertação, das CEBs e dos
movimentos sociais a ideia de que a educação política e intelectual é fundamental para levar à
frente um projeto de justa redistribuição de terras, bem como de uma sociedade mais
igualitária. São vozes consoantes ao propósito ideológico dos estudantes sem terra, as quais
constituem a identidade desses sujeitos. São vozes que os completam, mesmo que os sujeitos
enunciadores tenham a ideia de que seus discursos são apenas seus, e suas identidades sejam
construídas somente por si próprios. No entanto, o outro, por fazer parte do continuum da luta
pela terra, está presente, é exigido a fim de completar as identidades em construção.
Como afirma Alice é “[...] muito triste ter que parar de estudar e contentar só com o
primário”, realidade vivenciada por milhares de filhos de camponeses pelo Brasil. Contudo, a
educação rural, como um agente excludente e reafirmador do poder hegemônico, não é o
único fator que leva muitas crianças do campo a deixarem a escola, pois a necessidade de
251
trabalhar e ajudar no sustento da família e na lida do campo também marca a identidade dos
graduandos de Ciências Sociais, como podemos notar nos excertos a seguir:
(1) A mãe nos chama, mostra como colhe café, e junto com ela ficávamos ali,
primeiro com um pau, limpar embaixo do pé de café, forra a lona, e puxa os
grãos dos galhos, recolhe a lona e abana tudo na peneira para depois ensacar.
(Rosemeire)
(2) Com o nascimento do meu irmão, mesmo tendo apenas cinco anos de idade,
já ajudava minha mãe a cuidar do meu irmão. Enquanto trabalhavam no
plantio e na colheita de brócolis, eu ficava cuidando dele em baixo de uma
árvore. (Alessandro)
(3) Dilma com sua pouca idade de 9 anos, assumia responsabilidade que não lhe
competia, Vilma de 8 anos, ficava com a tarefa de toda lavagem das roupas de
todo membro da família, beira de um córrego, próximo ao bairro onde
morávamos, Zilma de 02 anos e eu com a apreensiva idade dos 04 meses
incompletos, Dilma cuidava da casa de nós, a nova vida se iniciava, corrente
da despedida de papai. (Zilda)
(4) Meus pais e minha irmã mais velha iam para a roça e eu ficava em casa
cuidando dos deveres e dos irmãos menores. (Ivanilda)
(5) No acampamento em Dois Irmãos do Buriti a gente brincava bastantes, mas,
entre uma brincadeira e outra eu tinha alguns serviço que tinha que realizar.
Buscar água era apenas um deles, a mãe trabalhava na roça e só chegava a
noite, então eu junto com meus irmão mais velhos estávamos incumbido de
buscar água no rio para consumo da família. Eu buscava água com uma
pequena chaleira e meus irmãos com vasilha maior. Já acampado na área onde
hoje é o assentamento a minha tarEFA era de cuidar da casa e de duas vacas.
(Cristiano)
(6) Nesta época comecei a levantar bem cedo, pois as atividades foram divididas
e me sobrou o trato dos porcos e das galinhas e quando necessário levava água
e alimentação na roça. (Eder)
Os excertos selecionados mostram como o trabalho de crianças no campo é
recorrente, sendo um elemento natural da dinâmica daqueles que nele vivem. No primeiro
caso, observamos como as atividades da lida diária são passadas, ensinadas para os filhos por
seus pais. A mãe leva as filhas ao cafezal e mostra as etapas do trabalho com o café, o que é
expresso pela sucessão de verbos que mostra o movimento do trabalho: colher, limpar, forrar,
puxar, recolher, abanar e ensacar. São as várias etapas de um trabalho que a mãe aprendeu,
provavelmente, também quando criança, e que é o sustento da família. A dinâmica do trabalho
no campo está em sua ordem, pois a mãe chama as filhas para também participarem de uma
corrente de trabalho feita pelas mãos da família.
252
Outra característica das famílias do campo, evidenciada nos relatos, é o número de
filhos, quase sempre expressivo, como cinco, seis ou mais. A quantidade de filhos faz com
que os pais trabalhem ainda mais na roça e coloquem os mais velhos como os responsáveis
pela segurança e alimentação dos mais novos. Os excertos dos relatos de Alessandro, Zilda e
Ivanilda retratam essa realidade vivida durante a infância. São crianças que com “apenas
cinco anos de idade” já são responsáveis por seus irmãos. Esse fato é intensificado no
discurso ao se referir a sua idade: “mesmo tendo apenas cinco anos de idade” (Alessandro). O
uso do advérbio “apenas” mostra um sentimento de tristeza do sujeito com relação ao vivido,
bem como demonstra ao outro uma condição não aceita pela maioria das pessoas. O sujeito
chama a atenção do outro, e sua identidade de criança do campo aflora, pois a situação de já
ter reponsabilidades de adultos aos cinco anos contraria as leis vigentes no Brasil, como
também ao discurso de que criança não trabalha. Sabendo disso, Zilda aponta que a irmã
“assumia responsabilidade que não lhe competia”, cuidar das irmãs, por ter 9 anos.
Além de cuidar dos “irmãos menores” e de ir “para a roça” (Ivanilda) com os pais, os
acadêmicos sem terra enquanto crianças do campo também trabalham em casa e no sítio,
lavando “roupas de todo membro da família, beira de um córrego” (Zilda), buscando “água no
rio para consumo da família”, cuidando “da casa e de duas vacas” (Cristiano), tratando “dos
porcos e das galinhas” (Eder). Podemos pensar que são trabalhos que exploram as crianças,
tiram o tempo delas de brincarem e estudarem, o que não pode ser negado, mas não podemos
esquecer a dinâmica do campo, marcada pela divisão de tarefas, em que cada membro da
família assume papéis e trabalhos que colaboram para o sustento de todos. Vivenciar essa
dinâmica constitui a identidade dos acadêmicos sem terra, que, antes de serem estudantes do
ensino superior, são trabalhadores rurais sem terra, identidade que já começa a ser construída
nos primeiros anos de infância, ao interagirem com a dinâmica do campo, com o tempo
particular para plantar e para colher e com os trabalhos que precisam ser divididos entre os
familiares, o que conduz esses sujeitos a se sentirem pertencentes ao campo e parte dele. São,
portanto, crianças diferentes das que pertencem à cidade, pois estas vivenciam outra dinâmica,
a qual apresenta momentos mais determinados para estudar, para brincar e, se precisar, para
também trabalhar. Percebemos que a identidade é constituída por essas experiências que
diferenciam os sujeitos conforme o contexto social em que vivem. E como este contexto é
dinâmico, suas identidades também o são. Elas estão em constante movimento por
acompanharem as heranças e as trajetórias futuras dos sujeitos.
É evidente que os trabalhos desenvolvidos geram consequências na vida dessas
crianças, como a dificuldade para estudar, já que o estudo é uma atividade que pede um tempo
253
específico para ir à escola e para realizar as tarefas escolares em casa. É por isso que os
relatos mostram o valor que os estudantes assentados dão ao fato de estarem na Universidade.
Como vimos, neste estudo, o número de camponeses e de filhos de camponeses analfabetos e
semianalfabetos no Brasil sempre é acentuado, uma vez que a escola rural ou a escola urbana,
frequentadas por eles, não levam em consideração o vivido fora da escola, o ser criança do
campo em um país desigual, onde os pais trabalham muito por salários baixíssimos e para
completarem a renda precisam da mão-de-obra das crianças na roça ou em casa. Por isso,
podemos entender o desejo de os trabalhadores rurais sem terra, pais e professores, pela
construção de escolas do campo, pois elas podem criar formas para agregar os saberes da
escola à dinâmica do campo.
Outra macrocategoria de assunto que se revela na infância é a religiosidade. Os
relatos pessoais demonstram como as famílias camponesas relacionam-se com Deus, ora
apegando-se a elementos da religiosidade popular ora a elementos da religião oficial,
principalmente, os da Igreja Católica, como podemos observar nos excertos a seguir:
(1) Minha prima Natercia e seu futuro cunhado Jaime, noivo de Eloene, foram
convidados para serem meus padrinhos em casa. Naquela época, o batizado
tinha que acontecer antes do sétimo dia do nascimento, visto que tratava-se de
uma criança pagã e até então as bruxas rondavam a casa. [...] O tempo passou,
em certa ocasião quando eu estava mais ou menos com nove meses, minha
mãe observou que meu corpo estava cheio de feridinhas, principalmente na
cabeça. [...] Como minha mãe que já havia perdido meu irmão mais velho com
sarampo, temendo a varicela, como sempre acionou o primo José, para que
este fosse chamar o padrinho Bernardino, pois ele era homem entendido e
curandor. (Dalva)
(2) Vai ter missionários, temos que preparar para batizar as meninas diz a avó,
“criança batizada é mais calma, não se pode ser pagã. Se acontece algo com as
crianças e ela vem falecer, não vai para o céu sua alma fica no purgatório
perdida, que só entra no céu quem é filho de Deus, antes disto somos apenas
criaturas de Deus”. Dentro de sua simplicidade e devoção, passou sua crença
aos seus filhos, e agora para seus netos e netas. (Rosemeire)
(3) A vizinha respondeu que tinha medo de olhar para mim e me colocar
quebrante, pois me achava uma gracinha. Minha mãe respondeu a ela que
respeitava sua cultura mas não acreditava em quebrante, que ela podia olhar o
quanto quisesse que não ia acontecer nada. (Ivanilda)
(4) Por ser uma família muito religiosa, acreditava que era alguma praga que
jogaram na criança, pois, isso aconteceu do dia para a noite, os médicos não
achavam a causa. Então foi onde mamãe começou a buscar uma benzedeira.
Orações, benzimentos, promessas , tudo foi feito na tentativa de fazer a criança
voltar a andar, somente aos seis anos de idade começou a demostrar vontade e
começou a esforçar-se para andar, voltou a alimentar-se bem, estava dando
254
sinais que estava voltando a viver normalmente como as outras crianças.
(Ivone)
(5) O ela que não se esperava era que fosse ter um parto tão difícil que quase a
levou á morte. Por essa razão que o casal prometeu à Nossa Senhora
Aparecida que colocaria o seu nome na criança, se fosse menino chamaria
Aparecido, e se menina, Aparecida. Mas que ela ajudasse a salvar a mãe e a
criança. [...] então, a origem do meu nome surgiu de uma promessa ou de um
milagre? (Maria Aparecida)
A religiosidade é uma marca da humanidade, que busca estabelecer uma conexão
com o divino, o sobrenatural, o desconhecido, a fim de dar sentido ao que vê e sente, como
também para obter conforto nos momentos difíceis e se sentir incluído. Devido a isso, pessoas
com a mesma visão sobre quem é Deus unem-se e trocam informações, fazendo com que
conhecimentos sejam guardados por muito tempo. No campo não é diferente, o que se
evidencia pelo apego, confiança e fé.
O batismo, para os católicos, relembra as palavras de Cristo, quando disse aos seus
apóstolos: “Ide e ensinai todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do
Espírito Santo” (MATEUS, 28:19). O batismo é considerado a porta da vida eterna no Reino
de Deus. Além disso, o Batismo é o primeiro sacramento do católico, o que faz dele membro
do corpo da Igreja. Os católicos valorizam o batismo e confiam que, pelo sacramento, a
criança deixa de ser pagã, pois o batismo tira das crianças o pecado de serem concebidas de
pecado original72
. No entanto, no campo, o batismo toma contornos da religiosidade popular,
herdada da Idade Média, como podemos confirmar, quando Dalva refere-se ao batismo como
uma forma de expulsar as bruxas que rondam a casa que tenha uma criança recém-nascida. As
bruxas, desde a Idade Média, são perseguidas pela Igreja Católica, por representarem a
heresia. Elas são acusadas de assassinatos de crianças e, também,
[...] de feitiçarias feitas, também, com o uso de coisas provenientes desses
assassinatos (por exemplo, toucinho de crianças pequenas), de profanação de
hóstias consagradas. Mais ou menos desde a metade do século quatorze
começaram também as acusações de “congressos” especiais a que as bruxas
chegavam transformadas em animais mágicos (sobretudo bodes), e onde se
cozinhavam e se comiam carnes infantis (CARDINI, 1996, p. 14).
72 Disponível em: <http://www.igrejacatolica.org/criancas-nao-se-podem-salvar-sem-
baptismo/#.WnWOHq6nHIU>. Acesso em: 15 jan. 2018.
255
As acusações que caem sobre as bruxas levam a população a desenvolver um medo
das mulheres acusadas de serem bruxas e de suas práticas. Entre suas atividades estão as
relacionadas com crianças, as podem ser assassinadas e, inclusive, servidas em seus rituais. Já
a superstição aparece no discurso de Dalva quando ela se refere ao número 7: “sétimo dia do
nascimento”, o qual é tido como um número divino, por representar diferentes situações da
religião católica, como, por exemplo, a criação do mundo por Deus. Segundo o livro de
Gênesis (2: 2,3), “[...] E havendo Deus acabado no dia sétimo a obra que fizera, descansou no
sétimo dia de toda a sua obra, que tinha feito. E abençoou Deus o dia sétimo, e o santificou;
porque nele descansou de toda a sua obra que Deus criara e fizera.” Além disso, 7 são os
sacramentos, os pecados capitais, as virtudes, e os dons do Espírito Santo. Com isso,
percebemos que o número 7 está ligado à perfeição e ao acabamento. Com o batismo até o
sétimo dia, a criança está salva e, como aponta a avó de Rosemeire, “criança batizada é mais
calma, não se pode ser pagã”.
Também o discurso de Ivanilda lembra de outra superstição, ao afirmar que: “A
vizinha respondeu que tinha medo de olhar para mim e me colocar quebrante, pois me achava
uma gracinha”. O quebranto, na religiosidade popular, é entendido como um mau-olhado
carregado de ciúmes, inveja, direcionado para pessoa por ela ser bonita, por exemplo,
causando malefícios à saúde, como preguiça, desânimo, cansaço e palidez. Desse modo,
notamos que, na religiosidade popular, pessoas comuns podem ter o poder de causar um mal a
outra pessoa, o que a mãe de Ivanilda não acredita.
Mas a família de Ivone acredita que o fato de ela não andar antes dos seis anos de
idade é resultado de uma “praga que jogaram na criança, pois, isso aconteceu do dia para a
noite, os médicos não achavam a causa”. Como os médicos não encontraram a causa e a
doença ocorreu inesperadamente, a explicação da família é a “praga”, o que poderia ser
resultado de forças mentais excessivamente poderosas. A praga parece ser mais forte que o
quebranto, pois pode ser atribuída a Deus e ao seu poder e por isso poder atingir a toda uma
nação, como ocorre com os Egípcios por escravizarem os israelitas e não aceitarem Deus
como único deus da terra. O objetivo das dez pragas enviadas sobre os egípcios é revelar a
grandeza, o poder e a soberania do deus dos israelitas, fazendo com que o faraó reconhecesse
e confessasse que o verdadeiro Deus é o cultuado pelos hebreus, como narra o livro de Êxodo
(9: 16). Como isso não acontece, os egípcios sofreram com a água em sangue, a
superpopulação de rãs, piolhos, moscas, gafanhotos e, também, com doenças em suas criações
de bovinos, chuva de pedras, escuridão total e morte dos primogênitos. Tudo isso leva a crer
em um Deus poderoso e, ao mesmo tempo, em um Deus temível. Diante do medo, os cristãos,
256
como a família de Ivone, buscam “Orações, benzimentos, promessas” para se livrarem de seus
pecados. A benzeção procurada pelos familiares de Ivone para curar a menina e de Dalva para
curar as feridas também é um ritual herdado da Idade Média, que objetiva curar o corpo e o
espírito por meio de palavras e orações, tendo o benzedor/curador como intermediário entre
Deus, deuses e a pessoa que necessita de cura.
Como podemos notar, a vulnerabilidade do indivíduo faz com que ele procure
tratamentos ligados ao sobrenatural e ao desconhecido, em que põe sua fé, confiança e
esperança. É o que também acontece com Maria Aparecida que recebe este nome devido a
uma promessa feita durante seu nascimento. A promessa se caracteriza como uma troca entre
o necessitado e Deus ou Nossa Senhora, como no caso da mãe de Maria Aparecida, que, na
hora de aflição, promete a “Nossa Senhora que colocaria o seu nome na criança, se fosse
menino chamaria Aparecido, e se menina, Aparecida. Mas que ela ajudasse a salvar a mãe e a
criança”. A menina é salva e recebe o nome da santa, sendo a promessa cumprida.
Notamos, pelos excertos analisados, que não há uma fronteira mecânica entre a
religiosidade popular e a religiosidade oficial, da Igreja Católica, pois elas se relacionam. Essa
constatação nos remete ao conceito bakhtiniano de “circularidade cultural”. Para Bakhtin
(1987), a compreensão das manifestações da cultura popular realiza-se ao se levar em
consideração a interação existente entre essa forma cultural e a cultura hegemônica (oficial),
na qual uma pode incorporar e ressignificar elementos presentes na outra, de maneira a
constituir um fluxo contínuo de trocas. Alicerçado em Bakhtin, Ginzburg (1987, p. 13)
também realça que a comunicação entre essas duas esferas dá-se de forma dialógica, com
“[...] influxo recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica, particularmente”. Esse
movimento de absorção entre as duas esferas de religiosidade movia-se de baixo para cima e
de cima para baixo, sendo inevitáveis. Porém, Bakhtin (1987) ressalta que essa relação pode
não ser harmoniosa, sendo marcada por conflitos e dissonâncias. Isso explica a aversão da
Igreja Católica por alguns elementos da religiosidade popular, como superstição,
curandeirismo e crendices. Essa aversão, que também é condenação, é resultado da busca pela
consolidação do poder eterno e da verdade eterna que não conseguem enxergar seus limites
nem seus efeitos, como explica Bakhtin (1987, p.185):
O poder dominante e a verdade dominante não se vêem no espelho do
tempo, assim como também não vêem o seu ponto de partida, seus limites e
fins, sua face velha e ridícula, a estupidez de suas pretensões à eternidade e à
imutabilidade. Os representantes do velho poder e da velha verdade
cumprem o seu papel, com rosto sério e em tons graves, enquanto os
expectadores há muito tempo estão rindo.
257
O conceito bakhtiniano de circularidade cultural nos permite discutir a influência que
a cultura popular tem sobre a cultura hegemônica e vice-versa, revelando a permeabilidade
entre elas: “[...] não há nada perfeito nem completo” (BAKHTIN, 1987, p. 23). Ambas
compartilham padrões, valores e signos, como podemos perceber com o signo ideológico
batismo. A circularidade cultural também nos oportuniza pensarmos que a cultura de uma
sociedade interage incessantemente em diferentes sentidos, já que está mergulhada nas
relações sócio-históricas. Por isso, ela não é pura e secularizada, mas está em constante
transformação.
Podemos notar que identidade dos graduandos sem terra é a constituída pela
religiosidade que os acompanha desde a infância por meio dos valores, das crendices e
superstições de seus pais. O sujeito sem terra reflete que a sua consciência não é autônoma,
mas se forma nos processos de inter-relacão com o outro. Essa identidade é fruto da interação
do Eu interior com a sociedade. Percebemos que a religiosidade é um traço que marca a
identidade dos graduandos desde a sua infância, sendo uma condição formada ao longo do
tempo, por interação social; não inata, mas em constante constituição.
Da mesma forma, a categoria diversão na infância também é uma condição que
marca a identidade dos graduandos sem terra. Como veremos a seguir, a situação de escassez
econômica limita a diversão de quem mora no campo:
(1) Eu tinha uma vontade imensa de ter uma festa de aniversário. Mas não podia
ser uma festa qualquer. Tinha que ser surpresa. Tanto insisti que venci minha
mãe pelo cansaço. Ela fez uma forma de bolo simples, e para beber, suco de
pacotinho. Varri o quintal. [...] Convidei 18 amiguinhas (os). Com tudo
combinado, saí de trás de casa como se nada soubesse e eles cantaram o tão
esperado parabéns. Esta foi a minha festa surpresa. Como fiquei feliz.
Ligamos o rádio, nos divertimos bastante e partimos o bolo. Para o espanto da
minha mãe todos comeram. Viu como há a multiplicação do bolo?! (Luci
Dalva)
(2) A maioria das brincadeiras era com carrinhos que meu próprio pai fazia para
mim e meu irmão, carreta de madeira. Como eu era pequeno sentava na
carroceria e meu irmão me puxava era a melhor coisa que para mim. Com o
passar do tempo o futebol se tornou fundamental, brincávamos todos os dias
não era em um campo e nem com uma bola de futebol, mas no quintal de
minha da casa, com uma bolinha parecida com a de tênis, e o gol entre os paus
da área do tanque, a rede era os tijolos do tanque, e tinha uma fossa de esgoto
bem no meio do nosso “campo”. (Adriano de Oliveira)
(3) Naquela época não havia energia elétrica nas fazendas ou sítios, então nas
noites de lua clara, meu pai contava histórias, falava da cultura do nordeste
258
(Ceará e Pernambuco), cantava para mim e minhas irmãs, as músicas de Luis
Gonzaga (Asa Branca). Brinquei muito quando criança: com boneca de pano e
de sabugo de milho, brincadeiras de roda, passar anel, pular corda, sempre
com minhas irmãs. (Alice)
(4) Nós brincávamos de casinha, de esconde-esconde, de passar anel, de carinho,
de cai no poço, danças de roda, de cavalinho, de betes, era maravilhoso nos
divertíamos muito mesmo não tendo dinheiro para comprar nem um
brinquedo, fazíamos nossos próprios brinquedos com galhos de árvores
fazíamos nossos cavalos, com sabugos nossos carinhos, lonas velhas fazia
casinhas, latas de óleo para jogar betes. (Andriever)
(5) A casa era de pau a pique com paredes de madeira fina rebocada com barro e
cinza e coberta com folha de bacuri e chão batido. Levava uma vida de menino
pobre mas feliz, brincava de balanço, cavalinho, fazendinha e de carrinho que
era feito por meus irmãos mais velhos. Tinha como parceiro das brincadeiras
meu irmão um ano mais velho. (Eder)
(6) Meu avô João, que era contra quaisquer tipos de briga, e de grande sabedoria,
punha minha irmã e eu, uma em cada perna, e contava suas estórias da época
de jovem, ficávamos impressionadas com seus vários trabalhos e experiências,
que como todo mineiro que se presa, sempre estava junto de um ou outro
companheiro. Algumas das estórias se tratavam de suas empreitadas, outras de
assombrações, ou suas aventuras. (Aline)
(7) As brincadeiras no terreiro de casa tanto de dia quanto à noite iluminada pela
bela lua cheia era divina, fecho os meus olhos e ainda vejo os vaga-lumes
brilhando em meio à escuridão, lembro as cantigas de rodas como se fosse
hoje: ciranda, cirandinha vamos todos cirandar, vamos dar a meia volta, volta
e meia vamos dar, o anel que tu me destes era vidro e se quebrou, a amizade
que nós tínhamos era pouca e se acabou, por isso dona------ faz favor de entrar
na roda diga um verso bem bonito diga adeus e vai se embora. (Ivanilda)
Os excertos que retratam a diversão dos graduandos sem terra quando crianças
revelam que as dificuldades financeiras enfrentadas pela família não permitem que eles
tenham brinquedos comprados. Além disso, o tempo para brincar é pouco, uma vez que no
campo as crianças logo que saiam da idade de alta mortalidade já são inseridas às tarefas
familiares e tem suas responsabilidades quanto ao sustento de todos. Mas, mesmo diante das
adversidades, as crianças brincam muito e têm a ajuda dos parentes para confeccionar seus
brinquedos ou contar causos. As brincadeiras são realizadas em grupos, como brincadeiras de
roda, passar anel, pular corda. Reunir os colegas é uma satisfação, mesmo diante das
dificuldades financeiras.
Ter uma festa de aniversário e reunir os amigos é o sonho de Luci Dalva: “Eu tinha
uma vontade imensa de ter uma festa de aniversário. Mas não podia ser uma festa qualquer.
Tinha que ser surpresa”. As dificuldades financeiras fizeram com a mãe resistisse em fazer
259
uma festa de aniversário para filha, mas Luci Dalva conseguiu vencê-la pelo cansaço. Porém,
a preocupação da mãe é quanto a pouca quantidade de bolo, por isso não está segura de que os
18 amiguinhos tenham um pedaço para comer. Mas, para a surpresa da mãe, todos os
convidados comeram o bolo: “Para o espanto da minha mãe todos comeram. Viu como há a
multiplicação do bolo?!”.
Esse enunciado revela o sonho de ter uma festa surpresa, como também evidencia
outras vozes em “Viu como há a multiplicação do bolo?!”, no qual ecoa, no primeiro
momento, a voz do cristianismo. Segundo a Bíblia, no livro de João (6: 1ss), Jesus fez o
milagre da multiplicação do pão e do peixe. Conforme a narrativa, com os poucos exemplares
de pão e de peixe, trazidos por seus discípulos, Jesus multiplicou-os, conseguindo alimentar
toda multidão faminta que o acompanha pela Galileia. No caso do enunciado em análise, a
multiplicação que se faz é a de bolo, um alimento esperado pelas crianças em qualquer festa
de aniversário. Nesse contexto, infere-se que a voz do sujeito enunciador está em consonância
com a voz do cristianismo, demonstrando as marcas que o movimento cristão católico deixa
na formação dos militantes do MST.
No entanto, importa ressaltarmos que não se apresenta apenas uma voz consonante
nesse discurso, já que o enunciado: “Viu como há a multiplicação do bolo?!” retoma também
a voz dos economistas do governo militar, na época da ditadura, os quais defendem a teoria
do bolo no programa conhecido como Milagre Econômico (1968-1973). Segundo eles, para o
Brasil crescer, era preciso, primeiro, esperar o bolo crescer para depois reparti-lo entre todos.
Os especialistas apontavam que o Brasil crescia, pois no governo militar havia a construção
da hidrelétrica de Itaipu e iniciava-se a construção da usina de Angra, por exemplo. Contudo,
a dívida externa apenas aumentava com tantas obras, ficando a conta para a população.
Assim, a divisão do bolo não ocorre. Esperava-se que a desigualdade social diminuísse, o que
também não aconteceu. Ou seja, não foi possível dividir o bolo.
Notamos que a interrogação do sujeito enunciador em “Viu como há a multiplicação
do bolo?!” é uma contrapalavra à voz do governo militar, que dizia não ser possível dividir a
pouca riqueza do Brasil entre todos, ficando mais uma vez uma grande fatia do bolo nas mãos
de poucos. Observamos, assim, que essa é uma voz divergente da voz do sujeito enunciador,
já que este nega a assertiva do governo militar, mostrando-se discordante da política
ideológica do referido governo. Dessa forma, o discurso traz para arena vozes discordantes:
de um lado a militante/representante de um movimento social de cunho socialista, de outro a
voz do governo militar, a qual é negada e desmentida pelo sujeito enunciador.
260
Ademais, no discurso de Luci Dalva também ecoa as vozes dos militares quanto à
distribuição de terras. No governo militar, a primeira lei que assegura o direito à terra a
trabalhadores é promulgada com o Estatuto da Terra, que, em seu Artigo 13, assegura que o
Poder Público “[...] promoverá a gradativa extinção das formas de ocupação e de exploração
da terra que contrariem sua função social” (BRASIL, 1964). A multiplicação da terra seria
garantida pela desapropriação por “interesse social”, fato que leva os defensores da reforma
agrária a acreditarem que haveria terra para quem nela quisesse viver e trabalhar e não para
aqueles que a quisessem explorar. O “interesse”’ está previsto no Estatuto para garantir o que
é importante para uma sociedade. Neste caso, o interesse social levaria à desapropriação de
terras que não estivessem cumprindo com sua função social. Porém, na prática, como vimos
no capítulo um, o Estatuto serviu apenas para acalmar os ânimos dos trabalhadores rurais que
vinham exigindo a justa distribuição de terras no Brasil e se viram contemplados na Lei. O
sonho de ver as terras sendo divididas não se concretiza. A multiplicação não é feita, ficando
os direitos dos trabalhadores apenas no papel.
Podemos perceber que a polifonia está presente pela pluralidade de vozes
independentes e não-fundidas. É uma polifonia genuína de vozes plenamente válidas, como
explica Bakhtin (1981, p. 6). O sujeito enunciador é o regente dessas vozes, concordantes,
como a voz da Bíblia, e discordantes, como a voz dos economistas do governo militar e do
Estatuto da Terra, permitindo que elas se manifestem de modo autônomo e revelem no
homem a outra consciência, o outro “eu” infinito e inacabável. Ao não silenciar essas vozes, o
sujeito enunciador pretende também denunciar o descaso do governo militar com a sociedade
mais carente e as consequências para toda sociedade rural no Brasil, a qual amarga anos de
esquecimento, sendo obrigada a sair das terras e a viver na cidade.
Além disso, o ponto de interrogação também demonstra a aproximação do sujeito
enunciador com o interlocutor. A fim de persuadi-lo, primeiro, mostra-se como o bolo da
classe que não dispõe de nenhum privilégio pode ser dividido entre 18 crianças; para depois,
interrogá-lo, mas já o conduzindo a uma resposta esperada. Cria-se, nesse momento, uma
tensão entre sujeito enunciador e interlocutor, pois o primeiro quer provocar no segundo uma
ação de consentimento, de testemunha. Espera-se que o interlocutor seja convencido e
comungue da mesma ideia tida pelo sujeito enunciador. Assim, verificamos que a
autoconsciência é constituída pela relação com outra consciência/outro, e não de forma
aleatória.
A diversão na infância está muito relacionada tamém às brincadeiras. Brincar traz
para as crianças o sentimento de felicidade, mas, para os educadores, brincar também
261
possibilita a assimilação e a apropriação da realidade humana. Nas brincadeiras, as crianças
criam mundos imaginários, onde diferentes situações aparecem e diante das adversidades elas
precisam pensar em hipóteses para solucionar os problemas, elaborar soluções; assim, elas
enriquecem a personalidade, desenvolvem os sentidos e descobrem a si próprias e o mundo
que as rodeia.
Notamos que a infância no campo acontece, mas de uma forma diferente daquela
vivenciada pela maioria das crianças que vivem na cidade. Como aponta Yamin (2009, p. 40),
as crianças sem terra “[...] vivem infâncias diferentes. Isso se deve ao fato de que ‘ser criança’
depende da situação de vida, da estrutura nuclear e política na qual estamos inseridos, das
questões de gênero e das conquistas econômicas de cada unidade familiar”.
O relato de Adriano revela que suas brincadeiras são com “carrinhos que meu
próprio pai fazia para mim e meu irmão, carreta de madeira”; Eder “brincava de balanço,
cavalinho, fazendinha e de carrinho que era feito por meus irmãos mais velhos”; Andriever
brinca de “casinha, de esconde-esconde, de passar anel, de carinho, de cai no poço, danças de
roda, de cavalinho, de betes”. As meninas também tinham opções de brincadeiras, como no
caso de Alice que brinca com “boneca de pano e de sabugo de milho, brincadeiras de roda,
passar anel, pular corda”. Como vemos, são brincadeiras tradicionais, as quais os pais
possivelmente já conheciam quando crianças, demonstrando que a brincadeira no campo
assim como na cidade tem a função de perpetuar tradições populares e de desenvolver as
relações com o outro. Ao relatarem, porém, que não têm condições financeiras para ter
brinquedos comprados e que fazem seus brinquedos com “sabugos de milho”, por exemplo,
observamos uma voz que denuncia a situação precária enfrentada pelas famílias para
permanecerem no campo, como também expõe as consequências da exploração dos
trabalhadores rurais, que precisam se contentar com o mínimo oferecido pelos proprietários
das terras, se ali quisessem permanecer.
A diversão não está somente ligada aos brinquedos, os relatos também revelam que
os causos são motivo de divertimento, como no caso de Aline, cujo avô conta causos de
quando era jovem, de quando vive diferentes experiências e realiza diversos trabalhos. O avô
de Aline também conta causos de “suas empreitadas, outras de assombrações, ou suas
aventuras”. Os causos narrados pelo avô de Aline trazem à tona suas memórias, as quais
podem revelar momentos de desafios, medo, surpresas e sustos, o que combinado com
expressões, repetições, rimas, entonações, olhares, musicalidade e gestos diverte a neta.
Podemos notar que o gênero relato pessoal possibilita aos graduandos sem terra
mergulharem em suas memórias e trazerem à tona suas lembranças que também são memórias
262
coletivas, as quais são construções do seu grupo social (HALBWACHS, 2006). Como afirma
Ivanilda, no momento de elaboração do relato é possível fechar os olhos e recordar “os vaga-
lumes brilhando em meio à escuridão”. Ela também lembra “como se fosse hoje” a cantiga de
sua infância: “ciranda, cirandinha”, a qual é apresentada no relato.
Por não serem fixos, imóveis, os relatos pessoais proporcionaram uma liberdade ao
sujeito enunciador que pode delinear fatos que julga importantes neste momento discursivo,
como a cantiga de roda. Há, assim, um gênero dentro do gênero. O gênero relato pessoal é
interrompido para que o gênero cantiga de roda aflore.
Além disso, as cantigas de roda rememoram momentos vivenciados em grupo, em
que as crianças se dão as mãos para cantar músicas ligadas à sua realidade e ao seu
imaginário, o que mostra uma união entre pessoas, uma solidariedade entre pessoas de um
mesmo grupo social, marca dos discursos do MST, da Teologia da Libertação, das CEBs, da
CPT. Esses discursos demonstram a importância de se viver no coletivo, de um projeto
político social que atenda às necessidades de todos de forma igual e não deixe de fora
ninguém. Ser solidário ao outro reflete o amor que se tem a Cristo, o que agrada a Deus,
segundo a Teologia da Libertação. O caráter solidário também é defendido pela CPT, ao
buscar em seus projetos, a justiça social, a caridade, a fraternidade, a doação. Da mesma
forma, ser solidário, estar de mãos dadas com o outro, também faz parte do Projeto Popular
para o Brasil, formulado pelo MST, que defende a instituição de um país “[...] politicamente
democrático, justo economicamente, sob uma sociedade equitativa e solidária” (MST, 2018).
As análises da macrocategoria Diversão levam-nos a perceber que a identidade dos
graduandos sem terra é constituída por vozes de outros sujeitos, sejam eles seus
correligionários como também seus adversários. Observamos, assim, como aponta Bauman
(2005, p. 83), que a identidade é um lugar de batalhas, pois congrega o encontro de diferentes
ideologias, visões de mundo, valores axiológicos: “[...] O campo de batalha é o lar natural da
identidade”. É marcada pelo cristianismo, pela ideia de multiplicação e de divisão da terra.
Também é assinalada pela voz do Regime Militar, o que contribuiu em muito para que a
situação da terra no Brasil continuasse como no tempo da monarquia: terra para quem tem
dinheiro para pagar por ela. Além disso, é influenciada pelas consequências econômicas na
vida dos trabalhadores oriundas de um plano econômico militar que apenas privilegia a elite
latifundiária. Percebemos também que a identidade dos graduandos recebe marcas das
dificuldades financeiras vividas durante a infância, em que não pode ter brinquedos
comprados devido à situação de exploração vivida pelos pais. Do mesmo modo, trata-se de
uma identidade que carrega traços de uma memória coletiva, em que momentos felizes e
263
amargos podem aflorar. O outro está sempre presente na constituição da identidade dos
graduandos sem terra. É na alteridade que a identidade se construiu. O sujeito graduando sem
terra dialoga com seu grupo social e, também, com grupos sociais diferentes, com os quais
concorda ou discorda, revelando crenças, valores, pontos de vistas, marcas de sua ideologia.
Assim, o outro é condição necessária para a constituição do eu-graduando.
4.2.1.2 Vozes da Adolescência
Na fase adolescência, verificamos que as macrocategorias de assuntos não são vastas.
Isso pode ser explicado pelo fato de que a adolescência no campo não é uma fase que recebe
realce como na cidade, marcando transformações profundas, principalmente, nas relações
sociais. No campo, as fases da vida parecem ser criança e adulto, pois desde crianças os
indivíduos já fazem parte do ciclo de trabalhos da família, desse modo na adolescência suas
responsabilidades só aumentam, pois já são vistos como adultos. As análises mostram que há
três macrocategorais de assuntos referentes à adolescência: escola e diversão.
No primeiro momento, vamos nos debruçar sobre a macrocategoria escola. Como
mostramos na análise da macrocategoria escola na infância, os graduandos têm muitas
dificuldades financeiras e estruturais para permanecerem na escola. Em decorrência disso,
muitos abandonam a vida escolar, somente retornando na adolescência. Porém, ainda não é
um retorno tranquilo, em que eles podem se dedicar aos estudos. É mais um momento em que
precisam alinhar o estudo ao trabalho. No entanto, observamos que alguns acadêmicos têm a
oportunidade de estudar na Escola Família Agrícola, a qual oferece cursos específicos para
filhos de trabalhadores rurais, o que contribuiu para a formação política e escolar, como
vemos a seguir:
(1) Em 2006 conclui o 3ª ano do ensino médio, já mais amadurecido cuidava do
sitio quando meu pai saia, sabia dirigir, pilotar moto, diagnosticar quando uma
vaca ou bezerro estivesse doente, aplicar medicamentos quando necessário.
(Andriever)
(2) Aos doze anos de idade no acampamento, comecei a trabalhar durante o dia
nas lavouras da região com meus pais para ajudar no sustento da família, e a
noite saia às seis horas da tarde em cima de uma caminhonete para estudar a
sexta serie. A escola ficava a 35 quilômetros de distancia em Ipezal, distrito do
município de Angélica-MS. Retornava a meia noite e levantava às quatro da
manhã para o trabalho. Apesar das dificuldades de ter assumido
264
responsabilidade muito jovem, a vida de acampado em minha adolescência foi
construtiva para minha vida. (Alessandro)
(3) A sétima série fui cursar na Escola Estadual Riachuelo, as dificuldades
aumentaram, pois trabalhava até as 18hs, chegava em casa e só dava tempo de
tomar banho, porque ia caminhando até a escola, o jantar ficava para a volta. A
maratona era instigante e me cansava muito refletindo diretamente na
aprendizagem, mesmo assim superei, e no ano seguinte fui prestar o serviço
militar. (Eder)
(4) Em 2005 realizei uma entrevista de estudo, fui aprovada para a Escola
Família Agrícola de Itaquiraí – EFAITAQ, onde estudava em pedagogia de
alternância, o ensino médio juntamente com o curso profissionalizante
Técnico em Agropecuária, por um período de três anos. Considero que a EFA
fora de grande importância em minha transformação, nela aprendi um tanto do
que chamo de “ser responsável”, a valorizar o que tenho principalmente minha
família, a escolher bem meus amigos, adquiri minha primeira formação
profissional, aprendi a me expressar melhor, conheci lugares diferentes nas
viagens, e tive alguns contatos com os movimentos militantes. (Aline)
(5) A seletiva para ingressar na EFA foi realizado no dia 16 de dezembro de
2001 na pastoral de Corumbá, eram 2 vagas para o assentamento taquaral,
mas, nos estávamos em 3 pessoas disputando esta vagas. [...] Realizei a
entrevista com o diretor da EFA Rosalvo, ele me perguntou por que eu queria
estudar técnico em agropecuária? Então eu respondi para ele, o senhor Rosalvo
eu desde pequenos eu gosto de trabalhar com agricultura, e estudando eu posso
melhor cuidar das minhas abelhas e criação de gado. [...] Na EFA eu descobri
uma escola que levava em consideração o meu aprendizado, tudo que os
professores me privaste de descoberta no ensino fundamental a EFA
proporcionou para mim, conheci lugares, pessoas e acima de tudo ela me
modelou um cidadão consciente com o próximo. (Cristiano)
(6) Página de minha vida que escrevo com gosto, em fevereiro de 2005, eu
cheguei na escola família agrícola [...] naquele momento um grande desafio
pra mim, a escola se mostrava exigente com a proposta de ser camponês, de
entender os conflitos da agricultura familiar que pra mim ainda pouco me
interessava. Fui apresentada a pedagogia da alternância que trabalha com
instrumentos pedagógicos, uma educação diferenciada que visa ainda o lado
humano isto em alternância propondo a permanência do jovem formado no
campo [...]. (Jucélia)
Os relatos de Andriever, Alessandro e Eder sinalizam que na adolescência eles
precisaram relacionar os estudos com os trabalhos no campo ou na cidade. No entanto, isso
nem sempre é fácil, pois os adolescentes já têm muitas responsabilidades com relação ao
sustento dos familiares, como aponta Alessandro: “comecei a trabalhar durante o dia nas
lavouras da região com meus pais para ajudar no sustento da família” e, também, com a lida
no sítio, como descreve Andriever que já cuida do “sitio quando [seu] meu pai saía, sabia
dirigir, pilotar moto, diagnosticar quando uma vaca ou bezerro estivesse doente, aplicar
265
medicamentos quando necessário”. Desse modo, fica evidente que para permanecerem na
escola esses adolescentes do campo precisam de uma estrutura da qual eles não dispõem, pois
o trabalho de dia e a escola à noite, muitas vezes, distantes de casa, podem levá-los a um
desgaste físico, como revela Alessandro: “A escola ficava a 35 quilômetros de distancia em
Ipezal, distrito do município de Angélica-MS. Retornava a meia noite e levantava às quatro da
manhã para o trabalho”. O mesmo acontece com Eder que, embora morasse na cidade,
também enfrenta desafios para permanecer estudando. Ao trabalhar de dia e estudar à noite,
ele se priva do jantar antes de ir para escola, pois ela é distante de sua casa.
Consequentemente, esses adolescentes têm dificuldades para continuar seus estudos na
educação básica e, também, ao ir para uma universidade, pois o cansaço se reflete
“diretamente na aprendizagem”, o que os leva à reprovação e à desistência dos estudos.
Por isso, os discursos de Aline, Cristiano e Jucélia revelam a importância da Escola
Família Agrícola, que são instituições escolares localizadas estrategicamente no campo, a fim
de facilitar a permanência dos filhos de trabalhadores rurais na escola. Essas escolas são
organizadas para atender às especificidades das crianças do campo, por reconhecer que há
momentos em que a criança precisa estar com a família para desenvolver trabalhos no sítio,
como participar do plantio, da colheita, o que é próprio da dinâmica do campo.
Importa destacar também que as Escolas Famílias Agrícolas caracterizam-se por
alinhar os estudos à realidade dos adolescentes camponeses, de modo que eles podem aplicar
em seus sítios e lotes o aprendizado da escola, como o cultivo de horta, a criação de abelhas.
Além disso, as escolas trabalham também a formação moral dos adolescentes, como revela o
discurso de Aline que aprende a “ser responsável, a valorizar o que tenho principalmente
minha família, a escolher bem meus amigos”. Mas a Escola Família Agrícola mostra-se
“exigente com a proposta de ser camponês”, como esclarece Jucélia, por investir em “uma
educação diferenciada que visa ainda o lado humano isto em alternância propondo a
permanência do jovem formado no campo”. A proposta exigente de ser camponês é vista, por
exemplo, no contato com os movimentos sociais rurais, como ocorre com Aline (“tive alguns
contatos com os movimentos militantes”), contribuindo para que os adolescentes
continuassem a luta pela/na terra de forma consciente.
A Escola Família Agrícola contempla também os aprendizados que os adolescentes
já adquiriram na lida diária no campo, por isso muitos adolescentes desejam ir para as escolas
Família Agrícola, por saberem que lá eles têm seus conhecimentos ampliados. Assim,
entendemos quando Cristiano relata que, durante sua entrevista, o diretor da escola questiona
a razão de ele querer ser técnico agrícola. Cristiano responde que: “desde pequeno eu gosto de
266
trabalhar com agricultura, e estudando eu posso melhor cuidar das minhas abelhas e criação
de gado”.
O discurso de Cristiano também denuncia a falta de valorização do conhecimento
dos alunos em escolas que não são agrícolas. Segundo ele, na Escola Família Agrícola
percebe que seus conhecimentos são levados em consideração, de forma que “tudo [o] que os
professores me privaste de descoberta no ensino fundamental”, ou seja, o diálogo com seus
conhecimentos: “a EFA proporcionou para mim”. Assim, a palavra de Cristiano denuncia
que, muitas vezes, as escolas rurais e/ou as escolas da cidade tentam ocultar, menosprezar e
desvalorizar os conhecimentos dos filhos de camponeses, como também eles próprios.
No entanto, essa formação, que colabora na constituição de “um cidadão consciente
com o próximo” (Cristiano), não seria possível se as Escolas Família Agrícola não fossem
arquitetadas pela metodologia da alternância. A instituição da pedagogia da alternância é um
elemento fundamental na cadeia discursiva da terra, da reforma agrária, e da educação do
campo no Brasil, isso porque ela é uma resposta à educação rural, a qual serviu de elemento
de exclusão social no campo. A pedagogia da alternância (cf. Capítulo III), ao contrário da
educação rural, reconhece as particularidades do campo, ao contemplar diferentes
experiências formativas no espaço da escola e do sítio ou lote, tendo como objetivo a
formação profissional. Contudo, podemos inferir que também contribui para a formação
política dos adolescentes sem terra, por propiciar a permanência na escola, oportunizar o
diálogo entre a teoria e a prática no campo e demonstrar que é possível ter conhecimentos,
formar-se e viver no campo.
Os relatos pessoais mostram não só que a identidade dos graduandos sem terra é
constituída pelas dificuldades em permanecer na escola, consequência das dificuldades
financeiras e da responsabilidade com o sustento da família, como também é uma identidade
marcada pelo aprendizado recebido nas Escolas Famílias Agrícolas, espaço social onde
visualizaram seus conhecimentos serem valorizados, assim como sua vivência nos sítios e
lotes. Somado a isso, a Pedagogia da Alternância é fundamental na vida estudantil dos
acadêmicos que passam pela Escola Família Agrícola, pois isso proporciona que suas
identidades de trabalhadores rurais não se perdessem ou não fossem ocultadas em detrimento
de uma identidade hegemônica e dominadora. A identidade do adolescente é de camponês, de
sujeitos ligados à terra, que querem permanecer na terra e lutar para que a justiça social seja
realizada.
267
Assim como a Escola Família Agrícola desempenha papel fundamental na
constituição da identidade do acadêmico sem terra, a diversão vivida por eles também é um
aspecto influenciador.
(1) Na diversão da escola jogam bola na lateral direita, defendia o time da escola
na sinuca estava sempre disputando doces, paçoquinha com tubaína [...]. Nas
noites de final de semana sempre saía com os amigos, a turma era só de
homem e saía para a rua aquela galera de agriculinos assim como eram
chamados. (Edmilson)
(2) Sempre tinha um tempo para irmos caçar ou pescar, era um momento de
descontração, pois os rios ficavam em lugares de serra muito lindo, com
quedas de água e alguns lugares de planície entre os morros, que nos passava
uma sensação de sossego. (Luís Carlos)
(3) Já na adolescência as brincadeiras tomaram um outro rumo, sempre
procuravam brincar com os meninos, jogavam o jogo do beijo, com quem
você pretende se casar, esconde-esconde, mas, isso era só entre as meninas e
os meninos da mesma idade. (Ivone)
Os relatos pessoais dos acadêmicos sem terra demonstram que a diversão durante a
adolescência é dividida com outros amigos, meninos e meninas, “aquela galera”, como no
caso de Edmilson, que passa um tempo na cidade, na escola agrícola, onde se diverte jogando
bola e sinuca com os colegas. Já Luís Carlos tem seus momentos de “descontração” quando
vai também acompanhado de amigos “caçar ou pescar”. Essas atividades são coletivas, estão
ligadas à vida do campo, que dispõe da possibilidade de entrar na mata e nos rios. São práticas
comungadas por Luís Carlos e, certamente, por seus familiares, pais e avôs, evidenciando a
permanência de práticas dos antepassados. Além disso, o lugar é “muito lindo, com quedas de
água e alguns lugares de planície entre os morros, que nos passava uma sensação de sossego”.
Percebemos aí um traço peculiar de um adolescente do campo: a busca pelo sossego.
A adolescência também é uma fase em que as brincadeiras da infância continuam,
como relata Ivone que brinca de “com quem você pretende se casar, esconde-esconde”, mas
também é uma fase em que as descobertas, o novo, a transição para a fase adulta aparece nas
brincadeiras, como no “jogo do beijo”. Trata-se de uma brincadeira que possibilita aos
adolescentes se relacionarem mais intimamente com aqueles em que eles têm interesse.
Como podemos perceber, a diversão na fase de adolescentes não é um assunto
recorrente, pois, como já apontamos, a adolescência no campo pode ser ocultada devido à
dinâmica do sítio/lote que responsabiliza desde crianças os filhos dos camponeses. Logo, a
identidade dos graduandos sem terra é marcada por uma adolescência cuja diversão se
268
concretiza com elementos disponíveis, como caçar e pescar, sair com amigos, brincar com os
colegas.
4.2.1.3 Vozes da Maturidade
Nessa ótica, a fase adulta chega cedo para os filhos de trabalhadores sem terra, que
precisam trabalhar, sustentar a família, casarem-se e, também, assumir papéis como
militantes, buscando a formação política para continuar a luta pela terra e pela permanência
nela. Pela intensidade das práticas como pai, mãe, militante, formador, professor, a fase da
maturidade é a que mais macrocategorias de assuntos agrega, sendo elas: participação nos
movimentos sociais rurais, religiosidade, relacionamento familiar e escola, acampamento,
assentamento, universidade e professor do campo.
A primeira macrocategoria a ser analisada da fase adulta é a participação em
movimentos sociais rurais. Perceberemos que fazer parte de um movimento social não é
apenas se considerar um acampado ou assentado. Fazer parte significa estar na luta pela terra
e por justiça social. Quando se entra no movimento, principalmente, no MST, a identidade
que aflora é de sem terra, como notamos nos relatos a seguir:
(1) A nossa luta não é só pela conquista da terra, lutamos também por uma
sociedade mais justa e igualitária. [...] Mas não nos deixamos abalar, a luta
continua. Mantemos a esperança de construir uma sociedade melhor onde a
solidariedade e a cooperação são os princípios fundamentais. (Ivanilda)
(2) [...] em todas as lutas que fazíamos depois de assentados o Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra MST sempre nos deram apoio participávamos
juntos dando apoio um para o outro, e assim foi que no ano de 1997 eu
comecei através do MST a trabalhar com jovens e adultos nas escolas do EJA
(educação para jovens e adultos) [...] foi tão triste ver pessoas sem
expectativas de vida em busca de um sonho onde crianças descalças com
vontade de viver em uma ciranda infantil gritavam um grito de ordem, Pátria
Livre! –Venceremos. para mim aquilo ficou na memória crianças com
esperança de ver um mundo mudado. (Marisete)
(3) Participei da Comunidade Eclesiais de Base (CEBs), sendo que muitos desses
encontros terminavam com romarias em que defendia também os movimentos
sociais, [...] na época [...] era assentada e defensora dos Sem Terra pelo
movimento do MST. (Alice)
(4) Comecei a participar desde criança do movimento social a Comissão da
Pastoral da Terra (CPT), onde 9 nove anos de idade meu pai já deixava eu ir
nas passeatas, encontros e reuniões, romarias e outros juntos com ele e os
269
nossos vizinhos. Em 1996 vim conhecer o MST através do meu irmão que
passou a militar juntos com os outros companheiros, mas só foi em 2001
sendo educadora aqui no assentamento que passei a ter mais participação nas
atividades do MST. (Rosana)
(5) Neste período de acampamento foi um dos melhores momentos na formação
da vida deste jovem que aprendeu junto com a organização social MST a lutar
pela causa dos menos favorecidos e excluídos da sociedade. [...] A juventude
em um barraco de lona para ele foi uma grande vantagem, pois pode aprender
muitas coisas que a vida oferece e são só junto com o povo que se pode
aprender não tinha um entendimento de luta sociais de solidariedade,
cooperação, companheirismo e neste local ele pode aprender estas coisas e ser
mais humano. [...] Ele explica que os acampamentos do MST tem uma
vantagem muito grande por ser uma escola de vida [...]. Mesmo nos momentos
mais difícil não deixou de militar no MST e nunca perdeu seus princípios.
(Edmilson)
(6) Foi no acampamento que senti mais de perto além de minha dor, a dor do
outro, do companheiro e da companheira. Partilhávamos o pão e a vida. [...]
Logo no início pude participar de encontros, mobilizações e atividades que me
proporcionavam muito prazer e amor em poder estar lá, lutando por minha
família e por aquela família maior. Eu não era só mais um acampado, passei a
ser EU SEM TERRA, EU MST. Passei a amar o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra. (Luci Dalva)
(7) O magistério que cursei também me fez crescer muito, foi através dele que
conheci o MST, aprendi a envolver-me com as questões políticas e sociais que
antes só enxergava do lado de fora como se nada tivesse a ver comigo,
participei do coletivo regional de educação, aprendendo a organizar encontros e
atividades do movimento e adquirindo cada vez mais um grau de consciência
(Marialves)
(8) O ano de 1991 foi um marco em nossas vidas, freqüentávamos a igreja
católica e através de uma marcha que passou por Nova Alvorada, conhecemos
o MST. [...] Em 1992, iniciei a militância, participei de um curso de
preparação de quadros em Santa Catarina. Com o intuito de me preparar para
assumir o trabalho de formação política no MST. [...] Falando de minha
família, essa riqueza que são meus filhos primeiro o Lênin. (Valdirene)
(9) [...] Devido a isso que eu reafirmo, minha identidade é de sem terra, mesmo
após da conquista do meu pedaço de chão [...]. “Ser capaz de sentir indignação
contra qualquer injustiça cometida, contra qualquer pessoa, em qualquer parte
do mundo. É a qualidade mais bela de um militante.” Pensamento Che
Guevara. [...] E assim se foram esta labuta, por muitos anos, mas mantendo-
me em pé, uma identidade que passou por crises, pensou em desistir, ir para o
espaço urbano e lá ficar a mercê da violência, exploração e exclusão. Mas com
otimismo nos mantivemos, mesmo com fragilidade, na busca do novo,
gradativamente nos fortalecendo. (Zilda)
O número de excertos relacionados à participação dos graduandos sem terra nos
movimentos sociais evidencia como essa prática é fundamental em suas experiências de vida.
270
Eles querem falar sobre o que representa o movimento em suas vidas. Isso porque é o
movimento social que direciona, muitas vezes, os trabalhadores sem terra a se enxergarem
como sem terra e, a partir daí, a lutarem por seus direitos e por justiça social.
No relato de Ivanilda, verificamos que no enunciado “A nossa luta não é só pela
conquista da terra, lutamos também por uma sociedade mais justa e igualitária.”, o discurso é
constituído pela voz do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o qual objetiva
lutar pela terra, pela reforma agrária e pela transformação social, o que é possível, segundo o
Movimento, “[...] por meio de um Projeto Popular para o Brasil” (MST, 2017). A presença do
pronome possessivo “nossa” cria um efeito de sentido que mostra que o sujeito enunciador
está inserido e se considera parte do Movimento. Ademais, a presença do pronome reflexivo
“nos” também demonstra que o sujeito, assim como o Movimento, é afetado pelas injustiças
sociais. Nessa mesma perspectiva, os verbos no presente do indicativo “é”, “lutamos”,
“deixamos” e “Mantemos”, além de mostrarem a proximidade do sujeito com o Movimento
Social, também apontam para a convicção do sujeito enunciador acerca da importância da luta
para os integrantes do MST. Assim, notamos que o sujeito enunciador compromete-se e
responsabiliza-se com aquilo que diz, visando a convencer o interlocutor, provocando neste
uma ação de consentimento ou de vontade de mudar a sociedade. Do mesmo modo, o
interlocutor é afetado ao ser chamado a participar da situação comunicativa e dele espera-se
uma reação de concordância.
Importa também destacar que a polifonia instaura-se quando o sujeito diz
“Mantemos a esperança de construir uma sociedade melhor onde a solidariedade e a
cooperação são os princípios fundamentais”, no sentido de que o MST caracteriza-se como
um movimento que defende o trabalho coletivo e a produção coletiva tanto no que se refere à
luta pela terra como também ao modo como a terra será gerida enquanto lote. No projeto do
MST, os lotes devem ser utilizados pelo coletivo, por um grupo de famílias e não
individualmente. Nesse sistema, a terra será preparada para o plantio, haverá a plantação e
também a colheita, tudo feito pelo coletivo, de modo a dividir a colheita entre este. Assim,
espera-se que a terra não volte a ter um “dono”, mas que seja utilizada como um bem a quem
todos têm direitos iguais.
Essa postura do MST ecoa também nas escolhas lexicais feitas pelo sujeito
enunciador. No caso dos substantivos (luta, sociedade, solidariedade, cooperação, princípios),
em especial, de luta, percebemos um dos princípios basilares do MST ao pregar que a
conquista da terra efetiva-se por meio da luta, bem como da organização dos trabalhadores
(MST, 2017). Essa luta se faz por várias estratégias, como acampamento, ocupação de terra,
271
marcha, vigílias, manifestações. O signo ideológico luta, no sentido do militante, aponta para
formas de resistência ao modelo de distribuição de terras baseado no capital e na propriedade
privada.
Quanto aos adjetivos e expressões caracterizadoras, percebemos o caráter almejado
pelo Movimento e, também, pelos militantes para sociedade como um todo: igualitária e mais
justa. No primeiro termo, o sentido de igualitária pode significar democrática. Da mesma
forma, pode ser entendida como igualdade de condições entre os membros de uma sociedade.
No entanto, chama a atenção também a sua oposição à autoritária e antidemocrática, o que
pode revelar um diálogo com discursos de adversários, cuja ideologia está marcada pelo
capitalismo e, consequentemente, pela exploração.
Nessas escolhas lexicais, ecoa a voz consoante do MST que pensa uma sociedade de
natureza igualitária e democrática, pois defende que todos os cidadãos são dotados de direitos
iguais, desse modo a distribuição de terras deve também ser igual. Ligado a esse princípio
está o objetivo de se ter uma sociedade mais justa em relação à sociedade atual, ou seja, mais
democrática. Neste caso, o uso do intensificador persuasivo mais aumenta a intensificação da
noção da sociedade que se quer, com a pretensão de persuadir o interlocutor a pensar também
dessa forma. Como aponta a seção Quem Somos do site do MST (2017): “Sem Reforma
Agrária não há democracia.”73
Isso significa que, por meio de um Projeto Popular para o
Brasil, é possível alcançar uma sociedade mais justa. O signo reforma agrária tem o sentido
de democratização e de popularização da terra no Brasil.
Desse modo, verificamos que a voz do sujeito enunciador está em consonância com a
voz do MST, pois demonstra estar em acordo com os pressupostos do Movimento; em outras
palavras: o sujeito enunciador concorda com a posição sócio-político-ideológica e aprova os
princípios do Movimento. Notamos, assim, um assentimento do sujeito com relação ao
Movimento e ao seu discurso.
Já o relato de Marisete reflete sua entrada no MST e acentua o apoio dado pelo
Movimento aos trabalhadores atingidos por barragem, como no caso da graduanda. O seu
discurso também retrata a sua participação no Movimento como professora da Educação de
Jovens e Adultos (EJA). Podemos, assim, confirmar o que Stedile (STEDILE; FERNANDES,
2005) aponta como um dos objetivos do MST: romper a cerca da ignorância. E para isso, o
MST forma seus militantes para que eles possam assumir as escolas do Movimento.
73 Disponível em: < http://antigo.mst.org.br/node/7702>. Acesso em: 15 jan. 2017.
272
No trecho: “foi tão triste ver pessoas sem expectativas de vida em busca de um sonho
onde crianças descalças com vontade de viver”, percebemos que o sujeito enunciador insere-
se no discurso, ao sinalizar sua percepção sobre o momento relatado, como se pode observar
em escolhas lexicais, como: “tão triste”, “sem expectativas”, “com vontade de viver”. Esses
signos estão carregados de valor axiológico. O valor atribuído pelo sujeito enunciador à
situação presenciada é também um valor de seu grupo social, que se solidariza com a tristeza
e a dor do outro. Como mostra Bakhtin (2002), esses índices de valor caracterizam-se
ideologicamente por serem índices sociais, por fazerem parte do consenso social, por serem
compartilhados pelos indivíduos de um grupo. Com a intensificação do sentimento sentido
pelo sujeito enunciador, percebemos que o efeito de sentido construído é exacerbado sobre a
tristeza sentida no momento vivenciado, o que pretende provocar no interlocutor uma reação
favorável a fim de levá-lo também a pensar como o sujeito.
Cabe destacarmos também que a polifonia deixa-se ver no grito de ordem proferido
pelas crianças: “Pátria Livre! – Venceremos”, o qual dialoga com o hino do MST (2017),
como podemos ver em sua letra: “Vem teçamos a nossa liberdade [...]/ Vem, lutemos/ punho
erguido/ Nossa força/ nos faz a edificar/ Nossa pátria/ livre e forte/ construída pelo poder
popular [...]” (Letra: Ademar Bogo e Música: Willy C. de Oliveira) (MST, 2017).
O hino do MST é para seus militantes um símbolo da luta que se inicia no Rio
Grande do Sul, no acampamento Encruzilhada, mas que tem suas raízes na luta das Ligas
Camponesas e na CPT. Trata-se de um signo ideológico que carrega os sentidos de luta, de
resistência, de força, características dos militantes. Como podemos perceber, as crianças do
MST conhecem o hino do Movimento a ponto de ele fazer parte de suas brincadeiras de roda,
de seus momentos de diversão. Logo, inferimos que ele constitui suas identidades, como
também a identidade dos graduandos sem terra, por fazer parte de suas vivências enquanto
crianças, filhos de trabalhadores rurais sem terra e de militantes do MST.
Em um jogo polifônico, verificamos que em “Pátria Livre” ecoa também a voz
consonante da Teologia da Libertação, ao pregar a libertação da classe oprimida das algemas
do autoritarismo, do latifúndio. Tendo a Teologia da Libertação como orientadora, a Igreja na
América do Sul volta-se para a realidade do povo oprimido, sofrido e explorado. Ecoa no
grito das crianças do MST os princípios da Teologia da Libertação que aponta a libertação
humana como antecipação da salvação final em Cristo. Ademais, podemos afirmar que o
Evangelho também é ouvido no referido grito das crianças que pedem a libertação de sua
pátria. A Teologia da Libertação é uma contrapalavra a uma tradição católica alicerçada na
propriedade, como no caso da TFP, grupo católico que prega a divisão da sociedade entre
273
membros superiores e membros inferiores, assim como a aceitação da condição da por Deus,
conforme defendido pelo bispo Dom Geraldo de Proença Sigaud e Plínio Corrêa de Oliveira,
como analisamos no primeiro capítulo deste estudo.
O olhar para o povo de Deus, teorizado pela Teologia da Libertação, efetiva-se nas
ações da Igreja, como nas CEBs e na CPT. Desse modo, além das vozes da Teologia da
Libertação, da TFP, o discurso de Marinete também é constituído pelas vozes das CEBs e da
CPT, as quais instruíam os integrantes dos movimentos, por meio do conhecimento, a
buscarem o direito à terra, sempre pautada nos princípios marxistas, como uma forma de
libertar a sociedade dos conflitos de classe. Assim, notamos que ecoam as vozes do
cristianismo e do socialismo marxista também na palavra de Marinete, as quais apontam para
a premissa de que todos são irmãos, todos são iguais e, por isso, há uma necessidade de
repartir e viver coletivamente.
Somado isso, outra voz também ecoa no cruzamento dos fios dialógicos, a voz dos
revolucionários Che Guevara e Fidel Castro74
. Durante o Movimento de Sierra Maestra, esses
revolucionários popularizaram gritos de ordem como: “Pátria ou morte, venceremos”; “Pátria
livre ou morte! Socialismo ou morte! Venceremos!” e, também, “Ousar lutar, ousar vencer”,
sendo o mais popular: “Pátria Livre! Venceremos!”. Na década de 1970, o Movimento
Revolucionário 8 de Outubro (data da morte de Che Guevara) passa a usar essas frases em
seus manifestos, em seus editoriais no jornal Hora do Povo e, também, em diversos materiais
de divulgação do Movimento que, nesse período, é clandestino. Os gritos de ordem são
eternizados por Fidel Castro, que os assumiu como palavras de ordem75
e enaltecem o
nacionalismo durante a revolução, conclamando o povo a lutar por uma Cuba livre, tornando-
se, o grito de ordem, presente ao final de seus longos discursos.
Compreendemos que a polifonia, presente no relato pessoal da acadêmica, revela
uma multiplicidade de vozes que se entrelaçam e apontam para a subjetividade do sujeito,
mostrando em que contexto social, político e ideológico esse sujeito está situado. As vozes
presentes nesse grito de ordem formam uma tríade de vozes polifônicas consonantes: a voz
do MST, a voz do cristianismo – Teologia da Libertação, CEBS, CPT –, e a voz do
socialismo cubano nas figuras de Fidel Castro e Che Guevara. Esse jogo polifônico das várias
vozes mostra que a constituição do sujeito enunciador efetiva-se a partir das vozes de seus
74 Disponível em: < http://blogdomarcelofernandes.blogspot.com.br/2008/10/dia-de-lembrar-che.html> Acesso
em 16 jan. 2018. 75
Um exemplo está disponível em: <http://www.cuba.cu/gobierno/discursos/2001/por/f270101p.html>. Acesso
em: 16 jan. 2018.
274
antecessores com os quais está em consonância, com quem concorda. Assim, o sujeito
enunciador põe em cena consciências diferentes e independentes, mas que se associam para
representar um determinado universo social e que são marcadas pelas especificidades desse
universo. Como afirma Bakhtin (2002, p. 106), “[...] Todas as palavras e formas que povoam
a linguagem são vozes sociais e históricas”.
Também notamos, nesta macrocategoria, que a formação nos movimentos sociais
rurais inicia-se na Igreja Católica por meio da participação nas CEBs e na CPT, por exemplo,
como demonstram os discursos de Alice e Rosana. Percebemos que essas participações foram
primordiais para que os graduandos conhecessem o MST e outros movimentos sociais. Como
relatamos, no segundo capítulo, as CEBs e a CPT foram expressões práticas da Teologia da
Libertação, a qual defendia uma Igreja feita junto ao povo e, consequentemente, defensora de
suas causas. Em seus encontros, havia a congregação de elementos religiosos, como a
“romaria” (Alice, Rosana) e, também, a formação política, por meio das “passeatas,
encontros e reuniões” (Rosana), que contribuíam para que os trabalhadores sem terra
pudessem ter uma formação política e se interessar pelos movimentos sociais rurais.
O interesse ocorre a ponto de os movimentos sociais, sobretudo, o MST, tornarem-
se elementos fundamentais na vida, na travessia para a terra prometida e na identidade dos
graduandos sem terra. Nos excertos dos relatos de Edmilson, Luci Dalva, Marialves,
Valdirene e Zilda é recorrente o quanto a entrada no MST é significativa para suas vidas
sociais. Eles tratam o Movimento e a participação em sua luta como uma escola da vida, em
que aprendem muito sobre coletividade, solidariedade, luta social, bem como a sentir “a dor
do outro, do companheiro e da companheira” e a partilhar “o pão e a vida” (Luci Dalva). A
aprendizagem, para os militantes do MST, não está apenas no que se refere à academia e/ou à
escola, mas está intimamente relacionada à aprendizagem sobre como “lutar pela causa dos
menos favorecidos e excluídos da sociedade” (Edmilson). Esse aprendizado faz-se de
diversas formas, como em “encontros, mobilizações e atividades que me proporcionavam
muito prazer e amor em poder estar lá, lutando por minha família e por aquela família maior”
(Luci Dalva) e, ainda, na participação no “coletivo regional de educação, aprendendo a
organizar encontros e atividades do movimento e adquirindo cada vez mais um grau de
consciência” (Marialves).
Fazer parte do Movimento possibilita aos militantes envolverem-se em “questões
políticas e sociais” que antes são vistas apenas pelo “lado de fora” (Marialves), ou seja, são
vistas sem envolvimento e sem entendimento sobre a causa. O discurso de Marialves dialoga
com discursos cristalizados na sociedade, quando fazem considerações acerca do MST e da
275
luta pela terra sem terem precedentes/informações, sem ter vivência de sem terra. Além disso,
revela que a sociedade brasileira não tem conhecimentos de que o problema da terra no Brasil
vem sendo construído desde o Brasil Colônia, quando a distribuição de terras já é feita
levando em consideração amizades, influências, dinheiro, o que, certamente, deixa de fora os
camponeses, aqueles que realmente vivem na terra e da terra.
Ainda destacamos na macrocategoria Participação em Movimentos Sociais o quanto
os movimentos rurais constituem as identidades dos graduandos sem terra. Podemos afirmar
que nos Movimentos, principalmente, no MST, os militantes enxergam-se como parte de um
todo e, ainda, como elementos-chave na luta pela terra e pela justiça social. Todos têm um
lugar no Movimento, todos têm uma função social ao participarem dos diversos setores de
organização do MST e serem valorizados por isso. É o que não acontece em outras esferas
sociais, em que o cidadão comum não tem lugar, não é ouvido, não recebe formação política
ou acadêmica. Já os militantes do MST estão em constante formação política em seus
encontros de formação, nas escolas técnicas. Depois disso, os militantes retornam aos seus
assentamentos e acampamentos preparados para nutrir a luta pela terra, como aponta
Marialves: “participei do coletivo regional de educação, aprendendo a organizar encontros e
atividades do movimento e adquirindo cada vez mais um grau de consciência”, caminho
também percorrido por Valdirene, que frequenta a Igreja Católica e lá conhece o MST.
Depois inicia sua militância, participa “de um curso de preparação de quadros em Santa
Catarina. Com o intuito de me preparar para assumir o trabalho de formação política no
MST”.
Por isso, quando alguém resolve entrar no Movimento e fazer parte dele como um
militante, sente sua vida mudar, porque se enxerga como excluído, um herdeiro da
exploração, mas também se vê como um agente na luta pela terra, como alguém pode
contribuir para a justiça social, se vê parte de um todo que são os trabalhadores rurais sem
terra do MST, é um novo nascimento. É o que Bakhtin (2014, p. 11) chama de Nascimento
Social, um segundo nascimento. Para entrar na história não basta nascer biologicamente,
como nasce qualquer ser vivo na terra, é “[...] necessário algo como um segundo nascimento,
um nascimento social”. Bakhtin (2014, p. 11) também explica que o “[...] individuo humano
só se torna historicamente real e culturalmente produtivo como parte do todo social, na classe
e através da classe”.
Esse nascimento social constitui a identidade do sujeito social graduando sem terra,
como notamos no discurso de Luci Dalva quando afirma que, ao entrar no MST: “Eu não era
só mais um acampado, passei a ser EU SEM TERRA, EU MST”. Entrar no MST significa
276
um nascimento social. A identidade da graduanda é sem terra em letras maiúsculas, dessa
forma ela se reconhece, e o outro a vê. Os militantes do MST não se sentem ocultados pela
hegemonia da sociedade capitalista, mas se enxergam como elementos combatentes do
sistema de exploração, o que é sempre condenado em seus discursos. O MST passa a fazer
parte da vida dos seus militantes, a ser uma esfera social que os representa e representa seus
anseios. Logo, há um sentimento forte entre o militante e o MST, como expressa a
acadêmica: “Passei a amar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra” (Luci Dalva).
O sentimento pela luta e por seus líderes é visível também entre os militantes, que
sempre se referem positivamente àqueles que iniciaram revoluções e sustentaram uma visão
social da terra, o que se revela, por exemplo, no nome do filho de Valdirene: “Lênin”, nome
do líder socialista russo. Entre suas teses, Lênin defende: “Paz, pão e terra”. Ao chegar ao
poder, o líder nacionaliza os bancos e realiza reforma agrária, distribuindo terras aos
camponeses. Como podemos notar, o ideal da Revolução Russa defendido por Lênin
constitui a identidade dos graduandos sem terra, pois é um líder respeitado entre os militantes
sem terra pelo fato de ele ter conseguido desenvolver um sistema em que o socialismo é o
sistema político e econômico, assim como o coletivismo e a igualdade. Assim, podemos
afirmar que, ao analisarmos o nome do filho de Valdirene e o contexto sócio-histórico do
qual ele faz parte, percebemos que a escolha pelo nome Lênin não é aleatória, uma vez que
representa que nossas palavras são selecionadas pelo tom que corresponde “[...] à expressão
do nosso enunciado e rejeitamos as outras” (BAKHTIN, 2011, p. 291).
Como também apresenta Zilda “minha identidade é de sem terra, mesmo após da
conquista do meu pedaço de chão”. Ser sem terra mesmo já estando dentro do lote representa
que o trabalhador sem terra está sempre na luta, seja por seus companheiros que continuam
sob a lona preta pelos acampamentos à beira das rodovias, seja por melhores condições nos
assentamentos, seja por transformação social. Notamos que os sentimentos de solidariedade e
de coletividade estão sempre presentes entre os sem terra, o que rememora as palavras do
líder cubano Che Guevara: “Ser capaz de sentir indignação contra qualquer injustiça
cometida, contra qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo. É a qualidade mais bela de
um militante” (Zilda). Percebemos que, para compreendermos a identidade dos sujeitos
sociais, não podemos deixar de incorporar as condições socioeconômicas, a realidade
extraverbal nas quais ele está inserido, porque “[...] a essência humana não é o abstrato
inerente ao individuo único. É o conjunto das relações sociais em sua efetividade”
(BAKHTIN, 2014, p. 11).
277
Na fase adulta, a religiosidade também é um assunto recorrente, porém como
veremos a seguir não é expressa pela religiosidade popular, mas pela participação na Igreja
Católica.
(1) Hoje com o aprendizado e o conhecimento que adquiri através de
capacitações, pela Pastoral da Criança e participações de encontros realizados
pela CEBs (Comunidade Eclesiais de Base). (Alice)
(2) O ano de 1991 foi um marco em nossas vidas, freqüentávamos a igreja
católica e através de uma marcha que passou por Nova Alvorada, conhecemos
o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). (Valdirene)
(3) Antes de ir para Juti eu iniciei a caminhada vocacional na igreja com a
intenção de ir para o seminário, em Naviraí dei continuidade participando de
uma equipe de vocacionados, terminei o segundo ano e em 2000 fui para
Rondonópolis morar no seminário franciscano como aspirante e terminando o
terceiro ano na escola La Salle. (Wagner)
Como discutimos no segundo capítulo deste estudo, a Igreja Católica, nas décadas de
1970 e 1980, exerce um papel importante no apoio aos movimentos sociais e partidos
políticos que surgiam de suas comunidades. Com isso, percebemos uma relação estreita entre
a área progressista da Igreja e os membros do MST e do Partido dos Trabalhadores, por
exemplo. O discurso de Alice evidencia que sua participação na Igreja é religiosa e social,
pois faz parte da “Pastoral da Criança” e “de encontros realizados pela CEBs”. Valdirene
também participa da Igreja Católica e é lá que conhece o MST, o que revela que a Igreja, em
1991, ainda abre suas portas para discutir questões políticas e sociais. Já a participação de
Wagner no movimento social rural CPT pode ter colaborado para sua vocação religiosa. A
CPT é um movimento que acompanha os trabalhadores rurais sem terra na formação de
acampamentos, de assentamentos e nas disputas judiciais. Com isso, há uma convivência
entre missionários e jovens sem terras, o que pode ter sido um fator importante para a vocação
sacerdotal de Wagner.
A voz da Igreja Católica, enquanto expressão do Evangelho e como uma agente na
formação política e intelectual de trabalhadores sem terra, constitui a identidade dos
graduandos sem terra. Sua vertente progressista, ao colocar em prática a Teologia da
Libertação, volta-se para os excluídos da sociedade. Nesse processo, desenvolve diferentes
cursos de formação que já relaciona a vivência do trabalhador aos problemas sociais sofridos.
Com isso, a Instituição leva os excluídos a pensarem sobre suas condições sociais, como
também sobre a desigualdade social existente e a exploração da mão-de-obra do excluído. O
278
Evangelho passa a ser colocado em prática, pelo fato de a Igreja ver nos rostos dos excluídos
também o rosto de Cristo sofredor (cf. Capítulo II). Como podemos observar a prática
continua sendo realizada pelos graduandos ao assumirem trabalhos nas pastorais.
Já para os movimentos sociais rurais e seus militantes, como o MST, o Evangelho
passa a ser uma doutrina, fonte de leitura, que influencia nos valores, na cultura, na forma de
ver a mística e na forma de ver diferente o povo e seu sofrimento (STEDILE, 2005). A Igreja
Católica proporciona ao povo um espaço para formação intelectual e política e, também, um
espaço de voz, onde se pode ouvir e falar e onde se pode ver-pensar-agir sobre os problemas
de seu entorno, como também do País. Nessa perspectiva, a voz da TFP (Tradição, Família e
Propriedade), grupo elitista católico, também ecoa nos discursos dos graduandos por ser uma
vertente que defende a aceitação da condição social dada por Deus. Desse modo, estar à
margem da sociedade seria uma vontade de Deus, que não poderia ser contrariada. Ao
contrário, as CEBs e as Pastorais chegam mais perto do povo e contribuem para que ele
mesmo assuma uma consciência de libertação e busque realizá-la, sem intermediários, por
meio de setores organizados, como os movimentos sociais. Nesse contexto, a identidade dos
graduandos sem terra constitui-se na alteridade, na relação com o outro, neste caso, o outro
Igreja, que está intimamente ligada aos movimentos sociais rurais como MST e CPT, mas
também à Igreja que nega a igualdade entre os filhos de Deus (TFP). Podemos entender que a
constituição da identidade dos acadêmicos sem terra realiza-se no ato responsivo com o outro,
fora de si mesmo, ou seja, ela se constituiu “[...] nos limites entre eu e o outro, vou existindo
pelas ofertas do Outro” (MIOTELLO e MOURA, 2014, p. 154).
Como vimos, para os movimentos sociais e para a Igreja Católica, uma das formas de
libertação do povo é pela educação, por isso eles têm buscado, ao longo da história de luta
pela terra, proporcionar formas de os trabalhadores rurais sem terra começarem ou
continuarem seus estudos. Porém, quando, especialmente, as mulheres resolvem estudar, o
relacionamento familiar pode ser afetado, em decorrência da falta de apoio dos maridos, como
observamos nos excertos selecionados da macrocategoria Relacionamento Familiar e Escola.
(1) Recomecei meus estudos ano de 1974. [...] A barreira maior foi ter que
analisar a proposta do esposo em escolher entre a Universidade e ele. Mas
como eu já sabia o que queria para mim, não foi difícil fazer a escolha mesmo
que as consequências viessem depois, eu tinha a certeza que ainda sairia com
ganho. (Maria Aparecida)
(2) Inscrevi-me, então em um magistério de férias [...]. Como o curso era criado
pelo MST, meu companheiro achava que era loucura eu me envolver e como
279
sempre foi contra meus ideais, dizia também que eu já era muito velha para
recomeçar a estudar, mal sabia ele que dentro de mim, na vontade e nos
sonhos, eu ainda era bem jovem. (Marialves)
(3) Ela é convidada pela CPT a fazer o magistério de férias em Campo Grande,
com apoio de seu esposo e filhos não pensou muito partiu com muita coragem
afinal o seu sonho era ensinar as pessoas, e agora com essa oportunidade
batendo na sua porta não era de se joga fora. (Nilda)
(4) Resolvi casar-me com o Clodoaldo Lerias de Oliveira que fora assentado aqui
e que também sempre contribuiu com a organização (MST), o mesmo sempre
apoiou que eu estudasse então neste mesmo ano me escrevi no vestibular para
cursar o Normal Superior de UEMS. (Rosana)
(5) A Universdidade me aproxima da realização de um sonho a cada dia que
passa, mas, como uma espécie de provação, para testar a minha capacidade de
superação, uma grande tragédia atinge minha família. No dia 31 de agosto
assassinam meu esposo, foi um golpe insuportável, principalmente para meus
filhos, o sofrimento de meus dois filhos e minha filha até hoje, ainda dói em
mim, mas com as ajuda dos amigos, tenho conseguido superar a cada dia que
passa. (Marialves)
(6) No começo do mês de agosto de 2008, fomos morar em Itaquirai. O Luciano
necessitava ficar mais perto daquela região, porque os trabalhos a ser
desenvolvidos estariam concentrados por lá, tudo está bem até que no dia 27-
10-2008 o meu marido saiu na parte da manha para trabalhar e as cinco horas
e trinta minutos quando retornava sofreu um acidente morrendo
instantaneamente. A minha vida neste momento desmoronou eu havia perdido
o alicerce da minha família eu não tive chão. (Marisete)
Da macrocategoria relacionamento familiar e escola, destacamos como os esposos
avaliam o retorno das companheiras à escola. Nos discursos de Maria Aparecida e Marialves
ecoam vozes das relações de gênero existentes entre mulheres e homens do campo. Os
maridos oferecem resistência à ideia de suas esposas voltarem a estudar, chegando a impor
que a companheira escolha entre o casamento e a escola (Maria Aparecida) e, ainda, dizendo
que ela está velha para voltar à escola (Marialves). A voz do patriarcado pode ser ouvida
quando eles preferem que suas esposas continuem na condição de submissão, de falta de
autonomia, a buscarem meios de libertação.
Mas essas mulheres são militantes de movimentos sociais rurais, no caso do MST,
que proporcionam a elas espaços sociais de discussão, de participação como líderes de
setores, o que contribui para que almejem voltar a estudar. Essa participação colabora para
que as mulheres se vejam como sujeitos capazes de buscar sua própria autonomia. Segundo
Menegat (2009, p. 16), nas décadas de 1980 e 1990, o movimento de mulheres abriu um
significativo espaço na sociedade brasileira, “[...] revelando a importância do feminino como
280
sujeito de mudanças sociais, marcando presença como liderança responsável pelo papel
também de reprodutora de unidades familiares”.
Como podemos perceber, os discursos das graduandas fazem parte de uma cadeia
comunicativa, pois querer voltar à escola ou entrar na Universidade representa uma forma de
retomar um ciclo inconcluso na infância em decorrência de dificuldades financeiras e
estruturais, como discutimos na macrocategoria Escola na Infância. Além disso, significa um
marco decisivo no restabelecimento de relações com a escola e com a sociedade, por
significar uma forma de libertar-se do estigma de semianalfabetas ou analfabetas e dos
sentimentos de inferioridade.
Porém, nesse cenário, também há companheiros que estimulam as esposas a voltarem
a estudar e a buscarem o sonho de infância, como no caso de Nilda e Rosana, que veem a
oportunidade de estudar “batendo na sua porta”. Apoiadas pelos companheiros, elas também
entram na Universidade, cujo curso acontece nas férias em período integral, o que
impossibilita as mulheres de voltarem para casa, fato que poderia ser um motivo de
reprovação dos maridos, o que não ocorre no caso delas e das outras graduandas.
As relações familiares também são marcadas por momentos difíceis, como no caso
de Marialves, cujo companheiro é assassinado, e Marisete, que perde “o alicerce da minha
família”, em um acidente. Esses acontecimentos, que servem para “testar a minha capacidade
de superação”, ocorrem durante o curso. Mesmo diante do sofrimento próprio e dos filhos,
essas mulheres não desistiram da Universidade. A perda de companheiros de luta é uma
constante entre os militantes de movimentos sociais. Alguns são assassinados a mando de
latifundiários diante da possibidade de efetivação da reforma agrária em suas terras.
Lembramos que a prática do assassinato de trabalhadores sem terra ocorre desde as
Ligas Camponesas, como discutimos no segundo capítulo. Muitas vezes, latifundiários,
pertencentes a Associações Rurais, tendo o respaldo de políticos influentes, acabam por
contratar jagunços para evitar a reforma agrária em suas terras improdutivas. Essas ações
podem envolver despejos violentos de mulheres, crianças e homens dos arredores das
fazendas e, inclusive, o assassinato de líderes, como Silvio Rodrigues e Ronilson da Silva,
torturados e mortos a mando da proprietária da fazenda Beco do Sossego, no município de
Rio Brilhante, em Mato Grosso do Sul (MST, 2000). Observamos que os discursos da
aristocracia legitimam ações violentas, como os homicídios que têm sua visibilidade
obscurecida.
Como podemos notar, os discursos acerca das relações familiares demonstram que a
identidade dos graduandos sem terra não se constiui no equilíbrio. Ao contrário, ela se
281
constitui na tensão entre o Eu e o Outro. Por isso, Bakhtin afirma que é o olhar do outro, o ato
responsável do outro que constitui a identidade de um sujeito, instituído socialmente, por
meio da interação verbal com o outro.
A próxima macrocategoria, acampamento, registra outras formas de sofrimento do
povo que toma a decisão de ir para um acampamento, o que significa um divisor na vida do
trabalhador sem terra, porque esse é um lugar já marcado ideologicamente como um espaço
de luta, de resistência e de muitas privações:
(1) O pior momento dentro dessa luta, por incrível que pareça, foi justamente
depois da desapropriação da fazenda, até festa fizemos sem saber o futuro
nada promissor. Mudamos para dentro da fazenda, tudo parecia perfeito, mas
foi quando o arrendatário da fazenda resolveu não desocupar a terra e começou
o conflito. Jagunços armados por todo lado, ficamos presos dentro daquele
local, muitas ameaças e dois ataques com muitos tiros e marcas de balas nos
barracos, graças a Deus ninguém ficou ferido. (Alessandro)
(2) A vida no barraco não é nada fácil, porém há momentos de muitas alegrias,
mas o que ficou marcado e que nunca esquecerei são as noites de inverno que
passei no barraco a beira do Rio Dourados, noites de geadas que colocávamos
baldes com água e no dia seguinte amanhecia congelada. O suor do barraco de
lona preta que congelava, passávamos o dedo caia plaquinhas de gelo, e no dia
seguinte com o nascer do sol começava a derreter e molhar tudo dentro do
barraco. (Luís Carlos)
(3) Para os acampados era normal ter que mudar a cada 20 ou 30 dias então não se
preocupavam, chegando com todo aquele amontoado de “buchos” como eles
chamavam, era crianças chorando era mulher dando de mamar as crianças ou
ajeitando um abrigo para os mesmos descansar. A coordenação já ia organizar
onde cada grupo ia fazer os seus barracos, neste momento o coordenador da
segurança já teria se organizado e estão de plantão nos pontos estratégicos os
setores funcionavam com muita agilidade [...]. (Edmilson)
(4) No acampamento às vezes as pessoas se alvoroçavam nas ruas dos barracos
com baldes e latas todos indo na mesma direção, era o caminhão pipa que
tinha chegado com água, e a gente tinha que ir também se não ficava sem
água. (Maria de Fatima)
(5) Contrariada Cristiane resolveu visitar a moradia do pai, estava envergonhada
não queria burlar a lei e ser uma “desordeira e desocupada”, mas ao descer do
ônibus e identificar-se na guarita surpreendeu-se ao conhecer aquele lugar, que
de local antes habitado por bois agora germinava trabalho em uma linda horta
para alimentar a todos, uma nova realidade abriu-se a ela. Naquela tarde
conheceu o núcleo de base no qual seu pai participava. (Cristiane)
(6) A vontade que eu tinha era de fugir daquele local, não me via nem aceitava me
ver como sem terra, tinha recém doze anos de idade, estava a começar a fase
da adolescência e estava armado com todos os preconceitos de uma mente
maleável, bruta e revoltada, me via melhor que aqueles que estavam tanto no
acampamento, quanto àqueles que moravam no campo, os repudiava por não
282
me encontrar naquele meio, porém algo veio a mudar de forma esmagadora,
sendo este transformador o momento o que comecei a freqüentar a escola e
nisto algo diferente aconteceu, eu conseguia compreender o conteúdo e tirava
assim boas notas, sendo o que antes mais preocupava minha mãe era o fato de
eu antes vinha a ser um dos piores alunos das escolas que estudei, mais
vivendo no campo me restava mais tempo para valorizar o meu estudo [...].
(Diego)
(7) Com o conhecimento prático [no acampamento] aprendi que terra é um direito
que não se ganha, se conquista com a luta de todos. (Maria Aparecida)
O vivido no acampamento é marcado, na maioria das vezes, não só pela precariedade
das condições de infraestrutura, no que se refere à falta de escola, de assistência médica, por
exemplo, mas também pela violência que podem sofrer por estarem à beira de rodovias ou à
margem de cercas de grandes fazendas improdutivas. Por isso, é um momento marcante na
vida dos trabalhadores rurais sem terra, pois decidir ir para o acampamento é aceitar essas
condições e despender muito esforço para que o sonho do lote seja realizado.
O discurso de Alessandro revela um dos momentos mais difíceis na luta pela terra
vivenciado por ele. O fato narrado evidencia que a desapropriação da fazenda pela justiça não
foi um motivo que impedisse o arrendatário da fazenda de começar um conflito armado.
Jagunços foram contratados para ameaçar e atacar com muitos tiros aqueles que estão no
acampamento. A presença da palavra “jagunço” evidencia uma escolha não aleatória por parte
do sujeito enunciador, pois “jagunço” significa cangaceiros, criminosos foragidos ou qualquer
homem violento contratado como guarda-costas por indivíduo influente, como no caso relato,
o fazendeiro. Nessa perspectiva, o discurso de Alessandro denuncia o uso de mecanismos não
legais utilizados pelo latifundiário. Essa denúncia dialoga com as pressões sofridas pelos
foreiros das Ligas Camponesas, que também viram seus companheiros serem perseguidos e,
inclusive, mortos por jagunços contratados por latifundiários e usineiros, como ocorre com o
líder e camponês João Pedro Teixeira, da Liga Sapé, da Paraíba. Como vimos no capítulo I, o
jagunço tem por serviço matar aquele que o contratante determina, é um serviço para o qual
ele é contratado e pago. O mandante não suja as mãos e, dificilmente, é identificado. Nessa
ótica, o discurso do jovem sem terra também dialoga com os acontecimentos do Brasil
Colônia, quando os sesmeiros podem colocar índios na boca de canhões e explodi-los, sem
que a justiça seja acionada para julgá-los. Assim, percebemos que aos sesmeiros, aos
usineiros e fazendeiros do Nordeste, assim como aos latifundiários de Mato Grosso do Sul é
dado o direito de lutar contra os trabalhadores rurais ou indígenas da maneira como acharem
mais adequada, incluindo ações fora da lei.
283
Além de relatar a violência sofrida pelos graduandos sem terra nos acampamentos, os
discursos também retratam as dificuldades de se passar uma noite de inverno sob a lona preta
no acampamento à beira de um rio. O discurso de Luís Carlos, além de retratar a experiência
do acadêmico, também dialoga com a voz dos latifundiários, da mídia e de parte da sociedade
que dizem que os acampados não vivem nos barracos. Esse discurso, carregado
ideologicamente, é negado pelo sujeito sem terra, ao demonstrar que realmente os sem terras
vivem nos acampamentos e neles passam momentos difíceis, tendo como suporte o sonho de
ter um lote e dele viver.
Já o discurso de Edmilson acena para a instabilidade de se viver no acampamento,
pois “para os acampados era normal ter que mudar a cada 20 ou 30 dias”. A falta de um lugar
fixo mostra os obstáculos que os acampados precisam enfrentar para continuar na luta. Ter de
se mudar sempre é sinal de despejos por meio de liminares judiciais, de manobras dos órgãos
públicos, de violência e ameaças de latifundiários. Nessa ótica, essa aparente desorganização
“com todo aquele amontoado de ‘buchos’ como eles chamavam, eram crianças chorando era
mulher dando de mamar as crianças ou ajeitando um abrigo para os mesmos descansar” é um
movimento de continuação e de resistência da luta pela terra e pela reforma agrária. Importa
também destacarmos que, embora a chegada ao acampamento parecesse uma desorganização,
o discurso do acadêmico afirma que, enquanto as pessoas chegam, uma equipe de
organizadores já está na área para coordenar as ações de construção de barracos e de
segurança em pontos estratégicos, o que demonstra que estar em um acampamento pode ser
um risco à vida, além de mostrar que o MST organiza e apoia os trabalhadores rurais sem
terra nos acampamentos. Assim, é possível verificar que a voz dos latifundiários, que
empreendem ações violentas contra os acampados, é ouvida e refutada pelo discurso do sem
terra.
Também é um problema nos acampamentos a falta de infraestrutura, como água, o
que se evidencia no discurso de Maria de Fatima, que denuncia a falta de atenção do poder
público com a mínima infraestrutura possível para a sobrevivência de pessoas.
Observamos que os três primeiros excertos apresentam as dificuldades dos
acampados, mas não uma negação da identidade do campo, da vivência no acampamento. Isso
pode ser explicado pelo fato de os três terem raízes no campo, de modo que vivenciaram com
a família momentos de desilusão com a perda das terras, com a perda do emprego, com os
trabalhos temporários na cidade. Sendo assim, agora vislumbram a possibilidade de chegarem
à terra prometida, de prosperidade, de descanso, de sossego, onde a esperança se renova. As
dificuldades dos acampamentos, o mundo exterior, constituem a identidade desses estudantes
284
sem terra, por marcá-los como pessoas resistentes e como militantes de uma causa maior que
o sofrimento físico.
O discurso de Cristiane, no excerto 4, reflete experiências dos sem terra com relação
à luta pela reforma agrária. Nele o sujeito refere-se ao dia em que conhece um acampamento.
Mesmo contrariada, por considerar que os acampamentos burlam a lei em busca de terra, e
que ela pode ser confundida com um deles e ser considerada “desordeira e desocupada”,
Cristiane aceita conhecer o lugar. Esse discurso traz para cena as vozes cristalizadas por parte
da sociedade, dos latifundiários, do governo conservador que consideram os sem terra como
pessoas que quebram a ordem pública. Esse é um discurso antigo na sociedade brasileira,
como vimos no primeiro capítulo, quando políticos conservadores e a Igreja Católica de linha
conservadora combatem as lutas por terra no Brasil, comparando os camponeses a
revolucionários, agitadores e pecadores, os quais querem burlar a lei divina do corpo místico
de Cristo, como também a ordem nacional. Esse discurso cristaliza-se na sociedade brasileira,
de modo que qualquer tipo de manifestação e de luta por direitos são vistos como ações de
desordem aos olhos da elite conservadora.
No entanto, “ao descer do ônibus e identificar-se na guarita”, essa expectativa do
sujeito é quebrada, já que visualiza o oposto ao que dito a respeito dos sem terra. Ela percebe
“que de local antes habitado por bois agora germinava trabalho”. O discurso apresenta a
palavra ubíqua socialmente “bois”, pois, nesta interação, ela aparece no sentido de bem de
capital, como bem que produz riqueza para poucas pessoas. Assim, o discurso refuta essa voz
capitalista que faz da imensidão do pasto para gado uma propriedade de uma pessoa. Na visão
bakhtiniana, a palavra ideológica boi é processada na consciência social e não pertence a
nenhum lugar específico, porém circula entre as várias consciências existentes, que interagem
discursivamente. O sujeito viu, ao entrar no acampamento, um lugar tomado por uma horta
que abasteceria várias famílias, o que contraria o sentido de terra como propriedade de uma
pessoa. O acampamento, no caso dentro de uma fazenda, ao apresentar ao sujeito uma nova
realidade, apresenta uma possibilidade real de transformação daquilo que era de
um/proprietário em algo que passaria para muitos/trabalhadores rurais sem terra. Nessa
perspectiva, a identidade e o mundo exterior se entrelaçam, dialogam e se constituem. O
mundo visto pela assentada é uma resposta ao preconceito e às crenças acerca do que é ser
acampado sem terra. Para muitos, como era para Cristiane, um acampamento sem terra é lugar
de “desordem” e de “pessoas desocupadas”, mas o fato de se ver uma fazenda antes destinada
somente à criação de gado agora produzir alimentos para muitos influencia a identidade antes
contrária às práticas de ocupação e de acampamento dos sem terra. É pela interação com o
285
mundo do acampamento e, assim, pela ação do outro que a identidade de uma pessoa da
cidade, preconceituosa e fechada em si passa a ser constituída como sem terra.
A negação da vida no acampamento e da condição de sem terra também é registrada
por Diego, ao mostrar sua indignação em ter de ficar no acampamento com a família. Trata-se
de uma criança de 12 anos de idade, a qual nunca havia entrado em um acampamento e que
não tinha raízes no campo. Esse discurso também traz a voz cristalizada do preconceito da
sociedade com os trabalhadores sem terra, além de uma voz que também tem preconceito com
o homem do campo, sempre registrado pela sociedade brasileira como incapaz, ignorante e
passivo. No entanto, essa visão do sujeito é quebrada com a sua ida à escola do acampamento.
Lá ele conhece uma nova forma de ensino, o que o coloca como um sujeito em formação.
Diferentemente das experiências vividas nas escolas urbanas com as dificuldades e
reprovações, Diego muda “de forma esmagadora” sua maneira de pensar os motivos pelos
quais aquelas pessoas estão ali naquelas condições.
Podemos perceber que os discursos de Cristiane e Diego apresentam visões de
pessoas que entraram no universo do campo e da luta pela terra naquele momento, carregando
consigo visões cristalizadas de preconceito, pois não tinham origem na terra, como outros
companheiros. Seus discursos ecoam vozes de uma sociedade dominante que vê os sem terras
como “pessoas desocupadas” e “desordeiras” por questionarem o sistema capitalista,
individualista. Evidenciam o preconceito com relação aos questionadores do sistema já
presente nos discursos dos políticos conservadores e em alas conservadoras da Igreja Católica,
como a TFP, e, também, em Associações Rurais, demonstrando que os discursos do passado
não se estagnaram, mas que estão vivos e justificam ainda práticas de preconceito. O combate
ao preconceito e a resposta a uma sociedade que vê negativamente as ações dos sem terra
constituem a identidade desses acadêmicos que são atingidos por uma ação responsiva que
mostra que sem terra planta, sem terra trabalha e sem terra estuda. É por meio da vivência no
acampamento e da entrada na luta pela terra, que se envolvem em movimentos sociais rurais,
passando a colaborar para formação de outros membros dos movimentos, identificando-se
cada vez mais com a causa e com a identidade sem terra.
Assim, há uma outra voz, que ecoa nesse discurso, aquela que diz que sem terra não
sabe trabalhar na terra, são oportunistas e só querem a terra para depois vendê-las ou trocá-las.
A resposta a esses discursos mostra que a identificação com a causa, com a luta, com os
desafios, com a formação política e técnica fazem com que pessoas que não tinham origem na
terra passassem a lutar por ela, pois, assim, podem sair da opressão e da exclusão da cidade e
da exploração do trabalho feita nas fábricas, nas construções e nos lugares onde trabalham.
286
Nessa direção, os discursos analisados mostram o que é ser Sem Terra. É escolher viver uma
luta, não só por terra, mas também por dignidade, por oportunidades e por direitos sempre
negados por governos conservadores e seus aliados. Percebemos, pelo viés bakhtiniano, que
nenhum enunciado é um fim em si mesmo, mas pertence a uma rede de enunciados, que é
infinita e trata-se de um encontro entre pontos de vista. A relação que se estabelece não é a de
um eu para si mesmo, mas é de um eu para o outro, o que mostra o movimento dialógico do
discurso. Como aponta Bakhtin (2011), o diálogo não depende do eu, mas é totalmente
dependente do outro, que constitui o Eu à medida que a interação dialógica ocorre.
A constituição do discurso também se verifica pela polifonia que instaurada de forma
consonante à posição ideológica do sujeito enunciador Maria Aparecida. Essa outra voz trata-
se do lema de 1984 do MST: “Terra não se ganha, terra se conquista”. Conforme Oliveira
(2001), esse é o segundo lema do Movimento, entendido como uma resposta à resistência ao
acesso à terra encontrada pelos militantes naquele momento. Percebemos também outra voz, a
da Igreja Católica, por meio da Teologia da Libertação. O idealizador da Teologia da
Libertação, o religioso Gutiérrez (1973), defendia a eliminação da propriedade privada do
contexto da produção, pilares marxistas que combatem a sociedade do capital e os conflitos
de classe, pois ela representa a apropriação da terra por poucos, dando origem a uma divisão
da sociedade em classes, em que a maior, a dos trabalhadores, é explorada em favor da menor,
os proprietários.
Motivada pelos princípios sociais, em 1980, a Campanha da Fraternidade refletiu
acerca do tema: “Terra de Deus, terra de irmãos”, o que evidencia uma tomada de posição da
Igreja pelas lutas sociais. É nesse contexto que nasce o MST, oficialmente em 1980. Por isso,
muito do defendido pela Teologia da Libertação e posto em prática pelas CEBs e CPT faz
parte das posições ideológicas do MST. No entanto, a partir da década de 1990, o movimento
da Teologia da Libertação encontra resistência dos setores conservadores da Igreja, o que a
faz recuar em suas atuações políticas. A partir de então, o que se vê são participações
individuais de religiosos na luta pela reforma agrária e o avanço do MST em suas lutas.
Nessa perspectiva, ouvimos também a voz da Bíblia, em que, já no Antigo
Testamento, no livro de Levítico (25: 23), Deus diz: “A terra não se venderá para sempre,
porque a terra é minha”. Como vimos no capítulo II, a voz da Bíblia enuncia que a terra não
pertence aos homens, mas a Deus. Por essa perspectiva, renuncia-se à propriedade particular,
defendendo a divisão da terra entre os “filhos de Deus”. Daí a premissa de se viver
coletivamente, usufruindo da terra como um bem “sagrado”, de onde se tira o sustento de
todos os filhos de forma igual e sem a exploração dessa terra com o que pode deteriorá-la.
287
A identidade do sujeito, como postula Bakhtin, é constituída pela linguagem e
construída pelo outro, já que está em diálogo com vozes antecessoras – MST, Teologia da
Libertação, CEBs, CPT, Bíblia. Portanto, é constituída de outras vozes que se sobrepõem
simultânea e independentemente, mas estão relacionadas de forma consoante. Apreendemos
também que o sujeito constitui-se no momento da enunciação, por ser aí que o locutor
construirá o diálogo com os outros da cadeia do já dito, os outros interlocutores e com tudo o
que esses representam.
Ter um lote, entrar no assentamento representa para os trabalhadores sem terra a
conquista da terra prometida, assim como o encontro com o sossego. Porém, a conquista do
lote, por meio da reforma agrária, nem sempre traz sossego, mas sim outras dificuldades,
como escassez de infraestrutura e de apoio técnico, terras impróprias para o cultivo, descaso
dos órgãos públicos, falta de crédito. Problemas como esses farão com que a luta somente se
amplie, mesmo estando no tão sonhado lote, como demonstram os relatos a seguir:
(1) Depois de morar três anos nos no acampamento, surgiram 10 vagas no pré-
assentamento onde o INCRA [...]. Pensei que tudo estava resolvido, pois afinal
estava dentro da terra desejada, mas a luta estava apenas começando [...].
Somos esquecidos pelos governantes e nos falta assistência básica em tudo:
saúde, educação, moradia, transporte, etc. Estamos assentados há três anos e
não conseguimos produzir nem para nossa subsistência, pois a terra precisa ser
corrigida pelos longos anos de maus tratos e os recursos que nos foram
prometidos, financiam o agronegócio e não a agricultura familiar. (Ivanilda)
(2) A maior parte desse grupo recebeu terras fracas, dependendo de correção
(adubação). Há falhas na política de assentamentos. O PRONAF não analisa a
terra de acordo com sua carência, pois o mesmo financiamento é igual para
todos independente da qualidade da terra, sem correção da mesma não tem
como produzir. Na preparação da terra o maquinário chega fora de época do
plantio. Já perdemos várias lavouras como: milho, feijão, três anos seguidos,
sem falar no maracujá e na mamona que induzidos por determinados técnicos
do IDATERRA na época, depois de colhida os compradores sumiram e por
falta de mercado, perdemos o produto, como o custeio que foi feito para o
plantio de mandioca, que por falta de visita do técnico também do
IDATERRA, para aprovar o pró-agro, perdemos a lavoura sem conseguir
pagar o banco. Com essas perdas, tivemos que trabalhar fora do assentamento,
para tentar pagar as dívidas obtidas pelas perdas freqüentes. (Alice).
(3) Ao adentrar o assentamento Colônia Conceição, uma nova realidade não
menos desoladora, surge diante dos meus olhos, o território de mata densa,
com caminhos estreitos, cortados por natureza bruta. Esperava eu ser um lugar
pelo menos com algumas clareiras para o cultivo dos grãos, onde produzir os
alimentos? Onde tomar banho nos dias de calor? O córrego que cortava o sitio
da nossa família, a água não era cristalina, a casa era um pequeno barraco de
lona. (Fabio)
288
(4) Não podendo esconder a realidade gritante, da falta de água do assentamento,
realidade contraditória e até absurda a quem entende toda a região como
pantaneira, ou seja, alagada. A água que existe e é fornecida a comunidade, é
salgada ou (salobra) comprovadamente que faz mal a saúde, e esta ainda não
chega a todos, a partes da comunidade que sofrem de uma forma absurda com
essa realidade, por mais que a comunidade se organiza, não conseguem de
forma “ideal” ajudar a todos. (Jucélia)
O acampamento é um momento de prova para os trabalhadores sem terra por
apresentar diferentes dificuldades. Sendo assim, o sorteio do lote e a entrada na terra tão
esperada são momentos de renovação da esperança já desgastada nos anos de acampamento.
Isso fica evidente no discurso de Ivanilda, que, depois de três anos acampada, vê a
possibilidade de mudança de condição social ao entrar no assentamento. Ela pensa “que tudo
estava resolvido”, mas a entrada na terra mostra que “a luta estava apenas começando”, uma
vez que há falta de assistência básica: “saúde, educação, moradia, transporte”. Nesse discurso,
observamos a presença de uma voz opositora que afirma que os sem terra tem uma vida boa,
pois “pegaram” terra de graça. Nessa direção, o discurso refuta essa afirmação, ao mostrar que
as dificuldades no assentamento não cessam, são outras, o que faz com que a luta continue.
Também, percebemos uma denuncia a respeito do descaso de órgãos públicos com os
assentados, o que se evidencia na referência aos “três anos” de entrada na terra e no fato de os
assentados ainda terem de trabalhar fora para se manterem. Ainda é possível percebermos
que os assentados sabem que os governos “financiam o agronegócio e não a agricultura
familiar”. Ouvimos uma voz política do Brasil, pois, como vimos, no Governo Militar o
interesse está nos latifúndios e na produção de grãos a fim de serem exportados, uma vez que
a venda gera lucros para o governo e para a classe dos grandes produtores rurais. Com isso, o
pequeno agricultor, aquele que se dedica a plantar alimentos para os brasileiros consumirem,
vê-se desamparado quanto aos investimentos governamentais, o que os leva a contrair dívidas
nos bancos para financiar as lavouras. Pelo olhar de Bakhtin, entendemos que o discurso de
Ivanilda faz parte do fluxo da história da terra no Brasil ao se posicionar como pequena
agricultora e ao retomar a voz de governos passados que já privilegiam os grandes
latifundiários. Com isso, podemos inferir uma das razões que faz com que um país continental
tivesse e tenha pessoas ainda passando fome. O diálogo com a voz do Governo Militar
demonstra que o discurso não pertence ao eu, mas é tomado dos discursos dos outros,
respondendo também a eles. Por isso, no discurso ecoam, ao mesmo tempo, duas vozes, a voz
dos sujeitos acadêmicos sem terra e a voz de seus opositores, o Governo Militar.
289
A denúncia acerca das relações entre governo e assentados também é feita por Alice,
ao mostrar que as terras dos assentamentos não são vistoriadas e analisadas antes da compra
pelo órgão competente, o que resulta em assentamentos com terras fracas para o plantio,
necessitando de grande investimento para corrigi-las e, assim, fazê-las produzir. Também
percebemos que o esforço feito pelos assentados pode ser perdido pela falta de assistência
técnica e pela escassez de instruções de plantio e de comercialização dos produtos. Além
disso, os assentados podem encontrar terras ainda não apropriadas para o plantio, como
demonstra o discurso de Fabio, o qual pensa que, depois dos anos de acampamento e do
sofrimento vivido, pode, agora, no assentamento plantar e colher. O que ele vê, inicialmente,
é uma terra ainda com “mata densa, com caminhos estreitos”, impossibilitando que os
assentados cheguem e já comecem a plantar para viver.
Um dos fatores negativos recorrentes nos relatos dos assentados é a falta de água
potável. No caso de Fabio, há o relato de que a água não é cristalina, sendo imprópria para
beber. Já Jucélia mostra que água existente no assentamento é salobra. São realidades
impensáveis em um estado como Mato Grosso do Sul e, principalmente, em uma região como
a do Pantanal, a qual apresenta como característica específica o alagamento, a grande
quantidade de água. Mas o Pantanal tem áreas de água salobra. Observamos uma denúncia
acerca da falta daquilo que é mais urgente ao ser humano, a sobrevivência, como também a
falta de análise da terra e das condições de plantio por parte do órgão que compra as terras, no
caso o Incra. Embora as famílias organizem-se e tenham apoio dos movimentos sociais, a
realidade não é a “ideal”.
Inferimos pelo discurso que a exclusão das análises da terra antes da compra pelos
órgãos competentes resulta em assentamentos com terras esgotadas pelo uso abusivo e longo
pelos latifundiários, com água imprópria para a saúde do ser humano e com matas densas
ainda a serem derrubadas. Podemos pensar que os discursos denunciam um jogo imobiliário
traçado entre órgãos públicos e latifundiários, pois terras que dificilmente seriam vendidas a
outros fazendeiros, são adquiridas pelo governo federal, a fim de assentar trabalhadores sem
terra. Percebemos que é recorrente entre os discursos o fator denúncia dos órgãos públicos
pela falta de infraestrutura, de investimentos para a plantação, de assistência técnica; há a
denúncia, ainda, da aquisição de dívidas com o banco.
As vozes que ecoam na história da terra no Brasil e em Mato Grosso do Sul são as
vozes de um governo que promete a assistência, mas não a efetiva, a de órgãos técnicos que
não cumprem com a obrigação de dar assistência aos pequenos produtores e, também, a de
uma sociedade que naturaliza um discurso de que sem terra não trabalha, de que sem terra não
290
produz, o que leva a pensar a razão de um sem terra ter seu lote. Os discursos analisados
mostram que os problemas enfrentados pelos assentados são coletivos e recorrentes em Mato
Grosso do Sul. Além disso, eles estão relacionados aos problemas já enfrentados pelos
camponeses brasileiros que se veem invisíveis perante aos órgãos públicos de fomento à
produção agrícola. Historicamente, percebemos que leis e projetos políticos têm apresentado a
terra como um bem de capital poderoso, privilegiando governos conservadores e
latifundiários. Dessa forma, o fazendeiro que tiver mais terra tem mais poder, e com isso pode
financiar políticos para criarem leis para seu beneficio, mas também pode se favorecer de
políticas públicas destinadas aos trabalhadores sem terra, vendendo terras que nunca são
compradas por outros.
Percebemos que a identidade dos estudantes sem terra é marcada pela saga que não
cessa com a entrada no lote, pois, nesse momento, a eles são apresentadas outras demandas. O
mundo exterior e a sua organização alicerçada em padrões capitalistas de produção interagem
com esses estudantes que são trabalhadores rurais e que querem viver na/da terra. Essa
ideologia marca a identidade desses estudantes e mostra quem eles são – filhos de
camponeses, trabalhadores rurais sem terra, militantes, educadores –, de modo que a ideologia
capitalista ao atingi-los é refratada e recusada, tornando-se um instrumento de combate. Para
os graduandos sem terra, estar na terra é existência, é dignidade, negadas pelo descaso dos
órgãos públicos incumbidos de realizar ações para viabilizar a vivência na terra. Os discursos
mostram, ainda, que a identidade dos graduandos sem terra se estabelece na alteridade com o
outro, também o opositor, o governo e os órgãos públicos que os abandonam nos lotes sem
infraestrutura e sem crédito para investir na terra. Como afirmam Moura e Miotello (2014), o
outro é a outra pessoa, mas também é o mundo, as instituições, ou seja, tudo o que está fora
do eu e com ele tem relação. Essa visão aponta, portanto, que a alteridade é o eixo de
constituição da identidade do eu acadêmico sem terra, uma vez que o eu é reconhecido pelo
Outro: “[...] captamos os reflexos da nossa vida no plano da consciência dos outros”
(BAKHTIN, 2011, p. 14).
A entrada na Universidade também é um assunto recorrente entre os graduandos sem
terra, que viram uma oportunidade de concretizar um sonho seu e de seus familiares. Seus
discursos revelam frustrações na reprovação em outros vestibulares, dificuldades financeiras
para conseguir fazer a prova do vestibular da UFGD, como também avaliações da
metodologia utilizada em aulas do curso.
291
(1) Em 2007 conclui meus estudos na cidade terminando o ensino médio, [tentei]
duas vezes o vestibular na UFMS de Campo Grande e me frustrando, com o
meu insucesso. Me senti desestimulado incapaz, parando por meio ano meus
estudos. Porém um dia após ter ido a FETAGRI meu tio Edson chega e fala
para mim e seu filho Wellyngtom, sobre um tal de Pronera para pessoas
oriundas do campo, sendo ministrado o curso de Ciências Sociais na UFGD de
Dourados, logo ao sabemos disto tanto eu quanto meu primo decidimos fazer o
vestibular para o curso de Ciências Sociais, então fomos para Dourados, não
tínhamos quase dinheiro algum e não conhecíamos a cidade (Diego)
(2) Fiquei sabendo do vestibular por meu irmão quando eu ainda morava no SÃO
GABRIEL, fiquei muito aflita porque não tinha como fazer minha inscrição,
passou alguns dias tentando emprestar uma quantia em dinheiro pra poder me
inscrever, mas não consegui ninguém que me emprestasse e a solução foi
vender um casal de cavalos dos meus filhos, mas DEUS foi tão bom que
consegui passar no vestibular e assim entrar numa faculdade federal de tão alto
nível e hoje eu me orgulho de dizer estou me graduando na UFGD. (Sônia)
(3) chegou o final de semana e com ele o vestibular, nós chegamos em Dourados
no sábado à tarde, nos hospedamos no SINTED, e o nervosismo e a
preocupação tomou conta de todos, estávamos em vinte e sete pessoas.
(Elisandra)
(4) Há oito anos fora da sala de aula, confesso que não estava preparado para
entrar em uma Universidade. No entanto, o vestibular foi feito e elaborado
para pessoas realmente assentadas, que vivem e conhecem a realidade agrária
e suas lutas. (Alessandro)
(5) Ao entrar na UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados) em Julho de
2008 no dia da matricula senti como se estivesse ganho uma medalha, estava
eu ingressando na melhor faculdade de Mato Grosso do Sul. [...] Nunca irei
esquecer da primeira aula que superou as minhas expectativas eu imaginava
mais uma aula chata de português na minha vida, e no final queria mais.
(Cristiano)
(6) Com o inicio do curso em julho de 2008, fui logo surpreendido com a
metodologia aplicada pelas professoras de língua portuguesa. A forma de
trabalhar com os alunos através de diálogos e de uma dinâmica diferente do
comum no ensino médio me impressionou muito, a simplicidade e empenho
dos professores em transmitir seu conhecimento aos acadêmicos é realmente
importante para uma boa formação. Essa forma de trabalhar seguiu com todos
os professores, em todas as disciplinas que já estudei. (Alessandro)
(7) [...] o Curso de Ciências Sociais contribuiu e muito com meu trabalho na
coordenação, e esse foi um dos objetivos com que iniciei esse curso, eu
acredito em uma educação libertadora, que contribui para a formação do
sujeito, enquanto ser social que constrói e transforma o meio em que vive.
(Vilma)
(8) Através dos cursos abertos para pessoas da área rural, aumenta a possibilidade
de os jovens se sentirem valorizados e terem vontade de permanecer no
campo. (Luci Dalva)
292
Ao tratar do sonho de entrar na universidade, o discurso de Diego faz ecoar um
sentimento de frustação por ter feito dois vestibulares na Universidade Federal de Mato
Grosso Sul (UFMS) e não ter obtido êxito. Mesmo terminando o Ensino Médio na cidade, não
conseguiu entrar na universidade. Inferimos que esse fato decorra das dificuldades que um
adolescente acampado/assentado passa para permanecer na escola. São mudanças de escola,
reprovações, desistência, professores não habilitados. Não passar no vestibular é mais uma
frustação de uma pessoa do campo. Por isso, ele se interessa em prestar o vestibular para o
curso de Ciências Sociais, especificamente, realizado para pessoas de assentamentos. Porém,
ele não tem “quase dinheiro algum e não conhecíamos a cidade”, mesmo assim conseguiu
chegar a Dourados. Como podemos perceber, estar no assentamento não significa estar bem
financeiramente, como discutimos na macrocategoria assentamento. Isso ocorre do fato de
que, muitas vezes, os assentados não dispõem de crédito para investirem na agricultura ou na
pecuária. É o que acontece com Sônia que, por não ter dinheiro, tenta emprestar de outras
pessoas sem êxito. A solução é “vender um casal de cavalos” dos seus filhos. Sônia investe o
que os filhos têm para poder fazer a inscrição e chegar a Dourados para realizar a prova. Ela
consegue passar e se sente orgulhosa por estar estudando em uma universidade pública.
Vencer as dificuldades financeiras e chegar a Dourados foram apenas alguns dos
desafios enfrentados pelos graduandos, pois precisaram lidar ainda com “o nervosismo e a
preocupação” (Elisandra) e, também, com a prova. Mas como relatam “o vestibular foi feito e
elaborado para pessoas realmente assentadas, que vivem e conhecem a realidade agrária e
suas lutas” (Alessandro). Desse modo, aqueles que tinham maior vivência com os
movimentos sociais e com a luta pela terra consideram que a prova não tão difícil.
A grande maioria dos graduandos está há muito tempo fora da sala de aula, de modo
que ser aprovado na universidade significa ganhar “uma medalha”, pois eles valorizam o fato
de estarem em uma universidade pública, segundo Cristiano, a “melhor faculdade de Mato
Grosso do Sul”. Diante das experiências vivenciadas na escola, eles esperam que as aulas
sejam como as de suas infâncias, as mais tradicionais possíveis. Por isso, surpreendem-se com
a primeira disciplina ofertada pelo curso Língua Portuguesa, que, conforme Cristiano, não é
“mais uma aula chata de português na minha vida”, resultado de “A forma de trabalhar com
os alunos através de diálogos e de uma dinâmica diferente do comum no ensino médio”,
conforme Alessandro. O que pode ter impressionado os graduandos é o fato de não decorarem
verbos e fazerem análises sintáticas. Como vimos no capítulo III, o estudo da linguagem é
explorado em seus diferentes usos, como poesias, músicas, contos, notícias, filmes, causos,
sempre valorizando aspectos da memória e os conhecimentos que eles já tinham.
293
Além de ser uma realização pessoal entrar na universidade, no curso de Ciências
Sociais, os graduandos enxergaram nessa conquista uma contribuição para seus trabalhos nos
assentamentos, como no caso de Vilma, ao analisar que “o Curso de Ciências Sociais
contribuiu e muito com meu trabalho na coordenação”. Assim, ecoa a voz dos objetivos do
curso que visa a fortalecer “[...] a educação e a possibilidade de ação qualificada nas áreas de
Reforma Agrária com conhecimentos teórico-metodológicos voltados às especificidades”,
como também contribuir para o “senso de compromisso social” (UFGD, 2007, p. 21).
Ademais, os graduandos analisam de forma mais ampla que o oferecimento de cursos
como o de licenciatura em Ciências Sociais, “abertos para pessoas da área rural, aumenta a
possibilidade de os jovens se sentirem valorizados e terem vontade de permanecer no campo”
(Luci Dalva). Esse discurso também dialoga com a voz do Projeto Político Pedagógico
(UFGD, 2007), ao anunciar que procura construir um perfil de profissionais que esteja
relacionado às necessidades concretas do campo, tendo em vista suas especificidades e
diversidades socioculturais. Os discursos revelam que os objetivos do curso foram
contemplados na prática de sala de aula na Universidade, já que os conteúdos e a metodologia
estão em consonância com os anseios dos graduandos sem terra e de seus objetivos de vida
enquanto estudantes, militantes e futuros professores.
A última macrocategoria de assuntos analisa o significado de ser professor do campo
para os acadêmicos sem terra do curso de Ciências Sociais da UFGD. Os excertos retratam o
desejo de ser professor, de contribuir para a coletividade e para o crescimento político e
intelectual das pessoas dos assentamentos. Eles mostram que ser professor do campo significa
desempenhar funções além daquelas realizadas por professores de escolas urbanas, como
veremos a seguir:
(1) As minhas expectativas para o futuro e bastante promissora, espero me formar
como um professor de ciência sociais e podendo assim ajudar a minha
comunidade, e ser um educador do campo, sendo assim visando a nossa
realidade e mostrar para todos a importância que um educador do campo que
sabe os problemas do local e principalmente ama o que faz [...]. (Adriano)
(2) [...] agora estou com novas perspectivas de mudança para melhor já que com
um curso superior fica mais fácil me relacionar com outras pessoas e ajudá-las,
e vou atuar como educador do campo e ainda quero fazer um mestrado, um
doutorado. (Andriever)
(3) Aprendeu durante o percurso das aulas que formar-se seria apenas um detalhe
e que o mais importante para um educador é saber que ele faz a diferença e
tem a responsabilidade de dar os nutrientes iniciais para que os educandos se
desenvolvam e possam escolher de que alimentos querem se alimentar nas
294
inúmeras árvores de conhecimentos existentes e assim florir e dar frutos
multiplicando as árvores. (Cristiane)
(4) Embora passando dos 40 anos, estou me organizando para poder cursar outra
faculdade, para que possa me possibilitar uma melhor preparação e um
acúmulo de experiência, buscando contribuir com a formação de outros
indivíduos. (Eder)
(5) Edmilson e família contribui no Centro Formação Geraldo Garcia (CEPEGE)
no assentamento no qual é assentado á 8 anos. O mesmo tem muitos planos
para sua vida e pretende aprofundar nos estudos e com eles desenvolver
alguma atividade de pesquisa que venha a contribuir para a melhoria das
famílias assentadas e acampadas. (Edmilson)
(6) Temos necessidade urgente de mudanças e formações de novas mentalidades
que possam ajudar a enfrentar os problemas atuais enfrentados nos
assentamentos exercendo o papel não só de educadora, mas de uma pessoa que
sonha com uma sociedade mais justa e igualitária. (Ivanilda)
Os discursos dos acadêmicos sem terra da UFGD demonstram o que é ser educador
do campo. Para eles, é “ajudar a minha comunidade” (Adriano), é relacionar-se bem com
outras pessoas, é “contribuir para a melhoria das famílias assentadas e acampadas”
(Edmilson) e, também, para “a formação de outros indivíduos” (Eder). Notamos que ser
educador do campo está relacionado ao coletivo, a uma contribuição não só para o indivíduo
que vai à Universidade, mas também para aqueles que ficaram nos assentamentos e
acampamentos e são a marca da luta pela terra. Por isso, o discurso de Cristiane aponta que
“formar-se seria apenas um detalhe e que o mais importante para um educador é saber que ele
faz a diferença”. Essa afirmação leva-nos a pensar que o educador do campo não se forma
apenas com conteúdo ou se é educador do campo por ter um diploma. Ser educador do
campo, nessa perspectiva apresentada pelos acadêmicos, é fazer a diferença que, no
assentamento, é pensar no coletivo, na luta daqueles que ainda estão sob a lona preta, é pensar
em uma escola que fuja do modelo de educação rural vivenciado pelos assentados durante
suas infâncias, é pensar nos conhecimentos peculiares das pessoas do campo, os quais se
marcam pela ancestralidade e pela tradição. Nesse contexto, a voz da educação rural é ouvida
e refutada pelos discursos dos sujeitos acadêmicos, por ser um modelo que se mostra como
um agente destruidor da cultura do campo, não contribuindo em nada para que os filhos de
camponeses continuassem no campo e nele vivesse com dignidade.
O educador do campo é aquele que faz parte da comunidade, sabendo, assim, dos
caminhos percorridos pelas famílias assentadas para chegar à terra sonhada. É aquele que
conhece a dinâmica do campo, os tempos específicos quando toda comunidade se reúne para
plantar e depois para colher. Ser um educador do campo é ser um trabalhador rural sem terra
295
e, por isso, conseguir entender um calendário diferenciado que possa atender aos tempos de
cultivo da terra, o que necessita as crianças. Com a visão de uma educação para transformação
social, o professor consegue apresentar “nutrientes iniciais para que os educandos se
desenvolvam” em diferentes espaços: escola, movimentos sociais, partidos políticos,
universidades, pois a educação do campo abrange a formação total da pessoa e não apenas
conteúdista, pensamento que dialoga com a voz de Marx, ao pensar na formação onilateral,
que se refere a uma práxis educativa revolucionária, a qual congrega diversas esferas da vida
humana que o sistema capitalista tenta separar do homem.
Percebemos que, ao apresentarem o professor do campo como aquele que visa à
realidade de ser um trabalhador rural sem terra, que de acampado passa a ser assentado, uma
voz histórica ecoa retomando as dificuldades enfrentadas pelas escolas do campo, quando
professores sem vínculo com o assentamento foram destinados por Prefeituras ou Estados
para assumirem disciplinas, o que pode ocasionar um ensino desvinculado com a luta pela
terra e, inclusive, desmerecê-la. Por isso, é fundamental mostrar para a sociedade, para os
governos locais e para as famílias assentadas a “importância que um educador do campo”
(Adriano) tem, sendo também fundamental mostrar à sociedade a importância social e
educacional que tem um curso como o de licenciatura em Ciências Sociais para assentados. A
educação tem um papel maior para os acadêmicos pelo fato de ela proporcionar mudanças e
formar novas mentalidades, contribuindo para a transformação social, para uma vida mais
digna, para uma sociedade mais justa e igualitária. Há, no discurso de Ivanilda, a voz do MST,
o qual defende que a educação, para o Movimento, é um processo político, que está vinculado
organicamente aos processos sociais, que pretendem transformar a sociedade atual e construir
uma nova ordem social, cujos pilares sejam a justiça social, a radicalidade democrática e os
valores humanistas e socialistas (MST, Caderno de Educação n. 8, 1996).
Podemos notar que a identidade do futuro professor do campo não é constituída
apenas por seus anseios e sonhos, mas pelos anseios e necessidades de um grupo social, os
trabalhadores rurais sem terra. É como Bakhtin (2011) elucida: o eu não é constituído por ele
mesmo, mas pelo outro. Notamos, assim, o encontro do eu/graduando sem terra com o
outro/trabalhador rural sem terra. Nesse encontro, o outro completa o eu, por este ser um
sujeito sempre em construção.
A identidade dos graduandos sem terra é, então, sempre coletiva, pois o ponto de
partida de sua constituição é sempre o outro, não só os trabalhadores rurais sem terra,
militantes, membros da Igreja Católica (Teologia da Libertação, das CEBS), movimentos
sociais rurais, como MST e CPT, os(as) companheiros(as), mas também pelos adversários
296
construídos na disputa pela terra no Brasil, como governos de direita, associações rurais,
órgãos públicos e latifundiários. Logo, os acadêmicos sem terra são sujeitos fruto de um
fenômeno socioideológico. Eles são sujeitos tão sociais, a ponto de se constituírem fora de si
mesmos, pela ação do outro no eu-acadêmico.
As análises, aqui realizadas, evidenciam que o trabalho com o gênero discursivo
relato pessoal é uma oportunidade para relacionar aspectos da língua viva à constituição dos
discursos. Percebemos que os gêneros são fenômenos históricos, profundamente associados à
vida cultural e social dos enunciadores acadêmicos sem terra (MARCUSCHI, 2002).
O gênero relato pessoal nos leva à identidade dos sujeitos enunciadores, a qual é
constituída na alteridade, ou seja, na relação dialógica com o outro. Esse outro compõe o
passado dos graduandos sem terra, fazem parte de suas recordações e de sua constituição
como sujeito social: “[...] Na recordação que temos habitualmente de nosso passado, esse
outro é muito ativo e marca o tom dos valores em que se efetua a evocação de si mesmo (nas
recordações da infância, é a mãe incorporada a nós mesmos)” (BAKHTIN, 1997, p. 167).
O gênero relato pessoal resgata, portanto, eventos do passado e, ainda, possibilita,
por meio das condições do presente, avaliar e valorar experiências vivenciadas anteriormente.
O sujeito social emerge no uso da linguagem viva e nos discursos, o que nos possibilita uma
compreensão do homem social.
Os fatos foram rememorados com o olhar do graduando sem terra, que é mãe, pai,
filho e filha de camponeses, militante de um movimento social, católico (como a maioria se
mostra), professor, assentado. Isso é possível devido à situação de comunicação instaurada, às
finalidades apresentadas, à indicação de possíveis interlocutores.
Trazer à tona o vivido, tema dos relatos pessoais, rememorar um passado nem
sempre feliz – constituído de muitas perdas, conflitos, pressão, tensão, dificuldades e de
poucos momentos de alegria – é significativo para os sujeitos enunciadores, por possibilitar o
encontro entre passado e presente, como também por criar tendências de futuro: “[...] O
passado determina o presente de um modo criador, e juntamente com o presente, dá dimensão
ao futuro que ele predetermina. Atinge-se assim uma plenitude temporal que é sensível,
visível” (BAKHTIN, 1997, p. 253).
Além disso, o gênero oportuniza o encontro com o outro; o outro do passado e o
outro do presente. Os graduandos sem terra como sujeitos enunciadores dialogam com seus
interlocutores mais próximos, mais reais, professoras da disciplina. Do mesmo modo, também
se encontram com seus interlocutores não presentes diretamente na situação de produção, mas
297
que fazem parte do processo comunicativo e com os quais interagem dialogicamente, bem
como constituem suas identidades, como, por exemplo, seus companheiros de movimentos
sociais, familiares, religiosos, outros professores, como também seus adversários na luta pela
terra – latifundiários, governos conservadores, órgãos públicos –, pois, como argumenta
Bakhtin (2011, p. 301): “[...] “Um participante-interlocutor direto do diálogo cotidiano, pode
ser [...] os correligionários, os adversários e inimigos”.
Rememorar o vivido, nem sempre agradável, ser sujeito de sua própria escrita, ter o
outro como interlocutor faz aflorar emoções – possíveis ao gênero relato pessoal –, como
demonstram as palavras de Valdirene que chora ao terminar seu texto,
Professora, desculpe, mas é isso, a minha vida é cheia de vitórias e
derrotas como a de todos. Seguiremos, porque não podemos parar e
nem fraquejar, pois, muitos dependem de nós, como agora que nossa
história se misturou. E já estou chorando, escrevendo, falando de mim.
O movimento mexe com a nossa vida, talvez vire de cabeça pra baixo,
mas nos encontramos como sujeitos históricos e capazes de mudar o
nosso destino de servidão (Valdirene).
As palavras de Valdirene demonstram como a escolha do gênero relato pessoal é
primordial para alcançarmos a identidade dos acadêmicos sem terra, a qual está sempre sendo
constituída numa relação dialógica com os outros e, no caso dos trabalhadores rurais sem
terra, na tensão, na pressão, nos conflitos, nas dificuldades, mas também nas conquistas, na
coletividade, na solidariedade, em busca sempre da justiça social.
298
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No caminho percorrido na elaboração desta tese, propomo-nos, em um primeiro
movimento dialógico, trazer à tona vozes sócio-históricas constituintes da identidade dos
graduandos sem terra do curso de Ciências Sociais da UFGD no gênero discursivo relato
pessoal. As vozes sócio-históricas levantadas foram o ponto de partida para analisarmos a
tríade de signos ideológicos: terra, reforma agrária e educação do campo, herdeiros das
relações sócio-históricas entre grupos sociais antagônicos. A teoria de Bakhtin e de seu
Círculo leva-nos a perceber que a identidade dos referidos acadêmicos é constituída por vozes
que marcam a história da terra no Brasil desde quando ainda é Colônia de Portugal. Desse
modo, observamos que leis, decretos, regulamentos, sermões religiosos foram estratégias
políticas e judiciais utilizadas pelo governo em prol dos latifundiários, a fim de criarem
barreiras contra a justa distribuição de terras no Brasil. No entanto, vozes em apoio à reforma
agrária erguem-se em um movimento de resistência, demonstrando que os trabalhadores
rurais também têm suas estratégias de defesa e de pressão, como os acampamentos, as
manifestações em praça pública, marchas e romarias, as quais, em parte, são herdadas das
Ligas Camponesas e reelaboradas pelos movimentos sociais rurais. Por isso, não são vozes
unificantes, mas sim antagônicas, o que revela que a luta de classes se estabelece pela
linguagem.
A relação dialógica entre as vozes, que mostra um embate entre palavra e
contrapalavra, é percebida no gênero relato pessoal escrito pelos graduandos sem terra, nos
conduzindo a verificar que a identidade dos acadêmicos é construída na relação com o outro.
O outro é um elemento constante nos discursos do eu/graduando sem terra, o que evidência
que a identidade em si mesma não existe, pois eles representam diferentes papéis sociais que
se constituem por meio da linguagem e do outro. Entre esses papéis sociais estão o de mãe,
esposa, pai, esposo, filha, filho, estudante, militante, criança camponesa, trabalhador rural,
trabalhador rural sem terra, acadêmico, futuro professor, tudo isso cria a identidade. São
relações em que o outro é fundamental, pois os olhos do outro são como um espelho onde se
revela quem é o verdadeiro eu-graduando sem terra. É pelo olhar do outro que ele se vê, se
constitui, se avalia e se modifica.
Desse modo percebemos que o encontro com o outro é inevitável. Os outros
constituem os discursos e as identidades individual e coletiva dos acadêmicos sem terra, no
299
sentido de que vozes históricas, sociais e políticas ecoam em seus discursos. São as vozes da
Igreja Católica, das Ligas Camponesas, dos Movimentos Sociais, as quais são reafirmadas e
justificadas, servindo também de apoio às posições tomadas. Do mesmo modo, as vozes
opositoras também aparecem com as respostas, os questionamentos, as denúncias ao governo
federal, órgãos públicos, políticos conservadores, latifundiários e sociedade. Isso evidencia
que os discursos apresentados nos três primeiros capítulos são constitutivos dos discursos dos
acadêmicos sem terra do curso de Licenciatura em Ciências Sociais da UFGD, o que
demonstra que fazem parte da cadeia discursiva da terra no Brasil, da mesma forma que
fazem parte do discurso do presente acerca da reforma agrária e da educação do campo. O
estudo mostra que os signos terra, reforma agrária e educação do campo foram deixando de
significar uma realidade em si e passaram, na relação dialógica, a refletir e a refratar uma
outra realidade por serem ideológicos e por carregarem em si realidades múltiplas, ora
conflitantes, ora consensuais, o que evidencia os lugares por onde esses signos circularam e os
grupos sociais em que eles estão inseridos.
A compreensão dos signos ideológicos nos leva a perceber que, sob a perspectiva da
luta de classes, a classe dominante busca, por meio da linguagem, conferir aos signos
ideológicos terra, reforma agrária e educação do campo um aspecto inatingível e naturalizar
as diferenças de classe, silenciando, ocultando e abafando as contradições e a luta que se
constroem. O signo é, então, uma arena de luta, é o lugar de encontro de ideologias diferentes
e reflete que mesmo em uma sociedade que comunga de uma mesma comunidade semiótica, a
língua portuguesa, os confrontos existem e as ideologias contrárias se confrontam.
A recorrência das vozes analisadas mostra que se trata de um discurso coletivo de um
determinado grupo social – trabalhadores rurais sem terra –, de forma que constituem a
ideologia desse grupo social, a qual, portanto, é social e representada na/pela linguagem. Da
mesma forma, a ideologia dos grupos opositores também emerge, ao ser respondida,
repreendida, combatida, refutada. Logo, o gênero relato pessoal é fundamental para trazer à
tona o vivido pelos acadêmicos sem terra, bem como a avaliação desse vivido, as projeções
para o futuro, as quais são individuais, mas também são coletivas.
A presença de vozes conflitantes na constituição da identidade dos acadêmicos sem
terra também revela a função social do gênero relato pessoal. Trata-se de uma função social,
histórica e política, ao possibilitar aos sujeitos enunciadores rememorarem experiências
vividas, avaliarem ocorridos no plano pessoal, nos movimentos sociais, nas relações com as
diferentes instituições públicas e, sobretudo, julgarem o sistema capitalista e a exploração e
exclusão sofridas pelos trabalhadores rurais em decorrência desse sistema.
300
Percebemos, assim, que o trabalho realizado com o gênero relato pessoal atende às
propostas de ensino-aprendizagem de língua portuguesa, uma vez que observamos que aos
acadêmicos sem terra é possível desenvolver a competência comunicativa por meio do uso
concreto da linguagem, assim como enxergar que por traz de seus relatos há um sujeito
situado em um contexto específico e que suas escolhas linguísticas não são aleatórias, mas
carregam o objetivo de demonstrar seus pontos de vista, suas avaliações, sua ideologia,
mesmo que não tenham consciência disso. Além disso, o trabalho com o gênero demonstra
que o estilo e a organização são relevantes ao gênero relato pessoal não só por si mesmos,
mas por refletirem os sentidos da ideologia dos graduandos sem terra; da mesma forma, o
tema do gênero nos possibilita perceber os acentos valorativos quanto à percepção dos
sujeitos enunciadores ao que relata. Nessa perspectiva, o trabalho com o gênero relato pessoal
evidencia, ainda, que a preocupação com o ensino da escrita não deve estar somente no
produto em si, mas na sua relação com as valorizações e ideologias de quem escreve, levando-
se em conta o contexto sócio-histórico do qual faz parte.
As análises aqui empreendidas (vozes discordantes e consoantes à reforma agrária, o
PPP e os relatos pessoais) também marcam o encontro do pesquisador das Ciências Humanas
com o seu sujeito, os outros com quem dialoga. Em um movimento dialógico, a pesquisadora
voltou-se para o discurso e para o extraverbal, a fim de compreender os fatos sociais que
constituem os signos ideológicos e a identidade dos acadêmicos sem terra, passando a
também fazer parte desse movimento e a ser constituída por ele. Nesse encontro entre
diferentes vozes, trava-se uma luta com outras enunciações e com outras ideologias, mas o
trabalho de criação e de pesquisa possibilita inscrever a voz da pesquisadora no continuo da
história da terra, da reforma agrária e da educação do campo. A pesquisadora busca o outro, a
fim de que ele lhe dê respostas e caminhos para chegar aos seus objetivos, mas também se
coloca como o outro das vozes histórico-sociais analisadas. Algumas querem convencê-la,
outras objetivam levá-las a uma reflexão, outras a questionam e outras a respondem. É um
movimento dialógico do qual o pesquisador não pode se apartar, pois ele já faz parte do
processo, no mínimo, desde a entrega do projeto de pesquisa. Assim, esta pesquisa apresenta
esse processo de encontros entre sujeitos e seus outros, constituindo um novo contexto de
enunciação, o qual constrói um novo contexto dialógico, produzindo novos sentidos
(AMORIM, 2004).
Ademais, ao desenvolver e finalizar este percurso de pesquisa, especialmente, neste
momento histórico pelo qual nós, brasileiros, passamos, este estudo aponta caminhos para
entendermos as razões de hoje estarmos em um contexto social de perda de direitos e não de
301
conquistas e, consequentemente, de maior exploração e exclusão. As vozes, levantadas no
primeiro capítulo, as quais querem calar aqueles que lutam pela justa distribuição de terras no
Brasil, desde os índios, passando pelos foreiros das Ligas Camponesas e demais militantes
dos movimentos populares (Canudos, Contestado), chegando até os trabalhadores rurais sem
terra, hoje ainda ecoam no meio político e com tons fortes desenvolvem golpes contra a
população. Como vimos, isso é possível, porque, desde o Brasil Colônia, o opressor está
revestido de direitos, os quais são garantidos por ele mesmo. À margem, continuam os mais
fracos, os esquecidos socialmente, os trabalhadores rurais sem terra que põem suas esperanças
na própria luta e na de seus companheiros, bem como na própria força de trabalho e de
resistência, ao continuarem à beira das rodovias reivindicando e pressionando as autoridades a
realizarem a justiça social tão esperada.
302
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