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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (DOUTORADO) JULIANE FERREIRA VIEIRA IDENTIDADE DE ACADÊMICOS SEM TERRA DO MATO GROSSO DO SUL: UMA ANÁLISE BAKHTINIANA DAS VOZES CONSTITUINTES DE SEUS RELATOS PESSOAIS MARINGÁ - PR 2018

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (DOUTORADO)

JULIANE FERREIRA VIEIRA

IDENTIDADE DE ACADÊMICOS SEM TERRA DO MATO GROSSO

DO SUL: UMA ANÁLISE BAKHTINIANA DAS VOZES

CONSTITUINTES DE SEUS RELATOS PESSOAIS

MARINGÁ - PR

2018

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JULIANE FERREIRA VIEIRA

IDENTIDADE DE ACADÊMICOS SEM TERRA DO MATO GROSSO

DO SUL: UMA ANÁLISE BAKHTINIANA DAS VOZES

CONSTITUINTES DE SEUS RELATOS PESSOAIS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Letras (Doutorado) da Universidade Estadual

de Maringá (UEM) como parte dos requisitos

para obtenção do título de Doutora em Letras.

Área de Concentração: Estudos Linguísticos

Orientador: Prof. Dr. Edson Carlos Romualdo

MARINGÁ – PR

2018

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Biblioteca Central - UEM, Maringá, PR, Brasil)

Vieira, Juliane Ferreira

V658i Identidade de acadêmicos sem terra do Mato Grosso

do Sul: uma análise Bakhtiniana das vozes

constituintes de seus relatos pessoais / Juliane

Ferreira Vieira. -- Maringá, 2018.

315 f : il., quadros.

Orientador(a): Prof. Dr. Edson Carlos Romualdo.

Tese (doutorado) - Universidade Estadual de

Maringá, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes,

Programa de Pós-Graduação em Letras - Área de

Concentração: Estudos Linguísticos, 2018.

1. Identidade. 2. Signo ideológico. 3. Gênero

discursivo. 4. Relato pessoal. 5. Acadêmicos sem

terra. I. Romualdo, Edson Carlos, orient. II.

Universidade Estadual de Maringá. Centro de Ciências

Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação

em Letras - Área de Concentração: Estudos

Linguísticos. III. Título.

CDD 21.ed. 410.1

AHS-CRB-9/1065

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BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________

Prof. Dr. Edson Carlos Romualdo

Universidade Estadual de Maringá – UEM

– Presidente –

_________________________________________________

Prof. Dr. Neil Armstrong Franco de Oliveira

Universidade Estadual de Maringá – UEM

_________________________________________________

Profa. Dra. Flávia Zanutto

Universidade Estadual de Maringá – UEM

__________________________________________________

Profa. Dra. Terezinha da Conceição Costa-Hübes

Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE

___________________________________________________________

Profa. Dra. Luciane de Paula

Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP – Assis

MARINGÁ - PR

2018

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Àqueles que lutam por justiça social e

por educação de qualidade para Todos.

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Tecendo a manhã1

Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito de um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendendo para todos, no toldo

(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo

que, tecido, se eleva por si: luz balão.

João Cabral de Melo Neto

1 MELO NETO, J. C. de. A educação pela pedra. In: Poesias Completas. Rio de Janeiro, Ed. Sabiá, 1968.

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NO FIAR DE UMA TESE: OS AGRADECIMENTOS

Assim como uma manhã, uma tese não se fia sozinha.

Para concretizar esta pesquisa, que ora apresento, precisei de muitas mãos e de muitas

vozes para me ajudar a tecê-la. Algumas já estavam comigo, ombro a ombro, fiando outros

trabalhos, outros objetivos. Outras chegaram, recentemente, não menos relevantes, juntaram-

se a mim e se colocaram a trilhar comigo este caminho. Pude sentir a força de seus braços

erguidos a me encorajarem nessa luta que é tesear.

Em um movimento dialógico, algumas pessoas encarregaram-se de contribuir com suas

vozes experientes, de me orientarem, de me lançarem luz teórica, de me conduzirem a um

Bakhtin ainda pouco conhecido por mim. Outras apanhavam minha voz, às vezes, insegura,

confusa, desesperançada e me devolviam coragem, confiança, entusiasmo, esperança.

Então, não poderia ser diferente, sou uma pesquisadora-sujeito sócio-historicamente

constituída. O meu interior e a minha palavra não são soberanos, pois o outro – meus

professores, familiares e amigos – me constitui. Desse modo, quando olho para dentro de

mim, olho vocês nos olhos ou me vejo por meio de seus olhos. Sou, então, como um

enunciado, parafraseando Bakhtin (2011), plena de ecos e ressonâncias de outros. Assim, é

com gratidão e respeito que agradeço àqueles que contribuíram para que esta pesquisa

passasse de uma teia tênue para uma Tese Bakhtiniana e, também, àqueles que me

dispensaram sua atenção e amizade durante esses cinco anos de estudos.

Ao meu orientador, Professor Edson Carlos Romualdo, por me aceitar como sua

orientanda e, também, pela confiança, orientação e competência com a qual me guiou nesse

processo de doutoramento. Por sua generosidade em compreender minhas necessidades,

morando em Dourados-MS e, de repente, em Regensburg. Agradeço, Professor, por

apresentar-me a face discursiva de Bakhtin e me desafiar a descortiná-la e, também, por me

levar a interagir com conceitos e noções bakhtinianos, às vezes, tão incompreensíveis para os

iniciantes como eu, mas que, com suas explicações ficavam mais e mais compreensíveis.

Obrigada, Professor. Sua voz me constitui.

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Ao meu esposo, Magno Trindade, pelo companheirismo, encorajamento, apoio,

amizade, incentivo, paciência e carinho. Obrigada, por trilhar esse caminho comigo, e por me

oportunizar compartilhar contigo minhas análises bakhtinianas.

À minha amiga Silvia Caroline Gonçalves e aos seus pais, Silvio Gonçalves e Ester

Gonçalves, pela amizade, palavras de incentivo e orações. Por serem meus braços direito e

esquerdo para assuntos de PLE. Também pelos nossos cafés, conversas e descontração. Meus

amigos, presentes de Deus, nossa amizade me trouxe grandes aprendizados. Gratidão e

admiração sempre.

À CAPES, pelo apoio financeiro concedido durante dois anos desta pesquisa. Espero

que esse apoio seja constante e continue incentivando a pesquisa no Brasil.

Às amigas e coordenadoras do curso de licenciatura em Ciências Sociais Alzira Salete

Menegat e Marisa de Fátima Lomba de Farias, pela amizade de sempre. Obrigada pelo

convite para fazer parte da equipe do curso, pelo aprendizado, pelo exemplo de pesquisadoras

e professoras que vocês são. Sou grata pelas horas de explicações/aulas sobre terra, reforma

agrária, educação do campo, movimentos sociais e, também, pela biblioteca emprestada.

Agradeço, imensamente, pelos socorros dados, via whatsapp e e-mail, ou a qualquer sinal de

pedido de help! Enfim, pelo caminho de amizade, tão longo e tão significativo em minha vida.

Suas vozes ecoam nesta tese e vocês me constituem. Obrigada, Meninas!

Às graduandas e aos graduandos do curso de licenciatura em Ciências

Sociais/Pronera, por me proporcionarem adentrar suas histórias, trilhar por seus caminhos,

desvelar suas identidades por meio de seus relatos pessoais. Obrigada por suas vozes ecoarem

contra a exclusão e exploração, por erguerem seus braços fortes para lutar por uma educação

do campo de qualidade e libertadora. Aprendemos com vocês.

À professora Áurea Rita de Ávila Lima Ferreira, pela amizade e por dividir comigo as

disciplinas no curso de Ciências Sociais e, também, suas experiências e conhecimentos.

Aos professores que comporam a Banca de Qualificação do Doutorado, Neil Armstrong

Franco de Oliveira e Terezinha da Conceição Costa-Hübes, pela leitura atenta e pelas

valiosas contribuições.

Aos professores das nove disciplinas cursadas no PLE: Juliano D. Antonio, Luciana Di

Raimo, Roselene de Fátima Coito, Cristiane C. Capristano, Sonia Lopes Benites, Maria

Regina Pante, por toda aprendizagem, pelo profissionalismo e por compartilharem conosco

seus conhecimentos e contribuírem para nosso crescimento como pesquisadores e professores.

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Em especial, ao professor Renilson José Menegassi, por suas aulas, que, em 2013, me

apresentaram o PLE e foram fundamentais para que eu quisesse fazer parte do Programa

como aluna. Suas aulas me conquistaram. Pela sua didática, pelo seu profissionalismo, por

dividir conosco suas experiências bakhtinianas, obrigada.

Ao secretário do PLE, Adelino Marques, pelo suporte dado nos diversos momentos

vivenciados como aluna do PLE, sempre fazendo o possível para nos atender, especialmente,

aos de fora e aos de longe.

Aos meus pais, Fatima F. Vieira e Eurides Vieira, pelo incentivo aos estudos.

Aos amigos Maria Luzia Lomba de Souza e Paulinho de Souza, pela amizade de sempre

e pela acolhida em Maringá, como ocorreu no mestrado em Três Lagoas. Também por me

buscaram, de madrugada, na rodoviária de Maringá. Esse suporte foi muito valioso para que

eu continuasse minha caminhada rumo ao doutorado. Obrigada, Amigos!

À Elaine de Moraes Santos, pela amizade, confiança e incentivo.

Ao Guilherme Rocha Duran, que tão prontamente me possibilitou ler sua tese.

À Giana Amaral Yamin, pela amizade e pela luz que é na minha vida.

Pela amizade, positividade, encorajamento, reflexões e experiências compartilhadas das

amigas Paula Cartapatti, Míria Campos, Edilaine Buin, Renata Raffa, Tatiana V. Grigoletti e

às minhas meninas Iara Cartapatti, Marina Cartapatti e Maria Julia V. Grigoletti. À Larissa

X. Valenzuela, pela amizade e contribuição nos momentos de necessidade. Também à dona

Nelci Bevilaqua e à sua filha Jennifer Bevilaqua, pela amizade e por me acolherem em seu

pensionato em Maringá.

À minha sempre professora e orientadora Maria das Dores Capitão Vigário Marchi,

pela amizade e pelo incentivo ao doutorado, desde a iniciação científica.

Aos amigos do PLE, Fatima Sena, Daiane Jodar, Aline B. Züge, Rejone Machado,

Silvia Gonçalves, Adriana Gisele Estevão, Nataly Rosa, Tainara Cangussú, Valéria C. de

Oliveira, Rafael Petermann, Edh Carlos Pagani e tantos outros, com os quais dividi

momentos de estudo e de descontração. Em especial, ao Bruno Ciavolella e à Sônia

Bervegliere, por me encorajarem quando eu ainda era aluna não regular.

A Deus, pela força e proteção na vida e, especialmente, nas viagens Dourados-Maringá-

Dourados. Obrigada por me proporcionar dialogar e interagir com todos esses sujeitos sócio-

historicamente construídos.

Bakhtin, sua teoria me energiza.

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VIEIRA. J. F. Identidade de acadêmicos sem terra do Mato Grosso do Sul: uma análise

bakhtiniana das vozes constituintes de seus relatos pessoais. 2018. 315f. Tese (Doutorado

em Letras). Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2018.

RESUMO

Esta pesquisa tem como objeto a constituição da identidade dos acadêmicos sem terra do

curso de licenciatura em Ciências Sociais da Universidade Federal da Grande Dourados

(UFGD), pelo viés das relações histórico-sociais da história da terra. Trata-se de uma pesquisa

ancorada nos pressupostos da Linguística Aplicada, adotando como aporte teórico-

metodológico os estudos do Círculo de Bakhtin. Concebe-se, assim, o homem como social, o

sujeito como sócio-historicamente constituído e como ponto norteador para a pesquisa a

seguinte pergunta: “Como se constitui a identidade dos acadêmicos do primeiro curso voltado

especificamente para este grupo social?” Diante dessa questão, propõe-se a tese de que a

identidade dos graduandos sem terra do curso de Ciências Sociais (UFGD) é sócio-

historicamente constituída nos caminhos de construção dos signos terra, reforma agrária e

educação do campo. Para verificar a viabilidade dessa tese, traça-se como objetivo geral

compreender as vozes sócio-históricas que constituem a identidade dos graduandos, por meio

de seus relatos pessoais, dos referidos signos e do Projeto Político Pedagógico do curso (PPP).

A análise busca, no encontro da palavra com a contrapalavra na constituição dos signos e do

PPP, delinear a identidade do sujeito acadêmico sem terra via seus relatos. O olhar para os

relatos pessoais pela perspectiva bakhtiniana demonstra que o centro organizador das

identidades dos acadêmicos sem terra não está nelas mesmas, mas no mundo exterior, nos

elementos extraverbais, na relação com o outro. Verifica-se que os signos terra, reforma

agrária e educação do campo foram deixando de significar uma realidade em si e passaram,

na relação dialógica, a serem ideológicos por carregarem em si realidades sócio-histórico-

discursivas múltiplas, ora conflitantes, ora consensuais. Além disso, pode-se perceber como se

desenhou o ensino-aprendizagem nas escolas rurais do Brasil, principalmente, o de Língua

Portuguesa, muitas vezes, caracterizado pela exclusão e pela reafirmação de preconceitos.

Observa-se, enfim, que o gênero relato pessoal foi primordial para se delinear a identidade

dos acadêmicos sem terra, além de evidenciar que a preocupação com o ensino da escrita não

deve estar somente no produto em si, mas na sua relação com as valorazações e ideologias de

quem escreve, levando-se em conta o contexto sócio-histórico do qual faz parte.

Palavras-chave: identidade, signo ideológico, gênero discursivo, relato pessoal, acadêmicos

sem terra.

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VIEIRA. J. F. Identity of landless undergratuation students from Mato Grosso do Sul,

Brazil: a Bakhtinian analysis of the voices that constitute their personal reports. 2018. 315f.

Dissertation (Doctor's Degree in Letras). Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2018.

ABSTRACT

This study aims at establishing the identity of landless undergraduation students of Social

Sciences of the Federal University of Grande Dourados (UFGD) through the bias of socio-

historical relations that constitute the land history. It is a research anchored in the assumptions

of Applied Linguistics, adopting as theoretical-methodological contribution the studies of the

Circle of Bakhtin. Man is thus conceived as social, subject as socio-historically constituted

and as guiding point for research the following question: "How is constituted the identity of

the undergraduate students of the first course designed specially to the landless clientele?"

Facing this issue, the thesis proposed is that the identity of landless undergraduates of the

Social Sciences course (UFGD) is socio-historically constituted in the ways of constructing

the signs terra, reforma agrária and educação do campo. To verify the feasibility of this

thesis, our general aim is to understand the socio-historical voices that constitute the identity

of those students, through their personal reports of those signs and the Political Pedagogical

Project (PPP) of the course analyzed. The analysis seeks, in the encounter of the word with

the counterword in the constitution of the signs and the PPP, to delineate the identity of the

academic subject without land via his reports. The approach to personal reports from the

Bakhtinian perspective shows that the organizing center of the landless undergraduates’ voice

is not in themselves, but outside the outer world, in extraverbal elements. It can be noticed

that the signs terra, reforma agrária and educação do campo no longer signified a reality in

themselves and, in the dialogical relationship, started to reflect another reality, for being

ideological and carrying within themselves multiple realities, sometimes conflicting,

sometimes consensual. Besides that, it is possible to notice how the teaching-learning process

was designed in rural schools in Brazil, mainly regarding Portuguese language, often

characterized by exclusion and reassertion of prejudices. Finally, it can be observed that the

genre personal report was extremely important for us to design the identity of the landless

undergraduates, besides evidencing that the preoccupation with the teaching of writing must

not be only with the product itself, but with its relation with valorizations and ideologies of

the one who writes, taking into account the social-historical context that he/she is part of.

Keywords: Identity; ideological sign; discursive gender; personal report; landless

undergraduates.

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LISTA DE SIGLAS

ACD – Análise Crítica do Discurso

CAN – Colônias Agrícolas Nacionais

CPMI – Comissão Parlamentar Mista de Inquérito

CPT – Comissão Pastoral da Terra

CEBs – Comunidades Eclesiais de Base

CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

CUT – Central Única dos Trabalhadores

ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio

FCH – Faculdade de Ciências Humanas

FAF – Federação de Agricultura Familiar de Mato Grosso do Sul

FETAGRI/MS – Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Mato Grosso do Sul

UNESCO – Fundo das Nações Unidas para a Ciência e Cultura

UNICEF – Fundo das Nações Unidas para Infância

GO – Goiás

GT-RA/UnB – Grupo de Trabalho de Apoio à Reforma Agrária da Universidade de Brasília

ENERA – Encontro Nacional das Educadoras e Educadores da Reforma Agrária

IBAD – Instituto Brasileiro de Ação Democrática

IBGE – Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística

IMAD – Instituto de Meio Ambiente e Desenvolvimento

IPES – Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais

INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

MT – Mato Grosso

MEC – Ministério da Educação

MMC – Movimento de Mulheres Camponesas de Mato Grosso do Sul

MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra

MS – Mato Grosso do Sul

MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

PCB – Partido Comunista Brasileiro

PT – Partido dos Trabalhadores

PPP – Projeto Político Pedagógico

PRONERA – Pronera Nacional de Educação na Reforma Agrária

SESU – Secretaria de Educação Superior

SAPP – Sociedade Agrícola de Plantadores e Pecuaristas de Pernambuco

SNA – Sociedade Nacional de Agricultura

SRB – Sociedade Rural Brasileira

TCC – Trabalho de Conclusão de Curso

UFGD – Universidade Federal da Grande Dourados

UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

UDN – União Democrática Nacional

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Síntese dos sentidos construídos pelas vozes opositoras para os signos ideológicos

terra, reforma agrária e educação do campo..........................................................................87

Quadro 2: Síntese dos sentidos construídos pelas vozes consonantes para os signos

ideológicos terra, reforma agrária e educação do campo.....................................................152

Quadro 3: Estrutura Curricular do Curso de Ciências Sociais/Pronera-UFGD....................199

Quadro 4: Estrutura Curricular do Curso Regular de Ciências Sociais – UFGD –

Licenciatura............................................................................................................................200

Quadro 5: Atividades Avaliativas para o Tempo Comunidade ............................................205

Quadro 6: Atividade Avaliativa para o Tempo Comunidade ..............................................206

Quadro 7: Síntese dos sentidos construídos no PPP do curso para os signos ideológicos terra,

reforma agrária e educação do campo ..................................................................................209

Quadro 8: Assuntos presentes nos relatos pessoais dos graduandos sem terra ....................235

Quadro 9: Divisão dos Assuntos em Macrocategorias .........................................................236

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SUMÁRIO

INICIANDO O DIÁLOGO ................................................................................................... 15

CAPÍTULO I – A CONSTITUIÇÃO DOS SIGNOS IDEOLÓGICOS TERRA,

REFORMA AGRÁRIA E EDUCAÇÃO DO CAMPO: VOZES HISTÓRICO-SOCIAIS

DISCORDANTES À DISTRIBUIÇÃO DE TERRAS ........................................................ 32

1.1 Vozes Teóricas ................................................................................................................... 34

1.1.1 Construção do Signo Linguístico, Social e Ideológico no Círculo de Bakhtin ............... 35

1.1.2 Infraestrutura e Superestrutura ........................................................................................ 39

1.2 Vozes Histórico-sociais ...................................................................................................... 41

1.2.1 Período Monárquico: o sistema de Sesmarias ................................................................. 43

1.2.2 Lei de Terras de 1850 e Constituição Federal de 1891 ................................................... 51

1.2.3 Constituição Federal de 1946 .......................................................................................... 58

1.2.4 Associações Rurais .......................................................................................................... 61

1.2.5 Governo Militar e o Estatuto da Terra ............................................................................. 67

1.2.6 Igreja Católica.................................................................................................................. 75

1.2.6.1 Carta Pastoral de Dom Inocêncio ................................................................................. 76

1.2.6.2 TFP (Tradição, Família e Propriedade) ........................................................................ 80

CAPÍTULO II – A AÇÃO RESPONSIVA NA CONSTITUIÇÃO DOS SIGNOS

IDEOLÓGICOS TERRA, REFORMA AGRÁRIA E EDUCAÇÃO DO CAMPO: VOZES

HISTÓRICO-SOCIAIS CONSOANTES AO PROJETO DE DISTRIBUIÇÃO DE

TERRAS .................................................................................................................................. 93

2.1 Vozes Teóricas ................................................................................................................... 95

2.1.1 Responsividade ................................................................................................................ 96

2.2 Vozes Histórico-sociais ...................................................................................................... 99

2.2.1 PCB (Partido Comunista Brasileiro) ............................................................................. 100

2.2.2 Ligas Camponesas ......................................................................................................... 106

2.2.3 João Goulart e o seu Projeto de Reforma Agrária ......................................................... 116

2.2.4 Igreja Católica................................................................................................................ 120

2.2.4.1 Teologia da Libertação e CEBs (Comunidades Eclesiais de Base)............................ 120

2.2.5 Movimentos Sociais Rurais: CPT e MST ..................................................................... 132

2.2.5.1 CPT (Comissão Pastoral da Terra) ............................................................................. 135

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2.2.5.2 MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) .......................................... 140

CAPÍTULO III – MULTIPLICIDADE DE VOZES NO PROJETO POLÍTICO-

PEDAGÓGICO DO CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS VOLTADO AOS SEM

TERRAS ................................................................................................................................ 157

3.1 Vozes Teóricas ................................................................................................................. 161

3.1.1 Polifonia ........................................................................................................................ 162

3.2 Vozes Histórico-sociais .................................................................................................... 169

3.2.1 Manual de Operações do Pronera .................................................................................. 169

3.2.2 PPP (Projeto Político Pedagógico) do Curso de Licenciatura em Ciências Sociais ...... 177

3.2.3 Organização do Projeto Político Pedagógico (PPP) ...................................................... 183

3.2.4 Vozes na Caracterização do Curso de Licenciatura em Ciências Sociais/Pronera........ 184

CAPÍTULO IV – OS RELATOS PESSOAIS: VOZES CONSTITUINTES DA

IDENTIDADE DE ACADÊMICOS SEM TERRA ........................................................... 218

4.1 Vozes Teóricas ................................................................................................................. 220

4.1.1 Gêneros Discursivos ...................................................................................................... 220

4.1.2 O Gênero Discursivo Relato Pessoal ............................................................................. 232

4.1.3 Identidade e Alteridade em Bakhtin .............................................................................. 236

4.2 Vozes Histórico-sociais .................................................................................................... 240

4.2.1 Análises: Desvendando a Identidade de Acadêmicos Sem Terra ................................. 240

4.2.1.1 Vozes da Infância ....................................................................................................... 242

4.2.1.2 Vozes da Adolescência ............................................................................................... 263

4.2.1.3 Vozes da Maturidade .................................................................................................. 268

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 298

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 302

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15

INICIANDO O DIÁLOGO

Analisar um fenômeno social contemporâneo pelas lentes da teoria do Círculo de

Bakhtin2 significa realizar um exercício de rememoração do passado, já que presente e

passado estão absolutamente indissociáveis por um determinar o outro. Isso evidencia que a

história é sempre revisitada pelos interesses atuais, pelos sentidos do presente, sendo sempre

reformatada.

O caráter de descontinuidade marca a história em decorrência de a linguagem criar e

recriar o mundo histórico e valorativo. Sob a luz dos pressupostos bakhtinianos, entendemos

que a história é móvel e aberta, já que está sempre sendo reconstruída no discurso do sujeito,

no caso o contemporâneo. Desse modo, não há sentidos absolutamente mortos, pois há

qualquer momento eles podem emergir das lembranças e se lançar ao novo enunciado

dialogicamente. Por isso, Bakhtin (2011, p. 410) salienta que “[...] em determinados

momentos do sucessivo desenvolvimento do diálogo, em seu curso, tais sentidos serão

relembrados e reviverão em forma renovada (em novo contexto)”.

A história é uma memória do passado e, também, uma memória do futuro, de modo

que não “[...] há nada no presente, mesmo o orgulho e o contentamento, que não se complete

por conta do futuro (o que se revela através de um discurso satisfeito, seria a tendência de se

antecipar a si mesmo)” (BAKHTIN, 1997, p. 141). Desse modo, a história é o veículo que traz

para o presente todo signo já produzido e o relaciona com o que ainda está por vir, com o que

ainda será dito. Essa emergência da história faz-se a cada novo acontecimento, a cada nova

produção ideológica, de forma a atualizá-la, a recompô-la, a reescrevê-la. Por isso, o

pensamento bakhtiniano destaca que a história não é estagnada, não é pronta, não é concluída

e não é já-dada, mas se presentifica no uso dos signos.

2 Conforme Pires (2003, p. 36), Bakhtin fundou, em 1919, círculo multidisciplinar de estudos, cujos integrantes

eram “[...] filósofos, poetas, cientistas, críticos de arte e literatura, escritores e músicos que discutiam as questões

relevantes para as ciências sociais, norteados pela concepção de que a linguagem não deveria ser somente um

objeto de estudo da ciência linguística, mas deveria ser vista como uma realidade definidora da própria condição

humana. O Círculo de Bakhtin teve uma intensa produção escrita entre 1920 e 1929, a partir daí, com os

expurgos políticos, vários membros do círculo desapareceram e Bakhtin passou a trabalhar sozinho e em

silêncio, ele mesmo exilado na Sibéria”. A esse respeito, Geraldi (2013, p. 10) salienta que obviamente “[...] o

Círculo jamais existiu como algo institucionalizado, vinculado a alguma academia específica, em cujos arquivos

se poderiam encontrar seus rastros. Mas seus componentes, nem sempre os mesmos em todas as cidades, se

reuniam como comprovam tanto as repercussões na imprensa (desde Nevel) quanto as fotografias que ainda

circulam entre nós”.

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Os signos são construídos ao longo da história, ao longo das interações humanas, no

intercâmbio comunicativo social vivo (VOLOCHINOV, 2013, p. 196) constituindo-se, como

afirma Miotello (2006, p. 283), “[...] no lugar onde se dá o encontro do Eu e do Outro. Logo,

lugar social, dialógico”, construído sócio-historicamente, pois, como lembra Volochínov

(2013, p. 158), não podemos chegar à constituição de “[...] qualquer enunciação – por

completa e independente que ela possa parecer – se não tivermos em conta o fato de que ela é

só um momento, uma gota no rio da comunicação verbal, rio ininterrupto, assim como é a

própria vida social, a história mesma”. Desse modo, podemos pensar que, por ser um lugar

social e de encontros, os signos tornam-se lugares de concordâncias e, também, de

discordâncias ideológicas entre um Eu e um Outro. Logo, eles guardam até mesmo as

pequenas nuances de ideologia dos sujeitos de uma determinada época. Nessa perspectiva,

Bakhtin nos mostra que todo signo é uma arena de disputas ideológicas e, no processo de sua

constituição, ideologias incorporam-se ao signo linguístico, tornando-o signo ideológico. Daí

a assertiva bakhtiniana de que “tudo que é ideológico é um signo” (BAKHTIN, 2002, p. 31).

Dessa premissa, compreendemos que são os homens, em suas relações sociais, que constroem

os signos, por isso eles carregam as ideologias de grupos sociais antagônicos e não as de um

indivíduo. Nessa ótica, a luta de classes é o motor da história social, como defende

Volochínov (2013).

Pelo olhar de Bakhtin, a história não é um marco recortado no tempo, mas é um

fluxo ininterrupto de interações entre sujeitos do hoje e do ontem, ligados pelos milhares de

fios dialógicos retomados nos variados gêneros discursivos do tempo presente, em um jogo de

aproximação e distanciamento entre passado e presente. A realidade objetiva não é, segundo

Volochínov (2013, p. 196),

[...] imóvel, não é uma realidade estática como uma escultura de bronze; sem

conhecer nem desenvolvimento nem movimento, o homem estaria imóvel. A

realidade efetiva na qual o homem vive é a história, este mar eternamente

agitado pela luta de classe, que não conhece quietude, não conhece paz. A

palavra, ao refletir esta história, não pode não refletir as contradições, o

movimento dialético, a sua ‘constituição’.

Esse olhar bakhtiniano para a história como descontínua, fluxo ininterrupto de

relações sociais entre sujeitos, interação entre o hoje e o ontem, sendo tecida por milhares de

fios dialógicos leva-nos a refletir a respeito da distribuição de terra no Brasil e da construção

identitária de estudantes envolvidos diretamente nessa problemática, tendo como ponto de

partida os relatos pessoais escritos por graduandos sem terra do curso de licenciatura em

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Ciências Sociais, da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). A partir desse

posicionamento teórico, levamos em consideração que o sujeito dos relatos pessoais tem sua

identidade construída sócio-historicamente na alteridade, nas relações com o outro. Assumir

essa premissa bakhtiniana leva-nos a situá-lo em seu contexto social mais imediato, envolto

em suas relações com a família, a religião, os movimentos sociais, mas também em um

contexto mais amplo: trabalhador rural sem terra, herdeiro das relações excludentes e

exploratórias entre propriedade e distribuição de terra.

O curso de licenciatura em Ciências Sociais traz para o cenário universitário da

UFGD um novo sujeito, marcado pela exclusão, pelo preconceito e pela crítica de grande

parcela da população brasileira. Ele chega à universidade trazendo sua história para compor as

relações com professores, colegas, companheiros de militância, bem como com o próprio

curso, no que se refere à metodologia, conteúdos e atividades avaliativas. Nessa história, a

aprendizagem nunca é uma luta fácil de vencer, pois a escola, para ele, significa metodologias

tradicionais, conteúdos desvinculados de sua realidade, professores sem formação na área de

atuação, desvalorização do seu conhecimento e lugar onde políticas hegemônicas acentuam a

exploração no campo, condenando filhos e filhas de camponeses à reprovação, desistência,

abandono, enfim, à ignorância.

É nesse cenário educacional que o curso de licenciatura em Ciências Sociais insere-

se, ao assumir-se como um lugar social, específico, para assentados rurais do Estado de Mato

Grosso do Sul, considerando sua história e sua identidade sem terra, e ao buscar apresentar

aos graduandos e aos professores uma ressignificação do ver e fazer o ensino-aprendizagem

na universidade.

Tendo em vista essa relação entre sujeito, identidade e ensino-aprendizagem, este

estudo insere-se na linha de pesquisa Ensino-aprendizagem de línguas, pois, ao pensarmos

um problema local, que se refere ao dos graduandos sem terra de Mato Grosso do Sul,

queremos pensar macroproblemas, como o papel do ensino na constituição da identidade dos

estudantes, sejam eles do campo ou não, já que a identidade é um complexo que se move em

um curso próprio. Refletindo a partir dessa premissa, a Linguística Aplicada possibilita-nos

investigar as dificuldades enfrentadas por estudantes em contextos de exclusão, assim como

trilhar pelos caminhos de suas relações sociais, as quais conduzem suas identidades a um

estado cambiante (LEFFA, 2012).

Os relatos pessoais oportunizam-nos focalizar questões de uso concreto da

linguagem em um contexto específico e com sujeitos determinados, os quais apresentam em

seus textos propósitos comunicativos e interacionais múltiplos. Ao nos depararmos com o

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emaranhado de vozes que tecem os relatos pessoais, a Linguística Aplicada, por seu caráter

multidisciplinar, é fundamental, ao oportunizar um diálogo com a Sociologia Rural, a História

e a Educação, viabilizando-nos o encontro com diferentes vozes localizadas em variados

momentos sócio-históricos brasileiros.

Ao compreendermos a linguagem como prática social, a Linguística Aplicada

permite-nos acessar processos de análise dos problemas concretos do uso da linguagem e,

assim, questionar como se constitui a identidade dos sujeitos graduandos sem terra do curso

em análise, pois é, no uso da linguagem, que nos constituímos e vemos quem somos

(MASTRELLA-DE-ANDRADE, NORTON, 2011). Chegar à resposta para esse

questionamento requer conhecer suas interações sociais, já que é no contexto social que as

identidades constituem-se e manifestam-se (LEFFA, 2012). A relação com o outro oportuniza

ao eu-graduando sem terra enxergar-se como sem terra pela diferença, por exemplo, pelo

olhar do latifundiário, e enxergar-se como militante sem terra pelo olhar do seu companheiro

de luta. É um sujeito abastadamente inconcluso. Como já dizia Manoel de Barros (1998, p.

79): “A maior riqueza do homem é sua incompletude. Nesse ponto sou abastado”.

Assim, caminhamos por uma Linguística Aplicada como a desejada por Moita Lopes

(2009), por: (i) abandonar a natureza aplicacionista e solucionista de problemas vinculados à

sala de aula; (ii) abdicar à restrição de operar, exclusivamente, em contextos de investigação

de ensino e aprendizagem de línguas; (iii) construir teorizações no entrecruzamento com

outros campos do saber. No sentido desejado por Moita-Lopes (2009), os linguistas

reinventam-se para atuar de forma transdisciplinar, adentrando contextos mais amplos que a

sala de aula, a fim de compreender problemas macrossociais de ensino-aprendizagem em sua

totalidade, o que, consequentemente, se reflete nas aulas de Língua Portuguesa, por exemplo.

Pela perspectiva da Linguística Aplicada, delineamos nosso objeto de pesquisa: a

constituição da identidade dos acadêmicos sem terra do curso de licenciatura em Ciências

Sociais da UFGD pelo viés das relações sócio-históricas constituintes da história da terra,

alinhavada na construção dos signos terra, reforma agrária e educação do campo.

Trabalhamos com o homem real, social, como defende Bakhtin (2011, p. 319): “[...] O objeto

real é o homem social (inserido na sociedade), que fala e exprime a si mesmo por outros

meios”.

Por conceber o homem como social e, consequentemente, o sujeito como sócio-

historicamente constituído, elegemos a teoria discursiva de Bakhtin e de seu Círculo para

nortear todo o nosso diálogo com as vozes histórico-sociais selecionadas, a fim de entender o

problema da terra no Brasil e, assim, chegarmos a delinear a identidade dos acadêmicos sem

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terra. Conceitos e noções bakhtinianos são refletidos, nesta pesquisa, de forma dialógica com

as vozes histórico-sociais, a fim de demonstrar a construção sócio-histórica dessas vozes, logo

do problema da terra no Brasil. As vozes histórico-sociais retratam eventos/acontecimentos

histórico-discursivos, entendidos, neste trabalho, por exemplo, como o Sistema de Sesmarias,

a Lei de Terras de 1850, a Constituição Federal de 1946, o Estatuto da Terra, as Ligas

Camponesas, o grupo católico Tradição, Família e Propriedade (TFP), a Teologia da

Libertação, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem

Terra (MST). A análise dialógica das vozes histórico-sociais é subsidiada pela teoria da

Filosofia da Linguagem, do Círculo de Bakhtin, sendo também ancorada nas discussões de

seus explicadores, como Miotello (2000, 2005, 2006) e Ponzio (2012, 2016). Ainda, por seu

caráter interdisciplinar, estabelece um diálogo com a História, a Sociologia Rural e a

Educação, por meio de estudos de Morais (1997), Martins (1998), Oliveira (2007), Stedile

(2012), Freire (1975, 1996) dentre outros.

Entendemos por vozes histórico-sociais aquelas que ecoam nos documentos e

eventos históricos analisados (leis, decretos, projetos, discursos parlamentares, como também

carta pastoral, livro religioso, estatuto), as quais estão lado a lado à voz do sujeito falante,

evidenciando que os discursos estão povoados de vozes alheias, ou seja, de palavras de outras

pessoas, no sentido de enunciados. A noção de voz está associada à noção de tom, uma vez

que aponta para o valor axiológico, a valoração, o ideológico, da mesma forma que está

relacionada à entonação, entoação, acento, tonalidade (BAKHTIN, 2011).

Nessa perspectiva, a voz do sujeito do discurso está emaranhada entre outras vozes,

sejam elas concordantes ou discordantes à sua ideologia. Nas palavras de Bakhtin (2011, p.

383), “[...] No diálogo as vozes (a parte das vozes) se soltam, soltam-se as entonações

(pessoais-emocionais), das palavras e réplicas vivas extirpam-se os conceitos e juízos

abstratos [...]”.

Não desvinculamos a teoria dos eventos histórico-discursivos, pois a teoria

bakhtiniana nos permite entender o complexo movimento dos acontecimentos. No campo

pessoal, nosso interesse por essa teoria já constitui nossa história acadêmica, pois trabalhamos

com ela desde a iniciação científica, quando desenvolvemos uma pesquisa tendo como corpus

causos pantaneiros, narrados por moradores do Pantanal sul-mato-grossense, descrevendo

elementos da organização composicional e aspectos do estilo do gênero causo. Também, no

Mestrado (VIEIRA, 2007), a teoria de Bakhtin é fundamental para a análise do gênero

Relatório Final de Perícia em Terra Indígena, o qual é analisado quanto à relação entre

escolhas linguísticas, condições de produção e relações de poder. Se nos estudos anteriores

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nosso interesse na teoria bakhtiniana centra-se mais aos aspectos relacionados ao gênero do

discurso, nesta pesquisa procuramos realizar uma abordagem mais discursiva, enfatizando os

aspectos sócio-histórico-ideológicos que a teoria do Círculo de Bakhtin nos permite

empreender.

Ancorados em Bakhtin, temos como ponto norteador a seguinte pergunta de

pesquisa: “Como se constitui a identidade dos acadêmicos do curso de licenciatura em

Ciências Sociais, o primeiro voltado especificamente para assentados sem terra?”

Em decorrência dessa pergunta norteadora, outras se formularam: “As vozes de tais

acadêmicos em seus relatos de vida demonstram relações dialógicas com outras vozes sócio-

históricas que problematizam a questão da terra?”; “Como se institucionalizou o problema da

terra no Brasil?”; “Quais signos ideológicos estariam na base da constituição de tais vozes?”;

“Como o Projeto Político Pedagógico, voltado a esse grupo social, trouxe para sua

constituição tal problemática?”.

Tais perguntas levam-nos a propor a tese de que a identidade dos graduandos sem

terra do curso de Ciências Sociais (UFGD) é sócio-historicamente constituída nos caminhos

de construção dos signos terra, reforma agrária e educação do campo.

Para verificarmos a validade dessa tese, objetivamos, de forma geral, compreender as

vozes sócio-históricas que constituem a identidade dos acadêmicos sem terra do referido

curso, por meio dos relatos pessoais, do caminho percorrido pelos signos terra, reforma

agrária e educação do campo e do Projeto Político Pedagógico (PPP) do curso.

Como objetivos específicos, elegemos:

analisar como os signos terra, reforma agrária e educação do campo são

construídos por vozes discordantes à distribuição de terras no Brasil;

examinar como os signos terra, reforma agrária e educação do campo são

construídos em um movimento de responsividade pelas vozes consoantes à

redistribuição de terras no País;

investigar as vozes constitutivas do PPP do curso de licenciatura em Ciências

Sociais, trilhando por seu percurso de criação, suas características como um

curso específico para uma população marginalizada, assentados rurais do

Estado de Mato Grosso do Sul;

analisar como as vozes no bojo dos signos terra, reforma agrária e educação

do campo constituem a identidade dos acadêmicos nos relatos pessoais.

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O interesse por estudos a respeito da terra começou quando fui professora em escolas

indígenas, no município de Dourados. O Estado de Mato Grosso do Sul abriga a segunda

maior população indígena do Brasil, o que, consequentemente, nos leva a pensar que a terra

nesse Estado é um problema constante e histórico. No Mestrado, desenvolvi a pesquisa

intitulada Uma análise crítica das relações de poder no gênero relatório: o caso dos Kaiowá

da Aldeia Panambizinho. Objetivamos, nessa pesquisa, analisar as relações de poder presentes

no discurso de um pesquisador e cientista das Ciências Sociais, antropólogo, verificando a

construção de seu discurso diante de uma situação de impasse com relação à posse de terras

entre duas sociedades com visões de mundo diferentes e de uma situação enunciativa peculiar:

índios kaiowá e colonos não índios. O discurso é analisado com base na concepção da Análise

Crítica do Discurso (ACD), particularmente no modelo tridimensional (texto, prática

discursiva e prática social) construído por Fairclough (2001). Já o gênero Relatório Final de

Perícia, concebido como formas-padrão relativamente estáveis de discursos, é analisado à luz

dos estudos de Bakhtin (2011), tendo em vista aspectos do tema, da organização

composicional e do estilo e, também, o pressuposto de que os gêneros são marcados sócio-

historicamente, pois estão ligados diretamente às situações de interação pela linguagem.

O trabalho desenvolvido no Mestrado contribui para um convite para integrar a

equipe de professores do curso de Licenciatura Indígena, da UFGD, na área de Linguagem.

Nesse curso, atuei como professora e coordenadora da área. Tive a oportunidade, durante

quatro anos, de desenvolver trabalhos na universidade e em aldeias, em que o ensino de

Língua Portuguesa pode ser diferenciado daquele ensinado para falantes de português como

primeira língua e presente na maioria dos cursos superiores e escolas. Neste caso, o português

é a segunda língua dos acadêmicos indígenas e o ensino busca respeitar o direito a uma

educação diferenciada, bilíngue, intercultural e autônoma. As aulas são ministradas, ao

mesmo tempo, por dois ou três professores da área de Linguística, com os objetivos de,

primeiro, aproximar-se da forma coletiva de ensino guarani-kaiowá e, segundo, demonstrar ao

sistema de ensino que o conhecimento pode ser construído coletivamente, o que resulta em

um diálogo entre áreas do conhecimento que se complementam.

Em 2007, um novo convite surge, agora, para integrar a equipe de professores do

curso de licenciatura em Ciências Sociais, assumindo as disciplinas de Língua Portuguesa e

Produção de Texto. Diante dessa oportunidade, pensei em continuar a construir uma

metodologia em ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa que fugisse do tradicional e

mostrasse que era possível duas professoras ministrarem as aulas ao mesmo tempo, em um

movimento coletivo de construção do conhecimento entre as professores e os graduandos.

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Como minha parceira nessa empreitada, convido a professora Áurea Rita de Ávila Lima

Ferreira para construirmos as disciplinas. Ela é uma profissional com muita experiência,

altamente respeitada no Estado, e docente, à época quase aposentada, do curso de Letras, da

UFGD. Ali há um encontro: uma professora experiente e eu, tantas vezes sua orientanda,

como sou até hoje. Tornamo-nos parceiras, como dizem os graduandos: o dueto da Língua

Portuguesa.

Com a minha bagagem trazida da Licenciatura Indígena e a experiência da

professora Áurea, as aulas no curso de Ciências Sociais são pensadas tendo como parâmetro a

dinâmica vivida pelos acadêmicos sem terra. Por isso, levamos variados gêneros discursivos

para sala (músicas, poemas, reportagens, propagandas, contos, textos acadêmicos) e

realizamos análises linguísticas, com o objetivo de que os alunos percebam a leitura como

construção de sentidos de um texto e não como uma mera decodificação. As aulas iniciavam-

se com a mística3 e, durante o dia, temos os momentos das poesias, das músicas

acompanhadas por um violão de um aluno. Os relatos pessoais mostram que os acadêmicos

esperavam “mais uma aula chata de língua portuguesa”. Inferimos, a partir dessa declaração,

que eles pensavam que fossem decorar verbos, concordâncias, regências. Acredito que

realizamos um trabalho que, além de discutir aspectos linguísticos, possibilita aos acadêmicos

e a nós uma nova forma de ver o mundo, o outro e o ensino de Língua Portuguesa.

No trabalho realizado na disciplina de Produção de Texto, em 2009, no terceiro

semestre do curso, elegemos como avaliação a elaboração de um relato pessoal. As

finalidades da produção dos relatos são apresentadas em sala. A primeira consiste em uma

atividade avaliativa da disciplina e a segunda prevê a publicação de um livro com os relatos

daqueles que aceitassem a publicação. Expomos também que os leitores seriam os mais

diversos, pois o livro seria distribuído na UFGD, assim como em outras universidades

brasileiras e escolas de assentamentos. Aqueles que disponibilizaram seus relatos para a

publicação assinaram um documento de autorização para revisão e publicação. Dos 56 textos

3 Segundo Coelho (2010), a mística no MST é feita em forma de teatro, contendo músicas, poesias e muitos

símbolos em seu interior, como a bandeira do Movimento. Trata-se de uma prática cultural e política, em que o

Movimento consegue se comunicar de maneira eficaz com os sujeitos, construindo representações sobre tudo

aquilo que compõe o modo de ser Sem Terra. A mística tornou-se um instrumento essencial e estratégico na

organização do MST, sendo ela dotada de poder, isto é, desencadeadora de memória, representação e ação

política. É uma herança herdada pelos movimentos sociais rurais da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

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produzidos, 35 são disponibilizados por seus autores para publicação, o que resulta no livro

Do Cheiro da Terra aos Fios da Memória4.

O corpus desta pesquisa de tese é composto por esses 35 relatos, os quais são

originalmente enviados pelos estudantes, sem a revisão das organizadoras do livro. Além

disso, importa salientarmos que, no momento da proposta aos graduandos e da avaliação dos

relatos, não há a intenção de analisá-los em uma pesquisa, o que ocorre somente no momento

do Doutorado.

Para nortear a escrita dos graduandos, apresentamos um roteiro de relato no qual

estão indicadas algumas informações que poderiam ser levantadas junto a familiares e a

pessoas de suas comunidades no momento da escrita, como origem e escolha do nome de

cada um, momentos de infância, de adolescência, de experiências escolares, de relações

familiares, de participação nos movimentos sociais, de permanência nos acampamentos, de

vivências nos assentamentos, de entrada na Universidade e, também, de expectativas para o

futuro. Os relatos são produzidos durante o Tempo Comunidade, quando os graduandos

desenvolvem as atividades avaliativas do curso em suas comunidades.

O curso de licenciatura em Ciências Sociais da UFGD, que conta com 56

acadêmicos5 (31 mulheres e 25 homens), é desenvolvido em forma de projeto para somente

uma turma (2008-2012). É oferecido pela UFGD em parceria com os movimentos sociais

rurais do Estado de Mato Grosso do Sul e, também, com alguns setores governamentais

Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) e Instituto Nacional de

Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e o Movimento de Desenvolvimento Agrário

(MDA).

No cenário nacional, o curso destaca-se por ter sido o primeiro a ser oferecido

especificamente para pessoas de assentamentos federais do estado de Mato Grosso do Sul.

Esse fato merece destaque por ser Mato Grosso do Sul um estado marcado pelo latifúndio, em

que grandes extensões de terra estão sob a propriedade de apenas uma pessoa; além disso, há

grandes fazendas improdutivas, outras de propriedade de multinacionais e outras de políticos

4 VIEIRA, J. F.; FERREIRA, Á. R. A. L. Do cheiro da terra aos fios da memória. Dourados: Editora UFGD,

2013. 5 Os acadêmicos tiveram oportunidade de participar de projetos de pesquisa de Iniciação Científica, como

também de projetos de extensão. Destacamos que os graduandos do referido curso não receberam nenhum apoio

financeiro específico, apenas a infraestrutura, como alojamento, alimentação e transporte do alojamento para

Universidade, foi subsidiada pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA).

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influentes. O Estado, embora jovem por ser resultado da divisão do antigo Estado de Mato

Grosso, em 11 de outubro de 1977, já nasce marcado pelas disputas por terra6.

Além disso, esse curso destaca-se nacionalmente por ter sido oferecido mediante

uma demanda apresentada pelos trabalhadores rurais sem terra por meio dos movimentos

sociais rurais, CPT e MST, aos professores e pesquisadores da Faculdade de Ciências

Humanas (FCH - UFGD). A FCH aceita a demanda com a condição de que participem do

curso todos os movimentos sociais rurais do Estado. Com isso, esse curso também é destaque

por ser o primeiro a ser oferecido em parceria com os movimentos sociais rurais. No contexto

da universidade, essa participação implica a presença de representantes na construção política

do curso, nas reuniões pedagógicas; já no contexto do assentamento, os movimentos são

imprescindíveis para mobilizar os trabalhadores rurais para participarem do processo seletivo,

auxiliar os graduandos no transporte para a Universidade, além do apoio com relação à

atenção saúde durante as aulas na Universidade, por exemplo. Esse apoio é sempre dividido

entre os diferentes movimentos. Dessa forma, contar com a parceria dos movimentos é

fundamental para que a desistência do curso fosse mínima.

Esses aspectos contribuem para o ineditismo do nosso estudo. Primeiro, marcado

pelo gênero relato pessoal, escrito por sujeitos sociais determinados – acadêmicos sem terra,

pertencentes a diferentes movimentos sociais rurais, o que nos leva a perceber evidências de

subjetividade e de coletividade em sua construção identitária. Segundo, por analisar a

constituição da identidade desses acadêmicos por meio da construção histórico-discursiva dos

signos terra, reforma agrária e educação do campo e do Projeto Político Pedagógico do

curso.

Nossa hipótese é a de que esses relatos são marcados sócio-historicamente e estão

ligados diretamente às diferentes situações de interação pela linguagem (BAKHTIN, 2011).

Entendemos que esses relatos pessoais, ao apresentarem tomadas de posição de sujeitos sem

terra, entram em um movimento dialógico com o presente e o passado mediante a retomada

de vozes do passado. Dialogar com discursos anteriores é um dos princípios absolutos do

enunciado apontado por Bakhtin (2011, p. 297), o qual também acrescenta que cada “[...]

enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela

identidade da esfera de comunicação discursiva”.

6 O consenso quanto à posse de terras no Estado nunca ocorreu, de forma que sempre os pequenos camponeses

assim como os indígenas precisaram lutar para continuar em suas terras.

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Analisar os relatos pessoais pela perspectiva bakhtiniana, leva-nos a observar que o

centro organizador da voz dos acadêmicos sem terra não está nelas mesmas, mas está fora

delas, no mundo exterior. Isso porque acreditamos que os sujeitos acadêmicos sem terra não

estão imunes aos acontecimentos do passado, como se seus nascimentos fossem apenas

físicos, e do passado e dos outros não herdassem já-ditos, práticas sociais ou comportamentos.

Na visão dialógica, o sujeito além de nascer fisicamente também nasce socialmente, o que

acontece na interação com o outro; no caso analisado, isso é evidente quando o trabalhador

rural torna-se um sem terra, quando se torna um militante de um movimento social. Nesse

nascimento social, os sujeitos deparam-se com signos já presentes na sociedade, os quais são

dotados de uma herança sígnica que dá corpo ao estabelecimento de um signo (DURAN,

2016).

Podemos compreender que, ao nascermos socialmente, deparamo-nos com um

universo de signos já construído sócio-historicamente por nossa sociedade. Somos herdeiros

das milhares de experiências passadas, as quais povoam nosso discurso com seus sentidos

reconstruídos em nosso presente. Por esse viés, entendemos que o discurso do sujeito

acadêmico sem terra não é uma pura reação natural a um estímulo, mas é uma tomada de

posição ideológica, a qual está relacionada ao sócio-histórico, onde mergulha e de onde

emerge como sujeito dialogicamente constituído.

Ao trabalharmos com o gênero relato pessoal de graduandos sem terra do curso de

Ciências Sociais (UFGD), assumimos que este estudo é fundamental para pensarmos o

problema da distribuição de terras no Brasil, a qual sempre esteve ancorada em interesses

pessoais, econômicos e políticos, o que impede que a terra seja distribuída de forma

igualitária entre os brasileiros camponeses. Da mesma forma, um estudo como este é um

marco na cadeia discursiva da história da terra por possibilitar pensarmos a relação entre terra

e trabalhadores rurais sem terra em um Estado altamente marcado pelo latifúndio e

historicamente caracterizado pela disputa, o que sempre justificou ações violentas para

resguardar a posse de terras, mesmo que sua aquisição tenha sido feita por meio de grilagem,

influência política ou pela expulsão de pequenos camponeses.

Pensamos ainda que este estudo mostra para nós, professores de Língua Portuguesa,

como se delineou o ensino-aprendizagem nas escolas rurais do Brasil, muitas vezes,

caracterizado pela exclusão dos filhos de camponeses e pela reafirmação de preconceitos.

Assim, com esta pesquisa, podemos refletir sobre o ensino da Língua Portuguesa, na educação

básica e na universidade, como uma ferramenta de libertação para muitos alunos que, ainda,

chegam com dificuldades às esferas escolares, como também podemos continuar refletindo

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sobre as situações concretas de língua que construímos e, ainda mais, como nós e nossos

métodos constituem a identidade dos estudantes.

No que tange aos procedimentos metodológicos, inicialmente, realizamos leituras

teóricas acerca da teoria do Círculo de Bakhtin e, em seguida, de textos das áreas de

Sociologia Rural, História e Educação. Essas leituras nos levaram a conhecer acontecimentos

históricos a respeito da terra no Brasil e suas vozes. Visualizamos uma variedade de vozes

histórico-sociais, porém, devido à necessidade de um recorte, selecionamos vozes entre o

Período Monárquico (1530) e a criação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

(MST) (fim da década de 1970). Nosso olhar voltou-se para as vozes que dialogavam entre si,

em um jogo de palavra e contrapalavra, constituindo um continuo na história da luta pela terra

no Brasil. Essas vozes juntaram-se às vozes do Projeto Político Pedagógico (PPP) do curso de

licenciatura em Ciências Sociais da UFGD também analisadas à luz da teoria bakhtiniana e

dos pressupostos teóricos das áreas de Sociologia Rural, História e Educação.

Por fim, debruçamo-nos sobre as vozes dos relatos pessoais, os quais também foram

analisados em um movimento dialógico com as vozes histórico-sociais anteriormente

examinadas, objetivando verificar em que medida a identidade dos graduandos sem terra é

constituída pelas vozes sócio-históricas da luta pela terra no Brasil.

Quanto ao método, seguimos os caminhos delineados por Bakhtin ao apontar o

método sociológico, tendo como princípio norteador o dialogismo. Toda tese movimenta-se

da palavra à contrapalavra, no sentido de que relacionamos as vozes consoantes ou destoantes

ao projeto de reforma agrária assim como as vozes dos relatos pessoais à teoria bakhtiniana.

Dessa maneira, nossa investigação compõe em uma conversa, como postula Bakhtin (2011, p.

319), quanto aos caminhos da metodologia:

[...] A investigação se torna interrogação e conversa, isto é, diálogo. Nós não

perguntamos à natureza e ela não nos responde. Colocamos as perguntas

para nós mesmos e de certo modo organizamos a observação ou a

experiência para obtermos a resposta. Quando estudamos o homem,

procuramos e encontramos signos em toda parte e nos empenhamos em

interpretar o seu significado.

Entendemos que o método sociológico contempla o caráter social da arte, o que não

era realizado pelo método formal, como defendido por Bakhtin e Volochinov (1926) em O

discurso na vida e o discurso na arte. Nessa perspectiva, o método sociológico é uma

alternativa ao método completamente formalista de análise das obras, como destacam Pereira

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e Rodrigues (2014). Bakhtin e Volochinov (1926, p. 4) continua sua reflexão acerca do

método sociológico salientando que os

[...] métodos que ignoram a essência social da arte tentam encontrar sua

natureza e distinguir características apenas na organização do artefato são

obrigados realmente a projetar a inter-relação social do criador e do

contemplador em vários aspectos do material e em vários procedimentos

para estruturar o material. [...]. A comunicação estética, fixada numa obra de

arte é, como já dissemos, inteiramente única e irredutível a outros tipos de

comunicação ideológica. [...]. O que caracteriza a comunicação estética é o

fato de que ela é totalmente absorvida na criação de uma obra de arte, e nas

suas contínuas recriações por meio da co-criação dos contempladores, e não

requer nenhum outro tipo de objetivação. Mas, desnecessário dizer, esta

forma única de comunicação não existe isoladamente; ela participa do fluxo

unitário da vida social, ela reflete a base econômica comum, e ela se envolve

em interação e troca com outras formas de comunicação.

Por contemplar a vida social dos sujeitos dos enunciados, refletir a base econômica,

envolver-se com a interação social, o método sociológico é fundamental para este estudo, uma

vez que estamos preocupados com a inter-relação entre as formas concretas da língua e suas

condições extraverbais. O extraverbal carrega a dimensão social, sendo o lugar onde o

enunciado constitui-se e se afirma, isto é, é o lugar onde o trabalho da ideologia e da

valoração ocorrem (PEREIRA; RODRIGUES, 2014).

Para chegar a esse pressuposto, trilhamos os caminhos metodológicos, apresentados

por Bakhtin (2002, p. 44), como fundamentos para estudar a evolução social dos signos:

1. Não separar a ideologia da realidade material do signo (colocando-a no campo

da “consciência” ou em qualquer outra esfera fugidia e indefinível).

Seguindo essa regra metodológica, nosso trabalho procura não dissociar os valores

ideológicos dos signos terra, reforma agrária e educação do campo, pois um não existe sem

o outro. Para issso, realizamos uma leitura histórico-discursiva dos referidos signos, por meio

de fatos que marcam os delineamentos da distribuição da terra no Brasil. É a ideologia dos

grupos sociais envolvidos, antagônicos, que dita os caminhos possíveis de instalação dos

singos, enquanto material concreto de elaboração do homem concreto (MIOTELLO, 2001).

O segundo procedimento metodológico apresentado por Bakhtin (2002, p. 44) expõe:

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2. Não dissociar o signo das formas concretas da comunicação social (entendendo-

se que o signo faz parte de um sistema de comunicação social organizada e que não

tem existência fora deste sistema, a não ser como objeto físico).

A partir desse princípio, delimitamos o sujeito social de nossas análises, graduandos

sem terra do curso de Ciências Sociais, da UFGD, moradores de assentamentos localizados no

estado de Mato Grosso do Sul. Somente esse grupo social, vivendo sua vida material ao redor

de “[...] construtos simbólicos específicos e estabelecendo relação comunicativa mais direta e

eficiente” (MIOTELLO, 2001, p. 20), pode produzir material ideológico presente nos relatos

pessoais.

A terceira proposta metodológica de Bakhtin (2002, p. 44) apresenta:

3. Não dissociar a comunicação e suas formas de sua base material (infra-estrutura).

Como aponta Miotello (2001), se há um discurso hegemônico é preciso verificar

como ele é recepcionado pela infraestrutura, refletido ou refratado, na forma como a

sociedade estabelece sua produção material e não nas construções dadas ao acaso.

Seguindo o dialogismo como norteador da metodologia desta pesquisa, concordamos

com Amorim (2004, p. 16), quando a autora traça aspectos da metodologia para Bakhtin. A

palavra nos dirige no sentido de que o dialogismo é nosso ponto norteador para

empreendermos as análises e realizarmos a investigação das vozes histórico-sociais.

Debruçamo-nos sobre os textos considerados, aqui, a representação do outro, os graduandos

sem terra e os demais sujeitos constituintes da cadeia discursiva do problema da terra no

Brasil, uma vez que todo texto tem um sujeito, um autor. O texto é, como salienta Bakhtin

(2011, p. 307), a “[...] realidade imediata (realidade do pensamento e das vivências) [...].

Onde não há texto não há objeto de pesquisa e pensamento”. Nessa perspectiva, o “[...]

método constrói-se na relação com o texto estudado. Pedindo ao texto que responda às nossas

questões” (AMORIM, 2004, p. 211).

O sujeito enunciador é visto, portanto, em seu processo de constituição histórico-

social, em suas relações com o outro e suas vozes, ou seja, em uma relação de alteridade.

Nessa ótica, buscamos relacionar as vozes levantadas e analisadas nos capítulos um, dois e

três às vozes dos acadêmicos sem terra analisadas no capítulo quatro.

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No que se refere ao estado da arte, sabemos que os estudos de Bakhtin geram

perspectivas distintas de trabalhos no Brasil e no mundo. No nosso caso, propomos um

trabalho que considere a constituição sócio-histórica dos signos ideológicos terra, reforma

agrária e educação do campo e a construção do PPP do curso, com vistas a compreendermos

as vozes que constituem a identidade dos graduandos sem terra do curso de Ciências Sociais

da UFGD.

Ao pesquisarmos no Banco de Teses e Dissertações da CAPES, com os descritores

Bakhtin + Terra; Bakhtin + Reforma Agrária; Bakhtin + Educação do Campo, não

encontramos estudos que versem acerca da perspectiva bakhtiniana com os mesmos signos

ideológicos aqui analisados. Também realizamos uma busca com os seguintes descritores:

Signo Bakhtiniano + Terra; Signo Bakhtiniano + Reforma Agrária; Signo Bakhtiniano +

Educação do Campo. O Banco de Dados nos apresentou, na primeira página, 20 trabalhos, os

quais são das áreas de Sociologia, Direito Agrário, Ciências Jurídicas, Ciências Agrárias,

Desenvolvimento e Meio Ambiente, Educação, Economia Rural, Economia, Geografia,

Engenharia de Produção. Dos 20 primeiros, apenas um é de um Mestrado em Letras,

intitulado Percursos da significação: um olhar sobre a identidade do aluno assentado do

MST da região de Juti – MS (COELHO SOUZA, 2016, p. 12), do Programa de Mestrado da

UFGD. Trata-se de uma dissertação que objetiva “[...] mostrar como os estudantes de uma

escola pública no município de Juti, Mato Grosso do Sul, se posicionam discursivamente em

textos produzidos durante as aulas de Produção Interativa”. Porém, não é um estudo que se

enquadre na teoria bakhtiniana em nenhum aspecto.

Além do Banco de Dados da CAPES, também pesquisamos o banco de Dissertações

e Teses do Programa de Pós-Graduação em Linguística, da Universidade Federal de São

Carlos (UFSCar), pelo fato de nesse Programa haver pesquisadores que desenvolvem

pesquisas com um olhar discursivo para os signos, segundo a perspectiva bakhtiniana, como

Miotello e Moura. A nossa pesquisa não identificou nenhum trabalho que verse acerca da

perspectiva bakhtiniana com os signos terra, reforma agrária e educação do campo. Mas

encontramos três estudos que trabalham com signos na perspectiva bakhtiniana.

O primeiro é o estudo de Oliveira (2007) a respeito da realidade do signo América

Latina, tendo como perspectiva teórica os estudos do Círculo de Bakhtin em diálogo com as

teorias de Rancière e Hard e Negri. Oliveira (2007, p. 18) defende que o estudo de um signo

pelo viés bakhtiniano não pode levá-lo em consideração “[...] como algo isolado ou mesmo

transparente, pois nele as relações cronotópicas e sociais se manifestam materialmente, em

fenômenos externos e internos ao homem”. O autor, ao buscar a diversidade de relações e a

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dialogia dissensual, analisou diferentes fatos discursivos a respeito da América Latina,

publicados no jornal Folha de São Paulo e na página da agência Carta Maior, entre os anos

de 2005 e 2006. Oliveira observou que o signo “América Latina” parece ser guiado por dois

elementos: mídia e economia, pois eles “[...] definem e delimitam os termos dentro da

América Latina” (2007, p. 131), o que aponta para uma leitura monologizada desse signo.

Outro trabalho que também destacamos é o de Scherma (2010), no qual a autora

traça um estudo a respeito das relações e das lutas discursivas estabelecidas nas bases

materiais da sociedade. Adota como perspectiva teórica os estudos do Círculo de Bakhtin,

defendendo que essas relações e lutas efetivam-se “[...] por meio dos discursos que se

produzem sobre as atividades econômicas ligadas ao agronegócio” (2010, p. 8). O objetivo do

trabalho é “[...] compreender de que maneira as ações da base concreta são preparadas,

justificadas e modificadas por meio de discursos, via palavra, via signo” (SCHERMA, 2010,

p. 8). A autora não seleciona um gênero discursivo específico para análise, mas elege vários,

como propagandas, textos do Ministério da Agricultura, samba enredo de uma escola de

samba, a fim de compreender as concretudes dos enunciados, “[...] em função de concepções,

valorações e tomadas de posição divergentes em relação às atividades agrícolas e pecuárias

em larga escala, o agronegócio” (SCHERMA, 2010, p. 8).

Além desses estudos, o trabalho de Duran (2016) também se propõe a analisar pela

perspectiva bakhtiniana como Brasil e França servem-se da leitura em seus exames de alcance

nacional, no caso o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o Baccalauréat,

respectivamente. Essa proposta leva em consideração que Enem e Baccalauréat são signos e

suas construções são históricas, considerando, assim, que ambos são dotados de uma herança

sígnica que encorpa o estabelecimento de um signo.

Os trabalhos de Oliveira (2007), Scherma (2011) e Duran (2016) apontam, assim

como o nosso, que o caminho para se estudar a constituição de um signo começa pelas suas

condições históricas, as quais mostram o trajeto feito pelo signo e os significados que ele foi

incorporando durante este trajeto histórico. No caso deste trabalho, deparamo-nos com uma

história de mais de 500 anos, o que nos levou a selecionar alguns eventos histórico-

discursivos que influenciassem os caminhos tortuosos da luta pela terra. Além disso, para nos

guiarmos nesse trajeto entre presente e passado, elegemos como norteadores uma tríade de

signos que acreditamos ser fundamentais para compreender a constituição da identidade dos

acadêmicos sem terra do curso de licenciatura em Ciências Sociais, da UFGD. Defendemos

que os signos terra, reforma agrária e educação do campo carregam em si valores

ideológicos de grupos sociais antagônicos de determinadas épocas, os quais vivenciaram

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determinado contexto social, político e econômico, momento em que foi necessário tomar

posições e resistir a outras, para garantir a força de suas ideologias sobre as outras, dando,

assim, corpo aos signos.

Estruturalmente este estudo apresenta-se organizado em quatro capítulos.

Destacamos que, em cada capítulo, apresentamos, inicialmente, uma síntese teórica dos

principais conceitos bakhtinianos desenvolvidos nas análises das vozes histórico-sociais.

Ademais, outros conceitos são mobilizados e discutidos teoricamente por meio da inter-

relação com as vozes histórico-sociais no decorrer dos capítulos.

No primeiro capítulo, analisamos vozes discordantes – monárquicas, políticas, legais,

sociais, religiosas – à distribuição de terras pelo viés da teoria bakhtiniana, verificando como

elas constituem os signos terra, reforma agrária e educação do campo.

No segundo, como um movimento de contrapalavra, apresentamos uma análise

dialógica das vozes consoantes ao processo de reforma agrária no Brasil. Nosso caminho

passa pelos discursos políticos, pelas ligas camponesas e a criação dos movimentos sociais

rurais sem terra.

No terceiro capítulo, enfatizamos o discurso do PPP do curso em análise.

Observamos, em especial, a gestação do curso de Ciências Sociais que não se iniciou na

UFGD, mas que é resultado de um caminho institucionalizado, marcado pelos movimentos

sociais rurais. Buscamos, ao analisar as diretrizes do curso de licenciatura em Ciências

Sociais, conhecer as vozes presentes, não só as discordantes, respondidas, contrariadas, como

também as consonantes, aliadas. Nesse percurso, investigamos também o processo de

implantação do curso, o perfil desejado dos graduandos, os objetivos do curso, as metas, os

pressupostos teóricos e metodológicos, os resultados esperados.

Já no quarto capítulo, empreendemos um olhar para a construção identitária dos

sujeitos estudantes sem terra por meio da investigação dos seus relatos pessoais. Esses relatos

são visualizados como um fenômeno da atualidade que retoma vozes anteriores e entra no

fluxo da história. Acreditamos que, ao buscarmos compreender a identidade dos estudantes

sem terra por meio da relação estabelecida entre o hoje e a história, podemos produzir

sentidos novos para esses sujeitos e, também, para as lutas pela reforma agrária no Brasil.

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CAPÍTULO I – A CONSTITUIÇÃO DOS SIGNOS IDEOLÓGICOS

TERRA, REFORMA AGRÁRIA E EDUCAÇÃO DO CAMPO: VOZES

HISTÓRICO-SOCIAIS DISCORDANTES À DISTRIBUIÇÃO DE

TERRAS

Como marcamos na Introdução deste trabalho, analisar a identidade de acadêmicos

sem terra na perspectiva bakhtiniana não significa apenas olhá-la como um fenômeno

contemporâneo, nascido do momento em que os sujeitos se colocam a escrever seus relatos de

experiências. Ao contrário, analisar os relatos pessoais de sujeitos sem terra pressupõe um

diálogo com o passado para, assim, compreender o presente. Partindo da premissa bakhtiniana

de que o signo constitui-se nas práticas interativas de uma determinada sociedade e carrega

em si as marcas históricas com as quais vivencia, para este estudo é fundamental apresentar

uma análise dialógica da história da estrutura fundiária no Brasil e da educação do campo,

construindo os caminhos de constituição dos signos terra, reforma agrária e educação do

campo, realizando um apanhado das vozes que se entrecruzam para constituir esses signos,

sejam elas legais, partidárias, religiosas, de modo que nos leve a compreender como esses

signos se articulam entre o real e o ideológico.

O elo unificador dessa tríade de signos é a terra, motivo de disputas por grupos

antagônicos que a concebem de formas diferentes ao longo da história do Brasil. Essa situação

faz com que aqueles que vivem da terra e veem nela sua existência tenham cada vez mais

dificuldades para obter a terra como direito, pois são várias as ações de grupos dominantes

para coibir o acesso por meio do direito. Diante disso, os dois grupos antagônicos – elite

política e ruralista e camponeses/foreiros – desenvolvem práticas para garantir o direito à

terra. Neste capítulo, trazemos à cena vozes discordantes ao processo de reforma agrária, que

ecoam desde o Período Colonial. São vozes que se põem contra o direito de terra para aqueles

que nela querem trabalhar, defendendo uma estrutura fundiária baseada no latifúndio e na

concentração de terra. Por meio de estratégias políticas e jurídicas, essas vozes levantam-se

contra as medidas tomadas pelos camponeses que buscam reverter o cenário de latifúndio no

Brasil.

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Analisar vozes discordantes – monárquicas, políticas, legais, sociais, religiosas – à

distribuição de terras pelo viés da teoria bakhtiniana, verificando como elas constituem os

signos terra, reforma agrária e educação do campo, é objetivo deste capítulo. Na busca para

alcançar esse objetivo, verificaremos que o signo terra já, no Período Colonial, durante a

vigência do Sistema de Sesmarias, é alvo de disputas entre índios e colonizadores. Mais tarde,

a Lei 601, de setembro de 1850, é implantada pelo Rei com o apoio político dos fazendeiros, a

fim de conter possíveis ocupações de terra por parte dos recém-libertos e dos imigrantes

europeus, os quais, ao verem uma grande extensão de terras devolutas, podem ocupá-las sem

o pagamento ao governo. Por isso, a Lei 601 determina que a única forma de obter o título de

terras no Brasil é por meio do pagamento de uma taxa ao governo. Com isso, ex-escravos,

imigrantes pobres e camponeses que vivem à beira de fazendas ou em terras mais no interior

do País estão impossibilitados de requerer o direito ao título de terras, por não possuírem

condições financeiras para pagar por elas. Outra medida para coibir o direito à terra está

presente na Constituição Federal de 1946, a qual os políticos de oposição usam para

conceituar a terra como “propriedade” e como “bem-estar social”. Esse conceito não exclui a

possibilidade de distribuição de terras, mas apresenta como condição para acessá-la a

indenização por parte da União ao proprietário, o que na prática não acontecerá.

Outro evento histórico-discursivo que realiza estratégias para coibir a ideia de

reforma agrária no Brasil é a criação das associações rurais, que reúnem latifundiários

herdeiros das fazendas de café, sobretudo, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Trata-se de uma

resposta às inciativas políticas e, também, às ações de organizações de trabalhadores rurais,

ocorridas a partir da década de 1940. As associações rurais defendem a propriedade privada

da terra, bem como atacam os apoiadores da reforma agrária. Para isso, utilizam-se da mídia

impressa e da influência política para garantir que suas terras continuem pertencendo a apenas

um proprietário. Atualmente, estão espalhadas pelo Brasil e desenvolvem forças contra os

movimentos sociais rurais seja por meio de ações violentas durante as ocupações seja

financiando partidos políticos para manter a ordem do latifúndio no Brasil.

Em 1964, com o Golpe Militar, o presidente João Goulart é deposto, dando início à

ditadura no Brasil. Os militares marcam a história da terra no Brasil com a aprovação do

Estatuto da Terra, sendo esta a primeira lei que compreende o direito à terra. No entanto, esta

Lei não sai do papel e aos trabalhadores rurais resistentes à inércia militar cabe sofrer com

ações violentas, como perseguições e assassinatos. O Estatuto da Terra leva em consideração

a função social da terra, o que os movimentos sociais rurais questionam, uma vez que, na

prática, não se vê a função social, mas sim a função capitalista.

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Em um cenário de combate aos levantes sociais contra o latifúndio e contra a

propriedade privada, a Igreja Católica, em um primeiro momento, é uma forte aliada dos

interesses dos políticos e dos latifundiários fazendo oposição à reforma agrária. A Igreja

trabalha para naturalizar um discurso contra a distribuição de terras, o qual já está presente em

países europeus, principalmente, na União Socialista Soviética, onde o latifúndio é extinto,

passando as terras a serem coletivas e gerenciadas pelo governo. Para alguns religiosos, a

distribuição de terras aos trabalhadores rurais é, então, uma porta de entrada para o

comunismo no Brasil, além de ser uma ofensa à estrutura social deixada por Deus, na qual

cada membro da sociedade tem um papel no Corpo Místico de Cristo.

São essas as vozes que ecoam, neste primeiro capítulo, e são analisadas à luz da

teoria do Círculo de Bakhtin. Elas mostram o dialogismo entre os discursos contra a reforma

agrária no Brasil. Respondem, questionam e negam discursos de defesa do direito à terra.

1.1 Vozes Teóricas

Ao trabalharmos com a constituição dos signos terra, reforma agrária e educação do

campo, observamos não ser suficiente a análise apenas do momento sócio-histórico atual do

qual foram capturados esses signos – no nosso caso, os relatos pessoais de acadêmicos sem

terra. Isso porque partimos do princípio bakhtiniano de que os signos apresentam uma

historicidade, uma relação com fatos exteriores que o fazem viver e se movimentar em um

grupo social. Trazer esses signos para arena da compreensão é mostrar os índices de valor que

eles têm no grupo do qual fazem parte e, também, demonstrar como esses índices entram em

confronto com valores opostos, o que constitui um duelo de classes.

Em uma ação dialógica e responsiva, procuramos conhecer os embates sociais e o

papel da linguagem nesses contextos para, então, seguirmos pelos caminhos da constituição

dos referidos signos. Entendemos que os signos ideológicos guardam em seu bojo as nuances

da interação social, por isso compreender o seu caminho de constituição é fundamental para

refletirmos acerca da história da terra como também da identidade dos acadêmicos sem terra.

Propomo-nos, assim, a compreender as razões de os signos terra, reforma agrária e educação

do campo serem ideológicos a partir de uma análise que se atém nas lutas de classes, pois,

conforme Bakhtin (2011, p. 319), “[...] qualquer estudo dos signos, seja qual for o sentido em

que tenha avançado, começa obrigatoriamente pela compreensão”.

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1.1.1 Construção do Signo Linguístico, Social e Ideológico no Círculo de Bakhtin

O signo como um produto ideológico faz parte de uma realidade seja ela natural ou

social, como ocorre com um corpo físico, um instrumento de produção, um material

tecnológico, mas, contrariamente a estes, ele também reflete e refrata uma realidade que está

fora de si, no exterior. A realidade mencionada por Bakhtin não é imóvel e estática, ao

contrário ela conhece desenvolvimento e movimento, já que o próprio homem não é inerte.

Segundo Volochínov (2013, p. 196), a “[...] realidade efetiva na qual o homem real vive é a

história, este mar eternamente agitado pela luta de classes, que não conhece quietude, não

conhece paz”. O signo, por trazer em seu bojo a realidade exterior, a realidade da luta de

classes, é sócio-histórico e, também, ideológico: “[...] tudo que é ideológico é um signo. Sem

signos não existe ideologia” (BAKHTIN, 2002, p. 31), a qual é entendida por Volochínov

(2013, p. 138) como “[...] todo o conjunto de reflexos e interpretações da realidade social e

natural que se sucedem no cérebro do homem, fixados por meio de palavras, desenhos,

esquemas ou outras formas sígnicas” (grifos do autor). Contrariamente ao signo, um corpo

físico não carrega valor em si, uma vez que não significa nada e se remete a sua própria

natureza, o que implica não ser ideológico: “Nenhum fenômeno da natureza tem ‘significado’,

só os signos (inclusive as palavras) têm significado. Por isso, qualquer estudo dos signos, seja

qual for o sentido em que tenha avançado, começa obrigatoriamente pela compreensão”

(BAKHTIN, 2011, p. 319).

Bakhtin (2002) defende, no entanto, que um corpo físico pode ser convertido em

signo, não deixando de fazer parte da realidade material, mas passando a refletir e a refratar

outra realidade. O autor apresenta o exemplo da foice e do martelo, dois instrumentos de

produção que em si não apresentam sentido, apenas função: servem para realizar um trabalho

manual. Contudo, quando esses instrumentos passam a representar um país, como no caso a

antiga União Soviética, eles adquirem sentido ideológico. Da mesma forma ocorre com

produtos de consumo, como o pão e o vinho, os quais em rito católico tornam-se um

sacramento, a eucaristia, a presença do Cristo em corpo e sangue no altar; um signo

ideológico. Porém, Bakhtin adverte que em si os produtos, pão e vinho, não são signos. Outro

exemplo que podemos tomar é a lona preta que abriga, nos barracos dos movimentos sociais

pela terra, os acampados pela reforma agrária à beira das rodovias. A lona preta, que tem a

função de proteger, quando usada pelos movimentos sociais rurais é um signo que produz o

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sentido de resistência ao modelo capitalista vigente de distribuição de terra, bem como o

sentido de travessia, de passagem entre um momento de sacríficos e de privações e a

conquista do lote no assentamento. Já para os latifundiários, a mesma lona representa uma

ameaça aos seus interesses, uma resistência e uma oposição ao sistema elitista de distribuição

de terra no Brasil. Volochínov (2013, p. 192) explica que, com a lona, assim como com todo

objeto: “[...] Aconteceu que um fenômeno da realidade objetiva tornou-se um fenômeno da

realidade ideológica: o objeto se transformou em signo (obviamente, igualmente objetivo,

material)”.

Em vista disso, na concepção do Círculo de Bakhtin, o signo apresenta a natureza de

refletir e a de refratar uma realidade: “[...] Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou

apreendê-la de um ponto de vista específico” (BAKHTIN, 2002, p. 32). Isso significa que o

signo carrega em si uma valoração externa ideológica, por isso o domínio do signo e o do

ideológico são mutuamente correspondentes: “[...] Ali onde o signo se encontra, encontra-se

também o ideológico” (BAKHTIN, 2002, p. 32). Volochínov (2013, p. 199) destaca a

importância do caráter de refração do signo, pois “[...] somente graças a esta refracção das

opiniões, avaliações e pontos de vista o signo é vivo e móvel e é capaz de desenvolvimento”.

A refração demonstra que o signo faz parte da luta de classes por ser o resultado de uma

avaliação. Quem fala pertence a uma classe, e suas palavras são pronunciadas dentro de um

contexto sócio-histórico e diante de um interlocutor (presente ou ausente), dessa maneira “[...]

um enunciado absolutamente neutro é impossível” (BAKHTIN, 2011, p. 289), já que “[...] as

palavras do falante estão sempre embebidas de opiniões, de ideias, de avaliações que, em

última análise, são inevitavelmente condicionadas pelas relações de classe” (VOLOCHÍNOV,

2013, p. 196).

A compreensão de um signo, para Círculo, efetiva-se na aproximação com outros

signos já conhecidos, isto é, “[...] a compreensão é uma resposta a um signo por meio de

signos” (BAKHTIN, 2002, p. 34). Observamos, assim, a constituição de uma cadeia única e

continua de compreensão ideológica, em que se percebe o deslocamento de um signo em

outro signo para um novo signo. Essa cadeia ideológica constitui-se de consciência individual

em consciência individual, fazendo entre elas ligações em um processo de interação do qual

os signos emergem. Nessa relação de interação, a consciência torna-se consciência por estar

impregnada de conteúdo ideológico.

O ideológico tem seu lugar no material social dos signos criados pelos homens de um

mesmo grupo social. Sua natureza específica está no fato de ele se situar na interação social

entre indivíduos organizados; desse modo, a consciência individual é um fato sócio-

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ideológico (BAKHTIN, 2002). Nessa perspectiva, entendemos que os signos só podem

emergir em um terreno interindividual, posto que é entre os indivíduos organizados

socialmente, os quais comungam das mesmas experiências sociais que os signos podem

constituir-se. Os signos alimentam a consciência individual que reflete sua lógica e suas leis.

Essa lógica da consciência é a “[...] lógica da comunicação ideológica da interação semiótica

de um grupo social” (BAKHTIN, 2002, p. 36). A consciência é formada pelo conteúdo

semiótico e ideológico, desse modo se tirá-los dela, nada sobra.

A palavra é um fenômeno ideológico por excelência, posto que a realidade da

palavra é absorvida por sua função de signo. Ela é a forma mais pura e mais sensível da

relação social. Por isso, a palavra é um objeto imprescindível no estudo das ideologias, pois

ela carrega as nuances e as mudanças mais sutis de um grupo social. Uma das características

da palavra destacada por Bakhtin (2002) é a sua ubiquidade social, isto é, sua capacidade de

estar em todo lugar e ao mesmo tempo. Ela é capaz de penetrar em todas as relações entre

indivíduos, é, ainda, constituída de milhares de fios dialógicos e serve de enlace a todas as

relações sociais. Por seu caráter de ubiquidade, a palavra é o “[...] indicador mais sensível de

todas as transformações sociais” (BAKHTIN, 2002, p. 41), até mesmo daquelas que ainda não

apareceram, mas despontam ou que ainda não tomaram forma.

Por carregar as transformações sociais, o signo é resultado de um consenso entre

indivíduos organizados socialmente no processo de interação social, de modo que “[...] as

formas do signo [são] condicionadas tanto pela organização social de tais indivíduos como

pelas condições em que a interação acontece” (BAKHTIN, 2002, p. 44). Se ocorrer

modificações em uma dessas formas, haverá também modificação no signo. Logo, o signo

sofre dupla influência: o signo determina o ser, e o ser é influenciado por ele, o que demonstra

uma evolução social do signo, já que ele guarda modificações sociais. Para estudar essa

evolução, Bakhtin (2002) propõe não separar a ideologia da realidade material do signo, não

dissociar o signo das formas concretas da comunicação social, e não separar a comunicação e

suas formas de sua base material, a infraestrutura.

Por realizar-se no processo da relação social, o signo ideológico é marcado pelo

horizonte social de uma época, de um período histórico e de um grupo social determinados:

“[...] um certo horizonte social definido e estabelecido que determina a criação ideológica do

grupo social e da época a que pertencemos, um horizonte contemporâneo da nossa literatura,

da nossa ciência, da nossa moral, do nosso direito” (BAKHTIN, 2002, p. 112). O valor de um

objeto depende da sua ligação com as condições sócio-econômicas de um grupo social, por

isso um signo pode ser avaliado como falso, verdadeiro, correto, justificado. O objeto apenas

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entrará no horizonte social de um grupo se for compartilhado pelos indivíduos desse grupo,

portanto é imprescindível que, primeiro, tenha significação interindividual, pois, assim, “[...]

ele poderá ocasionar a formação de um signo. Em outras palavras, não pode entrar no domínio

da ideologia, tomar forma e aí deitar raízes senão aquilo que adquiriu um valor social”

(BAKHTIN, 2002, p. 45). Todos os índices de valor que se caracterizam ideologicamente são

índices sociais de valor por fazerem parte do consenso social, por serem compartilhados pelos

indivíduos de um grupo. É por esse compartilhamento que os signos se exteriorizam no

material ideológico. O ser reflete-se no signo, mas também nele se refrata. O que determina

esta refração do ser no signo ideológico é o confronto de interesses sociais ocorridos no

interior de uma mesma comunidade semiótica, a luta de classes. Uma comunidade semiótica é

aquela que se utiliza de um único e mesmo código ideológico de comunicação. No entanto, as

visões de mundo, os pontos de vista entre os indivíduos de uma comunidade não são os

mesmos, o que gera conflitos. Por isso, todo signo ideológico apreende índices de valor

contraditórios, o que caracteriza o signo como uma arena onde se desenvolve a luta de classes,

onde se revela e se confrontam valores sociais contrários que lutam entre si constituindo

relações de dominação, de adaptação, de resistência às instâncias de hierarquia e poder. São

os encontros entre os índices de valor contraditórios que tornam o signo vivo e móvel,

evoluindo por meio dos entrecruzamentos. Sem esse contato, sem vivenciar tensões da luta de

classes, ou se estiver à margem da luta de classes, o signo não evolui, consequentemente, irá

se debilitar, se degenerará, não sendo mais um objeto vivo e racional para a sociedade

(BAKHTIN, 2002).

A luta de classes torna o signo ideológico vivo e dinâmico, fazendo dele um

instrumento de refração e de deformação do ser. A classe dominante costuma conferir ao

signo ideológico um caráter inatingível e acima das diferenças de classe, de forma que as

diferenças sejam vistas como naturais. Com isso, objetiva-se ocultar ou abafar a luta dos

índices sociais de valor travada no interior dos signos, querendo fazer do signo ideológico

monovalente, assim, objetivando naturalizar e cristalizar o seu sentido. Mesmo assim, o signo

vivo continua guardando as contradições ideológicas de um grupo social, o que evidencia sua

latente dialética. A esse respeito Bakhtin (2002) afirma que são nas épocas de maior crise

social e de comoção revolucionária que esse caráter se torna mais evidente, pois os diferentes

índices de valor de um signo emergem em meio à tensão. Em tempos sem crises sociais, a

contradição em todo signo ideológico é acobertada, já que a ideologia dominante estabelecida

tenta ocultar a natureza um pouco revolucionária do signo e tenta ainda estabilizar o sentido

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anterior da corrente dialética da evolução social e valorizar o sentido de ontem como válido

hoje.

É no entrecruzamento de índices de valor, de confrontos e de constituição dos signos

ideológicos que também se dá a relação entre infraestrutura e superestrutura, um dos

problemas cruciais do marxismo, segundo Bakhtin (2002). O filósofo russo mostra que esse

problema está intimamente ligado aos problemas da filosofia da linguagem (BAKHTIN,

2002).

1.1.2 Infraestrutura e Superestrutura

Os conceitos de infraestrutura e superestrutura foram cunhados por Marx e Engels,

os quais observam que a sociedade está dividida entre essas duas estruturas que se relacionam

por meio da linguagem. A infraestrutura é o conjunto de forças de produção, formada pela

matéria-prima, pelos meios de produção e pelos trabalhadores. Nesse tipo de estrutura,

estabelecem-se as relações de trabalho entre empregados e empregados, patrões e

empregados, as quais são marcadas pela exploração da força de trabalho no interior do

processo de acumulação capitalista (MARX e ENGELS, 2001). Enquanto a infraestrutura –

conjunto de trabalhadores que movimentam os meios de produção –, trata-se da realidade, de

forças produtivas e das relações sociais de produção que formam a base sobre a qual se

constituem as demais instituições sociais, a superestrutura está representada pelas grandes,

tradicionais e poderosas instituições ideológicas de uma sociedade, como Estado, política,

religião, justiça, comunicação, ciências. Para os autores, a superestrutura é resultado de

estratégias dos grupos dominantes para a consolidação e perpetuação de seus domínios, já as

instituições que criam leis, julgam, e que comunicam ao povo suas decisões, por exemplo,

fazem parte de seu círculo de poder. Entre as estratégias utilizadas pelas classes dominantes a

fim de se perpetuar e se consolidar no poder estão a força e a ideologia (MARX e ENGELS,

2001). Uma vez que detém o poder do Estado nas mãos, a classe dominante pode utilizar-se

da força física para atingir seus objetivos, o que é legitimado pela ideologia de seu grupo e

acobertado por suas instituições. Marx e Engels (2001) defendem que o Estado tem sempre a

incumbência de defender os interesses da classe dominante, objetivando manter seu poder

sobre os trabalhadores. A ideologia é, portanto, um instrumento para fazer com que ações e

ideias sejam vistas como verdadeiras e aceitáveis pela sociedade, apesar de serem fruto de

estratégias da classe dominante para se manter no poder. O pensamento dessa classe é

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também, em todas as épocas, os pensamentos predominantes de uma sociedade: “[...] a classe

que é o poder material dominante numa determinada sociedade é também o poder espiritual

dominante” (MARX e ENGELS, 2001, p. 48). É possível entender, assim, como que a classe

dominante consegue chegar aos seus objetivos: ela dispõe dos meios de produção material e

dos meios da produção intelectual, de forma que os pensamentos da classe trabalhadora estão

submetidos ao pensamento dominante.

A dialética social apresentada pelo marxismo (infraestrutura e superestrutura) e a

influência que a infraestrutura opera sobre a superestrutura são observadas por Bakhtin

(2002). O autor afirma que o “[...] problema da relação recíproca entre a infra-estrutura e as

superestruturas [...] pode justamente ser esclarecido, em longa escala, pelo estudo do material

verbal” (BAKHTIN, 2002, p. 41). O cerne desse problema está em saber como a

infraestrutura estabelece um signo e, ainda, como o signo reflete e refrata a realidade em

mudança. Da mesma forma, é fundamental também saber em que medida a linguagem

determina a consciência, a atividade mental e em que medida a ideologia determina a

linguagem.

Podemos entender pela perspectiva bakhtiniana que a prática social produz índices

axiológicos, os quais são percebidos na interação social, visivelmente presentes no material

verbal, mas não somente nele, como ressalta Duran (2016, p. 26-27):

[...] Estão também nesta rede de materialização das práticas o material

imagético, os gestos, os extratos culturais como um todo e até mesmo a

organização do tempo (período de estudos, de trabalho, momentos para

exercício da religiosidade, de compras, atenção à saúde, o modo como

exprimimos nossos sentimentos de amor e ódio etc.). Toda essa gama de

práticas sociais determina aquilo que é chamado pelo Círculo de Bakhtin de

infraestrutura.

Percebemos, assim, que infraestrutura e superestrutura estão em constante relação, de

maneira que uma é indissociável a outra. Elas agem de forma que uma se delimita em razão

da outra. Essa relação é vista no signo, pois ele carrega as relações de produção e estruturas

jurídico-político-econômicas (DURAN, 2016).

Bakhtin, em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2002), analisa que a palavra

enquanto signo ideológico é o mais adequado material para nos levar a entender as mudanças

sociais, pois ela acumula as mais sensíveis transformações sociais. A psicologia do corpo

social realiza-se sob a forma de interação verbal (situação dinâmica em que as posições

axiológicas, os valores sociais entram em jogo). Por isso, a psicologia do corpo social não se

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localiza em outro lugar que não seja o exterior: “[...] Nada há nela de inexprimível, de

interiorizado, tudo está na superfície, tudo está na troca, tudo está no material, principalmente

no material verbal” (BAKHTIN, 2002, p. 42).

O indivíduo, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata, o

que é determinado pelo confronto de interesses sociais em uma mesma comunidade

semiótica: a luta de classes. Esse confronto dá vida e dinamicidade ao signo ideológico e faz

dele um mecanismo de refração e de deformação do ser. Embora a classe dominante tente

conferir ao signo ideológico uma natureza “intangível” e encobrir as diferenças de classe, a

fim de obscurecer os confrontos sociais de valor, caracterizando o signo como monovalente, o

signo vivo é ambivalente, uma vez que carrega em seu bojo a crítica e o elogio, a mentira e a

verdade, aspectos que lhes confere dialética interna, pois, ao falar, toma-se posição, ao mesmo

tempo em que se nega a posição contrária. Como ressalta Bakhtin (2002), em tempos em que

o confronto de interesses é maior, observa-se com mais nitidez a dialética dos signos

ideológicos, uma vez que se percebe a divisão da sociedade. Trata-se do mesmo signo, mas

tomado em posições ideológicas diferentes. Caso o signo com sentido da classe dominada

ecoe mais forte, seja ouvido nas ruas, a classe dominante tende a criar estratégias para abafá-

lo e ocultá-lo, encobrindo as diferenças, com o objetivo de perpetuar o seu sentido, o

tradicional, o conservador. Suas instituições trabalham em favor de cristalizar o sentido

pretendido pelos interesses dominantes, obscurecendo e naturalizando as diferenças de

classes. Como explica Bakhtin (2002): na ideologia da classe dominante, o signo ideológico é

sempre um pouco “reacionário” e objetiva familiarizar e valorizar a sua verdade e fazê-la

valer como única e fundamental.

1.2 Vozes Histórico-sociais

Para analisar a constituição da identidade de acadêmicos sem terra do curso de

Ciências Sociais, da UFGD, a partir de uma perspectiva bakhtiniana, devemos entendê-la

dentro de um processo dialógico de forma que sua construção não se faz no imediato do texto,

mas é um elo da cadeia dialógica. Tomando por base essa visão, os relatos pessoais são vistos

como textos que congregam variadas vozes, tanto as concordantes, ao dialogarem com as

vozes dos movimentos sociais, quanto as discordantes, ao dialogarem com os latifundiários e

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o governo conservador, os quais também fazem parte da constituição dos sujeitos expressivos

e falantes objeto deste estudo.

As vozes histórico-sociais a serem analisadas, o Período Monárquico, com o regime

de Sesmarias, a Lei de Terras de 1850 e a Constituição Federal de 1891, a Constituição

Federal de 1946, as Associações Rurais, o Governo Militar e o Estatuto da Terra, a Igreja

Católica, no que se refere à Carta Pastoral de Dom Inocêncio e ao grupo conservador

Tradição, Família e Propriedade, a seguir, demonstram como os signos terra, reforma agrária

e educação do campo foram sendo gestados pelo grupo social opositor à redistribuição de

terras no Brasil. Ou seja, os documentos analisados, como leis, decretos, estatuto, cartas

pastorais e livros religiosos marcam como esses signos deixaram de ser linguísticos para

serem signos ideológicos. Nessa perspectiva, observamos que o trajeto percorrido pelos

referidos signos está associado aos acontecimentos extraverbais dos quais participam os

opositores ao projeto de reforma agrária e, também, os defensores desse projeto. Nesse

sentido, percebemos como a escravidão e o seu fim foram decisivos para a constituição da

terra como bem de capital, demonstrando a relação estreita entre o extraverbal e o signo

ideológico.

Da mesma forma, examinamos como os religiosos católicos conservadores tiveram

influência crucial na constituição dos signos terra e reforma agrária, bem como no de luta

pela terra, uma vez que a sociedade brasileira, tanto abastados como marginalizados, ao

associar a luta pela terra e a reforma agrária ao comunismo vivenciado na Rússia,

entenderam-nas como sinônimos de comunismo, blasfêmia a Deus, pecado, furto, dentre

outros. Esse discurso ainda perdura na sociedade conservadora, a qual concebe a luta por

direitos, seja pela terra, por educação, por justiça social, como um ato prejudicial à ordem já

estabelecida. Ressaltamos ainda a voz do Governo Militar, o qual concebeu a terra como

“função social”, vendo no campo a oportunidade de criar uma classe média do campo a fim de

aumentar a produtividade e diminuir o êxodo rural.

Assim, as vozes histórico-sociais a serem analisadas, a seguir, sejam políticas ou de

grupos sociais conservadores, demonstram como a ordem e o progresso foram bandeiras

levantadas e defendidas pelos grupos da elite brasileira e, ainda, como esses discursos

perduram e fortalecem os governos conservadores e os latifundiários, delineando os caminhos

dos signos terra, reforma agrária e educação do campo.

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1.2.1 Período Monárquico: o sistema de Sesmarias

A teoria bakhtiniana aponta que o signo é resultado da construção consensual de

indivíduos pertencentes a uma determinada sociedade organizados em um processo de

interação, por isso os signos são condicionados pela organização social desses indivíduos e

pelas condições em que as interações ocorrem. Quando acontece uma modificação dessas

formas, há uma modificação no signo. Porém, essas mudanças ocorrem devido ao caráter

intrinsecamente dialético do signo, em que há uma influência mútua entre o signo e o sujeito.

Podemos compreender, assim, que os signos terra, reforma agrária e educação do campo são

dialéticos por refletirem e refratarem sentidos que não são únicos, mas por serem signos

construídos na interação entre grupos sociais discordantes nos conflitos da vida diária, sendo

resultados de significações diferentes que cada grupo atribui. Os signos, então, carregam em

si marcas desses sujeitos e desses conflitos que se refletem neles, mas também se refratam,

pois o resultado dessa refração passa pela arena de conflitos, de interesses sociais, de

dissidência de opiniões. Essa refração de opiniões, de pontos de vista, de avaliações faz “[...]

o signo vivo e imóvel e é capaz de desenvolvimento” (VOLOCHINOV, 2013, p. 199). Ao

contrário, o signo que está alheio às relações de classe e que aparentemente esteja além da luta

de classe é um signo que se debilita, se degenera, e chega à morte: “[...] Destes signos

ideológicos mortos, incapazes de se tornarem arena dos interesses sociais vivos, está cheia a

memória histórica da humanidade” (VOLOCHINOV, 2013, p. 199).

Bakhtin (2002, p. 31) discute que um produto ideológico é também integrante da

realidade, assim como todo corpo físico, mas por ser ideológico “[...] ele reflete e refrata uma

outra realidade, que lhe é exterior”. Nesses termos, a terra como corpo físico – superfície

sólida da crosta terrestre, chão, solo, pó, poeira7 – passa de um signo linguístico para um

signo ideológico quando entra no processo interativo dos sujeitos e passa a carregar a

ideologia desses grupos. No nosso caso, terra incorpora sentidos de grupos antagônicos por

carregar em si a ideologia desses grupos sociais, o que dará a ele sentidos diferentes, como

veremos neste estudo. Na visão bakhtiniana, o corpo em si não tem valor, mas passa a ter ao

incorporar a ideologia dos grupos sociais8, pois tudo “[...] que é ideológico possui um

significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico

7 Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, 2009.

8 A esse respeito, Bakhtin (2002, p. 32) apresenta os exemplos da foice e do martelo que de instrumento de

trabalho, na União Soviética, passaram a ter sentido ideológico.

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é um signo. Sem signos não existe ideologia” (BAKHTIN, 2002, p. 31). Por carregar a

ideologia, a palavra para Bakhtin é uma arena de lutas, em que se estabelecem os conflitos de

classes, os confrontos de valores sociais contraditórios. O signo terra deixa de significar uma

realidade em si mesma e passa a refletir outra realidade que excede o simples significado em

si. Para Volochínov (2013, p. 196), isso acontece, pois o enunciador pertence a uma classe,

tem uma profissão e um grau de desenvolvimento cultural. São essas condições sócio-

econômicas, organizadoras da forma de sua enunciação, a fonte do discurso do enunciador, o

qual tem suas palavras “[...] embebidas de opiniões, de ideias, de avaliações que, última

análise, são inevitavelmente condicionadas pelas relações de classe”.

Desse modo, concordamos com Duran (2016) quanto à existência de uma herança

sígnica. Os signos, terra, reforma agrária e educação do campo, carregam em si “valores

hereditários” que justificam a razão de a terra ter se tornado um problema no Brasil. Esses

valores hereditários podem ser revisitados a partir de um olhar para a história, já que o

presente convive dialogicamente com o passado de forma a receber dele influências. Assim, a

história está sempre sendo revista e reconfigurada, por meio de sua presença nos discursos do

presente.

Como já dissemos, ao pensarmos nos relatos pessoais, via perspectiva bakhtiniana,

não concebemos que o nascimento deles tenha se dado na ação imediata de escrita, mas sim

entendemos que são um elo na cadeia dialógica, de forma que seus discursos refletem e

refratam outros discursos, outras vozes. É nessa perspectiva que a presença dos fatos

históricos, neste trabalho, é fundamental, pois são eles que desvelarão as vozes que

constituem os signos, como também os relatos pessoais dos acadêmicos sem terra. Por meio

da história, podemos compreender o horizonte social de cada época que é constituindo os

signos em análise e, a partir disso, perceber como os sujeitos acadêmicos sem terra são

sujeitos inacabados, ativos, capazes de produzir e de serem produzidos por uma história

descontinua. Na visão de Bakhtin, a história carrega o caráter de descontinuidade por estar em

relação com o presente. Neste caso, a história não é um fenômeno social acabado, absoluto,

pronto e estagnado, mas sim é móvel, inconcluso, inacabado. E esse movimento de

descontinuidade é dado pela linguagem que cria e recria o mundo histórico e valorativo

(GEGe, 2013). Nas palavras de Miotello (2006), a história é sempre revisitada pelos interesses

atuais e pelos sentidos do presente, sendo, assim, reformatada. Pela visão dialógica, o passado

sempre volta e vive no presente, sendo retomado pelas várias vozes que constituem os

discursos. É esse jogo de relação entre passado e presente que faz com os sentidos

permaneçam, sejam ressuscitados, sejam compartilhados por indivíduos de um mesmo grupo

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social, a “[...] conservação se dá por conta dos significados, e a filtragem é uma rede de

relações que conserva aquilo que de alguma forma precisamos. A ‘Memória do passado’ tem

a cara que o presente lhe atribui” (MIOTELLO, 2006, p. 280). O passado está sempre sendo

atualizado no presente de forma dialógica, conservando e reformatando sentidos. Como

ressalta Miotello (2006), nas relações de ordem dialógicas, não há sínteses, mas se constrói a

história. O autor declara ainda que “[...] dialogia não é dialética. Na dialética os opostos se

anulam para uma nova síntese. Na dialogia os sentidos opostos convivem enquanto diferentes,

e geram sentidos novos” (MIOTELLO, 2006, p. 280).

Compreender dialogicamente a constituição dos signos terra, reforma agrária e

educação do campo é dialogar com o passado, ressaltando a natureza social e ideológica dos

signos. Ao analisarmos dialogicamente a constituição do signo terra, deparamo-nos com o

Sistema de Sesmarias, que vigora no Brasil do período colonial até 1822. Trata-se de um

sistema de doações de terras instituído em Portugal, tendo como preceito a tradição e as

relações de amizade com pessoas “[...] aos puros de fé e puros de sangue, ou seja,

portugueses, católicos e ‘brancos’ abastados” (NARDOQUE, 2014, p. 44-45).

O Sistema de Sesmarias caracteriza-se pelo modelo de exploração econômica do tipo

mercantilista, trata-se de um sistema “[...] concessões de sesmarias, economicamente

financiadas pelo capital mercantil, em especial associado ao holandês, e baseada no trabalho

compulsório, escravo” (COUTO, 2008, p. 22). O Rei, no entanto, não concede aos seus a

posse das terras, mas garante que eles as administrem. Assim, não são os donos e não podem

repassá-las a título de usufruto a terceiros. Nesse sistema, as terras são patrimônio do monarca

de Portugal, o qual pode vendê-las ou doá-las a quem ache melhor. O referido sistema é “[...]

perfeitamente compatível com os objetivos econômicos da acumulação mercantilista”

(COUTO, 2008, p. 22). Na acumulação mercantilista,

[...] os processos de produção estão subordinados ao capital comercial ou

mercantil. Além de representar uma alternativa de ocupação, defesa e

exploração do território colonial a um custo de produção superlativamente

inferior ao que seria necessário ao desenvolvimento e estruturação de um

amplo processo de migração e colonização (COUTO, 2008, p. 22).

Nesse período, a terra não é preocupação, há em abundância, é virgem e fértil e pode

aumentar conforme as ambições dos colonizadores. Podemos inferir que esse sistema dialoga

com o feudalismo, uma vez que os beneficiários com a terra devem fazê-la produzir sem

receber por esse serviço e sem ter a posse das terras. Como autoridade maior, no sistema do

Brasil Colônia, o Rei pode tanto conceder a terra como também retirá-la, expulsando os que

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não seguem suas normas. Há, contudo, uma falta de interesse de pessoas pela terra, mesmo

sendo de propriedade da Coroa, o que aponta para o fato de que nesse período poucos

valorizam estar na terra, já que o valor monetário das terras é baixo, estando o mercado

interessado no produto extraído dela, como ouro e madeira.

Outra iniciativa do Rei é a nomeação de Tomé de Souza como governador geral de

todas as capitanias e terras da costa do Brasil. Essa nomeação é acompanhada pela

homologação de um Regimento9, de 17 de dezembro de 1548, o qual limita direitos,

atribuições, isenções aos donatários de sesmarias, concentrando nas mãos do Governador

Geral a administração das terras (MALHEIROS, 1867). Ao fidalgo, o Regimento não permite

distribuir as terras da ribeira, mas concedê-las aos que possuam condições financeiras

suficientes para construir engenhos de açúcar, dentre outros estabelecimentos semelhantes,

desde que se edifiquem torres ou fortes que sirvam de defesa contra os invasores

(MALHEIROS, 1867). Segundo Lima (1988), com o Regimento de 1948, dá-se início à

transformação do regime sesmarial, já que necessita adaptar-se ao vasto território da Coroa

Portuguesa, marcando, assim, a estrutura de concentração de terras no Brasil. Nessa época, a

terra passa a ser motivo de preocupação ao Rei, principalmente, as costeiras por concentrar

ataques de índios e de invasores estrangeiros que chegam pelo mar. O Regimento expõe que

“[...] um princípio novo veio a vigorar, trazendo-lhe o prestígio da lei escrita, o espírito do

latifúndio” (LIMA, 1988, p. 39). A lei escrita passa a vigorar e a se estabelecer como um

discurso de autoridade, pois ela representa o Rei.

Com essa iniciativa, a terra passa a ter um sentido diferente, pois antes poderia ser

concedida a quem interessasse ao Rei (católicos, brancos, abastados), mas com o Regimento

ela passa a ser conferida àqueles que possuam condições financeiras para construir engenhos e

realizar a defesa da costa brasileira. Nessa direção, na perspectiva bakhtiniana, o signo terra,

que antes é um “bem do Rei”, ganha sentido de “mercadoria de troca” entre a Coroa e os

beneficiários do regime de sesmarias, de modo que o Rei concede as terras e os beneficiários

garantem o desenvolvimento econômico e a proteção delas. Percebemos que se trata do

nascimento de um signo, pois a terra começa a ganhar outros sentidos de interesse de um

grupo que não aquele de solo, pó e vastidão.

9 Regimento de 17 de dezembro de 1548. Disponível em:

<http://lemad.fflch.usp.br/sites/lemad.fflch.usp.br/files/1.3._Regimento_que_levou_Tom__de_Souza_0.pdf>.

Acesso em: 20 set. 2016.

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O Regimento assinado pelo Rei determina aqueles que podem ter a guarda da terra,

ou seja, aqueles que dispõem de condições econômicas necessárias. Determinar quem guarda

as terras costeiras e as faz produzir é um movimento ideológico que silencia as vozes daqueles

que também poderiam cultivá-las, mas não dispõem de condições financeiras para mantê-las

conforme o Regimento estabelece. Assim, o Regimento é uma voz de autoridade que dá o

tom, como afirma Bakhtin (2011), das relações com a posse da terra. Vemos que, nessa época,

nesse círculo social, há discursos que são seguidos, citados, imitados e até confrontados. As

palavras do Regimento são, à época, assimiladas pela população brasileira que se forma e

dialogicamente faz parte das experiências discursivas dos indivíduos e de seus

comportamentos. Como aponta Bakhtin (2011, p. 295), as “[...] palavras dos outros trazem

consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos, e

reacentuamos”. A voz do Regimento ecoa pelas sesmarias e dialoga não somente com os

aliados do Rei, que pretendem usufruir das terras, mas também com aqueles que, em solo

brasileiro, chegam vindos de Portugal, e guardam legalmente as terras contra os ataques dos

índios, os quais organizam resistências contra a “política de grande terror”10

assegurada no

Regimento.

O documento régio dialoga com os interlocutores, mostrando de quem são as terras, e

quais as punições àqueles que não cumprirem com as normas estabelecidas. Ademais, a voz

do Regimento é a voz do Rei, a qual deve ser a primeira e a última voz com relação à guarda

das terras monárquicas. O signo terra como “propriedade da coroa” e “moeda de troca” nasce

do entrelaçamento entre o ideológico, o social e o histórico, refletindo a ideologia da Coroa e

refratando a ideologia de resistência dos indígenas. Verificamos aqui a coexistência de duas

forças ideológicas, uma do Regimento – amparado pelo poder do Rei, pelo poder da escrita e

pelas ações asseguradas pela “política de grande terror” –, e outra pela resistência dos

indígenas em defender seus territórios e seu modo tradicional de viver. A natureza de

resistência das minorias à política do dominante nasce, no Brasil, na resistência dos índios, os

quais dão suas vidas em defesa de seus territórios, característica que marca a relação com

10 A “política de grande terror” foi recomendada por D. João III e consistia em coibir resistências de indígenas

com ações violentas, como em amarrar aquele que praticara algum delito à boca de um canhão, fazendo-o

explodir. No século XVI, “a Confederação dos Tamoios, primeiro movimento de resistência a reunir vários

povos indígenas, como tupinambás, goitacases e aimorés, teve o apoio de huguenotes franceses, terminando com

milhares de índios mortos e escravizados. O conflito, conhecido como Guerra de Paraguaçu (1558-59), destruiu

130 aldeias. Por essa época, multiplicavam-se as revoltas do gentio, com assaltos a núcleos de colonização e

engenhos, mortes de brancos e de escravos negros” (DEL PRIORE; VENANCIO, 2010, p. 18).

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terra das gerações futuras tanto de índios quanto de pequenos agricultores e, mais tarde, do

MST. Nesse contexto, a classe dominante vê nascer a luta pela terra em solo brasileiro. Esse

caráter de resistência ao poder elitista constitui os discursos dos relatos pessoais, quando os

sujeitos demonstram como suas vidas são marcadas por enfrentamentos, pois o direito

presente na Lei não cabe a eles, por isso precisam empreender lutas para que seus direitos

sejam efetivados. Isso mostra que os discursos dos sem terras acadêmicos do curso de

Ciências Sociais relacionam-se dialogicamente com discursos históricos, sendo elos na cadeia

discursiva, de forma que não são os primeiros discursos de resistência, como também não

serão os últimos.

O sistema sesmarial já é uma solução conhecida pela Coroa Portuguesa, pois quando

“[...] D. João III resolve ocupar-se da colonização do Brasil, estende aqui a fórmula ensaiada,

primeiramente, no reino e, depois, nas ilhas atlânticas” (CAETANO, 1980, p. 13) –, e,

consequentemente, o tratamento dado à terra, demonstrando que o signo e o contexto social

estão indissoluvelmente ligados, de modo que o sistema semiótico, no caso a escrita, serve

para exprimir a ideologia e, por isso, é moldada por ela (BAKHTIN, 2002). Sendo a língua

determinada pela ideologia, também o são a consciência, o pensamento e a atividade mental.

A língua é a expressão das relações e lutas sociais, propagando e sofrendo os efeitos desta

luta, prestando-se como instrumento e material (BAKHTIN, 2002).

Como expressão de relações sociais, o regime de Sesmarias, com o tempo, ganha

novos contornos, já que novos interlocutores fazem parte da cadeia dialógica. Com a chegada

cada vez maior de europeus, que encontram grandes extensões de terra vazias, em 1695, a

Coroa determina o pagamento de taxas à Coroa, cobradas conforme a extensão e a qualidade

das terras. A cobrança é mais uma forma de responder àqueles que aqui chegam, silenciando-

os e demonstrando que a terra é destinada aos que têm condições de pagar os impostos. Com a

cobrança, demonstra-se que as concessões são de domínio administrativo sob um bem

público, isto é, as terras ainda são de propriedade da Coroa, mas estão sendo apenas

usufruídas pelos donatários de sesmarias. O regime colonial apresenta sentidos mais

específicos à terra, já que passa a concebê-la como um instrumento para gerar riqueza. No

entanto, para continuar seu projeto de acumulação, utiliza-se de uma legislação especial, um

conjunto de normas e providências isoladas, para mantê-las sob o poder do Rei (LIMA,

1988).

A terra, nesse contexto, é um produto ideológico que reflete uma realidade exterior,

os interesses públicos. Neste caso, o signo terra possui os sentidos de “propriedade da Coroa”

e “moeda de troca”, o que se reflete no contexto social. A ideologia monárquica e os discursos

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por ela produzidos acentuam que a terra não é para todos, o que é uma marca na história

fundiária brasileira. Dessa forma, aqueles que a querem cultivar, explorar e especular

precisam atender às normas do Rei ou driblá-las. Já os que não dispõem de capital para pagar

os impostos nem de influência política não podem legalmente adquiri-las, instalando-se nas

faixas entre as grandes fazendas. O sistema das Sesmarias, ideologicamente idealizado,

proporciona a instalação de grandes propriedades e alta concentração fundiária,

principalmente, nos arredores das aglomerações populacionais, já no Brasil Colonial.

O que é ideológico, nesse contexto inicial da história, é a terra, que carrega as visões

de mundo, as pretensões de um grupo social dominante, que, mesmo querendo-se

monológico, ou seja, ao não levar em consideração a condição de outros sujeitos envolvidos

no processo de distribuição de terras e tratá-los como objeto, já desenvolve discursos para

limitar as ações dos outros, dos lavradores e dos índios, e, assim, marcar o Brasil como o país

do latifúndio. Podemos entender pelo olhar de Bakhtin (2002, p. 31): tudo “[...] que é

ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos,

tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia” (grifos do autor).

Notamos que a estrutura social sinaliza para os contornos das grandes propriedades e da posse

de pessoas influentes política e economicamente.

Sendo o contexto histórico um ponto chave na teoria de Bakhtin e constitutivo dos

discursos dos acadêmicos sem terra do curso de Ciências Sociais, buscamos continuar nosso

aprofundamento nas raízes sociais para entendermos a construção do signo terra, neste

primeiro momento. O caráter inconcluso e dialógico da história mostra que a relação do poder

público e da sociedade brasileira com a terra não se estagna com as normas estabelecidas pelo

Rei durante o período das Sesmarias. A história continua e mostra que as resistências pela

posse da terra só aumentam, mas também se multiplicam os apossamentos irregulares da terra

por parte dos latifundiários.

A partir de 1822, inicia-se um período de vacância do sistema sesmarial, o que faz

com que a questão fundiária fique em aberto e possibilite o agravamento de apossamentos

irregulares da terra. Nesse período, as posses são marcadas conforme os olhos dos grandes

fazendeiros, tendo como limites riachos, encostas e serras. No entanto, um novo sujeito surge

nesse contexto, os novos posseiros, os quais, já organizados e influentes em suas freguesias,

resistem às investidas dos grandes senhores, os conservadores, e mostram que também

querem o poder e a terra. Entretanto, os antigos senhores têm o poder político em mãos que

contorna a situação em seu favor. Mesmo assim, é necessário que o governo e os fazendeiros

conservadores apaziguem as disputas com os novos posseiros latifundiários/os liberais, bem

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como criem um novo regime de distribuição de terras, o qual atenda aos interesses dos dois

grupos, impedindo novos apossamentos e o surgimento de outros novos posseiros

latifundiários. O discurso monologizado do Rei, do início da colonização, já não é o único a

ecoar, pois outras vozes levantam-se para garantir a posse das terras, a ponto de surgir os

novos posseiros, antigos lavradores, que percebem quais devem ser as ações realizadas para

garantir a posse da terra, o que inclui a influência na região, ou seja, já se pensa em uma

organização para se manter na terra.

Podemos perceber que o discurso da grande propriedade chega aos pequenos

posseiros, de forma que aquilo que é uma humilde posse de terras cultiváveis passa a se

impregnar do espírito do latifúndio. O surgimento desse novo sujeito – novos posseiros –

indica que os pequenos lavradores relacionam-se e incorporam os discursos dos grandes

proprietários, por observar neles a possibilidade de ascensão social. Notamos que a ideologia

das grandes propriedades chega aos novos posseiros, que têm força física e experiência para

trabalhar a terra e aprendem que é necessário ter influência política para defender e aumentar

suas posses. Sendo a consciência individual um fator sócio-ideológico, ela ganha outros

membros da sociedade outrora contrários aos interesses da elite latifundiária. Agora, querem

juntar-se a ela, fazer parte da mesma cadeia, do mesmo grupo social. Do ponto de vista

bakhtiniano, a terra como signo ideológico recebe sentidos de “propriedade”, “capital” e

“influência política”, os quais refletem a lógica e as leis de um grupo social, com interesses

coesos, o que sustenta a constituição do signo ideológico. É por isso que os signos só podem

surgir em um terreno interindividual, na relação com o outro, onde haja organização dos

membros do grupo (BAKHTIN, 2002, p. 35).

Volochínov (2013, p. 195) ressalta que “[...] o arbítrio individual não pode,

obviamente, ter qualquer significado. O signo se cria, de fato, entre indivíduos, no ambiente

social, na sociedade”. A própria consciência individual abriga-se nas palavras (leis, decretos,

Constituições, debates, gritos por justiça), nos gestos significantes, nas imagens, de modo que

fora desses materiais semióticos o que existe é simplesmente um ato fisiológico (BAKHTIN,

2002). A herança das lutas mostra aos sem terra de hoje que a força está no discurso, fator que

fará com que os movimentos sociais rurais contemporâneos enxerguem na palavra um

instrumento fundamental para suas lutas. São lemas, hinos, documentos e cartilhas

incorporados à luta pela terra, a fim de também fazerem parte da cadeia de enunciados de um

contexto sócio-histórico e responderem aos discursos hegemônicos. São eventos sociais, ou

seja, enunciados na perspectiva bakhtiniana. Segundo Bakhtin (2011, p. 371), não há

enunciados isolados, pois ele está sempre dialogando com enunciados anteriores e posteriores:

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“[...] Ele é apenas um elo na cadeia e fora dessa cadeia não pode ser estudado”. Bakhtin e

Volochinov (1926, p. 4) também discorrem que “[...] na vida, o discurso verbal é claramente

não autossuficiente. Ele nasce de uma situação pragmática extraverbal e mantém a conexão

mais próxima possível com esta situação.”

Desse modo, tanto vozes discordantes como vozes consoantes à reforma agrária

enxergam no discurso o poder para que seus planos sejam concretizados. Exemplo disso é a

Lei de Terras de 1850, a qual marca o contexto histórico da estrutura fundiária no Brasil, por

ser a primeira Lei que institui o valor monetário da terra, excluindo, assim, aqueles que não

dispõem de condições financeiras para arcar com os custos da terra. Mediante essa Lei, outros

mecanismos legais são criados para excluir os camponeses do direito à terra, como

discutiremos a seguir.

1.2.2 Lei de Terras de 1850 e Constituição Federal de 1891

Em outro momento histórico, o contexto com relação à posse de terras apenas se

agrava com disputas armadas no campo e, também, judiciais, o que leva o Parlamento a

discutir o desenvolvimento de um projeto que organize as posses de terras e diminua os

conflitos entre pequenos lavradores e grandes senhores do café e, também, entre pequenos

lavradores e outros pequenos lavradores. As discussões iniciam-se, em 1843, com os políticos

conservadores, que entregam um projeto ao Parlamento, o qual não é aprovado pelo Partido

Liberal. Engavetado, em 1844, o projeto apenas volta a entrar na pauta de discussões em

1849, tendo sua aprovação em setembro de 1850. A Lei 601 é mais conhecida como a Lei de

Terras de 1850.

O ano de 1850 também assinala a história brasileira com o fim do tráfico negreiro

por meio da promulgação da Lei Eusébio de Queirós. Com isso, a aristocracia já sabe que

cedo ou tarde a escravidão será extinta11

. Com essa previsão, latifundiários e monarquia

pensam na necessidade da entrada de mão-de-obra imigrante12

e livre para desempenhar o

11 A Inglaterra já havia aprovado o Abolition Act, em 1807, proibindo o tráfico de escravos, e, em 1833, é abolida

a escravidão nesse país; em 1810, um tratado de amizade entre Inglaterra e Portugal propôs o fim gradual da

escravidão nas colônias portuguesas; na França, já em 1794, uma convenção republicana aprovou a lei que

extinguia a escravidão em suas colônias, mas somente em 1848 os escravos foram emancipados; no Chile, em

1823, uma lei também proibiu a escravidão. 12

O momento pelo qual passava a Europa era favorável à saída dos europeus para outros países, pois estavam

passando pela fome endêmica que se tratou do esgotamento do solo e da doença da batata. No caso da Irlanda,

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trabalho que antes o africano realizara. Há, no entanto, uma dúvida quanto à reação dos

imigrantes europeus ao verem grandes extensões de terras devolutas vazias. Pensando na ação

do outro, que pode ser a de adentrar essas terras e depois requerê-las, o poder público

antecipa-se e insere na Lei de Terras13

a norma de que as terras devolutas não podem ser

ocupadas mediante outro título que não seja o de compra (MARTINS, 1998), como aponta o

Artigo 1º: “Ficão prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o

de compra” (BRASIL, 1850). Já o Artigo 2º reza que os:

[...] que se apossarem de terras devolutas ou de alheias, e nelas derrivarem

matos, ou lhes puzerem fogo, serão obrigados a despejo, com perda de

bemfeitorias, e demais soffrerão a pena de dous a seis mezes de prisão, e

multa de cem mil réis, além da satisfação do damno causado (BRASIL,

1850).

quase todo território era ocupado pela agricultura, o que pressionava as terras, extremante produtivas, e

aumentava em larga escala a renda. Nesse período, a batata, tubérculo mais plantado e consumido no território,

começou a apresentar a “doença da batata”, a qual se espalhou pelo território, contaminando o solo por longos

anos, assolando a população altamente dependente do tubérculo. Diante desse cenário, muitos camponeses

irlandeses não tiveram condições de pagar suas dívidas e foram expulsos das terras que cultivavam, sendo

obrigados a se dirigirem para as cidades. A crise também se espalhou para outros países, como Inglaterra, que

veem o preço das sementes subirem por causa das más colheitas vistas em toda Europa. Diante disso, milhões de

irlandeses emigraram, principalmente, para a América do Norte e deram início ao êxodo dos europeus. Também

contribuiu para imigração a falta de empregos causada pela Revolução Industrial na Inglaterra, ocasionada pelo

avanço tecnológico gerado pela presença de diversos maquinários no chão das fábricas, as tensões entre

trabalhadores e grandes proprietários, o desflorestamento, a opressão fiscal dentre outros problemas que

pareciam ser solucionados com a emigração para países como o Brasil. Havia ainda uma grande propaganda feita

pelas agências que faziam o transporte de imigrantes em navios para o Brasil e aqueles que aqui já estavam

também propagavam, por meio de cartas, notícias positivas sobre a vida na nova terra. 13 Conforme Motta (1998): “Proclamada como uma lei inauguradora, capaz de “firmar a propriedade territorial”,

dando ao proprietário “tranqüilidade e seguridade”, a Lei de Terras de 1850 não esteve acima da sociedade que a

criou. Inspirada – segundo alguns – pelo sistema de colonização de Wakefield, ela não foi, no entanto, mais um

mero reflexo da inspiração baseada num modelo externo e, muito menos, resultado das elucubrações teóricas de

dois redatores Aprovada no mesmo ano que pôs fim ao tráfico negreiro, a Lei de Terras também não esteve

automaticamente ligada ao problema da famosa transição do trabalho escravo para o livre. Debatida, discutida,

virada pelo avesso ao longo de sete anos (de 1843 a 1850), ela também não foi apenas resultado das clivagens

partidárias do período e também não refletiu como espelho os interesses dos cafeicultores fluminenses Ela foi

isto tudo (certamente não de modo tão esquemático) e muito mais. Para os advogados, ela inaugurou conceitos

jurídicos ainda hoje utilizados no Brasil. Outros ainda vêem na lei um recurso para a defesa dos interesses do

Estado em relação a suas terras devolutas ou na defesa de pequenos posseiros em processo de expulsão. Ela foi

também isso; e ainda mais. Como toda e qualquer lei, ela esteve imbricada nas relações pessoais, teve uma

história e buscou assegurar critérios universais, legitimadores dos princípios jurídicos que procurou consagrar.

Como qualquer lei, ela esteve intimamente ligada ao passado e foi para dar conta dos problemas dele advindos

que homens de várias tendências entraram e debateram, criticaram e defenderam na Câmara e no Senado. Mas o

passado nada tem de singular. Para cada um dos representantes no Parlamento havia uma interpretação – que

conflitava com outras – para explicar a história da ocupação territorial do Brasil e lhe conferir um sentido. Para

alguns, era o direito dos posseiros que deveria ser salvaguardado; para outros, era preciso diferenciar s

cultivadores dos meros invasores dos terrenos alheios. Para outros ainda, o importante era salvaguardar os

interesses dos sesmeiros, os titulares das terras. Neste debate de interpretações, o texto da Lei de Terras não

deixou de expressar esta arena de lutas”.

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No próximo Artigo (3º), a Lei de Terras declara que terras devolutas são aquelas que

não estão “[...] no domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem havidas por

Sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Província, não incursas em comisso por

falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura”. A Lei aponta que a

terra que não estiver documentada pelo Governo Geral é considerada devoluta (vasta extensão

de terra de propriedade da União); já aquela que estiver no domínio particular, tem seu

proprietário. Percebemos que a Lei assegura a incapacidade de qualquer pequeno posseiro,

que trabalha na lavoura, ter acesso à terra, pois ele não tem como obter a escritura dela

mediante o pagamento do valor estipulado pelo governo colonial. Ocorre aqui o afirmado por

Volochínov (2013, p. 144): “[...] Em certo sentido, a palavra sacraliza, com sua antiga

autoridade mágica, as leis vantajosas para uma minoria dirigente que favorecem a servidão da

maioria submetida”.

A força da palavra Legal e a da voz de autoridade do Rei garantem a oportunidade de

posse àqueles que têm os títulos documentados e que na terra habitam ou que nela coloquem

alguém para representá-lo. Observamos como o discurso está alicerçado em outras vozes,

como também está orientado aos outros. A Lei de Terras, como todo discurso, apresenta dois

princípios absolutos da teoria bakhtiniana, primeiro o diálogo com a história da Europa no

que diz respeito à saída de imigrantes para outros países, visualizando-os como prováveis

interessados pelas terras devolutas e, também, com o próprio contexto brasileiro de libertação

dos escravos, e segundo por dialogar com os anseios dos pequenos posseiros brasileiros em

requererem os títulos de posse, o que é negado pela Lei. A Lei de Terras não é neutra, pois

carrega em si o horizonte social do grupo que a utiliza. Do mesmo modo, a Lei, no processo

dialógico, demonstra que as palavras não são de ninguém por retomarem discursos e

comportamentos passados. Porém, elas carregam uma força ideológica que responde, limita e

intimida os seus interlocutores: “[...] em si mesmas nada valorizam, mas podem abastecer

qualquer falante e os juízos mais diversos e diametralmente opostos dos falantes”

(BAKHTIN, 2011, p. 290). Assim, pelo fato de em si não terem sentido, entendemos que a

força do signo terra enquanto bem de capital está no fato de seu significado ser compreendido

e aceito por um grupo social, no caso monarquia, conservadores e liberais, o que acentua o

caráter interindividual dos signos: “[...] não se pode entrar no domínio da ideologia, tomar

forma e aí deitar raízes senão aquilo que adquiriu um valor social” (BAKHTIN, 2002, p. 45).

Volochínov (2013, p. 195) também a esse respeito explica que para:

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[...] fazer com que um objeto, qualquer que seja o tipo de realidade à qual

pertença, entre no horizonte social de um grupo e provoque uma reação

semântica, ideológica, é necessário que este objeto esteja ligado com as

premissas socioeconômicas essenciais da realidade objetiva do grupo dado, é

necessário que toque, mesmo marginalmente, a base da realização material

do grupo.

Importa destacarmos que a Lei de Terras, representante dos interesses da classe

dominante em suas linhas, garante a todos o acesso à terra desde que haja o pagamento do

valor estipulado pelo governo e não afirma em momento algum que pequenos lavradores não

podem obter o título de posse. Há um discurso falso acerca do acesso igualitário à terra, já que

ela se torna uma mercadoria. Podemos notar que a classe dominante oculta as diferenças de

classe e de possibilidade de obtenção do título de terra. Pela Lei, qualquer pessoa que pague

pelo título pode ter acesso a terra, de modo que a Lei não distingue pessoas da classe

dominante da classe minoritária. Trata-se de um discurso que objetiva convencer a sociedade

(em seus variados grupos) que terra é para quem pode pagar por ela. Essa noção perpetua-se

pela história, pois, além das leis, que associam a posse da terra ao pagamento de um valor

monetário, a Igreja Católica também mostra aos seus fiéis que a divisão da sociedade entre os

que dispõem de dinheiro e os que não dispõem é oriunda da vontade divina, sendo, assim, é

pecado contrariar essa lei. Notamos a exclusão dos pequenos posseiros de forma naturalizada,

tendo em vista que eles são aqueles que não dispõem de dinheiro nem de influências para

requerer o título. Entendemos que a “[...] classe dominante tende a conferir ao signo

ideológico um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de

ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava, a fim de tornar o signo

monovalente” (BAKHTIN, 2002, p. 47). A lei é, portanto, para todos, porém apresenta um

caráter dialético, pois uns são por ela excluídos e outros são por ela privilegiados.

O signo terra reflete a ideologia do grupo social dominante e é produto da história

humana, uma vez que se pode ver nele a imagem desse grupo, ou seja, o seu horizonte social,

os valores perseguidos e os caminhos percorridos para que encarne significados, mas também

se refrata ao dialogar, mesmo que pelo silenciamento, com os imigrantes e os pequenos

posseiros. Isso significa, segundo Volochínov (2013, p. 195), que “[...] num único signo se

refletem e acompanham-no relações de classe diversas. Nenhuma palavra reflete com absoluta

precisão (‘objetivamente’) o seu objeto, o seu conteúdo. A palavra não é, de fato, a fotografia

daquilo que denota”. A luta de classes determina o caráter de refração do ser no signo, já que

a refração é o resultado do sentido passado pelo crivo do sujeito lavrador. A refração desvia e

deforma os sentidos únicos apontados pelo grupo dominante, fazendo o signo terra

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multiplicar-se em sentidos diversos, originários do contato com sentidos construídos por

outras classes. Para Marx e Engels (2001), as classes emergem na base econômica, quando ela

se ergue sobre modos de produção antagônicos, organizados em torno de diferentes

modalidades de exploração do trabalho. “[...] Classes diferentes têm também pontos de vista

diferentes; na linguagem de cada classe existe uma medida particular de correspondência da

palavra com a realidade objetiva” (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 198). O signo é, então, uma

arena onde se desenvolve a luta de classes, por ser no signo que se efetiva o entrecruzamento

de significações distintas, fazendo dele um fenômeno plurivalente. “Esta plurivalência social

do signo ideológico é um traço da maior importância. Na verdade, é este entrecruzamento dos

índices de valor que torna o signo vivo e móvel, capaz de evoluir”, conforme Bakhtin (2002,

p. 46), e, assim, chegar aos relatos pessoais dos acadêmicos sem terra já ressignificado,

reformatado, resultado de relações conflituosas.

A Lei de Terras de 1850 é considerada por Martins (1998) um marco na história da

terra no Brasil, por ser efetivada em um contexto que muda a relação do homem brasileiro

com a terra. Mesmo que ela já fosse considerada um bem de capital por meio do pagamento

ao Rei, essa Lei e, posteriormente, outras leis e seu Regulamento de 185414

garantem a

negociabilidade da terra. Além disso, outro ponto com o qual a Lei dialoga refere-se à

condição de transição do valor de capital e de acumulação que passa do escravo – que até

aquele momento é garantia de crédito nos bancos para custear as lavouras de café – para as

terras. Desta forma, a Lei de Terras dialoga com a futura “libertação dos escravos”.

Diante do cenário que aponta para a libertação dos escravos e do amparo dado pela

Lei de Terras e de seu Regulamento de 1854, já em 1873 o governo concede crédito

hipotecário tendo como garantia de pagamento a terra e a propriedade, o que acentua o caráter

do signo terra como “mercadoria”, o que antes é conferido ao escravo. No entanto, a terra

ainda não é bem vista por banqueiros e comerciantes como garantia de pagamento, pois a eles

não interessa ser fazendeiros; logo, a solução dada pelos donos de Banco é a penhora do fruto

pendente e do fruto colhido, o que constrói um cenário no qual aquele que tem mais terras

para produzir pode adquirir mais créditos bancários. Assim, observamos uma corrida pela

14 Em 1854, foi promulgado o Regulamento para execução mais fiel da Lei de Terras/Lei 601, de 1850, o qual

estabeleceu prazos para a regularização dos títulos de terras por meio da medição realizada por funcionários do

Governo. Estabeleceu-se que todo o posseiro que possuísse ou não o título de sesmarias ou o estipulado pela Lei

601, de 1850, deveria procurar o juiz comissário ou os agrimensores para realizar as medições. No entanto, o

Art. 37 aponta que apenas poderiam requerer a medição aqueles que tivessem culturas formadas, o que não seria

o caso de “simples roçados, derribadas, ou queimas de matos, e outros actos semelhantes”, conforme aponta o

Regulamento.

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terra, uma vez que possuir mais terras significa o aumento da produção e, consequentemente,

do crédito bancário. O signo terra, logo, está impregnado de valor ideológico de um novo

grupo social que entra no processo de interação, os banqueiros. Para eles, o sentido de terra

está relacionado à garantia de pagamento pelos créditos feitos pelos fazendeiros por meio dos

frutos que ela produz. Do mesmo modo, os fazendeiros também criam o sentido de “crédito

bancário” para terra, pois é ela que assegura o investimento na produção de café e o aumento

de riqueza. Dessa forma, o signo terra é encorpado de novos sentidos, o que é resultado da

participação de novos sujeitos sociais, os banqueiros, os quais entram no jogo discursivo e

reformatam o sentido de terra, haja vista que, nesse contexto social, terra já não é planeta, solo

ou pó, mas carrega os resultados das negociações existentes entre os grupos envolvidos.

A esse respeito, Miotello (2005, p. 170) destaca que, para os pensadores do Círculo,

“[...] objetos materiais do mundo recebem função no conjunto da vida social, advindos de um

grupo organizado no decorrer de suas relações sociais, e passam a significar além de suas

próprias particularidades materiais”. É isso o que notamos na constituição do signo terra, um

deslocamento do significado original (terra: planeta, pó, solo) para um significado

incorporado da ideologia do grupo social dominante. O signo, então, é composto por duas

faces, uma no sentido físico-material e outra no sentido sócio-histórico-ideológico. No

entanto, não se pode falar que um grupo social tem seu signo, mas seu universo de signos,

conforme Bakhtin, que o serve e o mantém em coesão. Além da face dupla, o signo recebe um

ponto de vista, pois, como afirma Miotello (2005, p. 170), “[...] representa a realidade a partir

de um lugar valorativo, revelando-a como verdadeira ou falsa, boa ou má, positiva ou

negativa, o que faz o signo coincidir com o domínio do ideológico. Logo todo signo é

ideológico”. A terra é vista, assim, do lugar valorativo da situação sócio-historicamente

construída pela classe dominante.

Na transição do século XIX para o século XX, logo depois da proclamação da

república, vigora no Brasil a Constituição Federal de 1891, a qual acentua os direitos dos

latifundiários à propriedade, em destaque para os cafeicultores, ao estabelecer, em seu

parágrafo 17 que o direito: “[...] de propriedade mantem-se em toda a sua plenitude, salvo a

desapropriação por necessidade, ou utilidade pública, mediante indemnização prévia”

(BRASIL, 1891)15

. Podemos notar que a linguagem é utilizada para assinalar o direito à

propriedade privada, como também para assegurar que o poder das terras mantenha-se nas

15 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm>. Acesso em: 21 set.

2016.

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mãos da elite cafeicultora. A Carta Magna, como lei maior do País, é uma ação responsiva do

governo e de seus aliados aos levantes de resistência que podem ocorrer advindos dos

imigrantes que aqui chegam, bem como dos pequenos lavradores que se veem cada vez mais

encurralados pelas grandes fazendas. Dialogicamente, a Lei interage com os movimentos de

resistência ao apontar que a desapropriação pode acontecer, porém somente com indenização,

o que na verdade é um empecilho aos pequenos lavradores, já que a União não garante ter

verba para custear as indenizações. Assim, o poder dos grandes latifundiários sobre as terras é

novamente acentuado.

A Constituição Federal de 1891 é um elemento que também entra no fluxo da

história como um instrumento que mantém o poder da elite sobre as terras e, por ser uma voz

de autoridade, a qual deve ser obedecida, ela forma e molda uma sociedade que já nasce

tutelada, pois seus direitos são vedados, enquanto a concentração de grandes extensões de

terra nas mãos de poucas pessoas mantém-se. Trata-se de mais uma via legal utilizada pela

classe dominante para frear as ações de resistência, ainda tímidas, que se vê pelo Brasil.

Importa destacarmos que o signo terra, ao ser visualizado no curso da história, da

chegada dos europeus colonizadores com a implantação do sistema de Sesmarias, a

promulgação da Lei de Terras de 1850 e da Constituição de 1891, assimila as mudanças

sócio-econômicas vivenciadas pelos grupos dominantes e dominados. Inicialmente, terra é de

propriedade da Coroa, moeda de troca de favores. Aos nobres é dado o incentivo de povoá-la

e fazê-la produzir. Porém, aspectos econômicos externos, como o fim da escravidão nos

países europeus e a esperada libertação dos escravos, criam para o signo terra o sentido de

“mercadoria”, “bem de capital” e “crédito bancário”, passando a considerar a terra como um

produto negociável, desencadeando o interesse pela legitimação das propriedades. Em um

processo contínuo, notamos que a renda adquirida por meio do escravo transforma-se em

“renda territorial capitalizada”, de forma que a terra, que antes é livre, passa a ser cativa e o

escravo, que é cativo, passa a ser livre (MARTINS, 1998).

O regime de Sesmarias, a Lei de Terras (1850-1854) e a Constituição de 1891 são

fatores preponderantes para o amplo apossamento de terras e para a limitação da posse ao

camponês, o que resulta na formação de latifúndios, avançando sobre as pequenas

propriedades, expulsando o pequeno lavrador (SMITH, 1990). Esses discursos introduzem, no

Brasil, a gênese da propriedade capitalista da terra, disseminando a ideologia de que terra não

se conquista, terra se compra, o que regula as relações entre a classe dominante e a classe

dominada no Brasil, “[...] limitando o acesso à terra aos trabalhadores do campo, separando-

os dos meios de produção, subordinando-os ao latifundiário e ao capital ou expulsando-os da

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terra” (NARDOQUE, 2014, p. 45-46). Por isso, analisar esses três fenômenos históricos é

fundamental para este estudo, pois são eles que norteiam as próximas ações tanto da classe

dominante quanto da dominada e influenciam as novas leis como também as resistências por

parte dos camponeses. São três elementos histórico-sociais e jurídicos que entram no fluxo da

história e são retomados nos fios discursivos dos acadêmicos sem terra quando retratam os

enfrentamentos que precisam realizar para acessar a terra, ao mesmo tempo são também

constitutivos de discursos futuros. Esses fenômenos não estão, portanto, estagnados no

passado, mas estão vivos na cadeia discursiva. Os relatos pessoais são tomados pelos

discursos dos outros, por milhares de fios dialógicos, de toda carga ideológica que

carregamos.

Podemos perceber, por meio do trajeto histórico até aqui percorrido, que o signo

terra deixa de significar uma realidade em si mesma (pó, poeira, solo) e passa a refletir outra

realidade que ultrapassa o significado do próprio objeto terra. Portanto, é um signo

ideológico, o qual carrega sentidos múltiplos – conflitantes e consensuais –, que marcam o

lugar que este signo frequenta, os grupos sociais nos quais está inserido.

O signo terra também é constituído, como demonstraremos a seguir, por outras leis.

A Constituição Federal de 1946 incentiva o trabalhador rural a permanecer no campo, por

meio de planos de colonização e de aproveitamento de terras públicas, o que está

condicionado ao pagamento por parte da União das terras desapropriadas. Porém, essa é mais

uma lei que na prática não se efetiva em decorrência da defesa dos privilégios da classe

dominante.

1.2.3 Constituição Federal de 1946

Em 1946, uma nova Constituição Federal é outorgada. Em um cenário em que a

reforma agrária já é um ponto discutido entre políticos de oposição e os a favor, a Lei Maior

do País concebe a terra como “propriedade” e como “bem-estar social”, sendo possível a

distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos, mediante a indenização. A

Lei não se refere à reforma agrária, mas a uma redistribuição de terras, o que muda a

perspectiva, pois antes as terras são apenas adquiridas por meio da compra do título, agora

passam a ser objeto de desapropriação, podendo ser redistribuídas, a todos de modo igual. A

falta do termo “reforma agrária” leva-nos a inferir uma tentativa de silenciamento das vozes

defensoras da reforma agrária como fragmentação do latifúndio, divisão, coletivização e, ao

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mesmo tempo, ao se referir à terra como “bem-estar social”, há uma tentativa de acalmar os

ânimos daqueles que já se organizam reivindicando por reforma agrária. A Lei trata de direito

à terra, porém isso é condicionado à indenização por parte União, o que pode ser um

empecilho para a efetivação da distribuição de terras.

O Art. 156 expõe o incentivo ao camponês para sua fixação no campo por meio de

planos de colonização e de aproveitamento de terras públicas: “A lei facilitará a fixação do

homem no campo, estabelecendo planos de colonização e de aproveitamento das terras

públicas. Para esse fim, serão preferidos os nacionais e, dentre eles, os habitantes das zonas

empobrecidas e os desempregados” (BRASIL, 1946 Art. 156). Esta é a política defendida

pelo Presidente Getúlio Vargas que, na verdade, objetiva incorporar novas terras, proteger as

fronteiras e aumentar a produção de alimentos, o que leva o Presidente a instituir, por meio do

Decreto-lei nº 3059, as Colônias Agrícolas Nacionais (CAN). Esse programa prevê a

ocupação de terras, ditas pelo Governo, “devolutas” em áreas de fronteiras ou ainda pouco

povoadas, como as do sul do Estado de Mato Grosso (MT), hoje Mato Grosso do Sul (MS)16

.

Essa ação do governo de Vargas é conhecida como Marcha para o Oeste.

No entanto, quando os chamados colonos chegam às terras encontram problemas,

como a presença de grupos indígenas e a falta de infraestrutura. Esse programa não chega a

atender todo o País, deixando os trabalhadores rurais do nordeste de fora da distribuição. O

que se vê, então, é uma Lei que, no papel, assegura o direito do homem de se fixar na terra, o

que não é a realidade, pois os grandes senhores de terras ainda mantêm poder político,

dinheiro e influências sociais para não permitir que a parcela mais pobre de trabalhadores

rurais seja beneficiada com essa Lei.

O programa Marcha para o Oeste não se trata de reforma agrária, uma vez que o

intuito não é a distribuição de terras, a permanência dos camponeses nas terras e a afirmação

de um direito. Na verdade, é uma forma de povoar as áreas de fronteiras e pouco povoadas,

protegendo-as das ocupações dos países vizinhos. Ao restante dos trabalhadores rurais do País

cabe desenvolver ações de resistência para fazer valer a Lei. A política de distribuição de

terras está prevista em Lei, mas está atrelada à disponibilidade financeira de o governo em

custear as despesas com as indenizações, resultando na ineficácia da Lei para aqueles que têm

esperança de que o direito valha para todos.

16 Em 1977, houve a divisão do Estado de Mato Grosso em dois Estados, resultando no Estado de Mato Grosso

(MT), cuja capital é Cuiabá, e o Estado de Mato Grosso do Sul (MS), cuja capital é Campo Grande. Neste

trabalho, nosso foco é o Estado de Mato Grosso do Sul (MS).

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A autoridade da Lei é utilizada para congregar interesses de grupos majoritários e

acalmar as minorias que pedem por reforma agrária. A Constituição resulta de um jogo de

forças em que a ideologia dos dominantes tem poder sobre a dos dominados. As leis

representam a ideologia oficial, uma ideologia mais organizada, mais concreta, mais

estabilizada, caracterizada também por sua “[...] estrutura e conteúdo, relativamente estável”

(MIOTELLO, 2005, p. 169), e demonstram que, a cada época, as classes dominantes

constroem forças ideológicas a fim de assegurar seu poder e manter o mundo como é. No

entanto, as vozes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a dos movimentos de camponeses

que surgem pedindo a reforma agrária, como veremos no capítulo dois, ecoam na

Constituição de 1946, mas é uma voz presente-ausente ao mesmo. Isso porque a Lei apresenta

a possibilidade de desapropriação de terras para distribuição igual a todos, porém condiciona

esse direito à indenização por parte do Governo, o que na prática não se efetiva.

Podemos notar que a ideologia do cotidiano, a ideologia da realidade, da vida

concreta dos camponeses interfere na ideologia oficial, no caso da Justiça, a ponto de se

atestar a distribuição de terras, mas não a reforma agrária. Assim, há uma disputa instaurada

nesse discurso, em que se observam ideologias diferentes. Essa disputa entre classes

diferentes demonstra o caráter ideológico da linguagem, o que contraria a ideia de unicidade

da língua. O signo reforma agrária é uma arena de lutas, uma vez que congrega a ideologia

da sociedade dominante e, ao mesmo tempo, apresenta um alento aos defensores da reforma

agrária, o que evidencia a dialética do signo, as duas faces de Jano. Por isso, o signo, segundo

Bakhtin, comporta em si índices de valores que propagam e constituem os signos que os

utilizam e a realidade por onde circulam. O signo terra, na Constituição de 1946, é visto

como “propriedade”. Parte-se do princípio de que a terra pertence a alguém, para depois

apontar a característica de “bem-estar social”, evidenciando que terra deve atender ao bem-

estar daquele que da terra necessita para viver.

O discurso legal demonstra que as leis são feitas pela classe dominante para defender

seus próprios interesses. Porém, na década de 1940, o Brasil assiste ao surgimento de

movimentos camponeses em prol da luta pela terra. Com isso, a elite latifundiária sente-se

ameaçada pela organização dos trabalhadores rurais, o que a leva a também se organizar em

associações rurais, a fim de garantir que seus interesses sejam mantidos, conforme

mostraremos a seguir.

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1.2.4 Associações Rurais

Partindo da premissa bakhtiniana de que nenhum discurso pode ser creditado a um

sujeito singular tomado isoladamente, entendemos que os discursos não pertencem ao sujeito,

mas sim ao seu grupo social. Desse modo, observamos que todo o discurso reflete um

acontecimento social que marca a história. Por isso, Bakhtin preocupa-se com os laços mais

longos, amplos e sólidos aos quais estão entrelaçados discursos do hoje,

[...] em cuja dinâmica se elaboram todos os elementos do conteúdo e as

formas dos nossos discursos interior e exterior, todo o acervo de avaliações,

pontos de vista, enfoques etc., através dos quais lançamos luz, para nós

mesmos e para os outros, sobre os nossos atos, desejos, sentimentos e

sensações (BAKHTIN, 2014, p. 86).

Ao estudarmos a dinâmica do problema da terra no Brasil pelo olhar bakhtiniano,

percebemos, conforme afirmamos anteriormente, que os discursos não têm sua origem em si,

mas estão em constante diálogo com a história, pois todo discurso é histórico. Por isso, os

discursos da classe dominante mostram que para entrar no fluxo da história não basta nascer

fisicamente, é necessário um segundo nascimento, o social. Dessa premissa, entendemos que

o homem não nasce como um organismo biológico abstrato, mas nasce como um sem terra ou

um fazendeiro, como um brasileiro ou como um russo. Este é o principal nascimento. É a

relação com o social e o histórico que torna o homem real e “[...] lhe determina o conteúdo da

criação da vida e da cultura” (BAKHTIN 2014, p. 11).

Podemos perceber, assim, que a razão de os sentidos de discursos dominantes

permanecerem vivos e renovados no presente está no fato de que o sujeito latifundiário banha-

se no sócio-histórico para se tornar real e sujeito na história. A partir dessa ótica, Bakhtin

(2014, p. 11) salienta que “[...] nenhum ato do homem integral, nenhuma formação ideológica

concreta (o pensamento, a imagem artística, até o conteúdo de um sonho) pode ser explicada e

entendida sem que se incorporem as condições socioeconômicas”. É preciso, então, levar em

consideração o espaço social e as relações sociais do sujeito para entendê-lo em plenitude.

Assim, para compreender os discursos da elite da terra da década de 1960, é preciso

levá-los em consideração dentro de um fluxo histórico, que mostra as relações dialógicas

entre os discursos da década de 1960 com os do passado. A razão de trazermos para este

estudo os discursos das associações rurais está no fato de eles serem a base dos enunciados

dos latifundiários de hoje, aos quais os acadêmicos sem terra combatem discursivamente.

Percebemos que a ideologia da classe dominante não muda, ela é apenas alimentada e

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reformulada, por isso consegue permanecer e tomar espaços sociais como uma verdade. No

início da década de 1960, o que se vê é uma elite dominante sofrendo a pressão feita pelos

movimentos populares, como as Ligas Camponesas, que pedem e lutam fervorosamente por

reforma agrária, sendo apoiados pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e pelo presidente da

república João Goulart, como discutiremos no próximo capítulo. Mesmo assim, a classe

dominante não deixa de se fortalecer por meio de aparelhos de hegemonia da sociedade,

levantando discussões acerca da questão agrária no Brasil.

Entre esses instrumentos ideológicos destacam-se o Instituto de Pesquisas e Estudos

Sociais (IPES) e a Sociedade Rural Brasileira (SRB)17

. O IPES, formado por empresários

ligados a empresas multinacionais, exerce forte oposição ao governo do presidente João

Goulart18

, o que ocorre por meio de centenas de reuniões de estudos a respeito da reforma

agrária e da elaboração de um anteprojeto sobre o tema.

Os membros do IPES não podem negar à época a necessária discussão a respeito da

reforma agrária, já que se trata de um assunto efervescente no Brasil, logo é preciso marcar

uma opinião. Com esse intuito, o IPES juntamente com o Instituto Brasileiro de Ação

Democrática (IBAD) organizam recomendações sobre o assunto, formalizadas em um projeto.

De acordo com o documento, a reforma agrária democrática é aquela que objetiva distribuir

terras ao maior número de pessoas “aptas” a cultivá-las. Assim, os aspectos de segurança,

independência e responsabilidade são difundidos entre os trabalhadores rurais. As duas

organizações defendem que a terra não pode ser doada, mas vendida a preços baixos e a

prazo. Essas organizações buscam a criação de uma classe média rural próspera, com o intuito

de aumentar a produção agrícola (MENDONÇA, 2008).

Vale destacar que o projeto apresentado pelo IPES é marcado pelo cunho técnico ao

conceituar a terra como propriedade familiar, latifúndio, minifúndio, empresa rural,

colonização. O discurso técnico objetiva-se isento de marcas ideológicas, porém, ao querer-se

17 Havia outras associações de agricultores, como a Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), do Rio de

Janeiro. O posicionamento da SNA quanto à reforma agrária era semelhante ao da SRB, mas seus discursos eram

mais moderados e defendiam a ideia de que alguma reforma agrária era necessária, conforme os estudos de

Mendonça (2010) e Natividade (2013). Para este estudo, o foco está no IPES e na SRB pelo fato de essas

associações serem contra a distribuição de terras pelas vias do direito. Logo, empreenderam discursos contra a

reforma agrária, inclusive utilizando-se do periódico A Rural, como também buscaram apoio de políticos

conservadores, a fim de que qualquer projeto de reforma agrária fosse barrado no Congresso Nacional. 18

Essa forte oposição efetivou-se em decorrência do projeto de reforma agrária apresentado ao Congresso

Nacional pelo presidente João Goulart, como mostraremos no segundo capítulo. Segundo o projeto, a União

compraria terras improdutivas ou subutilizadas, a fim de distribuí-las aos camponeses. Embora objetivasse

diminuir a desigualdade no campo e aumentar a produtividade, o projeto de Goulart sofreu uma forte oposição

por parte da classe contrária, formada por latifundiários influentes e políticos conservadores, pois ela

considerava o projeto um passo decisivo para a efetivação do comunismo no Brasil.

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neutro, já aponta para uma tomada de posição a respeito da reforma agrária. A proposta de

reforma agrária do IPES coloca-se como um verdadeiro oponente ao projeto de Goulart e à

bancada esquerdista, já que pretende levar ao campo a racionalização do uso da terra e a

modernização das áreas rurais. Dessa forma, o modo tradicional de cultivar a terra, particular

a diversos grupos de camponeses como também a indígenas, é negado pelo IPES, já que o

cultivo tradicional não objetiva a exploração da terra nem altas produções de alimentos a

serem exportados.

O IPES cunha suas defesas em estudos técnicos. Apoiar-se em uma voz de

autoridade garante uma isenção quanto aos seus interesses ocultados. Além disso, pretende-se

criar um efeito de autenticidade, pois o discurso técnico é aquele que realiza pesquisas por

meio de metodologias e teorias reconhecidas pela sociedade científica. Cria-se um efeito de

distanciamento entre o IPES e o relatado pelos estudos técnicos, o que apresenta por parte do

IPES uma suposta neutralidade e objetividade quanto ao estudo realizado.

O cunho técnico esconde uma sofisticada e multifacética campanha política,

ideológica e militar. Assim, mostra-se como um grande articulador político, pois, para muitos,

trata-se de um grupo de estudos e sem partido. Porém, com seu discurso técnico, implanta um

plano de governo para a reforma agrária, o que está presente no Estatuto da Terra do governo

militar, conforme discutiremos a seguir. O IPES consegue, assim, fazer das necessidades de

seu grupo políticas públicas (DREIFUSS, 1981).

O signo reforma agrária é constituído mediante a ideologia desse grupo que não

nega a necessidade de uma reforma na estrutura do campo em decorrência do grau de

visibilidade que o problema toma, mas considera que reforma agrária deve ser feita para quem

estiver “apto” a cultivar a terra. Ser apto para cultivar a terra significa ter condições

financeiras, o que garante capital para fazer a terra produzir. Por isso, a IPES defende a

compra das terras a preços baixos por parte dos camponeses e não a distribuição, o que mostra

que eles têm condições financeiras de cultivar a terra. O signo reforma agrária é revestido

com a função de servir como um instrumento para transformar os camponeses em uma classe

média, detentora de capital, o que contribui para a produção nacional, além de racionalizar o

uso da terra e modernizar as áreas rurais. Ademais, o signo terra é concebido ideologicamente

como um bem de capital, o qual pode ser comprado e vendido, conforme a lei de mercado.

Outro grupo que também se opôs ao projeto do presidente João Goulart e ao da ala

esquerdista quanto à reforma agrária é a Sociedade Rural Brasileira (SRB), de São Paulo. Por

meio dessa entidade de classe, os produtores rurais empreendem seu repúdio aos projetos

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populistas de reforma da estrutura fundiária que tramitam no centro do poder à época. A SRB

defende a

[...] modernização da agricultura colocando-se, muitas vezes, contra as

políticas macroeconômicas do governo que obstaculizassem a continuidade

do processo. Na lógica de seus dirigentes, a solução para consolidar o papel

da agricultura e dos empresários enquanto pilares da economia e sociedade

brasileiras residia na aplicação maciça de tecnologia no campo, antecipando,

em certos aspectos, o processo que mais tarde viria a ser conhecido como

agribusiness (MENDONÇA, 2008, p. 145).

A SRB apresenta-se como a legítima representante do patronato rural, visto ser

composta por dirigentes da atividade da cafeicultura, a qual é considerada por eles a atividade

mais rentável economicamente ao Brasil. Enxergam-se também como um grupo dotado de

forças políticas. Ademais, ressaltam a importância que o estado de São Paulo tem para a

economia brasileira, sem deixar de indicar que suas propostas são também de cunho nacional

(RAMOS, 2011).

Também utiliza como ferramenta de divulgação de suas ideias o periódico A Rural.19

Os estudos de Mendonça (2010) mostram que os editoriais da revista dos anos de 1963 e

1964, consultados pela autora, apresentam a reforma agrária como uma ameaça à agricultura

nacional e o produtor rural como um desprotegido e esquecido pelo Estado. Além disso, os

estudos de Natividade (2011, p. 107) apontam que, para a SRB, a divisão de terras não é uma

medida urgente ao homem do campo “[...] e, sim a eliminação de intermediários e a

diminuição de impostos”. Isso acerta em cheio as necessidades dos produtores rurais e não as

do trabalhador do campo. Outra questão destacada pela autora refere-se à posição defendida

pela SRB de que “[...] a população agrária no Brasil, ‘vivendo da locação das forças de seus

braços’, não estava pronta para receber terras, ‘não está em condições de assumir

proveitosamente a responsabilidade de um patrimônio agrícola’” (NATIVIDADE, 2011, p.

107).

19 A revista A Rural teve seu primeiro número editado em 1920, intitulado “Annaes da Sociedade Rural

Brasileira”. Permaneceu com edições até 2011, mas já com outro título “Informativo A Rural”. Trata-se de uma

revista da Sociedade Rural Brasileira (SRB) que ao longo do tempo tem o objetivo de propagar as ideias do

grupo quanto a situações vivenciadas no campo pelos agricultores e pecuaristas. De acordo com a SRB, a

associação representa a classe rural brasileira e tem como missão conquistar “o bem estar do produtor rural e

do cidadão brasileiro, através de ações políticas e educativas, buscando o incremento da produtividade, o

abastecimento do mercado interno e a geração de excedentes exportáveis”. Disponível em:

<http://www.srb.org.br/institucional>. Acesso em: 25 set. 2016.

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Podemos perceber que a defesa da SRB para assegurar a propriedade das terras está

ancorada no fato de que, para a associação, os trabalhadores rurais, que apenas vivem da

locação de mão-de-obra, não dispõem de outros atributos necessários para gerenciar com

responsabilidade o “patrimônio agrícola”. Há uma negação da cultura tradicional de se

cultivar a terra, além de um desmerecimento aos trabalhadores, que, na época, são quase todos

analfabetos. A questão imposta é se esses trabalhadores, ao receberem terras doadas pelo

governo, têm condições técnicas e até intelectuais para gerenciá-las, assim como os atuais

agricultores de São Paulo demonstram ter. Desse modo, doar as terras é um simples detalhe

quanto à reforma da estrutura agrária, pois o problema está em quanto a terra ainda pode

produzir.

O periódico A Rural tem um importante papel como espaço para denunciar a ameaça

que a reforma agrária representa aos setores políticos e econômicos. Exemplo disso está no

editorial de junho de 1963, intitulado Rejeitada a Reforma Constitucional:

AUTÊNTICA VITÓRIA DA SRB – O presidente da SRB, sr. Sálvio de

Almeida Prado, prestou informações, em reunião da entidade, sobre sua

atuação em Brasília para derrubar a emenda constitucional que possibilitaria

a reforma agrária, através da desapropriação de terras, em títulos da dívida

pública. Segundo ele, a luta não terminou, pois urge que levemos avante,

com toda energia, uma autêntica reforma agrária, dando-se uma

organização racional à nossa agricultura dentro da qual lhe sejam

proporcionadas condições de produção econômica e a custo baixo (A Rural,

junho, 1963, p. 5) (Grifos nossos).

Notamos, no editorial, uma forte rejeição ao modelo de reforma agrária apresentado

pelo então presidente João Goulart, que objetiva distribuir terras, ao demonstrar como

objetivo da Sociedade “derrubar” a emenda constitucional que possibilita a desapropriação de

terras para fins de reforma agrária. Mais uma vez o grupo defende a “autêntica reforma

agrária”, proposta que está ligada à produtividade e à racionalização do campo. Isso significa

produzir para o mercado interno, mas, pricipalmente, para fins de exportação, além de mostrar

a relevância da mecanização da agricultura, o que pode tornar a produtividade mais viável,

considerando, assim, as formas tradicionais de cultivo da terra como ultrapassadas. A falta de

espaço para a cultura tradicional do campo também aponta para a diminuição de mão-de-obra,

o que leva os trabalhadores rurais a não terem mais trabalho no campo. A proposta da SRB

leva a mais um êxodo rural.

Em 1964, a SRB tem conhecimento do Decreto nº 53.700, formulado por João

Goulart, que previa desapropriações em áreas próximas a rodovias e ferrovias e a grandes

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cidades. A SRB não reconhece a legitimidade do Decreto que considera a desapropriação de

terras por “interesse social”. O sentimento de repúdio ao Decreto é externalizado em um dos

números do periódico A Rural: “As entidades representativas de todas as atividades agrárias

de São Paulo julgam-se no dever indeclinável de manifestar seu repúdio ao decreto baixado

pelo Governo Federal, que declara de interesse social vastas zonas do território nacional” (A

Rural, março, 1964, p. 6).

O poder é, assim, relativo entre as duas classes, pois, a cada força ideológica

empreendida, o poder muda de mãos, revelando um processo sociointeracional. Isso ocorre,

porque não há poder fixo e estável e, também, porque há resistências oriundas dos dois lados

desse cabo de guerra. O que está em jogo nessa relação de forças ideológicas não é, segundo

Bakhtin (2002), a simples correlação ou a verdade destes discursos, mas os sentidos

construídos pelos sujeitos que pertencem às classes em disputa. Esses sujeitos falam de um

lugar social, de uma posição sócio-histórica construída e mediante uma valorização

compartilhada pelo grupo social. Uma classe fala do lugar de dominantes, herdeiras de

famílias cafeeiras de São Paulo, participantes das decisões políticas, influentes

economicamente. A outra fala do lugar de trabalhadores rurais, na maioria analfabetos,

herdeiros da exploração, além disso, fala também do lugar de membros de partidos políticos

perseguidos, com princípios socialistas, que lutam contra a desigualdade social e defendem a

coletivização dos meios de produção. São os sujeitos dessas duas classes que empreendem

forças ideológicas em favor de seus princípios, e essa disputa efetiva-se no campo do signo

ideológico, o qual, como disserta Miotello (2006, p. 283), constitui-se “[...] no lugar onde se

dá o encontro do Eu e do Outro. Logo, lugar social, dialógico”.

A classe dominante vê-se mais forte com a instauração da ditadura militar, em 1964.

Embora os governos militares sejam responsáveis por instituir o Estatuto da Terra,

concebendo a função social da terra, a lei nunca sai do papel. O Estatuto da Terra prevê a

desapropriação de terras pelo governo e a sua distribuição aos camponeses, tendo em vista o

seu caráter social. Isso seria o reconhecimento das lutas empreendidas pelos camponeses,

porém, na verdade, o Estatuto da Terra recebe diversas críticas e não coloca em ação o que

promete na letra da lei, fato que leva os movimentos sociais rurais a se organizarem para

efetivar o Estatuto.

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1.2.5 Governo Militar e o Estatuto da Terra

Trazer para a nossa discussão a voz dos militares é fundamental, porque ela marca a

história da terra no Brasil com a aprovação do Estatuto da Terra, sendo esta a primeira lei que

compreenderá o direito à terra e, a partir dela, outras leis são pensadas. Além disso, os

militares são os responsáveis por ações violentas contra os trabalhadores rurais, ação

multiplicada por latifundiários e setores púbicos de segurança, o que ecoa no presente nos

relatos dos acadêmicos sem terra como um discurso a ser combatido. Os militares implantam

um projeto de crescimento elevado da economia, porém esse crescimento é conquistado com

o sacrifício da população para quem o milagre não acontece. Com a justificativa de elevar a

economia, o governo militar desenvolve os chamados anos de chumbo, os quais são os mais

repressivos àqueles que tentam denunciar ou contrariar as ordens militares. São perseguições,

fechamento de sindicatos, assassinatos, prisões de operários, camponeses e religiosos. O

governo, que promete “fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”, apenas fez a economia

crescer e privilegiar seus apoiadores, não deixando ao povo a sua fatia do bolo. No campo, a

aprovação do Estatuto da Terra é uma esperança de que a reforma agrária será efetivada, mas

é mais uma lei a ficar no papel, o que impulsiona a efervescência dos movimentos sociais no

final da década de 70.

O primeiro presidente militar20

, Castello Branco, assume o governo com o aumento

dos poderes do presidente por meio do Ato Institucional Nº 1 (AI 1). As propostas de reforma

na estrutura agrária do Brasil não são agradáveis ao novo Governo, que se vê envolto a

pressões internas e externas a respeito da aprovação de um projeto que resolva a problemática.

Está nos planos do governo militar de Castello Branco efetivar uma lei de reforma agrária,

porém recebe resistências de deputados, como a do mineiro Último de Carvalho (1964, p.

335), que se manifesta contrário à proposta do Governo, afirmando que com reforma agrária:

[...] não pode haver produtividade no país. Os demagogos querem fazer a

reforma agrária em termos agrimensura, prometendo terra para acontecer

aqui como aconteceu na Rússia, onde verificada a revolução socialista não se

deu terra a ninguém, deixou o povo sem terra como antigamente.

O signo reforma agrária está sendo constituído pela oposição, retomando a voz da

revolução russa e do comunismo, com o sentido de que se trata de um “atraso na produção”

20 O golpe militar ocorreu em 1º de abril de 1964.

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agrícola do País. Essa afirmação decorre do fato de que os latifundiários plantam em grandes

extensões de terra produtos para exportação, o que gera lucro para várias instâncias. O signo

também carrega a herança da Revolução Russa, a qual possibilita a divisão das terras, o que,

segundo o deputado, não prospera. Observamos um embate ideológico entre grupos

tradicionalmente pertencentes ao mesmo lado (militares e políticos conservadores)21

, o que se

revela nos discursos de cada grupo, na base material e nas ações empreendidas para efetivar

seus princípios ideológicos. O embate partidário é ideológico, por isso é captado pelos signos.

Nesse processo, as mudanças socioeconômicas de cada grupo refletem e refratam nos signos

terra e reforma agrária.

É possível perceber que o signo reforma agrária congrega interesses da classe

patronal e de uma parte de militares contrários à reforma agrária. Os militares objetivam a

fixação do camponês na região rural, o que contraria os princípios da União Democrática

Nacional (UDN), que visam a retirar do campo o excedente de lavradores, fixando-os como

trabalhadores das indústrias urbanas (CASTELLO BRANCO, 1977). Assim, pretende-se

garantir a estrutura arcaica das terras no Brasil, como também o aumento significativo da

exportação de grãos a preços maiores que os taxados dentro do País. Nesse processo, um jogo

de poder é observado no sentido de que cada grupo defende seus interesses. Esse jogo dá-se

no campo da realidade material e é sustentado e defendido por jogos discursivos, já que a luta

travada é ideológica. Os discursos são moldados conforme os interesses políticos,

econômicos, sociais dos grupos, por isso os discursos que surgem na materialidade ora

defendem os interesses de todo o grupo, ora dividem o grupo em subgrupos, questionando,

justificando a defesa pelas mudanças sociais e legais.

Esses grupos representam de um lado o governo militar e de outro os políticos

conservadores, os latifundiários e os empresários de corporações estrangeiras. Os dois grupos

lutam pela manutenção do mesmo, da mesma ordem, mas cada um tem objetivos diferentes

quanto à população do campo. Por isso, muitas são as especulações em torno do projeto do

Estatuto da Terra a ser enviado para o Congresso. O próprio presidente Castello Branco não

apresenta detalhes a respeito da suposta lei, o que gera especulações de todos os partidos.

Porém, diante da forte pressão vinda de partidos políticos, o presidente militar dedica-se

pessoalmente à organização do Estatuto e inicia uma demarcação mais ferrenha quanto ao seu

21 Segundo Salis (2014, p. 501), a “Revolução de Março” teria sido articulada contra o projeto de distribuição de

terras malfadado do governo anterior, João Goulart. Os agora opositores aos militares destacavam que caso o

governo levasse à frente o projeto de reforma agrária, poderia sofrer retaliações tal como ocorreu com João

Goulart.

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posicionamento com relação ao Estatuto e demonstra publicamente o trabalho minucioso de

entendimento pessoal com as bases políticas22

.

O governo militar vê o fenômeno do êxodo rural como um dos problemas do campo,

o que se reflete nos centros urbanos, como também no próprio campo e na economia. Já os

parlamentares da União Democrática Nacional (UDN) defendem a modernização do campo e

não a reforma agrária. De acordo com Salis (2014, p. 508), o objetivo de o governo militar é

incluir o homem do campo no processo de desenvolvimento capitalista do campo, criando

uma classe média rural. Para tanto, são necessários distribuição de terras, geração de

empregos e incentivo à produção. Nesse contexto, o signo reforma agrária não congrega um

direito do trabalhador rural nem se trata de uma justa distribuição de terras, mas sim é um

instrumento para fazer fixar os camponeses no campo e aumentar a produção capitalista, o

que faz dos trabalhadores rurais uma nova classe social, a classe média do campo. Nesse

cenário, os trabalhadores são massa de manobra de ambos os grupos, que não estão

preocupados com a existência dos camponeses ou com seus direitos, mas sim com a produção

e a economia do Brasil.

Após um confronto entre governo e antirreformistas, um processo de concessões

conciliatórias desenvolve-se. Conforme Salis (2014, p. 513), de fato, “[...] nenhum

instrumento considerado imprescindível foi suprimido da Emenda Constitucional ou do

Estatuto da Terra, mas sem dúvida, os pontos alterados de alguma forma prejudicaram a

sistemática do projeto original”. O Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de 30 de novembro de

1964) dispõe no primeiro artigo os princípios e as definições da Lei:

Art. 1º Esta Lei regula os direitos e obrigações concernentes aos bens

imóveis rurais, para os fins de execução da Reforma Agrária e promoção da

Política Agrícola.

§ 1º Considera-se Reforma Agrária o conjunto de medidas que visem a

promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de

sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao

aumento de produtividade (BRASIL, 1964).

O Estatuto da Terra resulta de um jogo de forças ideológicas mediado pela

linguagem, pelos discursos, os quais são essenciais para justificar, defender, empreender e

22 De acordo com Salis (2014), Castello Branco necessitaria de habilidade política para aprovar o Estatuto da

Terra. Para isso, iniciou um ciclo de reuniões nas quais reunia parlamentares e representantes da classe

minoritária, objetivando diminuir os atritos. No entanto, o resultado dos encontros não foi favorável ao governo, pois lideranças políticas acusavam que o governo militar pretendia atingir uma ditadura comunista. Logo, era

preciso defender a propriedade privada.

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fortalecer os interesses políticos, sociais e econômicos de cada grupo. As vozes que

constituem o Estatuto da Terra são as das Ligas Camponesas e a de outros movimentos

sociais, quando observa que a reforma agrária visa a uma “melhor distribuição” de terras,

sendo um instrumento para a justiça social. As vozes do governo de João Goulart e as do

governo militar também ecoam quando à reforma agrária cabe o “aumento da produtividade”.

Importa também destacar que o termo “propriedade” não está presente no primeiro parágrafo

do Artigo que abre o Estatuto da Terra, sendo modificada por “posse”.

O direito de “posse” permite ao possuidor a faculdade de usar e gozar desse direito

sem que para isso tenha o título de propriedade, por isso um possuidor não poderia vender,

doar ou transferir a terra a um terceiro. A propriedade garante a um indivíduo “possuir” a terra

por meio do direito conquistado mediante a compra em algum momento, o que dá ao

proprietário o direito de perseguir aquele que a ameace. De acordo com o Código Civil (Art.

1.231, 1993), a propriedade é um direito perpétuo, sendo perdido apenas sob a hipótese de

perda prevista em lei. É também plena pelo fato de todos os poderes serem inerentes ao

proprietário, e exclusiva, pois o proprietário pode impedir que outra pessoa exerça sobre suas

terras poderes que possam ser entendidos como o de propriedade. Ao que parece, a Lei

atendia aos interesses das organizações populares, pois trata da distribuição da terra como um

princípio de justiça social.

Em um País marcado pela luta das Ligas Camponesas e de outros movimentos

camponeses, do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e de outros setores da sociedade urbana,

ter uma Lei que assegurasse a distribuição de terras tendo como princípio a justiça social seria

uma vitória contra uma estrutura fundiária baseada na relação de poder político e econômico.

No entanto, o que se vê, conforme Oliveira (2007, p. 121), é uma Lei para ficar no papel e não

para ser colocada em prática. O discurso da Lei incorpora as necessidades dos camponeses e,

ainda, assume que se trata de uma ação de justiça social. O signo reforma agrária mostra-se

como um agregador de interesses sociais, ao demonstrar um caráter de justiça. Trata-se da

concordância do Governo em relação às lutas empreendidas no passado, as quais buscaram a

distribuição de terras pelo princípio da justiça social. Espera-se, então, que a partir da Lei, a

reforma agrária passe a ser uma realidade Brasil. Contudo, trata-se de uma “farsa histórica”,

conforme as palavras de Oliveira (2007), no sentido de reconhecer as lutas dos camponeses

pela reforma agrária no papel, mas, na verdade, de empreender ações para desarticular as

organizações camponesas.

O Estatuto da Terra, tendo em vista os acontecimentos históricos, sociais e políticos

em torno da posse da terra, organiza as necessidades da infraestrutura e as traz para a

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superestrutura, ou seja, para o campo do jurídico, das leis, onde o ideológico da classe

dominante predomina. Essa passagem da infraestrutura para a superestrutura efetiva-se por

meio da linguagem, a qual é a responsável por materializar essa mudança nas estruturas

sociais das ideias da sociedade. Por isso, os discursos constituem-se nesse processo, mas

também são constituídos dele e são ideológicos, o que faz com que sejam parte da

superestrutura. Assim, percebemos que há uma passagem da base ideológica da infraestrutura,

por meio da linguagem, para a superestrutura. Nas palavras de Bakhtin (2002, p. 41), essas

mudanças passam pela palavra, pois ela

[...] constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas

de mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade

ideológica, que ainda não tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica

nova e acabada. A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais

íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais.

O problema da relação recíproca entre a infra e a superestrutura está nas questões de

mudanças ideológicas (originadas na infraestrutura), reveladas nos discursos e, também, no

como a realidade determina os signos. Para Bakhtin (2002, p. 41), esse problema pode ser

esclarecido: “O problema da relação recíproca entre a infra-estrutura e as superestruturas,

problema dos mais complexos e que exige, para sua resolução fecunda, um volume enorme de

materiais preliminares, pode justamente ser esclarecido, em larga escala, pelo estudo do

material verbal”. Desse modo, o material verbal – leis, decretos, estatutos, índices

econômicos, documentos religiosos, sermões, homilias, atas de reuniões, pedidos por justiça

no campo –, ou seja, os discursos ideologicamente construídos é o que possibilita

compreender a relação recíproca entre infra e superestrutura. Bakhtin (2002, p. 41) destaca

que nessa relação recíproca o mais importante é “[...] saber como a realidade (a infra-

estrutura) determina o signo, como o signo reflete e refrata a realidade em transformação”

(grifos do autor). A essencialidade do problema da relação recíproca está na ubiquidade social

da palavra pelo fato de ela penetrar todas as relações entre os sujeitos, sejam elas políticas, de

colaboração, de base ideológica, sejam elas de encontros cotidianos.

Além de assegurar a reforma agrária, o artigo 2º do Estatuto da Terra traz um novo

sentido ao signo terra, ao apresentar a sua “função social”:

Art. 2º É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra,

condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.

§ 1º A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social

quando, simultaneamente:

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a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela

labutam, assim como de suas famílias;

b) mantém níveis satisfatórios de produtividade;

c) assegura a conservação dos recursos naturais;

d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho

entre os que a possuem e a cultivam (BRASIL, 1964) (grifos nossos).

O signo função social é apresentado como condicionante à propriedade da terra, de

modo que a propriedade deve atender a essa função que contempla o bem-estar dos

proprietários e funcionários, níveis de produtividades, conservação dos recursos naturais e,

ainda, observa as relações justas de trabalho. É, em um primeiro momento, um avanço e uma

vitória das organizações camponesas e de seus defensores. A Constituição de 1891 garante a

direito à propriedade como também a desapropriação por necessidade pública mediante

indenização, o que não se efetiva na prática. Da mesma forma, a Constituição Federal de 1946

também assegura o direito à propriedade: “§ 16 - É garantido o direito de propriedade, salvo o

caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante

prévia e justa indenização em dinheiro” (BRASIL, 1946).

Percebemos que o direito à propriedade está assegurado assim como a

desapropriação, mas os trabalhadores rurais que esperam os resultados das desapropriações

não os veem chegar. Assim, o Estatuto da Terra modifica o conceito de propriedade vigente

até o momento, pois condiciona o título de propriedade à “função social” da terra. Logo,

podemos entender que a Lei apresenta uma manobra para assegurar à classe de trabalhadores

rurais a reforma agrária, mas não abate o princípio da propriedade para os latifundiários, pois,

como podemos notar na letra da Lei, a “função social” não só está associada ao bem-estar do

proprietário e do trabalhador, mas também aos níveis satisfatórios de produtividade. Os níveis

de produtividade, no entanto, serão avaliados conforme os valores da bancada latifundiária, a

qual produz mais para exportação e menos para a alimentação da sociedade. Desse modo,

dificilmente, um camponês atingirá o mesmo nível de produção obtido por um latifundiário,

em decorrência, por exemplo, da falta de crédito bancário. Nesse contexto, não atingir o nível

de produção esperado significa, primeiro, não cumprir com a função social da terra e,

segundo, não estar apto a gerenciar uma propriedade.

O signo função social está carregado de uma carga ideológica que neutraliza

qualquer tipo de questionamento, dúvida e conflito, tendo em vista que ele reflete uma

realidade de harmonização entre latifundiários e camponeses. No entanto, ele sustenta as

reclamações por reforma agrária por parte dos camponeses, organizados pela CPT. A noção

de terra como “função social”, porém, privilegia a satisfação das necessidades sociais do

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proprietário, de sua família, de seus funcionários e da sociedade envolvente, o que demonstra

que a função social é resultado do trabalho desempenhado na terra. Dessa forma, a terra deve

pertencer àqueles que trabalham nela e a fazem produzir e garantir satisfação à sociedade em

seu entorno.

Podemos entender que, nesse cenário, o signo terra passa de “bem de capital” para

“bem de produção”. Logo, a produtividade é um fator preponderante para o alcance da função

social da terra. Porém, aos pequenos lavradores fica a dúvida acerca da baixa produção de

suas terras, o que legitimamente leva o governo a desapropriá-las em nome da coletividade.

Ademais, aqueles que cultivam as terras com uma visão diferente da do sistema capitalista,

como os indígenas, podem ter suas terras legalmente tomadas pelo governo, pois estes não

estarão usando a terra como devido, conforme fica claro no Artigo 13: “O Poder Público

promoverá a gradativa extinção das formas de ocupação e de exploração da terra que

contrariem sua função social”.

O objetivo do governo é a utilização da terra para produtividade e seus resultados

econômicos, além da satisfação de seus usuários, o que garante sustento pelo próprio trabalho.

Nesses termos, a “função social” da terra não abarca na prática a viabilização da reforma

agrária, já que, ao demonstrar usar a terra para produzir e contribuir para a economia do País,

um latifundiário garante sua posse; diferentemente do pequeno lavrador, que não dispõe de

meios econômicos para transformar sua propriedade em uma referência social e econômica

para sua região. Sobre os casos de desapropriação, o Estatuto da Terra declara, no Artigo 18,

que a

[...] desapropriação por interesse social tem por fim:

a) condicionar o uso da terra à sua função social;

b) promover a justa e adequada distribuição da propriedade;

c) obrigar a exploração racional da terra;

d) permitir a recuperação social e econômica de regiões;

e) estimular pesquisas pioneiras, experimentação, demonstração e assistência

técnica;

f) efetuar obras de renovação, melhoria e valorização dos recursos naturais;

g) incrementar a eletrificação e a industrialização no meio rural;

h) facultar a criação de áreas de proteção à fauna, à flora ou a outros recursos

naturais, a fim de preservá-los de atividades predatórias (BRASIL, 1964).

O Estatuto da Terra assegura a desapropriação por “interesse social”, o que leva a

acreditar que haveria terra para quem nela quisesse viver e trabalhar. O “interesse” existe para

aquilo que se é importante para uma sociedade. Neste caso, o interesse social leva a

desapropriar terras que não cumprem com sua função social. O interesse social é um signo

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que carrega uma carga ideológica que refrata uma realidade de ações visando ao bem-comum

e à obtenção de condições de bem-estar para a sociedade e não as de um indivíduo. Assim,

garante a sustentabilidade social e econômica da sociedade, melhorando a qualidade de vida e

assegurando que os homens vivam em maior igualdade social. Contudo, a Lei faz referência a

finalidades da desapropriação por interesse social, como “obrigar a exploração racional da

terra”, “permitir a recuperação social e econômica de regiões”, “estimular pesquisas pioneiras,

experimentação, demonstração e assistência técnica”, “incrementar a eletrificação e a

industrialização no meio rural”, que apontam para a difícil tarefa de o camponês atingir a

“função social” da terra e, desse modo, assegurar a posse da terra por falta de condições

econômicas e administrativas.

A Lei designa ao signo terra a “função social”, o que leva a compreender o signo

terra como um “bem de capital” que pode ser vendido e comprado, sendo esta relação

mediada pelo pagamento do valor adequado. Ademais, a terra como função social é entendida

como responsável pelo bem-estar de todos os envolvidos no processo de cultivo, tanto de

fazendeiros como de trabalhadores rurais. O signo reforma agrária ganha contornos dos

sentidos construídos pelos políticos conservadores, sendo entendido como um atraso na

produção agrícola e, desse modo, como inviabilizador da exportação de grãos. Já pelo olhar

dos militares, o signo reforma agrária apresenta-se como um instrumento para fixar os

camponeses no campo, criando uma classe média do campo, aumentando, assim, a produção

agrícola. Já a educação do campo não é lembrada pelos militares, os quais acentuam a

educação rural, uma forma adaptada do modelo urbano implantada no campo. Ademais, os

militares perseguem duramente os religiosos e leigos católicos que, na cidade e no campo,

desenvolvem ações de educação do povo, as quais objetivam que o próprio povo busque a sua

liberdade.

No entanto, como veremos a seguir, a voz da Igreja Católica não ecoa apenas a favor

do povo, há outras vozes audíveis, que se colocam contra a reforma agrária. A ala

conservadora da Igreja Católica apresenta um discurso condenando ações em prol da

distribuição de terras no Brasil, relacionando-as à falta de crença em Deus. Para isso, seus

discursos ao povo mostram o pecado presente na Rússia com a instalação do regime socialista

e com a coletivização das terras. A Igreja defende que reforma agrária trata-se de uma ofensa

a Deus, uma vez que objetiva desconstituir a ordem divina da sociedade, fazendo, assim, com

que o povo aceite sua condição de explorado.

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1.2.6 Igreja Católica

Para este estudo, que pretende, como já mencionamos, analisar a identidade de

acadêmicos sem terra do Curso de Ciências Sociais, por meio da construção dos caminhos

históricos que constituem os signos terra, reforma agrária e educação do campo, é

fundamental ouvirmos as vozes que ecoam nos signos analisados. São vozes emaranhadas de

outras vozes, evidenciando a relação dialógica entre aos discursos e a construção constante da

história.

Observarmos que dialogar com discursos dos sujeitos religiosos é basilar para

entendermos a construção dos sujeitos acadêmicos sem terra do presente. Entre esses sujeitos,

a Igreja Católica é um dos sujeitos mais atuantes nas discussões a respeito do direito à terra e

à reforma agrária, seja para defendê-la ou para combatê-la. Trazer para arena de análise as

vozes da Igreja Católica é imprescindível por ela ser uma instituição historicamente aliada aos

interesses dos governantes, defendendo-os por meio da influência sobre os fiéis pobres, ao

apaziguá-los acerca de suas condições sociais e ao levá-los a aceitar a condição de membros

inferiores do Corpo Místico de Cristo e, consequentemente, da sociedade. Aos que se

revoltassem a essa premissa religiosa, restava enfrentar a ira de Deus.

Dentre as atuações da Igreja Católica com relação à questão da terra e da reforma

agrária no Brasil, elegemos quatro movimentos da Igreja que julgamos serem fundamentais

para mostrarmos como ela passa por momentos distintos em relação à reforma agrária, os

quais vão do conservadorismo ao progressismo: a carta pastoral de Dom Inocêncio, a TFP, a

Teologia da Libertação e as CEBs. O primeiro e o segundo momentos apresentaremos neste

primeiro capítulo, e o terceiro e o quarto serão discutidos no capítulo 2.

O início do envolvimento da Igreja Católica com a reforma agrária pode ser

observado no documento Conosco, sem nós ou contra nós se fará a reforma rural, que se

trata de uma carta pastoral escrita por Dom Inocêncio Engelke, bispo do município de

Campanha, em que ele demostra uma visão tradicional e conservadora com relação à reforma

agrária. Além disso, a carta apresenta, como discutiremos a seguir, a primeira análise acerca

da qualidade da educação rural, a qual, para a Igreja, seria uma das culpadas pelo êxodo rural.

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1.2.6.1 Carta Pastoral de Dom Inocêncio

Na década de 1950, a Igreja Católica é vista e se coloca como a guardiã das leis

cristãs. Como uma instância oficial, à época, tem uma atuação diversificada, com pastorais,

declarações, manifestos, entrevistas de bispos e de padres, e com o desenvolvimento de

programas de ação social (CARVALHO, 1985). No que tange ao campo, essas manifestações

quanto à situação social, política e econômica acompanham as transformações existentes

nesse lugar. No início do período populista no Brasil, momento de transição da ditadura de

Vargas à democracia, o discurso episcopal a respeito da reforma agrária é difuso, secundário,

o que não preocupa a hierarquia da Igreja. Ao assumir um papel de guia espiritual, a Igreja

aconselha seus fiéis e, também, faz propostas a eles, mas é no campo do político que sua

atuação reverbera os valores universais, colocando-se como responsável e guardadora desses

valores. Ao tratar especificamente da questão agrária, observamos uma defesa ao direito à

propriedade particular (CARVALHO, 1985).

Para atuar na sociedade, a Igreja escolhe o seu organismo tido como mais dinâmico,

a Ação Católica. Com essa Ação, a Igreja objetiva organizar um planejamento de ação social

a ser aplicado em todo o País, indicando sua participação efetiva na reestruturação da

sociedade brasileira. No entanto, não há, nessa época, referência da Igreja à reforma agrária,

mas há uma indicação de que a união entre as classes se dá por meio do respeito, da

dignidade, da justiça e da fraternidade. Essa defesa da Igreja Católica não abre caminhos para

mudanças sociais, mas para a pacificação e aceitação da condição dada aos camponeses.

Sendo pacíficos e tementes a Deus e à Igreja, os trabalhadores rurais não lutam pela

distribuição de terras e não necessitam se organizar em classe para reivindicar direitos, o que

dá ao Estado uma tranquilidade. Desse modo, a Igreja faz um papel de pastora, de

apaziguadora e de guardiã dos privilégios da elite. É, na década de 1950, momento marcado

pelas revoltas no campo de norte a sul, que a palavra reforma agrária aparece nos

pronunciamentos episcopais (CARVALHO, 1985).

Os anos de 1950 são marcados pela consolidação do populismo no Brasil, quando se

destaca a carta pastoral23

Conosco, sem nós ou contra nós se fará a reforma rural24

, escrita

por Dom Inocêncio Engelke, bispo do município de Campanha, Minas Gerais (MG). O

23 Carta pastoral é uma carta aberta escrita por um bispo e dirigida ao clero católico e à sociedade em geral.

Objetiva expor a opinião da Igreja acerca de um tema de interesse social. 24

A carta foi transcrita foi Stedile (2012).

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documento é produzido durante a Primeira Semana Ruralista, realizada no município, na

ocasião de uma reunião que conta com a presença fazendeiros, padres, freiras e professores de

escolas rurais, sendo liderada por Dom Inocêncio. Na carta, o bispo dialoga com os discursos

do Papa Pio XI e do Monsenhor Montini. Dom Inocêncio discorre acerca da visão da Igreja

sobre o êxodo rural, a revolução russa e a educação rural mediante os tópicos: Antecipemo-

nos à revolução, Antecipemo-nos à legislação social, Ação social inadiável e Reforma social.

Notamos que a Igreja é a primeira a se manifestar, dentre os discursos analisados até este

momento do estudo, a respeito da educação rural, a qual é caracterizada pela Instituição como

uma “adaptação” da educação urbana presente nas escolas da zona rural e, também, como

uma das culpadas pelo êxodo rural e, consequentemente, pelo aumento de ateus nas cidades.

Desse modo, o signo educação do campo tem suas raízes no signo educação rural pela

oposição, já que o caráter de “adaptação” é negado pelos movimentos sociais que lutam pela

terra e pela educação de qualidade nas escolas dos assentamentos.

A carta Dom Inocêncio é considerada como o primeiro envolvimento da Igreja

Católica com a questão agrária. Apresenta um teor conservador e anticomunista ao criticar

negativamente a Revolução Russa e ao não questionar a propriedade privada da terra.

O documento inicia-se destacando a quantidade de presentes na reunião: “[...] 60

párocos rurais, 250 fazendeiros, mais de 270 professoras rurais” (ENGELKE, 1977, p. 29).

Isso demonstra a preocupação do enunciador em acentuar a importância do documento. Os

números expressivos de participantes evidenciam uma grande quantidade de pessoas

preocupadas com a causa, como também indica que essas pessoas comungam das ideias da

Igreja. Segundo o Monsenhor Montini, ao traduzir a mensagem do Papa, e a quem o

documento faz referência, os novos problemas advindos do campo não devem “apanhar de

surpresa os Cristãos” (ENGELKE, 1977, p. 30). A voz do Monsenhor dialoga com o

problema da perda dos fiéis da cidade para outras religiões ou para uma vida ateia, o que é,

para o Papa Pio XI, o maior escândalo do século XIX para a Igreja. Por isso, não aceitam

perder também os trabalhadores do campo.

A voz da Igreja reage às ações de partidos comunistas empreendidas nas cidades, o

que significa uma possibilidade de perda de fieis, pois comunistas são vistos como ateus e,

sem acreditar em Deus, os operários não acreditam na Igreja. Por isso, é necessário fazer

justiça, mas não com as próprias mãos: “[...] Antecipai-vos à revolução. Fazei por espírito

cristão o que vos indicam as diretrizes da Igreja” (ENGELKE, 1977, p. 32). O discurso da

Igreja antecipa-se a uma provável revolução socialista no Brasil, em que o direito à terra é

uma das bandeiras principais. Esse discurso que aconselha a própria Igreja e os fiéis a se

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anteciparem à revolução responde, no sentido bakhtiniano, aos acontecimentos mundiais, em

que países, como Rússia e Cuba desencadearam revoluções contra governos ditadores e

monarquias, ou seja, contra a presença do sistema capitalista. Os revolucionários russos e

cubanos têm como norteadores os princípios socialistas, marcados pela coletivização dos

bens, tendo a supressão da propriedade como um dos ideais mais acentuados.

De acordo com a carta de Dom Inocêncio, uma das razões da saída do homem do

campo para a cidade é a escola artificializada do campo e a falta de acesso à terra:

[...] Humanizar, portanto, o trabalho, promover a difusão do ensino escolar

adaptado às necessidades do homem do campo, [...] facilitar-lhe o acesso

à propriedade da terra para o cultivo, [...] eis os pontos fundamentais para

uma séria reforma social agrária que há de permitir a recuperação humana e

cristã do trabalhador rural (ENGELKE, 1977, p. 37-38) (Grifos nossos).

Notamos que o discurso do religioso refere-se à educação rural como um ensino

urbano adaptado à escola do campo, marcando o signo educação rural como uma

“adaptação”. Esse ensino adaptado faz parte da vivência dos acadêmicos sem terra do curso

de Ciências Sociais quando eram crianças. As escolas rurais, conforme relatam os graduandos

sem terra do curso de Ciências Sociais, caracterizam-se pela falta de professores formados

para ministrarem aulas, por salas multisseriadas e, ainda, pela ausência de disponibilidade de

escolas perto dos locais de moradia dos alunos. Consequentemente, os filhos dos

trabalhadores rurais deixam a escola muito cedo. Podemos analisar que o signo educação

rural está na gênese do signo educação do campo, porém este signo nega os contornos da

educação rural, pois o primeiro tem um sentido artificializado com relação à vida no campo.

Isso porque ser “adaptado” significa atraso e falta de qualidade, o que para os trabalhadores

rurais das Ligas Camponesas e, posteriormente, para os movimentos sociais rurais não são

características que a educação do campo deva ter.

Ainda percebemos que a proposta do bispo incide sobre dois aspectos fundamentais:

o temor e a ação preventiva. O temor está no fato de a Igreja já ter perdido uma grande

quantidade de fieis da cidade e que agora teme perder os do campo. Isso ocorre devido às

ideias comunistas ateias encontradas nas cidades, as quais se distanciam de Deus e, por

conseguinte, da Igreja. Nesse cenário, a Igreja coloca-se na cena política como uma

instituição que pode ajudar o governo e os fazendeiros a não perderem o poder no campo e

acima de tudo se coloca como a única instituição que pode congregar os trabalhadores do

campo, mostrando-os que todos são filhos de Deus, não permitindo que eles usem da força

para lutar pela propriedade da terra. Trata-se de uma força nacional alicerçada nos valores

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universais de família e de propriedade e em um discurso de autoridade que, com o passar dos

tempos, não fixa raízes no passado, mas acompanha as transformações sociais sem perder o

caráter de tradição, sempre marcando presença de forma singular. A Igreja também se coloca

como uma instituição ativa e privilegiada da sociedade civil e, assim, situa-se acima de

regimes políticos, buscando participar do momento político populista, mostrando sua

influência entre os trabalhadores rurais e os fazendeiros, bem como entre os políticos, pois ela

é a guardadora dos valores cristãos.

A vida, o vivido, assim como as relações sociais e econômicas e os interesses de uma

classe entram em um enunciado a fim de ocultar a visibilidade dos trabalhadores rurais e a

necessidade de uma reforma agrária efetiva. A Igreja, guardadora da moral e dos preceitos de

Deus, representa a ideologia oficial, mais organizada, mais estabilizada, mais dotada de

conteúdo e de princípios universais. Desse modo, pretende ocultar a ideologia do cotidiano,

presente nas ruas, nas manifestações no campo e na cidade. Percebemos que a organização da

ideologia oficial – em documentos religiosos, em leis – tem sua origem na ideologia do

cotidiano, pois, ao observar o movimento da vida concreta, cria estratégias para reverter os

impulsos por direitos dos trabalhadores rurais. Desse modo, documentos são vistos como uma

resposta a esses movimentos impulsivos que brotam nas ruas. Nesse caso, a orientação da

palavra não é para um interlocutor, mas é para uma classe, uma coletividade, que organiza os

trabalhadores rurais. Como aponta Bakhtin (2002, p. 113), toda palavra apresenta dupla

orientação, ela é determinada pelo fato de que procede de alguém e também para alguém. A

figura central da palavra é o destinatário, a quem o enunciador se dirige e a quem se quer

convencer, responder, afiançar. Ela é uma “[...] uma espécie de ponte lançada entre mim e os

outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu

interlocutor” (BAKHTIN, 2002, p. 113). O enunciador religioso, ao trazer para seu discurso e

de seu grupo a expressão “reforma social agrária”, demonstra que esta expressão é partilhada

pelos dois grupos, tanto pelo grupo que representa (Igreja, latifundiários, governo), quanto

pelos camponeses e seus apoiadores políticos. Mas esse compartilhamento é apenas com

relação à expressão e não ao signo reforma agrária, pois mediante o que cada grupo concebe

como reforma agrária, cada um defende um lado da moeda.

Essa primeira tomada de posição da Igreja Católica com relação à questão agrária

estende-se para outros setores de dentro da Instituição, como, por exemplo, a TFP, a qual

defenderá expressivamente o valor da propriedade privada e a organização das classes

conforme o Corpo Místico de Cristo.

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1.2.6.2 TFP (Tradição, Família e Propriedade)

Outro discurso católico fundamental para este estudo refere-se ao discurso

conservador da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP)25

,

uma Sociedade caracterizada por membros herdeiros de fortunas do café, que desenvolvem

ações e discursos para que a ordem natural e divina da sociedade não seja desfeita. Esses

discursos não ficam no âmbito da TFP, mas marcam um caráter conservador de parte dos

membros da Igreja e de seus fiéis tanto da classe dominante quanto da classe dominada. Isso

decorre principalmente pela presença de um discurso que demonstra que a vontade divina não

deve ser desfeita. A reforma agrária é amplamente combatida pelos membros da TFP por ser

considerada uma reação contra Deus e contra sua divina vontade. Esse discurso acentua que

lutar pela terra é lutar contra Deus. Por pregar a pacificidade entre os membros do Corpo de

Cristo, a ideia de reforma agrária como pecado chega à contemporaneidade e alicerça as

defesas dos latifundiários ao justificarem que os movimentos sociais querem tomar suas terras

ou querem implantar o comunismo no Brasil. Tal noção justifica ações violentas em defesa da

propriedade como também projetos políticos que dificultam a desapropriação de terras

improdutivas. Desse modo, é esse discurso, baseado na organização do Corpo Místico de

Cristo, que os sem terra também combatem na contemporaneidade.

O discurso da TFP mostra um movimento de ação e reação diante das ações da

população e de membros da própria Igreja, pois diferentes grupos foram criados dentro da

Igreja Católica, o que demonstra que uma mesma instituição pode apresentar posições

querendo ser mais neutras com relação ao problema da terra e da reforma agrária, como

também mais conservadoras, chegando também a posições de apoio. No entanto, não se trata

de um discurso de combate à reforma agrária nascido no Brasil, mas tem suas raízes na

própria postura do Papa Pio IX que culpa o comunismo pela perda dos fiéis e pelo ataque à

propriedade, como pode ser visto em uma das encíclicas desse período:

25 Em 26 de julho de 1960, a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP) foi criada

por Plínio Correia de Oliveira, Dom Geraldo de Proença e um grupo de intelectuais. É um grupo de católicos

conservadores dos valores morais da Igreja e do Estado. Conforme Pedriali (1985, p. 31), o tripé da TFP

defendia que: “A Tradição é o conjunto de ensinamentos acumulados pela Igreja durante os séculos, a soma de

conhecimentos adquiridos desde o início dos tempos, a preservação dos ensinamentos dos patriarcas, profetas e

apóstolos. A Família é a cellula mater da sociedade: sem ela não há harmonia social, sem ela não há educação,

sem ela não há prosperidade. E a Propriedade é o instrumento do progresso social, do bem-estar da família e da

realização profissional do homem” (grifos nossos). Mais informações acerca da TFP ver

<http://www.tfp.org.br/>. Acesso em: 26 set. 2016.

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[...] tal é a doutrina perversa, máxime em matérias filosóficas, que seduz e

corrompe miseravelmente a juventude incauta, propinando-lhe fel de dragão

em cálice de Babilônia; tal é a nefanda doutrina do comunismo, contrária ao

direito natural, que, uma vez aceita, lança por terra os direitos de todos, a

propriedade, a própria sociedade humana; tais as insídias tenebrosas

daqueles que, em pele de ovelhas, mas sendo lobos rapaces, insinuando-se

fraudulentamente com sua aparência de piedade sincera, de virtude e

disciplina, intrometem-se humildemente, captam com brandura, atacam

delicadamente, matam às ocultas, afastam os homens de toda religião,

sacrificam e destroçam as ovelhas do senhor [...] (1960, p. 8-9) (Grifos

nossos).

O discurso apresenta para as pessoas não católicas um juízo de valor, o qual resulta

da relação entre o sujeito e o outro. Isso demonstra que ninguém pode ocupar uma posição

neutra em relação ao eu e ao outro (BAKHTIN, 2011). No discurso do representante máximo

da Igreja Católica, a visão bakhtiniana fica evidente quando se atribui características negativas

aos comunistas e ateus. Observamos que a Igreja age e constrói uma posição singular diante

da Revolução Russa e da perda de fiéis católicos. Como destaca Bakhtin (2010, p. 87): “[...]

Viver uma experiência, pensar um pensamento, ou seja, não estar, de modo algum, indiferente

a ele, significa antes afirmá-lo de uma maneira emotivo-volitiva”.

O signo comunismo é delineado por um juízo de valor que o caracterizada como um

sistema contrário à lei natural, ou seja, à lei divina, já que apresenta como lema a

coletivização das terras ao buscar abolir a propriedade privada e efetivar a coletiva. O

discurso está moldado pelos valores dados pela Igreja e, consequentemente, por seus

interesses. O discurso Papal adjetiva a “doutrina do comunismo” como sendo “nefanda”,

escolha lexical que aponta para algo abominável, perverso, execrável. O sentido de direito

natural em relação à propriedade, defendido pelo discurso conservador da Igreja Católica,

refere-se ao direito divino, que pode ser explicado pela organização feita por Deus, colocando

cada ser humano em uma posição adequada dentre da sociedade. Desse modo, não há razão

para reclamar da ação de Deus e da consequente diferença social. A relação entre Deus e a

terra se estabelece no temor, no medo e na aceitação, pois aqueles que lutam pela terra lutam

contra Deus, do mesmo modo ser contrário à lei natural é ser contrário à propriedade e, assim,

à vontade de Deus. O discurso do Papa, assim como todo discurso, dialoga com discursos

passados, com o já-dito pelas leis, pelas defesas dos latifundiários, mas também recupera uma

herança grega e romana em que já se defendia a propriedade privada. Neste caso, “pele de

ovelha” está associada à pessoa que tem más intenções, mas disfarça-se de ovelha, de

inofensiva para ter confiança do cristão. Podemos notar, ainda, a presença de diferentes vozes,

entre elas a da Bíblia, do livro de Mateus (7: 15), a fim de convencer os fiéis acerca dos falsos

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profetas: “Guardai-vos dos falsos profetas. Eles vêm a vós disfarçados de ovelhas, mas por

dentro são lobos arrebatadores”. Os falsos profetas são aqueles que aparentemente são do

bem, mas que, na verdade, são maus e, como acrescenta o livro de Mateus, são aqueles cujos

frutos são maus e, sendo árvores más, devem ser cortadas. Neste caso, o discurso é consoante

ao discurso da Bíblia e contribui para fortalecer sua ideologia, apresentando duas figuras que

podem ser comparadas como antagônicas, a ovelha e o lobo. A ovelha é o animal manso, o

cristão católico; já o lobo é o animal feroz, os anticristãos, os comunistas, os revolucionários.

Ao analisar o discurso Papal, percebemos que nele habitam diferentes vozes consoantes e

discordantes, as quais marcam posições ideológicas e sociais. Desse modo, o discurso é uma

arena onde diferentes vozes se confrontam e se coadunam, já que se marca como um lugar

inerente à presença do outro (BAKHTIN, 1988). Como ressalta Bakhtin (1988, p. 330): “[...]

não existem palavras sem voz, palavras de ninguém. Em cada palavra há vozes às vezes

infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais (as vozes dos matizes lexicais, dos

estilos, etc.), quase imperceptíveis, e vozes próximas, que soam concomitantemente”

(BAKHTIN, 1988, p. 330).

No caso analisado, a voz que se levanta é a da Bíblia, o livro sagrado para os

católicos, o qual apresenta as verdades de Cristo a serem seguidas; já a figura do lobo aponta

para as vozes dos oponentes ao catolicismo, os revolucionários, os comunistas que

apresentam a Igreja Católica como um membro da burguesia e de seu poder.

A solução para não perder mais fiéis e para o retorno daqueles que se afastaram da

Igreja está no resgate da influência da Santa Sé em razão do enfraquecimento do catolicismo

nacionalizado. Em nome dessa defesa, alguns bispos insistem em uma visão conservadora da

Igreja e de sua missão, como é o caso de Dom Geraldo de Proença Sigaud, bispo mineiro de

Belo Horizonte, filho de pai ex-fazendeiro e comerciante e neto de médico de origem

francesa. Em seus discursos, justifica a desigualdade social e combate a luta de classes.

Segundo o Bispo:

Nenhum bispo pode se desinteressar pelo que passa no conjunto das dioceses

a que pertence a sua, não só pelo vínculo de caridade que deve unir entre si

todos os membros do Corpo Místico de Nosso Senhor, senão também por

aquela misteriosa e palpável reciprocidade que há entre os membros deste

organismo, pois que nós fomos batizados em um Espírito e dentro de um

Corpo, tanto o Judeu como o Gentio, o servo como o livre: E todos fomos

desalterados com a água de um só espírito. É claro que o corpo não é um

membro só, mas muitos membros. Se o pé argumentasse:- ‘Eu não sou mão,

logo não pertenço ao corpo: com isto deixaria de ser parte do corpo? E se um

dia a orelha dissesse: - Eu não sou olho: - logo não sou parte do corpo-

porventura deixaria de ser parte do corpo? - pensai: se todo corpo fosse olho

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- onde ficaria o ouvido? Se todo fosse ouvido, onde ficaria o olfato?... Logo,

concluímos que os membros são muitos e todos fazem o corpo que é um. E

não pode o olho dizer à mão: - não preciso de teus préstimos; nem a cabeça

poderá dizer aos pés: - não tenho necessidade de vós. - Se sofre um membro

todos os outros sofrem juntos; quando um membro passa bem, todos

compartilham seu bem estar. E vós? Sois o Corpo de Cristo, e sois membros

de seus membros (DIOCESE DE JACAREZINHO, 1947, p. 8).

D. Geraldo afirma que cabe a todo bispo interessar-se pelos assuntos de sua diocese,

o que é justificado pelo fato de ele poder exercer a caridade para com os outros e, também,

pela reciprocidade entre os filhos de Deus. O discurso do Bispo também apresenta fios

dialógicos com o discurso bíblico, o que se mostra na metáfora do Corpo Místico de Jesus,

presente no Livro de I Coríntios, no qual se aponta que todos foram batizados no mesmo

espírito e fazem parte do corpo de Cristo, tanto os servos quanto os livres, ou seja, tanto as

minorias quanto a elite, porque

[...] como o corpo é um todo tendo muitos membros, e todos os membros do

corpo, embora muitos, formam um só corpo, assim também é Cristo. Em um

só Espírito fomos batizados todos nós, para formar um só corpo, judeus

ou gregos, escravos ou livres; e todos fomos impregnados do mesmo

Espírito. Assim o corpo não consiste em um só membro, mas em muitos.

Se o pé dissesse: Eu não sou a mão; por isso, não sou do corpo, acaso

deixaria ele de ser do corpo? E se a orelha dissesse: Eu não sou o olho; por

isso, não sou do corpo, deixaria ela de ser do corpo? Se o corpo todo fosse

olho, onde estaria o ouvido? Se fosse todo ouvido, onde estaria o olfato?

Mas Deus dispôs no corpo cada um dos membros como lhe aprouve. Se

todos fossem um só membro, onde estaria o corpo? Há, pois, muitos

membros, mas um só corpo. O olho não pode dizer à mão: Eu não preciso de

ti; nem a cabeça aos pés: Não necessito de vós. Antes, pelo contrário, os

membros do corpo que parecem os mais fracos, são os mais necessários. E

os membros do corpo que temos por menos honrosos, a esses cobrimos com

mais decoro. [...]. Se um membro sofre, todos os membros padecem com

ele; e se um membro é tratado com carinho, todos os outros se

congratulam por ele. Ora, vós sois o corpo de Cristo e cada um, de sua

parte, é um dos seus membros. Na Igreja, Deus constituiu primeiramente

os apóstolos, em segundo lugar os profetas, em terceiro lugar os doutores,

depois os que têm o dom dos milagres, o dom de curar, de socorrer, de

governar, de falar diversas línguas. São todos apóstolos? São todos profetas?

São todos doutores? Fazem todos milagres? Têm todos a graça de curar?

Falam todos em diversas línguas? Interpretam todos? Aspirai aos dons

superiores. E agora, ainda vou indicar-vos o caminho mais excelente de

todos (BIBLIA, CORÍNTIOS, 12, 12-31) (Grifos nossos).

O texto bíblico adverte aos fiéis acerca da revolta que alguns membros do Corpo de

Cristo podem desenvolver. Segundo o texto bíblico, Jesus não aceita que um membro se

revolte com a condição do outro, pois cada um tem o seu valor e a sua tarefa. Assim, como

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um corpo único, se um membro sofrer, os outros membros também sofrerão. No entanto, o

texto já apresenta uma distinção entre eles, já que Deus constitui apóstolos, profetas e

doutores, de modo que ninguém é igual ao outro. Apóstolos são apóstolos e não são profetas.

Nessa perspectiva, o discurso bíblico apresenta uma aceitação da condição estabelecida por

Deus, ou no caso analisado pela sociedade dominante: aqueles que são dominados nunca

serão dominadores, pois esta é a lei. Ao fazer remissão à constituição do Corpo de Cristo, o

sujeito enunciador acredita e objetiva afetar o outro, convencê-lo de que essa metáfora é

verdadeira. Consoante aos objetivos do discurso do Bispo, a metáfora do Corpo Místico de

Jesus mostra uma unidade entre os membros batizados no mesmo espírito, o que silencia as

diferenças sociais. O outro é, assim, levado a acreditar que sua condição social é vontade

divina. Logo, a revolta por parte de um membro faz com que todo o corpo padeça, o que

quebra com a unidade da própria igreja e do próprio Cristo que é a cabeça da Igreja e,

consequentemente, da sociedade. O discurso de D. Geraldo demonstra que todo discurso é

tecido por milhares de fios dialógicos, os quais servem de alinhavo para os discursos

anteriores, o já-dito, e os discursos que estão por vir, os movimentos dos interlocutores, suas

respostas. O discurso do bispo apresenta a voz da Igreja ao justificar a razão de um bispo

dever preocupar-se com as questões de sua diocese. Assim responde àqueles que são contra a

interferência da Igreja em questões políticas, por exemplo. Como justificativa apodera-se do

discurso religioso e traz para o discurso um dos sacramentos máximos do católico, o batismo.

Com isso, pretende convencer o fiel da necessidade de se ter um bispo preocupado com as

questões que transcendem a paróquia.

Ademais, também traz à cena os discursos daqueles que defendem uma revolução no

Brasil ou que denunciam as diferenças sociais, sendo destoantes ao discurso da Igreja. O

bispo explica a metáfora do Corpo Místico de Jesus e demonstra como cada membro do corpo

é fundamental para que o propósito de Cristo seja realizado. Dessa forma, busca-se a

comunhão com os fiéis, o convencimento destes e uma ação contra os discursos adversários.

Para isso, o discurso do bispo fala à razão dos seus interlocutores, utiliza-se de fatos e signos

que são importantes para eles, prova a verdade sobre aquilo que fala, além de emocionar o

outro e sensibilizá-lo. Pretende-se, portanto, o convencimento e a adesão do outro, mas

também uma ação prática em defesa do que é dito. A metáfora do Corpo Místico de Jesus

justifica o lugar e a condição de cada um dentro da sociedade. Podemos inferir que sendo a

Igreja a representante de Cristo na sociedade, ela é a cabeça da sociedade, aquela que

determina ou interfere nas demandas sócio-políticas por meio da influência tida sobre os fiéis.

Isso se evidencia também no pedido feito por Geraldo aos seus seguidores: “[...] Após todas

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as missas dominicais se rezem de acordo com as rubricas as orações de Leão XIII, precedidas

das seguintes fórmulas: Rezemos pela conversão da Rússia e pela derrota mundial do

comunismo” (DIOCESE DE JACAREZINHO, 1947, p. 8).

A preocupação do bispo justifica-se pelo fato de a Rússia26

representar para o mundo

a força do comunismo e do fim da propriedade privada. São essas vozes do contexto russo e

daquilo que os outros enxergam deles que ecoam no discurso do Bispo, mostrando que todo

discurso está apegado aos discursos anteriores, é heterogêneo e mobiliza diferentes vozes. A

voz do comunismo, neste caso, destoa da voz da Igreja do bispo, mas não deixa de constitui-la

e de constituir seu enunciador. Como aponta Faraco (2009, p.60), ancorado em Bakhtin

(1988), o discurso é o ponto de encontro entre diferentes vozes: “[...] todo dizer é

internamente dialogizado: é heterogêneo, é uma articulação de múltiplas vozes sociais (no

sentido em que hoje dizemos ser todo discurso heterogeneamente constituído), é o ponto de

encontro e confronto dessas múltiplas vozes”.

Diante desse contexto, a imagem do socialismo é associada pelos conservadores

católicos a um regime ligado a “legiões satânicas”. Diante disso, a Igreja coloca-se como uma

defensora do “bem” (SILVA JÚNIOR, 2006). Notamos que o bispo e seus seguidores

apoiam-se no conservadorismo do passado para resolver os problemas do presente, o que se

fazia por meio da linguagem. É a linguagem bíblica, a metafórica, e a dos comunistas que

constituem os discursos do bispo no presente a fim de combater os “maus frutos”. O discurso

conservador27

católico mostra, então, a naturalidade de a elite continuar a fazer do campo um

espaço de poder político e econômico e de subjugar o trabalhador rural.

Os fios que alinhavam o discurso da TFP não são novos, mas têm sua fonte nas

sociedades grega e romana, herança conservada pela Igreja. Os princípios fundantes dessas

sociedades são a religião doméstica, a família e o direito de propriedade. Conforme Fustel de

Coulanges (2006, p. 88), essas três coisas “[...] tiveram entre si, na origem, uma relação

evidente, e que parece terem sido inseparáveis”. Tendo como base a tradição, a família e a

26 Em outubro de 1917, Lênin defende o lema “Paz, pão e terra” e inicia seu governo na Rússia, decretando a

formação do Conselho de Comissários do Povo. Entre as medidas do novo governo estavam a nacionalização

dos bancos e a reforma agrária que pretendia distribuir terras aos camponeses (ARAÚJO, 2012). Com a morte de

Lênin, em 1924, tomou o poder Stálin, ao derrotar Trotsky. O governo de Stálin caracterizou-se pela repressão

política aos dissidentes comunistas, pela rígida planificação central e pelo alto controle do Estado sobre a

economia. No que se refere à reforma agrária, o governo impôs a coletivização das terras e dos rebanhos por

meio da violência, assassinando em massa os camponeses que resistiam à medida. 27

Segundo Oliveira de Carvalho (2005, s/p.), “[...] o conservador enfrenta a transformação com a ordem. Não

há a negação do movimento constante das sociedades humanas; ao contrário, ele é naturalizado, as sociedades

humanas naturalmente caminham para o progresso, logo não há necessidade do rompimento da ordem

estabelecida, até porque ela assegura completamente o progresso” (Grifos da autora).

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propriedade, a TFP combate a reforma agrária defendida pela esquerda e pelos trabalhadores

rurais, chegando a publicar o livro Reforma Agrária Questão de Consciência (1960), no qual

se analisa a questão fundiária sob o olhar integrista. Essa obra é escrita por Dom Antonio de

Castro Mayer, Dom Geraldo de Proença Sigaud, Plínio Corrêa de Oliveira e Luiz Mendonça

de Freitas e objetiva contribuir para as discussões acerca da reforma agrária no Brasil. O livro

evidencia o combate que essa ala da Igreja faz contra ao agrorreformismo, julgando-o como o

primeiro passo para a implantação do comunismo no Brasil (ZANOTTO, 2010).

O signo reforma agrária, nesse contexto, é constituído como a presença do

comunismo no Brasil, sendo considerado um sistema que poderia abalar a desigualdade social

e econômica no País pelo fato de as terras dos latifundiários serem coletivizadas. Do mesmo

modo é um signo que carrega a blasfêmia a Deus, por contrariar sua vontade divina. O signo é

então “[...] um objeto material, um fenômeno da realidade objetiva, que adquiriu uma função

ideológica” (PONZIO, 2016, p. 174).

No que tange à questão agrária, a TFP é uma força ideológica que reforça as defesas

do latifúndio e as do futuro governo militar. Seus livros e suas pregações são formas de

“catequizar” o rebanho católico quanto à ideia da reforma agrária no Brasil. Mayer et al.

(1960) referem-se à reforma agrária revolucionária, esquerdista e malsã com iniciais

maiúsculas e entre aspas: “Reforma Agrária”, o que constrói um sentido de um movimento

agressivo, violento e revolucionário. A proposta de reforma agrária defendida pelo grupo seria

aquela que contribuísse para o progresso do campo e da produção agropecuária, o que seria

uma reforma sadia. De acordo com Mayer et al. (1960):

[...] Assim, pode-se falar de uma reforma agrária sadia, que constitua

autêntico progresso, em harmonia com nossa tradição cristã. Mas também se

pode falar de uma reforma agrária revolucionária, esquerdista e malsã,

posta em desacordo com esta tradição. Este último tipo de reforma agrária

importa em golpear a fundo ou até em eliminar a propriedade privada. Por

isto mesmo ele deve ser tido como hostil também à família. Com efeito,

como veremos, propriedade e família são instituições correlatas e fundadas

nos mesmos princípios.28

(Grifos nossos).

O discurso dos autores deixa revelar que a “reforma agrária sadia” está ligada à

tradição cristã, o que resulta em aceitar a condição já posta na sociedade há muito tempo.

Contrariamente, está a reforma agrária esquerdista, para a qual se utiliza as qualificações

28 Disponível em: <http://www.pliniocorreadeoliveira.info/livros/1960%20-

%20ReformaAgrariaQuestConci%C3%AAncia.pdf>. Acesso em: 2 out. 2016.

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“revolucionária”, “esquerdista” e “malsã”. No primeiro caso, utiliza-se um adjetivo para

caracterizar a reforma agrária como uma ação ligada às revoluções vistas, naquele momento,

no mundo. Ser revolucionário está associado a uma ação anarquista, em que o povo por não

aceitar a condição dada por Deus sairia às ruas reivindicando o que não lhe é de direito. O

item lexical “esquerdista” refere-se aos partidos de esquerda, presentes em alguns países,

como Rússia e Cuba, como também às ações de cunho social que desenvolvem, como a

extinção da propriedade em prol da coletivização. Considerar a reforma agrária “malsã”,

significa entendê-la como maléfica, nociva e mórbida. Verificamos que as escolhas lexicais

não são aleatórias, mas sinalizam para uma posição ideológica, revelando que o signo capta as

menores nuances de ideologia.

Além disso, o livro também apresenta consonância com as palavras do Papa Pio XII

quando este condena uma estrutura agrária organizada somente de pequenas propriedades,

embora afirme que sabe da importância que ela tem na vida rural, porém há uma necessidade

de propriedades mais vastas, economicamente rentáveis. O signo terra está banhado de

interesses econômicos e políticos, por seu caráter de rentabilidade, o que a reforma agrária

pretendida pelos comunistas ameaça. Ademais, o discurso da TFP congrega a voz consoante

da Bíblia, da religião e, também, em um discurso destoante, dos opositores, que não passam

em branco em seus discursos. A TFP busca os olhares dos opositores para traçar seu próprio

discurso para, então, poder refutá-los, respondê-los, desafiá-los. Como explica Bakhtin (2011,

p. 341), o “[...] homem não tem um território interior soberano, está todo e sempre na

fronteira, olhando para dentro de si ele olha o outro nos olhos ou com os olhos do outro”.

No referido livro, Mayer et al (1960) defendem que “[...] a adesão de um católico a

uma reforma agrária “socialista e confiscatória” contraria violentamente a lei de Deus,

especialmente quanto às regras estabelecidas no sétimo e décimo mandamentos, ou seja, ‘Não

furtarás’ e ‘Não cobiçaras as coisas alheias’”. Neste caso, o argumento da TFP para defender

a propriedade privada está ancorado nos Dez Mandamentos da Lei de Deus, presentes no livro

de Êxodo (20:1). Segundo a Bíblia, Deus teria ditado a Moisés as dez leis que devem ser

seguidas pelos homens. A Igreja Católica institui esses mandamentos como a lei maior da

Igreja, de forma que o Catecismo da Igreja Católica apresenta diferentes passagens fazendo

referências à importância dos Dez Mandamentos, como “Guardar os Mandamentos é

corresponder à sabedoria e à vontade de Deus, expressas na sua obra da criação”

(CATECISMO, 348). Podemos notar que trazer os Mandamentos significa uma voz de

autoridade para os católicos por apresentar a própria voz de Deus. Assim, o discurso da TFP

busca vozes de autoridade, a Bíblia e o Catecismo Católico, para justificar e endossar seus

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argumentos. A voz da TFP não é uma voz desvinculada de outras vozes, mas é uma das vozes

dentro de uma corrente de enunciados religiosos e conservadores.

Desse modo, a reforma agrária é um signo revestido de pecado e comparado ao

“furto” de um bem de um terceiro, o que evidencia que aqueles que lutam pela reforma

agrária, lutam pelo furto, pelo roubo da coisa alheia, agindo como um ladrão. Sendo assim,

lutar pela reforma agrária e reivindicar terras e direitos igualitários no campo são atitudes de

ladrões. Zanotto (2010, p. 83) acrescenta que se “[...] os cristãos recebessem essas terras, não

seria correto receber os sacramentos da confissão, eucaristia ou enfermos antes de restituir os

bens recebidos e redimir este pecado”. Percebemos, então, como o signo reforma agraria é

revestido do sentido de pecado, de roubo, de cobiça e de deslealdade às leis de Deus. Nesses

termos, o cristão aceita a diferença entre classes, pois pela lei divina ele tem a plena condição

de existir como ser humano e sua riqueza está no céu. Esse discurso de diferença entre os

homens pela vontade divina ecoa até hoje entre os mais abastados e, também, entre a

população marginalizada, o que contribui para sustentar a desigualdade social. Há uma ideia,

por parte da classe dominante, de que a ordem deve continuar assim: há pessoas que devem

ser exploradas e há pessoas que devem explorar. Desse modo, não há discursos totalmente

mortos, pois cada discurso tem seu momento de reavivação (BAKHTIN, 2011). No curso da

história, a classe dominante continua a financiar políticos, igrejas, associações rurais que

desenvolvem ações para manter a ordem social.

Um olhar dialógico para a constituição dos signos terra, reforma agrária e educação

do campo demonstra que os discursos não são produzidos no vazio, mas estão sempre

alicerçados em outros discursos. Desse modo, os signos em análise constroem-se mediante a

articulação entre sujeitos e fatos sócio-histórico-ideológicos. Isso pode ser constatado no

Quadro 1, que apresenta uma síntese dos sentidos constitutivos dos signos terra, reforma

agrária e educação do campo enunciados neste capítulo. Esses signos são produzidos nas

relações sócio-interacionais pelos sujeitos discordantes ao projeto de redistribuição de terras,

conforme podemos notar a seguir:

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Quadro 1: Síntese dos sentidos construídos pelas vozes opositoras para os signos ideológicos

terra, reforma agrária e educação do campo

Vozes Histórico-

sociais

Terra Reforma Agrária Educação

do Campo

Período

Sesmarias

Patrimônio do Rei

Propriedade da coroa

Bem público desprovido de

valor monetário

Moeda de troca

Influência política

Lei de Terras Terra devoluta

Instrumento para gerar riqueza

Produto negociável

Mercadoria

Propriedade

Bem de capital

Produto negociável

Crédito bancário

Bem estar social

Constituição

Federal de 1946

Propriedade

Bem-estar social

Redistribuição de terras

Associações

Rurais

Propriedade familiar

Latifúndio

Minifúndio

Empresa rural

Instrumento de colonização

Bem de capital

Patrimônio agrícola

Distribuição de terras a

pessoas “aptas”

Transformação dos

camponeses em classe

média

Aumentar a produção

capitalista

Governo Militar e

Estatuto da Terra

Posse

Função social

Bem de produção

Atraso na produção agrícola

Instrumento para fixar o

homem no campo

Aumento da produção

capitalista

Inviabilizador da exportação

de grãos

Igreja Católica –

Carta Pastoral

Propriedade Reforma social agrária

Revolução

Igreja Católica –

TFP

Propriedade privada

Rentabilidade

Presença do comunismo

Blasfêmia a Deus

Pecado

Furto e cobiça

Deslealdade às leis de Deus

Elaborado pela autora (2018).

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90

Conforme observamos no Quadro 1, o signo reflete a ideologia do grupo social ao

qual pertence e o momento histórico do qual faz parte, de forma que os referidos signos

carregam pontos de vista, opiniões e visões de mundo próprios de seu grupo, mas também do

grupo opositor ao evidenciarem as mudanças que os signos ganham conforme o contexto

social. Como observa Bakhtin (1988, p. 88), “[...] o discurso nasce no diálogo com sua réplica

viva”, o que evidencia que todo discurso está orientado para o outro, seja nas respostas a

discursos do passado seja na antecipação a discursos futuros. É a linguagem viva e concreta

que nos permite perceber os tons valorativos dos signos terra, reforma agrária e educação do

campo sobrepostos em diferentes gêneros discursivos, como leis, decretos, estatutos,

editoriais, cartas e livros religiosos. Os enunciados concretos possibilitam-nos perceber como

os governos conservadores e a elite latifundiária buscam meios para garantir e perpetuar a

propriedade privada e o latifúndio no Brasil.

Dessa forma, os discursos dos acadêmicos sem terra não são os primeiros a criarem a

cadeia discursiva da terra, da reforma agrária e da educação do campo, mas eles fazem parte

de um discurso continuo e histórico, o qual responde a diversas ações passadas desenvolvidas

para naturalizar o latifúndio e, consequentemente, a desigualdade social. O signo terra, pelo

horizonte social dos opositores à reforma agrária, é concebido como patrimônio do Rei, bem

público e desprovido de valor monetário. Já em um outro momento, ganha contornos de

moeda de troca, instrumento para gerar riqueza, propriedade, bem de capital, produto

negociável, possibilitador de crédito bancário e bem estar social. Como podemos notar, o

signo terra não apresenta apenas um único sentido, pois acompanha as mudanças do contexto

social e econômico do qual faz parte os grupos envolvidos. Isso demostra que os signos são

vivos, móveis, vivem e evoluem no contexto social.

O signo reforma agrária começa a ser constituído pela classe dominante no Brasil

por meio dos discursos de oposição ao socialismo russo. Assim, a reforma agrária significa a

coletivização das terras, o fim do latifúndio e da propriedade privada, o que não é de interesse

dos governantes e seus aliados. O signo reforma agrária é entendido como possibilitador da

criação de uma classe média do campo, ameaça à agricultura nacional, incentivador da

permanência dos trabalhadores rurais no campo e ataque à propriedade privada. Como

salienta Bakhtin, não se trata do discurso de um individuo, mas de um grupo social que

comunga dos mesmos interesses sócio-econômicos.

Já o signo educação do campo mostra-se ainda em gestação, não sendo discutido por

nenhum grupo em destaque, pois, nos períodos históricos analisados, a educação rural é o

sistema de ensino que vigora no campo. O signo educação rural apresenta sentidos de

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adaptação do ensino da cidade para o campo, sem levar em consideração as especificidades

políticas e intelectuais do povo camponês. A educação rural não apresenta garantias aos

camponeses de viver da terra e de lutar por ela, mas é um sistema que limita as ações políticas

dos trabalhadores rurais por falta de conhecimento de suas necessidades.

Como podemos perceber, os signos terra, reforma agrária e educação do campo são

constituídos pelo olhar do opositor, evidenciando uma visão individualista, capitalista e

excludente da terra, conforme mostramos no Quadro 1. Há, então, uma força centrípeta sendo

impulsionada contra os defensores da reforma agrária e, consequentemente, contra os direitos

sociais, revelando-se nas estratégias políticas, judiciárias e até mesmo no uso da violência, a

fim de evitar mudanças sociais. Evidencia-se, assim, o valor axiológico que o grupo

dominante atribui à terra, à reforma agrária e à educação do campo, o que os constitui como

signos ideológicos.

Nossas análises, até este momento, mostram que infraestrutura e superestrutura

mantêm entre si uma relação recíproca, o que pode ser observado pelo exame do material

verbal que destacamos. Percebemos que ambas estabelecem os signos terra, reforma agrária

e educação do campo, os quais refletem e refratam a realidade em mudança. Ao buscarmos

perceber em que medida a linguagem determina a consciência e em que medida a ideologia

determina a linguagem, notamos que a infraestrutura está representada pela força produtiva

enquanto a superestrutura constitui-se pelas tradicionais instituições ideológicas, como

monarquia (rei), religião (Igreja Católica), justiça (Constituição, decretos, regimentos) e

política (Governo Militar). O exame das vozes histórico-sociais em destaque revela que a

superestrutura utiliza-se de estratégias para se consolidar e se perpetuar seu poder. Entre essas

estratégias estão a criação de leis, decretos, regimentos e estatutos, como também a defesa de

discursos de naturalização das desigualdades e, inclusive, o uso da violência para coibir

manifestações contrárias. Assim, a ideologia é um instrumento que possibilita que ações e

ideias sejam aceitas pela sociedade e tornem-se verdades incontestáveis.

No próximo capítulo, analisaremos discursos de políticos de oposição, da Igreja

Católica, do governo federal e dos movimentos sociais rurais favoráveis à reforma agrária, os

quais constituem os signos terra, reforma agrária e educação do campo. Entendemos que

essa constituição é edificada como um movimento de resposta às vozes destacadas neste

primeiro capítulo. Enquanto as vozes discordantes objetivam ocultar os problemas no campo,

assim como a existência de trabalhadores rurais sem terra, a desigualdade social no Brasil e,

ainda, condicionar a educação dos filhos de camponeses a uma educação rural “adaptada”, as

vozes consoantes a um projeto de reforma agrária buscam evidenciar as desigualdades,

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mostrar a existência de uma classe trabalhadora rural, como ainda demonstrar a necessidade

de luta por direitos, não só à terra, mas também à igualdade social e à educação do campo.

Nessa perspectiva, os movimentos de luta pela terra não só têm como bandeira a reforma

agrária, como também defendem o investimento na educação do campo, a qual deve

contemplar a formação intelectual e política da população rural.

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CAPÍTULO II – A AÇÃO RESPONSIVA NA CONSTITUIÇÃO DOS

SIGNOS IDEOLÓGICOS TERRA, REFORMA AGRÁRIA E EDUCAÇÃO

DO CAMPO: VOZES HISTÓRICO-SOCIAIS CONSOANTES AO

PROJETO DE DISTRIBUIÇÃO DE TERRAS

Em uma perspectiva bakhtiniana, a ação dialógica constitui os sujeitos como únicos

e, ao mesmo tempo, como relacionados com outros sujeitos. O mundo das relações existentes

em torno da terra é, assim, um “[...] mundo unitário e singular concretamente vivido: é um

mundo vísivel, audível, tangível, pensável, inteiramente permeado pelos tons emotivo-

volotivos da validade de valores assumidos como tais” (BAKHTIN, 2010, p. 117).

Por meio de uma ação dialógica, que propõe mostrar o diálogo existente entre as

vozes que constituem a história da terra no Brasil, objetivamos, neste capítulo, examinar

vozes consoantes ao direito dos trabalhadores rurais à terra, verificando como elas constituem

os signos terra, reforma agrária e educação do campo, opondo-se de forma respondente aos

discursos discordantes próprios da elite latifundiária.

Como observaremos, neste capítulo, diante de um contexto histórico de exploração,

expulsão, silenciamento e violência, os pequenos lavradores necessitam desenvolver ações de

resistência contra a visão de terra como bem de capital, propriedade privada e moeda de troca.

Essas lutas são contra o monologismo das leis, que objetiva reduzir o individuo a um objeto, e

contra as ideologias limitantes, as quais encorporam o signo terra já nas primeiras linhas da

história brasileira, marcando-o de sentidos que fazem parte de uma herança sígnica (DURAN,

2016).

Assim, exploramos, nesse capítulo, a noção de reforma agrária que chega ao Brasil

por meio do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que, no Congresso Nacional, faz uma

exposição a favor da reforma agrária e, também, resiste às empreitadas dos grupos opositores,

fazendo da reforma agrária um signo ideológico. Também voltamos nosso olhar para a

organização dos camponeses nordestinos para a criação das Ligas Camponesas, ainda, na

década de 1940.

Também no cenário político, observamos a defesa de um projeto de reforma agrária

do governo do presidente João Goulart, o qual é levado ao Congresso Nacional, mas não

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alcança êxito. Abordaremos, ainda, a voz da Igreja Católica, com a criação das Comunidades

Eclesiais, uma forma de prática da Teologia da Libertação, que aproxima o povo dos

religiosos por meio de encontros que, além de evangelizar, também apresentam questões

referentes ao dia a dia do trabalhador da cidade e do campo. Assim, os cursos de formação

ministrados pelos religiosos levam o povo a refletir a sua condição de oprimido e explorado.

Como consequência dessas formações, surgem os movimentos sociais rurais.

Esses movimentos, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), desenvolvem lutas em favor do trabalhador rural

que, agora, não objetiva apenas a terra, mas educação do campo, o fim do latifúndio e a

igualdade social. Para isso, os Movimentos buscam formação intelectual, ideológica e

política, bem como produzem documentos apresentando seus princípios e valores. Uma das

bases dos movimentos sociais rurais é a educação do homem do campo. Por isso, enfatizam o

papel da educação do campo como fundamental para a libertação dos trabalhadores rurais, por

ela possibilitar o acesso do trabalhador sem terra à cultura, ao conhecimento, como também

relacionar os conhecimentos universais à realidade do assentado e do acampado.

A força empreendida pelo MST, em um movimento de responsividade, é uma força

centrífuga, a qual busca “[...] a abertura, a diversidade, a heterogeneidade”, desvelando o

dialogismo constitutivo, contra a força centrípeta, caracterizada pelo “[...] fechamento, a

unidade, a homogeneidade” (FIORIN, 2016, p. 138), aspirando o monologismo, imposto

pelos ruralistas e políticos de oposição. Inspirada em Bakhtin, Py Elichirigoity (2008, p. 183)

caracteriza as forças centrífugas como aquelas que “[...] se empenham em manter as coisas

variadas e apartadas umas das outras; que compelem ao movimento, ao devir e à história; e

desejam a mudança, a vida nova”; já as forças centrípetas, aquelas que “[...] se empenham em

manter as coisas juntas e unificadas; resistem ao devir, abominam a história”.

Podemos observar que essas forças opostas no diálogo das práticas sociais

constituem também a identidade dos acadêmicos sem terra do curso de Ciências Sociais. A

voz do MST dialoga tanto com movimentos anteriores de luta pela terra e por justiça social,

como também com seus adversários. A militância do MST e os trabalhadores rurais sem terra

são preparados política e ideologicamente para resistir às manobras políticas daqueles que são

contra um projeto de justiça social. Em um movimento responsivo, de suas vozes, em seus

documentos e seus lemas não só ouvimos as vozes da Igreja Católica, das Ligas Camponesas

e da vivência do trabalhador rural, mas também as vozes de seus adversários, as quais serão

rebatidas, questionadas e criticadas. Assim, os sujeitos envolvidos estão em uma constante

luta, em um constante movimento, em constante formação política e acadêmica, o que resulta

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em diferentes estratégias de enfrentamento e, também, na constituição dos signos ideológicos

terra, reforma agrária e educação campo.

2.1 Vozes Teóricas

Como observamos no primeiro capítulo, os governantes ligados à elite, as

associações rurais e os grupos católicos conservadores são vozes que se levantam contra a

reforma agrária no Brasil, concebendo a terra como um bem de capital, tornando-a um

produto comercial e com valor de mercado, o que impede camponeses brasileiros e ex-

escravos de terem a oportunidade de ter um pedaço de terra para sua subsistência e existência

social. Ademais, a educação do campo foi negada aos camponeses, a quem restou a educação

rural, caracterizada por ser uma adaptação da educação urbana, demonstrando que

governantes e latifundiários não estavam preocupados com a formação intelectual dos filhos

de camponeses tampouco com as especificidades de quem mora no campo.

No entanto, essas não são as únicas vozes ouvidas no contínuo da história da terra no

Brasil. Em um movimento de responsividade, grupos sociais levantam suas vozes em favor da

redistribuição de terras e da educação do campo. A vida é dialógica, como afirma Bakhtin

(2011), logo compreendemos que o homem é dialógico, pois mesmo ao querer silenciar as

vozes de seus oponentes, é possível ouvi-los nas respostas, nas críticas, nos questionamentos e

na rejeição.

Assim, observamos que os discursos oponentes estão presentes nos enunciados dos

grupos defensores da reforma agrária, o que demonstra que os discursos são respostas aos

enunciados precedentes e apoiam-se neles para se definirem. Desse modo, ouvimos ecos e

ressonâncias dos discursos opositores nos enunciados dos grupos políticos e dos movimentos

sociais e religiosos, como uma resposta que vai ao encontro do outro.

Tal perspectiva confirma que todo falante é um ser respondente, como demonstra

Bakhtin (2011), uma vez que seu discurso faz parte da cadeia de enunciados da história da

terra. Os grupos consoantes não são os primeiros a debaterem a propriedade da terra e,

também, não são os últimos. Seus discursos respondem a enunciados anteriores como também

dialogam com os discursos do futuro, sejam de seus adversários, sejam de seus

correligionários.

É nesse sentido que o conceito de responsividade é fundamental para este estudo,

pois as respostas estão emaranhadas de ideologia e de valores axiológicos dos grupos sociais

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96

em análise, além de evidenciar como os discursos dos adversários foram recepcionados e

compreendidos por diferentes grupos sociais.

2.1.1 Responsividade

A comunicação humana processa-se dialogicamente entre interlocutores, não só entre

dois indivíduos em uma ação interativa, mas também entre discursos. Para Bakhtin (2002, p.

112), “[...] a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados

e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante

médio do grupo social ao qual pertence o locutor”. Na perspectiva bakhtiniana, todo discurso

é orientado para alguém, o qual pode ser um aliado ou um adversário e do qual se espera uma

resposta, isto é, um posicionamento ideológico. Desse modo, os indivíduos vivem um eterno

diálogo. Nas palavras de Bakhtin (2011, p. 348), a “[...] vida é dialógica por natureza. Viver

significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar etc. Nesse diálogo o

homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o

espírito, todo o corpo, os atos”. É o que ocorre na luta pela terra no Brasil. Como vimos no

capítulo anterior, as políticas são efetuadas para barrar o direito à terra aos camponeses que

nela querem viver e trabalhar. Os discursos mostram-se alinhados a uma ideologia burguesa

de exploração do trabalho camponês e da terra. Vários são os discursos que se levantam

contra a reforma agrária, o que cria condições para que a terra fosse inacessível ao trabalhador

rural. No entanto, como veremos neste capítulo, outras vozes se levantam contra o discurso

hegemônico dos latifundiários e da classe política de oposição. Os discursos da elite são

direcionados a eles mesmos na tentativa de perpetuar a forma de trabalho no campo, mas

também é orientado aos seus adversários com o intuito de calar as vozes que se ouvem

pedindo mudanças na estrutura fundiária do Brasil. Em uma perspectiva bakhtiniana, os

discursos de resistência/a favor da reforma agrária serão uma resposta aos discursos dos

latifundiários e de seus correligionários, assim como também serão uma resposta às anteriores

lutas pela terra. Como ressalta Bakhtin (2011, p. 297):

Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os

quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva. Cada

enunciado deve ser visto antes de tudo como uma ‘resposta’ aos enunciados

precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra resposta

no sentido mais amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles,

subtende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta. Porque o

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enunciado ocupa uma posição definida em uma dada esfera de comunicação,

em uma dada questão, em um dado assunto, etc. É impossível alguém definir

sua posição sem correlaciona-la com outras posições. Por isso, cada

enunciado é pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados, de

doutra esfera da comunicação discursiva.

Essa resposta é um processo de compreensão da palavra do outro; e a cada palavra

enunciada pelo outro, fazemos corresponder palavras nossas, palavras novas, outros atos

responsivos não apenas de aprovação, mas também de desaprovação. Compreender é, nas

palavras de Bakhtin (2002), opor à palavra do locutor uma palavra minha. No processo de

compreensão de luta pela terra, os discursos de políticos, de religiosos, de movimentos sociais

rurais apropriar-se-ão do discurso do outro – opositores à reforma agrária – para construírem

outro discurso, uma resposta, de forma que as palavras dos adversários serão ouvidas nos

discursos de defesa de direito à terra, a fim de serem rebatidas, contra-argumentadas,

contrariadas.

[...] todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau:

porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio

do universo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que usa

mas também de alguns enunciados antecedentes – dos seus e alheios – com

os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles,

polemiza com eles, simplesmente os pressupõe já conhecidos do ouvinte)

(BAKHTIN, 2011, p. 272).

A responsividade é, então, uma reação às palavras alheias, às quais despertam em

nós ecos ideológicos e nos levam a emitir valores. Nas palavras de Bakhtin (2011, p. 131-

132):

[...] Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a

ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada

palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos

corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica.

Assim, a resposta ao discurso do outro é um processo que passa pela refração. Ao

atribuir valores diferentes à terra, reforma agrária e educação do campo, o discurso de

consonância à reforma agrária refrata a significação advinda da classe dominante e constrói

outros sentidos para os referidos signos, cuja significação não é aceita pelos trabalhadores

rurais e por seus aliados. Dessa maneira, por meio da refração, significam, mediante seu

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horizonte axiológico, a terra, a reforma agrária e a educação do campo, atribuindo a esses

signos novos sentidos, o que faz dos signos uma arena de lutas. Como ressalta Faraco (2013,

p. 174), para o Círculo “[...] não é possível significar sem refratar”, isso ocorre porque

[...] as significações não estão dadas no signo em si, nem estão garantidas

por um sistema semântico abstrato, único e atemporal, nem pela referência a

um mundo dado uniforme e transparentemente, mas são construídas na

dinâmica da história e estão marcadas pela diversidade de experiências dos

grupos sociais, com suas inúmeras contradições e confrontos de valorações e

interesses.

Podemos afirmar que, na constituição dos signos, a resposta é resultado da refração,

o que faz dos signos vivos e móveis. O signo, ao carregar os variados valores axiológicos, é o

lugar de encontro e de desencontros de várias verdades sociais. No entanto, uma força

centrípeta sempre tenta impor a sua verdade como única, assim como tenta controlar os

discursos, monologizando-os, isto é, tornando os outros – adversários – como objetos. Para

Bakhtin (1988, p. 82), sobre a palavra atuam ao mesmo tempo forças que objetivam a

centralização, a estabilidade do sentido, a força centrípeta. Contudo, sempre há uma relação

com outro, o qual reage ao monologismo discursivo, que sempre empreende discursos de

resistência, mobilizando outras formas de resistências; assim, impondo uma força centrífuga.

Para Bakhtin (1988, p. 82), sobre a palavra atuam ao mesmo tempo forças que objetivam a

centralização, a estabilidade do sentido, a força centrípeta e forças que buscam a

descentralização e estratificação do sentido: “[...] Cada enunciação que participa de uma

‘língua única’ – das forças centrípetas e das tendências – pertence também, ao mesmo tempo,

ao plurilinguismo social e histórico – às forças centrífugas e estratificadoras.”

É o que ocorre nos relatos de experiências dos acadêmicos sem terra, uma vez que

suas vozes fazem parte do continuo da história da terra, de modo a ser mais uma voz que

resiste à atuação da força centrípeta, imposta pela elite. Sua resistência dá-se por meio de

estratégias, como acampamentos, marchas, seminários, formação política e, agora, também

por meio da formação acadêmica. É por isso que Bakhtin ressalta que as palavras estão

ligadas diretamente à vida, pois é na vida, na experiência diária, na relação com o outro que as

palavras tomam consistência. Para Bakhtin (2002, p. 179), a “[...] vida começa apenas no

momento em que uma enunciação encontra outra, isto é, quando começa a interação verbal

[...]”. Nesse processo dialógico, não há discurso acabado, mesmo aquele que seja o mais

significativo e o mais completo é apenas uma fração da cadeia da comunicação verbal

ininterrupta, logo a dinâmica enunciador-ouvinte-resposta sempre está em movimento pelo

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fato de o discurso não ter um acabamento, já que os participantes são ativos e mudam de

papel a todo momento. Assim, na luta pela terra, os defensores da reforma agrária são

enunciadores/respondentes, mas também ouvintes, assim como também o são seus

adversários. Como salienta Bakhtin (2011, p. 297): “[...] Os enunciados não são indiferentes

entre si nem se bastam cada um a si mesmos; uns conhecem os outros e se refletem

mutuamente uns nos outros”.

O caráter da antecipação é constituinte da responsividade, de modo que um

enunciador sempre tem em mente o outro, a sua posição social, o seu posicionamento

ideológico e, assim, para ele formula seu discurso para ir ao encontro do outro. No caso dos

discursos a serem analisados neste capítulo, os políticos de esquerda, as Ligas Camponesas, a

Igreja Católica (Teologia da Libertação e CEBs), os movimentos sociais rurais já conheciam o

discurso da classe dominante e a sua atuação nos setores públicos para frear a reforma agrária.

A partir daí, anteciparam as reações dessa classe e elaboraram seus discursos já para

respondê-las, refutá-las, contrariá-las, desmascará-las. Desse modo, o ouvinte não é um

destinatário passivo, o qual tem a função apenas de ouvir. O destinário, para Bakhtin (2011),

tem sempre a função de responder ativamente ao discurso do enunciador. A resposta pode vir

como uma concordância ou não. Um caráter destacável da resposta é a presença do discurso

do outro, é a presença de enunciados proferidos por outros enunciados que agora emergem de

forma consciente ou não. Por isso, um enunciado é sempre uma resposta a um enunciado

anterior. Em um enunciado ouvem-se diferentes vozes que o antecederam, o que dá

movimento à linguagem e, ao mesmo tempo, garante a ela ser inacabada e sempre renovada.

É esse aspecto que percebemos nas análises dos discursos que seguem. Verificamos

que os discursos consonantes à democratização da terra, à reforma agrária, à educação do

campo são respostas a enunciados de seus oposicionistas. Assim, em suas vozes ecoam seus

próprios dizeres, mas também vozes adversárias.

2.2 Vozes Histórico-sociais

Apresentar vozes consoantes ao projeto de redistribuição de terras no Brasil significa

demonstrar que os contornos da história sempre estão em construção, uma vez que por meio

da linguagem cria-se e recria-se o mundo histórico e valorativo. Desse modo, percebemos que

os sentidos não estão mortos e não pertencem a um grupo social específico, já que em um

movimento responsivo eles emergem dialogicamente, fazendo ecoar vozes alheias. Assim, são

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as vozes histórico-sociais aqui destacadas, pois elas não são fruto do acaso, mas de uma

continua relação responsiva entre grupos sociais contrários. Desse modo, quando o grupo

social contrário à reforma agrária no Brasil constrói formas, por meio da linguagem, para

banir a oportunidade de os trabalhadores rurais terem seus lotes, os grupos a favor também

constituem suas estratégias discursivas para criar caminhos a fim de garantir o direito à terra.

Nesse sentido, percebemos que os signos ideológicos recebem de ambos os grupos sentidos

para sua constituição, sendo um lugar de encontro entre de ideologias antagônicas.

2.2.1 PCB (Partido Comunista Brasileiro)

Em continuidade ao nosso percurso histórico que procura destacar fatos que

colaboraram para a constituição dos signos terra, reforma agrária e educação do campo,

ressaltamos a proposta de reforma agrária apresentada ao Congresso pelo Partido Comunista

Brasileiro (PCB). Analisar o percurso histórico de signos de tamanha dimensão leva-nos a

perceber jogos entre forças sociais, políticas, econômicas que sustentam a constituição das

faces dos signos analisados, resultados de lutas ideológicas que se dão pela linguagem. O

signo terra, até este momento, não está estabilizado, pois, mesmo com as ações de poder

desenvolvidas pela classe dominante, como a aprovação de leis, regimentos, decretos,

estatutos, há vozes que resistem ao projeto de latifúndio. Por isso, o signo terra constitui-se

como uma arena de lutas entre classes diferentes, uma vez que acumula uma herança

ideológica dos grupos antagônicos.

O Partido Comunista Brasileiro (PCB), inicialmente, com a figura de Luiz Carlos

Prestes e a Coluna Prestes29

mostra-se como uma voz que traz para o cenário brasileiro o

fenômeno social da reforma agrária, herdado da Revolução Russa. Com o lema “Paz, pão e

terra”, Lênin, em 1917, decreta a instituição da reforma agrária na Rússia com o objetivo de

distribuir terras aos camponeses, visando a um caráter coletivo para as terras e para a

produção. A voz das teses de Lênin ecoa no discurso do deputado Luiz Carlos Prestes e do

PCB por meio de uma proposta de reforma agrária levada ao Congresso, em 18 de junho de

1946. O discurso de Prestes destaca que, apesar da entrada dos princípios do capitalismo,

29 Movimento revolucionário também chamado Coluna Miguel Costa-Prestes, que, sob a liderança dos

“tenentes” Miguel Costa e Luís Carlos Prestes, empreendeu longa marcha por vários estados do país entre abril

de 1925 e fevereiro de 1927.

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observam-se a existência de características feudais nas relações agrárias no Brasil, o que

justifica o atraso na estruturara agrícola brasileira30

. O discurso é, portanto, uma contrapalavra

que se opõe aos anseios capitalistas, culpando esse sistema pelo atraso visto na estrutura

fundiária brasileira. Assim, observamos uma disputa entre os princípios capitalistas e

socialistas. O primeiro que vê a terra como bem de produção, e o segundo que a concebe

como coletiva. Comparar a situação das terras brasileiras ao feudalismo traz à cena o sistema

de suserania e vassalagem entre os senhores do feudo e os seus servos. Realizar essa

comparação é mostrar que as relações no Brasil entre fazendeiros e trabalhadores rurais

assemelham-se à escravidão e à exploração, pois a função preponderante dos vassalos é a de

garantir rendimentos econômicos aos senhores feudais em troca de proteção e de subsistência.

Por isso, o deputado considera a política agrária no Brasil atrasada, uma vez que herda traços

medievais de relação com a terra. O discurso do deputado é uma nova voz na arena de luta

pela terra. Trata-se de um novo sujeito social, que representa a voz de um Partido, de um

coletivo, o qual tem interesses em assumir o poder, e por isso, em uma ação responsiva,

denuncia o monopólio da terra, a propriedade privada e a concentração de propriedades nas

mãos de poucos, o que também leva a inferir que muitos estão sem terra.

Para comprovar sua tese, Prestes lança mãos de dados do Censo do Instituto

Brasileiro de Pesquisa e Estatística (IBGE), de 1940, apontando que “Mais ou menos 18% dos

proprietários possuem 2/3 da área total das propriedades rurais, ou em números absolutos: uns

340 mil proprietários, isto é, apenas 3,7% de todos os que labutam na terra” (STEDILE, 2012,

p. 20), o que seria um pouco mais de 1% dos habitantes do campo. Dialogicamente, o

discurso de Prestes objetiva garantir sua confiabilidade, ao buscar uma voz de autoridade que

se baseia em números para retratar a situação do Brasil com relação à terra. A voz do Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou seja, uma voz de um Censo de 1940, é

retomada no discurso de Prestes em 1946, o que demonstra que presente e passado estão em

constante relação, como também evidencia que a história é inconclusa. Na visão bakhtiniana,

a relação com discursos anteriores é inevitável, pois sempre recorremos ao que o outro disse

para criar autenticidade, credibilidade ao nosso próprio discurso.

Segundo o Censo (IBGE, 1940), no Brasil, há aproximadamente 1.000 propriedades

com mais de 10 mil hectares e 60 propriedades com mais de 100 mil hectares, o que

demonstra que 60 pessoas são donas de 6 milhões de hectares, 3,2% das propriedades rurais, o

30 O discurso do deputado Carlos Prestes está transcrito no livro de Stedile (2012).

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que constitui autênticos latifúndios. A desproporção entre os números revela o universo de

latifúndios presentes no Brasil e, ainda, denuncia a desigualdade social no campo. Notamos

um número pequeno de proprietários para uma grande quantidade de terras, o que

desestabiliza as relações entre latifundiários e camponeses. A presença dos números infere

uma tentativa de convencer seu interlocutor acerca da veracidade dos fatos que defende. Por

meio dos números, o discurso do deputado tenta convencer seus interlocutores a pensarem

como o PCB e a votarem como o PCB.

O deputado também afirma que de “[...] todo o exposto, só cabe uma conclusão: sem

uma redistribuição da propriedade latifundiária, ou, em termos mais precisos, sem uma

verdadeira reforma agrária não é possível debelar grande parte dos males que nos afligem

[...]” (STEDILE, 2012, p. 21). Verificamos a apresentação da reforma agrária como sendo a

solução para os males que afligem tanto o governo quanto a população. No entanto, a

“reforma agrária” deve ser verdadeira. O discurso de Prestes revela uma ação responsiva às

leis anteriores (Constituição Federal de 1891), considerando-as falsas/mentirosas, ao

incluírem em suas letras a possibilidade de desapropriação de terras desde que a União

disponibilizasse de verba para custear a desapropriação, o que não acontece com a

justificativa de que a União não dispor de verba para custear as despesas, iludindo, assim,

aqueles que buscam na justiça o direito à terra. Como afirma Bakhtin (2011, p. 272), “[...]

cedo ou tarde, o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos subsequentes

ou no comportamento do ouvinte”.

O signo reforma agrária é lançado no cenário político e já nasce herdando os

sentidos do signo terra acumulados ao longo da história, bem como dos valores ideológicos

que o acompanham. Concordamos com Duran (2016, p. 90) quando o autor afirma que um

signo não nasce do zero, de um ponto inaugural, sem ter antecedentes, “[...] mas encontra-se

inserido em uma cadeia discursiva que possibilita sua imersão, sua existência”. Dialogando

com a perspectiva bakhtiniana, podemos afirmar que são as condições sócio-históricas e

econômicas, isto é, na interação social que os signos surgem. Desse modo, entendemos que da

história de um grupo social, os signos herdam os valores ideológicos. “[...] O signo não passa

a existir se não a partir de um conjunto de fatos que o possibilitam existir dentro de um

determinado contexto. Esses fatos são a história do signo. Sem esses elementos históricos, é

impossível determinar o estabelecimento de um signo ideológico” (DURAN, 2016, p. 45). No

caso do signo reforma agrária, notamos que a história da relação dos dominantes com a terra

e as resistências dos dominados incorpora-o.

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O deputado também enumera os problemas relacionados à terra31

e afirma que o

problema da terra precisa ser resolvido e cabe ao Congresso chegar a uma solução para isso, o

que o partido julga necessário para evitar “[...] o caos, a guerra civil, porque o progresso do

país não pode ser barrado por uma classe dominante, senhora da terra, proprietária das

maiores extensões do nosso solo [...]” (STEDILE, 2012, p. 26).

O discurso dialoga novamente a Revolução Russa ao fazer referência à guerra civil

que se institui no País pela resistência dos latifundiários e capitalistas ao modelo de reforma

agrária apresentado por Lênin, o que leva a Rússia a uma guerra que dura três anos e devasta

o país. O enunciado objetiva convencer os deputados de que é preciso aprovar o projeto do

PCB para reforma agrária, para, assim, evitar o caos e a guerra civil. O discurso do deputado é

construído como uma resposta aos seus destinatários, objetivando antecipar-se a eles, e “[...]

essa resposta antecipável exerce, por sua vez, uma ativa influência sobre o meu enunciado”

(BAKHTIN, 2011, p. 302). Ao antecipar-se a seus destinatários, lança sobre os congressistas

uma responsabilidade, levando-os a avaliar a situação e a se sentirem parte do problema.

Ademais, é possível analisarmos a constituição de um sujeito socialista por meio do estilo do

discurso, como nas escolhas lexicais de “classe dominante” e “senhora da terra”, que

encontramos em sua fala. A respeito das escolhas lexicais, Bakhtin (2011, p. 291) afirma:

“[...] Porque se pode pensar que quando escolhemos as palavras para o enunciado é como se

nos guiássemos pelo tom emocional próprio de um palavra isolada: selecionamos aquelas que

pelo tom correspondem à expressão do nosso enunciado e rejeitamos as outras”. O primeiro

caso trata-se de um termo utilizado pela teoria marxista para se referir ao grupo

economicamente abastado e detentor de poderes políticos por meio dos quais conquista o

aparato oficial do Estado e, assim, consegue legitimar seus interesses por meio de leis e

planos econômicos. Já o segundo “senhora da terra” retoma os sentidos de poder, dominação

e influência também ligados ao sistema político e econômico. Percebemos ainda um

julgamento da classe dominante quando a responsabiliza pela situação de caos que assola o

campo brasileiro, pois é ela que não admite a “divisão” (STEDILE, 2012, p. 26). O termo

31 Segundo Prestes, sem a verdadeira reforma agrária, não seria possível diminuir problemas como: a) produção

agrícola baixíssima, rotineira; pouco diversificada e de todo insuficiente para as necessidades de consumo das

nossas populações; b) condições precárias de existência no campo, no que concerne à alimentação, vestuário,

habitação, saúde e educação; c) fraca densidade geográfica (4,8 habitantes por km²); d) falta de mercado interno

para nossas indústrias; e) situação aflitiva de nossos transportes; em que se congregam, de um lado, o estado

deplorável dos equipamentos, obsoletos, gastos e super trabalhados; de outro, a falta de transportes (STEDILE,

2012, p. 21).

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“divisão” também pode ser lido dialogicamente como recorrente na teoria marxista e no

socialismo russo, particularmente, por indicar sentido de distribuição, coletivização e partilha,

conceitos que retomam a voz do “Decreto sobre a Terra”, de Lênin, que estabelece a abolição

da propriedade latifundiária sem qualquer indenização, tornando a terra

estatizada/nacionalizada.

São vozes do passado retomadas no discurso de Prestes, algumas consoantes outras

destoantes ao seu projeto de reforma agrária, a fim de refutar, discordar, responder, bem como

concordar e compactuar. A presença das várias vozes entrelaçando-se no enunciado leva-nos a

perceber que seu discurso não é o primeiro a falar sobre reforma agrária como distribuição de

terras, como se fosse um “Adão Bíblico” a descrevê-la pela primeira vez, mas é, como aponta

Bakhtin (2011, p. 300), um “[...] elo na cadeia da comunicação discursiva e não pode ser

separado dos elos precedentes que o determinam tanto de fora quanto de dentro, gerando nele

atitudes responsivas diretas e ressonâncias dialógicas”. Desse modo, o discurso do deputado é

mais um discurso que faz parte do fluxo da história da terra no Brasil e, assim, continua

fazendo parte de discursos futuros, como os dos acadêmicos sem terra ao elaborarem

discursos que contrariam os conceitos capitalistas, contra o latifúndio, e a favor da

coletividade e da partilha.

O discurso de Prestes que representa o PCB propõe uma mudança no Art. 164, § 17

da Constituição para a seguinte redação:

A lei facilitará a fixação do homem no campo, tomando as medidas

necessárias para o fracionamento dos latifúndios, para o desenvolvimento

das pequenas propriedades, para a criação de novos centros de população

agrícola, com as terras e as águas que lhes sejam indispensáveis para o

fomento da agricultura e para evitar a destruição dos elementos naturais e

os danos que a propriedade possa sofrer em prejuízo da sociedade

(STEDILE, 2012, p. 27) (grifos nossos).

A reforma agrária parece ser entendida pelo PCB, representado por Prestes, não

como distribuição de terras como direito, mas como uma maneira de fixar o homem no

campo, o que contraria a ideia dos políticos conservadores de que o homem deve sair do

campo para ser mão-de-obra das fábricas. O discurso responsabiliza-se pelo o que afirma, ao

enfatizar que a lei proposta pelo Partido “facilitará” a “fixação do homem no campo”, do

mesmo modo responde às vozes políticas que defendem que o camponês deve sair do campo e

ocupar as cidades. Além disso, percebemos que o signo reforma agrária é concebido pelo

PCB como “fracionamento do latifúndio”, isto é, fracionamento das grandes extensões de

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terra pertencentes a uma pessoa só, o que significa a divisão, a partilha e a coletivização da

terras entre muitos, herdada de Lênin. Assim, o signo terra, para o PCB, está associado a um

modelo socialista de reforma agrária, e a um projeto maior que visa a implantar no Brasil o

socialismo e, para isso, a reforma agrária é um importante passo. O discurso do PCB é uma

das bases para as resistências empreendidas por grupos de camponeses que se organizam em

torno do pedido de reforma agrária, como acontece com as Ligas Camponesas. Do mesmo

modo, este combate ao latifúndio e ao que ele representa também são recorrentes nos

discursos dos acadêmicos sem terra.

Importa salientarmos ainda que a preocupação do PCB com o desenvolvimento de

pequenas propriedades, a criação de novos centros populacionais agrícolas e com terras e

águas para desenvolver a agricultura são fatores retomados também pelos acadêmicos em seus

relatos pessoais ao defenderem que não basta fazer reforma agrária, é preciso dar condições

para que os lotes (pequenas posses) possam produzir, uma vez que sem essas condições não

há como o homem do campo permanecer de forma digna na terra. No entanto, o que vemos

em muitos casos no Brasil é a desapropriação de terras já esgotadas pela alta produtividade,

sendo necessários grandes investimentos para que elas voltem a produzir, o que não é possível

aos trabalhadores sem terra. O discurso do deputado também dialoga com discursos futuros

dos sem terra à medida que aponta a preocupação com o meio ambiente, pois esta é uma das

bandeiras dos movimentos sociais rurais, como o MST, que pregam a produção agrícola

aliada à preservação ambiental.

O discurso de Prestes é um elo na cadeia discursiva sobre a reforma agrária no

Brasil. É uma voz emaranhada por outras vozes, consoantes e discordantes. Elas são

retomadas para ora responder, combater e discordar de seus adversários políticos, os quais

querem manter o latifúndio como política agrária no Brasil, ora para concordar e compactuar

com vozes que dão ao seu discurso um grau de autoridade e de confiabilidade, a fim de

convencer os demais deputados acerca da coerência de sua proposta. São várias vozes

sobrepondo-se simultânea e independentemente, mas que estão relacionadas de forma

harmoniosa. O PCB, representado por Prestes, é um novo sujeito na arena de disputa pela

terra. Trata-se de uma força de resistência à política agrária vigente. Com bases nos princípios

socialistas, leva a bandeira da reforma agrária para vários cantos do Brasil, plantando

esperança e desenvolvendo ações que fortalecem os trabalhadores do campo. Isso é visto no

incentivo do PCB à luta das Ligas Camponesas pelo acesso à terra. Consideramos as Ligas

uma contrapalavra aos discursos dominantes de latifundiários, usineiros e políticos

conservadores. Elas demonstram a força da união de foreiros, os quais, mesmo diante de um

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contexto de limitações e dificuldades políticas, organizam-se para lutar contra o sistema de

concentração de terras e de exploração do trabalhador rural no nordeste brasileiro, como

discutiremos a seguir.

2.2.2 Ligas Camponesas

Como vimos no capítulo anterior, a Constituição Federal de 1946 apresenta um

projeto de redistribuição de terras, mas não um de reforma agrária. Com isso, a crise no

campo entre latifundiários e camponeses somente se intensifica. Os camponeses sentem na

pele a falta de uma política agrária que dê direito a eles de trabalharem a terra, de nela

continuarem, de nela existirem, restando a eles a serem guiados pelas mãos dos latifundiários

e de seus interesses econômicos. Contudo, em um processo dialógico, a voz da Constituição e

daqueles que a reverberam não são as únicas ouvidas. Pelo nordeste brasileiro, observa-se o

som de uma nova voz, a voz dos camponeses organizados, unidos em prol da justa

distribuição de terras. Eles são um dos interlocutores da Constituição Federal de 1946, a qual

tenta silenciá-los e acalmá-los, e, em um processo dialógico, eles ouvem, mas não se calam,

pois em todo ato de comunicação há sempre uma resposta. Na interação com seus opositores,

os outros – latifundiários, políticos, usineiros –, os chamados foreiros (camponeses

nordestinos) formulam contrapalavras aos discursos dominantes, reagindo a elas e

desenvolvendo ações contra elas. A contrapalavra é o surgimento das Ligas Camponesas no

nordeste, resultado da união de foreiros, os quais, mesmo em um cenário de limitações e

dificuldades sócio-políticas, ainda na década de 194032

, organizam-se para representar e

discutir os interesses dos trabalhadores rurais. Esse movimento está na base de movimentos

futuros que lutam pela terra, como podemos ver na fala do coordenador nacional do

Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), João Pedro Stedile, na ocasião do

aniversário de 40 anos da Comissão Pastoral da Terra (CPT): “O MST é fruto da experiência

histórica do povo brasileiro das lutas por reforma agrária. O MST se sente neto das Ligas

32 Outros movimentos, como os de Canudos (Bahia) e Contestado (Região do Paraná e de Santa Catarina), já

haviam ocorrido anteriormente, mas este estudo centra-se naqueles que tiveram como objetivo a Reforma

Agrária e que também terão seus princípios lembrados pelos Movimentos Sociais do fim da década de 70.

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Camponesas e filho da CPT, foi por isso que nós erguemos a bandeira da reforma agrária no

bojo das lutas pela redemocratização do país”33

.

As lutas empreendidas pelas Ligas influenciam, assim, a luta dos movimentos sociais

pela terra a partir da década de 70, como também constituem a identidade dos acadêmicos

sem terra do curso de Ciências Sociais, da UFGD. É um processo continuo da história, em

que os acontecimentos do passado são retomados nas práticas, nos comportamentos, nas

formas de luta e nos discursos dos sujeitos que hoje ocupam o lugar social de militantes pela

terra, pela reforma agrária, pela justiça social antes ocupado pelos foreiros34

nordestinos.

Diante da concentração de terra e da expulsão dos trabalhadores rurais do campo, as

Ligas Camponesas são uma ação responsiva elaborada a partir da relação de alteridade, no

sentido de que são contrapalavras às palavras dos outros, dos latifundiários e políticos. Para

Bakhtin, a palavra é sempre alheia, pois a menor tomada de posição já resulta de um diálogo

com o já-dito e com o outro, por isso a “[...] palavra está sempre carregada de um conteúdo ou

de um sentido ideológico ou vivencial” (BAKHTIN, 2012, p. 95). É na relação entre o Eu e o

Outro que a palavra se posiciona. Ela é “[...] a ponte, o elemento de mediação” (GEGe, 2013,

p. 84) entre os participantes de uma atividade verbal. Nessa relação de interação, a palavra

carrega de um para o outro as ideologias de ambos, o que constitui cada um.

As Ligas Camponesas congregam a voz do campo e a voz do PCB contra as vozes de

oposição à redistribuição de terras. O PCB como um partido político oferece às Ligas um

status de organização e de legitimidade, mesmo que o objetivo do Partido não seja a reforma

agrária, mas uma aliança entre o operário e o camponês, o que possibilita repensar a posse de

terras em relação ao latifúndio.

Uma das primeiras formas de resistência dos foreiros acontece em Pernambuco, em

1954, no município de Vitória de Santo Antão, no Engenho Galileia. Os foreiros não obtêm

respaldo no município, por isso, diante da ameaça e da situação de desamparo legal, já que as

Leis do Trabalho, de 1943, não se preocupam com o trabalhador do campo, os foreiros

buscam ajuda em Recife, tendo como principal objetivo o fim da repressão policial. Conforme

Azevêdo (1982), para reverter a situação é necessário abranger o âmbito da associação e

recorrer ao apoio político e jurídico na capital, pois, no município de Vitória de Santo Antão,

33 Disponível em: <http://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes/noticias/cpt-40-anos/2605-ha-40-anos-

nascia-a-cpt>. Acesso em: 22 set. 2016. 34

Foreiro é o termo utilizado por Morais (1997) e Azevêdo (1982) para se referirem aos camponeses,

trabalhadores rurais.

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os donos de engenho têm poder político nas mãos. Em Recife, os foreiros recebem respaldo

de personalidades da massa popular, a quem os latifundiários apelidam de Ligas Camponesas

(MORAIS, 1997).

Nesse cenário, o advogado e deputado pelo PCB, Francisco Julião, aceita defender a

causa dos foreiros por perceber que se trata de um grupo organizado, por isso sua primeira

providência é conferir base jurídica à Sociedade Agrícola. Portanto, é necessário utilizar-se de

meios próprios de uma estrutura organizada segundo as bases legais para tornar o grupo de

foreiros reconhecido como uma Sociedade pela Justiça Brasileira. Há um movimento da

ideologia do cotidiano em direção à ideologia oficial, a qual dá oficialidade à Sociedade

criada pelos foreiros. Notamos, então, que na luta pela terra não basta o enfrentamento, a

resistência às forças opositoras por meio de marchas, ocupações e protestos, mas é necessário

estar ancorado por bases legais para que as reinvindicações sejam legitimadas pela Justiça.

Nesse caso, há uma necessidade das organizações da base trabalhadora de buscarem o

respaldo da ideologia oficial, das próprias leis criadas pela classe dominante para continuarem

a luta pela terra. A legalidade, conseguida na Justiça pela Liga, liderada por Francisco Julião,

mostra uma relação entre a Ideologia Oficial e a Ideologia do Cotidiano. Nas palavras de

Bakhtin (2002, p. 118), a Ideologia do Cotidiano é

[...] a totalidade da atividade mental centrada sobre a vida cotidiana, assim

como a expressão que a ela se liga [...]. A ideologia do cotidiano constitui o

domínio da palavra interior e exterior desordenada e não fixada num sistema,

que acompanha cada um dos nossos atos ou gestos e cada um dos nossos

estados de consciência.

Em outras palavras, a ideologia do cotidiano caracteriza-se por um conjunto de

experiências vivenciadas concretamente na vida cotidiana, nos encontros e desencontros

sociais, sendo de natureza social e por isso de caráter relativamente instável. Como afirma

Volochínov (2013, p. 152):

Não se creia que a ideologia do cotidiano seja uma coisa inteira, monolítica,

uniforme em todas as suas partes. Nela devemos distinguir uma série

completa de estratos, desde os mais baixos que se movem e se modificam

mais facilmente até os superiores que são limítrofes diretos dos sistemas

ideológicos.

A ideologia do cotidiano está nas ações dos foreiros, na sua organização diária, nos

interesses em comum e nas reuniões do dia a dia. Como afirma Miotello (2005, p. 169), a

ideologia do cotidiano é aquela que “[...] brota e é constituída nos encontros casuais e

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fortuitos, no lugar do nascedouro dos sistemas de referência, na proximidade social com as

condições de produção e reprodução da vida”. Por fazer-se no dia a dia, por se formular e

reformular nas interações entre foreiros e entre grupos de foreiros, a ideologia do cotidiano

faz-se nos encontros entre ideias, pensamentos e visões que emergem durante as reuniões e as

conversas familiares, logo não é uma ideologia estabilizada, estagnada. Ao contrário, ela está

sempre em movimento, assim como estão seus sujeitos. No entanto, para garantir seus direitos

e lutar por outros, é preciso acessar a ideologia já estabilizada, reconhecida, obedecida e

materializada nas Leis. É na ideologia oficial que os foreiros buscam o reconhecimento

enquanto uma Sociedade de Agricultores. Eles almejam a formalização, a sistematização, a

estruturação e o conteúdo da ideologia oficial a fim de garantir sua oficialidade e poder

responder aos seus opositores também como um grupo organizado e reconhecido

judicialmente.

Pelo caráter sistemático e formal da ideologia oficial e por representar os interesses

da classe dominante, podemos pensar que ela se impõe à classe dominada, o que para Bakhtin

(2002) é impossível. Isso porque as duas ideologias estão em processo continuo de interação,

uma interfere na outra. Exemplo disso acontece com a Liga dos Galileus que, mesmo

utilizando-se de instrumentos legais, amparados pela Constituição de 1946, para solicitar a

terra do Engenho Galileia, também acentuam a solicitação concentrando-se diante da

Assembleia Legislativa e do Palácio do Governo, a fim de pressionar os deputados a votarem

a favor da desapropriação e do sancionamento por parte do governador, transformando o

projeto em lei. A concentração de um bom número de pessoas no centro político de Recife

demonstra que os instrumentos da união e da organização, próprios da ideologia do cotidiano,

são acionados para que também contribuam para o resultado final dado por instâncias oficiais,

a Assembleia e a Governadoria de Pernambuco.

Percebemos, assim, que o sujeito da classe minoritária, por não estar assujeitado à

ideologia oficial, é capaz de refutá-la, negá-la, admiti-la em parte, pressioná-la, e até mesmo

construir um discurso completamente diferente. Desse modo, ideologia oficial e ideologia do

cotidiano relacionam-se diretamente, de forma que à medida que a ideologia do cotidiano se

alimenta da ideologia oficial, esta também se alimenta daquela. Assim, a ideologia do grupo

minoritário não é sufocada nem anulada pela ideologia oficial, longe disso; ambas convivem,

debatem-se, digladiam-se e interagem. Ainda nessa perspectiva, Pereira e Rodrigues (2014, p.

179) afirmam que a ideologia oficial nutre-se da ideologia do cotidiano, explicando que “[...]

os sistemas ideológicos formalizados, como o da ciência, da moral, da arte, da religião etc.,

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constituem-se a partir da ideologia do cotidiano e, uma vez constituídos, exercem forte

influência sobre esta, dando-lhe o seu tom”.

A solicitação é atendida, de forma que terras do Engenho Galileia são desapropriadas

em 1959. Esse cenário mostra um maior envolvimento político dos camponeses e uma maior

organização do grupo, o que é consequência do aumento da politização, das mobilizações e

das discussões incentivadas pelas Ligas, as quais já tomam novos contornos nos Estados de

Pernambuco e da Paraíba. Assim, o movimento das Ligas deixa de ser considerado apenas

como defensor de pequenas causas locais para, então, tornar-se um movimento de atuação e

de possíveis mudanças sociais. Isso demonstra que a ideologia não nasce da consciência

individual, já que a consciência adquire contornos e existência nos signos, os quais são

ideológicos e criados por um grupo socialmente organizado. Como afirma Miotello (2006), a

luta pela constituição dos signos efetiva-se na coletividade e não na ação arbitrária de um

sujeito. E acrescenta o autor que “[...] isso faz com que sujeitos e signos se constituam

diversamente, carregados de todos os sentidos que se cruzam nesse embate” (MIOTELLO,

2006, p. 285).

Os camponeses, membros das Ligas, juntamente com o PCB demonstram a força de

um movimento organizado e essa organização é um ponto chave nas resistências

empreendidas pelos movimentos sociais rurais a partir do final da década de 1970. Os

movimentos sociais herdam das Ligas e, também, da Igreja Católica o caráter de organização,

de mobilização, mostrando aos seus militantes a força da união e da organização em favor de

seus direitos. Também esse caráter está presente nos relatos pessoais dos acadêmicos sem

terra, quando eles demonstram as formações, as organizações dos acampamentos e a divisão

de tarefas. Tudo isso constitui esse sujeito acadêmico. As Ligas deixam uma herança aos

movimentos sociais que prova a necessidade de se juntar forças para que as terras ocupadas

sejam desapropriadas, conforme prevê a Constituição. Do mesmo modo, também demonstram

a necessidade da organização judicial, do amparo legal vindo de advogados do movimento.

Tudo isso revela uma rede de forças sociais que se tece em favor da luta pela terra, pois ela

sempre pede esforços.

Ir às ruas de Recife evidencia à sociedade, ao poder público e aos fazendeiros uma

voz silenciada em outros momentos históricos do Brasil, mas que agora soa nas ruas e solicita

seus direitos. Pelos pátios da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco e do Palácio

do Governo ecoam os gritos por “terra” e “reforma agrária”. Notamos que o foreiro vai às

ruas, utilizando-se de uma linguagem das ruas, das praças e dos lugares públicos de onde não

podem ser retirados. Trata-se de formas de linguagem utilizadas pela cultura não oficial para

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se expressar, como gritos de palavras de ordem e solicitações enfáticas (BAKHTIN, 2013). É

na praça pública que os foreiros concentram sua união e sua organização para demonstrar, ao

poder público, sua força de atuação. Para Bakhtin (2008, p. 131), a praça pública “[...] traz a

marca do caráter não-oficial e da liberdade da praça pública”. Ela “[...] é um lugar da

convergência de tudo aquilo que não é oficial e goza de uma espécie de direito de

‘extraterritorialidade no mundo da ordem e da ideologia oficial’” (PONZIO, 2016, p. 125). O

pátio da Assembleia e da Governadoria, a praça pública e as ruas são lugares para todos, onde

é permitido ao povo ocupar e reivindicar seus direitos. Não há entre os sujeitos ali presentes

uma caracterização de superior ou inferior, já que ali a linguagem é familiar, a coesão existe e

os interesses são os mesmos. O que existe é uma ideologia que os une e que os fazem fortes.

Na praça, coexistem linguagens de entusiasmo, de coragem, mas também é um lugar para os

xingamentos e palavras obscenas. As palavras da praça pública é a palavra de um povo, o qual

externaliza o que sente a respeito da situação vivida. É uma linguagem viva, espontânea que

traduz os sentimentos do povo que grita e reivindica. Como aponta Ponzio (2016, p. 125), a

“[...] linguagem popular apresenta um dos fenômenos mais antigos da língua: a duplicidade de

tom”. Essa ambivalência da linguagem da praça é lembrada por Bakhtin (2002, p. 47) na

imagem das duas faces do deus Jano:

[...] Toda crítica viva pode tornar-se elogio, toda verdade viva não pode

deixar de parecer para alguns a maior das mentiras. Esta dialética interna do

signo não se revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de

comoção revolucionária. Nas condições habituais da vida social, esta

contradição oculta em todo signo ideológico não se mostra à descoberta

porque, na ideologia dominante estabelecida, o signo ideológico é sempre

um pouco reacionário e tenta, por assim dizer, estabilizar o estágio anterior

da corrente dialética da evolução social e valorizar a verdade de ontem como

sendo válida hoje em dia. Donde o caráter refratário e deformador do signo

ideológico nos limites da ideologia dominante.

Ponzio (2016, p. 125) explica que, para Bakhtin, os elogios e as injúrias

[...] não são nitidamente distinguíveis na linguagem; os elogios são irônicos

e ambíguos, e no máximo são injúrias; assim, mesmo estas últimas não são

completamente separadas do elogio, mas, ao contrário, têm quase sempre um

sentido carinhoso e elogiativo.

São nas praças, nas ruas, nas rodovias e nos canteiros do Palácio do Planalto e do

Congresso, em Brasília, à beira das cercas de fazendas, que os militantes dos movimentos

sociais fazem ecoar seus gritos por reforma agrária e por justiça no campo, lembrando a

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organização das Ligas. E lutar por seus direitos é um direito do povo. Nas palavras de Ihering

(2003, p. 21), um dos maiores juristas alemães do século XIX,

A paz é o fim que o direito tem em vista, a luta é o meio de que se serve para

consegui-lo [...]. A vida do direito é uma luta: luta dos povos, do Estado, das

classes, dos indivíduos. Todos os direitos da humanidade foram

conquistados na luta; todas as regras importantes do direito devem ter sido,

na sua origem, arrancadas àquelas que a elas se opunham, e todo o direito,

direito de um povo ou direito de um particular, faz presumir que se esteja

decidido a mantê-lo com firmeza.

Não há direito sem luta, e isso as Ligas Camponesas já têm conhecimento. A

existência de direitos de hoje faz inferir que alguém lutou anteriormente e, ainda, que um

grupo reivindicou, cobrou, foi às ruas e às praças para lutar mediante a linguagem por seus

direitos e pelo direito dos outros. O direito não é, portanto, pura teoria, mas é uma força viva.

Na Constituição Federal, a desapropriação é uma palavra, mas na boca do povo ela passa a

dar existência a um grupo, a mudar sua vida, a mudar seu futuro, mostrando ser uma palavra

viva que bebe na fonte da vida concreta. Por isso, Ihering (2003) afirma que o direito é um

trabalho incessante tanto do Estado quanto do povo.

E a vida dos foreiros/camponeses/trabalhadores rurais/sem terras mostra essa

constante busca das classes minoritárias e organizadas pelo direito. É por meio dessa luta que

a ideologia do cotidiano influencia a ideologia oficial, como ocorre em Pernambuco e em

tantos outros lugares do Brasil, no sentido de que a Constituição Federal, antes não posta em

prática, agora surte efeito nas vidas dos foreiros nordestinos. Para isso, apresentam ao Estado

suas reivindicações, conseguindo, por meio dos instrumentos que legitimam a ideologia

oficial, a posse das terras do Engenho Galileia, como também demonstram o significado do

signo terra como um “bem social” e um “direito de todos”. Assim, os signos terra e reforma

agrária passam a ser ideológicos, pois o significado está fora deles mesmos. Sem esse

revestimento dado aos signos terra e reforma agrária pelos foreiros, não haveria ideologia de

um grupo. Os camponeses não pensam a terra como “pó”, “solo” ou como mercadoria, ou

seja, como um corpo físico ou como um bem de capital, mas a pensam como “direito”,

“existência”, “subsistência”, fazendo da “terra” um signo ideológico. Já o signo reforma

agrária toma seus contornos no campo da ação e da concretização de desapropriações, isto é,

a reforma agrária é o meio pelo qual os camponeses conquistam seu direito à terra previsto na

Constituição de 1946.

No entanto, a ação dos latifundiários e de usineiros não é passiva diante da decisão

judicial. Pelo nordeste vê-se a utilização de outros mecanismos, não legais, para não perderem

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suas terras, como expulsão de foreiros e proibição de roçados à beira das usinas, chegando até

mesmo ao assassinato do líder e camponês da Liga Sapé, da Paraíba, João Pedro Teixeira.

Após diversas lutas e conquistas, as Ligas veem o seu maior líder e camponês ser assassinado,

mas não contemplam a punição do mandante (OLIVEIRA, 2007). Assim, a violência é vista

como uma ação costumeira, comum à realidade do campo, o que demonstra como se efetivam

as relações entre as classes e os grupos sociais (TAVARES, 2000). A defesa dos territórios

por meio da violência é conhecida desde a época do Brasil Colônia em que sesmeiros podem

colocar índios na boca de canhões e explodi-los, como já vimos no primeiro capítulo, ou

quando escravos africanos e homens livres camponeses podem ser condenados à morte por

um fazendeiro por não seguirem suas normas. Essas práticas fazem parte da história dos

brasileiros e, principalmente, do nordeste, por ter recebido as primeiras levas de europeus e,

consequentemente, suas atrocidades. Ao fazendeiro é dado esse direito de lutar contra aqueles

que se opõem a ele da forma como ache melhor.

Os discursos da aristocracia são tecidos legitimando as ações violentas, de forma que

homicídios têm sua visibilidade obscurecida pelo peso da dominação. Entre esses sujeitos

estão o fazendeiro, o político e o pistoleiro, o qual executa o “serviço”/assassinato para um

mandante. O pistoleiro é um sujeito construído dentro de relações sociais em que matar é um

serviço para o qual ele é contratado e pago. Dessa maneira, o mandante não suja as mãos e

dificilmente pode ser identificado. A figura do pistoleiro, capanga ou jagunço não fica apenas

marcada nas linhas da história das Ligas, ela chega às décadas posteriores ainda sendo

utilizada para resolver pela raiz os problemas dos latifundiários. Isso é relatado por

acadêmicos sem terra que sofrem ataques de jagunços mesmo depois da desapropriação de

uma fazenda em Mato Grosso do Sul (MS). Na ocasião, para os assentados, tudo parecia

perfeito, pois estão dentro da terra conforme determinação judicial, mas o arrendatário da

fazenda resolve mandar jagunços armados para atirarem contra os assentados, a fim de

intimidá-los. É uma tentativa de homicídio contra as famílias assentadas, em que se conta com

a impunidade herdada dos antigos fazendeiros. Ações como estas nos levam a pensar que ser

proprietário de terras em um estado como Mato Grosso do Sul, altamente marcado pelo

latifúndio, é um instrumento de poder, por isso os fazendeiros não querem abrir mão da

possibilidade de continuar mandando e explorando a terra em favor da reforma agrária, já que

perder terras significa perder o poder. A reforma agrária não tem sentido para os latifundiários

e até mesmo para alguns pequenos agricultores, pois eles se veem ameaçados pela

possibilidade de dividir com outros seus ganhos com a exportação, principalmente, de grãos e

de carne bovina.

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Os signos terra e reforma agrária têm para cada grupo sentidos diferentes, resultado

de um luta de classes construída ao longo da história. Os sentidos dados à terra pelos

latifundiários estão ancorados na propriedade privada, na geração de renda e na exploração da

terra; já os dados pelos sem terra têm por princípios a coletivização, a divisão e a existência

enquanto sujeito de direito. Já a reforma agrária é concebida pelos fazendeiros como uma

ameaça ao seu poder, à sua situação financeira e uma revolução; para o sem terra, a reforma

agrária é uma forma justa de redistribuição de terra, é um instrumento legal que leva à

realização do sonho de ter um lote.

No que diz respeito ao signo educação no campo¸ importa destacarmos que as Ligas

construíram um projeto de educação política, pois seus membros já percebem que a origem da

educação rural da época está “[...] na base do pensamento latifundista empresarial, do

assistencialismo, do controle político sobre a terra e as pessoas que nela vivem”

(FERNANDES; MOLINA, 2004, p. 62), sendo assim um instrumento de controle por parte

dos fazendeiros. Por isso, este tipo de educação não atendia às necessidades dos foreiros, que

se deparam com uma escola artificializada, adaptada e controlada pelos fazendeiros. Diante

disso, autores como Ribeiro (2010) e Fernandes e Molina (2004) defendem a ideia de que a

análise da organização escolar e da educação do campo deve passar pela formação social do

Brasil.

A Liga Camponesa de Sapé, no estado da Paraíba, transforma-se em um espaço onde

os trabalhadores rurais dispõem de orientação democrática, informação e formação

(XAVIER, 2012). Essa ação educativa é feita em parceria com outras instâncias políticas,

como o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e grupos de jovens católicos. O nordeste vê

sendo construída uma nova imagem do camponês que passa do camponês submisso e

resignado para um sujeito político, o qual organiza greves nas fazendas, comícios, passeatas,

interdições de rodovias e confrontos armados (XAVIER, 2012). Como podemos observar, a

educação do campo tem suas origens nas ideias de educação política da Liga de Sapé. O

pensamento de que a educação seria um instrumento libertador já toma conta, principalmente,

dos líderes da Liga. Nesse caso, o signo educação do campo tem sua origem nas necessidades

políticas, já que os foreiros precisam interagir com outros parceiros e também com seus

opositores, por isso precisam de conhecimentos que a educação rural não dispõe, pois ela

representa uma ideologia dominante e controladora que não se propõe a desenvolver um

pensamento político nos estudantes do campo tampouco um ensino que esteja ligado

diretamente às demandas dos camponeses. A Liga proporciona novos espaços de

aprendizagem aos camponeses, novas formas de aprendizagem e de sociabilidade por meio de

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assembleias, mutirões e reuniões, em que há espaço para os presentes debaterem os problemas

relacionados ao campo, bem como criticarem a autoridade dos latifundiários e do Estado. Esse

espaço de voz dos foreiros chega às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja

Católica bem como às práticas de formação dos movimentos sociais rurais, surgidos a partir

do final da década de 1970. Desse modo, observamos que o espírito de coletividade é um dos

princípios herdados pelos movimentos religiosos e sociais pela terra das Ligas.

A aprendizagem da leitura e da escrita por parte dos camponeses também é

incentivada, vista como elemento fundamental para despertar a consciência política. Essa

preocupação com a educação não é uma ideia nova, mas dialoga com o universo de

representações que toma conta das esquerdas brasileiras. Acredita-se na luta da razão contra a

ignorância e do progresso contra o passado. É preciso aniquilar a ignorância, a fim de que os

camponeses tenham “luz” para enfrentar os inimigos e para construir uma sociedade mais

justa (XAVIER, 2012).

Outro aspecto da educação destacável é a preocupação com o teor das aulas e com os

professores/monitores. As aulas são preparadas mediante um entendimento com as

autoridades de cada município e no contato com os líderes das regiões, de modo que os

monitores são conhecidos dos líderes (SCOCUGLIA, 2003). Isso demonstra que a educação

do campo já nasce de articulações que pretendem aliar o conhecimento escolar à preparação

política dos militantes. Essa também é uma preocupação hoje dos movimentos sociais, o que é

percebido na organização das escolas, na escolha dos professores e dos conteúdos, pois tudo

deve levar à formação humana. O primeiro princípio pedagógico do MST, Educação para

Transformação Social,

[...] define o caráter da educação no MST: um processo pedagógico que se

assume como político, ou seja, que se vincula organicamente com os

processos sociais que visam à transformação da sociedade atual, e à

construção, desde já, de uma nova ordem social, cujos pilares principais

sejam, a justiça social, a radicalidade democrática, e os valores humanistas e

socialistas (MST, Caderno de Educação n. 8, 1996, p. 6).

Percebemos que o MST não nega a importância da característica política da

educação, concebendo a ela o papel de transformadora da sociedade atual. A educação do

campo herda do processo histórico das Ligas esse caráter político, que defende que as escolas

do campo e as do MST devem ser mais que escolas, por necessitarem se inserir na dinâmica

do Movimento, a fim de que a escola contribua para a formação de sujeitos sociais, os Sem

Terra, os trabalhadores do campo. Logo, o signo educação do campo se constitui da voz das

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Ligas, bom como dos movimentos sociais contemporâneos. As Ligas também investem na

formação de seus membros com a criação da Escola de Quadros que oferece, dia e noite,

cursos de capacitação política para os militantes, nos quais se estuda história da luta de

classes, noções de economia política, revolução brasileira, organização de tipo leninista,

agitação e propaganda e a prática do funcionamento das organizações de tipo leninista

(MORAIS, 2012). Aqueles que são aprovados nesses cursos, imediatamente, são incorporados

à Organização Política das Ligas, a fim de coordenar de forma clandestina o trabalho da seção

com a Organização de Massas. É possível observarmos que a educação de conteúdos oferece

aos estudantes um conhecimento acerca da razão da luta pela terra. Ter esse conhecimento

torna os militantes mais atuantes bem como mais capacitados para dialogar tanto com seus

companheiros quanto com seus opositores.

A luta das Ligas Camponesas mostra que a reforma agrária no Brasil é um problema

a ser vencido no Brasil, o que faz com que novos interesses políticos surjam. No contexto do

governo de João Goulart, a reforma agrária é concebida pelo grupo do, então, Primeiro

Ministro Tancredo Neves, como uma forma levar a mecanização ao campo e formar

cooperativas. Já para o grupo político de Goulart, a preocupação está com o aumento da

produtividade de grãos. Embora não haja uma preocupação com a democratização da terra, o

projeto de Goulart leva, pela primeira vez, a reforma agrária para as discussões no Congresso

Nacional.

2.2.3 João Goulart e o seu Projeto de Reforma Agrária

As mobilizações por parte dos trabalhadores rurais não param, mostrando a

efervescência de radicalização do homem do campo que se apresenta cada vez mais decidido

e preparado para lutar por melhores condições de vida. As esferas oficiais mobilizam-se por

meio de inúmeros projetos de lei enviados ao Congresso Nacional, assim como por

representações de diferentes órgãos administrativos, como a Comissão Nacional de Política

Agrária, para evitar que projetos sobre a reforma agrária sejam aprovados. É nesse contexto

que João Goulart, em 1961, assume a presidência da república após a renúncia de Jânio

Quadros, apesar de os ministros militares serem contra a sua posse, mesmo tendo o título de

vice-presidente. A fim de acalmar os ânimos e manter a democracia, abalada por um

murmúrio de golpe militar, o Congresso aprova o regime parlamentarista no Brasil. O

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presidente tem seus poderes diminuídos, uma vez que o poder do presidente é passado para o

primeiro-ministro (NATIVIDADE, 2011).

Desde o governo Vargas já se tem a ideia de que o atraso no campo faz com que a

industrialização no Brasil seja deficitária. Essa visão é contemplada por boa parte do setor

político, em 1960. Nesse contexto, a questão agrária é vista por muitos como um dos

problemas mais sérios, pois separa a sociedade brasileira em duas esferas. De um lado, os

latifundiários, que desfrutam do poder, da riqueza, dos privilégios políticos, sociais e

econômicos, de outro, a população pobre, analfabeta, distante dos grandes centros e

subordinada às leis dos latifúndios. Essa disparidade de direitos faz com que grande parte da

população seja excluída do mercado de bens de consumo, o que não desenvolve a economia.

Desse modo, reorganizar a questão fundiária no Brasil significa não só estabelecer a paz no

campo, mas também desenvolver economicamente o País.

A nomeação do usineiro Armando Monteiro Filho para o Ministério da Agricultura

por Tancredo Neves, Primeiro Ministro, demonstra que as mudanças na estrutura agrária

brasileira não avançam os limites impostos pela classe dominante. O ministro defende

conjugar a distribuição de terras aos trabalhadores rurais com a mecanização do campo e a

formação de cooperativas e quanto à indenização das desapropriações aponta como caminho o

aumento do imposto rural.

Nesse caso, os signos terras e reforma agrária são constituídos de princípios

ideológicos oriundos de uma classe que, relembrando o momento sócio-político das Ligas

Camponesas, objetiva fazer do nordeste um campo industrial, negando as pequenas

propriedades e o trabalho dos foreiros no campo. O signo terra é constituído de valores de

mercado e de capital. Já o signo reforma agrária é revestido de sentidos de racionalização da

terra, já que o objetivo é mecanizar o campo a fim de fazê-lo produzir ainda mais. Desse

modo, observamos que o signo reforma agrária é visto como um instrumento capaz de

mecanizar o campo e torná-lo mais produtivo. Percebemos, mediante os objetivos do ministro

e da classe a qual representa, que os signos terras e reforma agrária demonstram uma

associação indissolúvel entre os princípios ideológicos constitutivos desses signos e a situação

social e política na qual são constituídos. Apesar de o projeto do Ministro da Agricultura do

governo de Tancredo Neves silenciar os movimentos de luta pela terra, os signos congregam a

presença social e a atuação dessa classe em prol de seus direitos, ao negá-los e ao silenciá-los,

tornando o terreno dos signos uma arena. “[...] Nessa arena se defrontam valores sociais de

orientação contraditória, e memórias diversas marcam encontro” (MIOTELLO, 2006, p. 284).

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Do outro lado está o senador Milton Campos, que, a pedido do presidente João

Goulart, está encarregado de elaborar o Estatuto da Terra. O projeto de Campos não faz

referência a uma reforma constitucional e apresenta preocupação com a produtividade das

terras. Os dois grupos que trabalham simultaneamente em um projeto de reforma agrária não

mostram uma preocupação com os pequenos lavradores ou com os expulsos de suas terras, os

quais são obrigados a morar nas cidades. Desse modo, tratam-se de propostas conservadoras

que têm como objetivo a produtividade da terra e o desenvolvimento econômico do País.

Ao observar essa proposta, fica evidente que os signos terra e reforma agrária

carregam em seu bojo princípios ideológicos de uma classe também conservadora, também

dominante, a qual objetiva fazer da reforma agrária um instrumento para aumentar a

produtividade do campo, contribuir para o avanço da economia e não se preocupa com o

direito do camponês à posse de terra. Como vemos, são as transformações sociais e os

princípios ideológicos que estão refletidos e refratados nos referidos signos. Nessa

perspectiva, Bakhtin (2002, p. 95) salienta que a “[...] palavra está sempre carregada de um

conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial”. Por isso, Miotello (2006, p. 284) afirma

que “[...] estudar a evolução da palavra é compreender a memória das condições sócio-

econômicas refletantes e refratantes nela” (grifos do autor).

Por meio da Lei n. 4.13235

(BRASIL, 1962), a reforma agrária passa a ser concebida

como um instrumento de interesse social, o que garante ao governo defender desapropriações

em prol da sociedade e do desenvolvimento do País. Ao tornar essa reforma agrária uma justa

distribuição de terras, o discurso nega o latifúndio que é sinal da concentração de terras nas

mãos de uma única pessoa. O signo terra tem o valor na lei de propriedade, de um objeto que

pode ser comprado, nesse caso pelo governo. A terra como propriedade, segundo a Lei, é

utilizada para o bem estar social, o que significa fazer do campo um instrumento para

desenvolver a agricultura, diminuir a concentração de renda e a exclusão social. Apesar de

trazer em seu bojo o objetivo de diminuir a desigualdade no campo, o presidente precisa

defender que não se trata de uma reforma radical a ser realizada com retaliação ou

expropriação dos latifúndios. Trata-se de uma ação de compra, por meio de títulos públicos,

de propriedades improdutivas e subutilizadas. O presidente, portanto, nega as ofensivas dos

35 Lei n. 4.132 foi aprovada pelo Congresso e sancionada por João Goulart, em 10 de setembro de 1962. Versa a

respeito da desapropriação de terras por interesse social a fim de promover a distribuição da “[...] propriedade ou

condicionar o seu uso ao bem estar social, na forma do art. 147 da Constituição Federal”. Disponível em

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4132.htm>. Acesso em 15 set. 2016.

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opositores que consideram a reforma agrária um passo para o comunismo, como ocorre na

Rússia. Ao responder aos seus opositores, o discurso de Jango demonstra que apenas podem

tornar-se signos, adquirir significado e entrar no horizonte social de um grupo, os objetos

valorizados por esse grupo. Para Miotello (2006, p. 285), esses objetos são pertencentes a

qualquer esfera da realidade, “[...] e que entre no horizonte social daquele grupo,

desencadeando uma reação semiótica-ideológica, a partir de embates discordantes e

concordantes levados a cabo por tal grupo organizado”. Assim, são os signos terra e reforma

agrária que se tornam signos por fazerem parte do horizonte social dos grupos que disputam

a posse e a propriedade das terras no Brasil, neste momento histórico. O valor atribuído por

esses grupos aos referidos signos origina-se do valor sócio-econômico-ideológico que o

objeto terra tem para estes grupos. Para que esse objeto entre nessa arena de disputas, é

preciso que ele esteja “[...] ligado às condições sócio-econômicas do referido grupo, e que

tenha a ver com as bases de sua existência material” (MIOTELLO, 2006, p. 285).

De modo geral, o projeto de distribuição de terras do presidente João Goulart não

trata da reforma agrária, mas da “desapropriação”, evidenciando que o projeto do então

presidente pode ser visto como uma caricatura de reforma agrária, não constituindo o seu

verdadeiro sentido, defendido pelas classes de trabalhadores rurais. Não se vê a terra como

um direito de todos, mas como um instrumento que pode diminuir as diferenças sociais e

fazer do campo um mecanismo para desenvolver a economia brasileira.

Nesse momento, notamos que o signo terra veicula dois sentidos, um de meio de

produção de subsistência, de existência, de cidadania, de luta, e outro de meio para alavancar

a economia brasileira, valor de mercado, bem rentável, meio para exercer poder. O signo terra

ilustra o que Bakhtin (2002) chama de comunidade semiótica, neste caso duas sociedades

apartadas, uma de pequenos lavradores e outra de latifundiários/políticos. Podemos entender

que, ao mesmo tempo em que o signo terra ganha um sentido específico entre os lavradores,

já integrando seu código ideológico de comunicação desse grupo, também adquire por parte

dos grandes possuidores sentido de mercadoria, de poder e de acúmulo de capital. Nessa

arena, há índices de valor contraditórios, o que traduz realidades diferentes, de grupos

diferentes.

No governo de João Goulart, não percebemos uma preocupação com a educação do

campo, diferenciada e de qualidade para camponeses e seus filhos. Como veremos na próxima

seção, no início da década de 1960, a Igreja Católica desenvolve ações por meio das CEBs, as

quais estão alicerçadas nas orientações da Teologia da Libertação. Assim, a Igreja volta-se

para o povo e desenvolve diferentes ações que buscam formá-lo política e intelectualmente,

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por meio de uma educação libertadora mediante cursos de alfabetização para adultos e

formações nas CEBs. Com isso, a Igreja Católica forma líderes dos primeiros movimentos

sociais, como também de partidos políticos de esquerda.

2.2.4 Igreja Católica

2.2.4.1 Teologia da Libertação e CEBs (Comunidades Eclesiais de Base)

Como vimos no capítulo anterior, a Igreja Católica usa de sua influência, com os

fiéis, como representante de Deus, para discursar em favor da aceitação das condições de

exploração e de injustiça que os camponeses vivem. Notamos, assim, que no campo católico

os signos terra, reforma agrária e educação do campo não estão estabilizados, pois dentro da

própria Instituição há um discurso discordante daquele proferido pela TFP e seus

representantes.

Na teoria católica, a voz da Teologia da Libertação emerge por meio de um conjunto

de textos, de ideias de teólogos católicos, que defende o princípio de que a Igreja deve ir ao

povo; conhecer suas demandas; formá-lo e levá-lo à organização para que ele se liberte das

amarras dominantes enraizadas na história da sociedade brasileira. As ideias da Teologia da

Libertação encontram eco na cúpula da Igreja Católica que respalda ações antes não

imaginadas de bispos, padres, e de outros religiosos que se voltam ao povo. O documento do

Concílio Vaticano II e o da II Conferência do Episcopado de Medellin fortalecem o

pensamento da Teologia da Libertação e autorizam as ações práticas das Comunidades

Eclesiais de Bases (CEBs). Com esse respaldo, as CEBs chegam aos bairros periféricos e ao

campo, levando práticas que objetivam formar e organizar o povo a fim de que ele mesmo

possa lutar para resolver seus problemas, desde a falta de água no bairro até a expulsão de

trabalhadores rurais do campo. A voz das CEBs ecoa no surgimento de movimentos sociais

pela reforma agrária, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Movimento dos

Trabalhadores Sem Terra (MST) e, também, de partidos políticos, como o Partido dos

Trabalhadores (PT).

A voz da Teologia da Libertação e das CEBs é retomada pelos Movimentos Sociais

pela reforma agrária em seus documentos, discursos, formações, como também constituem os

discursos dos acadêmicos sem terra do curso de Ciências Sociais da UFGD. Por isso, é

fundamental conhecermos e analisarmos, ainda que brevemente, algumas ideias da Teologia

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da Libertação e da prática das CEBs, pois, quando chegarmos ao Projeto Político Pedagógico

e aos relatos pessoais dos acadêmicos sem terra, teremos um repertório para percebermos

como essas vozes estão presentes e constituem a identidade dos sujeitos em análise.

Ao voltar-se para a realidade do povo oprimido, sofrido e explorado, os pensadores

católicos da Teologia da Libertação36

passam a observar com olhos mais atentos e

preocupados o agravamento das questões sociais no Brasil e na América Latina, assim como

as ações opressivas dos regimes militares atuantes nos países latinos. Esse movimento de

ordem teológica, segundo Löwy (2000), está ancorado em alguns princípios, sendo eles: a

libertação humana como antecipação da salvação final em Cristo, uma nova leitura da Bíblia,

uma forte crítica moral e social do capitalismo dependente, o desenvolvimento de

comunidades de base cristãs entre os pobres como uma nova forma de Igreja e, especialmente,

uma opção preferencial pelos pobres e a solidariedade com sua luta de autolibertação. Como

se pode notar, a Teologia da Libertação nega os conceitos tradicionais da Igreja, defendendo e

trazendo para si o lema da Revolução Francesa: “liberdade, igualdade, fraternidade”.

A Teologia da Libertação apresenta aos católicos que o amar a Deus não significa

apenas contemplá-lo, mas sim servir aos pobres, ao povo de Deus (NORONHA, 2012). O

“[...] serviço solidário ao oprimido significa então um ato de amor ao Cristo sofredor, uma

liturgia que agrada a Deus” (BOFF; BOFF, 2010, p. 15). Notamos que o discurso da Teologia

da Libertação está repleto de ecos dos discursos da TFP, grupo católico que prega a aceitação

da condição dada por Deus. Em uma ação responsiva, a Teologia refuta o discurso de

“aceitação” proferido pela TFP para, então, fundamentar-se no discurso da solidariedade com

o próximo, o oprimido. Assim, a Teologia e seus seguidores assumem uma posição ideológica

que contraria a tradição ideológica da Igreja Católica, a qual por séculos está voltada para os

interesses da classe dominante. Numa perspectiva bakhtiniana, a Teologia, ao se preocupar

com o povo, esquecido e humilhado pela sociedade e visar a que esse povo busque a sua

libertação, assume sua posição ideológica correlacionando-a a uma posição contrária37

, a da

36 Entre seus pensadores estão Frei Betto, Maria Clara Luucchetti Bingemer, Clodovis Boff, Leonardo Boff,

Pedro Casaldáliga, Ignacio Ellacuría, Ivone Gebara, Gustavo Gutiérrez. Esses pensadores foram responsáveis

pela elaboração de um conjunto de textos em que expunham as ideias da Teologia da Libertação. Porém, ela

também é feita pelo povo, tendo como base a fé que transforma a história, estando “intimamente ligada à própria

existência do povo – à sua fé e à sua luta” (LÖWY, 2000). 37 A tensão entre grupos dentro de uma mesma instituição, como a Igreja Católica, é explicada por Bourdieu

(2003, p. 81): “A razão de ser de uma instituição e dos seus efeitos sociais, não está na ‘vontade’ de um

individuo ou de um grupo mas sim no campo de forças antagonistas ou complementares no qual, em função de

interesses associados às diferentes posições e dos habitus dos seus ocupantes, se geram as ‘vontades’ e no qual

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TFP. Como discorre Bakhtin (2011, p. 297), é “[...] impossível alguém definir sua posição

sem correlacioná-la com outras posições. Por isso, cada enunciado é pleno de variadas

atitudes responsivas a outros enunciados, de doutra esfera da comunicação discursiva”.

A teoria católica é a reposta “[...] à problemática pastoral da Igreja, especialmente

colocada no contexto latino-americano, em que a luta pela libertação constitui uma exigência

fundamental do Evangelho e uma antecipação do Reino de Deus” (CATÃO, 1986, p. 63). A

luta pela libertação demonstra a existência de uma luta de classes: “[...] A história de todas as

sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes. Homem livre

e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e companheiro, numa

palavra, opressores e oprimidos” (MARX; ENGELS, 1998, p. 4). Na arena dessa luta, a Igreja

Católica coloca-se como a responsável pela organização da classe dos desfavorecidos e pelo

empreendimento de ações que denunciam a situação precária dos oprimidos.

Ao trazer para o centro o pobre, o sofredor, o oprimido, a Teologia nasce de um

diálogo entre marxismo – como uma metodologia utilizada para entender as causas das

injustiças sociais por meio da práxis – e cristianismo, demonstrando que não há discurso

novo. Essa aproximação entre os discursos dos teólogos e o do marxismo representa, no

contexto dos apreciadores da Teologia da Libertação, um rompimento das barreiras existentes

entre os fiéis católicos e os movimentos políticos de cunho marxista (MUSZINSKI, 2010).

Entre os pontos de convergência está a crítica ao sistema capitalista, às doutrinas liberais e às

visões individualistas de mundo. Também se encontram quanto ao valor dado à comunidade,

à divisão de bens de forma comunitária e à rejeição à afirmação de que o indivíduo é a base

ética (NORONHA, 2012). As duas tendências também dialogam quanto aos pobres, os quais

são vistos como vítimas da injustiça. Dialogam, ainda, quanto ao universalismo, o qual

norteia para uma visão de humanidade como um todo. Além disso, defendem a esperança de

um reino futuro/lugar que possua justiça, liberdade e fraternidade entre a humanidade toda

(LÖWY, 2000).

Bordin (1987) expõe que a Teologia da Libertação, por centralizar o pobre e

oprimido, está ao lado de Marx e ao lado de Cristo ao mesmo tempo. Assim, a Teologia da

Libertação refuta os discursos do Papa Pio IX, o qual caracteriza a “doutrina do comunismo”

como “nefanda”, conforme visto no capítulo anterior. Para os católicos seguidores da doutrina

define e se redefine continuamente, na luta – e através da luta – a realidade das instituições e dos seus efeitos

sociais, previstos e imprevistos”.

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Papal, a propriedade privada é um direito natural, dado por Deus a alguns, seguindo a

organização do Corpo Místico de Cristo. Desse modo, o povo não está entre os escolhidos por

Deus para serem “proprietários”, mas sim para serem serviçais. Tendo, assim, uma posição na

sociedade e seguindo a vontade divina, o povo não pode contrariar a sua posição na

sociedade, pois isso é um pecado contra Deus. Em uma ação responsiva, para a Teologia da

Libertação, ao povo, a que tudo é negado, cabe a luta pela sua libertação e pelos seus direitos

por meio de sua própria ação.

A Teologia da Libertação surge da práxis, como anuncia Boff (1980), isto é, pela

ação da fé. Ela é resultado de uma prática que objetiva a libertação. Em busca de uma práxis

com relação à transformação social, a Igreja Católica trilha um caminho rumo ao povo com a

criação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)38

, um movimento que até hoje perdura

nas paróquias. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) (CNBB, Doc. 25, n. 3,

1992, p. 1) conceitua as CEBs como um

Fenômeno estritamente eclesial, as CEBs em nosso país nasceram no seio da

Igreja/instituição e tornaram-se ‘um novo modo de ser Igreja’. Podemos

afirmar que é ao redor delas que se desenvolve, e se desenvolverá cada vez

mais, no futuro, a ação pastoral e evangelizadora da Igreja39

.

Com o lema “Um novo modo de ser igreja”, as CEBs surgem “[...] apresentando

novas perspectivas de ação dentro da Igreja e quando assumidas por importantes setores desta

instituição [...] transformou sua estrutura, renovando-a e colocando-a em contato com a

realidade social e os problemas da sociedade contemporânea” (SOARES, 2009, p. 1). O lema

das CEBs já aponta para uma responsividade ao apresentar “Um novo” modo de ser Igreja, já

que o “velho”, o conservador, o dominante e o elitista (representado pela TFP) não contempla

o ser Igreja.

38 De acordo com Frei Betto (1985, p. 7), as Comunidades Eclesiais de Base são pequenos grupos “organizados

em torno da paróquia (urbana) ou da capela (rural), por iniciativa de leigos, padres ou bispos”. Esses grupos

reuniam-se para ler e refletir a palavra de Deus, como um grupo de base, uma célula eclesial menor, como, por

exemplo, os círculos bíblicos, os clubes de mães (TEIXEIRA, 1988). Também podem ser entendidas como um

conjunto de grupos de uma paróquia, definidos conforme bairro, povoado, assentamento (SCHIAVO, 2009). 39

Disponível em:

<http://www.cnbb.org.br/index.php?option=com_docman&view=document&layout=default&alias=87-25-as-

comunidades-eclesiais-de-base-na-igreja-do-brasil&Itemid=251>. Acesso em: 3 out. 2016.

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O nascimento das CEBs é explicado por dois fatores correlatos: “[...] a expropriação

da terra e a exploração do trabalho” (FREI BETTO, 1985, p. 8)40

. Os oprimidos que antes

veem na Igreja um lugar para sedar seus sofrimentos, agora enxergam-na como um novo lugar

social, onde é possível refletir sobre a realidade e onde se desenvolvem experiências para a

organização dos trabalhadores rurais contra a estrutura fundiária do Brasil. Fernandes (1994,

p. 61) afirma que as CEBs “[...] foram o lugar social onde os trabalhadores encontraram

condições para se organizar e lutar contra as injustiças e por seus direitos”.

Vários são os documentos católicos que respaldam a atuação das CEBs, de acordo

com Teixeira (1988). Um deles é a Declaração de Medellin que já direciona para uma nova

visão acerca do “povo de Deus” assim como para uma reflexão acerca da estrutura agrária:

Assim como outrora Israel, o antigo Povo sentia a presença salvífica de Deus

quando Ele o libertava da opressão do Egito, quando o fazia atravessar o mar

e o conduzia à conquista da terra prometida, assim também nós: novo povo

de Deus não podemos deixar de sentir seu passo que salva, quando se dá o

‘verdadeiro desenvolvimento’, que é, para cada um e para todos, a passagem

de condições de vida menos humanas para condições mais humanas. Menos

humanas: as carências materiais dos que são privados do mínimo vital e as

carências morais dos que são mutilados pelo egoísmo. Menos humanas: as

estruturas opressoras que provenham dos abusos da posse do poder, das

explorações dos trabalhadores ou da injustiça das transações. Mais humanas:

a passagem da miséria para a posse do necessário, a vitória sobre as

calamidades sociais, a ampliação dos conhecimentos, a aquisição da cultura.

Mais humanas também: o aumento da consideração da dignidade dos

demais, a orientação para o espirito de pobreza, a cooperação no bem

comum, a vontade de paz [...] (BISPOS DA AMÉRICA LATINA, 1984, p.

7).

O discurso dos Bispos da América Latina acena para a heterogeneidade do dizer ao,

inicialmente, fazer referência ao povo de Israel. A saga do povo de Israel passa pela

escravidão no Egito, narrada no livro do Êxodo41

, capítulo 1, quando Moises conduz o povo

oprimido à liberdade.

40 Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/freibetto/livro_betto_o_que_e_cebs.pdf>. Acesso

em: 3 out. 2016. 41

De acordo com o Livro: os egípcios impunham aos escravos “[...] a mais dura servidão, e amarguravam-lhes a

vida com duros trabalhos na argamassa e na fabricação de tijolos, bem como com toda sorte de trabalhos nos

campos e todas as tarefas que se lhes impunham tiranicamente” (BIBLIA, ÊXODO, 1: 13-14). Moisés, líder dos

escravos, pediu ao faraó que libertasse seu povo, mas o rei não aceitou. Por isso, o Egito sofreu com várias

pragas enviadas por Deus (rãs, mosquitos, moscas, úlceras, gafanhotos, chuva de pedras, trevas, morte dos

primogênitos). O povo israelita conseguiu fugir depois de 430 anos de escravidão. O faraó, ao saber da fuga,

empreendeu uma perseguição que acabou à beira do mar Vermelho (BIBLIA, ÊXODO, 14). Diante do levante

egípcio, Moisés clamou a Deus e este disse: “E tu, levanta a tua vara, estende a mão sobre o mar e fere-o, para

que os israelitas possam atravessá-lo e pé enxuto” (BIBLIA, ÊXODO 14, 16). As águas do mar Vermelho

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O discurso dos Bispos é tecido pela voz da Bíblia, livro sagrado, e pelos

acontecimentos narrados em que Deus salva o seu povo da escravidão, da perseguição e da

opressão. Ao referir-se à saga do povo de Israel, o discurso da Igreja sinaliza que o “povo de

Deus” passa por provas, sofrimentos, mas com Deus é possível vencê-las e que a salvação

está na união do povo. Do mesmo modo, deixa uma lição àqueles que querem oprimir o seu

povo, demonstrada na figura dos egípcios sendo afogados pelo Mar Vermelho.

Vale ressaltar ainda que o discurso aponta que, assim como o povo de Israel é salvo

por Deus, “também nós” somos. Primeiramente, importa destacar que o discurso é elaborado

pela Igreja e dirigido à própria Igreja, como interlocutora e, também, aos fiéis, sobretudo, aos

camponeses que podem ver sua realidade de êxodo do campo para cidade. Verificamos que a

Igreja, em um primeiro momento, prevê assemelhar-se ao povo israelita, aos escolhidos,

colocando-se como um povo também escolhido por Deus e dotado das condições de salvação

dadas por Deus. Além disso, visa a marcar a sua genealogia ligada ao povo de Israel,

caracterizado como um povo escolhido, um povo obediente a Deus e às suas leis. Em um

segundo momento, há que analisarmos a presença do “nós”, o qual se refere ao próprio

enunciador e, também, inclui os interlocutores. Há assim o encontro dessas duas figuras do

discurso: “eu” e o “tu”. O “nós”, ao contemplar um “eu” e um “tu”, inclui o enunciador como

povo de Deus, além de demonstrar que este ‘eu’/enunciador também inclui a coletividade

eclesial, o que sinaliza para um chamamento da própria Igreja para se fazer “povo de Deus”.

Ademais, o uso do “nós” indica um comprometimento da Igreja e de seus membros com os

planos de Deus. Os camponeses também são chamados a fazer parte desse “nós”, ao

assumirem, como a Igreja, o papel de “povo de Deus”.

O discurso dos Bispos também responde ao discurso de seus opositores ao afirmar

que “[...] não podemos deixar de sentir seu passo que salva, quando se dá o ‘verdadeiro

desenvolvimento’”. O passo que salva é o passo de Deus, o que é considerado o “verdadeiro

desenvolvimento”, ao contrário do que pregam o governo militar, a burguesia e os

latifundiários que querem racionalizar o campo em prol do progresso e da alta produtividade.

Para isso, visam a explorar a mão-de-obra dos operários e, também, a expulsar os camponeses

de suas terras. O verdadeiro desenvolvimento é “para cada um e para todos” no sentido de que

não há distinção entre o povo de Deus.

abriram-se e o povo de Israel atravessou enxuto por meio do mar. Depois de o povo de Israel atravessar, Deus

pediu a Moises que estendesse as mãos novamente para que o mar se fechasse, voltando as águas contra os

egípcios. Em seguida, o povo de Israel partiu rumo à terra prometida.

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O “verdadeiro desenvolvimento” está na “passagem de condições de vida menos

humanas para condições mais humanas” no sentido de que a salvação efetiva-se por meio de

condições mais humanas, as quais são entendidas como manifestações de Deus. Assim,

entendemos que, Deus sendo um ser divino para todos, todos devem gozar das condições

humanas. Visualizamos aí uma valorização do discurso da coletividade, da socialização, e

uma crítica ao capitalismo e à exploração dos operários.

Já entre as ações “mais humanas”, os bispos citam “a passagem da miséria para a

posse do necessário, a vitória sobre as calamidades, a ampliação dos conhecimentos”. Embora

sejam denunciadas condições “menos humanas”, como a falta do necessário, o discurso

almeja o necessário e não o supérfluo, não apresenta que a riqueza da burguesia seja dividida

com o povo, como se ele estivesse cometendo os pecados do “roubar” e do “cobiçar as coisas

do próximo”. Ao contrário, o discurso sinaliza para a necessidade do fim da miséria, como

uma passagem, para que o povo possa ter o que é necessário. Além disso, o discurso defende

o fim das calamidades sociais, isto é, da exploração da mão-de-obra, da falta de direitos, da

falta de reforma agrária; condições necessárias ao povo. O discurso também traz à cena a

necessidade de conhecimento, pois, como defendem as CEBs, é ele que leva à observação do

problema da comunidade, ao julgamento desse problema e à ação para resolvê-lo, isto é, o

conhecimento leva o povo à libertação.

O discurso traz à cena discursos anteriores a respeito da saga do povo de Israel,

narrada no Antigo Testamento da Bíblia (livro de Êxodo) e, ainda, apresenta a classe

minoritária e o próprio clero como interlocutores, os quais são chamados a serem o novo povo

de Deus. Além disso, ao trazer para a arena do discurso os dizeres de seus opositores,

responde-os, desafia-os e contraria-os. Ademais, o discurso católico também se orienta para o

povo, os fiéis, os trabalhadores, o clero católico, sendo elaborado para ir ao encontro daqueles

que o sucedem na cadeia verbal. Tudo isso demonstra que todo enunciado “[...] procede de

alguém [...]” e ao mesmo tempo “[...] se dirige para alguém [...]” (BAKHTIN, 2002, p. 113).

Por meio da autoridade concebida pelo discurso bíblico da história do povo de Israel,

o enunciador já estabelece um contrato com o outro/o clero/agentes

pastorais/comunidade/opositores, de forma a pensar a sua reação-resposta diante de tal

enunciado, o que demonstra a influência que o interlocutor tem na constituição do enunciado:

[...] Os outros, para os quais meu pensamento se torna, pela primeira vez, um

pensamento real (e, com isso, real para mim), não são ouvintes passivos,

mas participantes ativos da comunicação verbal. Logo de início, o locutor

espera deles uma resposta, uma compreensão responsiva ativa. Todo

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enunciado se elabora como que para ir ao encontro dessa resposta

(BAKHTIN, 2000, p. 320).

O diálogo com as perseguições contra os cristãos desvela como eles resistem e

defendem sua fé. Desse modo, os agentes pastorais das CEBs veem-se como esses cristãos

que resistem, embora enxerguem muitos de seus companheiros serem mortos na fogueira do

regime militar42

.

Uma das ações das CEBs é quanto à expulsão dos posseiros, na qual teve o papel de

criar ou fortalecer as maneiras autônomas de organização dessa classe, sem que para isso

necessitem do Estado ou da Igreja. Logo, a palavra “libertação” tem destaque nos cânticos, na

meditação da Bíblia e no plano de ação. Esta palavra refere-se a uma mudança de consciência

social reformista para uma consciência de transformação social e de modificação do modo de

produção capitalista (FREI BETTO, 1985).

A presença das CEBs no campo é destacável, pois os trabalhadores rurais enxergam

nelas um referencial ideológico. Ademais, o camponês por sua religiosidade leva muito em

consideração as palavras dos religiosos, de forma que a palavra da Igreja é a palavra de Deus.

Isso pode ser percebido nos relatos de experiências dos acadêmicos sem terra, ao relatarem

suas experiências religiosas, como dedicação aos dias santos, as idas à igreja, as promessas.

Para os trabalhadores rurais participantes das CEBs, Deus cria a terra para todos os

seus filhos e ela deve estar com aqueles que nela querem trabalhar. Essa premissa norteia as

ações das comunidades rurais e faz com que lutem contra o avanço do capitalismo no campo e

contra os projetos das empresas multinacionais. Observamos que o signo terra é revestido por

uma ideologia carregada de sentido religioso, de modo que a terra não é vista como sendo

propriedade privada, mas como sendo de “todos” por pertencer a Deus, o Pai de todos.

Diferentemente da ideia defendida pela TFP, os filhos de Deus não devem contentar-se com a

42 Com a decretação do Ato Institucional n.º 5, em 1969, o qual marcou o auge das atrocidades do regime militar,

os cristãos católicos, os agentes pastorais e, sobretudo, a Igreja sentiram o golpe da perseguição. Exemplo disso

ocorreu ao saberem do assassinato de um dos auxiliares de Dom Helder. Primeiro, o funcionário foi sequestrado

e, depois, martirizado, sendo seu corpo exposto à rua pelos assassinos (SADER, 1988).

De acordo com Sader (1988, p. 147), um caso como este teria ocorrido com agentes comunitários atuantes (o

padre Giulio Viccini e a assistente social Yara Spadini), na região sul de São Paulo, os quais foram presos “sob a

acusação de terem distribuído panfletos denunciando a morte do operário Raimundo Eduardo da Silva, que se

encontrava preso no Hospital Militar de São Paulo”. Essas ações atribuídas ao Estado demonstravam o objetivo

de os militares em decepar a Igreja; “é o Estado tentando a todo custo desativar as mediações sociais e políticas”

empreendidas pela Igreja em prol das minorias (MARTINS, 1985, p. 121). Nesse contexto, destaca-se a figura de

Dom Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo. Ao saber da prisão dos agentes pastorais, protesta e reclama do

regime militar, levando para seu discurso os direitos humanos como tema insistente. Também em São Paulo, em

1975, a tortura e a morte do jornalista Wladimir Herzog foram duramente criticadas pela Igreja.

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desigualdade social, mas devem lutar para que ela desapareça, pois isso é viver o Evangelho.

Eles não se perguntam se a luta por meio do Evangelho é violenta ou não violenta, contudo

sabem dos seus desafios e das suas necessidades (FREI BETTO, 1985).

Das CEBs surgem movimentos sociais urbanos43

, movimentos sociais rurais, partidos

políticos, sindicatos, dentre outros setores da sociedade que lutam contra as mazelas sociais e

a opressão do sistema. Além de viabilizar meios para que líderes surjam das comunidades e

subsidiar com estrutura administrativa as comunidades, a Igreja também oferece legitimação

teológica para os anseios do povo. A Igreja, por ser uma instituição milenar que representa

Deus na Terra e por denunciar as misérias do povo, abre caminhos para a legitimação desses

movimentos surgidos nas CEBs. Assim, ouve-se a voz do povo por ele mesmo ou pela própria

Igreja que é o instrumento para a voz da comunidade. Desse modo, a ideia de que o povo faz

parte do Corpo Místico de Cristo, sendo os membros inferiores por vontade divina, não é mais

aceita, de forma que a Igreja sacramenta as necessidades da população, os anseios por

mudança social, tornando-se um lugar onde novas personagens sociais surgem. Porém, essa

relação entre clero e povo não afeta apenas a população, mas também muda a dinâmica do

clero e de seu próprio discurso. Desse modo, o povo realiza reflexões e tem acesso à

alfabetização e a treinamentos, e o clero também incorpora, por meio de seus agentes

comunitários, o vivido pelo povo e realiza ações para fora dos muros das igrejas. A Instituição

também aprende vivendo junto ao povo, “[...] pensado não apenas como o ‘gentio’ a ser

convertido, mas também (ou sobretudo) como encarnação do Espírito, cuja religiosidade

espontânea é valorizada como premissa para a atividade pastoral” (SADER, 1998, p. 163).

As CEBs, que visam à libertação do povo, visualizam na educação o caminho para

que se alcançasse este direito. Por isso, elas organizam grupos que, além de cantar e rezar,

discutem os problemas e as dificuldades. O fio condutor das reuniões é a coletivização dos

problemas, a conversa em grupo, o que é uma característica dos movimentos sociais pela

reforma agrária desenvolvida hoje em suas formações e congressos. Também esse caráter está

presente na organização do curso de licenciatura em Ciências Sociais da UFGD, pois é um

curso pensado primeiramente pelos movimentos sociais rurais de Mato Grosso do Sul e

depois levado à Universidade Federal da Grande Dourados. Além disso, a coletividade marca

43 As CEBs abriram caminhos para que as mulheres atuassem nas bases. Assim, desenvolveram-se organizações

de mulheres, clubes de mães, associações de bairro, o que contribuía para uma reflexão a respeito da condição da

mulher na sociedade e na igreja. Mediante essas reflexões as mulheres puderam se organizar para solicitar

melhores condições de vida como trabalho, escola, creches, postos de saúde, e mais direitos.

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a organização das atividades dos professores e dos alunos, como veremos na análise do

Projeto Político Pedagógico do Curso e nos relatos pessoais dos acadêmicos sem terra.

O método utilizado pelas CEBs para levar os sujeitos à reflexão, segundo Frei Betto,

é o ver-julgar-agir. Com esse método, pretende-se “[...] efetuar uma reflexão crítica e voltada

para a prática, de modo que as privações vividas deixem de ser consideradas como

fatalidades” (SADER, 1998, p. 159). Os problemas são vistos durante o vivido nas

comunidades. Depois de diagnosticados são levados para o debate nas reuniões, quando serão

julgados. Ao tecerem suas opiniões, os participantes refletem, muitas vezes, acerca das

representações dominantes sobre o assunto, o que é feito tendo como base a palavra de Deus.

O agir está na ação planejada durante as reuniões, trata-se do momento em que as pessoas

pensam em ações possíveis de serem realizadas para contribuir para o fim do problema,

mesmo sendo uma ação pequena. Pensa-se a forma concreta para enfrentar o desafio, como a

organização de mutirões e a elaboração de abaixo-assinados. Alguns dos problemas debatidos

não são resolvidos de imediato, como os casos de expulsão de posseiros que podem levar

dias. Por isso, Frei Betto (1985, p. 10) aponta que “[...] cada reunião é um momento de avaliar

a resistência dos posseiros e combinar as próximas etapas da luta”.

Com o aparelhamento e a participação da comunidade nas discussões dos problemas

– método utilizados pelas CEBs – líderes, não no sentido de comandantes, mas de lideranças

mais coletivas que individuais, sendo flexíveis e representativas das bases. Um dos métodos

utilizados para formar líderes é o treinamento constante, momento em que há reflexão,

quando o agente pastoral (padre, religioso) transmite aos membros conhecimentos adquiridos.

Frei Betto relata que o trabalho das CEBs objetiva que o povo possa assumir uma consciência

de libertação e realizá-la, ele mesmo, sem intermediários, por meio de setores organizados. Ir

ao povo não significa, porém, levar ao povo “coitado” e “ignorante” o conhecimento

acadêmico, o qual se precisa ter para se libertar. Isso seria mais um capítulo do colonialismo.

A realização prática dessa estratégia erudita com o povo não teve êxito em outras

oportunidades, pois ele próprio em seu silêncio responde que se trata de mais um equívoco.

Durante os treinamentos, os militantes são levados a aprofundarem-se em assuntos

como funcionamento da sociedade, uso da Bíblia, entendimento sobre capitalismo, história

das classes operárias, política, fé, política agrária. Utilizam-se da expressão oral e corporal.

Conseguem, assim, apreender ideias, além de desenvolver disciplina e emoção. A dinâmica de

grupo também dá voz a todos os membros e oportunidade para que falem e sejam ouvidos e,

ainda, permite evitar a relação fechada entre educador e educando. Assim, o próprio grupo

lança os temas e, nas discussões, se descobre que se sabia muito a esse respeito.

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No ano de 1971, equipes de “educação popular” foram constituídas na periferia de

São Paulo, a fim de promover a alfabetização por meio do método de Paulo Freire, que é

proibido no regime militar por apresentar importantes reflexões a respeito dos sujeitos postos

à margem da sociedade do capital. A educação popular, conforme Freire e Nogueira (1993, p.

19): é o “[...] esforço de mobilização, organização e capacitação das classes populares;

capacitação científica e técnica”, tendo uma conotação política, como também é um processo

continuo de “[...] permanente de refletir a militância; refletir, portanto, a sua capacidade de

mobilização em direção a objetivos próprios. A prática educativa, reconhecendo-se como

prática política, se recusa a deixar-se aprisionar na estreiteza burocrática de procedimentos

escolarizantes” (FREIRE, 2001, p. 34).

Paulo Freire defende que toda educação é política. Por isso, vê a educação então

vigente nas escolas brasileiras como um instrumento político para disseminar e perpetuar

valores e princípios de uma determinada visão de mundo e de sociedade, a dominante. Numa

perspectiva dialógica, a concepção de Freire para educação não é nova, mas dialogicamente

está ligada aos princípios defendidos pelas Ligas Camponesas, na década de 1940, pois a

educação popular é um movimento pedagógico voltado ao povo como um instrumento de

libertação e de conscientização (ARROYO, 2004). Nas palavras de Paulo Freire (1975, p. 22):

“[...] nenhuma prática educativa se dá no ar, mas num contexto concreto, histórico, social,

cultural, econômico, político, não necessariamente idêntico a outro contexto”. Para Paulo

Freire, inicialmente, como apresenta Ghiggi (2010), a educação é um instrumento de

transformação revolucionária da sociedade, mas ele sabe que o Estado nunca promoverá uma

revolução contra si mesmo, o que condena a educação brasileira à opressão. A respeito da

relação entre educação e revolução, Chambat (2006, p. 42) declara que pela

[...] força das coisas, educação e revolução não se sucedem no tempo, mas se

superpõem num processo dinâmico e dialético (uma nutre a outra

reciprocamente). A educação liberta o indivíduo das opressões ideológicas

que o aprisionam e o retêm na resignação, tornando-o receptivo à urgência

revolucionária.

No sentido de revolução, a educação possibilita às camadas desfavorecidas a

passagem da opressão à libertação, assim como leva a uma superação do modo de produção

capitalista. Esse princípio é retomado pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST)

como norteador da luta pela igualdade social, pois, para eles, a ignorância é uma das cercas a

serem vencidas. Sem conhecimento, o trabalhador sem terra tem limitações para lutar pela

terra e pela permanência nela. O MST, a CPT, dentre outros movimentos sociais rurais, assim

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como os acadêmicos sem terra da UFGD e professores do curso sabem que educação é poder

e liberdade, já que proporciona cultura, conhecimento e informação, o que é fundamental para

que os sem terra se relacionem com outros sujeitos. A educação libertária proporciona o livre

desenvolvimento das capacidades de os sujeitos sociais desenvolverem sua autonomia e sua

liberdade.

Paulo Freire entende que as classes menos favorecidas detém um conhecimento

historicamente acumulado não valorizado pela escola tradicional e, consequentemente, pela

sociedade. Seu pensamento leva em consideração que a educação deve partir do

conhecimento do povo e com o povo realizar uma leitura da realidade segundo sua ótica, o

que ultrapassa os limites das letras, das cartilhas e se constitui nas relações históricas e

sociais. Na perspectiva de Paulo Freire, o oprimido deve sair da condição de opressão por

meio da consciência de classe oprimida.

Segundo o método da educação popular, aprender a ler e a escrever deve estar

vinculado ao uso real desses instrumentos, levando a um despertar crítico do educando. Desse

modo, ler e escrever são ações que se efetivam vinculadas “[...] à tomada de consciência das

condições de vida e à elaboração coletiva de projetos de auto-organização” (SADER, 1988, p.

148). O método de Paulo Freire é marcado pela pressuposição do “saber popular”, o qual

necessita de categorias para ser elaborado, o que se opõe a uma concepção de educação como

transmissão de conhecimentos ou como simples inculcação de um conhecimento em um ser

humano ignorante. Os pressupostos de Paulo Freire dialogam com os movimentos sociais

rurais por rejeitar uma educação virtual, neutralizadora e cristalizadora, cujo objetivo é

favorecer as classes dominantes, o que contraria aos princípios dos movimentos sociais rurais.

Esses movimentos pretendem reelaborar a educação tradicional, o que obriga as instituições a

refletirem a respeito da formação de professores, do currículo escolar, da participação da

comunidade e dos movimentos na vida da escola (ARROYO, 2004).

A Teologia da Libertação e as CEBs constituem a base de formação política e

intelectual para o surgimento dos primeiros movimentos sociais rurais, CPT e MST, como

discutiremos a seguir. Por meio de uma teoria que orienta a Igreja e seus fiéis a se voltarem

para o povo oprimido, a Teologia da Libertação abre portas para uma educação libertadora

que, como vimos, busca criar caminhos para que o próprio povo, livre, lute por seus direitos.

As orientações da teoria católica se efetivam na prática das CEBs, que se aproximam da

comunidade e levam para os fiéis a oportunidade de enxergar, discutir e buscar soluções para

seus problemas. Com isso, a Igreja colabora para a formação, no final dos anos de 1970, dos

movimentos sociais rurais, como CPT, pastoral católica voltada para a defesa dos direitos dos

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trabalhadores rurais, e do MST, movimento social rural expressivo que nasce da união de

trabalhadores rurais em prol da terra como direito. Esses movimentos sociais apresentam

estratégias diferentes para lutar pela terra, mas têm em sua gênese a formação política e

intelectual como formas de libertar o trabalhador rural das amarras da opressão, da exploração

e da ignorância.

2.2.5 Movimentos Sociais Rurais: CPT e MST

O final da década de 1970 testemunha o ressurgimento dos movimentos sociais

rurais no Brasil, os quais estão adormecidos em decorrência das violentas ações do governo

militar. No entanto, nesse período de menor visibilidade, há um investimento em sua

formação e organização devido à aproximação com a Igreja Católica e com os princípios da

Teologia da Libertação. Como sabemos, vários são hoje os movimentos sociais rurais, mas,

neste estudo, destacaremos dois deles: a CPT e o MST por terem maior representatividade

entre os acadêmicos sem terra do curso de Ciências Sociais da UFGD. O surgimento desses

movimentos sociais rurais traz à cena uma contrapalavra ao modelo fundiário no Brasil.

Mediante a criação desses movimentos sociais ocorre o embate entre vozes adversárias. O

outro entra na fundação desses movimentos rurais, porque suas ações, estratégias, discursos

serão combatidos pela CPT e pelo MST. Vamos perceber que a identidade desses movimentos

é construída na alteridade, pois ela não se constitui por si só, mas a partir do outro – Estado,

latifundiário, políticos contrários, multinacionais. É um encontro de vozes contrárias que

demonstram que o problema da terra no Brasil está vivo e atinge milhares de trabalhadores

sem terra. Os movimentos sociais rurais entram na cadeia de discursos sobre a terra no Brasil,

não efetivando uma ruptura, mas demonstrando que a cadeia não se quebra, apenas novos

atores adentram, com seus posicionamentos ideológicos, sem deixar de se relacionar com os

discursos anteriores e com os sentidos já construídos e do mesmo modo também interagem

com os discursos do futuro. É como assegura Bakhtin (2011, p. 410):

[...] Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o

contexto ideológico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem

limites). Nem os sentidos do passado, isto é, nascidos no diálogo dos séculos

passados, podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por

todas): eles sempre irão mudar (renovando-se) no processo de

desenvolvimento subsequente, futuro do diálogo.

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133

Da CPT nasce o MST, movimento rural oficializado em 1984 que se destaca no

cenário nacional por uma gama de estratégias para fomentar a luta pela terra. Com o MST, o

Brasil vê a implementação de acampamentos às margens de rodovias, também visualiza a

ocupação de latifúndios, as marchas e os seminários. O Movimento mostra que está em

constante mudança e atualização de suas causas. Inicialmente, a luta é por reforma agrária,

contudo o tempo e as experiências vividas mostrarão que apenas reforma agrária não resolve

os dilemas dos trabalhadores sem terra. É preciso, então, erguer outras bandeiras, como a da

educação, da saúde, do crédito bancário. É uma luta contra a concentração de terras, contra a

concentração de capital e contra a ignorância.

As ações do Estado, dos políticos e dos latifúndios somente se intensificaram com o

passar dos anos, de modo que os movimentos sociais rurais perceberam que se não fossem um

movimento de massa que demonstrasse a coesão e a força da união de milhares de pessoas,

eles são banidos do cenário politico social do Brasil, como já havia acorrido com outros.

Desse modo, os movimentos sociais rurais, CPT e MST, empreendem lutas que respondem a

esse passado de exploração e opressão do povo do campo. Suas ações já serão pensadas como

atos responsivos aos atos dos adversários que há anos impedem a elaboração de uma política

fundiária de distribuição justa de terras no Brasil. Diferentemente das Ligas Camponesas que

objetivam ficar na terra, movimento do qual o MST se considera herdeiro, a luta agora é por

entrar na terra improdutiva, na terra das multinacionais, na terra de latifúndio.

Com os movimentos sociais nascem novos atores, novos sujeitos que de “posseiros”,

“camponeses”, “trabalhadores rurais” identificam-se e são identificados como “sem terra”, os

quais em suas lutas incorporam os acampamentos e os assentamentos como formas de lutar

pelo direito à terra livre e ao trabalho liberto. Seus discursos não são novos, mas são

articulados, pensados com discursos do passado e do futuro, a fim de colocar-se como uma

nova personagem da luta pela reforma agrária no Brasil. Por isso, mostrar, ainda que

brevemente, neste estudo, como eles surgem e em que contexto surgem, é fundamental para

entendermos os discursos seguintes à sua criação: os seus, o de seus militantes e os dos

opositores. É com esse contexto de criação dos movimentos sociais rurais, de suas ações,

bandeiras e filosofias que os relatos dos acadêmicos sem terra do Curso de licenciatura em

Ciências Sociais dialogam e tecem os fios da identidade dos acadêmicos do referido curso.

São novos atores e novos sujeitos que surgem no palco das reinvindicações por terra, fazendo

ecoar múltiplas vozes. Seus discursos e suas ações serão atos responsivos contra a lógica do

capital que, como um rolo compressor, esmaga tudo o que está no rumo da acumulação e de

sua reprodução ampliada.

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Segundo Touraine (2006, p. 175), o movimento social é “o ator de um conflito,

agindo com outros atores organizados, que lutam pelo uso social dos recursos culturais e

materiais, aos quais os dois campos atribuem, tanto um como outro, uma importância central”.

É possível perceber que os movimentos sociais trazem para a cena uma condição já

experimentada pelas Ligas Camponesas: a força da união. Uma voz não ecoa por muito

tempo, mas várias vozes ecoam, sustentam uma a outra, fazendo com que a coesão seja vista

como não como uma identidade individual, mas coletiva, o que demonstra força, legitimidade,

poder. Por isso, Picolotto (2007, p. 47) salienta que: “[...] são fundamentais na definição de

um movimento social os processos de constituição de identidade, a manifestação de um

conflito com um adversário e a afirmação de um projeto de futuro”. Como afirma Bakhtin, a

identidade se constitui na alteridade, mediante o outro, o outro companheiro, o outro

adversário, o outro Estado. Caracterizado muito mais como uma rede de solidariedade que

como um movimento classista, a identidade coletiva sobressai-se por demonstrar

legitimidade, coesão, resistência, projeto, poder (MELUCCI, 2001). As relações de troca, de

interação, de conflito, de negociação tecem a identidade dos movimentos sociais no final da

década de 1970.

Os movimentos sociais rurais nascem do processo de luta do próprio campesinato no

sentido de que o trabalhador rural deixa a posição de oprimido para assumir um significado

próprio de existência. Um discurso de resistência, de libertação e de autonomia ecoa contra o

discurso dominante, assim como objetiva Teologia da Libertação. É a voz dos trabalhadores

do campo que voltam a se reunir como fazem os membros das Ligas Camponesas; as famílias

organizam-se em núcleos, nos acampamentos e nas mobilizações, para discutir a produção, a

educação, as demandas da comunidade, como pregam as CEBs. Desses núcleos surgem os

líderes – coordenadores e coordenadoras – das ações a serem desenvolvidas.

Para Martins (1991), a luta pela terra desenvolvida pelos movimentos sociais rurais é

mais do que a luta pela “reforma agrária” ou “pela propriedade da terra”. Segundo o autor,

essa é uma luta pela terra, é uma luta pela vida, não pelo pedaço de terra, mas da terra como

instrumento da luta pela vida, não em termos materiais, de ter comida, ter casa. É uma vida

plena, uma vida cheia de significado, de direitos, uma vida em que aquilo que as pessoas

acreditam tem possibilidade de continuar sendo respeitado e existindo. Assim, novos sentidos

são incorporados ao signo terra, que, nessa perspectiva, ganha contornos de existência.

Os movimentos sociais rurais lançam uma contra-palavra no cenário nacional contra

a falta do que eles consideram uma política para distribuição de terras. Estando cercados de

signos, sendo constituídos por eles e os constituindo. Os movimentos sociais estão carregados

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de palavras para o diálogo com seus opositores e militantes. Essas palavras possibilitam a

compreensão dos discursos que circulam no meio social. São palavras do MST ou da CPT,

mas também são palavras de outros:

É preciso vir carregado de palavras para o diálogo com o texto. E essas

palavras que carregamos multiplicam as possibilidades de compreensões do

texto (e do mundo) porque são palavras que, sendo nossas, são de outros, e

estão dispostas a receber, hospedar e modificar-se face às novas palavras que

o texto nos traz. E estas se tornam por sua vez novas contra palavras, nesse

processo contínuo de constituição da singularidade de cada sujeito, pela

encarnação da palavra alheia que se torna nossa pelo nosso esquecimento de

sua origem (BAKHTIN, 1974, p. 405-406).

A CPT, como uma pastoral católica, tem como base a Doutrina Social da Igreja, que

orienta para uma postura que procura responder aos problemas sociais. Seus princípios

alicerçam-se nas escrituras, na fala dos profetas, principalmente, no Evangelho, sem deixar de

dialogar com teorias e movimentos populares. Como apresentaremos a seguir, seu projeto

social é de cunho político-religioso, pois, ao mesmo tempo busca justiça social, caridade,

fraternidade e doação. Ela é fundamental para a criação do MST, o qual recebe dela

princípios, práticas e formação para empreender a luta contra as cerca do latifúndio, da

ignorância e da exploração do trabalhador rural.

2.2.5.1 CPT (Comissão Pastoral da Terra)

No campo, no final da década de 70, o latifúndio continua a se espalhar e a

agricultura a se mecanizar. A fim de intensificar as ações contra essa estrutura social e

fundiária, as pastorais católicas organizam os religiosos por meio de pastorais, como pastoral

da terra, pastoral familiar, pastoral da juventude, dentre outras. Nesse cenário, nasce, durante

o Encontro de Pastoral da Amazônia, convocado pela CNBB, a Comissão Pastoral da Terra

(CPT), em Goiânia (GO), em 1975.

A CPT é uma pastoral católica que não se afirma como um movimento social rural,

mas como uma Pastoral. Nos assentamentos e acampamentos, viabiliza formação político-

religiosa, assessoria jurídica, mediação de conflitos com o Estado e, também, divulga e

implementa projetos de desenvolvimento econômico nos assentamentos e realiza debates com

estudiosos do meio cientifico e dos movimentos populares. Com esse trabalho, é expressivo o

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número de trabalhadores sem terra que fazem parte da CPT como movimento social rural. É o

que ocorre com boa parte dos acadêmicos sem terra.

A atuação da CPT leva sempre em consideração a conservação de um núcleo básico

de valores contidos na Doutrina Social da Igreja, que se trata de uma postura que procura

responder aos problemas sociais, tendo como princípios as escrituras e a fala dos profetas,

como também desenvolvendo um diálogo com teorias e movimentos populares (FERREIRA,

2009). Por isso, o projeto da CPT é de cunho político-religioso, pois ao mesmo tempo busca a

justiça social, a caridade, a fraternidade e a doação. Segundo a Comissão Parlamentar Mista

de Inquérito (CPMI)44

da Terra (BRASIL, 2007, p. 109), “[...] a CPT tem acompanhado os

trabalhadores em sua luta por terra, além de denunciar a violência no campo e afirmar a

necessidade da reforma agrária como solução para os conflitos no campo”. Pelo fato de ser

uma pastoral e não fazer parte do conflito, seu objetivo é mediar as relações entre os

trabalhadores rurais e o Estado, tendo como principais tarefas: “Traduzir em linguagem

popular o Estatuto da Terra e a Legislação Trabalhista Rural para que o trabalhador tivesse

consciência dos direitos que a lei lhes garantia” e “Promover campanha em favor dos direitos

dos sem terra”45

(CPT, 2015). Poletto (1985, p. 134) afirma que a ideia de não servir como

coordenação é fundamental, mais ainda “[...] a idéia de colocar-se a serviço de uma causa que

não é dos participantes, nem exclusiva dos camponeses cristãos, mas uma causa dos

trabalhadores rurais”.

A Igreja juntamente com os religiosos da CPT e seus participantes têm na Bíblia sua

fonte para alimentar a luta pela terra, já que, segundo o livro de Levítico, Deus disse: “A terra

não se venderá para sempre, porque a terra é minha, e vós estais em minha casa como

estrangeiros ou hóspedes” (BIBLIA. LEVÍTICO, 25: 23, p. 170). Conforme os princípios

bíblicos, a terra não teria outro proprietário a não ser Deus, de forma que todos os seus filhos

têm o direito de habitá-la e dela tirar seu sustento, sem, no entanto, fazer dela uma

mercadoria, um bem de capital que poderia ser vendido. Todos são habitantes “estrangeiros” e

“hóspedes” na terra de Deus, o que implica entender que não há ligação entre o homem e a

terra, mas sim entre terra e Deus. O signo terra ganha contornos religiosos, pelo fato de ser de

propriedade de Deus. Trata-se de uma das dádivas de Deus posta a serviço de todos os seus

filhos e não de alguns. O signo tem a conotação de “dádiva divina” dada aos filhos de Deus.

44 CPMI - Comissão Parlamentar Mista de Inquérito. Grupo formado por representantes do Senado Federal e

da Câmara dos Deputados com o objetivo de investigar supostas irregularidades no setor público. 45

Disponível em <http://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes/noticias/cpt-40-anos/2605-ha-40-anos-

nascia-a-cpt>. Acesso em: 10 out. 2016.

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Assim, observamos que o caráter do signo terra para a CPT é diferente daquele apresentado

pela TFP que defendia que os camponeses devem aceitar a estrutura do corpo místico de

Cristo, sendo os membros e não a cabeça.

Ao proteger o direito à terra, a CPT defende o lema “terra para quem nela trabalha”

no sentido de que a terra seria um espaço de trabalho para aquele que dela tirasse seu sustento.

Assim, o signo terra tem significados de moradia, de produção e de dignidade ao produtor, o

que contraria os significados de terra como produto gerador de crédito bancário ou produto de

especulação imobiliária.

A reforma agrária passa a ser incentivada pela CPT, no sentido de que os

trabalhadores precisam assumir seus papéis de sujeitos em busca de sua libertação. A reforma

agrária, para o movimento, no entanto, não é um caminho fácil, mas sim tortuoso, em que

mais se perde do que se ganha. Ela representa a longa caminhada dos hebreus rumo à terra

prometida, sendo guiados por Moisés. Durante a travessia, eles passam por provações,

sacríficos, como os trabalhadores sem terra precisam passar hoje para conquistar seu lote no

assentamento. O signo reforma agrária guarda em seu bojo a herança da grande saga ao

retomar os sacrifícios dos hebreus e projeta uma nova luta a qual os católicos precisam travar,

agora não contra os egípcios, mas contra o Estado e o latifúndio, o que necessita de

organização e formação político-religiosa. O signo reforma agrária representa, para a CPT e

seus membros, a libertação do povo de Deus e a via pela qual chega à terra prometida, à terra

de descanso, de produção, de dignidade, ou seja, ao lote.

Todavia, dentro da própria Igreja, a Pastoral da Terra é testemunha de uma

contradição, no sentido de que as alas conservadoras não apoiam o trabalho pastoral46

. Para

Bakhtin (2002), os sentidos das vozes dependem da situação histórica e social vivida pelo

grupo social. A Igreja é um local onde se encontram vozes e ideologias diferentes. Há uma

diversidade de olhares para a terra e para a reforma agrária dentro da Igreja, o que demonstra

que os sentidos não são únicos e as palavras não têm donos nem lugar específico, mas estão

circulando por vários espaços sociais e gerando novos sentidos.

Com base nos princípios da Teologia da Libertação e na doutrina social da Igreja

Católica, a CPT denuncia que o latifúndio é o responsável pela violência no campo, o que

46 Como exemplo, temos a campanha de repressão articulada por dom Geraldo de Proença Sigaud, membro da

TFP, junto a jornais e movimentos de extrema direita a respeito da atuação de membros do clero na mediação de

trabalhadores rurais em Goiás. Essa denúncia gerou a desconfiança e até uma investigação do Vaticano nas

Igrejas de Goiás e de São Félix, onde membros da Igreja Católica mediavam ações de luta pela terra. Do mesmo

modo, a Pastoral enfrentou o poder dominante da sociedade por trabalhar em prol das classes oprimidas.

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seria extinto com a democratização da terra. O signo reforma agrária ganha sentido de

“democratização da terra”, “direito de todos”, o que significa oportunizar a todos o direito à

terra, de maneira que a terra não seja monopolizada. O signo terra tem significado de

“propriedade divina”, por isso não tem proprietário na terra. A ideia de democratização

dialoga com os textos bíblicos que atribuem a propriedade da terra pertence a Deus e não aos

homens. Em Êxodo (BIBLIA, 19, 5), Deus disse: “Toda terra é minha”; em Deuteronômio

(10, 14) o narrador afirma: “[...] ao Senhor, teu Deus, pertencem os céus e os céus dos céus, a

terra e tudo o que nela se encontra” e em Levítico (BIBLIA, 25: 23) Deus disse: “[...] A terra

não se venderá para sempre, porque a terra é minha [...]”. O signo reforma agrária herda

sentidos bíblicos ganhando contornos de democratização, igualdade e direito. Há um consenso

entre os religiosos de que a terra não pertence aos homens, mas a Deus, e sendo todos filhos

de Deus, todos devem ter acesso à terra, o que não acontece. A concentração é vista como

uma forma de violência, já que retira a oportunidade de vida de milhões de pessoas viverem

nela (BRASIL, CPMI, 2006). De acordo com Dom Tomás Balduíno, os movimentos sociais

pela terra mudaram a paisagem do Brasil, pois estão em áreas rurais ou à beira das estradas,

evidenciando uma situação de precariedade, mas também de uma “mística profunda e de uma

organização disciplinada” (BRASIL, CPMI, 2006). O bispo também declara que:

Razão tem a elite agrária latifundiária e os que comungam com ela em ver

nos sem-terra um perigo. Confesso que eles realmente são um perigo para a

injusta estrutura fundiária sobre a qual se alicerça nosso País, desde as

capitanias hereditárias até sua consolidação na famosa Lei de Terras de

1850, que, abrindo a corrida à privatização das terras e à sua concentração,

tornou-se responsável pela pobreza, miséria e marginalização da imensa

massa de moradores do campo, que, violentamente expulsos, estão hoje

inchando as periferias das grandes cidades [...] (TOMÁS BALDUÍNO,

BRASIL, CPMI, 2006).

O discurso do bispo chama a atenção ao referir-se aos que consideram os

trabalhadores rurais “um perigo”. Isso demonstra uma resposta aos opositores dos sem terras

que os consideram “revolucionários”, “baderneiros” e “desordeiros”. O discurso acena que os

sem terras “realmente são um perigo para a injusta estrutura fundiária”, que retoma o

socialismo russo e a revolução cubana e suas ações revolucionárias para implantar a reforma

agrária tão combatida pela Igreja nas décadas anteriores a 60. Como afirma Bakhtin (2002, p.

113), através da “[...] palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em

relação à coletividade”. O discurso também dialoga com o discurso do outro ao referir-se à

Lei de Terras de 1850 que, como destacamos, é um marco na história da estrutura fundiária no

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Brasil, pois se trata de uma estratégia para limitar a posse de terra à propriedade privada e à

concentração de terras, de acordo com o que já foi discutido no primeiro capítulo deste

estudo. A Lei de Terras é considerada uma força ideológica que em seu presente garantiu que

o futuro das terras no Brasil estivesse nas mãos de uma elite latifundiária, a qual financiaria

essa garantia por meios políticos e econômicos. Com a implantação de forças ideológicas, a

elite latifundiária pôde garantir seu poder e, consequentemente, contribuir para “pobreza”,

“miséria” e “marginalização” dos camponeses e quando se vê ameaçada usa da força do

capital para eleger políticos para defender seus interesses. Porém, todo o vivido pelos

camponeses resulta em uma “organização disciplinada”, característica marcante de

movimentos sociais pela terra, como a CPT e o MST, os quais têm na organização, na coesão

e na coletividade a força de luta.

A CPT também se destaca pelo apoio associado à luta pela terra e, também, na luta

na terra, pois na terra é preciso lutar por educação, moradia, participação política, cultura,

lazer, assistência médica, alternativas de produção e comercialização, crédito bancário,

melhores condições de trabalho, preservação ambiental e uso racional dos recursos naturais

(BRASIL, CPMI, 2006). A Pastoral47

é considerada uma sementeira que vem formando,

nesses mais de 40 anos, lideranças de movimentos sociais que, seguindo seus próprios

caminhos, enxergam na CPT uma base de constituição das lutas e dos sujeitos em busca da

democratização da terra, como é o caso do MST. O mais expressivo e conhecido movimento

social rural do Brasil é o MST. Ele tem sua origem ideológica nas Ligas Camponesas e na

CPT, porém busca ser independente em suas estratégias de luta. Como discutiremos, a seguir,

o MST mostra ao povo do campo a força da união e da perseverança em prol do tão sonhado

lote, no entanto suas experiências sócio-históricas evidenciam que a terra é apenas um dos

direitos a serem conquistados pelos trabalhadores rurais, pois existem outras demandas, como

educação do campo e justiça social.

47 Em comemoração aos 40 anos da CPT, alguns líderes de movimentos sociais expressaram como consideram o

trabalho da CPT:

Valdir Misnerovicz – Coordenador Nacional do MST: “Nós nos consideramos filhos da CPT, e como bons

filhos, nós seguimos a nossa luta, seguimos lutando pela causa mais justa desse planeta que é a democratização

do acesso à terra e o cuidado com a terra [...]”.

João Pedro STEDILE - Coordenação Nacional do MST: “[...] O MST é fruto da experiência histórica do povo

brasileiro das lutas por reforma agrária. O MST se sente neto das Ligas Camponesas e filho da CPT, foi por isso

que nós erguemos a bandeira da reforma agrária no bojo das lutas pela redemocratização do país”.

Disponível em: <http://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes/noticias/cpt-40-anos/2605-ha-40-anos-

nascia-a-cpt>. Acesso em: 10 out. 2016.

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2.2.5.2 MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra)

No final da década de 1970, o campo brasileiro passa por uma alta mecanização com

a chegada da tecnologia avançada, assim a concentração de terra progredia em passos largos

e, consequentemente, a exclusão social aumenta significativamente. Diante desse cenário,

observamos, não oficialmente, o nascimento social do Movimento dos Trabalhadores Rurais

Sem Terra (MST), em 1979, não oficialmente, o que traz para a arena de luta pela terra novos

sujeitos que passam de arrendatários, parceiros, meeiros e filhos de pequenos agricultores a

serem Sem Terra. É um novo sujeito que se apresenta nessa nova temporalidade que o MST

apresenta. Esses sujeitos sentem o peso da chegada da mecanização nas lavouras do Sul do

País com a perda das terras que habitam e com a perda dos empregos. Ademais, também

surgem novos valores axiológicos e ideológicos, os quais são construídos sócio-

historicamente.

O Movimento passa a existir porque os trabalhadores rurais sem terra não querem

sair do campo, deixar suas raízes, suas formas de existência e caminhar sem rumo para a

cidade, como tantas vezes se viu no cenário brasileiro. Trata-se de uma forma de organização

e de luta para continuar na terra. Das Ligas Camponesas, o MST herda a independência

partidária como também a sindical, pois elas “[...] com base na bandeira de luta ‘Reforma

agrária na lei ou na marra’, e, mais do que os sindicatos, se constituíram como a referência da

luta pela reforma agrária” (STEDILE; FERNANDES, 2005, p. 18). As experiências das Ligas

Camponesas foram assimiladas pelo MST, porque ele faz parte do continuo da história da

terra no Brasil, o que viabiliza a ele também criar novas formas de luta. Nas palavras

bakhtinianas, a história é sempre um continuo, pois não há uma ruptura para, então, começar

de novo. Da mesma forma, os discursos dos acadêmicos de Ciências Sociais também fazem

parte desse continuo, uma vez que também buscam, em seus movimentos sociais e em seus

assentamentos, continuar a luta empregada pelas Ligas Camponesas, como também a

independência sindical e partidária. O MST, os militantes, os trabalhadores rurais sem terra e

os acadêmicos não são os primeiros a lutar pela terra no Brasil, mas são os primeiros a

ampliar as formas de luta e de reivindicações para o campo. Então, o que há é um continuo

em que o mesmo sempre reaparece, ainda que com uma nova roupagem.

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O MST atribui sua base ideológica ao trabalho da Comissão Pastoral da Terra (CPT)

e da Igreja Luterana48

. A CPT instaura uma autocritica à Igreja Católica que apoia a ditadura

militar e, com os trabalhos da Comissão, o clero católico volta-se contra a mecanização e a

expulsão dos camponeses do campo (STEDILE; FERNANDES, 2005, p. 18). A CPT é a

aplicação da Teologia da Libertação, o que leva aos camponeses um aspecto ideológico ainda

não visto, como a autonomia, a busca pela liberdade e a necessidade de organização.

Diferentemente do pregado por bispos como os da TFP, já apresentado anteriormente:

“Espera que tu terás terra no céu”, a Igreja passa a pregar: “Tu precisas te organizar para lutar

e resolver os teus problemas aqui na Terra” (STEDILE; FERNANDES, 2005, p. 18). O MST

é uma contrapalavra que se coloca na nova temporalidade. Ele é um movimento que se forma

intelectualmente e ideologicamente nas formações da Igreja Católica, onde conhece mais a

fundo a história da terra no Brasil, as lutas empreendidas antes (Ligas, Canudos, dentre

outras) e as estratégias da classe dominante para consolidar no País uma estrutura fundiária

baseada no latifúndio. Enfim, os integrantes do MST, na base intelectual e na realidade do

campo, já conhecem as estratégias políticas e jurídicas desenvolvidas pelo Estado, assim

como pelos latifundiários, partidos de oposição e multinacionais para frear a reforma agrária.

Diante disso, ele produz enunciados que respondem aos de seus interlocutores. É uma

contrapalavra formulada no diálogo com o outro, com os interlocutores da cadeia de discursos

da luta pela terra. Esses enunciados estão acompanhados de novas formas de luta, como

massificação, organização e formação, assim como pelas marchas, acampamentos e

ocupações, as quais passam a fazer parte do continuo histórico do problema da terra no Brasil.

O MST mostra que compreende a história da terra no Brasil e demonstra uma reação às

palavras de seus interlocutores adversários, as quais despertaram nele ressonâncias

ideológicas. Essa compreensão é realizada em um processo dialógico, pois, para Bakhtin

(2002, p. 132): “[...] Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra”. É um

efeito da interação entre os interlocutores. “[...] A cada palavra da enunciação que estamos em

processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma

réplica. Quanto mais numerosas e substanciais forem, mais profunda e real é a nossa

compreensão” (BAKHTIN, 2002, p.132). Também é um movimento dialógico com seus

interlocutores parceiros, como a CPT, a qual teve papel fundamental de aglutinar a si os

movimentos de luta vigentes naquele momento. Caso não tivesse esse caráter aglutinador,

48 A Igreja Luterana também teve participação na formação do MST, mas, neste estudo, não percorreremos esse

aspecto.

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outros movimentos seriam gestados, o que poderia levar a luta a uma fragmentação e ao

fracasso (STEDILE; FERNANDES, 2005, p. 18). É possível perceber que na relação com o

outro, o MST, como afirma Bakhtin (2011, p. 14), espreita “[...] tensa e permanentemente,

captamos[captou] os reflexos da nossa vida no plano da consciência dos outros; os reflexos de

momentos isolados e até do conjunto da vida [...]” para se lançar como um movimento de

massa de luta pela terra.

O contexto nacional também é um fator fundamental para o nascimento do MST.

Nas cidades, havia os movimentos de greves que fortalecem a luta pelo fim da ditadura

militar, o que se soma ao movimento do campo pela reforma agrária. O acampamento

Encruzilhada Natalino, em Ronda Alta (RS), em 1981, reúne cerca de 30 mil pessoas vindas

do Brasil inteiro com o objetivo de apoiar a luta camponesa contra a ditadura militar. Stedile

atribui, assim, o surgimento do MST ao apoio da sociedade brasileira, uma vez que se não

houvesse essa grande concentração no acampamento em Encruzilhada Natalino, o MST

poderia ter demorado mais para surgir e surgir sem a força social que obteve (STEDILE;

FERNANDES, 2005, p. 23). O acampamento é um espaço-tempo em que se reúnem

diferentes experiências de vida, em que se cruzam diferentes visões de mundo, tanto as a

favor da reforma agrária quanto as contra. O acampamento mostra o quanto a diferença social

no Brasil é grande e como os grupos antagônicos, MST e Estado, relacionam-se com essa

diferença social, revelando o aspecto sócio-histórico múltiplo do Brasil. O acampamento é um

novo espaço em que se inicia uma nova percepção do tempo. Segundo Bakhtin (1988), o

tempo e o espaço são indissociáveis, já que o tempo só transcorre em determinado espaço. O

MST traz para o Brasil uma nova temporalidade, já que nunca antes se tinha visto

organização, formação, ocupações e acampamentos sendo desenvolvidos, simultaneamente,

em diferentes partes do Brasil. Os brasileiros conhecem o que é latifúndio, o que é terra

improdutiva e o que é sem terra por meio das ações do MST. O Movimento demonstra a

existência de valores diferentes entre o eu MST e o outro Estado, latifundiários,

multinacionais, políticos opositores. São diferentes planos de visão e de juízo de valores que

estarão sendo contrapostos em diferentes ações. De um lado o MST com as ocupações e

acampamentos, de outro o Estado com estratégias já conhecidas para reverter as lutas pela

terra.

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143

Exemplo disso ocorre no acampamento Encruzilhada Natalino49

, onde a organização,

característica fomentada pela Igreja Católica por meio das CEBs e da CPT50

, é realizada por

meio da instituição de comissões internas no acampamento, com distribuição de funções em

que os próprios trabalhadores lideram a mobilização. No entanto, essa organização51

ganha

repercussão nacional e forças para continuar na luta pela terra, o que leva o governo federal a

enviar para lá a tropa do tenente-coronel Sebastião Rodrigues de Moura52

, conhecido como

major Curió. O militar monta barreiras policiais, controla a entrada e saída de pessoas do

acampamento como também a de alimentos, chegando a impedir a entrada de membros da

CPT e da comissão de Direitos Humanos. Junto aos trabalhadores sem terra, Curió trabalha

para convencê-los a deixar o acampamento e seguir para projetos do governo em outros

estados. Além disso, também infiltra agentes entre os colonos, compra colonos a fim de que

delatem as ações do Movimento e expulsa colonos do local (TEJERA, 2012).

Como podemos notar, os dois lados empreendem atos responsivos às ações de seus

adversários. Inicialmente, o Estado utiliza como contrapalavra a violência e a intimidação, o

que, gradativamente, torna-se inválido em decorrência da repercussão nacional e, também,

internacional, embora no campo os latifundiários com o aval do Estado continuem com as

ações de jagunços. Violência, intimidação, compra de informações e demora nas negociações

farão parte da estratégia responsiva do Estado, amparado por latifundiários, multinacionais,

contra o MST. Na relação com o seu outro, o Estado se torna falante. Como Bakhtin (2011, p.

271) afirma:

[...] o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do

discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição

responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o,

aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa posição responsiva do ouvinte se

49 O acampamento Encruzilhada Natalino foi formado pelos trabalhadores sem terra expulsos da aldeia

caingangue, em Nonoai, onde arrendavam terras dos índios por meio de um acordo com a Fundação Nacional do

Índio (FUNAI) (TEJERA, 2012). Esse acampamento é uma marca no nascimento social do Movimento pela

forma como foram constituídas as ações e, também, pela participação significativa dos camponeses, o que ilustra

as ações posteriores do MST. Até abril de 1981, o acampamento era constituído por algumas dezenas de

barracos, mas, a partir dessa data, muitas famílias de meeiros, colonos, arrendatários chegaram em busca do

direito à terra. 50

A CPT foi a responsável por sustentar o movimento no que se refere à reflexão, por meio da mística. 51

“[...] Essa organização interna deu solidez à mobilização que passou a ser reconhecida publicamente,

recebendo da imprensa cobertura sistemática, além de começar a contar com o apoio de várias organizações,

como sindicatos, que se mobilizavam para atender às necessidades de alimentação e saúde dos acampados, que

viviam em situação precária, o que gerou a ampliação do número de pessoas solidárias aos colonos de

Encruzilhada Natalino” (TEJERA, 2012, p. 86). 52

O tenente-coronel era conhecido nacionalmente por sua atuação contra a Guerrilha do Araguaia (TEJERA,

2012).

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144

forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o seu

início [...].

Em uma ação responsiva, como estratégia para resistir à pressão, o Movimento passa

a esconder suas ações internas e a sugerir que ninguém se apresente como liderança,

instituindo uma réplica às investidas do Estado. Outros participantes da rede de discursos,

bispos e prefeitos53

, denunciam as ações do tenente-coronel Curió, como também a gênese do

problema: política fundiária no Brasil.

A terra chega para os acampados do Encruzilhada Natalino quando a Cáritas

Regional Passo Fundo adquire uma área para onde são transferidos os colonos. Trata-se de um

assentamento de transição, a fim de abrigar de forma mais digna os camponeses. Em 1982,

outras áreas são adquiridas pelo governo do Rio Grande do Sul para fins de assentamento em

Cruz Alta, Palmeira das Missões e Ronda Alta. A importância do acampamento Encruzilhada

Natalino para o MST não está no “[...] espaço geográfico, pelo pedaço de terra conquistado, e

sim porque foi uma vitória” (STEDILE e FERNANDES, 2005, p. 24). Percebemos que o

signo terra para o MST não se refere a um pedaço de terra, ou seja, ao fenômeno material,

porém terra significa a vitória da organização, da resistência, da massificação e das relações

com outros movimentos sociais rurais de luta pela terra. O signo terra ganha um revestimento

ideológico, pois, ao alcançar seu objetivo, o MST mostra à classe dominante que é possível

fazer reforma agrária no Brasil, além de demonstrar que a luta está apenas começando e quais

os caminhos a serem percorridos para isso. De um lado, o movimento reveste a conquista da

terra de uma vitória ideológica e de princípios; de outro lado, a classe dominante vê que seu

poder sobre a terra está sendo questionado e ameaçado. Há um embate em torno da valoração

atribuída por cada parte ao signo terra. Como afirma Volochínov (1981 [1930], p. 254): “[...]

Nós operamos com o conceito de valor ideológico, que não objetiva a nenhuma

‘universalidade’, mas que carrega uma significação social e, mais precisamente, uma

significação de classe” (grifos do autor). Essa contradição de avaliação que reveste o signo

terra continua sendo vista nos relatos dos acadêmicos sem terra do curso de Ciências Sociais

da UFGD, como veremos no capítulo 4.

53 Diante da situação, bispos do Rio Grande Sul mostraram-se contra as ações do coronel Curió por meio de uma

nota oficial e demonstraram que os problemas eram oriundos de uma estrutura fundiária falida. Também se

manifestaram prefeitos de 28 municípios do Alto Uruguai, os quais assinaram um documento de apoio aos

acampados. Em agosto de 1981, os interventores se retiraram do acampamento (TEJERA, 2012).

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Com a ação de resistência desenvolvida no acampamento e a repercussão nacional, o

MST mostra-se ao Brasil, o que torna o Encruzilhada Natalino um marco na luta pela terra no

Brasil e demonstra ainda que a luta pela reforma da estrutura fundiária no País está reavivada.

Do mesmo modo, podemos afirmar que para o Estado, como também para os latifundiários,

as multinacionais e os políticos de oposição, o cenário da terra no Brasil havia mudado. Não

se vê mais um grupo pequeno de camponeses resistindo em sair das terras do latifúndio, mas

o que se visualiza é um movimento massificado, formado intelectual e ideologicamente, que

obtém respaldo de parte da sociedade, como de intelectuais e professores universitários, e

objetiva entrar na terra.

A oficialização do MST deu-se em 1984, em Cascavel, Paraná. Com a bandeira de

luta “Ocupação é a solução”, o Movimento reivindicou a reforma agrária, a criação de novas

leis e instaurou criticas ao Estatuto da Terra (CRUZ, 2010). Dialogicamente, essa crítica

estava ancorada no fato de que a reforma agrária prevista no Estatuto da Terra nunca saiu do

papel. O MST fundamenta sua crítica no fato de a terra ser caracterizada no Estatuto por sua

“função social”, devendo, assim, proporcionar bem-estar a todos os envolvidos na terra, o que

incluiria os trabalhadores rurais, contudo eles não tiveram seus direitos efetivados. A bandeira

de luta mostra que para realizar a reforma agrária no Brasil era preciso ocupar as terras. Essa

seria a solução. Essa era uma resposta aos anos de dominação do campo: “[...] cedo ou tarde,

o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos subsequentes ou no

comportamento do ouvinte [...]” (BAKHTIN, 2011, p. 272).

O MST nasce para ser um movimento de lutas de massas, pois sem luta a reforma

agrária não chega. No encontro de Cascavel também ficam definidos os objetivos do MST, os

quais resumem o programa do Movimento: “[...] era para lutar por terra, mas decidimos fazer

também a luta pela reforma agrária e por mudanças sociais, porque vivíamos o clima das lutas

pela democratização do país” (STEDILE; FERNANDES, 2005, p. 50). Observamos que o

MST amplia seus objetivos ao lutar por terra, reforma agrária e mudanças sociais. Apenas

entrar na terra não é o suficiente, uma vez que a desigualdade social no Brasil é expressiva; é

preciso lutar pela justa distribuição de terra, ou seja, pela reforma agrária. Esse signo ganha a

roupagem de “justiça social” para os trabalhadores rurais. Além disso, o signo mudança social

também entra nos discursos do Movimento, porque ele solicita mudanças na ordem social do

Brasil, o que requer mudanças políticas e ideológicas. Para isso, o Estado necessita

desenvolver ações que acabem com a pobreza extrema, o difícil acesso à educação e à saúde,

por exemplo. A mudança social é para todos e de uma forma ampla atende às necessidades do

povo brasileiro.

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O signo reforma agrária, no MST, não significa assistencialismo, situação que leva

ao abandono da luta quando se consegue o lote, ou seja, abandona-se a causa. Ao contrário, o

signo carrega um valor histórico e social de exploração do trabalhador rural e da terra, por

isso a luta continua mesmo depois de entrar no lote, pois ainda há camponeses sem terra e

ainda há injustiça social. Fazer reforma agrária54

no Brasil, para o MST, é fazer “[...] com que

milhões tenham acesso à terra, à escola, construam suas casinhas, num curto espaço de

tempo” (STEDILE; FERNANDES, 2005, p. 121). Assim, o signo reforma agrária agrega o

sentido de igualdade e de socialismo, diferenciando-se do significado atribuído por alguns

governos, como, por exemplo, o de Fernando Henrique Cardoso, que, diante da resistência do

MST e de outros movimentos sociais rurais, conseguia algumas áreas de terras públicas,

desapropriadas ou negociadas, para assentar as famílias (STEDILE; FERNANDES, 2005, p.

159). Para governos como o de Fernando Henrique, o signo reforma agrária teria o sentido de

distribuição de terras; já para o MST a essência do signo reforma agrária está na “[...]

distribuição da propriedade da terra, ou seja, a democratização da estrutura fundiária. [...]

reforma agrária é sinônimo de desconcentração da propriedade da terra” (STEDILE;

FERNANDES, 2005, p. 159). O signo reforma agrária tem significado de um projeto maior

que é acabar com a pobreza e a desigualdade social e econômica no Brasil, já que miséria e

pobreza são tão expressivas no País, contudo também a concentração de riqueza é expressiva,

o que leva à luta e à necessidade de buscar a igualdade social. Diante disso, Bogo (1996)

afirma que se há diferenças tão gritantes, não há como acabar com a luta de classes. O autor

54 A reforma agrária é necessária para o MST por cinco motivos principais. Primeiro porque toda pessoa

necessita de alimentos vindos da agricultura para viver: “[...] A agricultura ainda é a fonte de subsistência

humana” (BOGO, 1996); segundo porque a reforma agrária é uma forma barata e simples para reintegrar os

excluídos ao processo de produção. Trata-se de natureza humana buscar seu próprio alimento. Isso é possível

desde que ele esteja livre para cumprir este papel: “[...] É preciso lembrar que os empregos ficarão cada vez mais

difíceis no capitalismo, devido à competitividade e a agricultura, mesmo sendo explorada de forma rudimentar,

poderá produzir excedentes que facilitará desenvolver politicas sociais com alimentação farta” (BOGO, 1996). O

terceiro aponta que a reforma agrária é o ponto de partida para defender a terra, o ser humano e a natureza, pois,

para o MST, a ecologia só poderá ser defendida se houver a redefinição da estrutura agrária brasileira,

desmatando apenas o que for necessário e reflorestando de forma obrigatória onde for necessário (BOGO, 1996).

O quarto ponto afirma que com a reforma agrária pode-se produzir sem a utilização de agrotóxicos: “[...] Com a

realização da reforma agrária toda a população seria beneficiada, desde quem produz, até quem consome”

(BOGO, 1996) com uso de tecnologias que não prejudiquem o homem e a natureza. A reforma agrária também

diminui o custo de produção e dos produtos alimentícios, possibilitando às pessoas da cidade consumirem

produtos mais baratos e com melhor qualidade. “[...] Estas e tantas outras vantagens a população em geral poderá

ter, se implantada uma verdadeira reforma agrária no País, principalmente porque, se chegarmos a isso, já

estaríamos comemorando a construção de um nova sociedade” (BOGO, 1996). A reforma agrária é um elemento

impulsionador da luta de classes.

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acrescenta que velhos conceitos precisam ser resgatados, como: enquanto houver classes

sociais, há lutas de classes.

O Movimento se coloca no cenário político e social de luta pela terra não como um

movimento doutrinário, mas como um movimento que reflete acerca da realidade social

brasileira. Esse caráter dialoga com a Teologia da Libertação. Trata-se de estar aberto a todas

as verdades e não apenas a uma, pois esta única pode não ser verdadeira. A CPT ensina o

MST a estar aberto a todas as doutrinas a favor do povo. A partir dessa concepção, o MST se

abastece teoricamente (STEDILE; FERNANDES, 2005), lendo Lenin, Marx, Engels, Mao

Tsé-Tung, Rosa Luxemburgo, James Petras e Marta Harnecker, dentre outros. Dessas leituras,

captam-se ideias universais que podem ser aproveitadas no cenário brasileiro, tendo em vista

que cada autor trabalha com realidades diferentes das vivenciadas pelo MST. Não se trata de

cópia, mas da análise das ações e das reações vivenciadas em diferentes contextos. Do mesmo

modo, o Evangelho, não como religião, mas como uma doutrina, também é uma fonte de

leitura, que influencia nos valores, na cultura, na forma de ver a mística, na forma de ver

diferente (STEDILE; FERNANDES, 2005, p. 60). Pensadores brasileiros a favor e contra55

a

reforma agrária também abasteceram o MST com seus trabalhos, pois é preciso conhecer os

pensamentos que pairam a respeito da terra no Brasil. São lidas as obras de Florestan

Fernandes e Paulo Freire, como também as de Caio Prado Júnior, Clodovis Boff, Leonardo

Boff, Frei Betto, dom Tomás Balduíno e dom Pedro Casaldáliga. Com relação às experiências

vividas, também conhecem os contextos de luta de Luís Carlos Prestes, Ernesto Che Guevara

e José Martí (STEDILE; FERNANDES, 2005). A formação ideológica do MST é realizada

por múltiplos fios dialógicos. Palavras a favor e palavras contra entrecruzaram-se para formar

os fios ideológicos do MST como também dos acadêmicos sem terra de Ciências Sociais. A

base ideológica do MST e dos acadêmicos de Ciências Sociais é construída ao longo da

história dos grupos sociais envolvidos com a terra. É o resultado de ações que deram certo

como também de sistemas que não se efetivaram. Assim, eles buscam banharem-se da

55 Stedile lembra que foi lida a obra de Josué de Castro, Geografia da Fome. Esse autor fazia parte de um partido

da elite, de modo que sua leitura foi criticada por acadêmicos e membros do PT, segundo Stedile. Mas para o

MST o que importava era o que o autor tinha a dizer acerca das causas da fome principalmente no nordeste. Do

mesmo modo, leram Manuel Correia de Andrade para entender como funciona uma usina e o latifúndio; Celso

Furtado, por ver a reforma agrária apenas pela lógica do mercado interno e da industrialização, mas suas ideias

ainda poderiam ainda estar circulando, por isso era importante conhecê-las. Stedile também cita Darcy Ribeiro

que como escritor deixou uma obra importante acerca da formação étnica e cultural do brasileiro. Novamente

setores da esquerda criticaram os membros do MST por estarem estudando Darcy ribeiro, pois ele, enquanto

senador, prejudicou o campo na elaboração da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), mas o

fundamental era seu livro (STEDILE; FERNANDES, 2005).

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presença do outro, das experiências do outro para fortalecer a sua base intelectual e

ideológica, já que eu “[...] não posso passar sem o outro, não posso me tornar eu mesmo sem

o outro; eu devo encontrar a mim mesmo no outro, encontrar o outro em mim (no reflexo

recíproco, na percepção recíproca). [...] Do outro eu recebo meu nome, e este existe para os

outros (autonomeação – impostura)” (BAKHTIN, 2011, p. 342). São os outros do passado

com os quais o Movimento dialoga de forma a tomar suas palavras como suas e reproduzi-las

em seus contextos; são os outros parceiros de luta que inspiram o movimento com seus ideais

e atitudes de resistência à hegemonia da classe dominante; são os outros adversários, a quem

o MST quer conhecer para, então, rebater/responder aos seus enunciados que julgam a

reforma agrária como um atraso, evidenciando que não “[...] pode haver enunciado isolado.

Ele sempre pressupõe enunciados que o antecedem e o sucedem. Nenhum enunciado pode ser

o primeiro ou o último. Ele é apenas o elo na cadeia [...]” (BAKHTIN, 2011, p. 371). A ação

do MST em conhecer o outro para então voltar ao eu a fim de responder aos discursos

adversários confirma a premissa de Bakhtin (2011, p. 383) de que é preciso conhecer o outro

“[...] entrar até o fim no mundo dos outros como outro” para dele, então, emergir pronto para

atuar na vida viva.

A formação intelectual e ideológica do MST contribui para que a educação do campo

seja um dos objetivos a serem alcançados. A reforma agrária não tem sentido, para o MST, se

não estiver “[...] casada com a democratização da educação. Não é possível viabilizar a

democratização da terra e do capital com uma multidão de analfabetos” (STEDILE;

FERNANDES, 2005, p. 162). Nessa perspectiva, os signos reforma agrária e educação do

campo constituem-se ao mesmo tempo no MST, haja vista que um não pode ocorrer sem o

outro. Por isso, logo depois de sua oficialização, há a criação do setor de educação e do

Encontro Nacional de Educadores da Reforma Agrária (ENERA). O setor representa um salto

de qualidade para o Movimento, não teórico, mas mostra à sociedade a importância que o

MST atribui à educação e que sua luta não é apenas por terra. Para Stedile, a “[...] frente de

batalha da educação é tão importante quanto a da ocupação de um latifúndio ou a de massas.

A nossa luta é para derrubar três cercas: a do latifúndio, a da ignorância e a do capital”

(STEDILE; FERNANDES, 2005, p. 74). O signo cerca, para o MST e para os trabalhadores

rurais sem terra, é marca da propriedade privada e o símbolo da falta de justiça na terra. A

cerca marca a fronteira entre a luta pela terra e a entrada na terra. Para os latifundiários, o

signo cerca significa a proteção de suas propriedades, o limite entre o que é “meu” e o que é

do “outro”. Desse modo, adentrar a cerca de sua fazenda significa quebrar essa fronteira,

invadir propriedade privada e causar danos ao patrimônio, o que lhe garante o direito de

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“defender-se” com os meios que lhe são próprios, como contratação de jagunços/pistoleiros.

Para o MST e os trabalhadores rurais sem terra, a cerca do latifúndio representa a perpetuação

do status quo das elites proprietárias de terra e a falta de democratização de um direito de

todos que da terra querem viver. Romper com as cercas, então, significa tirar a terra do

cativeiro, libertar o trabalhador rural das correntes da dominação das elites fundiárias, fazer

justiça social e democratizar a terra.

A cerca da ignorância também deve ser rompida, sendo esta uma batalha do MST e

de outros movimentos sociais. Para eles, o trabalhador rural sem terra ignorante tem

limitações em lutar pela terra e pela permanência nela. O signo educação do campo ganha

significado de poder, já que o Movimento entende que na sociedade vigente cultura,

conhecimento, informação é poder; por isso é necessário que todos os camponeses tenham

acesso a esses conhecimentos, e o caminho para isso é a democratização da educação

(STEDILE; FERNANDES, 2005, p. 162). A educação é que vai tirar a sombra da opressão

que esmaga os trabalhadores rurais. Essa premissa dialoga com as palavras de Paulo Freire

(1975, p. 37), ao considerar que expulsar “[...] esta sombra pela conscientização é uma das

fundamentais tarefas de uma educação realmente liberadora e por isto respeitadora do homem

como pessoa”.

Por isso, a educação é um setor que recebe muita atenção no MST e,

consequentemente, nos acampamentos e nos assentamentos. Democratizar o conhecimento é

tão importante quanto conquistar a terra. Para tanto, o MST luta, desde 1984, “[...] pelo acesso

à educação pública, gratuita e de qualidade em todos os níveis para as crianças, jovens e

adultos de acampamentos e assentamentos” (MST, 2010, p. 23). O MST defende que

escolarizar “[...] é incentivar a pensar com a própria cabeça, é desafiar a interpretar a

realidade, elevando o nível cultural. É criar condições para que cada cidadão e cidadã

construam, a partir dos seus pontos de vista, seus destinos” (MST, 2010, p. 23). Nesse

contexto, educação do campo significa dar liberdade ao trabalhador rural sem terra e a seus

filhos para que saiam da condição de oprimido, elevando-os à categoria de homem e mulher

pensantes, dotados de cultura, capazes de pensar seus próprios caminhos e não seguir aqueles

que lhe são impostos. Além disso, lutar contra a ignorância não significa apenas acabar com o

analfabetismo, pois isso é simples, o que importa para o MST é “[...] democratizar o

conhecimento para um número maior de pessoas. O desenvolvimento depende disso”

(STEDILE; FERNANDES, 2005, p. 75).

É possível percebermos que uma educação libertadora é diferente da educação rural,

a qual nega aos trabalhadores rurais o direito à educação de qualidade, já que o campo é visto

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como um lugar de atrasado e uma realidade a ser superada. A educação rural é evidenciada

nos relatos de experiências dos acadêmicos sem terra quando os sem terra apontam as

dificuldades para chegar à escola, pois ela é distante e não havia transporte para vencer os

quilômetros de distância, o que leva muitos filhos de camponeses a abandonarem a escola

muito cedo; também é revelado quando se relata que os professores não têm formação

adequada para ministrarem aulas e, ainda, quando revelam não possuírem condições de terem

material escolar para frequentarem as aulas. Desse modo, observamos que o signo educação

rural é gestado segundo uma ideologia dominante que objetiva condenar os trabalhadores

rurais e seus filhos à ignorância. Com isso, a educação rural impõe aos camponeses uma

condição de marginalizados, de esquecidos e de explorados, já que deles se quer apenas sua

força de trabalho. Notamos, assim, que todo signo carrega em si um sentido ideológico ou

vivencial (BAKHTIN, 2002). O signo educação do campo é, então, uma proposta de

educação que refrata a educação rural ao negar para os trabalhadores rurais sem terra e a seus

filhos uma educação “adaptada” da cidade para o campo. O signo educação do campo por ser

constituído sócio-historicamente propõe um ensino que contemple cultura e conhecimento

para os trabalhadores rurais sem terras como também que esse ensino seja no campo, perto da

realidade dos estudantes sem terra, com professores inseridos na ideologia dos sem terra.

Tudo isso para que o ensino seja de qualidade e o trabalhador rural sem terra possa ser

instruído, ter cultura e conhecimento não precisando para isso sair do campo.

O signo educação do campo refrata as forma de cristalização de modelos políticos de

desenvolvimento econômico, cujos interesses apenas servem à classe dominante. Também

carrega em seu bojo a realidade dos trabalhadores rurais sem terra, os quais precisam se

relacionar não só com os sujeitos da escola, mas também com os sujeitos do Movimento, das

prefeituras, das universidades, dentre outros. O signo educação do campo constitui-se da

junção entre trabalho intelectual e trabalho manual, pois contempla o todo da vida dos

trabalhadores sem terra. Para o MST, o trabalho intelectual não está aquém do campo e não

alcança superioridade em relação ao trabalho manual, mas entre eles há uma relação de troca

de conhecimentos, de modo que um pode caminhar com o outro, o que contribui para que os

trabalhadores sem terra não precisem sair do campo para buscar educação, como também não

fiquem no campo sem acesso ao conhecimento.

O MST apoia-se na Constituição Federal de 1988, que garante educação para todos, e

nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, a qual assegura adequações

necessárias às especificidades do campo, para desenvolver lutas em prol da educação do

campo. Com adequações asseguradas pela Lei, o signo educação do campo ganha contornos

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legais, assegurando à escola do campo poder desenvolver conhecimentos que contribuam para

o benefício e o bem-estar dos trabalhadores rurais assentados ou acampados por meio de uma

nova concepção de vida rural. Essa nova concepção de vida rural aponta que o campo mudou,

pois os trabalhadores rurais sem terra querem viver plenamente no campo, tendo educação de

qualidade, saúde e lazer, sem que para isso seja preciso deixar o campo e seguir para cidade.

Por isso, o Movimento luta para explicar aos governos, aos educadores e aos elaboradores de

políticas públicas que a escola para crianças do campo não pode ser na cidade, ela deve ser no

campo, no assentamento, no acampamento (STEDILE; FERNANDES, 2005), o que gesta um

novo signo: educação no campo, o qual se constitui, por meio da herança sígnica (DURAN,

2016), do signo educação do campo. Estar no campo significa estar perto da realidade dos

estudantes sem terra e, ao mesmo tempo, fazer integrar essa realidade, já que a escola no

campo agrega a vivência do assentamento no que diz respeito à interação com as

peculiaridades do campo, como plantio e colheita, e, ainda, à atuação dos movimentos sociais

rurais. Assim, a escola no campo é um lugar de formação acadêmica e, também, de formação

política, por ser um espaço ideologicamente constituído. Logo, o signo educação no campo é

mais um instrumento da luta dos trabalhadores rurais sem terra que refrata a educação urbana

e a proposta da classe política conservadora em tirar o estudante sem terra do assentamento e

levá-lo para estudar na cidade com o intuito de que ele tenha educação de qualidade. O signo

educação no campo já nasce para negar essa proposição defendida historicamente pelos

governantes, pois ir para cidade pode, mais uma vez, dar ao campo contornos de atraso e de

subjugação, além de contribuir para que a proposta de libertação do trabalhador rural sem

terra não siga em frente.

O signo educação do campo, presente nos documentos oficiais a respeito da

Educação56

, passa a representar a garantia das particularidades do campo, assim como de suas

demandas, seus saberes, sua cultura e seus valores. Essa preocupação com uma política

específica para o campo é pensada e defendida pelas Ligas Camponesas, que buscam

assegurar uma educação voltada à formação política e, também, à realidade dos camponeses.

Dessa maneira, o signo educação do campo é integrante da luta pelo desenvolvimento do

campo. Notamos, assim, como “[...] o signo e a situação social em que se insere estão

indissoluvelmente ligados. O signo não pode ser separado da situação social sem ver alterada

sua natureza semiótica”, conforme Bakhtin (2002, p. 62). Há, então, uma indissolúvel relação

56 Conforme “Educação do campo: marcos normativos”. Disponível em <

http://pronacampo.mec.gov.br/images/pdf/bib_educ_campo.pdf>. Acesso em: 23 out. 2017.

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entre a luta dos trabalhadores sem tem terra e o signo educação do campo, pois um constitui o

outro.

Apresentar a CPT e o MST e os sentidos atribuídos por eles aos signos terra,

reforma agrária e educação do campo mostra que esses Movimentos renovam as forças dos

trabalhadores rurais sem terra, além de trazerem à cena um novo sujeito: o sem terra. Os

movimentos sociais rurais conseguiram que sua luta fosse conhecida nos cenários nacional e

internacional, principalmente, a do MST. Não se trata de uma luta nova, como já

demonstramos aqui ao apontar as resistências indígenas contra as invasões de seus territórios

pelos europeus e, também, a organização das Ligas Camponesas no nordeste. Como afirma

Bakhtin (2011, p. 410):

[...] Em qualquer momento do desenvolvimento do diálogo existem massas

imensas e ilimitadas de sentidos esquecidos, mas em determinados

momentos do sucessivo desenvolvimento do dialogo, em seu curso, tais

sentidos serão relembrados e reviverão em forma renovada (em novo

contexto). Não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa

de renovação. Questão do grande tempo.

O MST, por meio de sua formação política e ideológica, reaviva discursos

esquecidos, mas que não estão mortos. Traz um novo tempo para as discussões acerca da

propriedade da terra no Brasil, bem como para a desigualdade social. Busca desestabilizar o

estado de estagnação no qual se encontram as mudanças no direito à terra.

Podemos perceber que, no continuo da luta pela democratização da terra e das

estratégias de conservação do latifúndio, tomando a perspectiva bakhtiniana, as forças da vida

social, linguística e ideológica – força centrífuga e a força centrípeta – colocam-se como

contrárias. Bakhtin, por meio da verificação de atuação dessas duas forças na constituição do

sentido, aponta que a circulação das vozes sociais está submetida ao poder. Como ressalta

Fiorin (2016, p. 36):

[...] Não há neutralidade no jogo das vozes. Ao contrário, ele tem uma

dimensão política, já que as vozes não circulam fora do exercício do poder:

não se diz o que se quer, quando se quer, como se quer. [...] estão em causa

todas as relações de poder, que se exercem desde as relações do dia a dia até

o exercício do poder do Estado.

No jogo de poder entre o Estado, o latifúndio e o MST, este, em um ato responsivo,

mostra-se como uma força centrífuga, pois se coloca contra a concentração de terra, contra a

desigualdade social; sendo capaz de produzir formas/estratégias de resistência à força

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153

centrípeta imposta pelo Estado e pelas classes dominantes. As forças centrífugas são “[...]

permeáveis à impregnação por outras vozes, à hibridização, e abrem-se incessantemente à

mudança” (FIORIN, 2016, p. 61). Elas produzem o movimento dos trabalhadores rurais sem

terra, impulsionando-os a lutarem contra a opressão advinda da classe majoritária; ao mesmo

tempo acelera a resistência ao criarem estratégias de luta, como acampamentos, ocupações,

marchas, assentamentos.

Com isso, a força centrífuga consegue sustentar uma rede de relações entre

trabalhadores rurais, movimentos sociais rurais, partidos de esquerda e Igrejas, os quais

contribuem para que, no atrito com a força centrípeta, ela despenda uma força de resistência

capaz de sustentar a luta pela conquista de seus objetivos, assim como de descortinar as

desigualdades sociais do cenário brasileiro. É uma força alicerçada nos princípios do

socialismo, ao defender uma sociedade sem desigualdade social e econômica, como também é

apoiada nos valores de igualdade social que preveem que a desigualdade social não é

acidental, mas é fruto de um conjunto de medidas históricas de exploração do trabalhador,

sendo necessário igualar os direitos entre os sujeitos sociais para que todos tenham acesso à

terra, à educação, à cultura. Já forças centrípetas, “[...] impermeáveis, resistentes a impregnar-

se de outras vozes, a relativizar-se” (FIORIN, 2016, p. 61), caracterizam-se como forças

alicerçadas nos valores tradicionais de propriedade de terra, que vem se enraizando desde os

primórdios das sociedades grega e italiana e já foram amplamente defendidos pela Igreja

Católica, como visto no primeiro capítulo. O discurso de proteção à propriedade privada

reverbera até hoje nos discursos sociais, inclusive, no dos mais pobres, que aceitam a

condição de explorados em detrimento da manutenção de uma ordem divina, em que os

membros inferiores devem trabalhar para os membros superiores, embora isso signifique

exploração.

Outra base de sustentação da força centrípeta são os valores do capitalismo, ao fazer

da terra um instrumento de obtenção de lucro, de créditos bancários, de acesso a programas

federais de empréstimo e, também, ao aumentar as diferenças de remuneração salarial entre

categorias de emprego. Para se afirmar no poder, defende medidas contra os direitos sociais e

políticos dos trabalhadores. A ascensão dos movimentos sociais, como o MST, é vista pela

força centrípeta como criadora de ingovernabilidade, como uma potência que inibe a

liberdade de mercado. Ao negar qualquer racionalidade que não seja a do mercado, a força

centrípeta pretende ocultar as particularidades, naturalizar as desigualdades, relacionar os

setores socialistas à barbárie, fazendo valer, fazendo parecer inevitável a exploração do

trabalho e o latifúndio.

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154

Este trabalho, até este momento, acentua que em uma relação dialógica, a potência

imposta por cada uma dessas forças demonstra que a luta de classes é historicamente

construída, sendo um fenômeno existente nos embates de classes. Não se trata de um

fenômeno em que apenas a classe subordinada envolve-se, ao contrário, os dois lados estão

ativos na luta, de forma que cada um atua para bloquear a força do outro por meio de

estratégias escolhidas para chegar aos seus objetivos, o que os leva a vitórias e derrotas

(BARKER, s/d, p. 1).

É na relação entre as duas classes que a luta se efetiva, sendo a linguagem a arena de

disputa entre ambas. O Círculo de Bakhtin caracteriza a linguagem como social e dialógica,

sendo um instrumento de mediação entre o homem e a natureza e dos homens entre si. Essa

característica da linguagem é fundamental para este estudo, pois, ao mostrarmos vozes que

ecoam na história da luta pela terra no Brasil, observamos o diálogo existente entre elas, o que

marca o caráter contínuo da história, o diálogo entre discursos e a constituição da identidade

pela alteridade. São vozes consoantes e contrárias que se confrontam na arena da luta de

classe, a fim de defenderem seus posicionamentos ideológicos, políticos, econômicos. Por

isso, Bakhtin afirma que a consciência só pode se materializar como realidade por meio dos

signos. Os signos não apenas refletem a realidade, mas também a refratam, pois já se banham

nas águas da avaliação e da negação dos sujeitos.

Ao trilharmos alguns dos caminhos percorridos pelos signos terra, reforma agrária e

educação do campo, percebemos que para compreendê-los temos de aproximá-los de outros

signos, o que cria uma cadeia semiótica continua de compreensão. Ademais, os discursos

demonstram que esses signos não estão estabilizados, pois sofrem constantemente influências

das interações sociais entre esses dois grupos envolvidos. Podemos afirmar que os sentidos

dos signos em análise construídos pelas vozes consonantes ao projeto de redistribuição de

terras efetivam-se por meio de uma ação responsiva às vozes discordantes, a quem se quer

negar e refutar. Conforme podemos notar, no Quadro 2, os sentidos para os signos terra,

reforma agrária e educação do campo não estão estabilizados, mas adquirem no processo de

interação social as nuances da ideologia do grupo que os constrói.

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Quadro 2: Síntese dos sentidos construídos pelas vozes consonantes para os signos

ideológicos terra, reforma agrária e educação do campo

Vozes Histórico-

sociais

Terra Reforma Agrária Educação do Campo

PCB Solução para os

problemas do Brasil

Divisão

Fracionamento do

latifúndio

Partilha e coletivização

da terras

Ligas Camponesas Direito

Existência

Subsistência

Concretização de

desapropriações

Educação política

Conhecimento

escolar

João Goulart Bem de mercado

Bem de capital

Propriedade

Bem estar social

Instrumento para

diminuir as diferenças

sociais

Subsistência

Meio para exercer

poder

Racionalização da terra

Instrumento capaz de

mecanizar o campo

Ferramenta para tornar

o campo mais

produtivo

Ferramenta de interesse

social

Diminuição da

desigualdade no campo

Desapropriação

Igreja Católica

Teologia da

Libertação e CEBs

Propriedade de Deus

Bem de todos os

filhos de Deus

CPT Propriedade de Deus

Dádiva de Deus

Libertação do povo de

Deus

Democratização da

terra

Direito de todos

MST Vitória da

organização, da

resistência e da

massificação

Justiça social

Igualdade e socialismo

Democratização da

estrutura fundiária

Poder e liberdade

Fim da opressão

Incentivo a pensar

com liberdade

Democratização do

conhecimento

Negação da educação

rural

Contemplação da

cultura e do

conhecimento

Instrumento da luta

dos trabalhadores

Integrante da luta

pelo

desenvolvimento do

campo

Elaborado pela autora (2018).

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156

Como podemos notar no Quadro 2, os signos são construídos de acordo com a

ideologia dos sujeitos sociais. Assim, cada um traz para a arena de constituição dos signos

suas visões de mundo e opiniões. Desse modo, não há um sentido para os signos, mas uma

pluralidade de sentidos, pois os sujeitos que os constituem são também plurais por interagirem

sócio-historicamente com outros sujeitos, tantos os a favor a um projeto de redistribuição de

terras no Brasil quanto com os contra.

Assim, verificamos como contexto sócio-histórico e os sujeitos sociais contribuem

para que a estrutura capitalista da terra seja questionada e combatida em um país marcado

pela desigualdade social e pela pobreza estrema. Os trabalhadores rurais sem terra observam a

importância da coletividade, da união, do mutirão e, também, da formação intelectual e

política, o que garantiu que eles mesmos fossem às ruas, às rodovias, à beira de fazendas

lutarem por seus direitos, legislando eles mesmos a seu favor.

Como verificamos a luta pela educação do campo, ainda que não utilizando esse

termo, não se inicia com os movimentos sociais, a partir da década de 1970, mas é pensada

pelas Ligas Camponesas e, também, pela Igreja Católica. Suas origens na formação política e

intelectual e na libertação do sujeito ecoam no Projeto Político Pedagógico do curso de

licenciatura em Ciências Sociais da UFGD para assentados de reforma agrária. A gênese do

curso já demonstra uma relação dialógica entre os movimentos sociais rurais de Mato Grosso

do Sul e a Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), já que o curso é o primeiro no

Brasil a ser proposto pelos Movimentos e a ser desenvolvido em parceria com os movimentos

sociais rurais. Há que se destacar também que todos os movimentos sociais rurais do estado

de Mato Grosso do Sul estiveram presentes na efetivação do curso, o que também é um dos

diferenciais. Desse modo, o curso congrega assentados rurais pertencentes a diferentes

movimentos sociais rurais, os quais se caracterizam por diferentes posições com relação à luta

pela terra. Notaremos que o Projeto Político Pedagógico do curso de licenciatura em Ciências

Sociais da UFGD não é o primeiro a tratar do significativo papel da educação na luta pela

terra, na formação de um sujeito liberto da opressão e questionador do sistema capitalista

vigente. O discurso do PPP constitui-se de um emaranhado de outras vozes com as quais

dialoga. Esses discursos nos levam a conhecer melhor o universo do signo educação do

campo¸ assim como o de sua constituição e o de sua atuação nas práticas sociais dos

acadêmicos sem terra, dos movimentos sociais rurais, da universidade e do governo federal.

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CAPÍTULO III – MULTIPLICIDADE DE VOZES NO PROJETO

POLÍTICO PEDAGÓGICO DO CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

VOLTADO AOS SEM TERRAS

Para realizarmos este estudo também importa conhecermos e analisarmos as vozes

que compõem o Projeto Político Pedagógico (PPP). No entanto, essa análise passa,

anteriormente, pela do Manual de Operações do Programa Nacional de Educação na Reforma

Agrária (PRONERA), pois esses documentos norteiam os pressupostos teóricos e a

metodologia do curso, bem como apresentam as diretrizes, o perfil dos acadêmicos, os

objetivos, dentre outras características do curso. São vozes que não inauguram uma cadeia

discursiva própria do curso, mas que dialogam com uma gama de sentidos já construídos

durante a história de luta pela terra no Brasil, conforme discutimos nos capítulos anteriores.

Analisar o percurso da criação política e institucional do curso, as suas características

e como o seu contexto se materializa na linguagem, partindo do Manual de Operações do

Pronera, são aspectos fundamentais para investigarmos quais as vozes constitutivas do PPP.

Isso porque o PPP é elaborado por professores da UFGD mediante a entrega da proposta feita

pelos movimentos sociais rurais de Mato Grosso do Sul. Desse modo, importa enfatizarmos

que não se trata apenas de um PPP de um curso universitário, elaborado por professores, mas

de um documento construído por sujeitos ideologicamente engajados na luta pela reforma

agrária, os quais apresentam uma trajetória de pesquisa e de militância que focaliza a luta pela

terra e pela educação do campo. É também um documento que congrega as demandas

apresentadas pelos movimentos sociais rurais que representaram os assentados de Mato

Grosso do Sul. Além disso, a elaboração conta com o apoio do Governo Federal, do então

presidente Luiz Inácio Lula da Silva57

, por meio do Instituto Nacional de Colonização e

Reforma Agrária (INCRA) e do Instituto de Meio Ambiente e Desenvolvimento (IMAD).

57 O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva governou o Brasil nos períodos de 1º de janeiro de 2003 a 1º de janeiro

de 2007, e de 1º de janeiro de 2007 a 1º de janeiro de 2011. Disponível em:

http://www2.planalto.gov.br/acervo/galeria-de-presidentes Acesso em: 15 dez. 2017.

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Mediante a premissa bakhtiniana de que enunciar é responder, tomamos o Manual e

o PPP como documentos resultantes de uma tomada de posição social avaliativa, de uma

posição diante de outras posições sociais – consoantes e destoantes –, uma vez que ele é

elaborado em um contexto saturado de valorizações tanto a favor quanto contra a reforma

agrária e, do mesmo modo, a favor e contra um curso específico para assentados.

Incluir os assentados no ensino superior é uma das propostas do curso de Ciências

Sociais e, também, do então Governo Federal, uma vez que pretendem corrigir processos de

exclusão educacional vividos por esse grupo. Como já demonstraram vozes enunciadas nos

primeiros capítulos deste estudo, ao campo sempre é destinada uma educação “adaptada”, de

baixa qualidade, com professores não formados, em escolas improvisadas e sem transporte

público. Essas condições levaram filhos de camponeses a abandonarem os estudos, como os

relatos pessoais evidenciam.

Diante desse trajeto sócio-histórico, advém a demanda por um curso superior voltado

à realidade dos trabalhadores rurais sem terra. Trata-se de uma proposta gestada em reuniões,

assembleias, congressos dos movimentos sociais rurais no Estado de Mato Grosso do Sul e,

também, em outras localidades do Brasil. Com chegada dessa demanda à Universidade,

primeiro a proposta é pensada coletivamente entre UFGD, MST e CPT para, posteriormente,

contemplar todos os movimentos sociais rurais do Estado. Essa característica torna o curso o

único, até então, no Brasil, a ser pensado e desenvolvido em parceria com os movimentos

sociais rurais. Por isso, esse curso de licenciatura em Ciências Sociais não é um curso como

outros que se desenvolveram em outras universidades pelo País. É um curso pensado

coletivamente, constituído por vozes consoantes do campo, da Universidade – professores e

pesquisadores –, mas também por vozes destoantes, como a de professores de cursos

tradicionais, os quais são contrários ao projeto de reforma agrária e à presença de assentados

na Universidade.

Assim, o curso além de herdar os sentidos das lutas de outros grupos sociais, como

Ligas Camponesas, PCB, Igreja Católica (CEBs, Teologia da Libertação), CPT, MST,

também é constituído por vozes contrárias, como governo militar, associações rurais, Igreja

Católica (TFP), no sentido de ser mais uma voz que reage valorativamente a outras vozes.

Mediante essa herança, para nós, ele se apresenta como uma força centrífuga, que entra no

fluxo da história da terra, da reforma agrária e da educação do campo no Brasil para também

constitui-la ao resistir à força centrípeta que objetiva a unificação e a centralização, ou seja, à

manutenção da exploração da força de trabalho do camponês. Como uma força centrífuga, o

Manual e, principalmente, o PPP empenham-se por descentralizar e desunir o que é dado

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como cristalizado pela força centrípeta. Os documentos entram no movimento da história,

desejam mudança e justiça social.

A preocupação dos trabalhadores sem terra com a educação confirma o que

mostramos no decorrer do capítulo dois: a terra é fundamental, mas já não é a única fonte de

luta dos trabalhadores rurais, pois na terra outras necessidades surgem, como a educação,

condição primária, segundo os trabalhadores rurais, para a legitimidade social e política de

reconhecimento da identidade sem terra. Com isso, aumenta a responsabilidade dos

professores da Universidade, das escolas do campo e dos movimentos sociais rurais, pois os

trabalhadores rurais veem na educação uma forma de transformar a realidade social, por meio

do conhecimento e da cultura (MENEGAT; FARIAS, 2009).

Em meio a essas demandadas, a UFGD lidera o processo de criação e de implantação

do primeiro curso superior direcionado a moradores de assentamentos federais do Estado de

Mato Grosso do Sul. O objetivo do curso é formar educadores político-sociais para atuarem

em suas próprias comunidades, nas escolas, nos grupos do assentamento, em sindicatos, em

associações e em situações educativas e de apoio às famílias assentadas. Partindo desse

objetivo, a UFGD implanta o curso de turma única (2008-2012), desenvolvido por meio da

Pedagogia da Alternância, o que é fundamental para a construção do conhecimento apoiado

na coletividade do processo pedagógico, pois oportuniza que a distância física entre a

Universidade e os assentamentos seja vencida, assim como possibilita a estreita relação entre

os processos educativos da Universidade e as experiências do campo.

Ao pensarmos a história do curso de licenciatura em Ciências Sociais, da UFGD,

realizamos um recorte para separá-lo da história de um curso regular de licenciatura em

Ciências Sociais que aconteceria em qualquer Universidade e para alunos não

particularizados. Como nosso percurso histórico mostrou nos capítulos anteriores, pensar a

história de um curso para assentados, solicitado por eles, em um Estado marcado pelo

latifúndio, Mato Grosso do Sul, é jogar com forças políticas e ideológicas que sustentam e

reagem contrariamente à efetivação do projeto.

Pensando a partir da perspectiva bakhtiniana, essas lutas ideológicas efetivam-se na

materialidade linguística do Manual de Operações do Pronera e do PPP e nos levam aos fios

discursivos que constroem a história dos sem terra, dos movimentos sociais e dos acadêmicos

sem terra. Sabemos que os discursos que constituem dos documentos são tecidos por um

emaranhado de vozes que se entrecruzam para dar sustentação a um projeto maior que é a

reforma agrária, a educação do campo e a justiça social.

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Consideramos que o curso de Ciências Sociais é um dos elementos da luta de classes,

uma vez que o acesso à Universidade no Brasil é, tradicionalmente, um privilégio da classe

mais abastada. Por isso, o Programa Federal de Ampliação de Universidades, criado no

Governo do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, possibilita que outras classes tivessem a

oportunidade de também cursarem uma universidade. Esse Programa reestrutura a rede

federal de educação superior permitindo o aumento de 45 universidades, em 2003, para 63,

em 201458

. Além disso, outras modalidades de cursos foram criadas para atender às

populações específicas, como assentados sem terra e indígenas, por meio de metodologias

apropriadas às especificidades destes grupos. No entanto, a implantação desses cursos não é

uma iniciativa bem aceita nas Universidades, um lugar sócio-historicamente marcado pela

presença da classe dominante, já que objetiva trazer para o cenário da academia grupos

marginalizados e combatidos sócio-históricamente.

Percebemos, assim, que a Universidade não é um lugar de coesão, ela também é um

lugar onde há lutas ideológicas e lutas de grupos contrários. Há um discurso ideologicamente

formado por professores pesquisadores de variadas áreas do conhecimento, que compreendem

e defendem um projeto de reforma agrária; mas há também, em grande parte, a ideologia de

um grupo de professores que representa a classe dominante, a elite, os latifundiários e os

políticos conservadores, os quais são docentes, na maioria das vezes, de cursos tradicionais.

Estes não compreendem o processo de luta pela terra como um problema sócio-historicamente

construído, em que há um contexto de expulsão dos camponeses em prol do latifúndio, mas é

visto como uma forma que foge aos padrões tradicionais para obter uma propriedade, como

um fenômeno que objetiva expulsar os latifundiários de suas terras. Desse modo, é contra essa

força centrípeta, que está ancorada na cadeia discursiva da história da terra no Brasil, como

descrevemos nos capítulos anteriores, que o curso também precisa lutar. Assim, verificamos o

problema da relação recíproca entre infraestrutura e superestrutura, ou seja, entre os

trabalhadores em terra e a Universidade.

Como vimos no primeiro capítulo, sempre houve tentativas da classe dominante em

estabilizar e oficializar os signos terra e reforma agrária por meio de legislações que

determinam os sentidos para cada um dos signos. Porém, a reação aos sentidos construídos

por parte do PCB, do governo de João Goulart, das Ligas Camponesas, da Igreja Católica e

dos movimentos sociais rurais mostra que os signos não estão instabilizados, refletindo a

58 Informações disponíveis em: <http://www.brasil.gov.br/educacao/2015/04/reitores-relatam-crescimento-das-

universidades-por-meio-do-reuni>. Acesso em: 27 fev. 2017.

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mútua negociação entre infra e superestrutura, como mostramos no segundo capítulo. Na

perspectiva bakhtiniana, se a estabilização desses signos fosse efetivada, o caráter polêmico

que eles carregam em si seria perdido, tornando-os estéreis socialmente.

Este capítulo objetiva, assim, desvelar a multiplicidade de vozes sociais –

independentes e contrárias – presentes no Manual de Operações do Pronera e no Projeto

Político Pedagógico do curso de licenciatura em Ciências Sociais, verificando a polifonia, as

relações dialógicas e, também, a responsividade, as forças centrípetas e centrífugas, os

diferentes pontos de vistas que se relacionam por meio da linguagem e constituem os signos

terra, reforma agrária e educação do campo, bem como a identidade dos acadêmicos sem

terra.

Para demonstrar como a implantação do curso de licenciatura em Ciências Sociais é

um dos fios que compõem a rede discursiva da terra no Brasil e, principalmente, em Mato

Grosso do Sul, iniciaremos o capítulo apresentando a voz teórica a respeito da Polifonia em

Bakhtin para, em seguida, analisarmos a multiplicidade de vozes no Projeto Político

Pedagógico (PPP) do curso.

3.1 Vozes Teóricas

Como demonstramos nos capítulo um e dois, os discursos não são únicos ou

isolados, uma vez que eles estão em constante diálogo e por serem constituídos de enunciados

alheios. Assim como todo discurso, o PPP do curso de Ciências Sociais é constituído por um

emaranhado de outras vozes, sejam consoantes ou discordantes. Isso evidencia que no plano

discursivo do PPP as vozes, mesmo as opositoras, não são apagadas ou silenciadas. Ao

contrário, elas também fazem parte do coro de vozes regido pelo sujeito enunciador. Nessa

perspectiva, a polifonia é um conceito primordial para desenvolvermos as análises deste

capítulo, uma vez que evidencia que os discursos são constituídos de uma multiplicidade de

vozes. Assim, a polifonia nos permite ouvir a variedade de vozes e as consciências

independentes, as vozes plenivalentes e as consciências equipolentes.

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3.1.1 Polifonia

Todo discurso é dialógico, para Bakhtin, não somente no sentido de ser produzido

face a face, mas por ser constituído por milhares de fios de outros discursos, consoantes e,

também, discordantes. Dessa forma, o discurso está sempre a reviver discursos de outras

épocas, de outros lugares e de outros grupos sociais, o que faz dele uma arena onde se

encontram diferentes vozes, pontos de vista e valores axiológicos a respeito de um mesmo

signo. Os signos carregam, então, em seu bojo as mudanças socioeconômicas do grupo do

qual faz parte.

Como orienta Bakhtin (2002, p. 41), as “[...] palavras são tecidas a partir de uma

multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os

domínios”. Na linguagem em uso, viva e concreta, podemos perceber diferentes tons

valorativos sobrepostos nos enunciados, já que eles são “[...] pleno[s] de tonalidades

dialógicas” (BAKHTIN, 2011, p. 298). Por essa perspectiva, observamos que Bakhtin nega o

discurso monológico, o qual aparenta se constituir de apenas uma única voz, por acreditar que

todo dizer é orientado e produzido mediante o outro. Mesmo a forma imóvel da escrita é uma

resposta a alguém ou a alguma coisa. Quem escreve sempre tem em mente o outro, que pode

ser um conhecido, um auditório de interlocutores especialistas em uma área, mas também

pode ser o outro desconhecido. No entanto, mesmo o desconhecido faz parte da construção do

enunciado, pois é para ele que se escreve, no caso. Não há, então, discurso monologizado,

pois todo dizer está ancorado no outro. A esse respeito, Faraco (2009, p. 76), explica que

Bakhtin

[...] se posiciona contra qualquer tendência de monologização da existência

humana, isto é, de negar a existência de um outro eu com iguais direitos e

iguais responsabilidades. Uma atitude monológica ou um modelo

monológico do mundo é autocentrado e insensível às respostas do outro; não

as espera e não reconhece nelas nenhuma força decisiva; pretende ser a

última palavra.

Ao contrapor as modalidades monológica e polifônica, na estrutura do romance,

Bakhtin observa que na primeira categoria o autor concentra em si todo processo de criação,

sendo o centro irradiador da consciência, das vozes e dos pontos de vista da narrativa. Desse

modo, nessa categoria, não há consciência responsiva e isônoma do outro, não existe o tu,

pois o monologo é “[...] algo concluído e surdo à resposta do outro” (BAKHTIN, 2011, p.

348). Já na categoria polifônica, admite-se a consciência do outro, em que este outro é uma

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consciência que participa da interação, não sendo apenas um objeto da consciência de um eu

que tudo controla. No enfoque polifônico, as personagens são concebidas como sujeitos e

como consciências capazes de falar e de responder por si mesmas. A autoconsciência da

personagem é, nessa categoria, um aspecto dominante na formação de sua imagem, o que é

uma posição radicalmente nova do autor.

Conforme Bezerra (2005, p. 193), essa posição nova trata-se “[...] precisamente da

descoberta de um aspecto novo e integral do homem (do indivíduo ou do homem no homem),

que requer um enfoque radicalmente novo do homem, uma nova posição do autor”. O homem

no homem significa o outro no eu, de modo que um constitui o outro: “[...] outro eu a quem

cabe auto-revelar-me livremente” (BEZERRA, 2005, p. 193). É na relação com o outro que o

eu se define, se caracteriza, pois o olhar do outro reflete quem é o eu. Como postula Bakhtin

(2011, p. 341): “[...] Eu tomo consciência de mim e me torno eu mesmo unicamente me

revelando para o outro, através do outro e com auxílio do outro. Os atos mais importantes,

que constituem a autoconsciência, são determinados pela relação com outra consciência (com

o tu).” O homem existe na relação com o “tu”, pois é pelo olhar do outro que o “eu” se

enxerga e se constitui. Assim, entendemos que todo o interior está voltado para as relações

exteriores, mesmo que se queira isolar. A vivência efetiva-se nessa fronteira entre o interior

do “eu” e a exterioridade do “tu”. Nessa visão, a solidão é ilusória, pois o “ser” significa

conviver de algum modo com o outro. Nesse caso, o outro seria seus antepassados ou seus

descendentes ou, inclusive, aquele que se quer negar. É pelo olhar desse outro que o homem

se orienta, norteia suas ações e age sobre o homem e sobre o mundo. O outro é, portanto, uma

figura constante na vida do homem: “O próprio ser do homem (tanto interno quanto externo) é

convívio mais profundo. Ser significa conviver” (BAKHTIN, 2011, p. 341).

A posição radicalmente nova, que concebe o outro em sujeito, tem no dialogismo seu

caráter marcante, uma vez que esse procedimento demonstra que todo homem não se basta a

si, está sempre voltado para seu exterior, ao diálogo com o outro, em que vivências interiores

se encontram, se digladiam e se respondem na tensão criada pelo diálogo, colocando a

vivência interior na fronteira com a vivência do outro, já que o “[...] homem não tem um

território interior soberano, está todo e sempre na fronteira, olhando para dentro de si ele olha

o outro nos olhos ou com os olhos do outro” (BAKHTIN, 2011, p. 341). Bakhtin é contrário à

natureza do homem viver sozinho, pois o “eu” só pode ter vida real em um contexto povoado

por uma multiplicidade de sujeitos interdependentes e isônomos. Ao projetar-se ao outro, o eu

observa que o outro também se projeta em mim em uma comunicação dialógica que faz

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164

emergir a existência de duas multiplicidades de eu, de duas multiplicidades de “[...] infinitos

que convivem e dialogam em pé de igualdade” (BEZERRA, 2005, p. 194).

Bakhtin (2011, p. 330) defende que todo discurso é um

[...] sistema de relações muito complexo e multiplanar. Na relação criadora

com a língua não existem palavras sem voz, palavras de ninguém. Em cada

palavra há vozes às vezes infinitamente distantes, anônimas, quase

impessoais (as vozes dos matizes lexicais, dos estilos, etc.), quase

imperceptíveis, e vozes próximas, que soam concomitantemente.

O discurso é, então, constituído de diferentes vozes, as quais são trazidas de outros

discursos, de outros contextos comunicativos e de outros grupos sociais. Como afirma Tezza

(1988, p. 55), nossas “[...] palavras não são ‘nossas’ apenas; elas nascem, vivem e morrem na

fronteira do nosso mundo e do mundo alheio; elas são respostas explícitas ou implícitas às

palavras do outro, elas só se iluminam no poderoso pano de fundo das mil vozes que nos

rodeiam”. São vozes consoantes e discordantes que se harmonizam pela polifonia, conceito

bakhtiniano responsável por orquestrar a diversidade de vozes independentes e, assim,

produzir diferentes sentidos. Bakhtin (1981, p. 6) sustenta que a polifonia é a “[...] pluralidade

de vozes independentes e não-fundidas, uma polifonia genuína de vozes plenamente válidas”.

Como explica Faraco (2009, p. 77), no mundo polifônico, a “[...] multiplicidade de vozes

plenivalentes e de consciências independentes e não fundíveis tem direito de cidadania –

vozes e consciências que circulam e interagem num diálogo infinito”.

Recordemos que o termo polifonia é utilizado por Bakhtin na obra Problemas das

obras criativas de Dostoiévski, reeditada, em 1963, com um novo título: Problemas da

poética de Dostoiévski, de 1929. A obra dedica-se a examinar os procedimentos formais que

passam pelo romance de Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Bakhtin destaca no romance de

Dostoiévski a forma como a voz do autor e a voz da personagem são orquestradas no mesmo

plano: cada personagem fala por voz própria, sofrendo o mínimo de interferência do autor:

A voz do herói sobre si mesmo e o mundo é tão plena como a palavra

comum do autor; não está subordinada à imagem objetificada do herói como

uma de suas características, mas tampouco serve de intérprete da voz do

autor. Ela possui independência excepcional na estrutura da obra, é como se

soasse ao lado da palavra do autor coadunando-se de modo especial com ela

e com as vozes plenivalentes de outros heróis (BAKHTIN, 2008, p. 3).

Segundo Clark e Holquist (2004, p. 259), o efeito pretendido seria criar um novo

gênero. Bakhtin denomina esse novo gênero de “romance polifônico”, por apresentar variados

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165

pontos de vista, “[...] muitas vozes, cada qual recebendo do narrador o que lhe é devido”.

Conforme Brait (2010, p. 41), o romance polifônico

[...] não se subordina a nenhum esquema histórico-literário existente: todos

os elementos de sua estrutura são determinados pela tarefa de construir um

mundo polifônico e um herói cuja voz se estrutura do mesmo modo como se

estrutura a voz do autor do romance. A personagem não é apenas objeto do

discurso do autor, mas sujeito desse discurso. [grifos da autora].

O termo polifonia é emprestado por Bakhtin da arte musical por designar um tipo de

composição musical em que várias vozes, ou várias melodias, sobrepõem-se simultânea e

independentemente, mas estão relacionadas de forma harmoniosa. Emerson (2003, p. 178)

enfatiza esse aspecto associativo-comparativo da polifonia musical à polifonia dialógica na

literatura, que Bakhtin utilizou com o “[...] objetivo de evocar pelo menos a imagem

(sonoridade) de uma textura de múltiplas harmonias, um tecido de distintos fios entrelaçados

que seja, para os outros, receptivo e convidativo”. Faraco (2009, p. 79) explica que o termo

polifonia, tão maltratado mundo afora, pode ser considerado uma metáfora capaz de recobrir a

utopia bakhtiniana, vista por Bakhtin “[...] materializada no projeto artístico de Dostoievski –

um mundo de vozes plenivalentes em relações dialógicas infindas”.

Para o filósofo da linguagem, polifonia apresenta características específicas,

visualizadas e definidas por seus estudos da obra de Dostoiévski. O autor de romances russo é

considerado por Bakhtin um dos maiores inovadores no campo da forma artística por ter

criado um novo pensamento artístico chamado de tipo polifônico, categoria que coloca em

jogo uma multiplicidade de vozes ideologicamente distintas, resistindo ao discurso do autor.

A importância dessa criação, segundo Bakhtin, vai além dos limites da criação de romances,

abrangendo alguns princípios basilares da estética europeia. A respeito da estrutura do

romance de Dostoiévski, Bakhtin (2011, p. 338) afirma que a

[...] estrutura totalmente nova da imagem do homem é a consciência do

outro, rica em conteúdo e plenivalente, não inserida na moldura que conclui

a realidade, consciência essa que não pode ser concluída por nada (nem pela

morte), pois seu sentido não pode ser solucionado ou abolido pela realidade

(matar não significa refutar).

O conceito de polifonia, questão central de Problemas da poética de Dostoiévski, é

estendido por Bakhtin a todo gênero romance, pois as múltiplas vozes sociais ora se

orquestram, ora se digladiam impondo-se ao autor como forma uma de mostrar a diversidade

dos contextos sociais a que representam na escrita. “[...] Dostoiévski não cria escravos mudos

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166

(Zeus), mas pessoas livres, capazes de colocar-se lado a lado com seu criador, de discordar

dele e até rebelar-se contra ele” (BAKHTIN, 2008, p. 4).

Nesse viés, a polifonia é parte imprescindível de toda enunciação, já que em um

mesmo texto existem variadas vozes que se expressam e pelo fato de todo discurso ser

formado por diferentes discursos. Faraco (2009, p.60) lembra que, para Bakhtin, em seu

manuscrito O problema do texto,

[...] todo dizer é internamente dialogizado: é heterogêneo, é uma articulação

de múltiplas vozes sociais (no sentido em que hoje dizemos ser todo discurso

heterogeneamente constituído), é o ponto de encontro e confronto dessas

múltiplas vozes. Essa dialogização será ou não claramente mostrada, isto é, o

dizer alheio será ou não destacado como tal no enunciado.

Bakhtin (2011, p. 339) sustenta que “[...] Dostoiévski destrói o antigo plano artístico

da representação do mundo. Pela primeira vez a representação se torna pluricadenciada”. Essa

constatação fundamenta-se em características associadas à polifonia, como realidade em

formação, inconclusibilidade, não acabamento e dialogismo. A inconclusibilidade e o não

acabamento são caracterizados como decorrentes da “[...] condição do romance como um

gênero em formação, sujeito a novas mudanças, cujas personagens são sempre representadas

em um processo de evolução que nunca se conclui” (BEZERRA, 2005, p. 191). A obra de arte

é, assim, viva e está aberta a novos diálogos e a novas interações: “[...] a obra de arte nunca

chega a ser acabada” (CLARK; HOLQUIST, 2004, p. 262). Da mesma forma também são

todos os textos, pois a cada leitura e a cada novo interlocutor, é possível construir novos

efeitos de sentido.

O dialogismo e a polifonia estão associados ao caráter amplo e multifacetado do

universo do romance, à presença de um grande número de personagens, bem como “[...] à

capacidade do romancista para recriar a riqueza dos seres e caracteres humanos traduzida na

multiplicidade de vozes da vida social, cultural e ideológica representada” (BEZERRA, 2005,

p. 191-2). Vale ressaltarmos que o dialogismo como vimos anteriormente, é um aspecto

inerente e constitutivo da linguagem, já que o homem não se separa das relações com o outro,

seja o outro do passado ou o outro do presente. Como salienta Bakhtin (2011, p. 348):

[...] A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo:

interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. nesse diálogo o homem participa

inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o

espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra, e essa

palavra entra no tecido dialógico da vida humana, no simpósio universal.

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167

O dialogismo é condição inerente da linguagem e de todo discurso, pois, ao enunciar

é impossível não tocar no já-dito, no já explicado e no já descrito. Assim, o enunciado está

repleto de tonalidades dialógicas, ou seja, é tecido a partir de milhares de fios discursivos. Por

isso, para entendê-lo, é necessário levar em consideração esse entrelaçamento entre os

discursos. Nessa perspectiva, todo enunciado faz parte da cadeia de comunicação discursiva,

pois não há a primeira ou a última palavra, pois todo enunciado é tecido mediante outros

enunciados: aqueles que o precederam e aqueles que o sucederão, ou seja, “[...] o enunciado,

como a mônada de Leibniz, reflete o processo do discurso, os enunciados do outro, e antes de

tudo os elos precedentes da cadeia (às vezes os mais imediatos, e vez por outra até os muito

distantes – os campos da comunicação cultural)” (BAKHTIN, 2011, p. 299). Observamos que

o filósofo da linguagem sustenta que qualquer que seja o objeto do qual se queira enunciar,

ele não é pela primeira vez objeto do discurso, isso porque o objeto já está “[...] ressalvado,

contestado, elucidado e avaliado de diferentes modos; nele se cruzam, convergem e divergem

diferentes pontos de vista, visões de mundo, correntes” (BAKHTIN, 2011, p. 300). Como

mostramos nos capítulos anteriores, os enunciados a respeito da terra, da reforma agrária e da

educação do campo fazem parte da cadeia discursiva sobre a situação fundiária no Brasil, a

qual já é delineada no Brasil Colônia. Da mesma forma, o PPP do curso de Ciências Sociais e

os relatos pessoais, assim como todos os enunciados, também são constituídos mediante o já-

dito. São enunciados que se constituem dialogicamente com outros enunciados, a fim de que

possa reafirmá-los, ressaltá-los, fundamentá-los, refutá-los, desmascará-los, como no caso dos

enunciados a respeito da questão fundiária no Brasil, sejam eles a favor ou contra a reforma

agrária e à justiça social. Todo enunciado é, assim, por natureza dialógico, porque, como

sustenta Bakhtin (2002, p. 86):

[...] todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o qual

está voltado sempre, por assim dizer, já desacreditado, contestado, avaliado,

envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos

de outrem que já falaram sobre ele. O objeto está amarrado e penetrado por

idéias gerais, pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações.

Orientado para seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente

perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações.

Já a polifonia tem como traço marcante a posição do autor como o regente de uma

multiplicidade de consciências, de vozes interdependentes e iguais que constituem o processo

dialógico. O autor rege vozes que ele cria e recria, mas permite que elas se manifestem de

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168

modo autônomo e revelem no homem a outra consciência, o outro “eu” infinito e inacabável

(BEZERRA, 2005). Como bem observa Brait:

A consequência do tratamento dialógico recebido pelo herói é que a palavra

do autor se constitui como palavra sobre alguém presente, que escuta e

responde, participa como agente do discurso, não como simples objeto do

mundo do autor. A palavra do autor é dialogicamente orientada para o herói,

é discurso sobre o discurso: ele não fala do herói, mas com o herói. (2010, p.

43).

Observamos, então, um ativismo por parte do autor e não uma passividade. Pelo viés

bakhtiniano, entendemos o autor como “[...] profundamente ativo, mas o seu ativismo tem um

caráter dialógico especial” (BAKHTIN, 2011, p. 339), pois não se é ativo diante de um objeto

morto e inerte, mas se é ativo em relação à consciência do outro, a qual é viva e se coloca na

arena para responder, desafiar, denunciar, concordar ou discordar. Assim, na cadeia da

comunicação verbal, o autor permite que o outro se abra até o fim, podendo esse outro

condenar-se ou responder a si mesmo em um movimento tenso de resistência à consciência do

outro.

A polifonia caracteriza-se pelos fios dialógicos de vozes de outros que constituem o

texto, de forma a completar ideias, a responder outras. Bezerra (2005, p. 194-195) define a

polifonia

[...] pela convivência e pela interação, em um mesmo espaço do romance, de

uma multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis,

vozes plenivalentes e consciências eqüipolentes, todas representantes de um

determinado universo e marcadas pelas peculiaridades desse universo [...].

Importa destacarmos que as vozes e as consciências não são objeto do discurso do

autor, mas são os próprios sujeitos dos discursos. A consciência do eu é a consciência do

outro, que não é objeto, não se fecha, porém está sempre aberta à interação com as demais

consciências, sendo apenas no processo de interação que se revela e mantém sua

individualidade, sua imiscibilidade: “[...] Essas vozes possuem independência excepcional na

estrutura da obra, é como se soassem ao lado da palavra do autor, combinando-se com ela e

com as vozes de outras personagens” (BEZERRA 2005, p. 194-195).

Nas palavras de Barros (1999, s/p), a polifonia caracteriza “[...] um certo tipo de

texto, aquele em que se deixam entrever muitas vozes, por oposição aos textos monofônicos,

que escondem os diálogos que os constituem”. Assim, visualizamos no discurso o resultado

do embate, do contato de várias vozes sociais e de pontos de vista diferentes ou semelhantes.

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São vozes que, em vezes, deixam-se escutar, em outras, mascaram-se, escondendo-se nos fios

do enunciado, construindo novos sentidos para o texto. São essas vozes que objetivamos

descortinar, nas próximas análises, pois acreditamos que ao ecoarem elas revelam sentidos

constitutivos dos signos terras, reforma agrária e educação do campo.

3.2 Vozes Histórico-sociais

A luta dos trabalhadores rurais sem terra e dos movimentos sociais, mesmo com a

entrada nos lotes, somente aumenta, pois outras demandas surgem, como a educação. Porém,

no governo de Fernando Henrique Cardoso, a preocupação está em diminuir o número de

analfabetos no campo, o que não corresponde com as necessidades dos filhos e filhas de

camponeses que também querem acessar, além do ensino básico, o ensino superior e a pós-

graduação. É somente no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva que o Pronera

garante o acesso ao ensino superior, por meio de cursos voltados especificamente para

assentados de reforma agrária, como é o caso do curso em análise. Desse modo, observamos

que a educação para assentados também faz parte do continuo da história da terra no Brasil,

pois conhecimento e cultura são sinônimos de poder na sociedade capitalista. Assim, os

governos conservadores e seus apoiadores objetivam garantir que a ignorância perdure entre

os camponeses, no entanto movimentos sociais rurais, governos populares e professores de

universidades, cujas pesquisas e reflexões estão voltadas para os problemas da terra no Brasil,

objetivam criar caminhos para que os trabalhadores rurais cheguem à Universidade e nela

permaneça, estabelecendo uma ligação estreita entre os conhecimentos do campo e os da

universidade.

3.2.1 Manual de Operações do Pronera

Na perspectiva bakhtiniana, a palavra é o elemento capaz de assimilar qualquer fase

transitória da mais íntima as mais rápidas mudanças sociais (BAKHTIN, 2002). Por isso, em

um estudo bakhtiniano, é necessário analisar o discurso dialogicamente, percebendo as vozes

que nele ecoam e, também, examinando como o contexto, a materialidade e a vida está

inserida no enunciado. Por isso, Bakhtin (2011, p. 300) salienta que “[...] o enunciado é um

elo na cadeia da comunicação discursiva e não pode ser separado dos elos precedentes que o

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determinam tanto de fora quanto de dentro, gerando nele atitudes responsivas diretas e

ressonâncias dialógicas”. Por esse viés, após percorrer alguns dos fenômenos histórico-sociais

que influenciaram o problema da terra no Brasil, objetivamos agora perceber quais as vozes

que compõem o PPP do curso de Ciências Sociais.

O fato de as vozes serem ideologicamente distintas é fundamental, neste estudo, já

que o PPP do curso traz vozes que não são apenas as dos movimentos sociais, as dos sem

terra, as da ala progressista da Igreja Católica (Teologia da Libertação e das Comunidades

Eclesiais de Base), as de pesquisadores da reforma agrária (Universidade), mas também as

dos latifundiários, as das leis contrárias aos camponeses, a dos políticos conservadores, as das

áreas conservadoras da Igreja Católica. São vozes que dentro do seu grupo social orquestram-

se e com seu grupo adversário digladiam-se, impondo-se ao autor como uma forma de mostrar

a diversidade dos contextos sociais que se representam no discurso.

Bakhtin (2008) postula que Dostoiévski não cria sujeitos mudos, mas pessoas livres,

as quais são capazes de estar lado a lado com seu criador, de discordar dele e, inclusive,

rebelar-se contra ele, o que caracteriza o romance polifônico. Nesse viés, a polifonia é parte

imprescindível de toda enunciação, já que em um mesmo texto existem variadas vozes que se

expressam e todo discurso é formado por diferentes discursos. Faraco (2009, p. 60) lembra

que, para Bakhtin, em seu manuscrito O problema do texto, “[...] todo dizer é internamente

dialogizado: é heterogêneo, é uma articulação de múltiplas vozes sociais (no sentido em que

hoje dizemos ser todo discurso heterogeneamente constituído), é o ponto de encontro e

confronto dessas múltiplas vozes”.

Notamos que pensar a criação de um curso específico para assentados rurais infere

refletirmos que essa necessidade nasce de um contexto em que várias vozes se sobrepõem,

pois os cursos universitários já existem, mas sua existência não contempla sujeitos como os

assentados sem terra, os quais negam a tradição dos conteúdos tradicionais das universidades

e da escola e, também, um ensino voltado para o individualismo, em que apenas o estudante

ganha com a sua formação. Ao navegarem contra a corrente do capitalismo, os assentados

também são excluídos dos cursos superiores, pois a eles não é dada a oportunidade de estudar

conforme as suas especificidades, como, tempo de trabalho no campo, conteúdo desvinculado

da realidade e localização dos assentamentos distantes das universidades. Essas são algumas

barreiras que o ensino superior impôs à classe minoritária capensina sendo, portanto, um

privilégio quase que exclusivo das classes mais abastadas. Desse modo, não ter assentados de

reforma agrária nos bancos das universidades no Brasil é um efeito das forças ideológicas da

classe dominante que vê no estudo o poder e a mudança. Por isso, os movimentos sociais

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171

rurais precisam ampliar suas lutas, de forma que a terra é necessária, mas não é a única

bandeira de luta, pois a educação do campo de qualidade e a entrada do assentado no curso

superior passam a ser demandas dos trabalhadores rurais sem terra.

A primeira ação que envolve a formação superior dos assentados ocorre com a

criação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), em 1997,

durante a realização do I Encontro Nacional das Educadoras e Educadores da Reforma

Agrária (ENERA), em Brasília. Esse encontro é resultado de uma parceria entre o Grupo de

Trabalho de Apoio à Reforma Agrária da Universidade de Brasília (GT-RA/UnB)59

, o

Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), e conta também com a participação do

Fundo das Nações Unidas para Infância (UNICEF), do Fundo das Nações Unidas para a

Ciência e Cultura (UNESCO) e da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Podemos notar que as parcerias são essenciais para que os movimentos sociais empreendam

ações em favor das demandas dos acampados e assentados sem terra. Assim como, nas

décadas de 1940 e 1950, as Ligas Camponesas já perceberam que a educação rural não atende

à formação política dos estudantes camponeses, nesse encontro em Brasília, evidencia-se a

necessidade de trabalhos voltados à educação do campo, tendo em vista a oferta deficitária e a

ausência de políticas específicas para essa área no Plano Nacional de Educação. Notamos que

o signo educação rural carrega em si um sentido de ensino deficitário, uma vez que faltam

políticas específicas para garantir um ensino voltado à realidade dos estudantes do campo e da

sua luta pela reforma agrária. O grupo diante do contexto político

[...] examinou as possíveis linhas de ação, decidiu-se dar prioridade à

questão do analfabetismo de jovens e adultos, sem ser excluído o apoio a

outras alternativas. As razões para essa opção foram:

o alto índice de analfabetismo e os baixos níveis de escolarização entre os

beneficiários do Programa de Reforma Agrária;

a preferência do Ministério da Educação pela política de reforço do ensino

regular;

a tendência verificada entre os dirigentes municipais de considerar os

assentamentos áreas federais e, portanto, fora do âmbito de sua atuação

(BRASIL, 2004, p. 13).

59 Estiveram presentes nesse encontro representantes das universidades de Brasília (UnB), Universidade Federal

do Rio Grande do Sul (UFTGS), Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Universidade Regional do

Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), Universidade Federal de Sergipe e Universidade Júlio de

Mesquita Filho (Unesp).

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172

O signo educação do campo recebe sentidos contrários do Ministério da Educação60

,

em 1997, ao que é pensado pelos assentados sem terra e pelos movimentos sociais rurais. Ao

preferir investir na “educação regular”, o Governo Federal da época assumiu uma postura de

homogeneização do ensino e dos estudantes no Brasil, pois não leva em consideração as

diferenças entre os grupos de brasileiros. É um trabalho responsivo por parte do governo ao

negar a existência de grupos diferentes no Brasil. Podemos inferir que, assim como todo dizer

é parte integrante de uma discussão cultural e histórica, a preocupação do Governo do então

Presidente Fernando Henrique Cardoso com a educação básica também é cultural e histórica,

uma vez que pretende mais uma vez negar aos trabalhadores rurais a educação de qualidade e

o acesso ao ensino superior. Dar prioridade ao analfabetismo poderia ser umas das estratégias

para a libertação dos educandos. Mas, neste caso, ao contrário, é uma tática para acentuar ao

trabalhador o seu lugar de oprimido, uma vez que se trata de programas voltados a alfabetizar

no modelo “Pedro viu a asa”, já criticado por Paulo Freire (1975) e preocupados com índices

internacionais a serem alcançados. Valorizar a alfabetização seria concebê-la como “[...] um

ato de criação, capaz de desencadear outros atos criadores. Numa alfabetização em que o

homem, porque não fosse seu paciente, seu objeto, desenvolvesse a impaciência, a vivacidade,

características dos estados de procura, de invenção e reivindicação” (FREIRE, 1975, p. 104).

Desse modo, programas de alfabetização automatizados são resultado de uma força centrípeta

empreendida para unificar e centralizar as demandas da educação do campo, de forma a

naturalizar os problemas da educação do campo e calar aqueles que possam reclamar. Além

disso, como postula Paulo Freire (1991, p. 70), não podemos ter a ilusão de que “[...] o fato de

saber ler e escrever, por si só, vá contribuir para alterar as condições de moradia, comida e

mesmo de trabalho [...] essas condições só vão ser alteradas pelas lutas coletivas dos

trabalhadores por mudanças estruturais da sociedade”.

As lutas coletivas em torno da educação superior para trabalhadores rurais veem seus

resultados, em 2004, com o governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando se

priorizaram todos os níveis de educação, o que se evidencia na publicação do Manual de

Operações do Pronera (BRASIL, 2004). Uma atenção diferente é notada com relação à

educação campo por parte do Governo Federal ao enfatizar diferentes níveis de educação e

não somente a alfabetização de jovens e adultos, no caso do campo. O Pronera é uma política

pública, resultado da ação do governo e de movimentos populares, de educação do campo,

60 Período de governo do Presidente Fenando Henrique Cardoso (1995-2002).

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173

criado para ampliar os níveis de escolarização dos trabalhadores rurais assentados (BRASIL,

2004, p. 27). O signo educação do campo ganha uma nova roupagem que se refere ao

atendimento não apenas do ensino básico, mas também do nível superior, o que cria vias para

democratizar o ensino superior no Brasil. Podemos perceber que as forças centrífugas

trabalham intensamente para mudar o cenário de exclusão do homem do campo ao ensino

superior. Como ressalta Bakhtin (2002, p. 82), “[...] ao lado das forças centrípetas caminha o

trabalho contínuo das forças centrífugas da língua, ao da centralização verbo-ideológica e da

união caminham ininterruptos os processos de descentralização e desunificação”. Se de um

lado as forças centrípetas não cessam de buscar estratégias para naturalizar os problemas das

minorias no Brasil, de outro lado um trabalho constante dos movimentos sociais, como MST e

CPT, de pesquisadores universitários, de partidos políticos populares desenvolve-se para

desnaturalizar e para criticar a injustiça social.

Em parceria com movimentos sociais, sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras

rurais, instituições públicas de ensino, instituições comunitárias de ensino sem fins lucrativos

e governos estaduais e municipais, o Pronera pretende atuar como um instrumento de

democratização do conhecimento no campo, propondo e apoiando projetos de educação que

utilizem metodologias voltadas ao desenvolvimento das áreas de assentamento (BRASIL,

2004). Notamos que a característica da “parceria” está presente no Programa, pois ele é

pensado em conjunto com os movimentos sociais pela terra, os quais já têm como caráter

principal a união e a coesão, herança das Ligas Camponesas e do trabalho das Comunidades

Eclesiais de Base.

O Pronera propõe cursos de educação básica, técnico profissionalizante, superior e de

especialização, bem como promove capacitações para educadores que atuam nas escolas

como professores e coordenadores locais (BRASIL, 2004). Outra resposta é dada aos

trabalhadores sem terra e aos movimentos sociais ao ver a educação em níveis mais amplos,

chegando à Especialização, o que demonstra uma preocupação com a educação para

transformação social. Trata-se de um Programa que se assume como político, por se associar a

processos sociais que almejam a transformação da sociedade atual, o que é uma característica

do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Assim, o Programa leva em

consideração a diversidade cultura e socioterritorial, como também a gestão democrática e a

organização local. Percebemos que, pensar a educação do campo como um projeto político,

não é uma ideia nova, já que é pensada pelas Ligas Camponesas, assim como pelo MST, CPT

e CEBs, o que evidencia que nenhuma palavra é a primeira ou a última, mas ela faz parte da

cadeia discursiva acerca da educação do campo.

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174

Como uma política pública, o Pronera assenta-se na gestão participativa e na

descentralização das ações das instituições públicas envolvidas no setor da educação

(BRASIL, 2004), objetivando trazer para as discussões os grupos sociais envolvidos, no caso

os trabalhadores rurais sem terra. O signo educação do campo carrega em si o caráter de

parceria para que um objetivo seja alcançado. Podemos refletir que a voz de Paulo Freire

(1996), ao dizer que “ninguém educa ninguém e ninguém se educa sozinho”, é uma das vozes

que articulam a polifonia de vozes na concepção do Pronera. Trata-se de uma rede de vozes

consoantes que retomam a preocupação das Ligas Camponesas com a formação política dos

trabalhadores rurais. A luta pela educação do campo não é um acidente inesperado na história

social, ela já vem de mãos dadas com a luta pela terra e pela reforma agrária já iniciada desde

a chegada dos portugueses ao Brasil, quando índios forram expulsos de suas terras e, ao

resistirem, viram balas de canhões, como expusemos no capítulo um. Este caminho também é

percorrido por pequenos posseiros e lavradores e mais tarde pelos foreiros das Ligas

Camponesas. Com a entrada da Igreja e com seu aporte, surgiram os movimentos sociais no

final da década de 1970, os quais empreendem lutas contra as forças sociais e políticas da

classe dominante. É possível percebermos que a identidade dos sem terras sempre esteve

marcada pela realidade de luta, de opressão e de busca pela liberdade, o que dialoga com saga

vivenciada pelo povo de Moisés ao fugir do Egito em busca da terra prometida.

No que se refere aos princípios e pressupostos teórico-metodológicos dos projetos,

alerta-se aos proponentes que todas as propostas devem ter como alicerce “[...] a diversidade

cultural, os processos de interação e transformação do campo, a gestão democrática, o acesso

ao avanço científico e tecnológico voltados para o desenvolvimento das áreas de Reforma

Agrária” (BRASIL, 2004, p. 27). As práticas devem ser orientadas pelos princípios do

diálogo, da práxis e da transdisciplinaridade. De acordo com o princípio do diálogo, é

necessário assegurar uma prática de ensino-aprendizagem que respeite a diversidade cultural

do grupo e que valorize os diferentes saberes e a produção coletiva do conhecimento. No que

tange ao princípio da práxis, o Pronera afirma ser necessário que as propostas tenham como

base o “[...] movimento ação-reflexão-ação e a perspectiva de transformação da realidade”

(BRASIL, 2004, p. 27), no sentido de que o processo de ensino-aprendizagem valorize ações

sociais concretas e envolva os educandos nessas ações, contribuindo, assim, para a formação

de cidadãos críticos, capazes de interpretar a realidade e aprofundar-se teoricamente, a fim de

realizar uma ação transformadora. Esse princípio dialoga com Paulo Freire (1996, p. 44)

quando o autor defende que “[...] Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra,

no trabalho, na ação-reflexão”. Dessa maneira, podemos entender que aos trabalhadores rurais

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175

é garantida a oportunidade de falar, de criticar e de realizar uma reflexão acerca do seu

contexto. Assim, a educação é libertadora, pois é “[...] um processo pelo qual o educador

convida os educandos a reconhecer e desvelar a realidade criticamente” (FREIRE, 1985, p.

125). Dessa forma, os educandos não são passivos nem objetos, mas são participantes ativos

da construção da cidadania.

Já o princípio da transdisciplinaridade prevê que o processo de ensino-aprendizagem

articule todos os conteúdos e saberes locais, regionais e globais, de forma que os educandos

possam transitar entre os campos de conhecimentos e sejam capazes de identificar suas

necessidades e potencialidades, estabelecendo relações contempladoras da diversidade do

campo em todos os seus aspectos: “[...] sociais, culturais, políticos, econômicos, de gênero,

geração e etnia” (BRASIL, 2004, p. 27). Observamos aqui a retomada dialógica dos

princípios metodológicos das CEBs: ver, julgar e agir. Os participantes das CEBs são levados

a enxergar em seu entorno as demandas que enfrentam e depois a levá-las para as reuniões de

grupo, a fim de serem discutidas, julgadas, com os outros membros e religiosos. Nessas

discussões, tentam encontrar um caminho para pensar soluções, sem necessariamente

desenvolverem ações. É um processo de compreensão ativa, em que o trabalhador participa

intensamente do processo de compreensão que se efetiva na ação de enxergar o problema e

para ele lançar uma contrapalavra, ou seja, buscar suas causas e possíveis soluções. Para

Bakhtin (2002, p. 132), a “[...] compreensão é uma forma de diálogo; ela está para a

enunciação como uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do

locutor uma contrapalavra”. Os problemas dos trabalhadores rurais, como também os dos

membros das CEBs são, portanto, novos objetos a serem refletidos e compreendidos a partir

de uma vivência já conhecida e de informações trazidas pelos membros como também pelos

religiosos. Mediante a reflexão dos problemas, é possível julgá-los, contrapor-se a eles de

forma ativa e pensar em soluções.

A contemplação desses princípios efetiva-se pelo uso de instrumentos didático-

pedagógicos de uma educação “[...] problematizadora, dialógica e participativa” (BRASIL,

2004, p. 27), que contemplam ações, como a investigação acerca dos temas que mobilizam a

comunidade, os quais possam transformar-se em eixos temáticos estruturadores do currículo;

a contextualização crítica desses temas geradores, levando a uma análise histórica, relacional

e problematizadora da realidade; como também a processos de aprendizagem-ensino

relacionados a atividades concretas de “superação das situações-limite do grupo” (BRASIL,

2004, p. 27). Notamos um diálogo consoante com o pensamento de Paulo Freire, ao

contemplar esses três aspectos como princípios de instrumentos didático-pedagógicos, com o

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176

conceito de educação problematizadora, a qual consiste em um “ato cognoscente” (FREIRE,

1996). Um dos fundamentos da educação problematizadora é esclarecer os educandos de seu

papel no mundo, levando-os a perceberem a presença da opressão para, assim, poderem lutar

contra ela. Em um movimento dialógico, o MST (1996, p. 6-7) destaca também entre seus

princípios filosóficos a Educação para Ação, que se volta para a formação de sujeitos capazes

de intervir no contexto social e político, ou seja, objetiva

[...] preparar sujeitos capazes de intervenção e de transformação prática

(material) da realidade. [...] Nossa educação deve alimentar o

desenvolvimento da chamada ‘consciência organizativa’, que é aquela onde

as pessoas conseguem passar da crítica à ação organizada de intervenção

concreta na realidade.

De acordo com o Manual de Operações do Pronera (2004), dois pilares básicos

devem alicerçar os cursos superiores do Pronera, o caráter sistemático e o político. O primeiro

envolve planejamento, execução e avaliação do processo de ensino-aprendizagem mediante a

pesquisa-ação-reflexão; o segundo aponta para uma “[...] intencionalidade a favor da inclusão

social da melhoria das condições de vida do(a) assentado(a) e da comunidade entorno”

(BRASIL, 2004, p. 47). O ensino superior não é uma oportunidade individual, para os

trabalhadores sem terra, pois a sua formação contribui para a melhoria do estado de vida nos

assentamentos rurais de reforma agrária, ou seja, da coletividade. Percebemos, portanto, o

princípio da coletividade, que move os trabalhadores rurais e os movimentos sociais, aspecto

herdado das Ligas Camponesas, das CEBs e da Teologia da Libertação, que tinham como um

dos princípios o combate ao pensamento individualista do capitalismo vigente. Esse princípio

também norteia o PPP do curso de Ciências Sociais da UFGD, pois já em sua gênese a

parceria está presente. Desse modo, os conteúdos, a metodologia e a avalição são pensados no

coletivo formado por professores, representantes discentes e dos movimentos sociais rurais.

Ademais, o curso em análise é realizado em um momento político que possibilita à minoria

acessar diversos direitos até então negados, como o acesso à universidade por meio da

ampliação do número de instituições federais pelo Brasil.

Dialogando com o Manual de Operações do Programa Nacional de Educação na

Reforma Agrária, o curso de Ciências Sociais é uma voz que se levanta contra a falta de

acesso dos camponeses à educação superior e à educação de qualidade. Além disso, é uma

voz que responde a um ensino tradicional e elitista, muito presente ainda nas universidades

brasileiras. O PPP evidencia, assim, um respeito às demandas apresentadas pelos

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trabalhadores rurais, às suas especificidades, bem como a toda trajetória sócio-histórica

vivenciada pelos camponeses durante suas lutas pela terra, pela reforma agrária e pela

educação do campo, da qual também o curso faz parte.

3.2.2 PPP (Projeto Político Pedagógico) do Curso de Licenciatura em Ciências Sociais

O curso de graduação de licenciatura em Ciências Sociais é implantado na

Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), em forma de projeto, em julho de 2008,

fazendo parte da Faculdade de Ciências Humanas (FCH). Por ser um curso realizado em

parceria com os movimentos sociais rurais de Mato Grosso do Sul (MS) e, também, por uma

demanda apresentada por eles, podemos inferir que a escolha por esse curso deva-se ao fato

de o profissional de Ciências Sociais ser um interlocutor nos processos sociais de um mundo

em constante transformação e, também, um enunciador dessas mudanças nas escolas e em

outros espaços sociais. O PPP do curso aponta que os educadores político-sociais são

profissionais responsáveis por “compreender e intervir no mundo contemporâneo” (UFGD,

2007, p. 8), cabendo a eles analisar as mudanças políticas, econômicas, sociais e culturais

encontradas na sociedade atual. Esse profissional caracteriza-se por sua visão crítica realizada

por meio de conhecimentos interdisciplinares acerca dos fenômenos sociais, políticos,

culturais e econômicos.

Desse modo, o professor de Ciências Sociais pode, além de desenvolver ações na

escola, atuar em movimentos sociais, organizações governamentais e não governamentais e

partidos políticos. Isso porque o curso forma um professor capacitado para atuar em diferentes

frentes dentro e fora dos assentamentos. Ademais, outro fator chave que devemos considerar é

o aceite da Universidade em desenvolver um curso com características diferenciadas, o que

ocorre pelo fato de na Faculdade de Ciências Humanas (FCH)61

da UFGD haver diversos

professores realizando pesquisas em assentamentos de reforma agrária e em constante

interação com os movimentos sociais rurais de Mato Grosso do Sul62

, o que já os habilitaria a

61 Faculdade de Ciências Humanas (FCH), criada, em 21 de setembro de 2006, pela Portaria nº 432

Reitoria/UFGD, nasceu do então Departamento de Ciências Humanas (DCH), instituído em 1989 pela UFMS.

Com a implantação da UFGD, a FCH passou a ter os cursos de graduação em Ciências Sociais (Bacharelado),

Geografia (Licenciatura e Bacharelado), História (Licenciatura) e Psicologia (Bacharelado). 62

Entre os trabalhos desenvolvidos pelos professores da FCH, destaca-se o grupo Sociedades e Culturas nas

fronteiras de Mato Grosso do Sul, certificado pelo CNPq, o qual atua em assentamentos de reforma agrária. Esse

grupo é composto por pesquisadores colaboradores de diferentes áreas do conhecimento de três instituições de

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conduzir um processo diferenciado. Outro aspecto a ser destacado é o fato de a reitoria ser

administrada também por um grupo de professores da Faculdade de Ciências Humanas

(FCH), o que oferece maior respaldo político para que o projeto do curso acontecesse. Não

podemos deixar de relembrar que, em 2007, momento em que o curso está sendo gestado, o

Pronera e o Governo Federal também se preocupam em ampliar o ensino superior para

assentados de reforma agrária. Dados do Incra mostram que há um aumento significativo de

vagas para assentados de reforma agrária a partir de 2003. Para o ensino médio e superior, são

atendidos, entre 1998 e 2002, 1.874 assentados; já no período de 2003 a 2010 esse número

salta para 46.891 assentados, o que demonstra a existência de uma política federal preocupada

em formar os assentados em todos os níveis de ensino.

Essa rede política dos movimentos sociais, da universidade e do governo federal está

expressa em um dos objetivos do curso, segundo o qual, a UFGD se responsabiliza por “[...]

proporcionar conhecimentos emancipadores que possam resultar no empoderamento dos

sujeitos sociais da reforma agrária” (UFGD, 2007, p. 4). Esses conhecimentos emancipatórios

querem levar os assentados a uma libertação humana. Se é necessária a libertação, é porque

existe luta de classes, no caso a luta da classe de trabalhadores rurais sem terra e os

latifundiários e políticos conservadores.

A realização do curso é feita pela UFGD em parceria com:

INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária –

superintendência de Dourados – MS;

IMAD – Instituto de Meio Ambiente e Desenvolvimento;

COAAMS – Centro de Organização e Apoio aos Assentamentos de Mato

Grosso do Sul;

CPT – Comissão Pastoral da Terra;

CUT – Central Única dos Trabalhadores;

FETAGRI/MS – Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Mato Grosso

do Sul;

MMC – Movimento de Mulheres Camponesas de Mato Grosso do Sul;

ensino superior de Dourados, a saber: a Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Universidade

Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) e Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do

Pantanal (UNIDERP). O objetivo desse grupo de pesquisa é “[...] estudar as questões de fronteira, mais

especificamente os movimentos sociais e políticos” presentes na região (UFGD, 2007, p. 15). Os pesquisadores

ainda visam a estreitar o diálogo com países vizinhos de modo a ampliar as pesquisas na América Latina,

principalmente no que se refere às lutas dos movimentos sociais, cujas dimensões articulam-se com os grupos

campesinos de fronteira, alicerçando uma atuação em redes (UFGD, 2007).

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179

MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra;

FAF – Federação de Agricultura Familiar de Mato Grosso do Sul (UFGD,

2007).

O Incra é um órgão federal, vinculado ao Ministério de Desenvolvimento Agrário,

que busca com o projeto de reforma agrária a implantação de um modelo de assentamento

rural baseado na “viabilidade econômica, na sustentabilidade ambiental e no desenvolvimento

territorial”63

. O órgão executa as ações do Pronera, possibilitando a viabilização dos recursos

e o seu repasse, bem como emissão de documentos certificando que os candidatos ao curso

são assentados.

Já o IMAD é parceiro que trabalha na região da Grande Dourados, observando a

necessidade de diversificar os processos agroindustriais, o que precisa ser revisado tendo

como base a conservação e a gestão dos recursos naturais, os quais foram responsáveis pelo

crescimento inicial da região de Dourados, mas que agora estão ameaçados e enfraquecidos

pelo uso sistemático e inadequado de insumos, defensivos agrícolas e agricultura intensiva.

Diante disso, a parceria do IMAD está estabelecida pelos princípios da agroecologia. A

presença do IMAD revela a retomada da voz da Via Campesina que, ao congregar pequenos e

médios agricultores de diversos países, objetiva lutar pela preservação ambiental, pela

biodiversidade, pelos conhecimentos tradicionais das culturas locais. Do mesmo modo, os

movimentos sociais rurais também incorporam essa voz de forma que a preocupação com o

meio ambiente é uma de suas bandeiras. Notamos que a preocupação do Partido Comunista

Brasileiro (PCB) com o meio ambiente, no discurso proferido pelo deputado Carlos Prestes,

apresentado no segundo capítulo, em 1946, não é esquecido, mas é retomado pela rede

discursiva de movimentos sociais e parceiros atualmente, o que demonstra que a história está

sempre inconclusa.

O COAAMS juntamente com os demais movimentos sociais rurais, CPT, CUT,

FETAGRI/MS, MMC, MST e FAF são movimentos sociais rurais atuantes no estado de Mato

Grosso do Sul (MS) aos quais os assentados estão vinculados. Vale destacar que a proposta do

curso de Ciências Sociais é levada incialmente por dois desses movimentos sociais: CPT e

MST, com o objetivo de que o curso fosse oferecido somente para assentados vinculados a

esses movimentos. No entanto, os professores da Faculdade de Ciências Humanas apontaram

a necessidade de organizar um curso com assentados de todos os movimentos rurais do

63 Disponível em <http://www.incra.gov.br/reforma_agraria> Acesso em: 27 fev. 2016.

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Estado, contemplando diferentes trajetórias de luta e de ideologias. A proposta dos

professores é aceita e os outros movimentos entraram na organização do curso. Desse modo,

entendemos a razão de serem estes os movimentos sociais participantes do curso. Organizar

um curso tendo os movimentos sociais rurais apoiando é fundamental para a Universidade,

pois a eles cabe mobilizar os candidatos das áreas de reforma agrária interessados em

participar do vestibular, organizar junto com os parceiros a infraestrutura necessária para o

funcionamento do curso, acompanhar a realização das atividades nos assentamentos; garantir

a frequência dos educandos no curso, acompanhar a aplicação dos recursos e a execução do

Projeto e, ainda, juntamente dos parceiros, avaliar o desenvolvimento do Projeto. Importa

destacarmos ainda que o Curso de Ciências Sociais é o primeiro realizado no Brasil em

parceria com todos os movimentos sociais rurais presentes no Estado e o primeiro do Brasil

em Ciências Sociais. Esse dado é fundamental para entendermos que a organização do curso

conseguiu reunir diferentes visões acerca da reforma agrária e da educação do campo.

Observamos como o signo educação do campo recebe camadas novas de sentidos no

contexto do curso de licenciatura em Ciências Sociais. O signo guarda em si os sentidos da

chegada dos assentados na UFGD, o que pode sim ocorrer em outros cursos, mas, nesses

espaços sociais, eles são sujeitos isolados participando de um curso desvinculado de sua

realidade, além do fato de eles não poderem, às vezes, assumir-se como sem terra. Nessa

perspectiva, o curso possibilita que os alunos sejam vistos e autoidentifiquem-se como sem

terras, já que, para eles, ainda são “sem terra” pelo fato de se solidarizarem com os muitos

companheiros que estão embaixo da lona preta nos acampamentos lutando por um lote, como

também pelo fato de a luta continuar quando entram na terra.

Notamos, assim, que o signo educação do campo é um fenômeno social propiciado

por uma rede de parceiros, o que dialoga com os valores dos movimentos sociais, herdados

também da Igreja Católica e das Ligas Camponesas, que veem na união a força para lutar

contra a opressão feita aos trabalhadores rurais. No curso, o signo educação do campo recebe

sentidos da agroecologia, da capacitação dos sujeitos, da formação de sujeitos pesquisadores,

da valorização do docente de Ciências Sociais, da inserção de assentados sem terra na

Universidade e da pedagogia da alternância que garante a permanência do estudante no tempo

universidade.

No signo educação do campo, ecoam as vozes do governo federal, por meio do

Pronera, da Universidade e de seus pesquisadores, dos movimentos sociais e movimentos pela

conservação do meio ambiente. No entanto, também podemos observar as vozes contrárias

sendo rebatidas, como a voz de um governo que privilegia a educação regular, não

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contemplando todos os níveis de ensino, o que poderia novamente ser uma instrumento para

silenciar os assentados e ocultá-los da sociedade brasileira, como ocorre no governo de

Fernando Henrique. Há também as vozes contra o curso vindas de dentro da Universidade,

principalmente, de cursos tradicionalmente ligados ao agronegócio. Há a voz da sociedade

que ainda vê os assentados como desocupados e revolucionários. O signo educação do

campo, assim, reflete a ideologia dos grupos envolvidos e refrata a ideologia dos

latifundiários.

O Projeto do curso de licenciatura em Ciências Sociais mostra que as ações

desenvolvidas pela Faculdade de Ciências Humanas (FCH) tanto na graduação quanto na pós-

graduação demonstram o compromisso histórico da faculdade com as reflexões sobre as

demandas sociais, políticas, econômicas e étnico-culturais, o que a certifica a propor a criação

e a implantação do projeto de curso superior para pessoas de assentamentos rurais de Mato

Grosso do Sul, com apoio do Pronera e do Ministério do Desenvolvimento Agrário (UFGD,

2007).

A realização desse curso no estado de Mato Grosso do Sul (MS) merece destaque

ainda pelo fato de o Estado ser marcado historicamente pela luta pela terra, primeiro, entre

indígenas e latifundiários e, após a partir da década de 70, entre trabalhadores sem terra e

latifundiários. Os intensos conflitos por terra em Mato Grosso do Sul têm como uma das

justificativas a ocupação tardia do território por parte dos não índios, o que ocorre apenas a

partir de 1830 e somente se intensifica após a década de 1940.

Já no início do século XX, as terras ao sul do ainda estado de Mato Grosso foram

arrendadas por Thomás Larangeiras, proprietário da Companhia Matte Larangeira, para

explorar os ervais64

. O poder da Companhia aumenta com a sociedade entre Thomás

Larangeiras e Manuel José Murtinho, primeiro presidente do Estado de Mato Grosso e médico

de Floriano Peixoto, o que garantiu à Companhia ampliar e controlar a área concedida. Com

isso, a Matte Larangeira exerce controle e decide a respeito da entrada e da fixação de

migrantes. Segundo Couto de Oliveira (2013), o controle por parte da Companhia Matte

Larangeira é questionado por indígenas, posseiros, produtores independentes e alguns

políticos. Porém, as relações de poder são desiguais ao se tratar da disputa entre os que não

tinham influência política e os que tinham. Desse modo, o parcelamento das terras é adiado.

64 A influência política colaborou para que a área a ser explorada fosse sucessivamente ampliada, chegando a

5.000.000 hectares, abrangendo ao oeste até as margens do rio Paraguai, em Porto Murtinho, e ao leste até

Bataguassu, perto do limite com o estado de São Paulo.

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O governo de Getúlio Vargas, na década de 1940, observando a ampliação dos

domínios da Matte Larangeira e a articulação entre o privado e o público, cria, por meio do

Decreto-lei nº 3059, o projeto conhecido como Marcha para o Oeste, o que contempla as

Colônias Agrícolas Nacionais (CAN) e, na região de Dourados, a Colônia Agrícola Nacional

de Dourados (CAND); assim, aos poucos, a concessão de terras da Companhia é retirada.

Muitos podem pensar que esse se trata de um projeto de reforma agrária, mas a intenção do

Governo não é redistribuir terras como um direito, mas conter os avanços dos países vizinhos

à fronteira brasileira. Vargas divulga a existência de “vácuos demográficos”, estratégia

utilizada para atrair para a região novos moradores, porém sua propaganda é enganosa,

porque, no então Território Federal de Ponta Porã, encontram-se índios, posseiros, a Matte

Laranjeira e os produtores rurais.

O sul do estado de Mato Grosso já vinha recebendo migrantes brasileiros desde as

três últimas décadas do século XIX. Segundo Queiroz (2008, p. 44), além dos paraguaios,

foram para a região mineiros, paulistas, paranaenses, e uma grande leva de gaúchos em

decorrência da Revolução Federalista, que depois de se desfazerem de suas propriedades,

encaminham-se em carretas de boi para as terras do sul do então estado de Mato Grosso. Os

migrantes, quando chegaram viram grandes extensões de terras vazias, assim puderam

comprar ou se apossar de vasta extensão, já marcando a presença de latifúndios em Mato

Grosso do Sul.

Esse contexto que abrange grandes extensões de terra nas mãos de poucas pessoas, a

presença de indígenas e a chegada de migrantes brasileiros marca o estado de Mato Grosso do

Sul como um território de constantes tensões desenvolvidas pelas resistências indígenas e

camponesas e, também, pelas ocupações de latifúndios improdutivos. Por isso, um curso

como o de licenciatura em Ciências Sociais é tão importante para os trabalhadores rurais

assentados, os movimentos sociais e os pesquisadores e, ao mesmo tempo, por ser um

desestabilizador dos movimentos políticos dos latifundiários e dos políticos conservadores,

que contemplam, agora, o surgimento de um sem terra, formado em curso superior e dotado

de formação política para continuar a luta que somente avança.

Em Mato Grosso do Sul, os movimentos sociais reivindicam a execução de políticas

voltadas à reforma agrária, bem como as para o desenvolvimento das pequenas propriedades

rurais, as quais produzem para abastecer o mercado interno. De acordo com o PPP do curso

de Ciências Sociais (2007, p. 18), os movimentos sociais mostram-se como catalizadores de

entusiasmos e de ações positivas dos educandos ao criar um sentido criativo, coletivo e

facilitador de ações e relações.

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183

Como podemos perceber, os trabalhadores rurais e os movimentos sociais do campo

objetivam chegar à universidade, formarem-se e continuarem sua luta na terra. Por isso, o PPP

do curso busca também atender aos aspectos formais de um curso superior, como veremos a

seguir, a fim de que ele seja reconhecido nas instâncias da universidade.

3.2.3 Organização do PPP (Projeto Político Pedagógico)

O Projeto Político Pedagógico (PPP) expõe, inicialmente, a identificação e a

organização do curso. Em seguida, na primeira parte demonstra os aspectos pedagógicos e, na

terceira parte, expõe o orçamento do curso, como pode ser verificado a seguir:

Identificação da proposta

Da instituição proponente

Título do projeto

Meta objeto do convênio

Responsável pelo projeto na instituição de ensino

Coordenação

Equipe de elaboração

Identificação das entidades parceiras

Definição das responsabilidades e atribuições dos parceiros

Identificação do curso

PARTE I

Justificativa

Dos motivos para a solicitação do curso

Da caracterização da Universidade Federal da Grande Dourados

Da Faculdade de Ciências Humanas

Trajetória da FHC em projetos com movimentos sociais

Do curso de Ciências Sociais

Do perfil desejado dos/as graduados/as em Ciências Sociais

Objetivos

Objetivos gerais

Objetivos específicos

Metas

A proposta teórica e metodológica

Pressupostos teóricos

Pressupostos metodológicos e procedimentos operacionais

Procedimentos metodológicos no tempo comunidade

O material didático

A estrutura curricular do curso de Ciências Sociais

As disciplinas oferecidas

As ementas das disciplinas

O processo de avaliação dos/as alunos/as

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O estágio curricular

O trabalho de conclusão de curso

As atividades complementares

As disciplinas e carga horária nos TU, TC, PR e TR

O cronograma de execução

O público alvo e os critérios de seleção

Recursos humanos necessários e perspectivas/atribuições no projeto

Recursos humanos envolvidos com o curso

Descrição dos critérios de seleção

Descrição da equipe pedagógica: docentes responsáveis pelas disciplinas

Acompanhamento e avaliação do projeto

Impactos ou resultados esperados e benefícios potenciais

Bibliografia

Anexos

PARTE II

Orçamento do projeto

Notamos que o PPP do curso atende aos aspectos formais do gênero discursivo PPP

ao apresentar os objetivos, as metas, as ementas, a justificativa, a proposta teórica dentre

outras características. Isso evidencia que o curso busca a credibilidade em relação aos outros

cursos da Universidade, já que, por ser um projeto, organizado para apenas uma turma e para

assentados, a oferta do curso poderia ser questionada por professores de cursos mais

tradicionais e elitistas. No entanto, se a estrutura do PPP mostra uma preocupação com a

formalidade da universidade, o conteúdo mostra o contrário, já que o documento evidencia a

posição ideológica dos professores e de seus parceiros com relação à educação superior para

assentados e à reforma agrária. Desse modo, o PPP apresenta-se como um discurso

constituído de diferentes vozes, ora consoantes ao projeto de educação superior e à educação

do campo, ora discordantes, como discutiremos a seguir.

3.2.4 Vozes na Caracterização do Curso de Licenciatura em Ciências Sociais/Pronera

A proposta apresentada ao Pronera Nacional para a criação da licenciatura em

Ciências Sociais propõe que o curso atue preferencialmente nas áreas de reforma agrária, “[...]

de forma criativa e crítica, fazendo frente às demandas e aos desafios da sociedade

contemporânea”, relacionando teoria e prática, por meio de uma orientação teórica e

metodológica pluralista (UFGD, 2007, p. 19). Busca-se uma formação em que se articule a

formação epistemológica e a profissionalizante, viabilizando relações entre teoria e prática,

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185

ensino e pesquisa, os quais são apresentados aos educandos desde o primeiro semestre. A fim

de garantir uma relação estreita com os problemas e necessidades sociais, o curso propõe

desenvolver atividades complementares e estágios, como “[...] a participação em seminários,

laboratórios de pesquisa, eventos científicos e outros” (UFGD, 2007, p. 19). Objetiva-se,

assim, que essas atividades promovam um processo ativo de construção coletiva de situações

que envolvam o ensino e a aprendizagem, “[...] buscando manter estreita relação com

problemas e necessidades sociais, por meio de atividades complementares” (UFGD, 2007, p.

19), o que nos leva a inferir que a vivência dos educandos e a sua luta diária devem fazer

parte da fundamentação teórico-prática, já que criar formas de os estudantes conhecerem

ainda mais os problemas dos assentamentos e a pensarem em possíveis soluções são meios

para que os laços entre estudantes sem terra e assentamento apenas se estreitem.

Os parâmetros que norteiam a estrutura curricular do curso de Ciências Sociais estão

em consonância com os princípios das Diretrizes Curriculares para o Curso de Ciências

Sociais, estabelecidas pelo MEC/SESU, conforme Lei n° 9.394/96A (Parecer

MEC/CNE/CES492/2001), sendo elas:

Domínio da bibliografia teórica e metodológica básica;

Autonomia intelectual;

Capacidade analítica;

Competência na articulação entre teoria, pesquisa e prática social;

Compromisso social;

Competência na utilização da informática (UFGD, 2007, p. 19) (grifos

nossos).

Importa destacarmos que algumas dúvidas podem surgir quanto à qualidade dos

conteúdos de um curso voltado para assentados de reforma agrária. Podemos perceber que há

uma relação entre os parâmetros curriculares de um curso de Ciências Sociais regular e a de

um curso de ciências sociais para assentados. Dentre os parâmetros, ressaltamos a articulação

entre teoria, pesquisa e prática social. O professor de Ciências Sociais assentado precisa

articular a fundamentação teórico-metodológica às ações do dia a dia, trazendo para as suas

pesquisas e ensino o que ocorre no vivido pelos alunos, nos movimentos sociais e nos órgãos

governamentais e não governamentais. Assim, podemos pensar na formação de sujeitos

capazes de realizar intervenções e transformação prática da realidade, o que dialoga com o

defendido pelo MST. Para o Movimento (MST, 1996, p. 6-7), não “[...] podemos nos

contentar com o desenvolvimento apenas da chamada ‘consciência crítica’, que é aquela onde

as pessoas conseguem denunciar/discutir sobre os problemas as causas, mas não conseguem ir

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além disso”. Dialogicamente, a voz de Marx (1845)65

também ecoa, pois, para ele, a “[...] vida

social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo

encontram a sua solução racional na praxe humana e no compreender desta praxe”. Com essa

competência desenvolvida, o sujeito consegue passar da consciência crítica para a consciência

organizativa de intervenção direta na realidade dos assentamentos.

Além disso, também se levanta uma voz discordante ao projeto de educação superior

para assentados, aquela que se ouve na sociedade vigente, bem como na universidade, a qual

questiona a razão de se ter um curso específico para pessoas do campo, bem como a qualidade

e os objetivos do curso. Há uma preocupação da sociedade se a universidade formará

baderneiros e comunistas, um pensamento herdado dos sermões da ala conservadora católica,

como a TFP, conforme discutimos no primeiro capítulo. Inferimos que, ao saber desse

discurso de desaprovação das políticas públicas para as minorias, o corpo docente do curso

encarregado de elaborar o PPP apresenta uma proposta que não se desvincula de um curso

regular, estabelecendo uma consonância com as Diretrizes Curriculares para o Curso de

Ciências Sociais, apresentadas pelo MEC/SESU. Assim, as vozes contrárias estão presentes,

não são apagadas, mas são trazidas à tona para serem respondidas, refutadas e questionadas.

Percebemos que o discurso do PPP orquestra diferentes vozes, as consoantes e as

discordantes. Ouvimos um universo de diferentes vozes sociais, as quais estão lado, “[...] em

que todas as vozes são equipolentes” (FARACO, 2009, p. 78).

Quanto ao perfil desejado dos graduandos em Ciências Sociais, o curso, que se

propõe a oferecer adequada formação ao alunado, constrói um perfil relacionado às

necessidades concretas do campo, tendo em vista suas especificidades e diversidade

socioculturais. Pontuar as “necessidades concretas do campo” é um diferencial quando se

compara o perfil dos alunos assentados a de alunos de cursos regulares de Ciências Sociais.

Isso ocorre porque as demandas dos alunos regulares quase sempre são as mesmas de toda

sociedade, já a dos assentados são próprias, mais específicas, refletem o dia a dia deles e uma

situação de opressão e de exploração sócio-historicamente construída, como já apresentamos

anteriormente. Podemos inferir que há um diálogo entre o que o curso propõe e o que os

trabalhadores sem terra e os movimentos sociais esperam dos alunos de ensino superior.

Entendemos, fundamentados nos discursos analisados no primeiro e no segundo

capítulos, que os professores formados continuam a luta pela terra e pela educação, sendo

65 Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/marx/1845/tesfeuer.htm>. Acesso em: 28 fev. 2017.

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militantes de uma causa que pretende derrubar as cercas do latifúndio e da ignorância. Assim,

espera-se que os futuros professores desenvolvam suas atividades profissionais com

responsabilidade, solidariedade, espírito crítico e com coerência teórica, científica e

metodológica. Ademais, há a possibilidade de atuação em outros espaços educativos,

públicos, privados, instituições diversas e movimentos sociais (UFGD, 2007). Como podemos

verificar, a luta pela terra e pela educação do campo espera um professor engajado nas lutas

dos trabalhadores rurais e não um funcionário de uma escola rural, que esteja apartado da

realidade de seus alunos e de sua escola.

Ao analisar os dois perfis esperados, percebemos que eles são iguais aos

apresentados quando comparamos os perfis dos alunos de um curso regular, de modo que o

Parecer do MEC/CNE/CES 492/2001 e o PPP apresentam os mesmos perfis para o educador

político-social:

Pesquisador/a seja na área acadêmica ou não acadêmica, como

educador/a político-social;

Profissional que atue tanto em docência, comprometido com as questões

sociais e com compreensão crítica da realidade, quanto em planejamento,

como colaboradores em organizações não governamentais, governamentais,

partidos políticos, movimentos sociais e atividades similares (UFGD, 2007,

p. 20).

A respeito dos objetivos, o PPP do curso apresenta dois objetivos gerais e nove

específicos. O primeiro objetivo geral é:

Formar licenciados/as em Ciências Sociais com uma sólida formação

humanística, que sejam capazes de atuar como profissionais críticos da

realidade multidimensional da sociedade brasileira, do processo educacional

e nas organizações dos movimentos sociais, habilitando-os/as a produzir

conhecimentos que resultem em práticas de docência, lideranças de

movimentos sociais, pesquisas e planejamentos (UFGD, 2007, p. 20) (grifos

nossos).

Nesse primeiro objetivo, destacamos a formação humanística, ao apontar para uma

capacitação dos graduandos para serem profissionais críticos da realidade multidimensional,

atuando como educadores nas escolas e nos movimentos sociais. A voz de Marx ecoa nesse

objetivo, pois a formação humanística nos conduz a pensar em uma formação onilateral.

Marx utiliza esse conceito para se referir a uma práxis educativa revolucionária, a qual

congrega diversas esferas da vida humana que o sistema capitalista tenta separar do homem.

A onilateralidade, para Marx (2004, p. 108), ocorre quando o

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[...] homem se apropria da sua essência omnilateral de uma maneira

omnilateral, portanto, como um homem total. Cada uma das suas relações

humanas com o mundo, ver, ouvir, cheirar, degustar, sentir, pensar, intuir,

perceber, querer, ser ativo, amar, enfim todos os órgãos da sua

individualidade, assim como os órgãos que são imediatamente em sua forma

como órgãos comunitários, são no seu comportamento objetivo ou no seu

comportamento para com o objeto a apropriação do mesmo, a apropriação da

efetividade humana [...].

Nas palavras de Manacorda (2007, p. 89), a onilateralidade é

[...] a chegada histórica do homem a uma totalidade de capacidades

produtivas e, ao mesmo tempo, a uma totalidade de capacidades de consumo

e prazeres, em que se deve considerar sobretudo o gozo daqueles bens

espirituais, além dos materiais, e dos quais o trabalhador tem estado excluído

em conseqüência da divisão do trabalho.

Essa perspectiva considera o homem como um ser real, o qual tem ações em

condições concretas de existência tanto as que são encontradas prontas quanto as que são

produzidas (MARX; ENGELS, 2001). A onilateralidade diferencia-se da unilateralidade, pois

esta se preocupa apenas com um lado da formação do sujeito, ou seja, de uma dimensão,

apenas o intelecto ou apenas as habilidades manuais, somente os aspectos morais ou somente

os políticos. Pela visão marxista, a unilateralidade pode ser entendida como o

[...] resultado e, ao mesmo tempo, reproduz a divisão social do trabalho. A

separação entre o conceber e o executar de acordo com as classes sociais

tende a atar os indivíduos a funções ligadas ao seu lugar na produção da

vida. Esse parcelamento da atividade social promove o embrutecimento das

faculdades e capacidades humanas, já que seu desenvolvimento deixa de ser

amplo e passa direcionado pela fixação social imposta (DELLA FONTE,

2014, p. 390).

Já a formação onilateral prepara o sujeito para variadas práticas sociais e para várias

dimensões que se articulam com a educação. Numa consonância de vozes, essa perspectiva

também é retomada pelo MST, no terceiro princípio filosófico da educação do MST, que

também defende que a educação esteja voltada para várias dimensões da pessoa humana. O

Movimento defende

[...] que a educação no MST assuma este caráter de onilateralidade,

trabalhando em cada uma de suas práticas, as várias dimensões da pessoa

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humana e de um modo unitário ou associativo, em que cada dimensão tenha

sintonia com a outra, tendo por base a realidade social em que a ação

humana vai acontecer (MST, Caderno de Educação n. 8, 1996, p. 8).

Ao enfatizar a formação humanística, a qual vê o homem em sua totalidade, a voz do

PPP critica a voz do capitalismo, que reduz o homem a um objeto. Tal situação pode ser

verificada em cursos universitários, como também em escolas urbanas, em que crianças são

contabilizadas como números, já que estão associadas a verbas governamentais ou a

mensalidades escolares. Como objetos, crianças e adultos estão condicionados a aprender

apenas para o vestibular ou apenas para se formarem e não para a vida, não para as interações

sociais, como também não para a participação na sociedade como cidadãos dotados de

conhecimentos e senso crítico.

A polifonia ecoa em diferentes vozes que se chocam, pois são contrárias. No entanto,

a voz do PPP harmoniza essas vozes, uma vez que seus adversários também são seus

ouvintes. É preciso, então, também ouvi-los para rebatê-los e rechaçá-los. Por isso, na

polifonia as vozes expressam-se, deixam-se ouvir. Ao contrário de um discurso monológico,

que pretende abafar as vozes discordantes, o PPP faz emergir vozes contrárias, pois elas

precisam ser descontruídas e respondidas. Como afirma Barros (2011, p. 6), nos textos

polifônicos “[...] as vozes se mostram”, nos monofônicos “[...] elas se ocultam sob a aparência

de uma única voz”. O texto do PPP não quer ser a única voz, da mesma forma não quer

apagar as marcas sócio-históricas de opressão presentes na luta pela terra, ao contrário ele

quer trazê-las à tona para descaracterizá-las e para desmascará-las, pois historicamente elas se

quiseram como únicas, considerando os trabalhadores rurais como objetos passivos e sua

situação de opressão como natural.

Se o primeiro objetivo enfatiza a formação humanística dos licenciandos, o segundo

versa acerca do fortalecimento da educação nas áreas de reforma agrária:

Fortalecer a educação e a possibilidade de ação qualificada nas áreas de

Reforma Agrária com conhecimentos teórico-metodológicos voltados às

especificidades, às necessidades e ao desenvolvimento sustentável do campo

para conquista de melhorias na qualidade de vida (UFGD, 2007, p. 20).

O desejo pelo fortalecimento da escola pode ser notado nesse objetivo ao apontar os

conhecimentos teórico-metodológicos como uma ação política, pois as escolas nos

assentamentos devem ser mais que escolas, elas devem ser uma parte do movimento social, de

forma que elas façam parte da dinâmica do Movimento, a fim de contribuir para a formação

de sujeitos políticos. As ações da escola devem estar voltadas para as especificidades, como

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também para as necessidades, ao desenvolvimento sustentável do campo para que a qualidade

de vida dos assentados melhore. Assim, a educação do campo contribui para que o

trabalhador rural e seus filhos continuem a viver no campo de forma digna, o que reveste o

signo educação do campo de uma responsabilidade em garantir a permanência do trabalhador

no campo, negada historicamente pela situação de desprezo ocorrida com os filhos.

Há, assim, uma preocupação em não fechar a educação nos limites dos

assentamentos ou dos movimentos sociais, pois é necessária uma abertura de horizontes dos

graduandos, de modo que continuem a praticarem os princípios dos trabalhadores rurais e dos

movimentos sociais, porém sem deixarem que nada que seja humano possa lhes ser estranho.

Diante disso, percebemos que a voz do MST também é ouvida nesse objetivo, pois o

Movimento defende que não se deve fechar em si, em um pequeno mundo, perdendo a

capacidade de planejar o futuro, pois “[...] nossa educação precisa nos ajudar a continuar

rompendo cercas” (MST, 1996, p. 8). As vozes do PPP e a do MST contrariam as vozes

sociais que afirmam que os trabalhadores rurais querem fazer do Brasil um país comunista e

fechado em si, como Cuba. Ao contrário, as vozes consoantes demonstram um projeto de

abertura a novos horizontes, a novos conhecimentos e a novas experiências, sem perder de

vista o projeto de justiça social que se objetiva para toda sociedade e não para parte dela. As

cercas são os obstáculos que toda sociedade enfrenta para ter qualidade de vida e educação.

Desse modo, a cerca dos trabalhadores sem terra não está apenas no campo, mas está em uma

sociedade fundamentada em um capitalismo que explora e oprime os trabalhadores.

Dos nove objetivos específicos, destacamos:

Reafirmar o acesso à educação e à escolarização como um direito

constitucional das pessoas inseridas nos projetos de reforma agrária (UFGD,

2007, p. 20-21).

Essa reafirmação é fundamental por apresentar a voz da Constituição Federal de

1988 que garante o direito à educação a todos independente se o aluno residir na área urbana

ou rural. A Constituição Federal (BRASIL, 1988), ao se referir às diferenças existentes na

sociedade brasileira, homogeniza as demandas. Somente na Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional (LDB - Lei nº 9.394/96), em 1996, um artigo versa sobre a educação para

o povo do campo: “Art. 28. Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas

de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação, às peculiaridades da vida

rural e de cada região”. Como podemos observar, a LDB reconhece a especificidade do

campo, mas ainda não assimila a educação do campo. Mesmo não se referindo à educação do

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campo, é nesse artigo que os movimentos sociais rurais apoiam-se para solicitar seus direitos,

evidenciando a urgência da organização da Educação do Campo pública no Brasil.

Somente, em 2001, depois das reivindicações dos movimentos rurais foram lançadas

as Diretrizes Operacionais para Educação Básica nas Escolas do Campo conforme Parecer n°

36/2001. As Diretrizes são acompanhadas de um relatório que apresenta o contexto histórico

percorrido pela Educação do Campo, destacando a dívida histórica que o País tem com a

população rural, a qual sempre esteve à margem da sociedade e dos direitos. Alinhada aos

propósitos dos movimentos sociais rurais, as Diretrizes apresentam a educação do campo

como capacitada para emancipar a pessoa humana e para atender às particularidades do

campo, tendo como base a cultura campesina, a identidade dos sujeitos do campo, as relações

socioambientais e as organizações políticas. No cruzamento das vozes da Constituição

Federal, das Diretrizes Operacionais e do PPP, percebemos que os discursos completam-se e

são construídos na situação concreta da enunciação, em que é impossível não tocar nos

milhares de fios dialógicos já existentes, ou seja, na luta histórica dos camponeses.

Com as Diretrizes Operacionais para Educação Básica nas Escolas do Campo, o

signo educação do campo é oficializado. No entanto, ele já circula pela sociedade, captando

sentidos dos signos terra e reforma agrária, pois é construído em um processo sócio-histórico

de lutas e conquistas dos trabalhadores rurais; do mesmo modo é constituído pela oposição ao

signo educação rural, ao qual pretende negar e criticar. A mudança de educação rural para

educação do campo tem um sentido expressivamente significativo, uma vez que o primeiro

signo congrega uma forma de educação para trabalhadores do campo, objetivando capacitar a

mão-de-obra rural para trabalhar nos projetos de racionalização da produção agrícola. Nesse

caso, a educação vem de fora para dentro do campo, no sentido de não ser feita pelos

trabalhadores e não vincular o ensino à sua emancipação e à transformação social. Já o signo

educação do campo refrata a história vivenciada pelos trabalhadores rurais sem terra com a

educação rural e reflete a visão de educação para a transformação social requerida pelos

movimentos sociais rurais e pelos trabalhadores sem terra. O signo, nessa perspectiva,

congrega os sentidos da educação rural para negá-la e para saber o que não se quer para a

educação do campo. Por isso, o signo educação do campo está atravessado pelos sentidos das

lutas sociais já iniciadas pelas Ligas Camponesas e, também, pelas formas de ver a educação

como uma ação libertadora, como pregaram as CEBS, o MST e a Educação Popular de Paulo

Freire. No caso do curso de Ciências Sociais, o signo educação do campo ganha novos

sentidos por adentrar um novo espaço social, a universidade.

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Outros aspectos do signo educação do campo podem ser analisados no próximo

objetivo do curso:

Contribuir para a formação de profissionais capazes de compreender o

processo histórico da produção do conhecimento científico e suas relações

com os aspectos de ordem política, cultural, social, ética e econômica, para

assim intervir no espaço vivido, com uma concepção de educação

referenciada num paradigma do campo (UFGD, 2007, p. 20-21).

Por meio desse objetivo, podemos observar que o curso visa a contribuir para a

formação de professores capacitados para relacionar teoria e prática. Diante disso, vemos que

o signo educação do campo também encorpa o sentido de agregador de teoria e de prática

social dos assentamentos. Desse modo, reveste-se do sentido de intervenção social, à medida

que há a relação entre o conhecimento vindo da universidade e a prática social dos

assentamentos de reforma agrária.

Esse signo também recebe sentidos da Pedagogia da Alternância, quando o curso

objetiva:

Garantir e fortalecer o princípio da Pedagogia da Alternância, possibilitando

a articulação das atividades tempo-universidade com as atividades tempo-

comunidade, num processo de ação-reflexão-ação do conhecimento (UFGD,

2007, p. 20-21).

Um aspecto fundamental para a ocorrência dos cursos superiores e de pós-graduação,

tendo em vista a distância entre as áreas de Reforma Agrária e as Universidades, é a

Pedagogia da Alternância, segundo a qual os estudos são desenvolvidos de forma concentrada

durante um período nas universidades ou nas escolas do campo e, em seguida, nas

comunidades. Nas universidades, são realizadas discussões teóricas referentes à realidade dos

assentamentos; já nas comunidades, são desenvolvidos estudos teóricos e pesquisas com o

acompanhamento de professores do curso, que possibilitem aos educandos refletirem de

forma teórico-prática acerca das especificidades do campo, o que permitirá intervenções

práticas (BRASIL, 2004).

A Pedagogia da Alternância66

consiste em uma metodologia de organização do

ensino que contempla diferentes experiências formativas distribuídas ao longo de tempos e

66 “Esse método começou a tomar forma em 1935 a partir das insatisfações de um pequeno grupo de agricultores

franceses com o sistema educacional de seu país, o qual não atendia, a seu ver, as especificidades da Educação

para o meio rural” (TEIXEIRA, BERNARTT e TRINDADE, 2008, p. 227).

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espaços distintos, tendo como finalidade uma formação profissional (TEIXEIRA;

BERNARTT; TRINDADE, 2008). No Brasil, a Pedagogia da Alternância é implantada em

1969, no estado do Espírito Santo, por meio da criação das três primeiras Escolas Famílias

Agrícolas. Essas escolas oferecem o ensino fundamental a filhos de trabalhadores rurais.

Trata-se de uma forma de reconhecer as especificidades do campo, por conceber que

há momentos em que toda família precisa se reunir para plantar e outro para colher, o que

evidencia uma dinâmica diferente dos moradores urbanos. A adoção da Pedagogia da

Alternância é, portanto, mais um elemento que entra na cadeia discursiva da história da terra,

da reforma agrária e da educação do campo no Brasil, por ser uma resposta à negação feita

pela escola e pela universidade aos trabalhadores rurais durante a história do Brasil. Nesse

contexto, a eles foram negadas as oportunidades de acesso à educação pública por meio de

políticas de governos que privilegiaram formas excludentes de ensino. Com a Pedagogia da

Alternância, é possível que os alunos do ensino básico e superior possam passar dias nas

escolas ou universidades e depois voltar para os assentamentos para pôr em prática o que

realizaram nas instituições de ensino, garantindo também que os alunos não percam o vínculo

com o campo e com a família.

Podemos afirmar que um curso como o de Ciências Sociais para assentados em Mato

Grosso do Sul só poderia acontecer por meio da Pedagogia da Alternância, pois como

podemos observar na Figura 1, a seguir, os acadêmicos assentados deslocaram-se de

diferentes e distantes municípios (Anastácio, Bataguassu, Bataiporã, Corumbá, Itahum

(Distrito de Dourados), Eldorado, Itaquiraí, Japorã, Juti, Nioaque, Nova Andradina, Nova

Alvorada do Sul, Ponta Porã, Rio Brilhante, Sidrolândia e Terenos67

) para chegarem a

Dourados, onde está localizada a UFGD.

67

Essas são as distâncias entre o município do assentado e Dourados: Anastácio (285km), Bataguassu (313km),

Bataiporã (188km), Corumbá (570 km), Itahum (71,3 km - Distrito de Dourados), Eldorado (222 km), Itaquiraí

(180 km), Japorã (265 km), Juti (104 km), Nioaque (241 km), Nova Andradina (180km), Nova Alvorada do Sul

(116km), Ponta Porã (120km), Rio Brilhante (70,4km), Sidrolândia (183 km) e Terenos (256 km). Essas

distâncias não contemplam os quilômetros entre o assentamento e o seu município.

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Figura 1: Mapa do Estado de Mato Grosso do Sul: municípios onde estão localizados os

assentamentos rurais em que residem os acadêmicos sem terra

Fonte: Menegat e Farias (2009, p. 29).

A Pedagogia da Alternância proporciona aos graduandos saírem nos meses de

janeiro-fevereiro e julho-agosto, durante cinco semanas, para estudarem na Universidade em

período integral e, depois, voltarem aos assentamentos para continuarem seus estudos e,

também, seus compromissos com o lote, com a família e com o movimento social. Com isso,

o graduando tem a oportunidade de permanecer na Universidade e de colocar em prática, em

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sua vivência, o compreendido e, em seguida, levar o que observou nos assentamentos para a

sala de aula.

Essa dinâmica dialoga com a metodologia das CEBs, ver-julgar-agir, praticada

quando os trabalhadores enxergam problemas no seu dia a dia, levam-nos para as reuniões a

fim de que sejam refletidos pelo grupo e, assim, sejam pensadas prováveis soluções. Desse

modo, o trabalhador passa a criticar o seu contexto social e a questionar a sua situação de

oprimido e de esquecido pelo poder público. Além disso, ele passa a fazer projeções para a

resolução do problema, não sendo passivo à situação de opressão. Ao enxergar, questionar e

pensar soluções, o trabalhador toma o caminho da libertação, pois sozinho consegue

questionar outras formas de exploração que a sociedade dominante emplaca sobre ele.

Do mesmo modo, os acadêmicos do curso também têm a possibilidade de analisar o

seu contexto e relacioná-lo com a teoria vista na Universidade, o que garante um diálogo entre

o vivido e o teorizado, muitas vezes, tão distantes da realidade dos estudantes brasileiros. Os

movimentos sociais rurais também se utilizam de uma metodologia de participação ativa dos

militantes e dos trabalhadores rurais na discussão acerca de problemas enfrentados no seu dia

a dia. São congressos, organizações em setores, marchas, acampamentos, reuniões que

oportunizam aos membros dos movimentos dialogarem a respeito do vivido. Observamos que

o signo educação do campo traz em seu bojo as experiências vivenciadas em grupo, a

participação da comunidade na escola e a relação entre teoria e prática, já que o ser sem terra

acompanha os trabalhadores rurais por onde eles forem.

Com relação ainda à Pedagogia da Alternância, podemos afirmar que, em um estado

como Mato Grosso do Sul, ela possibilita que as barreiras da localização dos assentamentos,

na maioria significativamente distantes de cidades, e, consequentemente, da permanência dos

graduandos no curso fossem vencidas. Além disso, propicia aos professores universitários

conhecerem as escolas para visualizarem de perto as condições de ensino nas áreas rurais,

como também a situação real dos assentamentos. Dessa forma, os professores têm a

oportunidade de conhecer os assentados, a família dos graduandos, a escola e a realidade dos

assentamentos. Durante as visitas dos professores aos assentamentos, as atividades de estudos

são discutidas em grupo. Nesses encontros, sempre estão presentes no mínimo dois

professores que juntos mediam as reflexões para que os graduandos também em grupo

possam chegar à compreensão do apresentado no tempo Universidade. Como podemos

perceber não se trata de um processo de educação de mão única tampouco de um processo em

que o contexto sociocultural do educando é deixado de lado. Ambos, professores e

acadêmicos, estão juntos no processo de re-criação do conhecimento. Como afirma Freire

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(1996, p. 31): “[...] Educador e educandos (liderança e massas), co-intencionados à realidade,

se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvelá-la e, assim,

criticamente conhecê-la, mas também no re-criar este conhecimento”.

O signo educação do campo, nesse contexto, abrange os sentidos mais particulares

dos graduandos assentados, pois nele se compreende as distâncias entre o assentamento e as

cidades, como também se leva em consideração o vivido pelos estudantes sem terra, como o

tempo de plantar, o tempo de colher, os trabalhos nos movimentos sociais, as datas festivas

particulares dos assentamentos e o calendário das escolas. Sem essa compreensão, os

assentados poderiam desistir do curso e reviver a experiência de abandono dos estudos, como

ocorreu com a maioria quando eram crianças, fato que emerge nos relatos pessoais. Desse

modo, o signo educação do campo também está atravessado pelas lutas dos trabalhadores sem

terra para poder acessar a universidade e permanecer estudando.

O projeto discursivo do PPP está ancorado nas condições sócio-históricas relativas à

luta pela terra no Brasil, consequentemente, o signo educação do campo existe nesse

cruzamento de objetivos, de vivências, de vitórias e de perdas, enfim, na interação verbal. O

PPP apresenta posições axiológicas a respeito da reforma agrária, da educação do campo, mas

também acerca das metodologias dos cursos regulares das universidades e das escolas, da

relação entre teoria e prática e da relação entre o professor e a realidade do educando. Assim,

há um caráter de responsividade ao questionar uma metodologia fundamentada na tradição,

em que o conhecimento está com o professor e precisa ser passado para o aluno, quem nada

tem a oferecer no processo de ensino-aprendizagem. O plano discursivo do PPP não é a

primeira palavra a questionar esse modo de educação, mas ele dialoga com os pressupostos já

conhecidos de Paulo Freire (1996). O educador questiona a educação bancária, na qual o

educador está alheio à realidade do aluno e rechaça qualquer forma de companheirismo. O

educador bancário é aquele que detém o conhecimento e deposita-o no aluno, pois o considera

uma folha em branco a ser preenchida, pois não sabe nada. O conhecimento, neste caso, é

algo acabado, encerrado no professor e estático. Freire (1985) critica essa educação que não

possibilita a ação livre, criadora e formadora de consciência. O educador também propõe

uma educação libertadora, a qual se caracteriza como “[...] um processo pelo qual o educador

convida os educandos a reconhecer e desvelar a realidade criticamente” (FREIRE,1985, p.

125).

Lembramos que o PPP não é um documento a ser lido apenas pelos professores de

um curso, ele passa pela aprovação de um conselho universitário formado por professores de

diferentes cursos, com diferentes posições axiológicas sobre a terra e, também, sobre o ensino

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superior. Desse modo, o PPP projeta deferentes interlocutores a quem quer convencer de que

um curso para assentados é uma forma de rever posições históricas de exploração e de

opressão do camponês, como também é uma possiblidade para a universidade repensar seus

caminhos metodológicos que têm apartado a teoria da prática.

Os interlocutores são vários e distintos e para eles o PPP é enunciado. Inferimos que

de um lado estão os ouvintes do círculo da luta pela terra, como professores universitários da

área de Ciências Humanas, movimentos sociais rurais, trabalhadores rurais, governo federal e

futuros acadêmicos; de outro estão os contrários a um programa de justiça social na terra,

como professores universitários de cursos tradicionais ou de cursos que não trabalham com a

realidade humana, latifundiários organizados em associações rurais, muitas vezes

financiadoras de pesquisas no Estado de Mato Grosso do Sul, políticos e sociedade

conservadores, que, embora explorada, acredita que a reforma agrária traz grandes prejuízos

ao Brasil. Percebemos que o papel do outro no plano discursivo do PPP é significativamente

amplo, como observa Bakhtin (2011), pois desde o início o enunciado é construído para ir ao

encontro dele e de suas atitudes responsivas. É para o outro que “[...] o meu pensamento pela

primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo também para mim mesmo), não são

ouvintes passivos mas participantes ativos da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2011, p.

301).

O próximo objetivo refere-se à formação ética e ao compromisso social:

Contribuir para a formação ética e o senso de compromisso social (UFGD,

2007, p. 20-21).

O compromisso do curso com a ética e com o compromisso social leva em

consideração que, por meio de um comportamento ético, o assentado pensa na união dos

membros do assentamento, os quais colaboram entre si mediante um conjunto de costumes e

virtudes que sustentam a coesão da comunidade, o que ajuda os assentados a serem cidadãos.

Estar em cooperação, em união, como também partilhar e participar de mutirões são

características da vivência nos assentamentos de reforma agrária. Os trabalhadores rurais e os

movimentos sociais rurais concebem que o caminho da história da terra no Brasil é feito de

lutas e de vitórias, mas também de expulsões, de prisões, de perseguições e, inclusive, de

quedas de companheiros por homicídio. Durante a longa caminhada sócio-histórica, puderam

observar que a união é um aspecto diferencial na luta e na conquista por direitos. Por isso, a

coletividade, a divisão de tarefas e a participação em variadas áreas dos movimentos sociais

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198

são elementos essenciais na organicidade dos assentamentos, demonstrando uma resposta ao

individualismo e ao egocentrismo pregados pelo sistema capitalista. O curso muitas vezes

acentua o caráter de coletividade entre os graduandos de Ciências Sociais, principalmente,

pelo fato de na mesma sala haver membros de diferentes movimentos sociais rurais, os quais,

às vezes, discordam em determinados temas por terem visões diferentes. Por isso, no curso,

por exemplo, há a delegação de tarefas aos graduandos. Durante uma semana, uma dupla de

estudantes de um mesmo movimento social fica responsável por organizar algumas tarefas do

curso, como noite cultural, reuniões com agentes de fora da universidade, dentre outras.

Assim, a cada semana o curso/coordenação/professores visualiza como cada movimento

social se organiza para desempenhar as tarefas descritas e, também, incorpora algumas dessas

formas em sua organização.

Logo, percebemos que o caráter da coletividade circula pelo curso. É um

compromisso com o coletivo, com o movimento social e com a construção por várias mãos de

um projeto de ensino superior para assentados e não para a pessoa individual. É um ato

responsivo aos cursos que, na prática, não têm compromisso social, uma vez que privilegiam

o individualismo, a competitividade e o produtivismo, características de um capitalismo de

exploração.

Observamos, assim, uma tensão discursiva entre diferentes vozes. De um lado, a voz

dos movimentos sociais rurais que defende a coletividade, o compromisso social e o

compromisso com a formação do outro. De outro, está a voz do capitalismo que advoga a

favor do individualismo, da acumulação, da exploração e da grande valia. A polifonia é

observada nessa tensão de vozes diferentes, as quais não são apagadas, mas ecoam em um

plano discursivo que objetiva fazê-las se digladiar, se colidir, entrarem em luta, a fim de que o

leitor perceba qual é o foco de cada um dos lados dessa luta e recuse a voz do capitalismo.

O signo educação do campo incorpora sentidos do compromisso com a ética e o

social. Diferentemente da escola urbana que, na maioria das vezes, prega a competição entre

os alunos, a educação do campo quer acentuar o compromisso do estudante com a

coletividade, com o assentamento e com o projeto de reforma agrária e justiça social.

Ao apresentar os pressupostos teóricos do curso, o PPP afirma que as reflexões que

envolvem a educação do campo foram construídas em um processo histórico de luta de

movimentos sociais, com o objetivo de construir uma proposta pedagógica baseada no vivido

ao longo das lutas por terra e por cidadania (UFGD, 2007, p. 23). Há, portanto, um

reconhecimento de que a educação do campo é fruto de um processo histórico de lutas dos

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199

movimentos sociais rurais, iniciado com as Ligas Camponesas e intensificado no final da

década de 1970.

A escola pública que se espera baseia-se no paradigma “contra-hegemônico”:

Igualmente, reivindica-se uma escola pública do campo, com um paradigma

contra-hegemônico, no qual prevaleçam concepções alicerçadas nos

princípios da educação popular, valorizando pressupostos teóricos e

metodológicos que incentivem a formação de cidadãos/as capazes de

questionar a dominação, a falta de direitos, a desigualdade social, enfim, que

entendam as contradições dessa sociedade, por que elas existem e quais os

mecanismos de manutenção das relações de privilégio (UFGD, 2007, p. 24).

O termo “contra-hegemônico” é discutido por Santos (2004), ao apontar que uma

transição paradigmática parte do esgotamento dos paradigmas clássicos do Direito, da Política

e da Ciência, o que permite a valorização de saberes e experiências alternativas. O “contra-

hegemônico” aponta para inúmeras formas de compreender o mundo e quer pôr em xeque o

pensamento hegemônico que objetiva se impor, constituindo opressão e aniquilando muitos

saberes indispensáveis à vida, mas que são marginalizados por negar a ordem vigente imposta

pela classe dominante.

A voz da educação popular está presente como base teórica por representar um

conjunto de práticas tecidas junto às classes populares (fábricas, sindicatos, igrejas,

universidades, campo), em que se objetiva levar a educação para os trabalhadores em situação

de pobreza, marginalizados, excluídos de seus direitos básicos e abandonados por uma escola

formal. O método da educação popular oferece base a um dos programas de alfabetização de

brasileiros mais ambiciosos da história, que é proposto pelo ministro da educação Paulo de

Tarso, durante o governo de João Goulart. Paulo Freire é o coordenador do então criado

Programa Nacional de Alfabetização, que com seu método pretende alfabetizar 5 milhões de

adultos em mais de 20 mil círculos de cultura em todo País. Trata-se de uma ação educadora

que busca a conscientização por meio da práxis transformadora, da ação e da reflexão no

sentido da emancipação humana.

Ao analisarmos a presença do conceito de “contra-hegemônico” e “educação

popular”, observamos que há uma relação dialógica entre o PPP e a teoria de Santos e a

proposta de educação de Paulo Freire. Isso demonstra que o PPP tem suas raízes em

pensadores que discutem a exploração dos marginalizados na sociedade e como se efetiva

essa exploração. Assim, observamos uma relação direta entre o discurso e o extra-verbal.

Tudo o que é enunciado vem de fora do sujeito falante, do seu exterior, não pertence a ele,

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200

pois já faz parte de um já-dito e de um já-conhecido, ou seja, do campo cultural do enunciador

e do interlocutor. Somado a isso, Bakhtin (1988, p. 46) assegura que:

[...] Um enunciado isolado e concreto sempre é dado num contexto cultural e

semântico axiológico (científico, artístico, político, etc.) ou no contexto de

uma situação isolada da vida privada; apenas nesses contextos o enunciado

isolado é vivo e compreensível: ele é verdadeiro ou falso, belo ou disforme,

sincero ou malicioso, franco, cínico, autoritário e assim por diante.

Ademais, percebemos que todo discurso é criado a partir de outro, no caso o discurso

científico do PPP dialoga com discursos de outros pesquisadores, evidenciando que “[...]

alguma coisa criada é sempre criada a partir de algo dado” (BAKHTIN, 2011, p. 326). Porém,

Bakhtin (2011, p. 326) acrescenta que todo dado torna-se criado, já que passa pela avaliação

de um eu: “[...] O enunciado nunca é apenas um reflexo, uma expressão de algo já existente

fora dele, dado e acabado”.

Notamos que no plano discursivo, o PPP está voltado não só para o seu objeto,

educação superior para assentados, mas também para o discurso de outros: discursos

científicos, sociais, políticos e educacionais, os quais fazem parte da cadeia discursiva da

educação no Brasil e, assim, como todo “[...] o enunciado é um elo na cadeia da comunicação

discursiva e não pode ser separado dos elos precedentes que o determinam tanto de fora

quanto de dentro, gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonâncias dialógicas”

(BAKHTIN, 2011, p. 300).

A proposta teórica aponta que o curso pretende colaborar para a construção de uma

identidade profissional que esteja relacionada às experiências vividas durante a luta pela terra,

pela reforma agrária e pela educação do campo:

[...] espera-se colaborar para a construção de uma identidade profissional

articulada às experiências anteriores, constituídas ao longo da trajetória

pessoal e coletiva de luta pela terra e por cidadania, ampliando o

compromisso com a profissão e com a realidade complexa dos

assentamentos de reforma agrária (UFGD, 2007, p. 24).

Percebemos que o curso não visa a capacitar um profissional de Ciências Sociais

desvinculado da luta pela terra e pela cidadania. Objetiva-se que a identidade do professor de

Ciências Sociais esteja constituída de suas experiências individuais e coletivas, de forma que

ele se comprometa cada vez mais com as necessidades dos assentamentos e dos movimentos

sociais. A identificação do professor com a luta é fundamental para a continuação do projeto

de transformação social que os movimentos sociais visam. Desse modo, o professor precisa

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201

enxergar-se como professor e sem terra, sem perder de vista a sua trajetória como militante e

como sujeito de uma luta que tem suas raízes ainda no sistema de sesmarias, como discutimos

no primeiro capítulo. A identidade de professor, assentado sem terra e de militante, é o que

define o Eu. Por isso, o curso empreende diversas ações para acentuar essa identidade

múltipla, como início das aulas com a mística, seminários, noites culturais, exposição de

cartazes e, também, atividades de pesquisa nos assentamentos. Observamos, ainda, que o

discurso do PPP objetiva negar a dicotomia homem-mundo, como afirma Paulo Freire, vendo

os homens simplesmente no mundo “[...] e não com o mundo e com outros” homens.

Podemos perceber a relação dialógica entre o PPP e os pressupostos educacionais de

Paulo Freire também na fundamentação teórica do curso:

Pretende-se, ainda, construir um diálogo defendido por Paulo Freire, quando

tudo se troca, tudo se partilha, ou seja, um diálogo entre pessoas que são

capazes de ouvir a outra antes de falar, um diálogo que é estruturado na troca

de experiências qualitativamente diferentes, de aprendizagem do humano,

tudo se aprende e tudo se ensina, sem nenhum tipo de hierarquização do

saber: você-e-eu, nós-e-vocês (UFGD, 2007, p. 24).

A voz do educador ouve-se quando se diz que “[...] tudo se troca, tudo se partilha”,

no sentido de que não há alguém que repassa um conhecimento, mas há uma troca entre os

sujeitos participantes desse processo. Paulo Freire (1996, p. 68), ao afirmar, em A Pedagogia

do Oprimido, que: “[...] Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se

educam entre si, mediatizados pelo mundo”, defende que a aprendizagem se faz em um

contexto de diálogos entre sujeitos. Não há, portanto, um sujeito detentor de um conteúdo que

é repassado a quem não tem conhecimentos. Pelo contrário, no processo da aprendizagem há

trocas de experiências, de forma que o vivido pelos sujeitos envolvidos constitui a

aprendizagem. São as relações humanas e as interações que contribuem para que os homens

eduquem-se. No caso dos acadêmicos do curso, as vivências como empregados nas fazendas,

depois como acampados e, finalmente, como assentados fazem parte da aprendizagem do

curso, pois é este trajeto que os fazem ser sem terra. Por isso, o diálogo é o ponto chave para a

aprendizagem e para a constituição da identidade desses sujeitos. Dialogar com o outro, ser

capaz de ouvir primeiro para depois falar, assim, há o entendimento e a aprendizagem. A

aprendizagem é feita em um diálogo que apresenta o outro, primeiro, e, depois, o Eu.

Consequentemente, há um Nós e um Vocês, o que demonstra uma coesão de ideias. Nessa

perspectiva, o signo educação do campo é constituído pela interação entre o Outro e o Eu,

porque é no diálogo que a aprendizagem é construída.

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202

A presença do discurso indireto na proposta do PPP pode ser vista como um discurso

dentro de outro discurso, uma vez que a voz do PPP se harmoniza, se integraliza com a voz de

Paulo Freire, criando um efeito de sentido de sintonia entre os dois e, ao mesmo tempo,

credibilidade e autoridade ao PPP, pois mostra estar fundamentado no dizer de um dos

maiores expoentes da educação do Brasil. Como Bakhtin salienta (2002), o discurso do outro

pode entrar em nosso discurso “em pessoa”, como um elemento integral da construção do

discurso. Ademais, o dizer “ninguém se educa sozinho” também dialoga com a metodologia

das CEBs, desenvolvida durante seus cursos de formação, quando são lançadas questões aos

trabalhadores e a eles cabia refletir. O resultado da reflexão é sempre uma relação com o

vivido, com sua história e a de sua família, o que refletia o vivido por outros tantos

brasileiros. As CEBs estão fundamentadas pela teoria da Libertação, que prega a libertação do

povo por ele mesmo. Porém, como afirma Freire (1996, p. 30), sabe-se que “[...] a

dependência dos oprimidos” é um “[...] ponto vulnerável”, herança de uma educação rural,

utilizada como método opressor, baseada na adaptação de conteúdos da cidade para o campo,

como também em um discurso católico que previa um lugar secundário para os trabalhadores

rurais no Corpo Místico de Cristo, conforme prega a TFP, apresentada no primeiro capítulo.

Por isso, é necessário, segundo essa perspectiva, tentar, “[...] através da reflexão e da ação,

transformá-la em independência” (FREIRE, 1996, p. 30). Consequentemente à prática do

discurso da teoria da Libertação, às ações das CEBs e à proposta educacional de Paulo Freire,

é possível ver emergir movimentos sociais rurais, como MST e a CPT, como discutimos no

segundo capítulo, elementos sociais que transformam a realidade, principalmente, nas décadas

de 1980 e 1990, de luta pela terra e por justiça social no País.

No que se refere à estrutura curricular68

do curso de Ciências Sociais, observamos

que, ao mesmo tempo em que se quer garantir a formação clássica, teórico-metodológica e

pedagógica, também se assegura uma análise da realidade global, brasileira, sul-mato-

grossense, especialmente, no que se refere aos assentamentos rurais (UFGD, 2007, p. 28).

Garantir a formação clássica evidencia que o curso está fundamentado nas Diretrizes do MEC

68 No que se refere ao Estágio Curricular, o curso objetivou criar condições para a realização de discussões

críticas, possibilitando a reflexão do planejamento, a execução e a avaliação das práticas desenvolvidas pelos

graduandos (UFGD, 2007). Segundo o PPP, o estágio seria um momento para articular a teoria e a prática à

atividade política dos graduandos, o que asseguraria a construção crítica do conhecimento e a reflexão da

realidade social. Assim, busca-se, no estágio, “[...] um permanente ato de reflexão sobre os impasses e soluções

da prática político-social dos/as educadores/as a partir da realidade específica em que ela ocorre, provocar

análises que contribuam para pensar a emergência de políticas públicas nas áreas da reforma agrária, bem como

a discussão crítica da educação do campo” (UFGD, 2007, p. 46).

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203

para qualquer curso de Ciências Sociais, o que nega discursos que apontam para uma

formação de militantes do MST, de radicais, de baderneiros e de comunistas, o que também

faria o investimento ser criticado. São discursos alicerçados em discursos católicos, como os

da TFP, que defendem a tradição, a família e a propriedade. No discurso do Bispo Geraldo de

Proença Sigaud69

, fica evidente a ideia de que as minorias devem aceitar sua condição de

membros inferiores na sociedade assim como no Corpo Místico de Cristo. Há um ato de

responsividade do plano discursivo do PPP que nega o defendido pela Igreja conservadora

nos discursos do Papa Pio IX, do bispo e da TFP, os quais consideram o comunismo uma

doutrina “[...] nefanda [...], contrária ao direito natural, que, uma vez aceita, lança por terra os

direitos de todos, a propriedade, a própria sociedade humana” (PAPA PIO IX, 1960, p. 8-9),

conforme apresentamos no primeiro capítulo.

Tendo em vista as orientações das diretrizes curriculares para o curso de Ciências

Sociais, a estrutura do curso é organizada em três eixos do conhecimento: Sociologia, Ciência

Política e Antropologia. A dimensão epistemológica leva em consideração o pensamento

científico dos profissionais da área, e é obtida por meio das disciplinas obrigatórias

organizadas em três núcleos: Núcleo de Formação Específica, Núcleo de Formação

Complementar e Núcleo de Prática Pedagógica (UFGD, 2007, p. 28).

O Núcleo de Formação Específica constitui-se pelo conjunto de disciplinas cerne da

formação dos futuros profissionais em Ciências Sociais. Já o Núcleo de Formação

Complementar abrange disciplinas de áreas afins, as quais contribuem para a formação do

futuro professor, como Economia, História, Filosofia, Psicologia, Letras, Estatística,

Informática e Geografia. Por fim, o Núcleo de Prática Pedagógica contempla disciplinas

pedagógicas que culminam no estágio. Esse momento ocorre nas unidades escolares e

contempla atividades de observação, participação e regência, também ocorrendo nos

assentamentos por meio de atividades de elaboração e execução de projetos comunitários que

visem ao ensino, extensão e pesquisa (UFGD, 2007, p. 30).

A seguir, apresentamos dois quadros. No primeiro, expomos as disciplinas ofertadas

nos curso de licenciatura em Ciências Sociais, e no segundo as referentes ao curso regular de

Ciências Sociais da UFGD.

69 O bispo Geraldo de Proença Sigaud teria mais tarde criticado a TFP e apoiado a reforma agrária do governo do

General Médici. Disponível em: http://www.pliniocorreadeoliveira.info/MNF_701007_dsigaud_tfp.htm Acesso

em: 10 nov. 2017.

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204

Quadro 3: Estrutura Curricular do Curso de Ciências Sociais/Pronera-UFGD

1º Sem. 2º Sem. 3º Sem. 4º Sem. 5º Sem. 6º Sem. 7º Sem. 8º Sem.

Julh. 2008 Jan. 2009 Julh. 2009 Jan. 2010 Julh. 2010 Jan. 2011 Julh. 2011 Jan. 2012

Teoria Antropológica

Clássica

68h

Teoria

Antropológica

Contemporânea

68h

Informática

68h

Antropologia

Rural

68h

Sociologia

Rural I

68h

Sociologia Rural

II

68h

Geografia Agrária

68h

Relações de

Gênero e Poder

68h

Teoria Política

Clássica

68h

Teoria

Política

Contemporânea

68h

Psicologia

Social

68h

Psicologia da

Educação

68h

Sociologia da

Educação

68h

Estágio Curricular

(Atividade

Prática)

48h

Teoria dos

Movimentos

Sociais

68h

Sociologia

da Comunicação

68h

Introdução

à Sociologia

68h

Teoria

Sociológica

Clássica

68h

Teoria

Sociológica

Contemporânea

68h

História do Brasil

102

Estrutura Social

Brasileira

68h

Pensamento

Social Brasileiro

68h

Políticas Públicas

e Direitos

Humanos

68h

História da África

102h

Filosofia

68h

Metodologia

Científica

68h

Produção de Texto

102 h

Didática I

68h

Didática II

68h

Estrutura e

Funcionamento da

Educação

Nacional

102

História Indígena

102h

Trabalho de

Elaboração

Própria

102h

Língua

Portuguesa

102h

Filosofia e

História

da Educação

68h

Introdução à

Matemática e à

Estatística

102h

Matemática

Financeira

68h

Economia e

Processos

Produtivos

68h

Geografia do

Brasil

102 h

Projeto de

Pesquisa

102h

Língua Brasileira

de Sinais -

LIBRAS

68h

Estágio Curricular

(Atividade

Prática)

*(102h comunidade)

Estágio Curricular

(Atividade

Prática)

*(150h

comunidade)

Estágio Curricular

(Atividade

Prática)

*(100h

comunidade)

Fonte: Adaptado do PPP do curso de Ciências Sociais-UFGD, 2007, p. 31.

* Estágio a ser realizado nos assentamentos rurais durante o Tempo Comunidade.

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Quadro 4: Estrutura Curricular do Curso Regular de Ciências Sociais – UFGD – Licenciatura

1º Sem.

2º Sem. 3º Sem. 4º Sem. 5º Sem.

6º Sem.

7º Sem.

8º Sem.

Introdução à

Antropologia (72hs)

Antropologia

Clássica (72hs)

Antropologia

Contemporânea

(72hs)

Sociologia

do Brasil (72hs)

Fundamentos de Didática

(72hs)

Prática de Ensino

em Ciências

Sociais

(144hs)

Tópicos Especiais em

Ciência Política

(72hs)

Libras-Língua

Brasileira de

Sinais

(72hs)

Introdução à

Ciência Política

(72hs)

Sociologia

Clássica (72hs)

Sociologia

Contemporânea

(72hs)

Antropologia

do Brasil (72hs)

Psicologia do

Desenvolvimento e da

Aprendizagem (72hs)

Etnologia

Indígena (72hs)

Tópicos Especiais em

Antropologia (72hs)

Política e

Educação (72hs)

Introdução à

Sociologia (72hs)

Ciência Política

Clássica (72hs)

Política

Contemporânea

(72hs)

Política

do Brasil (72hs)

Sociologia

da Educação (72hs)

Política e Gestão

Educacional

(72hs)

Tópicos Especiais em

Sociologia (72hs)

Temas em

Educação

e Ciências

Sociais (72hs)

Formação da

Sociedade Moderna

(72hs)

Formação da

Sociedade

Brasileira

(72hs)

Laboratório de

texto

(Disciplina Comum

à área) (72hs)

Tópicos em Cultura e

Diversidade

Etnicorracial

(Disciplina Comum à

Área) (72hs)

Gênero, sexualidade

e educação (72hs)

Educação e

Direitos Humanos

(Disciplina

Comum à Área)

(72hs)

Tópicos em Ensino de

Ciências Sociais

(144hs)

Eletiva (72hs)

Eixo (72hs) Eixo (72hs) Eixo (72hs) Educação Especial

(Disciplina

Comum à Área)

(72hs)

Estágio

Curricular I (126hs)

Estágio

Curricular II

(126hs)

Estágio

Curricular III (126hs)

Estágio

Curricular IV

(126hs)

Eletiva (72 hrs) Eletiva (72hs)

Eletiva (72hs) Eletiva (72hs)

Fonte: UFGD. Faculdade de Ciências Humanas. Projeto Pedagógico Curricular do Curso de Ciências Sociais – Licenciatura.

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No Quadro 3, observamos disciplinas que contemplam os três eixos do conhecimento

do curso de Ciências Sociais (PRONERA): Sociologia, Ciência Política e Antropologia. Além

dessas, notamos que também há Informática, Produção de Texto, Língua Portuguesa e

Introdução à Matemática e Estatística. A presença dessas disciplinas nos cursos regulares de

Ciências Sociais, conforme Quadro 4, não é comum, mas no curso em análise elas estão

presentes por terem sido uma solicitação dos movimentos sociais que trazem para a

Universidade os pedidos dos trabalhadores rurais. Verificamos que no curso de Ciências

Sociais (PRONERA), estudos de linguagem são contemplados em duas disciplinas: Produção

de Texto e Língua Portuguesa, cada uma com uma carga horária de 102 horas; já no curso

regular, aparecem na disciplina Laboratório de Textos, cuja carga horária é de 72 horas.

Inferimos que o pedido por duas disciplinas voltadas ao ensino-aprendizagem da linguagem

signifique que, para os trabalhadores rurais de Mato Grosso do Sul, ter conhecimentos

linguísticos é fundamental enquanto assentados e futuros professores, como também são

imprescindíveis para os futuros acadêmicos.

São várias vozes que ecoam no PPP com relação às disciplinas voltadas para o

estudo da linguagem. Podemos pensar, em um primeiro momento, que essa presença deva-se

a um discurso naturalizado na sociedade que aponta para a importância de se “dominar a

língua portuguesa”. Porém, ao analisar a trajetória de luta pela terra no Brasil, assim como a

constituição dos movimentos sociais rurais, observamos que a língua aqui significa poder,

significa que, ao se relacionar melhor com a língua da universidade, pode-se garantir sucesso

nas lutas diárias dos assentados, seja na escola, na prefeitura e nos meios judiciais.

O Documento evidencia um respeito às demandas apresentadas pelos trabalhadores

rurais, bem como a toda trajetória sócio-histórica dos vivenciada pelos trabalhadores rurais

durante suas lutas pela terra, pela reforma agrária e pela educação do campo. Ouvem-se

diferentes vozes, pois os sujeitos envolvidos no processo de elaboração do PPP, de gestação e

de efetivação do curso também fazem parte dessa trajetória sócio-histórica da luta, no papel

de sujeitos pesquisadores, de sujeitos professores e, também, de sujeitos militantes da causa

da reforma agrária no Brasil. Suas vozes também constituem o PPP e as práticas discursivas

do curso, assim como também são constituídas pela interação com os sujeitos sem terra e os

movimentos sociais rurais.

Em um curso destinado a estudantes sem terra, a avaliação é considerada uma ação

fundamental para o êxito do aproveitamento dos alunos, pois é compreendida como uma

atividade política com função de subsidiar a tomada de decisões durante o seu funcionamento

(UFGD, 2007). A proposta curricular é avaliada pelo colegiado do curso de forma contínua e

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207

durante o processo de desenvolvimento do curso, a fim de melhorar a proposta inicial e

adequar-se às necessidades que surgissem durante a realização do curso (UFGD, 2007, p. 45).

As reuniões são feitas entre as coordenadoras do curso, os professores das disciplinas

oferecidas durante a etapa, os representantes dos movimentos sociais e, também, os do Incra.

Os professores apresentam os planos e pedem sugestões. Além disso, são tratados assuntos de

infraestrutura, situações de alunos, dentre outros.

No que se refere ao ensino-aprendizagem70

, o PPP objetiva avaliar o processo

epistêmico de construção do conhecimento, compreendendo a avaliação como um processo

pedagógico de interação contínua entre os envolvidos no procedimento (UFGD, 2007, p. 28).

Observamos que, ao selecionar métodos qualitativos para se avaliar, de forma contínua e

mediante diferentes instrumentos, o discurso do PPP nega as formas tradicionais de avaliação

utilizadas no ensino básico e superior. A avaliação no curso não é vista como um instrumento

de controle, de medida, de classificação e de comparação, mas sim como um processo de

construção conjunta do conhecimento. Pensa-se na realidade do aluno e na mediação de

conhecimentos que ele precisa conhecer, refletir e questionar para desenvolver suas atividades

como professor e como um militante da reforma agrária. Leva-se em consideração sua

constituição enquanto estudantes e morador do campo, o qual muitas vezes precisa deixar a

escola por causa da mudança dos pais, pela distância, pela dificuldade para chegar à escola,

pela falta de transporte público ou pelos afazeres no sítio. Na Universidade, aos acadêmicos

serão solicitadas atividades que estejam relacionadas com a sua vivência como universitário e,

também, as que estejam voltadas para sua formação humanística. Por isso, o curso prioriza

resumos, resenhas, artigos, seminários, debates, pesquisa e produção intelectual, estudo

dirigido, desenvolvimento de projetos nas comunidades, resolução de questões temáticas,

como ainda autoavaliação individual e grupal, com ênfase na relação democrática entre

professores e alunos (UFGD, 2007, p. 28). Notamos que esses instrumentos colaboram para

uma formação ampla do universitário, o qual não passa por uma prova para demonstrar que

sabe um determinado conteúdo.

70 As atividades complementares efetivaram-se por meio de simpósios, encontros, mesas redondas, oficinas,

laboratórios e viagens de campo. Nesses momentos, objetivou-se discutir temas voltados às transformações

sociais pelas quais a sociedade vigente passa (UFGD, 2007). Entre as temáticas discutidas destacam-se os

movimentos sociais, as políticas públicas e desenvolvimento rural, os direitos humanos, a educação do campo, a

produção e reprodução das relações sociais, a sustentabilidade, as questões de gênero, a reforma agrária (UFGD,

2007, p. 28).

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208

A concepção de avaliação do curso mantém uma relação dialógica com o postulado

por Libâneo (1994, p. 195):

[...] avaliação é uma tarefa complexa que não se resume à realização de

provas e atribuição de notas. A mensuração apenas proporciona dados que

devem ser submetidos a uma apreciação qualitativa. A avaliação, assim,

cumpre funções pedagógico‐didáticas, de diagnóstico e de controle em

relação às quais se recorre a instrumentos de verificação do rendimento

escolar.

Dessa forma, o signo avaliação, no curso de Ciências Sociais, refrata a construção

sócio-histórica da avaliação concebida como um instrumento de intimidação, de medo, de

hierarquização, de controle social, de exclusão, de punição e de disciplina (LUCKESI, 2011).

Ao negar a concepção tradicional de avaliação, o signo avaliação refrata a herança do passado

e, ao mesmo, tempo dialoga com discursos futuros, ao demonstrar para outros cursos e para os

próprios acadêmicos, futuros professores, que é possível construir uma avaliação interativa e

mediada.

Como podemos perceber, o plano discursivo do PPP estabelece uma relação

dialógica com estudos de educadores brasileiros, como Libâneo e Luckesi. A concepção

adotada pelo curso é a defendida por educadores como esses, o que é resultado de uma

posição ideológica do grupo de professores de um processo axiológico acerca da avaliação,

em que se nega a avaliação tradicional para assumir uma avaliação contínua e mediada. Não

se trata de uma ideologia construída no decorrer da elaboração do PPP, mas de uma ideologia

construída por meio das vivências, das recusas, das sustentações e dos estudos feitos por esse

grupo de professores ao longo de suas experiências com a educação. Como afirma Ponzio

(2012, p. 115):

[...] A ideologia é a expressão das relações histórico-materiais dos homens,

mas ‘expressão’ não significa somente interpretação ou representação, mas

também significa organização, regularização dessas relações. [...] no signo

ideológico está sempre presente uma ‘acentuação valorativa’, que faz com

que o mesmo não seja simplesmente expressão de uma ‘ideia’, mas a

expressão de uma tomada de posição determinada, de uma práxis concreta.

(Grifos do autor).

Isso revela o que para o Círculo de Bakhtin é evidente, como ressalta Faraco (2009,

p. 47): não existem enunciados não ideológicos e “[...] ideológico em dois sentidos: qualquer

enunciado se dá numa esfera de uma das ideologias [...] e expressa sempre uma posição

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209

avaliativa.” O ideológico também se revela, portanto, por meio das relações dialógicas,

penetradas no íntimo do enunciado. As relações dialógicas demonstram as relações entre

enunciados, completos ou relativamente completos, como sustenta Bakhtin (1981, p. 184):

As relações dialógicas são possíveis não apenas entre enunciações integrais

(relativamente), mas o enfoque dialógico é possível a qualquer parte

significante do enunciado, inclusive a palavra isolada, caso esta não seja

interpretada como palavra impessoal da língua, mas como signo da posição

semântica de um outro, como representante do enunciado de um outro, ou

seja, se ouvimos nela a voz do outro. Por isso, as relações dialógicas podem

penetrar no âmago do enunciado, inclusive no íntimo de uma palavra isolada

se nela se chocam dialogicamente duas vozes (o microdiálogo de que já

tivemos oportunidade de falar).

Por outro lado, as relações dialógicas são possíveis também entre estilos de

linguagem, os dialetos sociais, etc., desde que sejam entendidos como certas

posições semânticas, como uma espécie de cosmovisão da linguagem, isto é,

numa abordagem não mais linguística.

Por último, as relações dialógicas são possíveis também com a sua própria

enunciação como um todo, como partes isoladas desse todo e com uma

palavra isolada nele, se de algum modo nós nos separamos dessas relações,

falamos com ressalva interna, mantemos distância face a elas, como que

limitamos ou desdobramos a nossa autoridade.

No caso das disciplinas de Língua Portuguesa (2008) e de Produção de Texto (2009),

as atividades avaliativas, realizadas no tempo comunidade, objetivaram continuar as reflexões

feitas em sala de aula. Aos acadêmicos foram solicitadas leituras, resumos, análise crítica de

textos e pesquisa com a comunidade, como pode ser visto a seguir na relação de atividades

solicitadas:

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210

Quadro 5: Atividades Avaliativas para o Tempo Comunidade

Disciplina: Língua Portuguesa (2008)

Atividade 1: Leia e resuma o capítulo: A leitura de textos, de autoria de João Wanderley

Geraldi. (Geraldi, João Wanderley. Portos de Passagem. São Paulo: Martins

Fontes, 1997).

Atividade 2: Leia e resuma o capítulo: Memória oral, enredo e caracterização, de Walter Ong.

(Walter Ong. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra.

Campinas: Papirus, 1998. [original inglês: 1982]).

Atividade 3: Leia e resuma o capítulo: Decisões preliminares sobre o texto a produzir, de

Lucília Helena do Carmo Garcez. (Garcez, Lucília Helena do Carmo. Técnica de

Redação – o que é preciso saber para bem escrever. São Paulo: Martins Fontes,

2008).

Atividade 4: Leia e resuma o capítulo: Como escrevemos, de Lucília Helena do Carmo

Garcez. (Garcez, Lucília Helena do Carmo. Técnica de Redação – o que é

preciso saber para bem escrever. São Paulo: Martins Fontes, 2008).

Atividade 5: Leia e resuma o capítulo: Verdade e memória do passado, de Jeanne Marie

Gagnebin. (GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar Escrever Esquecer. São Paulo:

Ed. 34, 2006).

Atividade 6: Leia e resuma o capítulo: Memória, história e testemunho, de Jeanne Marie

Gagnebin. (GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar Escrever Esquecer. São Paulo:

Ed. 34, 2006).

Atividade 7: Leia e resuma o capítulo: Sumarização: processo essencial para a produção de

resumos, de Anna Rachel Machado, Lilia Santos Abreu-Tardelli e Eliane Lousada.

(MACHADO, Anna Rachel; ABREU-TARDELLI, Lilia Santos; LOUSADA,

Eliane. Resumo. Vol. 1. São Paulo: Parábola Editorial, 2004).

Atividade 8: Faça um levantamento de elementos culturais de sua comunidade no que diz

respeito à crença, à superstição, a ditados populares, a comidas típicas, que são

conhecimentos passados de geração para geração (benzeção, cuidados com

crianças, ditados populares, causos de assombração, causos de aventura, receitas

de comidas típicas).

Sugestões para realizar a pesquisa e a elaboração do texto:

1) Verificar na comunidade em que você mora quais são as pessoas que podem

lhe passar informações.

2) Marcar um horário com as pessoas escolhidas (roda de tereré, mate).

3) Registrar por meio escrito ou gravado a(s) entrevista(s) feita(s).

4) Em casa, ouvir o que foi gravado ou reler o que escreveu na hora da entrevista.

5) Destacar do material recolhido o que mais chamou a sua atenção e escrever

um texto contando como foi a entrevista, quem foi (foram) o(s) entrevistado(s) e

o que ele(s) contou(contaram).

Atividade 9: Faça uma análise crítica do texto Chapeuzinho vermelho e o lobo torturador,

relacionando o texto ao título e à sua realidade. (BERQUÓ, Alberto. Chapeuzinho

vermelho e o lobo torturador. Brasília: Literatura e Editora Ltda. In: DISCINI,

Norma. Intertextualidade e conto maravilhoso. São Paulo, Humanitas, 2002).

Atividade 10: Escreva um texto em que relate a origem do seu nome.

Atividade 11: Leia o livro Indez, de Bartolomeu Campos Queirós.

Elaborado pela Autora (2017).

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211

Quadro 6: Atividade Avaliativa para o Tempo Comunidade (Arquivo Pessoal)

Disciplina: Produção de Texto (2009)

Atividade 1:

Elabore um relato que apresente passagens de sua vida

que julgue importantes.

Elaborado pela Autora (2017).

Como podemos notar, as atividades avaliativas, assim como as aulas não apresentam

preocupação com o ensino de gramática tradicional, mas possibilitam aos acadêmicos lerem

textos que estão relacionados à memória e à oralidade, bem como à sua presença no

assentamento e na própria vida do assentado. Uma das atividades que mais chama a atenção

dos graduandos é a pesquisa de campo que consistiu em entrevistar outros assentados a fim de

levantar traços culturais dos assentamentos. O resultado da pesquisa apresenta receitas típicas,

receitas de remédios caseiros, ditos populares e causos, os quais são socializados em uma

Noite Cultural com a presença de todos dos professores do curso. Na ocasião, serviu-se um

jantar composto por dois pratos típicos, o sarravulho, receita coletada por uma acadêmica da

região de Corumbá, fronteira com a Bolívia, e a sopa paraguaia, cuja receita é apresentada por

outra acadêmica, moradora em um assentamento localizado na fronteira com o Paraguai. Ao

relatarem as experiências vivenciadas na Universidade, muitos graduandos destacam a

atividade de levantamento de traços culturais dos assentamentos como uma experiência

enriquecedora para eles, por não imaginarem que os assentamentos possuíssem seus aspectos

culturais e que basta conversar com os moradores para que as lembranças venham à tona.

Já a disciplina de Produção de Texto (2009) solicita a elaboração de um relato

pessoal, corpus de nosso estudo. Como podemos observar por meio das leituras efetivadas na

primeira disciplina que privilegiaram a memória e a oralidade, os relatos pessoais possibilitam

aos acadêmicos voltar ao passado e avaliar o vivido. Para eles, essa experiência também é

marcante, pois os leva a lembrar de fatos esquecidos, mas que são trazidos à tona com a

atividade.

Da mesma forma que a avaliação no curso de Ciências Sociais nega os aspectos

tradicionais de ensino, o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) também, uma vez que

consiste na realização de uma pesquisa que articule questões teóricas discutidas no curso com

a realidade vivenciada nos assentamentos rurais, sendo orientado por professores da UFGD.

Desse modo, não se trata de um trabalho desarticulado da vivência do acadêmico, mas uma

atividade que interage com o seu interesse e com o de sua comunidade. Não se trata, porém,

de uma atividade apartada das regras universitárias, já que, ao seu término, o TCC é

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apresentado em formato de artigo científico e depois exposto em seminário realizado no final

do curso.

O público alvo do curso é exclusivamente pessoas residentes em assentamentos

rurais federais do estado de Mato Grosso do Sul (UFGD, 2007, p. 50). Isso demostra a

existência de uma rede de diálogos e parceira entre a Universidade, o Incra e os movimentos

sociais rurais. São órgãos federais e movimentos sociais que concretizam suas ideias em um

curso voltado para sem terra.

Sendo um curso particularmente oferecido para pessoas sem terra, alguns critérios

foram adotados quanto ao vestibular. Os candidatos devem apresentar:

a) Comprovação, no ato da inscrição ao processo seletivo, de que é

assentado/a ou seu dependente (comprovação através de documento emitido

pelo INCRA);

b) Possuir formação concluída em ensino médio, comprovada através de

documento reconhecido pelo MEC (UFGD, 2007, p. 51).

Ser assentado representa uma condição essencial para a realização do curso, pois

todo o curso é pensado dentro de uma perspectiva que retoma a trajetória de luta pela terra e

pela reforma agrária no Brasil e se coloca nesse percurso. Desse modo, as experiências

vivenciadas pelos assentados durante os acampamentos, a chegada ao assentamento e a

participação nos movimentos sociais são fundamentais para que as discussões trouxessem

reflexões acerca de situações particulares e, também, de situações coletivas, o que contribui

em muito para o processo de formação dos graduandos como também dos professores.

O processo de seleção é conduzido pela UFGD e organizado em três fases: produção

de uma redação, prova objetiva, contemplando questões de Matemática, Língua Portuguesa,

História e Geografia, e entrevista (UFGD, 2007). Durante as três etapas, o candidato deveria

demonstrar:

Coerência, coesão e capacidade de expressar idéias;

Conhecimentos da realidade brasileira e das questões agrárias;

Capacidade de enfatizar a trajetória pessoal e os motivos da escolha do

curso em Ciências Sociais;

Expectativas quanto às contribuições do curso para a atuação profissional

como educadores/as político-sociais (UFGD, 2007, p. 51).

A primeira etapa que consta da elaboração de uma redação é eliminatória, devendo o

candidato atingir no mínimo 20 pontos e no máximo 50 pontos. A prova objetiva é

classificatória, sendo formada de questões de múltipla escolha, com pontuação máxima de 25

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pontos. A entrevista é classificatória, sendo pontuada de zero a 25 pontos. As três etapas

somaram 100 pontos no total (UFGD, 2007).

O PPP ressalta que o processo seletivo respeitaria as especificidades de quem mora

no campo e a dinâmica da construção do conhecimento dessas pessoas. Salienta ainda que se

trata de um processo seletivo diferenciado, tanto na composição das provas quanto nos

critérios de avaliação (UFGD, 2007). O diferenciado já se poderia ser percebido na proposta

de redação:

Leia o texto a seguir.

É possível perceber, entre os camponeses, a capacidade que eles têm de se

erguerem contra esquemas de dominação e subordinação. Os movimentos

sociais são reconhecidos como as principais formas de os camponeses se

rebelar contra a ordem desigual e ainda reivindicar melhores condições de

vida, enfim, transformações sociais. Pelos movimentos sociais, os

camponeses se fazem ouvir e garantem a sua existência [...].

(João Edmilson Fabrini - Adaptado)

O texto lido, de autoria de João Edmilson Fabrini, trata da importância de os

camponeses se organizarem, por exemplo, através de movimentos sociais

para que eles tenham suas reivindicações ouvidas.

Com base no texto lido e nas suas experiências, elabore uma dissertação

argumentativa apresentando a importância da participação dos camponeses

em movimentos sociais para reivindicar melhores condições de vida

(ARQUIVO PESSOAL).

Podemos notar que a proposta não apresenta um tema universal ou um problema

vivenciado por toda sociedade brasileira. Ao contrário, traz para o assentado um tema

presente em seu vivido, no caso a participação nos movimentos sociais. A segunda etapa

também é diferenciada por apresentar questões de diferentes disciplinas voltadas ao contexto

social de luta pela terra e feitas por professores que já tinham pesquisas voltadas à reforma

agrária. Já a terceira etapa consta de entrevistas, em que os professores da Universidade

juntamente com representantes do Incra e dos movimentos sociais rurais lançam perguntas

aos assentados, a fim de conhecer melhor suas trajetórias como assentados sem terra.

As análises da multiplicidade de vozes presentes no PPP do curso de Ciências

Sociais para assentados de Mato Grosso do Sul mostram que o discurso desse documento

congrega vozes do passado de luta dos trabalhadores rurais sem terra a favor da distribuição

igualitária da terra, como a de seus oponentes contrários às reformas fundiárias, como

discutido no primeiro capítulo. Percebemos, nesse cenário de resistências, o papel

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significativo e a valorizado da educação, visão resultado de experiências amargas e vitoriosas

de camponeses que enxergam na formação política e intelectual o alicerce para o

desenvolvimento de propostas viabilizadoras de justiça social e redistribuição de terras no

Brasil.

O signo educação do campo é oficializado pelas Diretrizes Operacionais para

Educação Básica nas Escolas do Campo. No entanto, os sentidos construídos no PPP apontam

que esse signo constitui-se na relação com os signos terra e reforma agrária, bem como na

oposição ao signo educação rural, como podemos observar no Quadro 7. Desse modo,

podemos inferir que a relação estabelecida entre os três signos demonstra que a luta dos

trabalhadores rurais sem terra não se limita à terra, mas abrange outros direitos dos cidadãos

do campo, como educação.

Quadro 7: Síntese dos sentidos construídos no PPP do curso para os signos ideológicos terra,

reforma agrária e educação do campo

Terra Reforma Agrária Educação do Campo

Contrário ao ensino deficitário

Contempla todos os níveis de educação

Parceria

Contrário à educação rural

Pontua necessidades concretas do campo

Formação humanística

Participa do movimento social

É responsável em garantir a permanência do

trabalhador no campo

Refrata a história vivenciada pelos trabalhadores

rurais sem terra com a educação rural

Privilegia a ação libertadora

Reflete a visão de educação para a transformação

social

Agrega teoria à prática social dos assentamentos

Contempla as experiências vivenciadas em grupo

Privilegia a participação da comunidade na escola

Considera o vivido pelos estudantes sem terra

Compromete-se com a ética

Tem compromisso social

Preza pela coletividade

Compromete-se com a formação do outro

É fruto de um processo histórico de lutas

Elaborado pela autora (2018).

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Percebemos que os sentidos construídos opõem-se aos de educação rural e de ensino

deficitário, aspectos por muito tempo associados ao campo, o que o caracterizou como lugar

de atraso e de ignorância. Observamos no Quadro 7 que os sentidos do signo educação do

campo no PPP relacionam-se com as lutas empreendidas anteriormente por terra e por

reforma agrária, bem como dialoga com os princípios dos movimentos sociais rurais,

principalmente, MST e CPT, por exemplo, ao privilegiar a parceria, pontuar as necessidades

do campo, contemplar as vivências dos graduandos, buscar uma educação libertadora e ter

compromisso social.

Como podemos perceber, o PPP não apresenta sentidos para os signos terra e

reforma agrária. Inferimos que isso ocorra em decorrência do fato de se pensar a educação do

campo e a educação superior para assentados sempre relacionada à história da terra e da

reforma agrária no Brasil. Assim, quando se pensa em educação para assentados, nesse

contexto, já se parte da existência de uma luta continua por terra e reforma agrária que agora

traz para o cenário político a luta pela educação do campo.

Ademais, os sentidos do signo educação do campo revelam qual é a educação que os

trabalhadores rurais e os movimentos sociais do campo querem para suas escolas. Trata de

uma escola que vincula à realidade do assentamento e às lutas de seus companheiros no

passado. Do mesmo modo, não deixa de buscar uma educação de qualidade para que os filhos

de camponeses tenham o direito de continuar no campo, tendo acesso à cultura e

conhecimento. Assim, a educação do campo tem um papel primordial nos assentamentos,

acampamentos e, também, na luta por reforma agrária, pois ela garante a libertação do povo

do campo, bem como o desenvolvimento sustentável dos assentamentos.

Como sabemos essa luta é árdua e histórica como evidenciam os enunciados

analisados, nos quais ecoam vozes consoantes e destoantes ao processo de reforma agrária e

de educação superior para assentados. As vozes destoantes não são abafadas ou silenciadas

como no discurso monológico. Ao contrário, elas ecoam para que possam ser respondidas,

rechaçadas e criticadas. Desse modo, os enunciados dos documentos analisados mostram que

o curso de Ciências Sociais é uma força centrífuga que objetiva romper o poder imposto pelas

forças centrípetas, centradas na autoridade e na tradição escolar, as quais visam fortalecer o

consenso e a unidade. Ao apresentar um coro de vozes equipolentes e polifônicas, os

enunciados analisados evidenciam que, como uma força centrífuga, o curso pretende

descentralizar o poder do ensino, geralmente, presente nas mãos do professor, imprimir

mudanças no cenário do ensino superior, promover uma crítica às metodologias tradicionais

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de ensino e valorizar gêneros discursivos, muitas vezes, ignorados pelas forças centrípetas,

como os relatos pessoais, pois são portadores de tendências sociais.

Percebemos que, nos enunciados analisados, cruzam-se as diferentes forças, pois

como observa Bakhtin (2002, p. 82), cada “[...] enunciação concreta do sujeito do discurso

constitui o ponto de aplicação seja das forças centrípetas, como das centrífugas”. Os

enunciados são o palco em que a tensão entre uma multiplicidade de vozes cria processos de

“[...] centralização e descentralização, de unificação e de desunificação” (BAKHTIN, 2002, p.

82), revelando o movimento do discurso, evidenciando seu caráter sócio-histórico, sua

exterioridade e sua vivacidade.

Desvelar a polifonia e as relações dialógicas revela como os discursos estão

organizados fora de si, em seu exterior: “[...] O discurso vive fora de si mesmo, na sua

orientação viva sobre seu objeto: se nos desviarmos completamente desta orientação, então,

sobrará em nossos braços seu cadáver nu a partir do qual nada saberemos, nem de sua posição

social, nem de seu destino” (BAKHTIN, 2002, p. 99). Não estamos com um cadáver nu nas

mãos, mas com a vida concreta, com um fenômeno vivo que se revela em uma multiplicidade

de fios dialógicos. São diferentes vozes que apresentam ideologias de governos conservadores

e, também, dos mais populistas, bem como se relacionam com vozes não governamentais

empreendedoras de ações contra e favor da reforma agrária e, consequentemente, da educação

do campo. Nessa direção, pelo viés bakhtiniano, os enunciados do PPP demonstram ser mais

um elemento da cadeia discursiva de luta pela terra, pela reforma agrária e pela educação do

campo, incorporando a essa luta os olhares da universidade, sejam eles contra e favor e, ainda,

trajetórias vivenciadas pelos trabalhadores rurais sem terra que almejam chegar ao ensino

superior.

Diante disso, o curso é uma ação de resistência empreendida por movimentos sociais,

representantes dos trabalhadores rurais sem terra de Mato Grosso do Sul, professores

universitários, reitoria e governo federal, caracterizados por uma ideologia social, de justiça,

de cidadania e, ainda, por uma política nacional, do então governo federal, de ampliar o

acesso de pessoas assentadas ao ensino superior, como uma forma de democratizar o direito à

educação e viabilizar novos caminhos para a conquista de uma sociedade mais justa.

Veremos, no próximo capítulo, como as ações ideológicas desses sujeitos foram

significativas na constituição da identidade dos acadêmicos, tendo em vista suas trajetórias de

exclusão social vividas desde a infância, quando o sistema de ensino vigente e a falta de

condições financeiras dos pais fizeram com que eles abandonassem a escola e reprovassem

devido à distância, aos trabalhos realizados no sítio e à falta de condições econômicas. Com o

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curso, eles vislumbram a possibilidade de voltar a estudar – um sonho antigo deles e de seus

pais –, de estar em uma universidade pública e com a oportunidade de terminar o curso para,

assim, continuar a percorrer sua trajetória sempre inconclusa rumo a novos desafios.

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CAPÍTULO IV – OS RELATOS PESSOAIS: VOZES CONSTITUINTES

DA IDENTIDADE DE ACADÊMICOS SEM TERRA

Neste capítulo, debruçamo-nos sobre os relatos pessoais dos graduandos sem terra,

com o objetivo de percebemos as vozes que constituem suas identidades numa relação

dialógica com as vozes apresentadas nos capítulos anteriores.

Consideramos o gênero discursivo como formas-padrão relativamente estáveis de

discursos, mas que se diferenciam conforme o tema, o estilo e a organização composicional.

São marcados sócio-historicamente e, pois, estão diretamente ligados às diferentes situações

de interação pela linguagem (BAKHTIN, 2011). Os três elementos “[...] fundem-se

indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de

uma esfera de comunicação” (BAKHTIN, 2011, p. 263). Os gêneros refletem a variedade de

utilização da língua feita pelos indivíduos e os enunciados são construídos de acordo com as

condições específicas e as finalidades de cada esfera da comunicação.

A riqueza e a variedade dos gêneros acompanham a infinita variedade da atividade

social humana, e cada esfera (cotidiana, do trabalho, científica, jurídica, escolar, religiosa)

dessa atividade é composta por um repertório de gêneros discursivos que se diferenciam e se

ampliam a partir do desenvolvimento de cada uma (BAKHTIN, 2011). Diante da capacidade

humana de elaborar uma infinita variedade de gêneros, podemos pensar que não há e não

poderia existir um terreno comum para seu estudo, de forma a colocar no mesmo terreno de

análise um relato familiar e uma ordem militar padronizada, cada uma com suas

características particulares.

Ao conceituar os gêneros do discurso como tipos relativamente estáveis de

enunciados, Bakhtin (2011) apresenta a natureza verbal comum entre gêneros e enunciados,

visualizando os gêneros pela sua historicidade, razão pela qual não são de natureza

convencional. O autor analisa-os como tipos históricos, quando relaciona a eles o mesmo

caráter de enunciado, caráter social, discursivo e dialógico. Desse modo, não é possível, para

Bakhtin, ignorar a natureza do enunciado e as suas características particulares de gênero, pois

isso leva ao formalismo e à abstração, desconsiderando a historicidade do enunciado e

enfraquecendo o vínculo existente entre a língua e a prática social. Assim, a língua está

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inserida na vida por meio dos enunciados concretos, os gêneros discursivos que dão existência

a ela. Da mesma forma, por enunciados concretos, a vida se insere na língua. São os

elementos da língua que adquirem o “[...] perfume específico dos gêneros dados: eles se

adequam aos pontos de vista específicos, às atitudes, às formas de pensamento, às nuanças

e às entonações desses gêneros” (BAKHTIN, 2002, p. 96).

Consideramos que os gêneros também organizam os discursos e guardam as nuances

pelas quais podemos perceber a constituição da identidade. A identidade, na perspectiva

bakhtiniana, é estabelecida dialogicamente com o outro, pois é por meio dos olhos desses

outros que o Eu se reconhece e se projeta como sujeito social. O sujeito, para Bakhtin, é

constituído socialmente em suas múltiplas relações dialógicas com o outro. Não há um sujeito

alheio ao outro. O outro é parte integrante do Eu-graduando sem terra. Desse modo, o sujeito

bakhtiniano é o resultado de uma incessante relação dialógica, na qual ele assimila “[...] vozes

sociais e, ao mesmo tempo, suas inter-relações dialógicas” (FARACO, 2009, p. 84). Essas

vozes, no entanto, não são apenas as do seu grupo social, companheiros militantes, familiares,

mas são também as do grupo social dominante, políticos conservadores, latifundiários.

De acordo com Ponzio (2016), apresentar o outro como elemento primordial na

construção da identidade de um sujeito significa a “revolução bakhtiniana”, em que o outro

não tem lugar central, mas é o eixo de todo trabalho de constituição do sujeito, logo de sua

identidade. Desse modo, a identidade em Bakhtin constitui-se na alteridade, ou seja, na

relação ativa e espontânea com o outro. O eu e o outro são os dois centros de valor, os quais,

mesmo diferentes, estão inter-relacionados. Além disso, o outro é uma figura exigida pelo eu,

pois àquele cabe completar o eu, embora seja essa completude impossível, pois a interação

verbal é dinâmica, constante e sempre pede outras completudes.

Por meio do emaranhado de vozes que compõem os relatos pessoais, vamos

percebendo a intensa relação do eu-acadêmico sem terra com o outro – militantes, religiosos,

familiares, latifundiários, governos conservadores. Assim, podemos perceber visões de

mundo, avaliações dos fatos vivenciados, como também dos movimentos sociais, das

instituições públicas e, principalmente, sobre do sistema excludente e aristocrático que rege a

distribuição da terra no Brasil, caracterizado, como percebemos nos capítulos anteriores,

como injusto e explorador.

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4.1 Vozes Teóricas

Buscamos nos capítulos anteriores apresentar e analisar vozes sócio-históricas que

fazem parte do continuo da história da terra no Brasil. Assim como essas, as vozes dos relatos

pessoais também fazem parte desse continuo, dialogando com os eventos discursivos

destacados, o que evidencia que a identidade é construída na relação com o outro, ou seja,

com outros discursos e outras experiências precedentes, como também dialogam com

discursos do futuro. Dessa forma, analisar o gênero discursivo relato pessoal é fundamental

para desvelarmos a identidade dos graduandos sem terra, por estabelecerem com o passado

um diálogo, de modo a avaliá-lo e a experiênciá-lo novamente.

A constituição heterogênea dos relatos pessoais revela que a identidade dos

graduandos são constituídas na relação com o outro, ou seja, na alteridade. Desse modo, o ser

se reflete no outro, refratando-se. Nesse processo, o sujeito também se modifica, o que se

efetiva socialmente, na interação com o outro. No caso da identidade dos graduandos sem

terra, observamos que o outro – familiares, companheiros de luta, militantes como também

latifundiários, governos conservadores e grupos religiosos de oposição – é figura

constantemente presente na constituição de suas identidades, sendo elos na correia discursiva

da história da terra.

4.1.1 Gêneros Discursivos

Nos trabalhos do Círculo de Bakhtin (2000, p. 32), observamos uma análise de

grande parte dos domínios das Ciências Humanas, enfatizando questões sobre língua, signo,

enunciação, consciência, atividade mental, ideologia. Como já mostramos nos capítulos

anteriores, todo signo está sujeito aos critérios de uma avaliação ideológica, tendo em vista

que onde se encontra um signo também se encontra o ideológico. Para Bakhtin, existem

diferenças profundas na esfera ideológica ou no domínio dos signos, pois se trata do domínio

da representação, do símbolo religioso e da fórmula científica. Cada esfera social possui seu

próprio modo de se orientar para a realidade e a refrata de acordo com a sua visão. Por isso, os

signos não são uma sombra da realidade tampouco é um reflexo da realidade, mas eles são um

fragmento material da própria realidade. Nessa visão, Bakhtin (2002, p. 33) salienta que “[...]

a própria consciência só pode surgir e se afirmar como realidade mediante a encarnação

material em signos”, o que se evidencia por meio dos gêneros discursivos.

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221

Bakhtin (2002) discute que o fundamental nos estudos dos gêneros não é uma

teorização, focalizando o produto, mas o processo de produção (quem é o enunciador, em que

momento e espaço enuncia, quem é o destinatário). A respeito dessa concepção, Fiorin (2016,

p. 68) destaca que, para o Círculo, interessa “[...] menos as propriedades formais dos gêneros

do que a maneira como eles se constituem”. Faraco (2009, p. 126) também explica que “[...] o

Círculo assevera axiologicamente uma estreita correlação ente os tipos de enunciados

(gêneros) e suas funções na interação socioverbal; entre os tipos e o que fazemos com eles no

interior de uma determinada atividade social”.

Partindo da concepção bakhtiniana, percebemos um vínculo direto entre a utilização

da linguagem e as atividades humanas, já que essa perspectiva teórica concebe os enunciados

em sua função no processo de interação. O processo de interação efetiva-se nas esferas de

atividades, como universidade, igreja, escola, judiciário, política, comércio, mídia, redes

sociais e, conforme Fiorin (2016, p. 68), essas“[...] esferas de atividades implicam a utilização

da linguagem na forma de enunciados”, o que leva o autor a afirmar que não existem

enunciados fora das esferas sociais. São essas esferas que acarretam a produção de “tipos

relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2011, p. 262) que estão em constante

movimento entre a estabilização e a mudança, uma vez que vivem na interação entre sujeitos.

Nessa perspectiva, Bakhtin (2002, p. 43) realça que “[...] cada época e cada grupo social têm

seu repertório de formas de discurso na comunicação sócio-ideológica.” Essa afirmação nos

leva a entender que Bakhtin relaciona um gênero a sua historicidade, por ele carregar em si

marcas de sua produção, de seu consumo e de seu tempo-espaço. Por isso, os gêneros

discursivos “[...] são correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da

linguagem” (BAKHTIN, 2011, p. 268).

A discussão acerca dos gêneros é realizada considerando-os como uma atividade

sociointeracional, já que as relações humanas dão-se nesses espaços sociais, ou seja, “[...]

todas as esferas da atividade humana estão sempre relacionadas com a utilização da

linguagem” (FARACO, 2009, p. 126). A esse respeito, Faraco (2009, p. 126) explica que a

“[...] teoria do Círculo assevera axiomaticamente uma estreita correlação entre os tipos de

enunciados (gêneros) e suas funções na interação socioverbal; entre os tipos e o que fazemos

com eles no interior de uma determinada atividade social”. A partir dessa concepção,

entendemos que o nosso dizer e o nosso querer dizer estão sempre vinculados a uma esfera

social, pois nossos enunciados não são produzidos no vácuo, não são produzidos para um

ninguém. Da mesma forma, as esferas de uso da linguagem não são uma ideia abstrata, mas

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222

são referência direta a enunciados concretos que se manifestam no discurso (FERREIRA,

2015).

Os enunciados são sempre produzidos dentro de uma situação de comunicação

humana ligada a uma esfera social, seja ela familiar ou amigável, seja religiosa, jurídica,

escolar ou universitária. Percebemos, então, que toda forma de dizer é moldada por um gênero

que faz parte de uma esfera social. Desse modo, a variedade de gêneros é resultado da riqueza

e da variedade dos gêneros, os quais acompanham a infinita variedade da atividade humana, e

cada esfera social é composta por um repertório de gêneros discursivos que se diferenciam e

se ampliam, se remodelam a partir do desenvolvimento de cada uma (BAKHTIN, 2011).

Por serem elaborados e consumidos dentro de esferas, os gêneros não têm caráter

fixo ou estável, uma vez que as relações humanas não o são. Desse modo, a preocupação de

Bakhtin (1981) não está nas formas dos gêneros, pois essas variam como variam as

experiências humanas, mas sua atenção está na historicidade. Conforme Faraco (2009, p.

127):

[...] Dar relevo à historicidade significa chamar a atenção para o fato de os

tipos não serem definidos de uma vez para sempre. Eles são apenas

agregados de propriedades sincrônicas fixas, mas comportam contínuas

transformações, são maleáveis e plásticos, precisamente porque as atividades

humanas são dinâmicas, e estão em contínua mutação.

O caráter “relativamente estável” dos gêneros evidencia que eles estão abertos ao

novo, à mudança, ao rejuvenescimento, à atualização, porém sem perder para sempre alguns

de seus elementos característicos que estão sempre vivos. Bakhtin (1981, p. 106) explica que

o gênero

[...] renasce e se renova em cada etapa do desenvolvimento da literatura e em

cada obra individual de certo gênero. É isso que constitui a vida do gênero.

Assim, mesmo os elementos arcaicos preservados num gênero não estão

mortos, mas sempre vivos; isto é, os elementos arcaicos são capazes de se

renovar continuamente. Um gênero vive no presente, mas sempre tem a

memória do seu passado, das suas origens. O gênero é um representante da

memória criativa no processo do desenvolvimento literário. Precisamente

por isso, o gênero é capaz de garantir a unidade e a ininterrupta continuidade

de seu desenvolvimento.

Ao admitir uma estabilidade relativa e reconhecer a reestruturação e a renovação dos

gêneros, Bakhtin (2011) recusa uma teoria que os estabeleça em fronteiras rígidas e, também,

como um objeto acabado, já que ao levar em conta o caráter histórico dos gêneros, admite

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suas continuas transformações, bem como suas sua elasticidade estrutural e suas continuas

remodelagens. A esse respeito Faraco (2009, p. 127) explica que o “[...] repertório de gêneros

de cada esfera da atividade humana vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a

própria esfera se desenvolve e fica mais complexa”. Assim, observamos que a remodelagem

dos gêneros é fruto das adaptações feitas conforme nossas necessidades de comunicação, ou

seja, os gêneros assimilam aspectos da realidade, da vida social que combina o recorrente e

novo. Portanto, o “[...] gênero une estabilidade e instabilidade, permanência e mudança”, “[...]

a recorrência e a contingência” (FIORIN, 2016, p. 76), pois é possível perceber em um

conjunto de textos propriedades comuns relacionando-se com propriedades novas, resultado

da interação social. A reiteração oportuniza, então, compreender as ações e,

consequentemente, agir; já a instabilidade possibilita adaptar suas formas a novos contextos

de uso.

Pelo viés bakhtiniano, compreendemos perfeitamente que os gêneros não podem ser

desvinculados de sua esfera de criação, aquela que o produz e o utiliza, como também não

podem ser abstraídos de seu tempo e espaço e das relações entre os interlocutores (FARACO,

2009). É o que ocorre com os relatos pessoais aqui analisados. Seguindo a perspectiva

bakhtiniana, os relatos pessoais são analisados observando a esfera social em que foram

propostos: na Universidade, na aula de Produção de Texto, com interlocutores reais

(acadêmicos sem terra e professoras). Também aspectos, como quem são os graduandos sem

terra, sua origem, onde vivem, quem são seus familiares, a que movimento social pertencem e

quais são suas trajetórias são elementos extraverbais que constituem o sujeito sem terra. Por

isso, Medviédev (2012) defende que um enunciado é um ato sócio-histórico. Por meio deles, é

possível visualizar a realidade vivida, no caso a realidade da constituição da identidade dos

acadêmicos sem terra. Além disso, os relatos pessoais demonstram que os acadêmicos sem

terra dominam o gênero que escrevem, ou seja, eles sabem os modos sociais de dizer do

gênero relato pessoal. A esse respeito, Bakhtin (1981) lembra que muitas pessoas dominam a

gramática de uma língua, mas, ao adentrarem uma esfera social nova, elas podem ter

dificuldades para se comunicarem verbalmente, pois se trata de uma nova esfera, não

conhecida, não dominada, em que saber apenas a gramática não é pressuposto para dominar

os gêneros dessa esfera social (FARACO, 2009). Bakhtin (2011, p. 282-283) discorre que nós

[...] assimilamos as formas da língua somente nas formas das enunciações e

justamente com essas formas. As formas da língua e as formas típicas dos

enunciados, isto é, os gêneros do discurso, chegam à nossa experiência e à

nossa consciência em conjunto e estreitamente vinculadas. Aprender a falar

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significa aprender a construir enunciados (porque falamos por enunciados e

não por orações isoladas e, evidentemente, não por palavras isoladas).

Ademais, muitas “[...] pessoas que dominam magnificamente uma língua sentem

amiúde total impotência em alguns campos da comunicação precisamente porque não

dominam na prática as formas de gênero de dadas esferas” (BAKHTIN, 2011, p. 284). Não se

trata de pobreza de vocabulário, mas da falta de habilidade e de domínio de todo o repertório

de gêneros, o que é impossível para o homem. Trata-se da “[...] falta de acervo suficiente de

noções sobre todo um enunciado [...], uma inabilidade de tomar a palavra a tempo, de

começar corretamente e terminar corretamente” (BAKHTIN, 2011, p. 285).

Morson e Emerson (2008) ressaltam que Medviédev (2012), concebendo os gêneros

como um modo específico de visualizar uma parte da realidade, da vida concreta, concorda

que a nossa comunicação não é realizada por princípios sintáticos, mas por princípios

genéricos. Podemos afirmar que as professoras, ao solicitar aos graduandos sem terra a

elaboração de um relato pessoal, não puseram o domínio da gramática em primeiro plano,

mas sim o repertório do vivido, as experiências que os sujeitos vivenciaram e seus efeitos na

constituição de suas identidades. Logo, os graduandos tinham o que dizer. Assim, o gênero

relato pessoal é empregado pelos acadêmicos de forma livre, ou seja, sem restrições

estilísticas ou organizacionais, o que nos possibilita descortinar neles a individualidade de

seus sujeitos e, ainda, nos permite refletirmos “[...] de modo mais flexível e sutil a situação

singular da comunicação” (BAKHTIN, 2011, p. 285).

Também importa salientarmos que Bakhtin apresenta uma direção para os estudos

dos gêneros, ao classificá-los em primários (da comunicação cotidiana, mas não

exclusivamente orais) e secundários (da comunicação desenvolvida por meio de códigos

culturais elaborados, como a escrita). A diferença entre eles é extrema e essencial, de modo

que o “[...] estudo do enunciado e da diversidade de formas de gênero dos enunciados nos

diversos campos da atividade humana é de enorme importância para quase todos os campos

da linguística e da filologia” (BAKHTIN, 2011, p. 264).

Os gêneros secundários surgem em situações culturais mais complexas, mais

organizadas e mais tradicionais. Predominam, nesses casos, os gêneros escritos de esferas

sociais, como científica, jurídica, artística, sociopolítica, religiosa. São formações complexas

que se apresentam em circunstâncias de comunicação mais elaboradas. Embora sejam gêneros

complexos, os secundários no processo de sua formação incorporam e reelaboram gêneros

primários (BAKHTIN, 2011), ou seja, constituem-se a partir da absorção e da transformação

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dos gêneros primários de todas as variedades, elaborados em uma interação verbal

espontânea. Percebemos, assim, a estreita relação entre os dois tipos de gêneros que, para o

filósofo russo, vai além das fronteiras das características de cada tipo de gênero: “A inter-

relação entre os gêneros primários e secundários de um lado, o processo histórico de formação

dos gêneros secundários do outro, eis o que esclarece a natureza do enunciado (e, acima de

tudo, o difícil problema da correlação entre língua, ideologias e visões do mundo)”

(BAKHTIN, 2000, p. 282). Constituídos em interações verbais espontâneas e mais

passageiras, como saudações, despedidas, conversas de salão, piadas, os gêneros primários

“[...] estão em relação direta com seu contexto mais imediato” (FARACO, 2009, p. 132),

como uma conversa familiar, a compra e a venda de objetos, o recado na porta da geladeira.

Vale destacar ainda que Bakhtin realça a relação mútua entre os gêneros primários e

os secundários. Assim, podemos entender que a passagem do primário para o secundário e

deste para aquele é constante nas interações verbais, pois nelas os dois tipos podem se

mesclar. Como exemplo disso, Faraco (2009, p. 133) lembra-se do gênero conferência

acadêmica, pertencente à esfera científica, marcado por formas relativamente estáveis, que

pode se mesclar “[...] com gêneros primários de vários tipos, como, por exemplo, quando o

expositor conta uma piada ou faz uma réplica a uma observação espontânea de um ouvinte”.

Bakhtin (2011, p. 284) exemplifica que o contrário também ocorre, quando uma saudação da

esfera oficial é utilizada na esfera familiar, por meio de um tom irônico, o que é chamado pelo

autor de “reacentuação dos gêneros”. Faraco (2009, p. 133) também exemplifica a

reacentuação de um gênero descrevendo que quando um camelô anuncia seu produto aos seus

clientes, o gênero utilizado, anúncio oral, está relacionado à prática do cotidiano e à

espontaneidade, mas o autor observa que às vezes esse anúncio pode ter características de

uma conferência, pois o camelô pode expor as características do produto, explicar a forma de

utilizá-lo, seguindo uma organização dos itens a serem explicados. Esse exemplo evidencia

que os gêneros primários também são influenciados pelos secundários.

Os gêneros discursivos, nessa perspectiva, são elaborados, primeiro, de acordo com

uma dada função pré-determinada (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana), e

segundo, a partir de dadas características específicas de cada esfera da comunicação, o que

realça o caráter “relativamente estável”, flexível, móvel dos gêneros. As condições de

produção, de sua historicidade e suas finalidades específicas de dadas esferas são refletidas no

estilo, no conteúdo temático e na organização composicional.

Bakhtin (2011, p. 265) atesta que há uma relação orgânica entre estilo e gênero, pois,

na realidade, “[...] os estilos de linguagem ou funcionais não são outra coisa senão estilos de

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gênero de determinadas esferas da atividade humana e da comunicação”. Ou seja, cada esfera

da comunicação verbal possui seus gêneros dos quais necessita para se comunicar com outras

esferas; por sua vez, esses gêneros possuem seus estilos.

Ademais, o autor russo parte da premissa de que todo enunciado é individual, logo

ele reflete marcas dessa individualidade, isto é, “o estilo individual”. Como destaca Faraco

(2009, p. 136), o Círculo de Bakhtin não faz uma dicotomia entre o individual e o social, mas

aponta para uma “[...] intrincada dinâmica em que todo falante, sendo uma realidade

sociossemiótica, é ao mesmo tempo único, singular, e social de ponta a ponta”. Essa

consideração tem como base a concepção de que a língua é “[...] viva e evolui historicamente

na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das formas da língua”

(BAKHTIN, 2002, p. 124), sendo ela vivida em um espaço de interação verbal. É nesse

movimento de interação entre sujeitos que o estilo constitui-se.

O estilo, como integrante da unidade do gênero, reflete a seleção das formas

linguísticas que o usuário da língua faz para produzir os seus enunciados. Essa seleção está

associada ao outro, uma vez que este influencia a elaboração de um enunciado: “[...] A

escolha de todos os recursos linguísticos é feita pelo falante sob maior ou menor influência do

destinatário e da sua resposta antecipada” (BAKHTIN, 2011, p. 306).

Bakhtin (2011) também defende que o estilo é indissociável de unidades temáticas e

de unidades composicionais. Como explica Discini (2012, p. 78): “[...] A temática e o

conteúdo composicional reverberam no estilo do gênero, e esse estilo repercute nelas

enquanto se firma como expressividade ou tom”. Brait (2005, p. 89) também se ocupa da

temática do estilo e considera-o “[...] depende do tipo de relação existente entre o locutor e os

outros parceiros da comunicação verbal, ou seja, o ouvinte, o leitor, o interlocutor próximo e o

imaginado (o real e o presumido), o discurso do outro etc”.

Nessa ótica e levando-se em consideração que o enunciador escolhe os recursos

linguísticos sob a influência do outro, é possível compreender que o estilo conduz a

determinado tom, pois os gêneros “[...] incluem em sua estrutura uma determinada entonação

expressiva” (BAKHTIN, 2011, p. 284). O estilo é, assim, um dos elementos da unidade de um

gênero; ele pertence ao estilo do gênero, de modo que aquilo que se pode dizer, o que não se

pode e o como se deve dizer já estão pré-determinados pelo gênero a ser utilizado.

Para Bakhtin (2011), há relação direta do gênero com o seu conteúdo temático.

Antes, no entanto, de discorrermos acerca dessa relação, importa discutirmos também, mesmo

que brevemente, os conceitos de tema, significação e assunto, por estarem todos no mesmo

campo semântico.

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Pensar a relação entre tema e significação leva-nos a perceber que o Círculo de

Bakhtin considera os sentidos de forma ampla, pois concebe os sentidos do signo ideológico

em seu campo linguístico, mas também no discursivo. O tema é considerado por Bakhtin

(2002, p. 128) um termo sujeito a dúvidas, como afirma na nota de rodapé da página 128. Por

isso, ele já esclarece que tema “[...] cobre igualmente sua realização; é por isso que não deve

ser confundido com o tema de uma obra de arte. O conceito de ‘unidade temática’ é o que

estaria mais próximo do nosso”.

Partindo desse esclarecimento, Bakhtin considera o tema indissociável da enunciação

por ser a expressão de uma situação histórica concreta, consequentemente, é único, individual

e não reiterável, pelo fato de participar da constituição do tema “[...] não apenas os elementos

estáveis da significação, mas também os extraverbais, que integram a situação de produção,

de recepção e de circulação”, como detalha Cereja (2005, p. 202). Nessa perspectiva, o tema

emerge de um evento concreto de uso da linguagem, em que há um falante, um interlocutor,

um tempo e um espaço social, condições que mudam constantemente. Como destaca Cereja

(2005, p. 202), “[...] o instável e o inusitado de cada enunciação se somam à significação,

dando origem ao tema, resultado final e global do processo da construção de sentido”. O

caráter irrepetível do tema leva-nos a compreender que uma enunciação não pode ser repetida,

em decorrência do fato de ela ser sempre nova. Mesmo se relacionando a uma enunciação já

elaborada recentemente, a nova não será igual a anterior como também será diferente da

posterior, pois ela estará sendo produzida em outro momento histórico.

O tema caracteriza-se por ser determinado por elementos linguísticos que o compõe,

como também por sua dependência das condições sócio-históricas. Como ressalva Bakhtin

(2002), se perdermos de vista os elementos históricos, ou seja, os não verbais, não

chegaremos à compreensão. Por isso, o autor explica que o “[...] tema da enunciação é

concreto, tão concreto como o instante histórico ao qual ela pertence. Somente a enunciação

tomada em toda a sua amplitude concreta, como fenômeno histórico, possui um tema”

(BAKHTIN, 2002, p. 129). Partindo dessa ótica, Cereja (2005) ressalta que o tema está para o

signo ideológico, pois estes emergem da situação de interação verbal. Já os autores Alves

Filho e Santos (2013, p. 80) resumem a ideia bakhtiniana a respeito do tema da seguinte

forma: o tema é o “[...] sentido que o discurso pode assumir numa dada situação comunicativa

concreta e única”.

Já a significação está associada ao signo linguístico, ao “[...] corpo físico,

instrumento de produção ou produto de consumo” (BAKHTIN, 2002, p. 31). Nessa

perspectiva, a significação refere-se a elementos da enunciação que são repetíveis e

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equivalentes a cada vez que são repetidos, uma vez que, por estarem associados a elementos

linguísticos, podem ser repetidos em diferentes enunciações. A significação é, portanto,

abstrata, tende à permanência e à estabilidade, por estar associada a elementos da língua, os

quais estão “[...] fundados sobre uma convenção, eles não têm existência concreta

independente, o que não os impede de formar uma parte inalienável, indispensável, da

enunciação” (BAKHTIN, 2002, p. 129).

Por pertencer ao campo da língua, a significação pode ser analisada em distintas

categorias, como sintaxe, morfologia. Diferentemente, o tema possui uma essência irredutível

à análise, pois o que é do campo da situação histórica não pode ser apreendido pelas

categorias gramaticais. Ao considerarmos, por exemplo, o enunciado “Terra para quem nela

trabalha”, compreendemos, pela perspectiva bakhtiniana, que o tema apresenta um sentido

histórico e ideológico por se remeter ao direito à terra para aqueles que nela querem trabalhar,

ou seja, os trabalhadores rurais; por meio do tema, também percebemos que há uma negação

do direito à terra àqueles que somente a querem para especulação ou para obtenção de crédito

imobiliário. Já no campo da significação, o enunciado pode ser segmentado em categorias

gramaticais, como substantivo (terra), preposição (para, em), verbo (trabalha), pronomes

(quem, ela). A significação será a mesma todas as vezes que esse enunciado for proferido,

mas o tema será diferente, porque os elementos extraverbais mudarão. Como, por exemplo, ao

ser dito por um trabalhador rural, o tema tem o sentido de terra como existência, subsistência,

pertencimento; dito por um militante do MST, o sentido revela uma posição política, de

esquerda, socialista, em que a terra é vista como direito social; dito por um membro da Igreja

Católica, o tema tem o sentido de terra como um bem divino, propriedade de Deus, sendo

todos os seus filhos seus herdeiros. Esse exemplo nos leva a compreender a afirmação de

Cereja (2005, p. 202), quando o autor ressalta que “[...] a significação é por natureza abstrata

e tende à permanência e à estabilidade, o tema é concreto e histórico e tende ao fluído e

dinâmico, ao precário, que recria e renova incessantemente o sistema de significação, ainda

que partindo dele.”

Logo, compreendemos que não há entre essas categorias da enunciação fronteiras

fixas, de modo que uma estaria dissociada da outra. Ao contrário, ambas estão inter-

relacionadas no processo de criação e de recriação do sistema de significação. Por isso, para

Bakhtin (2002, p. 129), não “[...] há tema sem significação, e vice-versa”, uma vez que a “[...]

significação é um aparato técnico para a realização do tema” e o tema apoia-se “[...] sobre

uma certa estabilidade da significação; caso contrário, ela perderia seu elo com o que precede

e o que segue, ou seja, ela perderia, em suma, o seu sentido”.

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É impossível, assim, designar a significação de uma palavra isolada, sem para ela

construir uma enunciação, ou seja, inseri-la em um exemplo Bakhtin (2002). É o que pode

acontecer com o signo linguístico “cerca”, o qual, em termos de dicionário, pode ser utilizado

em diferentes situações de uso da linguagem, obtendo, assim, o sentido de obra feita para

delimitar e proteger um espaço. Mas para entender “cerca” como um signo ideológico, ele

precisa estar em uma enunciação concreta, com interlocutores concretos, em um espaço-

tempo concreto. O enunciado “é preciso romper cercas”, se for dito pelo MST, o tema tem o

sentido de símbolo da elite latifundiária, logo, rompê-la tem o sentido de possibilitar ao

trabalhador rural (àquele que é da terra), o direito de estar na terra, além disso pode ter o

sentido de vencer a desigualdade no campo, vencer a injustiça social, sendo a cerca um

obstáculo social. Já se for dito por um latifundiário, a cerca tem como tema o sentido de

elemento de proteção de propriedade privada, a qual se for rompida dá o direito ao enunciador

de lutar por sua propriedade. Por isso, Bakhtin (2002) realça o tema como uma característica

apenas da enunciação concreta/da língua viva.

Um ponto destacado por Bakhtin como distintivo entre tema e significação é o

problema da compreensão. O autor russo parte da premissa de que qualquer compreensão

deve ser ativa e deve estar na essência de uma resposta, porque compreender “[...] é opor à

palavra do locutor uma contrapalavra” (BAKHTIN, 2002, p. 132). Nesses termos, a

compreensão compreende o encontro de duas consciências, de dois sujeitos (o enunciador e o

interlocutor). Esse encontro trata-se de uma enunciação concreta, do qual o tema emerge. Isso

ocasiona uma relação dialógica com o tema de enunciados passados. Os temas da enunciação

levam o interlocutor a dialogar com temas do já dito e, assim, também orientar sua resposta à

fala de seu enunciador, como uma réplica. Logo, apreende-se um tema por meio de outros

temas. No processo de compreensão, dialogamos com a palavra do outro mediante uma série

de palavras nossas, formando uma réplica e instaurando um diálogo (BAKHTIN, 2002).

Ademais, a significação está relacionada ao valor apreciativo, uma vez que a palavra

usada em uma enunciação possui, além de tema e significação, um acento valorativo. O autor

assevera que não há compreensão sem avaliação, porque o “[...] sujeito da compreensão

enfoca a obra com sua visão de mundo já formada, de seu ponto de vista, de suas posições”

(BAKHTIN, 2011, p. 378). São essas posições que determinam sua avaliação, ou seja, o valor

que ele atribui à obra. Assim, podemos verificar a razão de os signos terra, reforma agrária e

educação do campo serem vistos de formas diferentes por diferentes sujeitos, os quais

ocupam posições distintas na sociedade. Suas posições sociais determinam que o mesmo

signo linguístico seja concebido como signo ideológico com sentidos diferentes, por exemplo,

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terra como bem de capital e terra como direito social. Bakhtin (2011) ressalta que o

excedente de visão de cada pessoa refere-se à forma particular como cada sujeito valoriza

discursivamente algum acontecimento. Bakhtin (2011) compreende o excedente de visão

como a forma que um sujeito tem de conhecer mais um eu-individuo que ele próprio, em

decorrência de assumir uma posição exterior (exotópica). Essa posição privilegiada o faz

enxergar pontos inacessíveis ao eu-individuo. Como salienta Bakhtin (2011, p. 22):

[...] O excedente de minha visão em relação ao outro individuo condiciona

certa esfera do meu ativismo exclusivo, isto é, um conjunto daquelas ações

internas ou externas que só eu posso praticar em relação ao outro, a quem

elas são inacessíveis no lugar que ele ocupa fora de mim; tais ações

completam o outro justamente naqueles elementos em que ele não pode

completar-se.

No entanto, para que o sujeito possa completar o horizonte do outro, é necessário que

entrar em empatia com o universo do outro individuo. Nas palavras de Bakhtin (2011, p. 23),

é necessário ir além:

[...] ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê, colocar-

me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, completar o

horizonte dele com o excedente de visão que desse meu lugar se descortina

fora dele, convertê-lo, criar para ele um ambiente concludente a partir desse

excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha vontade e do

meu sentimento”.

Podemos inferir que a constituição dos sentidos do tema é determinada pelo

excedente de visão de cada um enquanto enunciador. É o valor apreciativo de um sujeito

pertencente a um grupo social que orientará a seleção e a distribuição dos elementos mais

carregados de sentidos na enunciação, pois: “[...] Toda palavra enunciação compreende antes

de mais nada uma orientação apreciativa” (BAKHTIN, 2002, p. 135).

O Círculo de Bakhtin também trata em seus estudos do tema do gênero o conteúdo

temático. Cada gênero possui uma relativa tipificação mediante o tratamento dado aos

conteúdos ideologizados. Assim, podemos perceber que, em relação ao conteúdo temático, há

características comuns em um conjunto de textos pertencentes a um mesmo gênero. Pensando

na distinção entre tema da enunciação e tema do gênero, de acordo com a visão bakhtiniana,

consideramos o primeiro como concreto, único, não reiterável, instável e não tipificado

(BAKHTIN, 2002); o segundo, como explicam os autores Alves Filho e Santos (2013, p. 82),

situam-se em outra extremidade e caracterizam-se por sua “[...] tipificação, uma vez que é

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231

possível identificar em um conjunto de textos, pertencentes a um dado gênero, um tema ou

um conjunto de temas típicos”. A esse respeito, Bakhtin (2011, p. 293) explica que os “[...]

gêneros correspondem a situações típicas da comunicação discursiva, a temas típicos, por

conseguinte, a alguns contatos típicos da comunicação dos significados das palavras com a

realidade concreta em circunstâncias típicas”. No entanto, é preciso atentar-se ao fato de que a

tipificação é relativa, o que possibilita adaptações e mudanças.

Pela ótica bakhtiniana, o tema da enunciação também é concebido como determinado

pelas relações de produção e, também, pela estrutura sócio-política (BAKHTIN, 2002). Por

esse viés, Alves Filho e Santos (2013, p. 82) compreendem que o tema da enunciação está

associado à vontade discursiva do enunciador e ao valor axiológico atribuído por ele aos

acontecimentos sociais, “[...] originando o tema a partir do lugar social que o locutor ocupa”;

o tema do gênero, está vinculado aos “[...] propósitos comunicativos socialmente

compartilhados, razão pela qual se torna mais sujeito às tipificações”.

Nessa ótica, um gênero apresenta características comuns quanto ao conteúdo

temático, que podem ser reconhecidas e aceitas por um grupo social. Nos relatos pessoais dos

acadêmicos sem terra, por exemplo, visualizamos um conjunto de textos em que o conteúdo

temático é o vivido, ou seja, as experiências vivenciadas durante a infância, a adolescência e a

maturidade. Assim, entendemos quando Bakhtin (2002, p. 43) ressalta que “[...] cada época e

cada grupo social têm seu repertório de formas de discurso na comunicação sócio-ideológica.

A cada grupo de formas pertencentes ao mesmo gênero, isto é, a cada forma de discurso

social, corresponde um grupo de temas”. Inferimos, assim, que o conteúdo temático refere-se

ao conjunto de temáticas que um gênero pode abarcar.

Compreendemos que o tema de um gênero pode abarcar e articular uma variedade

assuntos, os quais se referem àquilo que se trata em um texto. Desse modo, um assunto pode

ser repetido várias vezes, mas o tema não, porque a situação histórica muda. Nos relatos

pessoais dos acadêmicos sem terra, o tema é o vivido, o que é tematizado em diferentes

assuntos que compreendem, por exemplo, a origem, os trabalhos realizados quando criança,

as dificuldades para chegar à escola, a desistência da escola, a necessidade de trabalhar para

ajudar em casa, a ida para o acampamento, as dificuldades para se manterem no

acampamento, a chegada no lote, a conquista de uma vaga na Universidade. Esses e outros

assuntos estão articulados ao tema vivido.

Para Bakhtin (2011), a organização composicional também é um elemento que,

juntamente com o estilo e o tema, reflete as condições específicas e as finalidades de cada

esfera social. A organização composicional está associada à estruturação, à organização geral

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dos enunciados, isto é, a formas mais ou menos estabelecidas, que determinam uma gama de

possibilidades de estilo possíveis. Essa organização reflete formas típicas de um gênero, o que

contribui para que ele possa ser reconhecido por seus receptores. Por isso, a organização

composicional está ligada ao estilo, tendo em vista que a relação estabelecida entre esses dois

elementos determina o tipo de estruturação e de conclusão de um todo, como também o tipo

de relação entre o locutor e o interlocutor. Dessa forma, a mudança no estilo pode revelar

mudanças na organização composicional. Por meio dessa visão, observamos que o enunciador

faz a escolha da organização de seu enunciado e, também, das sequências textuais que

compõem o todo do enunciado.

Observamos que entre a tríade estilo, conteúdo temático e organização

composicional há sempre uma inter-relação. Por isso, Bakhtin (2011) insiste que eles devem

ser investigados conjuntamente e não de forma separada, tampouco isolados das condições de

produção do enunciado e das características da esfera a qual pertence o gênero em análise,

caso contrário, poderíamos cair nas descrições estruturalistas ou formalistas.

Os estudos do Círculo de Bakhtin nos oportunizaram compreender que os gêneros

discursivos são resultado do uso concreto da linguagem, como também são reflexo cultural da

sociedade da qual faz parte e organizadores dos nossos discursos: “[...] Nós aprendemos a

moldar o nosso discurso em formas de gênero” (BAKHTIN, 2011, p. 283). Por serem

intermediadores das práticas sociais, os gêneros influenciam os discursos, o modo de dizer o

que se quer dizer e, assim, constituem relações sociais, valores e identidades. Os gêneros são

instrumentos que, por meio de sua apropriação, oportunizam a transformação, a construção e

a constituição da identidade de seus sujeitos (SCHNEUWLY, 2004) (GOMES, 2008). Nessa

perspectiva, a próxima seção discutirá o conceito de identidade em Bakhtin, mostrando que o

Círculo concebe a identidade na relação entre o eu e o outro.

4.1.2 O Gênero Discursivo Relato Pessoal

Pelo viés bakhtiniano acerca dos gêneros discursivos, que estamos discutindo neste

capítulo, consideramos os relatos pessoais dos acadêmicos sem terra um gênero discursivo

que congrega discursos do presente e retomam vozes históricas, além de também estarem

relacionados aos discursos que ainda serão enunciados sobre o problema da terra, da reforma

agrária e da educação do campo no Brasil. Por isso, não podem ser estudados e explicados

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isoladamente, fora da relação estreita com a situação concreta de serem produzidos por

sujeitos sem terras.

O gênero discursivo relato pessoal de estudantes sem terra está organizado conforme

as condições específicas sócio-historicamente constituídas, o que se reflete no discurso por

meio do conteúdo temático, do estilo e da organização composicional. Quanto à sua

organização composicional, marca-se por momentos narrativos, descritivos e argumentativos.

Os sujeitos narram, argumentam, descrevem, como sugerido pelas professoras, seus

nascimentos, brincadeiras de infância, entrada na escola, trabalhos realizados em casa e no

campo, participação nos movimentos sociais, vida no acampamento e assentamento, momento

do vestibular, aulas na universidade, expectativas futuras. Ao realizarem esse movimento de

rememoração, argumentam a razão de deixarem a escola quando crianças, de deixarem os

barracos durante a semana para trabalharem de diaristas nas fazendas vizinhas, de os lotes não

produzirem, da necessidade de os acampamentos e assentamentos precisarem de escolas e de

professores do campo e, ainda, da necessidade um curso específico para os assentados de

reforma agrária. Desse modo, seus discursos constituem a história do problema da terra no

Brasil e constituem, ao mesmo tempo, seus sujeitos enunciadores que fazem parte dessa

história.

Por não ser um gênero fixo, imóvel, o relato pessoal proporciona uma liberdade

maior ao sujeito enunciador em apresentar os fatos que julga importantes nesse momento

discursivo. Por isso, eles podem narrar em detalhes seus nascimentos ou o nascimento dos

filhos, bem como as desilusões amorosas, os trabalhos realizados durante a vida. Assim, o

gênero relato pessoal proporciona ao próprio sujeito um momento de problematizar o vivido,

analisá-lo de uma certa distância e tecer sobre os variados acontecimentos um julgamento,

como avalia Marialves no final de seu relato:

Ao escrever a trajetória de minha vida, senti que é muito mais fácil falar ou

escrever sobre outros assuntos do que sobre nós mesmos, eu particularmente,

tenho muita dificuldade em falar sobre mim, especialmente sobre o passado,

pois procuro sempre esquecer as lembranças que me trouxeram felicidade,

entretanto, acredito que foi muito bom a realização deste trabalho, pois me

fez refletir sobre tudo que aconteceu em minha vida, fazendo um paralelo

do antes e o agora. (Marialves, 2009).

Como percebemos, o sujeito enunciador apresenta uma visão mais analítica sobre si e

sobre o vivido, revelando sentimentos antes distantes da memória e agora tão vivos. São

sentimentos de gratidão, arrependimento, alegria, desespero, desilusão e esperança que

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afloram durante o processo de escrita e constituindo os sujeitos sem terra – camponeses,

filhos, pais, estudantes, militantes. Além disso, importa destacarmos que o referido gênero

também apresenta outros gêneros em sua composição, como músicas, poesias, lemas, cartas, o

que demonstra o seu caráter móvel e plástico. Exemplo disso é a dedicatória recebida por

Maria Aparecida de uma criança que auxilia durante seus trabalhos como conselheira tutelar:

Titia Cida, te ofereço esta foto, com muito carinho. Veja como estou fofinha,

a cada dia ganho mais peso e fico mais saudável. Eu te agradeço por tua

atenção em devolver-me a vida que estava perdendo. Que Deus te abençoe

sempre, nunca vou te esquecer.

Beijinhos da Mariana. (Maria Aparecida)

Em linhas gerais, o estilo dos relatos pessoais dos acadêmicos sem terra caracteriza-

se pela presença do discurso direto, discurso indireto, repetição, verbos no pretérito e no

presente, uso da primeira pessoa, uso da terceira pessoa, especificação de datas, linguagem

poética, linguagem acadêmica. Esses aspectos são escolhidos pelos sujeitos por serem aqueles

que melhor atendem aos seus objetivos de interação, mesmo isso não sendo consciente.

O tema contemplado no conjunto de relatos pessoais é o vivido, o que é próprio do

gênero relato pessoal. É o vivido pelos acadêmicos durante suas experiências enquanto

crianças, filhos e filhas de camponeses, trabalhadores urbanos, trabalhadores rurais,

militantes, acampados, mães, pais, assentados, universitários, que emerge no momento de

escritura do gênero relato pessoal.

A partir desse entendimento, o gênero relato pessoal revela uma diversidade de

assuntos que recobre o tema, evidenciando que a escolha por esse gênero foi fundamental para

que os alunos realizassem um movimento de rememoração do passado, como também uma

seleção e organização de ideias, além de uma avalição das experiências vividas. Os relatos

pessoais demonstraram que é possível valer-se das experiências dos educandos no processo de

ensino-aprendizagem, pois suas experiências são o que se tem a dizer. Evidencia-se que os

graduandos têm maior familiaridade com o gênero relato pessoal, ao se apresentarem como

produtores do gênero com o qual se familiarizam, sendo capazes de usá-lo em diferentes

situações de comunicação. Como aponta Freire (2004), as experiências existenciais dos alunos

devem ser o ponto de partida para o ensino, a fim de que faça sentido a eles e, também, dê a

eles prazer, como aponta Sônia em seu relato:

Este trabalho foi muito gostoso de fazer, quero agradecer as professoras pela

brilhante idéia de nos fazer voltar no tempo, de relembrar o nosso passado e

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de contar das nossas vidas e confessar que você sempre nos surpreende com

esses tipos de trabalho que parece uma coisa boba, mas que acaba se

tornando tão valioso porque vai lá ao fundo do baú, lá mais profundo do

nosso íntimo onde ninguém consegue chegar, esse conseguiu. OBRIGADA

PROFESSORAS. (2009).

Assim, não há ruptura entre o saber da experiência – “curiosidade ingênua” – e o

saber acadêmico, metodologicamente rigoroso – “curiosidade epistemológica”, como defende

Freire (2004). Há um movimento de superação, quando a curiosidade ingênua criticiza-se,

tornando-se curiosidade epistemológica. É isso o que ocorre nos relatos pessoais, pois, por

meio da rememoração dos acontecimentos vividos, o acadêmico avalia o ocorrido no plano

pessoal, nos movimentos sociais, nas relações com as diferentes instituições públicas e,

principalmente, com relação ao sistema de capital, o qual é negado e criticado durante os

relatos.

Nas palavras de Freire (2004, p. 45), na formação docente, não importa a repetição

mecânica dos gestos, mas a compreensão dos valores, das experiências e dos desejos, das

inseguranças a serem superadas, do medo, que, à medida que o educando entra no universo do

ensino-aprendizagem, gera coragem.

Nessa perspectiva, compreendemos que a produção do relato pessoal é uma

oportunidade de os acadêmicos rememorarem o passado, selecionarem fatos, recordarem e

narrarem os significativos, os quais estão na memória. Desse modo, percebemos que o sujeito

enunciador tem “[...] os vínculos necessários que ligam o passado ao presente vivo, procura

compreender o lugar necessário do passado na continuidade da evolução histórica”

(BAKHTIN, 1997, p. 252). Trata-se de um momento em que se pode rememorar fatos,

repensá-los, avaliá-los, atribuindo à história um novo significado e, ainda, questionar o

presente e abrir novas possibilidades para o futuro. O presente recebe as recordações do

passado, mas não acaba com sua forma sempre viva e ativa.

O leitor dos relatos pessoais é levado a conhecer as decisões mais difíceis tomadas,

as avaliações feitas, os obstáculos enfrentados, como também lugares, pessoas, instituições

governamentais, revelando emoções, sentimentos e reflexões, como também a conhecer os

projetos do futuro, pois passado, presente e futuro estão em constante ligação, já que, como

afirma Bakhtin (1997, p. 132), o “[...] futuro do sentido se dissolve num passado e num

presente que lhe predeterminam”.

A leitura discursiva dos relatos pessoais oportuniza ter acesso ao universo vivido

pelos acadêmicos, como também aos seus anseios, expectativas, planos, desilusões.

Possibilita, ainda, percebermos que eles se colocam como sujeitos de seus discursos, como

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sujeitos sociais, que se relacionam com outros discursos, com outros dizeres, evidenciando

que sua identidade constrói-se pela relação com o outro e, por isso, está em eterna

constituição, como defende Bakhtin (2011).

4.1.3 Identidade e Alteridade em Bakhtin

Bakhtin inaugura uma nova perspectiva de conceber a identidade, que antes é vista

como construída pelo próprio sujeito. Com Bakhtin, a inter-ação entre o eu e o outro entra em

cena, de modo que é o olhar do outro, o ato responsável do outro constituem a identidade de

um sujeito. Trazer o outro como um elemento primordial na construção da identidade de um

sujeito é visto como a “revolução bakhtiniana” por Ponzio (2016), não sendo o outro aquele

que tem lugar central, mas sendo o eixo de todo trabalho de constituição do sujeito: “A

‘revolução bakhtiniana’ consiste no deslocamento da atenção, em todos esses problemas e

campos, da identidade à alteridade” (PONZIO, 2016, p. 233). A preocupação não está em

mostrar o valor do eu, mas o valor do outro ativamente presente na situação de comunicação.

Para Bakhtin (2014), portanto, a vida concreta visualiza dois centros de valor, os

quais, mesmo diferentes, estão correlacionados: o eu e o outro, de modo que é em torno deles

que a vida concreta se efetiva, se arranja. Como apontam Miotello e Moura (2014, p. 9), “[...]

minha identidade é constituída nessa relação, a identidade é constituída com o outro”. O

conceito norteador da obra do Círculo de Bakhtin, o dialogismo, também é relacionado à

identidade, pois ela não existe de forma independente ou soberana, mas é fruto de um

processo interacional, sócio-histórico, cultural e discursivo. Assim, o sujeito dialoga com

grupos sociais diferentes, discordantes ou consonantes as suas ideias. Há, portanto, na

interação, o compartilhamento de crenças, de valores, de pontos de vistas, de elementos

cognitivos e linguísticos, os quais são marcas de ideologias circulantes pela vida concreta.

Observamos que Bakhtin vai muito além da relação eu-tu proposta pela

fenomenologia, pois em “[...] sua teoria não fica restrito ao movimento de um eu que se

orienta para o outro, mas concebe o outro como condição necessária para a constituição do

eu” (FREITAS, 2013, p. 184). No entanto, não só o outro participa da constituição do eu,

pois Bakhtin (2011, p. 23) aponta que há sempre certa esfera de ativismo do eu, um

excedente de visão nessa relação, no sentido de que há sempre um “[...] conjunto daquelas

ações internas ou externas que só eu posso praticar em relação ao outro, a quem elas são

inacessíveis no lugar que ele ocupa fora de mim; tais ações completam o outro justamente

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naqueles elementos em que ele não pode completar-se”. O autor acrescenta que as ações são

variadas, tendo em vista a diversidade de situações da vida em que o eu e o outro podem se

encontrar, porém o ativismo do eu é sempre existente (BAKHTIN, 2011). A identidade

constitui-se, portanto, “[...] com o outro, num jogo de alteridade” (MIOTELLO; MOURA,

2014, p. 9) e não da fusão com o outro. Bakhtin apresenta um eu “[...] não sistêmico e,

sobretudo, interpessoal, responsável, no qual o outro é constitutivo do eu, sem o qual o eu

não posso Ser” (FREITAS, 2013, p.190).

A identidade é, assim, uma “concessão do outro”, pois a “[...] iniciativa do diálogo é

sempre do outro” (MOURA; MIOLTELLO, 2014, p. 154). Essa constituição dá-se em um

movimento da constituição do eu, a qual se estabelece no ato responsivo, em um diálogo com

o exterior. É na fronteira entre o eu e o outro que se constitui a identidade de um eu, sendo

construído pelas ofertas do outro. O eu não é constituído, portanto, por ele mesmo, mas pelo

outro, apesar da existência do eu. No encontro do eu com o outro, este completa aquele, por

ser um sujeito sempre em construção: “O ato do outro me incompleta sempre, me traz à vida,

me garante a incompletude necessária” (MIOTELLO; MOURA, 2014, p. 10).

Por esse viés bakhtiniano, podemos afirmar que a identidade é sempre coletiva, já

que o ponto de partida é sempre o outro, pelo fato de o sujeito ser sempre fruto de um

fenômeno socioideológico. Por isso, Bakhtin defende que o conteúdo do psiquismo

“individual” é “tão social quanto à ideologia e, por sua vez, a própria etapa em que o

indivíduo se conscientiza de sua individualidade e dos direitos que lhe pertencem é

ideológica, histórica, e internamente condicionada por fatores sociológicos” (2002, p. 58). O

eu, para Bakhtin, constitui-se, assim, fora de si mesmo, pela ação do outro no eu, mas

também no próprio eu, o qual é determinado não só pela unicidade do meu organismo

biológico, mas também pela “[...] totalidade das condições vitais e sociais em que esse

organismo se encontra colocado” (BAKHTIN, 2002, p. 58). O eu, então, nas brechas e

entremeios, volta-se para seu mundo, fecha a sua constituição, impondo seus limites,

definindo-se, concluindo-se a si mesmo (MOURA; MIOLTELLO, 2014, p. 155). No entanto,

o eu não vive apenas em seu mundo, definido, pronto, completo, mas vive também no mundo

do outro, pois é com ele que o eu irá dialogar, de quem aguardará sempre uma resposta para

os seus enunciados construídos. Nessa direção, o papel dos outros no enunciado do eu é

significativamente grande, pois eles são aqueles para os quais o enunciador lança seus

pensamentos, tornando-os realidade, não sendo meros ouvintes passivos, mas participantes

ativos da comunicação discursiva. Desde o início, o eu espera do outro uma resposta, “[...]

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uma ativa compreensão responsiva” como se o construísse para ir ao encontro dessa palavra,

dessa possibilidade de completude, de definição do eu (BAKHTIN, 2011, p. 301).

Bakhtin, ao escolher a categoria Outro para pensar a identidade do eu e não o tu,

amplia as possibilidades de relações humanizadoras. O outro é a outra pessoa, é também o

mundo, ou seja, tudo o que está fora do eu e com ele tem relação (MOURA; MIOLTELLO,

2014). O que Bakhtin faz é inverter o eixo de constituição da identidade do eu, uma vez que

ele é reconhecido pelo Outro: “A identidade tem de ser construída pela Alteridade” como

assinalam Moura e Miotello (2014, p. 157). A relação com o outro, para Bakhtin, é eterna,

iniciando-se, ao menos, no nascimento quando o eu recebe o nome de um outro e passa a

existir para os outros. No processo de interação, o outro é figura constante e exigida sempre,

pois a ele cabe completar o eu, mesmo que essa completude seja impossível, pois a interação

verbal é dinâmica e sempre pede outras completudes. Assim, embora sendo o mesmo, nunca

se é o mesmo, já que a diversidade de interações verbais advindas da vida concreta lança

novos desafios, novas exigências, novas negociações determinados pelo outro. Isso torna o eu

sempre em um sujeito de completude incompleta, pois ao querer-se completar, abre-se para a

incompletude. Nas palavras de Geraldi (2010, p. 107), “[...] o Outro é o único lugar possível

de uma completude sempre impossível”.

As interações da vida concreta pressupõem continuamente uma relação entre o eu e

o outro. É impossível estar no mundo sem estar em interação com o outro. Dele o eu leva a

sua marca, mas também deixa a sua, num processo dialógico. É a relação dialógica que une

esses dois sujeitos e essa não é apenas uma relação consoante, tranquila, construtiva, mas é

também a relação contraditória, refutante, turbulenta. Nessa direção, o eu pretende-se

diferente do outro, quer se posicionar diferente do outro, quer demonstrar um lado

desconhecido, novo. Moura e Miotello (2014, p. 160) mostram que essa “[...] é a nossa

riqueza. Esse é o nosso poder. Assim somos construtores. Não sou cópia do Outro. [...] Daí o

esforço de me posicionar diante do Outro como um Eu”.

Os autores defendem que o outro só entra em mim, me constituindo, me destruindo e

me reconstruindo, quando for possível significar o que está sendo negociado na relação. Essa

abertura ao outro é possível por meio de um signo, de modo que o Outro bate no eu como

signo: “a) como materialidade; b) como materialidade sócio-histórica; c) como ponto de vista

humanizador e humanizado” (MOURA E MIOTELLO, 2014, p. 160). Nessa direção, a terra

não é pó e a educação do campo não é educação rural. É o que os autores chamam de

rompimento com a mesmice. Ser o mesmo e o diferente ao mesmo tempo e no mesmo lugar.

Pelo sentido do signo, construído sócio-historicamente, ele tem força no eu, ele significa com

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o próprio eu e para o eu, isto é, o signo constitui o eu. É pelo signo que os acadêmicos sem

terra valoram o mundo, definindo-o, dando-lhe a importância que lhe cabe, em um

movimento de esforço humano da humanidade de se humanizar. O eu acadêmico sem terra

entra nesse movimento, põe-se em risco, mas não pode fugir do olhar do outro, o qual é

chamado a constitui-lo, com o objetivo de acentuar o eu sem terra.

Assim, vamos percebendo que os outros de agora e de ontem constituem os sujeitos

acadêmicos sem terras de hoje. Na relação entre passado e presente, entre os outros de hoje e

outros de ontem, a identidade desses acadêmicos constitui-se e, por mais que queiram, não há

espaço para o eu-comigo-mesmo, pois o outro é intrinsecamente parte dele. Isso demonstra

que a identidade dos acadêmicos sem terra não são X ou são Y por obra do destino ou por

vontade divina, mas é resultado de movimentos contrários ou consonantes de outras

interações de seu grupo ou de grupos opositores.

Como o discurso é capaz de registrar as nuances mais íntimas e transitórias da

sociedade, é sobre ele, o discurso dos acadêmicos sem terra, via relatos pessoais, que nos

debruçamos a partir de agora com o objetivo de desvendar a identidade dos acadêmicos sem

terra do curso de Ciências Sociais da UFGD, verificando quais são as vozes presentes e,

ainda, como o problema da terra no Brasil é tratado pelos sujeitos sociais, elementos que, na

relação do eu com o outro, constituem a sua identidade.

O pano de fundo que perpassa os relatos pessoais pauta-se na luta, na travessia pela

conquista de terra em acampamentos e assentamentos rurais em Mato Grosso do Sul,

especialmente no período entre as décadas de 1980 e 2009. Visualizam-se relatos elaborados

por homens e mulheres em busca de estratégias de pertencimentos sociais que, com seus

movimentos, produzem questionamentos sobre o modo como é/está organizada a estrutura

social brasileira.

Os relatos pessoais caracterizam-se como gêneros discursivos e permitem afirmar

que há alguns traços/situações recorrentes e similares na vida dos autores dos textos. Há

recorrência quando tratam das dificuldades para estudar quando crianças, da proibição dos

maridos quanto ao estudo, do forte sentimento pelos filhos, da desagregação, temporária ou

definitiva, da família até o momento de pertencimento “oficial” em relação às terras

almejadas. Como enunciados concretos, esse gênero traz à cena vivências amargas e doces de

uma trajetória marcada pela luta por condições melhores no campo, o que nos possibilita

desvendarmos suas identidades constituídas em um continuo do qual essa prática discursiva

faz parte.

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4.2 Vozes Histórico-sociais

O corpus deste estudo constitui-se por relatos pessoais, escritos por acadêmicas sem-

terra do curso de licenciatura em Ciências Sociais (2008-2012), oferecido pela UFGD em

parceria com o PRONERA, o MDA, o INCRA e os Movimentos Sociais Rurais de Mato

Grosso do Sul. A proposta de feitura dos relatos foi apresentada na disciplina de Produção de

Textos (2009). As finalidades da produção dos relatos foram apresentadas em sala. A primeira

consistia em uma atividade avaliativa da disciplina de Produção de Texto (2009), e a segunda

previa a publicação de um livro com os relatos, a fim de expor a leitores diversos a trajetória

de cada um em busca da terra e, para isso, seria necessário o aceite por parte do autor com a

devida autorização para revisão e publicação. Dos 56 acadêmicos, 35 disponibilizaram seus

relatos para publicação por meio de autorização concedida à Editora da UFGD, a qual foi

responsável pela editoração do livro Do cheiro da terra, aos fios da memória.

Os relatos apresentam fragmentos das trajetórias vivenciadas pelos acadêmicos desde

a infância até a chegada à Universidade. Trata-se de uma trajetória delineada por momentos

amargos, quando retratam, por exemplo, as dificuldades enfrentadas para se estudar quando

eram crianças e a tristeza sentida ao ter de abandonar os estudos. Porém, também retratam

momentos alegres vivenciados durante as brincadeiras de infância, como também a entrada no

tão sonhado lote. Trata-se de um momento de rememoração, em que acontecimentos do

passado são relembrados e, ao mesmo tempo, reavaliados, agora em um outro tempo e de um

outro lugar social: acadêmicos sem terra.

4.2.1 Análises: Desvendando a Identidade de Acadêmicos Sem Terra

Devido às características do gênero relato pessoal e das condições de produção

próprias dos relatos que estamos analisando, esperávamos que muitos assuntos fossem

apresentados pelos acadêmicos sem terra em seus textos, o que realmente ocorreu. Como

podemos observar no Quadro 8, o tema “vivido” é tematizado em múltiplos assuntos, os quais

demonstram as variadas experiências vivenciadas pelos graduandos sem terra até a chegada à

Universidade.

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Quadro 8: Assuntos presentes nos relatos pessoais dos graduandos sem terra

Acidentes no acampamento Escola Família Agrícola Mudança para o assentamento

Ajudar no sustento da família Escola longe do assentamento Mulheres retomam estudos

Apoio da Igreja Católica e da

CPT

Falta de estrutura do assentamento Ser professor do campo

Apoio dos maridos para estudar Experiência com o trabalho no campo Origem do estudante no campo

Apoio dos movimentos sociais Cursos nos Movimentos Sociais Mudanças durante a vida

Aprendizado nos cursos da

Igreja Católica

Estudo e trabalho na roça com os pais Pais com origem no campo

Assentamento sem escola Expectativas para o futuro Participação em grupos de jovens da

Igreja Católica

Assentamento: dificuldades

para se manter

Estudo noturno Pais vindos de outros estados

Brincadeiras - diversão Falhas na escolha da terra dos

assentamentos

Participação política no assentamento

Busca seu próprio lote Falta de apoio do marido para estudar Perda de lavouras

Colocação no vestibular Falta de condições financeiras para

pagar universidade particular

Produção no campo: fartura

Confrontos nos acampamentos Falta de encanto com a escola rural Relação de gênero

Corrupção dos líderes dos

Movimentos

Falta de escola no assentamento Religião católica

Criança com alta carga de

trabalho

Escolas multisseriadas – Mobral Nascimento de filhos

Cultura popular: causos,

benzeções, remédios caseiros

Formação política nos movimentos

sociais: MST, CUT, CPT

Religiosidade popular

Curso: dificuldades para

entender os conteúdos

História do nascimento Reprovação na escola

Descaso do município com o

assentamento

Identidade sem terra Retorno para cidade

Descrédito com o INCRA Língua Portuguesa na Universidade Sentimento: união e coletividade

Desistência da escola Luta no assentamento Trabalhos para fora quando criança

Desistência do acampamento Luta para conseguir o assentamento Trabalhos solicitados no curso

articulavam a prática e à teoria

Dificuldade para chegar à

escola quando criança

Mudança para Mato Grosso do Sul Mudança para o acampamento

Dificuldade para se manter no

lote

Luta no acampamento Trabalho como professor no

assentamento

Dificuldades com as disciplinas

no curso

Educação urbana Trabalho de diarista perto do

acampamento para sustentar a família

Dificuldades com maridos Escola: primeiro dia de aula Trabalhos diferentes

Distribuição de terras por

Getúlio Vargas - CAND

Falta de apoio do poder público:

escola, saúde, financiamento

Perda do emprego na cidade

Educação familiar História do nome Reprovação nos vestibulares

Escola no assentamento Falta de escola no acampamento Relacionamento com os colegas

UFGD: vestibular,

metodologia, estudos

União de Movimentos Sociais

diferentes

Venda do sítio por causa de

fazendeiros

Vestibular: satisfação em

passar

Vida no acampamento Violência no campo: polícia,

jagunços

Elaborado pela autora (2016).

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242

A variedade de assuntos que tematizam o tema vivido leva-nos a estabelecer

macrocategorias de assuntos, as quais norteiam nossas análises. As macrocategorias reúnem

os assuntos relacionados às fases da vida – infância, adolescência e maturidade –, conforme

observamos no Quadro 9.

Quadro 9: Divisão dos Assuntos em Macrocategorias

Infância Adolescência Maturidade

Origem Estudo Participação nos Movimentos Sociais

Escola Diversão Religiosidade

Religiosidade Relacionamento Familiar e Escola

Diversão Acampamento

Trabalho Assentamento

Universidade

Professor do Campo

Elaborado pela autora (2017).

Encaminhamos nosso movimento de análise a partir dessas três macrocategorias,

objetivando contemplar o tema do gênero relato pessoal. Ao trilharmos pelas macrocategorias,

fomos conduzidos por um fio condutor que nos leva a identificar as vozes constituintes da

identidade dos acadêmicos sem terra. Cabe ressaltarmos, em especial, que as vozes

diferenciam-se em um jogo de aproximação e distanciamento quanto à ideologia do sujeito

em análise.

4.2.1.1 Vozes da Infância

A primeira macrocategoria de assuntos a ser analisada refere-se à origem dos

graduandos71

. Como veremos, suas origens estão ligadas ao campo, pois seus pais e familiares

já realizavam serviços na lavoura em terras alheias ou em pequenos sítios para se manterem.

71 Os nomes dos graduandos, apresentados neste estudo, são reais, tendo em vista a autorização efetuada por eles

no momento da publicação do livro Do Cheiro da Terra aos Fios da Memória.

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243

Os discursos dialogam com vozes do passado, como as das Ligas Camponesas que lideram

uma oposição ao regime de terras no nordeste. Os graduandos narram que seus pais, a maioria

nordestinos, vieram para Mato Grosso do Sul em busca de terras e atendendo ao chamado do

então presidente Getúlio Vargas que anuncia um plano de distribuição de terras na região.

(1) Tive uma infância alegre e extrovertida meus pais sempre gostaram da roça e

decidiram criar seus filhos todos ali, mesmo morando com meus avós e as

condições de vida difícil, meus pais eram felizes, nada superava o amor que os

meus pais tinham pela família. (Marisete).

(2) É! Logo pela manhã, lindo dia de sol da primavera, 08 de outubro de 1978,

quando a contração se intensificava, iniciado no dia anterior, mamãe ao revelar

a vizinha Vilma, que instantaneamente ansiou-se, já que papai nos cuidados da

lavoura deixara sua ausência, mas de iniciativa a providência. (Zilda).

(3) Lembro-me que moramos em um sítio de um amigo de meus pais, que

trabalhava para ele, era divertido, porém lembro-me vagamente deles

reclamando que o dinheiro era pouco, não costumavam reclamar na nossa

frente. (Vilma).

(4) Passei quase toda minha infância na região de Dourados onde meu pai sempre

trabalhou como administrador de fazendas e assim crescemos, quase não

tínhamos amigos devido ao fato de morarmos afastados. (Rosangela).

(5) Tudo começou em 1.952, quando meus pais chegaram em Mato Grosso do Sul,

antigo Mato Grosso. Vieram de Alagoas em busca de um pedaço de chão. Na

ocasião, estava sendo distribuído lotes de terras na região da Grande Dourados

no então governo de Getúlio Vargas. [...], era apenas um aglomerado de

pessoas, na maioria nordestinos, que vieram em busca da tal Reforma Agrária e

assim como todos, meus pais, muito jovens, começam uma nova vida, com

muita esperança e uma grande espectativa. (Marialves).

(6) Sou de uma família de oito irmãos, meu pai é pernambucano e minha mãe

mato-grossense, sendo o filho caçula, nascido ao primeiro dia do mês de abril

do ano de 1963, na fazenda de propriedade do Sr. José Ferreira (Zé Japonês),

denominada Pontinha no município de Rochedo-MS. (Eder).

(7) Este era o maior sonho deste casal de nordestinos que aos doze anos de idade

deixaram o Pernambuco fugindo da seca, em busca de sobrevivência – comida,

agua, casa. A mãe veio com sua família, o pai veio sozinho e nunca mais teve

noticias de sua família. (Rosemeire).

Como podemos perceber pelos excertos apresentados, a origem dos graduandos é no

campo, vivenciando juntamente com os familiares as experiências de viverem como

camponeses, como no caso do pai de Zilda que cuida da lavoura: “papai nos cuidados da

lavoura”. Os pais são trabalhadores em terras de familiares como explica Marisete: “mesmo

morando com meus avós e as condições de vida difícil” ou terras de fazendeiros, como no

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caso de Eder que nasce na fazenda onde seus pais trabalham: “na fazenda de propriedade do

Sr. José Ferreira” e como Rosangela, cujo pai “sempre trabalhou como administrador de

fazendas” ou ainda nas terras de amigos para quem os pais trabalham, como mostra Vilma:

“moramos em um sítio de um amigo de meus pais, que trabalhava para ele”. Na perspectiva

bakhtiniana, ao mostrarem suas origens no campo, os discursos dos graduandos dialogam com

vozes adversárias que alegam serem os trabalhadores rurais sem terra oportunistas por não

terem ligações com a terra. O discurso dos graduandos é, assim, uma contrapalavra que ecoa

como uma resposta aos adversários e, também, como um argumento para justificar a luta que

travam para voltarem para campo, seu lugar de origem, onde têm suas raízes, onde foram

criados. Percebemos, ainda, que na oposição aos anseios capitalistas, o discurso dos

graduandos elabora-se na interação entre o Eu e o Outro, mostrando um posicionamento

ideológico do sujeito graduando sem terra. Nessa relação de interação, a palavra carrega de

um para o outro as ideologias de ambos, o que constitui cada um.

Ademais nos discursos quanto à origem, ecoa também as vozes dos camponeses

nordestinos, que, em busca por terra, saíram do nordeste brasileiro para outros estados, como

Mato Grosso do Sul. Isso se evidencia nos discursos quando os graduandos lembram-se das

saídas de seus pais do nordeste: “Vieram de Alagoas em busca de um pedaço de chão”

(Marisete), “meu pai é pernambucano e minha mãe mato-grossense” (Eder), “[...] nordestinos

que aos doze anos de idade deixaram o Pernambuco fugindo da seca, em busca de

sobrevivência” (Rosemeire). Além disso, nesses discursos, ecoam as vozes das Ligas

Camponesas, movimento nordestino que denunciou as restrições à terra nos estados do

nordeste, vistas no capítulo II. Percebemos que os pais dos graduandos saem na época em que

os camponeses nordestinos veem as Ligas Camponesas serem silenciadas pelas estratégias

políticas e violentas do governo e dos latifundiários e usineiros. Desse modo, podemos inferir

que os graduandos são herdeiros da visão ideológica das Ligas Camponesas, que concebia o

signo ideológico terra como um direito de todos aqueles que na terra quisessem trabalhar.

Também compreendemos que os camponeses das Ligas, assim como os graduandos sem terra

e suas famílias, são vítimas de uma política de terras voltada para a elite, o que é gerido desde

a implantação do regime de sesmarias, depois ampliado com a revogação da Lei de Terras, de

1850, e vem sendo consolidado com a promulgação de Constituições Federais, cujos

discursos limitam o direito à terra à compra, o que, consequentemente, as conduz às mãos dos

latifundiários e das multinacionais.

Isso demonstra que os regimes adotados para a distribuição de terras desde o Brasil

Colônia implicaram uma herança negativa para os camponeses daquela época e,

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245

consequentemente, para seus descendentes, os quais foram obrigados a deixarem o campo e a

ocuparem as periferias das grandes cidades, entregando-se à exploração no contexto urbano.

No entanto, ao serem herdeiros das Ligas, os graduandos possuem um espírito de resistência

organizada e uma necessidade de formação política e acadêmica. Nesse movimento de

compreensão da palavra dos graduandos sem terra, tendo em vista a visão bakhtiniana,

podemos observar que “[...] fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando

uma réplica. Quanto mais numerosas e substanciais forem, mais profunda e real é a nossa

compreensão” (BAKHTIN, 2002, p.132).

Estar em terras alheias e sofrer as imprecisões oriundas de ser empregado levam os

filhos de trabalhadores rurais a terem dificuldades para permanecerem na escola. Isso se

evidencia na análise da macrocategoria Escola, que veremos a seguir. Nela os discursos

criticam as dificuldades encontradas para continuar na escola, como a financeira, a distância

entre a casa e escola, a falta de transporte escolar e o sistema escolar das escolas rurais, o que

revela falta de investimento e um esquecimento por parte do governo e dos fazendeiros em

relação às escolas rurais da época.

As vozes que se erguem nos excertos denunciam o esquecimento do campo por parte

das autoridades, pois a educação rural não comporta as especificidades dos filhos de

camponeses. Essas dificuldades experimentadas contribuem para a evasão escolar e as

reprovações, por exemplo. Com isso, podemos perceber como a metodologia da pedagogia da

alternância é fundamental para que camponeses e seus filhos possam entrar e permanecer na

escola. As experiências negativas vivenciadas nas escolas rurais também colaboram para a

importância dada ao curso de Ciências Sociais, o qual é visto como uma oportunidade de

realização de um sonho, não só do graduando, mas também de toda sua família.

(1) As dificuldades de uma criança pobre influenciavam o meu desempenho, por

não conseguir comprar a cartilha didática usada na primeira série chamado

Caminho suave, tive dificuldades no inicio do ano letivo. Mas lembro-me que

minha professora ganhou uma cartilha usada e velhinha, e através de uma

disputa entre eu e outra criança, ganhei a cartilha por ler melhor que o outro.

(Alessandro)

(2) O tempo foi passando, fui crescendo, e junto com meus irmãos, a cada ano que

passava, as coisas iam ficando mais apertadas, já não tinham mais mochilas e

nem cadernos; o governo não fornecia material escolar, e meus pais não

tinham condições de manter cinco filhos na escola com materiais adequados.

Tinha só um caderno para todas as matérias e misturava todos os conteúdos.

Por essa razão, não consegui tirar a quarta série quando tinha 9 anos e ganhei

uma surra por ter repetido de ano. (Ivanilda)

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246

(3) O pai arriou o cavalo na carroça e arrumou a mudança em cima, fomos a pé

enquanto a carroça levava parte das coisas. (Maria de Fatima)

(4) Com oito anos de idade mudamos para Juti [...]. Fui matriculada no primeiro

ano, [...] só existiam duas salas e dois períodos, depois de dois anos fomos

para uma chácara de quatorze hectares de terra, que compramos. Para terminar

o terceiro e o quarto ano primário, andávamos seis quilômetros de distância,

dois quilômetros de picada dentro da mata, quatro quilômetros de estrada de

muita areia, éramos cinco meninas [...] a mais adulta tinha doze anos, era

divertido a ida à escola, mas muito cansativa a volta da escola pra casa. Foi

muito triste ter que parar de estudar e contentar só com o primário, pois não

havia mais estudos, por ser um lugar muito pequeno. (Alice)

(5) A família crescera bastante, éramos seis filhos e nenhum estudando, o pai e

mãe preocupados resolveram que a saída era vender tudo e irmos para a

cidade. Meu pai vendeu nossas terras, no negócio recebeu a morada do seu

Chiquito Rosa, que havia ficado viúvo. (Dalva)

(6) A escola era novidade, iniciei a vida escolar um pouco tarde aos onze anos na

Escola Estadual Amando de Oliveira, no começo foi muito difícil, as

diferenças de idade, uns com sete outros com quinze. Foi complicado, ficava

meio perdido e fazia o que podia, acabei me adaptando rápido e tendo êxito na

aprendizagem [...]. (Eder)

(7) Aos sete anos de idade começou a estudar na escolinha da colônia

bandeirante, esta com o nome de Escola Municipal José Gonçalves da Silva

[...]. O professor Benedito Ladislal da Silva que não tinha nenhuma formação

profissional para lecionar, mas tinha um conhecimento literário, pois na época

ele tinha o 4°ano primário que era uma formação acima dos conhecimentos da

comunidade, então desde o inicio da colônia começou a trabalhar na educação

e era um serviço que fazia muito bem. (Edmilson)

Os dois primeiros excertos (Alessandro e Ivanilda) demonstram as dificuldades

financeiras enfrentadas pelos filhos de camponeses, sitiantes, para estudar, por não

conseguirem comprar os materiais necessários (“por não conseguir compra a cartilha didática

usada na primeira serie chamado Caminho suave”), ou pela falta de apoio dos órgãos

governamentais para a aquisição desses materiais (“não tinham mais mochilas e nem

cadernos; o governo não fornecia material escolar, e meus pais não tinham condições de

manter cinco filhos na escola com materiais adequados”), o que evidentemente influencia no

desempenho deles na escola. A primeira materialidade discursiva mostra que o filho de

camponês não tinha material didático para estudar, já que a cartilha deveria ser comprada

pelos pais. Sem apoio das autoridades de educação e da escola, ele consegue ganhar a cartilha

por meio de uma disputa com outra criança na mesma condição. Portanto, é na disputa, na luta

que a criança sem terra conseguiu uma “cartilha usada e velhinha” e sair da condição de não

ter material para estudar. A falta de recursos financeiros para custear os materiais também é

sentida pela assentada Ivanilda, a qual juntamente com seus irmãos não tinham “mochilas”

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nem “cadernos” para levarem à escola, também sofrendo com a falta de apoio do governo e da

escola para continuarem a estudar. A solução encontrada é ter um caderno para todas as

matérias, não tendo a possibilidade de organizar melhor os conteúdos.

Percebemos que a falta de políticas específicas por parte do governo para estudantes

do campo constitui a identidade dos acadêmicos sem terra no sentido de que a eles é negado o

direito de estudar, condenando-os ao analfabetismo e ao abandono da escola. Como define

Bakhtin (2011), é na relação com o outro que se constitui a identidade. Neste caso, o sujeito é

uma concessão do outro, o governo, que nega e impossibilita o acesso à escola, o que marca a

identidade do acadêmico sem terra como um militante pela escola do campo, a qual é capaz

de atender às especificidades das crianças desse lugar.

A situação vivenciada por esses sujeitos levam a um problema frequente entre os

filhos de camponeses: a reprovação. A falta de condições financeiras para comprar os

materiais é um fato recorrente entre esse grupo social, que, na maioria das vezes, precisa

escolher entre o material e a alimentação. Dessa forma, sem condições adequadas para

estudar, os filhos de camponeses foram sendo condenados a reprovações recorrentes, o que

acarretava, geralmente, na saída da escola. Essa situação leva as crianças do campo a serem

marcadas pela sociedade dominante como “burras”, “incultas”, “incapazes”, a quem, então,

não é necessário levar educação, pois seguem os caminhos dos pais como empregados nas

fazendas ou como mão-de-obra barata nas cidades. Já aqueles que transcendem esse contexto

de condenação são vistos como pessoas que não querem trabalhar, que não querem mudar de

vida, discursos que constituem a identidade dos acadêmicos sem terra, que negam essa

afirmação por meio de sua vivência com a escassez de oportunidades. Logo, há um jogo de

resistência a esse discurso que, apesar de constituir a identidade dos estudantes, é negado; por

isso, Bakhtin afirma que o eu é constituído por ele mesmo, mas também pelo outro.

Observamos que a relação de pais e filhos com a escola continua a mesma, pois os

pais eram, na maioria, analfabetos e passaram a ver seus filhos semianalfabetos pelo fato de

todo o trabalho no campo não ser suficiente para garantir a permanência dos filhos na escola e

mudar a situação de precariedade vivida por toda família. A precariedade do contexto das

crianças do campo se incorpora à identidade dos sujeitos em análise, pois elas serão motivo de

lutas, já que os acadêmicos sem terra não querem para seus filhos a mesma situação de

exclusão. O contexto de falta de oportunidades coloca esse sujeito em posição de luta contra o

sistema hegemônico, constituindo a identidade de um sujeito que lutará pela educação não

apenas para ele, mas também para os outros.

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Outra dificuldade enfrentada pelos filhos de camponeses é a mudança de um lugar

para outro, o que é fruto das relações de trabalho com seus empregadores/patrões e da venda

das terras que possuíam para irem morar na cidade, como ainda de uma busca por melhores

condições de vida para a família, conforme revela Maria de Fatima. Com isso, as crianças não

conseguem terminar o ano escolar na mesma escola, o que prejudica o desempenho delas com

relação aos conteúdos. O relato de Alice evidencia ainda o problema da distância entre o sitio

e a escola que, no caso dela, é de seis quilômetros. São seis quilômetros percorridos por cinco

meninas que precisam seguir por uma “picada” (pequena trilha feita pela mata) para chegar à

escola. A distância, a falta de transporte escolar, a falta de mais escolas no campo fizeram

com que a filha de camponeses precisasse “parar de estudar”, um fato corriqueiro entre as

crianças de seu grupo social, mas triste para ela.

Vemos, assim, que a escola rural não é uma prioridade do sistema escolar brasileiro,

já que elas não recebem apoio dos governantes tampouco dos fazendeiros. O signo educação

rural tem contornos de práticas hegemônicas por ser um instrumento para reafirmar políticas

de exclusão e de exploração. Levar condições de educação para o campo seria uma forma de

libertar filhos de trabalhadores rurais, oportunizar a eles alcançarem a autonomia e de

criticarem o sistema de exploração no campo. Por isso, uma política de educação do campo

não é pensada e defendida antes da chegada dos movimentos sociais rurais, como o MST, que

vê a ignorância como uma cerca a ser rompida. Nessa ótica, a identidade dos graduandos sem

terra é marcada pelos sentidos dos signos educação rural e educação do campo, os quais

apresentam sentidos contrários, demonstrando a relação entre o Eu e o Outro. O primeiro

aponta para uma identidade resultado de processos limitadores e excludentes; já o segundo

incorpora a essa identidade os sentidos de libertação e autonomia. Notamos, assim, que a

identidade dos graduandos sem terra é constituída por estruturas sociais excludentes, mas

também por estruturas que visam à libertação, como o MST, a Teologia da Libertação, as

CEBs e a Educação Libertadora de Paulo Freire. Na visão desses agentes sociais, o signo

educação do campo ganha significado de poder, pois eles concebem que, na sociedade

vigente, cultura, conhecimento, informação é poder; logo é necessário que todos os

camponeses tenham acesso aos conhecimentos, e o caminho para isso é a educação

libertadora. Dialogamos, assim, com Paulo Freire (1975, p. 37) quando o educador sustenta

que tirar o trabalhador da sombra da ignorância “[...] é uma das fundamentais tarefas de uma

educação realmente liberadora e por isto respeitadora do homem como pessoa”.

Já para os pais que não quisessem que seus filhos parassem de estudar, resta “vender

tudo” e seguir para as cidades, onde têm de trabalhar em serviços desvalorizados, recebendo

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salários baixos e não tendo a terra para garantir a plantação de um alimento para completar o

sustento da família.

A análise dos excertos dos relatos revela, ainda, que os filhos de camponeses podem

entrar “tarde” na escola, por exemplo, “aos onze anos”, como no caso de Eder, o que também

é um fator que dificulta a relação da criança com a aprendizagem. Uma sala com crianças de

sete e outras de quinze anos evidencia um problema social enfrentado pelos camponeses, pois

mostra que essas crianças não entram na escola na idade mais adequada. Estar no primeiro

ano do ensino fundamental aos “onze anos”, antigo primário, pode significar para este sujeito

um atraso, uma desmotivação, uma humilhação, mas indica um problema vivenciado por seu

grupo social: o descaso com a formação escolar desses brasileiros. Essa situação de descaso,

vivenciada pelas crianças do campo, traz à vida o eu-sujeito acadêmico assentado, pois mostra

a sua incompletude e o papel do outro na sua constituição, fazendo-o desenvolver ações para

desconstruir esse cenário de exclusão social, como a entrada nos movimentos sociais e a luta

pela escola do campo. O sujeito acadêmico sem terra é fruto, portanto, pelo viés bakhtiniano,

de um fenômeno socioideológico, já que o indivíduo apenas se conscientiza de sua

individualidade quando se depara com o outro e sua ideologia. Logo, é o outro com sua carga

ideológica que constitui, inclusive, a identidade de resistência e de luta dos acadêmicos sem

terra.

Não sendo o bastante, nas escolas rurais, os professores, como demonstra o discurso

de Edmilson, não tinham formação adequada para assumir a sala de aula, como é o caso do

senhor Benedito Ladislal, o qual, por possuir “conhecimento literário” e por ter “o 4º ano

primário”, é professor da escola da colônia. Notamos o descaso com a educação rural, pois,

embora o professor Benedito fizesse o seu melhor e fosse um bom professor, conforme aponta

Edmilson, não lhe é dada a oportunidade de também continuar os seus estudos e uma

formação para o magistério.

Verificamos que a escola rural e as autoridades públicas não atendem às

necessidades e às peculiaridades dos filhos de camponeses, pois o que se vê são escolas com

poucas salas de aula, professores sem formação adequada, falta de material didático, falta de

escolas e de transporte escolar. Tudo isso cria uma situação desfavorável para estudar,

condenando os filhos dos trabalhadores rurais a continuarem o caminho de seus pais, sem

oportunidades, sem mudanças e sem justiça social. Ouvimos a voz das Ligas Camponesas, as

quais investiram na formação política de seus filhos e de seus membros, já que visualizam a

necessidade de as pessoas do campo terem formação para lutarem por seus direitos. Também

ecoa a voz da Igreja Católica, que também percebe a necessidade de alfabetizar o povo

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oprimido e levá-lo a uma reflexão acerca do vivenciado, o que é resultado das ideias da

Teologia da Libertação para a qual a educação é um meio de libertação do povo. Por meio das

CEBs, a Igreja Católica lança cursos de formação sindical, política e de alfabetização, bem

como empreende lutas políticas em defesa da justiça social, fazendo surgir na Igreja

movimentos sociais da terra, como MST e CPT, e partidos políticos como o PT (cf. Capítulo

II).

Essas vozes, nessas análises, demonstram, as dificuldades dos camponeses e de seus

filhos para chegarem à escola e permanecerem nela, sentido que é compartilhado pelas vozes

das Ligas Camponesas, da Igreja Católica. Os discursos mostram, porém, que não se trata de

um problema superado, pois muitos assentamentos ainda não têm escolas. São vozes, portanto

consoantes à voz do sujeito acadêmico sem terra. Isso ocorre pelo fato de serem vozes do

passado que já combatem a opressão dos camponeses e a falta de educação a seus filhos. As

vozes do presente retomam os discursos passados e, também, lançam no presente e para o

futuro o discurso da denúncia da escassez de políticas públicas que façam chegar aos

acampamentos e assentamentos os direitos já garantidos no Artigo 205 da Constituição

Federal de 1988: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família [...]” (BRASIL,

1988).

Notamos que essas vozes constituem a identidade dos acadêmicos sem terra no

sentido de que foram incorporadas pelos movimentos sociais rurais, passando a fazer parte

dos discursos dos movimentos e, consequentemente, dos assentados em decorrência dos

cursos de formação e dos princípios filosóficos que norteiam os movimentos. A educação e a

escola são vistos como instrumentos de libertação, sendo uma constante na identidade dos

estudantes assentados. Eles herdaram das Ligas, da Teologia da Libertação, das CEBs e dos

movimentos sociais a ideia de que a educação política e intelectual é fundamental para levar à

frente um projeto de justa redistribuição de terras, bem como de uma sociedade mais

igualitária. São vozes consoantes ao propósito ideológico dos estudantes sem terra, as quais

constituem a identidade desses sujeitos. São vozes que os completam, mesmo que os sujeitos

enunciadores tenham a ideia de que seus discursos são apenas seus, e suas identidades sejam

construídas somente por si próprios. No entanto, o outro, por fazer parte do continuum da luta

pela terra, está presente, é exigido a fim de completar as identidades em construção.

Como afirma Alice é “[...] muito triste ter que parar de estudar e contentar só com o

primário”, realidade vivenciada por milhares de filhos de camponeses pelo Brasil. Contudo, a

educação rural, como um agente excludente e reafirmador do poder hegemônico, não é o

único fator que leva muitas crianças do campo a deixarem a escola, pois a necessidade de

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trabalhar e ajudar no sustento da família e na lida do campo também marca a identidade dos

graduandos de Ciências Sociais, como podemos notar nos excertos a seguir:

(1) A mãe nos chama, mostra como colhe café, e junto com ela ficávamos ali,

primeiro com um pau, limpar embaixo do pé de café, forra a lona, e puxa os

grãos dos galhos, recolhe a lona e abana tudo na peneira para depois ensacar.

(Rosemeire)

(2) Com o nascimento do meu irmão, mesmo tendo apenas cinco anos de idade,

já ajudava minha mãe a cuidar do meu irmão. Enquanto trabalhavam no

plantio e na colheita de brócolis, eu ficava cuidando dele em baixo de uma

árvore. (Alessandro)

(3) Dilma com sua pouca idade de 9 anos, assumia responsabilidade que não lhe

competia, Vilma de 8 anos, ficava com a tarefa de toda lavagem das roupas de

todo membro da família, beira de um córrego, próximo ao bairro onde

morávamos, Zilma de 02 anos e eu com a apreensiva idade dos 04 meses

incompletos, Dilma cuidava da casa de nós, a nova vida se iniciava, corrente

da despedida de papai. (Zilda)

(4) Meus pais e minha irmã mais velha iam para a roça e eu ficava em casa

cuidando dos deveres e dos irmãos menores. (Ivanilda)

(5) No acampamento em Dois Irmãos do Buriti a gente brincava bastantes, mas,

entre uma brincadeira e outra eu tinha alguns serviço que tinha que realizar.

Buscar água era apenas um deles, a mãe trabalhava na roça e só chegava a

noite, então eu junto com meus irmão mais velhos estávamos incumbido de

buscar água no rio para consumo da família. Eu buscava água com uma

pequena chaleira e meus irmãos com vasilha maior. Já acampado na área onde

hoje é o assentamento a minha tarEFA era de cuidar da casa e de duas vacas.

(Cristiano)

(6) Nesta época comecei a levantar bem cedo, pois as atividades foram divididas

e me sobrou o trato dos porcos e das galinhas e quando necessário levava água

e alimentação na roça. (Eder)

Os excertos selecionados mostram como o trabalho de crianças no campo é

recorrente, sendo um elemento natural da dinâmica daqueles que nele vivem. No primeiro

caso, observamos como as atividades da lida diária são passadas, ensinadas para os filhos por

seus pais. A mãe leva as filhas ao cafezal e mostra as etapas do trabalho com o café, o que é

expresso pela sucessão de verbos que mostra o movimento do trabalho: colher, limpar, forrar,

puxar, recolher, abanar e ensacar. São as várias etapas de um trabalho que a mãe aprendeu,

provavelmente, também quando criança, e que é o sustento da família. A dinâmica do trabalho

no campo está em sua ordem, pois a mãe chama as filhas para também participarem de uma

corrente de trabalho feita pelas mãos da família.

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Outra característica das famílias do campo, evidenciada nos relatos, é o número de

filhos, quase sempre expressivo, como cinco, seis ou mais. A quantidade de filhos faz com

que os pais trabalhem ainda mais na roça e coloquem os mais velhos como os responsáveis

pela segurança e alimentação dos mais novos. Os excertos dos relatos de Alessandro, Zilda e

Ivanilda retratam essa realidade vivida durante a infância. São crianças que com “apenas

cinco anos de idade” já são responsáveis por seus irmãos. Esse fato é intensificado no

discurso ao se referir a sua idade: “mesmo tendo apenas cinco anos de idade” (Alessandro). O

uso do advérbio “apenas” mostra um sentimento de tristeza do sujeito com relação ao vivido,

bem como demonstra ao outro uma condição não aceita pela maioria das pessoas. O sujeito

chama a atenção do outro, e sua identidade de criança do campo aflora, pois a situação de já

ter reponsabilidades de adultos aos cinco anos contraria as leis vigentes no Brasil, como

também ao discurso de que criança não trabalha. Sabendo disso, Zilda aponta que a irmã

“assumia responsabilidade que não lhe competia”, cuidar das irmãs, por ter 9 anos.

Além de cuidar dos “irmãos menores” e de ir “para a roça” (Ivanilda) com os pais, os

acadêmicos sem terra enquanto crianças do campo também trabalham em casa e no sítio,

lavando “roupas de todo membro da família, beira de um córrego” (Zilda), buscando “água no

rio para consumo da família”, cuidando “da casa e de duas vacas” (Cristiano), tratando “dos

porcos e das galinhas” (Eder). Podemos pensar que são trabalhos que exploram as crianças,

tiram o tempo delas de brincarem e estudarem, o que não pode ser negado, mas não podemos

esquecer a dinâmica do campo, marcada pela divisão de tarefas, em que cada membro da

família assume papéis e trabalhos que colaboram para o sustento de todos. Vivenciar essa

dinâmica constitui a identidade dos acadêmicos sem terra, que, antes de serem estudantes do

ensino superior, são trabalhadores rurais sem terra, identidade que já começa a ser construída

nos primeiros anos de infância, ao interagirem com a dinâmica do campo, com o tempo

particular para plantar e para colher e com os trabalhos que precisam ser divididos entre os

familiares, o que conduz esses sujeitos a se sentirem pertencentes ao campo e parte dele. São,

portanto, crianças diferentes das que pertencem à cidade, pois estas vivenciam outra dinâmica,

a qual apresenta momentos mais determinados para estudar, para brincar e, se precisar, para

também trabalhar. Percebemos que a identidade é constituída por essas experiências que

diferenciam os sujeitos conforme o contexto social em que vivem. E como este contexto é

dinâmico, suas identidades também o são. Elas estão em constante movimento por

acompanharem as heranças e as trajetórias futuras dos sujeitos.

É evidente que os trabalhos desenvolvidos geram consequências na vida dessas

crianças, como a dificuldade para estudar, já que o estudo é uma atividade que pede um tempo

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específico para ir à escola e para realizar as tarefas escolares em casa. É por isso que os

relatos mostram o valor que os estudantes assentados dão ao fato de estarem na Universidade.

Como vimos, neste estudo, o número de camponeses e de filhos de camponeses analfabetos e

semianalfabetos no Brasil sempre é acentuado, uma vez que a escola rural ou a escola urbana,

frequentadas por eles, não levam em consideração o vivido fora da escola, o ser criança do

campo em um país desigual, onde os pais trabalham muito por salários baixíssimos e para

completarem a renda precisam da mão-de-obra das crianças na roça ou em casa. Por isso,

podemos entender o desejo de os trabalhadores rurais sem terra, pais e professores, pela

construção de escolas do campo, pois elas podem criar formas para agregar os saberes da

escola à dinâmica do campo.

Outra macrocategoria de assunto que se revela na infância é a religiosidade. Os

relatos pessoais demonstram como as famílias camponesas relacionam-se com Deus, ora

apegando-se a elementos da religiosidade popular ora a elementos da religião oficial,

principalmente, os da Igreja Católica, como podemos observar nos excertos a seguir:

(1) Minha prima Natercia e seu futuro cunhado Jaime, noivo de Eloene, foram

convidados para serem meus padrinhos em casa. Naquela época, o batizado

tinha que acontecer antes do sétimo dia do nascimento, visto que tratava-se de

uma criança pagã e até então as bruxas rondavam a casa. [...] O tempo passou,

em certa ocasião quando eu estava mais ou menos com nove meses, minha

mãe observou que meu corpo estava cheio de feridinhas, principalmente na

cabeça. [...] Como minha mãe que já havia perdido meu irmão mais velho com

sarampo, temendo a varicela, como sempre acionou o primo José, para que

este fosse chamar o padrinho Bernardino, pois ele era homem entendido e

curandor. (Dalva)

(2) Vai ter missionários, temos que preparar para batizar as meninas diz a avó,

“criança batizada é mais calma, não se pode ser pagã. Se acontece algo com as

crianças e ela vem falecer, não vai para o céu sua alma fica no purgatório

perdida, que só entra no céu quem é filho de Deus, antes disto somos apenas

criaturas de Deus”. Dentro de sua simplicidade e devoção, passou sua crença

aos seus filhos, e agora para seus netos e netas. (Rosemeire)

(3) A vizinha respondeu que tinha medo de olhar para mim e me colocar

quebrante, pois me achava uma gracinha. Minha mãe respondeu a ela que

respeitava sua cultura mas não acreditava em quebrante, que ela podia olhar o

quanto quisesse que não ia acontecer nada. (Ivanilda)

(4) Por ser uma família muito religiosa, acreditava que era alguma praga que

jogaram na criança, pois, isso aconteceu do dia para a noite, os médicos não

achavam a causa. Então foi onde mamãe começou a buscar uma benzedeira.

Orações, benzimentos, promessas , tudo foi feito na tentativa de fazer a criança

voltar a andar, somente aos seis anos de idade começou a demostrar vontade e

começou a esforçar-se para andar, voltou a alimentar-se bem, estava dando

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sinais que estava voltando a viver normalmente como as outras crianças.

(Ivone)

(5) O ela que não se esperava era que fosse ter um parto tão difícil que quase a

levou á morte. Por essa razão que o casal prometeu à Nossa Senhora

Aparecida que colocaria o seu nome na criança, se fosse menino chamaria

Aparecido, e se menina, Aparecida. Mas que ela ajudasse a salvar a mãe e a

criança. [...] então, a origem do meu nome surgiu de uma promessa ou de um

milagre? (Maria Aparecida)

A religiosidade é uma marca da humanidade, que busca estabelecer uma conexão

com o divino, o sobrenatural, o desconhecido, a fim de dar sentido ao que vê e sente, como

também para obter conforto nos momentos difíceis e se sentir incluído. Devido a isso, pessoas

com a mesma visão sobre quem é Deus unem-se e trocam informações, fazendo com que

conhecimentos sejam guardados por muito tempo. No campo não é diferente, o que se

evidencia pelo apego, confiança e fé.

O batismo, para os católicos, relembra as palavras de Cristo, quando disse aos seus

apóstolos: “Ide e ensinai todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do

Espírito Santo” (MATEUS, 28:19). O batismo é considerado a porta da vida eterna no Reino

de Deus. Além disso, o Batismo é o primeiro sacramento do católico, o que faz dele membro

do corpo da Igreja. Os católicos valorizam o batismo e confiam que, pelo sacramento, a

criança deixa de ser pagã, pois o batismo tira das crianças o pecado de serem concebidas de

pecado original72

. No entanto, no campo, o batismo toma contornos da religiosidade popular,

herdada da Idade Média, como podemos confirmar, quando Dalva refere-se ao batismo como

uma forma de expulsar as bruxas que rondam a casa que tenha uma criança recém-nascida. As

bruxas, desde a Idade Média, são perseguidas pela Igreja Católica, por representarem a

heresia. Elas são acusadas de assassinatos de crianças e, também,

[...] de feitiçarias feitas, também, com o uso de coisas provenientes desses

assassinatos (por exemplo, toucinho de crianças pequenas), de profanação de

hóstias consagradas. Mais ou menos desde a metade do século quatorze

começaram também as acusações de “congressos” especiais a que as bruxas

chegavam transformadas em animais mágicos (sobretudo bodes), e onde se

cozinhavam e se comiam carnes infantis (CARDINI, 1996, p. 14).

72 Disponível em: <http://www.igrejacatolica.org/criancas-nao-se-podem-salvar-sem-

baptismo/#.WnWOHq6nHIU>. Acesso em: 15 jan. 2018.

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As acusações que caem sobre as bruxas levam a população a desenvolver um medo

das mulheres acusadas de serem bruxas e de suas práticas. Entre suas atividades estão as

relacionadas com crianças, as podem ser assassinadas e, inclusive, servidas em seus rituais. Já

a superstição aparece no discurso de Dalva quando ela se refere ao número 7: “sétimo dia do

nascimento”, o qual é tido como um número divino, por representar diferentes situações da

religião católica, como, por exemplo, a criação do mundo por Deus. Segundo o livro de

Gênesis (2: 2,3), “[...] E havendo Deus acabado no dia sétimo a obra que fizera, descansou no

sétimo dia de toda a sua obra, que tinha feito. E abençoou Deus o dia sétimo, e o santificou;

porque nele descansou de toda a sua obra que Deus criara e fizera.” Além disso, 7 são os

sacramentos, os pecados capitais, as virtudes, e os dons do Espírito Santo. Com isso,

percebemos que o número 7 está ligado à perfeição e ao acabamento. Com o batismo até o

sétimo dia, a criança está salva e, como aponta a avó de Rosemeire, “criança batizada é mais

calma, não se pode ser pagã”.

Também o discurso de Ivanilda lembra de outra superstição, ao afirmar que: “A

vizinha respondeu que tinha medo de olhar para mim e me colocar quebrante, pois me achava

uma gracinha”. O quebranto, na religiosidade popular, é entendido como um mau-olhado

carregado de ciúmes, inveja, direcionado para pessoa por ela ser bonita, por exemplo,

causando malefícios à saúde, como preguiça, desânimo, cansaço e palidez. Desse modo,

notamos que, na religiosidade popular, pessoas comuns podem ter o poder de causar um mal a

outra pessoa, o que a mãe de Ivanilda não acredita.

Mas a família de Ivone acredita que o fato de ela não andar antes dos seis anos de

idade é resultado de uma “praga que jogaram na criança, pois, isso aconteceu do dia para a

noite, os médicos não achavam a causa”. Como os médicos não encontraram a causa e a

doença ocorreu inesperadamente, a explicação da família é a “praga”, o que poderia ser

resultado de forças mentais excessivamente poderosas. A praga parece ser mais forte que o

quebranto, pois pode ser atribuída a Deus e ao seu poder e por isso poder atingir a toda uma

nação, como ocorre com os Egípcios por escravizarem os israelitas e não aceitarem Deus

como único deus da terra. O objetivo das dez pragas enviadas sobre os egípcios é revelar a

grandeza, o poder e a soberania do deus dos israelitas, fazendo com que o faraó reconhecesse

e confessasse que o verdadeiro Deus é o cultuado pelos hebreus, como narra o livro de Êxodo

(9: 16). Como isso não acontece, os egípcios sofreram com a água em sangue, a

superpopulação de rãs, piolhos, moscas, gafanhotos e, também, com doenças em suas criações

de bovinos, chuva de pedras, escuridão total e morte dos primogênitos. Tudo isso leva a crer

em um Deus poderoso e, ao mesmo tempo, em um Deus temível. Diante do medo, os cristãos,

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como a família de Ivone, buscam “Orações, benzimentos, promessas” para se livrarem de seus

pecados. A benzeção procurada pelos familiares de Ivone para curar a menina e de Dalva para

curar as feridas também é um ritual herdado da Idade Média, que objetiva curar o corpo e o

espírito por meio de palavras e orações, tendo o benzedor/curador como intermediário entre

Deus, deuses e a pessoa que necessita de cura.

Como podemos notar, a vulnerabilidade do indivíduo faz com que ele procure

tratamentos ligados ao sobrenatural e ao desconhecido, em que põe sua fé, confiança e

esperança. É o que também acontece com Maria Aparecida que recebe este nome devido a

uma promessa feita durante seu nascimento. A promessa se caracteriza como uma troca entre

o necessitado e Deus ou Nossa Senhora, como no caso da mãe de Maria Aparecida, que, na

hora de aflição, promete a “Nossa Senhora que colocaria o seu nome na criança, se fosse

menino chamaria Aparecido, e se menina, Aparecida. Mas que ela ajudasse a salvar a mãe e a

criança”. A menina é salva e recebe o nome da santa, sendo a promessa cumprida.

Notamos, pelos excertos analisados, que não há uma fronteira mecânica entre a

religiosidade popular e a religiosidade oficial, da Igreja Católica, pois elas se relacionam. Essa

constatação nos remete ao conceito bakhtiniano de “circularidade cultural”. Para Bakhtin

(1987), a compreensão das manifestações da cultura popular realiza-se ao se levar em

consideração a interação existente entre essa forma cultural e a cultura hegemônica (oficial),

na qual uma pode incorporar e ressignificar elementos presentes na outra, de maneira a

constituir um fluxo contínuo de trocas. Alicerçado em Bakhtin, Ginzburg (1987, p. 13)

também realça que a comunicação entre essas duas esferas dá-se de forma dialógica, com

“[...] influxo recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica, particularmente”. Esse

movimento de absorção entre as duas esferas de religiosidade movia-se de baixo para cima e

de cima para baixo, sendo inevitáveis. Porém, Bakhtin (1987) ressalta que essa relação pode

não ser harmoniosa, sendo marcada por conflitos e dissonâncias. Isso explica a aversão da

Igreja Católica por alguns elementos da religiosidade popular, como superstição,

curandeirismo e crendices. Essa aversão, que também é condenação, é resultado da busca pela

consolidação do poder eterno e da verdade eterna que não conseguem enxergar seus limites

nem seus efeitos, como explica Bakhtin (1987, p.185):

O poder dominante e a verdade dominante não se vêem no espelho do

tempo, assim como também não vêem o seu ponto de partida, seus limites e

fins, sua face velha e ridícula, a estupidez de suas pretensões à eternidade e à

imutabilidade. Os representantes do velho poder e da velha verdade

cumprem o seu papel, com rosto sério e em tons graves, enquanto os

expectadores há muito tempo estão rindo.

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O conceito bakhtiniano de circularidade cultural nos permite discutir a influência que

a cultura popular tem sobre a cultura hegemônica e vice-versa, revelando a permeabilidade

entre elas: “[...] não há nada perfeito nem completo” (BAKHTIN, 1987, p. 23). Ambas

compartilham padrões, valores e signos, como podemos perceber com o signo ideológico

batismo. A circularidade cultural também nos oportuniza pensarmos que a cultura de uma

sociedade interage incessantemente em diferentes sentidos, já que está mergulhada nas

relações sócio-históricas. Por isso, ela não é pura e secularizada, mas está em constante

transformação.

Podemos notar que identidade dos graduandos sem terra é a constituída pela

religiosidade que os acompanha desde a infância por meio dos valores, das crendices e

superstições de seus pais. O sujeito sem terra reflete que a sua consciência não é autônoma,

mas se forma nos processos de inter-relacão com o outro. Essa identidade é fruto da interação

do Eu interior com a sociedade. Percebemos que a religiosidade é um traço que marca a

identidade dos graduandos desde a sua infância, sendo uma condição formada ao longo do

tempo, por interação social; não inata, mas em constante constituição.

Da mesma forma, a categoria diversão na infância também é uma condição que

marca a identidade dos graduandos sem terra. Como veremos a seguir, a situação de escassez

econômica limita a diversão de quem mora no campo:

(1) Eu tinha uma vontade imensa de ter uma festa de aniversário. Mas não podia

ser uma festa qualquer. Tinha que ser surpresa. Tanto insisti que venci minha

mãe pelo cansaço. Ela fez uma forma de bolo simples, e para beber, suco de

pacotinho. Varri o quintal. [...] Convidei 18 amiguinhas (os). Com tudo

combinado, saí de trás de casa como se nada soubesse e eles cantaram o tão

esperado parabéns. Esta foi a minha festa surpresa. Como fiquei feliz.

Ligamos o rádio, nos divertimos bastante e partimos o bolo. Para o espanto da

minha mãe todos comeram. Viu como há a multiplicação do bolo?! (Luci

Dalva)

(2) A maioria das brincadeiras era com carrinhos que meu próprio pai fazia para

mim e meu irmão, carreta de madeira. Como eu era pequeno sentava na

carroceria e meu irmão me puxava era a melhor coisa que para mim. Com o

passar do tempo o futebol se tornou fundamental, brincávamos todos os dias

não era em um campo e nem com uma bola de futebol, mas no quintal de

minha da casa, com uma bolinha parecida com a de tênis, e o gol entre os paus

da área do tanque, a rede era os tijolos do tanque, e tinha uma fossa de esgoto

bem no meio do nosso “campo”. (Adriano de Oliveira)

(3) Naquela época não havia energia elétrica nas fazendas ou sítios, então nas

noites de lua clara, meu pai contava histórias, falava da cultura do nordeste

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(Ceará e Pernambuco), cantava para mim e minhas irmãs, as músicas de Luis

Gonzaga (Asa Branca). Brinquei muito quando criança: com boneca de pano e

de sabugo de milho, brincadeiras de roda, passar anel, pular corda, sempre

com minhas irmãs. (Alice)

(4) Nós brincávamos de casinha, de esconde-esconde, de passar anel, de carinho,

de cai no poço, danças de roda, de cavalinho, de betes, era maravilhoso nos

divertíamos muito mesmo não tendo dinheiro para comprar nem um

brinquedo, fazíamos nossos próprios brinquedos com galhos de árvores

fazíamos nossos cavalos, com sabugos nossos carinhos, lonas velhas fazia

casinhas, latas de óleo para jogar betes. (Andriever)

(5) A casa era de pau a pique com paredes de madeira fina rebocada com barro e

cinza e coberta com folha de bacuri e chão batido. Levava uma vida de menino

pobre mas feliz, brincava de balanço, cavalinho, fazendinha e de carrinho que

era feito por meus irmãos mais velhos. Tinha como parceiro das brincadeiras

meu irmão um ano mais velho. (Eder)

(6) Meu avô João, que era contra quaisquer tipos de briga, e de grande sabedoria,

punha minha irmã e eu, uma em cada perna, e contava suas estórias da época

de jovem, ficávamos impressionadas com seus vários trabalhos e experiências,

que como todo mineiro que se presa, sempre estava junto de um ou outro

companheiro. Algumas das estórias se tratavam de suas empreitadas, outras de

assombrações, ou suas aventuras. (Aline)

(7) As brincadeiras no terreiro de casa tanto de dia quanto à noite iluminada pela

bela lua cheia era divina, fecho os meus olhos e ainda vejo os vaga-lumes

brilhando em meio à escuridão, lembro as cantigas de rodas como se fosse

hoje: ciranda, cirandinha vamos todos cirandar, vamos dar a meia volta, volta

e meia vamos dar, o anel que tu me destes era vidro e se quebrou, a amizade

que nós tínhamos era pouca e se acabou, por isso dona------ faz favor de entrar

na roda diga um verso bem bonito diga adeus e vai se embora. (Ivanilda)

Os excertos que retratam a diversão dos graduandos sem terra quando crianças

revelam que as dificuldades financeiras enfrentadas pela família não permitem que eles

tenham brinquedos comprados. Além disso, o tempo para brincar é pouco, uma vez que no

campo as crianças logo que saiam da idade de alta mortalidade já são inseridas às tarefas

familiares e tem suas responsabilidades quanto ao sustento de todos. Mas, mesmo diante das

adversidades, as crianças brincam muito e têm a ajuda dos parentes para confeccionar seus

brinquedos ou contar causos. As brincadeiras são realizadas em grupos, como brincadeiras de

roda, passar anel, pular corda. Reunir os colegas é uma satisfação, mesmo diante das

dificuldades financeiras.

Ter uma festa de aniversário e reunir os amigos é o sonho de Luci Dalva: “Eu tinha

uma vontade imensa de ter uma festa de aniversário. Mas não podia ser uma festa qualquer.

Tinha que ser surpresa”. As dificuldades financeiras fizeram com a mãe resistisse em fazer

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uma festa de aniversário para filha, mas Luci Dalva conseguiu vencê-la pelo cansaço. Porém,

a preocupação da mãe é quanto a pouca quantidade de bolo, por isso não está segura de que os

18 amiguinhos tenham um pedaço para comer. Mas, para a surpresa da mãe, todos os

convidados comeram o bolo: “Para o espanto da minha mãe todos comeram. Viu como há a

multiplicação do bolo?!”.

Esse enunciado revela o sonho de ter uma festa surpresa, como também evidencia

outras vozes em “Viu como há a multiplicação do bolo?!”, no qual ecoa, no primeiro

momento, a voz do cristianismo. Segundo a Bíblia, no livro de João (6: 1ss), Jesus fez o

milagre da multiplicação do pão e do peixe. Conforme a narrativa, com os poucos exemplares

de pão e de peixe, trazidos por seus discípulos, Jesus multiplicou-os, conseguindo alimentar

toda multidão faminta que o acompanha pela Galileia. No caso do enunciado em análise, a

multiplicação que se faz é a de bolo, um alimento esperado pelas crianças em qualquer festa

de aniversário. Nesse contexto, infere-se que a voz do sujeito enunciador está em consonância

com a voz do cristianismo, demonstrando as marcas que o movimento cristão católico deixa

na formação dos militantes do MST.

No entanto, importa ressaltarmos que não se apresenta apenas uma voz consonante

nesse discurso, já que o enunciado: “Viu como há a multiplicação do bolo?!” retoma também

a voz dos economistas do governo militar, na época da ditadura, os quais defendem a teoria

do bolo no programa conhecido como Milagre Econômico (1968-1973). Segundo eles, para o

Brasil crescer, era preciso, primeiro, esperar o bolo crescer para depois reparti-lo entre todos.

Os especialistas apontavam que o Brasil crescia, pois no governo militar havia a construção

da hidrelétrica de Itaipu e iniciava-se a construção da usina de Angra, por exemplo. Contudo,

a dívida externa apenas aumentava com tantas obras, ficando a conta para a população.

Assim, a divisão do bolo não ocorre. Esperava-se que a desigualdade social diminuísse, o que

também não aconteceu. Ou seja, não foi possível dividir o bolo.

Notamos que a interrogação do sujeito enunciador em “Viu como há a multiplicação

do bolo?!” é uma contrapalavra à voz do governo militar, que dizia não ser possível dividir a

pouca riqueza do Brasil entre todos, ficando mais uma vez uma grande fatia do bolo nas mãos

de poucos. Observamos, assim, que essa é uma voz divergente da voz do sujeito enunciador,

já que este nega a assertiva do governo militar, mostrando-se discordante da política

ideológica do referido governo. Dessa forma, o discurso traz para arena vozes discordantes:

de um lado a militante/representante de um movimento social de cunho socialista, de outro a

voz do governo militar, a qual é negada e desmentida pelo sujeito enunciador.

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Ademais, no discurso de Luci Dalva também ecoa as vozes dos militares quanto à

distribuição de terras. No governo militar, a primeira lei que assegura o direito à terra a

trabalhadores é promulgada com o Estatuto da Terra, que, em seu Artigo 13, assegura que o

Poder Público “[...] promoverá a gradativa extinção das formas de ocupação e de exploração

da terra que contrariem sua função social” (BRASIL, 1964). A multiplicação da terra seria

garantida pela desapropriação por “interesse social”, fato que leva os defensores da reforma

agrária a acreditarem que haveria terra para quem nela quisesse viver e trabalhar e não para

aqueles que a quisessem explorar. O “interesse”’ está previsto no Estatuto para garantir o que

é importante para uma sociedade. Neste caso, o interesse social levaria à desapropriação de

terras que não estivessem cumprindo com sua função social. Porém, na prática, como vimos

no capítulo um, o Estatuto serviu apenas para acalmar os ânimos dos trabalhadores rurais que

vinham exigindo a justa distribuição de terras no Brasil e se viram contemplados na Lei. O

sonho de ver as terras sendo divididas não se concretiza. A multiplicação não é feita, ficando

os direitos dos trabalhadores apenas no papel.

Podemos perceber que a polifonia está presente pela pluralidade de vozes

independentes e não-fundidas. É uma polifonia genuína de vozes plenamente válidas, como

explica Bakhtin (1981, p. 6). O sujeito enunciador é o regente dessas vozes, concordantes,

como a voz da Bíblia, e discordantes, como a voz dos economistas do governo militar e do

Estatuto da Terra, permitindo que elas se manifestem de modo autônomo e revelem no

homem a outra consciência, o outro “eu” infinito e inacabável. Ao não silenciar essas vozes, o

sujeito enunciador pretende também denunciar o descaso do governo militar com a sociedade

mais carente e as consequências para toda sociedade rural no Brasil, a qual amarga anos de

esquecimento, sendo obrigada a sair das terras e a viver na cidade.

Além disso, o ponto de interrogação também demonstra a aproximação do sujeito

enunciador com o interlocutor. A fim de persuadi-lo, primeiro, mostra-se como o bolo da

classe que não dispõe de nenhum privilégio pode ser dividido entre 18 crianças; para depois,

interrogá-lo, mas já o conduzindo a uma resposta esperada. Cria-se, nesse momento, uma

tensão entre sujeito enunciador e interlocutor, pois o primeiro quer provocar no segundo uma

ação de consentimento, de testemunha. Espera-se que o interlocutor seja convencido e

comungue da mesma ideia tida pelo sujeito enunciador. Assim, verificamos que a

autoconsciência é constituída pela relação com outra consciência/outro, e não de forma

aleatória.

A diversão na infância está muito relacionada tamém às brincadeiras. Brincar traz

para as crianças o sentimento de felicidade, mas, para os educadores, brincar também

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possibilita a assimilação e a apropriação da realidade humana. Nas brincadeiras, as crianças

criam mundos imaginários, onde diferentes situações aparecem e diante das adversidades elas

precisam pensar em hipóteses para solucionar os problemas, elaborar soluções; assim, elas

enriquecem a personalidade, desenvolvem os sentidos e descobrem a si próprias e o mundo

que as rodeia.

Notamos que a infância no campo acontece, mas de uma forma diferente daquela

vivenciada pela maioria das crianças que vivem na cidade. Como aponta Yamin (2009, p. 40),

as crianças sem terra “[...] vivem infâncias diferentes. Isso se deve ao fato de que ‘ser criança’

depende da situação de vida, da estrutura nuclear e política na qual estamos inseridos, das

questões de gênero e das conquistas econômicas de cada unidade familiar”.

O relato de Adriano revela que suas brincadeiras são com “carrinhos que meu

próprio pai fazia para mim e meu irmão, carreta de madeira”; Eder “brincava de balanço,

cavalinho, fazendinha e de carrinho que era feito por meus irmãos mais velhos”; Andriever

brinca de “casinha, de esconde-esconde, de passar anel, de carinho, de cai no poço, danças de

roda, de cavalinho, de betes”. As meninas também tinham opções de brincadeiras, como no

caso de Alice que brinca com “boneca de pano e de sabugo de milho, brincadeiras de roda,

passar anel, pular corda”. Como vemos, são brincadeiras tradicionais, as quais os pais

possivelmente já conheciam quando crianças, demonstrando que a brincadeira no campo

assim como na cidade tem a função de perpetuar tradições populares e de desenvolver as

relações com o outro. Ao relatarem, porém, que não têm condições financeiras para ter

brinquedos comprados e que fazem seus brinquedos com “sabugos de milho”, por exemplo,

observamos uma voz que denuncia a situação precária enfrentada pelas famílias para

permanecerem no campo, como também expõe as consequências da exploração dos

trabalhadores rurais, que precisam se contentar com o mínimo oferecido pelos proprietários

das terras, se ali quisessem permanecer.

A diversão não está somente ligada aos brinquedos, os relatos também revelam que

os causos são motivo de divertimento, como no caso de Aline, cujo avô conta causos de

quando era jovem, de quando vive diferentes experiências e realiza diversos trabalhos. O avô

de Aline também conta causos de “suas empreitadas, outras de assombrações, ou suas

aventuras”. Os causos narrados pelo avô de Aline trazem à tona suas memórias, as quais

podem revelar momentos de desafios, medo, surpresas e sustos, o que combinado com

expressões, repetições, rimas, entonações, olhares, musicalidade e gestos diverte a neta.

Podemos notar que o gênero relato pessoal possibilita aos graduandos sem terra

mergulharem em suas memórias e trazerem à tona suas lembranças que também são memórias

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coletivas, as quais são construções do seu grupo social (HALBWACHS, 2006). Como afirma

Ivanilda, no momento de elaboração do relato é possível fechar os olhos e recordar “os vaga-

lumes brilhando em meio à escuridão”. Ela também lembra “como se fosse hoje” a cantiga de

sua infância: “ciranda, cirandinha”, a qual é apresentada no relato.

Por não serem fixos, imóveis, os relatos pessoais proporcionaram uma liberdade ao

sujeito enunciador que pode delinear fatos que julga importantes neste momento discursivo,

como a cantiga de roda. Há, assim, um gênero dentro do gênero. O gênero relato pessoal é

interrompido para que o gênero cantiga de roda aflore.

Além disso, as cantigas de roda rememoram momentos vivenciados em grupo, em

que as crianças se dão as mãos para cantar músicas ligadas à sua realidade e ao seu

imaginário, o que mostra uma união entre pessoas, uma solidariedade entre pessoas de um

mesmo grupo social, marca dos discursos do MST, da Teologia da Libertação, das CEBs, da

CPT. Esses discursos demonstram a importância de se viver no coletivo, de um projeto

político social que atenda às necessidades de todos de forma igual e não deixe de fora

ninguém. Ser solidário ao outro reflete o amor que se tem a Cristo, o que agrada a Deus,

segundo a Teologia da Libertação. O caráter solidário também é defendido pela CPT, ao

buscar em seus projetos, a justiça social, a caridade, a fraternidade, a doação. Da mesma

forma, ser solidário, estar de mãos dadas com o outro, também faz parte do Projeto Popular

para o Brasil, formulado pelo MST, que defende a instituição de um país “[...] politicamente

democrático, justo economicamente, sob uma sociedade equitativa e solidária” (MST, 2018).

As análises da macrocategoria Diversão levam-nos a perceber que a identidade dos

graduandos sem terra é constituída por vozes de outros sujeitos, sejam eles seus

correligionários como também seus adversários. Observamos, assim, como aponta Bauman

(2005, p. 83), que a identidade é um lugar de batalhas, pois congrega o encontro de diferentes

ideologias, visões de mundo, valores axiológicos: “[...] O campo de batalha é o lar natural da

identidade”. É marcada pelo cristianismo, pela ideia de multiplicação e de divisão da terra.

Também é assinalada pela voz do Regime Militar, o que contribuiu em muito para que a

situação da terra no Brasil continuasse como no tempo da monarquia: terra para quem tem

dinheiro para pagar por ela. Além disso, é influenciada pelas consequências econômicas na

vida dos trabalhadores oriundas de um plano econômico militar que apenas privilegia a elite

latifundiária. Percebemos também que a identidade dos graduandos recebe marcas das

dificuldades financeiras vividas durante a infância, em que não pode ter brinquedos

comprados devido à situação de exploração vivida pelos pais. Do mesmo modo, trata-se de

uma identidade que carrega traços de uma memória coletiva, em que momentos felizes e

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amargos podem aflorar. O outro está sempre presente na constituição da identidade dos

graduandos sem terra. É na alteridade que a identidade se construiu. O sujeito graduando sem

terra dialoga com seu grupo social e, também, com grupos sociais diferentes, com os quais

concorda ou discorda, revelando crenças, valores, pontos de vistas, marcas de sua ideologia.

Assim, o outro é condição necessária para a constituição do eu-graduando.

4.2.1.2 Vozes da Adolescência

Na fase adolescência, verificamos que as macrocategorias de assuntos não são vastas.

Isso pode ser explicado pelo fato de que a adolescência no campo não é uma fase que recebe

realce como na cidade, marcando transformações profundas, principalmente, nas relações

sociais. No campo, as fases da vida parecem ser criança e adulto, pois desde crianças os

indivíduos já fazem parte do ciclo de trabalhos da família, desse modo na adolescência suas

responsabilidades só aumentam, pois já são vistos como adultos. As análises mostram que há

três macrocategorais de assuntos referentes à adolescência: escola e diversão.

No primeiro momento, vamos nos debruçar sobre a macrocategoria escola. Como

mostramos na análise da macrocategoria escola na infância, os graduandos têm muitas

dificuldades financeiras e estruturais para permanecerem na escola. Em decorrência disso,

muitos abandonam a vida escolar, somente retornando na adolescência. Porém, ainda não é

um retorno tranquilo, em que eles podem se dedicar aos estudos. É mais um momento em que

precisam alinhar o estudo ao trabalho. No entanto, observamos que alguns acadêmicos têm a

oportunidade de estudar na Escola Família Agrícola, a qual oferece cursos específicos para

filhos de trabalhadores rurais, o que contribuiu para a formação política e escolar, como

vemos a seguir:

(1) Em 2006 conclui o 3ª ano do ensino médio, já mais amadurecido cuidava do

sitio quando meu pai saia, sabia dirigir, pilotar moto, diagnosticar quando uma

vaca ou bezerro estivesse doente, aplicar medicamentos quando necessário.

(Andriever)

(2) Aos doze anos de idade no acampamento, comecei a trabalhar durante o dia

nas lavouras da região com meus pais para ajudar no sustento da família, e a

noite saia às seis horas da tarde em cima de uma caminhonete para estudar a

sexta serie. A escola ficava a 35 quilômetros de distancia em Ipezal, distrito do

município de Angélica-MS. Retornava a meia noite e levantava às quatro da

manhã para o trabalho. Apesar das dificuldades de ter assumido

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responsabilidade muito jovem, a vida de acampado em minha adolescência foi

construtiva para minha vida. (Alessandro)

(3) A sétima série fui cursar na Escola Estadual Riachuelo, as dificuldades

aumentaram, pois trabalhava até as 18hs, chegava em casa e só dava tempo de

tomar banho, porque ia caminhando até a escola, o jantar ficava para a volta. A

maratona era instigante e me cansava muito refletindo diretamente na

aprendizagem, mesmo assim superei, e no ano seguinte fui prestar o serviço

militar. (Eder)

(4) Em 2005 realizei uma entrevista de estudo, fui aprovada para a Escola

Família Agrícola de Itaquiraí – EFAITAQ, onde estudava em pedagogia de

alternância, o ensino médio juntamente com o curso profissionalizante

Técnico em Agropecuária, por um período de três anos. Considero que a EFA

fora de grande importância em minha transformação, nela aprendi um tanto do

que chamo de “ser responsável”, a valorizar o que tenho principalmente minha

família, a escolher bem meus amigos, adquiri minha primeira formação

profissional, aprendi a me expressar melhor, conheci lugares diferentes nas

viagens, e tive alguns contatos com os movimentos militantes. (Aline)

(5) A seletiva para ingressar na EFA foi realizado no dia 16 de dezembro de

2001 na pastoral de Corumbá, eram 2 vagas para o assentamento taquaral,

mas, nos estávamos em 3 pessoas disputando esta vagas. [...] Realizei a

entrevista com o diretor da EFA Rosalvo, ele me perguntou por que eu queria

estudar técnico em agropecuária? Então eu respondi para ele, o senhor Rosalvo

eu desde pequenos eu gosto de trabalhar com agricultura, e estudando eu posso

melhor cuidar das minhas abelhas e criação de gado. [...] Na EFA eu descobri

uma escola que levava em consideração o meu aprendizado, tudo que os

professores me privaste de descoberta no ensino fundamental a EFA

proporcionou para mim, conheci lugares, pessoas e acima de tudo ela me

modelou um cidadão consciente com o próximo. (Cristiano)

(6) Página de minha vida que escrevo com gosto, em fevereiro de 2005, eu

cheguei na escola família agrícola [...] naquele momento um grande desafio

pra mim, a escola se mostrava exigente com a proposta de ser camponês, de

entender os conflitos da agricultura familiar que pra mim ainda pouco me

interessava. Fui apresentada a pedagogia da alternância que trabalha com

instrumentos pedagógicos, uma educação diferenciada que visa ainda o lado

humano isto em alternância propondo a permanência do jovem formado no

campo [...]. (Jucélia)

Os relatos de Andriever, Alessandro e Eder sinalizam que na adolescência eles

precisaram relacionar os estudos com os trabalhos no campo ou na cidade. No entanto, isso

nem sempre é fácil, pois os adolescentes já têm muitas responsabilidades com relação ao

sustento dos familiares, como aponta Alessandro: “comecei a trabalhar durante o dia nas

lavouras da região com meus pais para ajudar no sustento da família” e, também, com a lida

no sítio, como descreve Andriever que já cuida do “sitio quando [seu] meu pai saía, sabia

dirigir, pilotar moto, diagnosticar quando uma vaca ou bezerro estivesse doente, aplicar

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medicamentos quando necessário”. Desse modo, fica evidente que para permanecerem na

escola esses adolescentes do campo precisam de uma estrutura da qual eles não dispõem, pois

o trabalho de dia e a escola à noite, muitas vezes, distantes de casa, podem levá-los a um

desgaste físico, como revela Alessandro: “A escola ficava a 35 quilômetros de distancia em

Ipezal, distrito do município de Angélica-MS. Retornava a meia noite e levantava às quatro da

manhã para o trabalho”. O mesmo acontece com Eder que, embora morasse na cidade,

também enfrenta desafios para permanecer estudando. Ao trabalhar de dia e estudar à noite,

ele se priva do jantar antes de ir para escola, pois ela é distante de sua casa.

Consequentemente, esses adolescentes têm dificuldades para continuar seus estudos na

educação básica e, também, ao ir para uma universidade, pois o cansaço se reflete

“diretamente na aprendizagem”, o que os leva à reprovação e à desistência dos estudos.

Por isso, os discursos de Aline, Cristiano e Jucélia revelam a importância da Escola

Família Agrícola, que são instituições escolares localizadas estrategicamente no campo, a fim

de facilitar a permanência dos filhos de trabalhadores rurais na escola. Essas escolas são

organizadas para atender às especificidades das crianças do campo, por reconhecer que há

momentos em que a criança precisa estar com a família para desenvolver trabalhos no sítio,

como participar do plantio, da colheita, o que é próprio da dinâmica do campo.

Importa destacar também que as Escolas Famílias Agrícolas caracterizam-se por

alinhar os estudos à realidade dos adolescentes camponeses, de modo que eles podem aplicar

em seus sítios e lotes o aprendizado da escola, como o cultivo de horta, a criação de abelhas.

Além disso, as escolas trabalham também a formação moral dos adolescentes, como revela o

discurso de Aline que aprende a “ser responsável, a valorizar o que tenho principalmente

minha família, a escolher bem meus amigos”. Mas a Escola Família Agrícola mostra-se

“exigente com a proposta de ser camponês”, como esclarece Jucélia, por investir em “uma

educação diferenciada que visa ainda o lado humano isto em alternância propondo a

permanência do jovem formado no campo”. A proposta exigente de ser camponês é vista, por

exemplo, no contato com os movimentos sociais rurais, como ocorre com Aline (“tive alguns

contatos com os movimentos militantes”), contribuindo para que os adolescentes

continuassem a luta pela/na terra de forma consciente.

A Escola Família Agrícola contempla também os aprendizados que os adolescentes

já adquiriram na lida diária no campo, por isso muitos adolescentes desejam ir para as escolas

Família Agrícola, por saberem que lá eles têm seus conhecimentos ampliados. Assim,

entendemos quando Cristiano relata que, durante sua entrevista, o diretor da escola questiona

a razão de ele querer ser técnico agrícola. Cristiano responde que: “desde pequeno eu gosto de

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trabalhar com agricultura, e estudando eu posso melhor cuidar das minhas abelhas e criação

de gado”.

O discurso de Cristiano também denuncia a falta de valorização do conhecimento

dos alunos em escolas que não são agrícolas. Segundo ele, na Escola Família Agrícola

percebe que seus conhecimentos são levados em consideração, de forma que “tudo [o] que os

professores me privaste de descoberta no ensino fundamental”, ou seja, o diálogo com seus

conhecimentos: “a EFA proporcionou para mim”. Assim, a palavra de Cristiano denuncia

que, muitas vezes, as escolas rurais e/ou as escolas da cidade tentam ocultar, menosprezar e

desvalorizar os conhecimentos dos filhos de camponeses, como também eles próprios.

No entanto, essa formação, que colabora na constituição de “um cidadão consciente

com o próximo” (Cristiano), não seria possível se as Escolas Família Agrícola não fossem

arquitetadas pela metodologia da alternância. A instituição da pedagogia da alternância é um

elemento fundamental na cadeia discursiva da terra, da reforma agrária, e da educação do

campo no Brasil, isso porque ela é uma resposta à educação rural, a qual serviu de elemento

de exclusão social no campo. A pedagogia da alternância (cf. Capítulo III), ao contrário da

educação rural, reconhece as particularidades do campo, ao contemplar diferentes

experiências formativas no espaço da escola e do sítio ou lote, tendo como objetivo a

formação profissional. Contudo, podemos inferir que também contribui para a formação

política dos adolescentes sem terra, por propiciar a permanência na escola, oportunizar o

diálogo entre a teoria e a prática no campo e demonstrar que é possível ter conhecimentos,

formar-se e viver no campo.

Os relatos pessoais mostram não só que a identidade dos graduandos sem terra é

constituída pelas dificuldades em permanecer na escola, consequência das dificuldades

financeiras e da responsabilidade com o sustento da família, como também é uma identidade

marcada pelo aprendizado recebido nas Escolas Famílias Agrícolas, espaço social onde

visualizaram seus conhecimentos serem valorizados, assim como sua vivência nos sítios e

lotes. Somado a isso, a Pedagogia da Alternância é fundamental na vida estudantil dos

acadêmicos que passam pela Escola Família Agrícola, pois isso proporciona que suas

identidades de trabalhadores rurais não se perdessem ou não fossem ocultadas em detrimento

de uma identidade hegemônica e dominadora. A identidade do adolescente é de camponês, de

sujeitos ligados à terra, que querem permanecer na terra e lutar para que a justiça social seja

realizada.

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Assim como a Escola Família Agrícola desempenha papel fundamental na

constituição da identidade do acadêmico sem terra, a diversão vivida por eles também é um

aspecto influenciador.

(1) Na diversão da escola jogam bola na lateral direita, defendia o time da escola

na sinuca estava sempre disputando doces, paçoquinha com tubaína [...]. Nas

noites de final de semana sempre saía com os amigos, a turma era só de

homem e saía para a rua aquela galera de agriculinos assim como eram

chamados. (Edmilson)

(2) Sempre tinha um tempo para irmos caçar ou pescar, era um momento de

descontração, pois os rios ficavam em lugares de serra muito lindo, com

quedas de água e alguns lugares de planície entre os morros, que nos passava

uma sensação de sossego. (Luís Carlos)

(3) Já na adolescência as brincadeiras tomaram um outro rumo, sempre

procuravam brincar com os meninos, jogavam o jogo do beijo, com quem

você pretende se casar, esconde-esconde, mas, isso era só entre as meninas e

os meninos da mesma idade. (Ivone)

Os relatos pessoais dos acadêmicos sem terra demonstram que a diversão durante a

adolescência é dividida com outros amigos, meninos e meninas, “aquela galera”, como no

caso de Edmilson, que passa um tempo na cidade, na escola agrícola, onde se diverte jogando

bola e sinuca com os colegas. Já Luís Carlos tem seus momentos de “descontração” quando

vai também acompanhado de amigos “caçar ou pescar”. Essas atividades são coletivas, estão

ligadas à vida do campo, que dispõe da possibilidade de entrar na mata e nos rios. São práticas

comungadas por Luís Carlos e, certamente, por seus familiares, pais e avôs, evidenciando a

permanência de práticas dos antepassados. Além disso, o lugar é “muito lindo, com quedas de

água e alguns lugares de planície entre os morros, que nos passava uma sensação de sossego”.

Percebemos aí um traço peculiar de um adolescente do campo: a busca pelo sossego.

A adolescência também é uma fase em que as brincadeiras da infância continuam,

como relata Ivone que brinca de “com quem você pretende se casar, esconde-esconde”, mas

também é uma fase em que as descobertas, o novo, a transição para a fase adulta aparece nas

brincadeiras, como no “jogo do beijo”. Trata-se de uma brincadeira que possibilita aos

adolescentes se relacionarem mais intimamente com aqueles em que eles têm interesse.

Como podemos perceber, a diversão na fase de adolescentes não é um assunto

recorrente, pois, como já apontamos, a adolescência no campo pode ser ocultada devido à

dinâmica do sítio/lote que responsabiliza desde crianças os filhos dos camponeses. Logo, a

identidade dos graduandos sem terra é marcada por uma adolescência cuja diversão se

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concretiza com elementos disponíveis, como caçar e pescar, sair com amigos, brincar com os

colegas.

4.2.1.3 Vozes da Maturidade

Nessa ótica, a fase adulta chega cedo para os filhos de trabalhadores sem terra, que

precisam trabalhar, sustentar a família, casarem-se e, também, assumir papéis como

militantes, buscando a formação política para continuar a luta pela terra e pela permanência

nela. Pela intensidade das práticas como pai, mãe, militante, formador, professor, a fase da

maturidade é a que mais macrocategorias de assuntos agrega, sendo elas: participação nos

movimentos sociais rurais, religiosidade, relacionamento familiar e escola, acampamento,

assentamento, universidade e professor do campo.

A primeira macrocategoria a ser analisada da fase adulta é a participação em

movimentos sociais rurais. Perceberemos que fazer parte de um movimento social não é

apenas se considerar um acampado ou assentado. Fazer parte significa estar na luta pela terra

e por justiça social. Quando se entra no movimento, principalmente, no MST, a identidade

que aflora é de sem terra, como notamos nos relatos a seguir:

(1) A nossa luta não é só pela conquista da terra, lutamos também por uma

sociedade mais justa e igualitária. [...] Mas não nos deixamos abalar, a luta

continua. Mantemos a esperança de construir uma sociedade melhor onde a

solidariedade e a cooperação são os princípios fundamentais. (Ivanilda)

(2) [...] em todas as lutas que fazíamos depois de assentados o Movimento dos

Trabalhadores Sem Terra MST sempre nos deram apoio participávamos

juntos dando apoio um para o outro, e assim foi que no ano de 1997 eu

comecei através do MST a trabalhar com jovens e adultos nas escolas do EJA

(educação para jovens e adultos) [...] foi tão triste ver pessoas sem

expectativas de vida em busca de um sonho onde crianças descalças com

vontade de viver em uma ciranda infantil gritavam um grito de ordem, Pátria

Livre! –Venceremos. para mim aquilo ficou na memória crianças com

esperança de ver um mundo mudado. (Marisete)

(3) Participei da Comunidade Eclesiais de Base (CEBs), sendo que muitos desses

encontros terminavam com romarias em que defendia também os movimentos

sociais, [...] na época [...] era assentada e defensora dos Sem Terra pelo

movimento do MST. (Alice)

(4) Comecei a participar desde criança do movimento social a Comissão da

Pastoral da Terra (CPT), onde 9 nove anos de idade meu pai já deixava eu ir

nas passeatas, encontros e reuniões, romarias e outros juntos com ele e os

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nossos vizinhos. Em 1996 vim conhecer o MST através do meu irmão que

passou a militar juntos com os outros companheiros, mas só foi em 2001

sendo educadora aqui no assentamento que passei a ter mais participação nas

atividades do MST. (Rosana)

(5) Neste período de acampamento foi um dos melhores momentos na formação

da vida deste jovem que aprendeu junto com a organização social MST a lutar

pela causa dos menos favorecidos e excluídos da sociedade. [...] A juventude

em um barraco de lona para ele foi uma grande vantagem, pois pode aprender

muitas coisas que a vida oferece e são só junto com o povo que se pode

aprender não tinha um entendimento de luta sociais de solidariedade,

cooperação, companheirismo e neste local ele pode aprender estas coisas e ser

mais humano. [...] Ele explica que os acampamentos do MST tem uma

vantagem muito grande por ser uma escola de vida [...]. Mesmo nos momentos

mais difícil não deixou de militar no MST e nunca perdeu seus princípios.

(Edmilson)

(6) Foi no acampamento que senti mais de perto além de minha dor, a dor do

outro, do companheiro e da companheira. Partilhávamos o pão e a vida. [...]

Logo no início pude participar de encontros, mobilizações e atividades que me

proporcionavam muito prazer e amor em poder estar lá, lutando por minha

família e por aquela família maior. Eu não era só mais um acampado, passei a

ser EU SEM TERRA, EU MST. Passei a amar o Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra. (Luci Dalva)

(7) O magistério que cursei também me fez crescer muito, foi através dele que

conheci o MST, aprendi a envolver-me com as questões políticas e sociais que

antes só enxergava do lado de fora como se nada tivesse a ver comigo,

participei do coletivo regional de educação, aprendendo a organizar encontros e

atividades do movimento e adquirindo cada vez mais um grau de consciência

(Marialves)

(8) O ano de 1991 foi um marco em nossas vidas, freqüentávamos a igreja

católica e através de uma marcha que passou por Nova Alvorada, conhecemos

o MST. [...] Em 1992, iniciei a militância, participei de um curso de

preparação de quadros em Santa Catarina. Com o intuito de me preparar para

assumir o trabalho de formação política no MST. [...] Falando de minha

família, essa riqueza que são meus filhos primeiro o Lênin. (Valdirene)

(9) [...] Devido a isso que eu reafirmo, minha identidade é de sem terra, mesmo

após da conquista do meu pedaço de chão [...]. “Ser capaz de sentir indignação

contra qualquer injustiça cometida, contra qualquer pessoa, em qualquer parte

do mundo. É a qualidade mais bela de um militante.” Pensamento Che

Guevara. [...] E assim se foram esta labuta, por muitos anos, mas mantendo-

me em pé, uma identidade que passou por crises, pensou em desistir, ir para o

espaço urbano e lá ficar a mercê da violência, exploração e exclusão. Mas com

otimismo nos mantivemos, mesmo com fragilidade, na busca do novo,

gradativamente nos fortalecendo. (Zilda)

O número de excertos relacionados à participação dos graduandos sem terra nos

movimentos sociais evidencia como essa prática é fundamental em suas experiências de vida.

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Eles querem falar sobre o que representa o movimento em suas vidas. Isso porque é o

movimento social que direciona, muitas vezes, os trabalhadores sem terra a se enxergarem

como sem terra e, a partir daí, a lutarem por seus direitos e por justiça social.

No relato de Ivanilda, verificamos que no enunciado “A nossa luta não é só pela

conquista da terra, lutamos também por uma sociedade mais justa e igualitária.”, o discurso é

constituído pela voz do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o qual objetiva

lutar pela terra, pela reforma agrária e pela transformação social, o que é possível, segundo o

Movimento, “[...] por meio de um Projeto Popular para o Brasil” (MST, 2017). A presença do

pronome possessivo “nossa” cria um efeito de sentido que mostra que o sujeito enunciador

está inserido e se considera parte do Movimento. Ademais, a presença do pronome reflexivo

“nos” também demonstra que o sujeito, assim como o Movimento, é afetado pelas injustiças

sociais. Nessa mesma perspectiva, os verbos no presente do indicativo “é”, “lutamos”,

“deixamos” e “Mantemos”, além de mostrarem a proximidade do sujeito com o Movimento

Social, também apontam para a convicção do sujeito enunciador acerca da importância da luta

para os integrantes do MST. Assim, notamos que o sujeito enunciador compromete-se e

responsabiliza-se com aquilo que diz, visando a convencer o interlocutor, provocando neste

uma ação de consentimento ou de vontade de mudar a sociedade. Do mesmo modo, o

interlocutor é afetado ao ser chamado a participar da situação comunicativa e dele espera-se

uma reação de concordância.

Importa também destacar que a polifonia instaura-se quando o sujeito diz

“Mantemos a esperança de construir uma sociedade melhor onde a solidariedade e a

cooperação são os princípios fundamentais”, no sentido de que o MST caracteriza-se como

um movimento que defende o trabalho coletivo e a produção coletiva tanto no que se refere à

luta pela terra como também ao modo como a terra será gerida enquanto lote. No projeto do

MST, os lotes devem ser utilizados pelo coletivo, por um grupo de famílias e não

individualmente. Nesse sistema, a terra será preparada para o plantio, haverá a plantação e

também a colheita, tudo feito pelo coletivo, de modo a dividir a colheita entre este. Assim,

espera-se que a terra não volte a ter um “dono”, mas que seja utilizada como um bem a quem

todos têm direitos iguais.

Essa postura do MST ecoa também nas escolhas lexicais feitas pelo sujeito

enunciador. No caso dos substantivos (luta, sociedade, solidariedade, cooperação, princípios),

em especial, de luta, percebemos um dos princípios basilares do MST ao pregar que a

conquista da terra efetiva-se por meio da luta, bem como da organização dos trabalhadores

(MST, 2017). Essa luta se faz por várias estratégias, como acampamento, ocupação de terra,

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marcha, vigílias, manifestações. O signo ideológico luta, no sentido do militante, aponta para

formas de resistência ao modelo de distribuição de terras baseado no capital e na propriedade

privada.

Quanto aos adjetivos e expressões caracterizadoras, percebemos o caráter almejado

pelo Movimento e, também, pelos militantes para sociedade como um todo: igualitária e mais

justa. No primeiro termo, o sentido de igualitária pode significar democrática. Da mesma

forma, pode ser entendida como igualdade de condições entre os membros de uma sociedade.

No entanto, chama a atenção também a sua oposição à autoritária e antidemocrática, o que

pode revelar um diálogo com discursos de adversários, cuja ideologia está marcada pelo

capitalismo e, consequentemente, pela exploração.

Nessas escolhas lexicais, ecoa a voz consoante do MST que pensa uma sociedade de

natureza igualitária e democrática, pois defende que todos os cidadãos são dotados de direitos

iguais, desse modo a distribuição de terras deve também ser igual. Ligado a esse princípio

está o objetivo de se ter uma sociedade mais justa em relação à sociedade atual, ou seja, mais

democrática. Neste caso, o uso do intensificador persuasivo mais aumenta a intensificação da

noção da sociedade que se quer, com a pretensão de persuadir o interlocutor a pensar também

dessa forma. Como aponta a seção Quem Somos do site do MST (2017): “Sem Reforma

Agrária não há democracia.”73

Isso significa que, por meio de um Projeto Popular para o

Brasil, é possível alcançar uma sociedade mais justa. O signo reforma agrária tem o sentido

de democratização e de popularização da terra no Brasil.

Desse modo, verificamos que a voz do sujeito enunciador está em consonância com a

voz do MST, pois demonstra estar em acordo com os pressupostos do Movimento; em outras

palavras: o sujeito enunciador concorda com a posição sócio-político-ideológica e aprova os

princípios do Movimento. Notamos, assim, um assentimento do sujeito com relação ao

Movimento e ao seu discurso.

Já o relato de Marisete reflete sua entrada no MST e acentua o apoio dado pelo

Movimento aos trabalhadores atingidos por barragem, como no caso da graduanda. O seu

discurso também retrata a sua participação no Movimento como professora da Educação de

Jovens e Adultos (EJA). Podemos, assim, confirmar o que Stedile (STEDILE; FERNANDES,

2005) aponta como um dos objetivos do MST: romper a cerca da ignorância. E para isso, o

MST forma seus militantes para que eles possam assumir as escolas do Movimento.

73 Disponível em: < http://antigo.mst.org.br/node/7702>. Acesso em: 15 jan. 2017.

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No trecho: “foi tão triste ver pessoas sem expectativas de vida em busca de um sonho

onde crianças descalças com vontade de viver”, percebemos que o sujeito enunciador insere-

se no discurso, ao sinalizar sua percepção sobre o momento relatado, como se pode observar

em escolhas lexicais, como: “tão triste”, “sem expectativas”, “com vontade de viver”. Esses

signos estão carregados de valor axiológico. O valor atribuído pelo sujeito enunciador à

situação presenciada é também um valor de seu grupo social, que se solidariza com a tristeza

e a dor do outro. Como mostra Bakhtin (2002), esses índices de valor caracterizam-se

ideologicamente por serem índices sociais, por fazerem parte do consenso social, por serem

compartilhados pelos indivíduos de um grupo. Com a intensificação do sentimento sentido

pelo sujeito enunciador, percebemos que o efeito de sentido construído é exacerbado sobre a

tristeza sentida no momento vivenciado, o que pretende provocar no interlocutor uma reação

favorável a fim de levá-lo também a pensar como o sujeito.

Cabe destacarmos também que a polifonia deixa-se ver no grito de ordem proferido

pelas crianças: “Pátria Livre! – Venceremos”, o qual dialoga com o hino do MST (2017),

como podemos ver em sua letra: “Vem teçamos a nossa liberdade [...]/ Vem, lutemos/ punho

erguido/ Nossa força/ nos faz a edificar/ Nossa pátria/ livre e forte/ construída pelo poder

popular [...]” (Letra: Ademar Bogo e Música: Willy C. de Oliveira) (MST, 2017).

O hino do MST é para seus militantes um símbolo da luta que se inicia no Rio

Grande do Sul, no acampamento Encruzilhada, mas que tem suas raízes na luta das Ligas

Camponesas e na CPT. Trata-se de um signo ideológico que carrega os sentidos de luta, de

resistência, de força, características dos militantes. Como podemos perceber, as crianças do

MST conhecem o hino do Movimento a ponto de ele fazer parte de suas brincadeiras de roda,

de seus momentos de diversão. Logo, inferimos que ele constitui suas identidades, como

também a identidade dos graduandos sem terra, por fazer parte de suas vivências enquanto

crianças, filhos de trabalhadores rurais sem terra e de militantes do MST.

Em um jogo polifônico, verificamos que em “Pátria Livre” ecoa também a voz

consonante da Teologia da Libertação, ao pregar a libertação da classe oprimida das algemas

do autoritarismo, do latifúndio. Tendo a Teologia da Libertação como orientadora, a Igreja na

América do Sul volta-se para a realidade do povo oprimido, sofrido e explorado. Ecoa no

grito das crianças do MST os princípios da Teologia da Libertação que aponta a libertação

humana como antecipação da salvação final em Cristo. Ademais, podemos afirmar que o

Evangelho também é ouvido no referido grito das crianças que pedem a libertação de sua

pátria. A Teologia da Libertação é uma contrapalavra a uma tradição católica alicerçada na

propriedade, como no caso da TFP, grupo católico que prega a divisão da sociedade entre

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membros superiores e membros inferiores, assim como a aceitação da condição da por Deus,

conforme defendido pelo bispo Dom Geraldo de Proença Sigaud e Plínio Corrêa de Oliveira,

como analisamos no primeiro capítulo deste estudo.

O olhar para o povo de Deus, teorizado pela Teologia da Libertação, efetiva-se nas

ações da Igreja, como nas CEBs e na CPT. Desse modo, além das vozes da Teologia da

Libertação, da TFP, o discurso de Marinete também é constituído pelas vozes das CEBs e da

CPT, as quais instruíam os integrantes dos movimentos, por meio do conhecimento, a

buscarem o direito à terra, sempre pautada nos princípios marxistas, como uma forma de

libertar a sociedade dos conflitos de classe. Assim, notamos que ecoam as vozes do

cristianismo e do socialismo marxista também na palavra de Marinete, as quais apontam para

a premissa de que todos são irmãos, todos são iguais e, por isso, há uma necessidade de

repartir e viver coletivamente.

Somado isso, outra voz também ecoa no cruzamento dos fios dialógicos, a voz dos

revolucionários Che Guevara e Fidel Castro74

. Durante o Movimento de Sierra Maestra, esses

revolucionários popularizaram gritos de ordem como: “Pátria ou morte, venceremos”; “Pátria

livre ou morte! Socialismo ou morte! Venceremos!” e, também, “Ousar lutar, ousar vencer”,

sendo o mais popular: “Pátria Livre! Venceremos!”. Na década de 1970, o Movimento

Revolucionário 8 de Outubro (data da morte de Che Guevara) passa a usar essas frases em

seus manifestos, em seus editoriais no jornal Hora do Povo e, também, em diversos materiais

de divulgação do Movimento que, nesse período, é clandestino. Os gritos de ordem são

eternizados por Fidel Castro, que os assumiu como palavras de ordem75

e enaltecem o

nacionalismo durante a revolução, conclamando o povo a lutar por uma Cuba livre, tornando-

se, o grito de ordem, presente ao final de seus longos discursos.

Compreendemos que a polifonia, presente no relato pessoal da acadêmica, revela

uma multiplicidade de vozes que se entrelaçam e apontam para a subjetividade do sujeito,

mostrando em que contexto social, político e ideológico esse sujeito está situado. As vozes

presentes nesse grito de ordem formam uma tríade de vozes polifônicas consonantes: a voz

do MST, a voz do cristianismo – Teologia da Libertação, CEBS, CPT –, e a voz do

socialismo cubano nas figuras de Fidel Castro e Che Guevara. Esse jogo polifônico das várias

vozes mostra que a constituição do sujeito enunciador efetiva-se a partir das vozes de seus

74 Disponível em: < http://blogdomarcelofernandes.blogspot.com.br/2008/10/dia-de-lembrar-che.html> Acesso

em 16 jan. 2018. 75

Um exemplo está disponível em: <http://www.cuba.cu/gobierno/discursos/2001/por/f270101p.html>. Acesso

em: 16 jan. 2018.

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antecessores com os quais está em consonância, com quem concorda. Assim, o sujeito

enunciador põe em cena consciências diferentes e independentes, mas que se associam para

representar um determinado universo social e que são marcadas pelas especificidades desse

universo. Como afirma Bakhtin (2002, p. 106), “[...] Todas as palavras e formas que povoam

a linguagem são vozes sociais e históricas”.

Também notamos, nesta macrocategoria, que a formação nos movimentos sociais

rurais inicia-se na Igreja Católica por meio da participação nas CEBs e na CPT, por exemplo,

como demonstram os discursos de Alice e Rosana. Percebemos que essas participações foram

primordiais para que os graduandos conhecessem o MST e outros movimentos sociais. Como

relatamos, no segundo capítulo, as CEBs e a CPT foram expressões práticas da Teologia da

Libertação, a qual defendia uma Igreja feita junto ao povo e, consequentemente, defensora de

suas causas. Em seus encontros, havia a congregação de elementos religiosos, como a

“romaria” (Alice, Rosana) e, também, a formação política, por meio das “passeatas,

encontros e reuniões” (Rosana), que contribuíam para que os trabalhadores sem terra

pudessem ter uma formação política e se interessar pelos movimentos sociais rurais.

O interesse ocorre a ponto de os movimentos sociais, sobretudo, o MST, tornarem-

se elementos fundamentais na vida, na travessia para a terra prometida e na identidade dos

graduandos sem terra. Nos excertos dos relatos de Edmilson, Luci Dalva, Marialves,

Valdirene e Zilda é recorrente o quanto a entrada no MST é significativa para suas vidas

sociais. Eles tratam o Movimento e a participação em sua luta como uma escola da vida, em

que aprendem muito sobre coletividade, solidariedade, luta social, bem como a sentir “a dor

do outro, do companheiro e da companheira” e a partilhar “o pão e a vida” (Luci Dalva). A

aprendizagem, para os militantes do MST, não está apenas no que se refere à academia e/ou à

escola, mas está intimamente relacionada à aprendizagem sobre como “lutar pela causa dos

menos favorecidos e excluídos da sociedade” (Edmilson). Esse aprendizado faz-se de

diversas formas, como em “encontros, mobilizações e atividades que me proporcionavam

muito prazer e amor em poder estar lá, lutando por minha família e por aquela família maior”

(Luci Dalva) e, ainda, na participação no “coletivo regional de educação, aprendendo a

organizar encontros e atividades do movimento e adquirindo cada vez mais um grau de

consciência” (Marialves).

Fazer parte do Movimento possibilita aos militantes envolverem-se em “questões

políticas e sociais” que antes são vistas apenas pelo “lado de fora” (Marialves), ou seja, são

vistas sem envolvimento e sem entendimento sobre a causa. O discurso de Marialves dialoga

com discursos cristalizados na sociedade, quando fazem considerações acerca do MST e da

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luta pela terra sem terem precedentes/informações, sem ter vivência de sem terra. Além disso,

revela que a sociedade brasileira não tem conhecimentos de que o problema da terra no Brasil

vem sendo construído desde o Brasil Colônia, quando a distribuição de terras já é feita

levando em consideração amizades, influências, dinheiro, o que, certamente, deixa de fora os

camponeses, aqueles que realmente vivem na terra e da terra.

Ainda destacamos na macrocategoria Participação em Movimentos Sociais o quanto

os movimentos rurais constituem as identidades dos graduandos sem terra. Podemos afirmar

que nos Movimentos, principalmente, no MST, os militantes enxergam-se como parte de um

todo e, ainda, como elementos-chave na luta pela terra e pela justiça social. Todos têm um

lugar no Movimento, todos têm uma função social ao participarem dos diversos setores de

organização do MST e serem valorizados por isso. É o que não acontece em outras esferas

sociais, em que o cidadão comum não tem lugar, não é ouvido, não recebe formação política

ou acadêmica. Já os militantes do MST estão em constante formação política em seus

encontros de formação, nas escolas técnicas. Depois disso, os militantes retornam aos seus

assentamentos e acampamentos preparados para nutrir a luta pela terra, como aponta

Marialves: “participei do coletivo regional de educação, aprendendo a organizar encontros e

atividades do movimento e adquirindo cada vez mais um grau de consciência”, caminho

também percorrido por Valdirene, que frequenta a Igreja Católica e lá conhece o MST.

Depois inicia sua militância, participa “de um curso de preparação de quadros em Santa

Catarina. Com o intuito de me preparar para assumir o trabalho de formação política no

MST”.

Por isso, quando alguém resolve entrar no Movimento e fazer parte dele como um

militante, sente sua vida mudar, porque se enxerga como excluído, um herdeiro da

exploração, mas também se vê como um agente na luta pela terra, como alguém pode

contribuir para a justiça social, se vê parte de um todo que são os trabalhadores rurais sem

terra do MST, é um novo nascimento. É o que Bakhtin (2014, p. 11) chama de Nascimento

Social, um segundo nascimento. Para entrar na história não basta nascer biologicamente,

como nasce qualquer ser vivo na terra, é “[...] necessário algo como um segundo nascimento,

um nascimento social”. Bakhtin (2014, p. 11) também explica que o “[...] individuo humano

só se torna historicamente real e culturalmente produtivo como parte do todo social, na classe

e através da classe”.

Esse nascimento social constitui a identidade do sujeito social graduando sem terra,

como notamos no discurso de Luci Dalva quando afirma que, ao entrar no MST: “Eu não era

só mais um acampado, passei a ser EU SEM TERRA, EU MST”. Entrar no MST significa

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um nascimento social. A identidade da graduanda é sem terra em letras maiúsculas, dessa

forma ela se reconhece, e o outro a vê. Os militantes do MST não se sentem ocultados pela

hegemonia da sociedade capitalista, mas se enxergam como elementos combatentes do

sistema de exploração, o que é sempre condenado em seus discursos. O MST passa a fazer

parte da vida dos seus militantes, a ser uma esfera social que os representa e representa seus

anseios. Logo, há um sentimento forte entre o militante e o MST, como expressa a

acadêmica: “Passei a amar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra” (Luci Dalva).

O sentimento pela luta e por seus líderes é visível também entre os militantes, que

sempre se referem positivamente àqueles que iniciaram revoluções e sustentaram uma visão

social da terra, o que se revela, por exemplo, no nome do filho de Valdirene: “Lênin”, nome

do líder socialista russo. Entre suas teses, Lênin defende: “Paz, pão e terra”. Ao chegar ao

poder, o líder nacionaliza os bancos e realiza reforma agrária, distribuindo terras aos

camponeses. Como podemos notar, o ideal da Revolução Russa defendido por Lênin

constitui a identidade dos graduandos sem terra, pois é um líder respeitado entre os militantes

sem terra pelo fato de ele ter conseguido desenvolver um sistema em que o socialismo é o

sistema político e econômico, assim como o coletivismo e a igualdade. Assim, podemos

afirmar que, ao analisarmos o nome do filho de Valdirene e o contexto sócio-histórico do

qual ele faz parte, percebemos que a escolha pelo nome Lênin não é aleatória, uma vez que

representa que nossas palavras são selecionadas pelo tom que corresponde “[...] à expressão

do nosso enunciado e rejeitamos as outras” (BAKHTIN, 2011, p. 291).

Como também apresenta Zilda “minha identidade é de sem terra, mesmo após da

conquista do meu pedaço de chão”. Ser sem terra mesmo já estando dentro do lote representa

que o trabalhador sem terra está sempre na luta, seja por seus companheiros que continuam

sob a lona preta pelos acampamentos à beira das rodovias, seja por melhores condições nos

assentamentos, seja por transformação social. Notamos que os sentimentos de solidariedade e

de coletividade estão sempre presentes entre os sem terra, o que rememora as palavras do

líder cubano Che Guevara: “Ser capaz de sentir indignação contra qualquer injustiça

cometida, contra qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo. É a qualidade mais bela de

um militante” (Zilda). Percebemos que, para compreendermos a identidade dos sujeitos

sociais, não podemos deixar de incorporar as condições socioeconômicas, a realidade

extraverbal nas quais ele está inserido, porque “[...] a essência humana não é o abstrato

inerente ao individuo único. É o conjunto das relações sociais em sua efetividade”

(BAKHTIN, 2014, p. 11).

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Na fase adulta, a religiosidade também é um assunto recorrente, porém como

veremos a seguir não é expressa pela religiosidade popular, mas pela participação na Igreja

Católica.

(1) Hoje com o aprendizado e o conhecimento que adquiri através de

capacitações, pela Pastoral da Criança e participações de encontros realizados

pela CEBs (Comunidade Eclesiais de Base). (Alice)

(2) O ano de 1991 foi um marco em nossas vidas, freqüentávamos a igreja

católica e através de uma marcha que passou por Nova Alvorada, conhecemos

o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). (Valdirene)

(3) Antes de ir para Juti eu iniciei a caminhada vocacional na igreja com a

intenção de ir para o seminário, em Naviraí dei continuidade participando de

uma equipe de vocacionados, terminei o segundo ano e em 2000 fui para

Rondonópolis morar no seminário franciscano como aspirante e terminando o

terceiro ano na escola La Salle. (Wagner)

Como discutimos no segundo capítulo deste estudo, a Igreja Católica, nas décadas de

1970 e 1980, exerce um papel importante no apoio aos movimentos sociais e partidos

políticos que surgiam de suas comunidades. Com isso, percebemos uma relação estreita entre

a área progressista da Igreja e os membros do MST e do Partido dos Trabalhadores, por

exemplo. O discurso de Alice evidencia que sua participação na Igreja é religiosa e social,

pois faz parte da “Pastoral da Criança” e “de encontros realizados pela CEBs”. Valdirene

também participa da Igreja Católica e é lá que conhece o MST, o que revela que a Igreja, em

1991, ainda abre suas portas para discutir questões políticas e sociais. Já a participação de

Wagner no movimento social rural CPT pode ter colaborado para sua vocação religiosa. A

CPT é um movimento que acompanha os trabalhadores rurais sem terra na formação de

acampamentos, de assentamentos e nas disputas judiciais. Com isso, há uma convivência

entre missionários e jovens sem terras, o que pode ter sido um fator importante para a vocação

sacerdotal de Wagner.

A voz da Igreja Católica, enquanto expressão do Evangelho e como uma agente na

formação política e intelectual de trabalhadores sem terra, constitui a identidade dos

graduandos sem terra. Sua vertente progressista, ao colocar em prática a Teologia da

Libertação, volta-se para os excluídos da sociedade. Nesse processo, desenvolve diferentes

cursos de formação que já relaciona a vivência do trabalhador aos problemas sociais sofridos.

Com isso, a Instituição leva os excluídos a pensarem sobre suas condições sociais, como

também sobre a desigualdade social existente e a exploração da mão-de-obra do excluído. O

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Evangelho passa a ser colocado em prática, pelo fato de a Igreja ver nos rostos dos excluídos

também o rosto de Cristo sofredor (cf. Capítulo II). Como podemos observar a prática

continua sendo realizada pelos graduandos ao assumirem trabalhos nas pastorais.

Já para os movimentos sociais rurais e seus militantes, como o MST, o Evangelho

passa a ser uma doutrina, fonte de leitura, que influencia nos valores, na cultura, na forma de

ver a mística e na forma de ver diferente o povo e seu sofrimento (STEDILE, 2005). A Igreja

Católica proporciona ao povo um espaço para formação intelectual e política e, também, um

espaço de voz, onde se pode ouvir e falar e onde se pode ver-pensar-agir sobre os problemas

de seu entorno, como também do País. Nessa perspectiva, a voz da TFP (Tradição, Família e

Propriedade), grupo elitista católico, também ecoa nos discursos dos graduandos por ser uma

vertente que defende a aceitação da condição social dada por Deus. Desse modo, estar à

margem da sociedade seria uma vontade de Deus, que não poderia ser contrariada. Ao

contrário, as CEBs e as Pastorais chegam mais perto do povo e contribuem para que ele

mesmo assuma uma consciência de libertação e busque realizá-la, sem intermediários, por

meio de setores organizados, como os movimentos sociais. Nesse contexto, a identidade dos

graduandos sem terra constitui-se na alteridade, na relação com o outro, neste caso, o outro

Igreja, que está intimamente ligada aos movimentos sociais rurais como MST e CPT, mas

também à Igreja que nega a igualdade entre os filhos de Deus (TFP). Podemos entender que a

constituição da identidade dos acadêmicos sem terra realiza-se no ato responsivo com o outro,

fora de si mesmo, ou seja, ela se constituiu “[...] nos limites entre eu e o outro, vou existindo

pelas ofertas do Outro” (MIOTELLO e MOURA, 2014, p. 154).

Como vimos, para os movimentos sociais e para a Igreja Católica, uma das formas de

libertação do povo é pela educação, por isso eles têm buscado, ao longo da história de luta

pela terra, proporcionar formas de os trabalhadores rurais sem terra começarem ou

continuarem seus estudos. Porém, quando, especialmente, as mulheres resolvem estudar, o

relacionamento familiar pode ser afetado, em decorrência da falta de apoio dos maridos, como

observamos nos excertos selecionados da macrocategoria Relacionamento Familiar e Escola.

(1) Recomecei meus estudos ano de 1974. [...] A barreira maior foi ter que

analisar a proposta do esposo em escolher entre a Universidade e ele. Mas

como eu já sabia o que queria para mim, não foi difícil fazer a escolha mesmo

que as consequências viessem depois, eu tinha a certeza que ainda sairia com

ganho. (Maria Aparecida)

(2) Inscrevi-me, então em um magistério de férias [...]. Como o curso era criado

pelo MST, meu companheiro achava que era loucura eu me envolver e como

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sempre foi contra meus ideais, dizia também que eu já era muito velha para

recomeçar a estudar, mal sabia ele que dentro de mim, na vontade e nos

sonhos, eu ainda era bem jovem. (Marialves)

(3) Ela é convidada pela CPT a fazer o magistério de férias em Campo Grande,

com apoio de seu esposo e filhos não pensou muito partiu com muita coragem

afinal o seu sonho era ensinar as pessoas, e agora com essa oportunidade

batendo na sua porta não era de se joga fora. (Nilda)

(4) Resolvi casar-me com o Clodoaldo Lerias de Oliveira que fora assentado aqui

e que também sempre contribuiu com a organização (MST), o mesmo sempre

apoiou que eu estudasse então neste mesmo ano me escrevi no vestibular para

cursar o Normal Superior de UEMS. (Rosana)

(5) A Universdidade me aproxima da realização de um sonho a cada dia que

passa, mas, como uma espécie de provação, para testar a minha capacidade de

superação, uma grande tragédia atinge minha família. No dia 31 de agosto

assassinam meu esposo, foi um golpe insuportável, principalmente para meus

filhos, o sofrimento de meus dois filhos e minha filha até hoje, ainda dói em

mim, mas com as ajuda dos amigos, tenho conseguido superar a cada dia que

passa. (Marialves)

(6) No começo do mês de agosto de 2008, fomos morar em Itaquirai. O Luciano

necessitava ficar mais perto daquela região, porque os trabalhos a ser

desenvolvidos estariam concentrados por lá, tudo está bem até que no dia 27-

10-2008 o meu marido saiu na parte da manha para trabalhar e as cinco horas

e trinta minutos quando retornava sofreu um acidente morrendo

instantaneamente. A minha vida neste momento desmoronou eu havia perdido

o alicerce da minha família eu não tive chão. (Marisete)

Da macrocategoria relacionamento familiar e escola, destacamos como os esposos

avaliam o retorno das companheiras à escola. Nos discursos de Maria Aparecida e Marialves

ecoam vozes das relações de gênero existentes entre mulheres e homens do campo. Os

maridos oferecem resistência à ideia de suas esposas voltarem a estudar, chegando a impor

que a companheira escolha entre o casamento e a escola (Maria Aparecida) e, ainda, dizendo

que ela está velha para voltar à escola (Marialves). A voz do patriarcado pode ser ouvida

quando eles preferem que suas esposas continuem na condição de submissão, de falta de

autonomia, a buscarem meios de libertação.

Mas essas mulheres são militantes de movimentos sociais rurais, no caso do MST,

que proporcionam a elas espaços sociais de discussão, de participação como líderes de

setores, o que contribui para que almejem voltar a estudar. Essa participação colabora para

que as mulheres se vejam como sujeitos capazes de buscar sua própria autonomia. Segundo

Menegat (2009, p. 16), nas décadas de 1980 e 1990, o movimento de mulheres abriu um

significativo espaço na sociedade brasileira, “[...] revelando a importância do feminino como

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sujeito de mudanças sociais, marcando presença como liderança responsável pelo papel

também de reprodutora de unidades familiares”.

Como podemos perceber, os discursos das graduandas fazem parte de uma cadeia

comunicativa, pois querer voltar à escola ou entrar na Universidade representa uma forma de

retomar um ciclo inconcluso na infância em decorrência de dificuldades financeiras e

estruturais, como discutimos na macrocategoria Escola na Infância. Além disso, significa um

marco decisivo no restabelecimento de relações com a escola e com a sociedade, por

significar uma forma de libertar-se do estigma de semianalfabetas ou analfabetas e dos

sentimentos de inferioridade.

Porém, nesse cenário, também há companheiros que estimulam as esposas a voltarem

a estudar e a buscarem o sonho de infância, como no caso de Nilda e Rosana, que veem a

oportunidade de estudar “batendo na sua porta”. Apoiadas pelos companheiros, elas também

entram na Universidade, cujo curso acontece nas férias em período integral, o que

impossibilita as mulheres de voltarem para casa, fato que poderia ser um motivo de

reprovação dos maridos, o que não ocorre no caso delas e das outras graduandas.

As relações familiares também são marcadas por momentos difíceis, como no caso

de Marialves, cujo companheiro é assassinado, e Marisete, que perde “o alicerce da minha

família”, em um acidente. Esses acontecimentos, que servem para “testar a minha capacidade

de superação”, ocorrem durante o curso. Mesmo diante do sofrimento próprio e dos filhos,

essas mulheres não desistiram da Universidade. A perda de companheiros de luta é uma

constante entre os militantes de movimentos sociais. Alguns são assassinados a mando de

latifundiários diante da possibidade de efetivação da reforma agrária em suas terras.

Lembramos que a prática do assassinato de trabalhadores sem terra ocorre desde as

Ligas Camponesas, como discutimos no segundo capítulo. Muitas vezes, latifundiários,

pertencentes a Associações Rurais, tendo o respaldo de políticos influentes, acabam por

contratar jagunços para evitar a reforma agrária em suas terras improdutivas. Essas ações

podem envolver despejos violentos de mulheres, crianças e homens dos arredores das

fazendas e, inclusive, o assassinato de líderes, como Silvio Rodrigues e Ronilson da Silva,

torturados e mortos a mando da proprietária da fazenda Beco do Sossego, no município de

Rio Brilhante, em Mato Grosso do Sul (MST, 2000). Observamos que os discursos da

aristocracia legitimam ações violentas, como os homicídios que têm sua visibilidade

obscurecida.

Como podemos notar, os discursos acerca das relações familiares demonstram que a

identidade dos graduandos sem terra não se constiui no equilíbrio. Ao contrário, ela se

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constitui na tensão entre o Eu e o Outro. Por isso, Bakhtin afirma que é o olhar do outro, o ato

responsável do outro que constitui a identidade de um sujeito, instituído socialmente, por

meio da interação verbal com o outro.

A próxima macrocategoria, acampamento, registra outras formas de sofrimento do

povo que toma a decisão de ir para um acampamento, o que significa um divisor na vida do

trabalhador sem terra, porque esse é um lugar já marcado ideologicamente como um espaço

de luta, de resistência e de muitas privações:

(1) O pior momento dentro dessa luta, por incrível que pareça, foi justamente

depois da desapropriação da fazenda, até festa fizemos sem saber o futuro

nada promissor. Mudamos para dentro da fazenda, tudo parecia perfeito, mas

foi quando o arrendatário da fazenda resolveu não desocupar a terra e começou

o conflito. Jagunços armados por todo lado, ficamos presos dentro daquele

local, muitas ameaças e dois ataques com muitos tiros e marcas de balas nos

barracos, graças a Deus ninguém ficou ferido. (Alessandro)

(2) A vida no barraco não é nada fácil, porém há momentos de muitas alegrias,

mas o que ficou marcado e que nunca esquecerei são as noites de inverno que

passei no barraco a beira do Rio Dourados, noites de geadas que colocávamos

baldes com água e no dia seguinte amanhecia congelada. O suor do barraco de

lona preta que congelava, passávamos o dedo caia plaquinhas de gelo, e no dia

seguinte com o nascer do sol começava a derreter e molhar tudo dentro do

barraco. (Luís Carlos)

(3) Para os acampados era normal ter que mudar a cada 20 ou 30 dias então não se

preocupavam, chegando com todo aquele amontoado de “buchos” como eles

chamavam, era crianças chorando era mulher dando de mamar as crianças ou

ajeitando um abrigo para os mesmos descansar. A coordenação já ia organizar

onde cada grupo ia fazer os seus barracos, neste momento o coordenador da

segurança já teria se organizado e estão de plantão nos pontos estratégicos os

setores funcionavam com muita agilidade [...]. (Edmilson)

(4) No acampamento às vezes as pessoas se alvoroçavam nas ruas dos barracos

com baldes e latas todos indo na mesma direção, era o caminhão pipa que

tinha chegado com água, e a gente tinha que ir também se não ficava sem

água. (Maria de Fatima)

(5) Contrariada Cristiane resolveu visitar a moradia do pai, estava envergonhada

não queria burlar a lei e ser uma “desordeira e desocupada”, mas ao descer do

ônibus e identificar-se na guarita surpreendeu-se ao conhecer aquele lugar, que

de local antes habitado por bois agora germinava trabalho em uma linda horta

para alimentar a todos, uma nova realidade abriu-se a ela. Naquela tarde

conheceu o núcleo de base no qual seu pai participava. (Cristiane)

(6) A vontade que eu tinha era de fugir daquele local, não me via nem aceitava me

ver como sem terra, tinha recém doze anos de idade, estava a começar a fase

da adolescência e estava armado com todos os preconceitos de uma mente

maleável, bruta e revoltada, me via melhor que aqueles que estavam tanto no

acampamento, quanto àqueles que moravam no campo, os repudiava por não

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me encontrar naquele meio, porém algo veio a mudar de forma esmagadora,

sendo este transformador o momento o que comecei a freqüentar a escola e

nisto algo diferente aconteceu, eu conseguia compreender o conteúdo e tirava

assim boas notas, sendo o que antes mais preocupava minha mãe era o fato de

eu antes vinha a ser um dos piores alunos das escolas que estudei, mais

vivendo no campo me restava mais tempo para valorizar o meu estudo [...].

(Diego)

(7) Com o conhecimento prático [no acampamento] aprendi que terra é um direito

que não se ganha, se conquista com a luta de todos. (Maria Aparecida)

O vivido no acampamento é marcado, na maioria das vezes, não só pela precariedade

das condições de infraestrutura, no que se refere à falta de escola, de assistência médica, por

exemplo, mas também pela violência que podem sofrer por estarem à beira de rodovias ou à

margem de cercas de grandes fazendas improdutivas. Por isso, é um momento marcante na

vida dos trabalhadores rurais sem terra, pois decidir ir para o acampamento é aceitar essas

condições e despender muito esforço para que o sonho do lote seja realizado.

O discurso de Alessandro revela um dos momentos mais difíceis na luta pela terra

vivenciado por ele. O fato narrado evidencia que a desapropriação da fazenda pela justiça não

foi um motivo que impedisse o arrendatário da fazenda de começar um conflito armado.

Jagunços foram contratados para ameaçar e atacar com muitos tiros aqueles que estão no

acampamento. A presença da palavra “jagunço” evidencia uma escolha não aleatória por parte

do sujeito enunciador, pois “jagunço” significa cangaceiros, criminosos foragidos ou qualquer

homem violento contratado como guarda-costas por indivíduo influente, como no caso relato,

o fazendeiro. Nessa perspectiva, o discurso de Alessandro denuncia o uso de mecanismos não

legais utilizados pelo latifundiário. Essa denúncia dialoga com as pressões sofridas pelos

foreiros das Ligas Camponesas, que também viram seus companheiros serem perseguidos e,

inclusive, mortos por jagunços contratados por latifundiários e usineiros, como ocorre com o

líder e camponês João Pedro Teixeira, da Liga Sapé, da Paraíba. Como vimos no capítulo I, o

jagunço tem por serviço matar aquele que o contratante determina, é um serviço para o qual

ele é contratado e pago. O mandante não suja as mãos e, dificilmente, é identificado. Nessa

ótica, o discurso do jovem sem terra também dialoga com os acontecimentos do Brasil

Colônia, quando os sesmeiros podem colocar índios na boca de canhões e explodi-los, sem

que a justiça seja acionada para julgá-los. Assim, percebemos que aos sesmeiros, aos

usineiros e fazendeiros do Nordeste, assim como aos latifundiários de Mato Grosso do Sul é

dado o direito de lutar contra os trabalhadores rurais ou indígenas da maneira como acharem

mais adequada, incluindo ações fora da lei.

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Além de relatar a violência sofrida pelos graduandos sem terra nos acampamentos, os

discursos também retratam as dificuldades de se passar uma noite de inverno sob a lona preta

no acampamento à beira de um rio. O discurso de Luís Carlos, além de retratar a experiência

do acadêmico, também dialoga com a voz dos latifundiários, da mídia e de parte da sociedade

que dizem que os acampados não vivem nos barracos. Esse discurso, carregado

ideologicamente, é negado pelo sujeito sem terra, ao demonstrar que realmente os sem terras

vivem nos acampamentos e neles passam momentos difíceis, tendo como suporte o sonho de

ter um lote e dele viver.

Já o discurso de Edmilson acena para a instabilidade de se viver no acampamento,

pois “para os acampados era normal ter que mudar a cada 20 ou 30 dias”. A falta de um lugar

fixo mostra os obstáculos que os acampados precisam enfrentar para continuar na luta. Ter de

se mudar sempre é sinal de despejos por meio de liminares judiciais, de manobras dos órgãos

públicos, de violência e ameaças de latifundiários. Nessa ótica, essa aparente desorganização

“com todo aquele amontoado de ‘buchos’ como eles chamavam, eram crianças chorando era

mulher dando de mamar as crianças ou ajeitando um abrigo para os mesmos descansar” é um

movimento de continuação e de resistência da luta pela terra e pela reforma agrária. Importa

também destacarmos que, embora a chegada ao acampamento parecesse uma desorganização,

o discurso do acadêmico afirma que, enquanto as pessoas chegam, uma equipe de

organizadores já está na área para coordenar as ações de construção de barracos e de

segurança em pontos estratégicos, o que demonstra que estar em um acampamento pode ser

um risco à vida, além de mostrar que o MST organiza e apoia os trabalhadores rurais sem

terra nos acampamentos. Assim, é possível verificar que a voz dos latifundiários, que

empreendem ações violentas contra os acampados, é ouvida e refutada pelo discurso do sem

terra.

Também é um problema nos acampamentos a falta de infraestrutura, como água, o

que se evidencia no discurso de Maria de Fatima, que denuncia a falta de atenção do poder

público com a mínima infraestrutura possível para a sobrevivência de pessoas.

Observamos que os três primeiros excertos apresentam as dificuldades dos

acampados, mas não uma negação da identidade do campo, da vivência no acampamento. Isso

pode ser explicado pelo fato de os três terem raízes no campo, de modo que vivenciaram com

a família momentos de desilusão com a perda das terras, com a perda do emprego, com os

trabalhos temporários na cidade. Sendo assim, agora vislumbram a possibilidade de chegarem

à terra prometida, de prosperidade, de descanso, de sossego, onde a esperança se renova. As

dificuldades dos acampamentos, o mundo exterior, constituem a identidade desses estudantes

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sem terra, por marcá-los como pessoas resistentes e como militantes de uma causa maior que

o sofrimento físico.

O discurso de Cristiane, no excerto 4, reflete experiências dos sem terra com relação

à luta pela reforma agrária. Nele o sujeito refere-se ao dia em que conhece um acampamento.

Mesmo contrariada, por considerar que os acampamentos burlam a lei em busca de terra, e

que ela pode ser confundida com um deles e ser considerada “desordeira e desocupada”,

Cristiane aceita conhecer o lugar. Esse discurso traz para cena as vozes cristalizadas por parte

da sociedade, dos latifundiários, do governo conservador que consideram os sem terra como

pessoas que quebram a ordem pública. Esse é um discurso antigo na sociedade brasileira,

como vimos no primeiro capítulo, quando políticos conservadores e a Igreja Católica de linha

conservadora combatem as lutas por terra no Brasil, comparando os camponeses a

revolucionários, agitadores e pecadores, os quais querem burlar a lei divina do corpo místico

de Cristo, como também a ordem nacional. Esse discurso cristaliza-se na sociedade brasileira,

de modo que qualquer tipo de manifestação e de luta por direitos são vistos como ações de

desordem aos olhos da elite conservadora.

No entanto, “ao descer do ônibus e identificar-se na guarita”, essa expectativa do

sujeito é quebrada, já que visualiza o oposto ao que dito a respeito dos sem terra. Ela percebe

“que de local antes habitado por bois agora germinava trabalho”. O discurso apresenta a

palavra ubíqua socialmente “bois”, pois, nesta interação, ela aparece no sentido de bem de

capital, como bem que produz riqueza para poucas pessoas. Assim, o discurso refuta essa voz

capitalista que faz da imensidão do pasto para gado uma propriedade de uma pessoa. Na visão

bakhtiniana, a palavra ideológica boi é processada na consciência social e não pertence a

nenhum lugar específico, porém circula entre as várias consciências existentes, que interagem

discursivamente. O sujeito viu, ao entrar no acampamento, um lugar tomado por uma horta

que abasteceria várias famílias, o que contraria o sentido de terra como propriedade de uma

pessoa. O acampamento, no caso dentro de uma fazenda, ao apresentar ao sujeito uma nova

realidade, apresenta uma possibilidade real de transformação daquilo que era de

um/proprietário em algo que passaria para muitos/trabalhadores rurais sem terra. Nessa

perspectiva, a identidade e o mundo exterior se entrelaçam, dialogam e se constituem. O

mundo visto pela assentada é uma resposta ao preconceito e às crenças acerca do que é ser

acampado sem terra. Para muitos, como era para Cristiane, um acampamento sem terra é lugar

de “desordem” e de “pessoas desocupadas”, mas o fato de se ver uma fazenda antes destinada

somente à criação de gado agora produzir alimentos para muitos influencia a identidade antes

contrária às práticas de ocupação e de acampamento dos sem terra. É pela interação com o

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mundo do acampamento e, assim, pela ação do outro que a identidade de uma pessoa da

cidade, preconceituosa e fechada em si passa a ser constituída como sem terra.

A negação da vida no acampamento e da condição de sem terra também é registrada

por Diego, ao mostrar sua indignação em ter de ficar no acampamento com a família. Trata-se

de uma criança de 12 anos de idade, a qual nunca havia entrado em um acampamento e que

não tinha raízes no campo. Esse discurso também traz a voz cristalizada do preconceito da

sociedade com os trabalhadores sem terra, além de uma voz que também tem preconceito com

o homem do campo, sempre registrado pela sociedade brasileira como incapaz, ignorante e

passivo. No entanto, essa visão do sujeito é quebrada com a sua ida à escola do acampamento.

Lá ele conhece uma nova forma de ensino, o que o coloca como um sujeito em formação.

Diferentemente das experiências vividas nas escolas urbanas com as dificuldades e

reprovações, Diego muda “de forma esmagadora” sua maneira de pensar os motivos pelos

quais aquelas pessoas estão ali naquelas condições.

Podemos perceber que os discursos de Cristiane e Diego apresentam visões de

pessoas que entraram no universo do campo e da luta pela terra naquele momento, carregando

consigo visões cristalizadas de preconceito, pois não tinham origem na terra, como outros

companheiros. Seus discursos ecoam vozes de uma sociedade dominante que vê os sem terras

como “pessoas desocupadas” e “desordeiras” por questionarem o sistema capitalista,

individualista. Evidenciam o preconceito com relação aos questionadores do sistema já

presente nos discursos dos políticos conservadores e em alas conservadoras da Igreja Católica,

como a TFP, e, também, em Associações Rurais, demonstrando que os discursos do passado

não se estagnaram, mas que estão vivos e justificam ainda práticas de preconceito. O combate

ao preconceito e a resposta a uma sociedade que vê negativamente as ações dos sem terra

constituem a identidade desses acadêmicos que são atingidos por uma ação responsiva que

mostra que sem terra planta, sem terra trabalha e sem terra estuda. É por meio da vivência no

acampamento e da entrada na luta pela terra, que se envolvem em movimentos sociais rurais,

passando a colaborar para formação de outros membros dos movimentos, identificando-se

cada vez mais com a causa e com a identidade sem terra.

Assim, há uma outra voz, que ecoa nesse discurso, aquela que diz que sem terra não

sabe trabalhar na terra, são oportunistas e só querem a terra para depois vendê-las ou trocá-las.

A resposta a esses discursos mostra que a identificação com a causa, com a luta, com os

desafios, com a formação política e técnica fazem com que pessoas que não tinham origem na

terra passassem a lutar por ela, pois, assim, podem sair da opressão e da exclusão da cidade e

da exploração do trabalho feita nas fábricas, nas construções e nos lugares onde trabalham.

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Nessa direção, os discursos analisados mostram o que é ser Sem Terra. É escolher viver uma

luta, não só por terra, mas também por dignidade, por oportunidades e por direitos sempre

negados por governos conservadores e seus aliados. Percebemos, pelo viés bakhtiniano, que

nenhum enunciado é um fim em si mesmo, mas pertence a uma rede de enunciados, que é

infinita e trata-se de um encontro entre pontos de vista. A relação que se estabelece não é a de

um eu para si mesmo, mas é de um eu para o outro, o que mostra o movimento dialógico do

discurso. Como aponta Bakhtin (2011), o diálogo não depende do eu, mas é totalmente

dependente do outro, que constitui o Eu à medida que a interação dialógica ocorre.

A constituição do discurso também se verifica pela polifonia que instaurada de forma

consonante à posição ideológica do sujeito enunciador Maria Aparecida. Essa outra voz trata-

se do lema de 1984 do MST: “Terra não se ganha, terra se conquista”. Conforme Oliveira

(2001), esse é o segundo lema do Movimento, entendido como uma resposta à resistência ao

acesso à terra encontrada pelos militantes naquele momento. Percebemos também outra voz, a

da Igreja Católica, por meio da Teologia da Libertação. O idealizador da Teologia da

Libertação, o religioso Gutiérrez (1973), defendia a eliminação da propriedade privada do

contexto da produção, pilares marxistas que combatem a sociedade do capital e os conflitos

de classe, pois ela representa a apropriação da terra por poucos, dando origem a uma divisão

da sociedade em classes, em que a maior, a dos trabalhadores, é explorada em favor da menor,

os proprietários.

Motivada pelos princípios sociais, em 1980, a Campanha da Fraternidade refletiu

acerca do tema: “Terra de Deus, terra de irmãos”, o que evidencia uma tomada de posição da

Igreja pelas lutas sociais. É nesse contexto que nasce o MST, oficialmente em 1980. Por isso,

muito do defendido pela Teologia da Libertação e posto em prática pelas CEBs e CPT faz

parte das posições ideológicas do MST. No entanto, a partir da década de 1990, o movimento

da Teologia da Libertação encontra resistência dos setores conservadores da Igreja, o que a

faz recuar em suas atuações políticas. A partir de então, o que se vê são participações

individuais de religiosos na luta pela reforma agrária e o avanço do MST em suas lutas.

Nessa perspectiva, ouvimos também a voz da Bíblia, em que, já no Antigo

Testamento, no livro de Levítico (25: 23), Deus diz: “A terra não se venderá para sempre,

porque a terra é minha”. Como vimos no capítulo II, a voz da Bíblia enuncia que a terra não

pertence aos homens, mas a Deus. Por essa perspectiva, renuncia-se à propriedade particular,

defendendo a divisão da terra entre os “filhos de Deus”. Daí a premissa de se viver

coletivamente, usufruindo da terra como um bem “sagrado”, de onde se tira o sustento de

todos os filhos de forma igual e sem a exploração dessa terra com o que pode deteriorá-la.

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A identidade do sujeito, como postula Bakhtin, é constituída pela linguagem e

construída pelo outro, já que está em diálogo com vozes antecessoras – MST, Teologia da

Libertação, CEBs, CPT, Bíblia. Portanto, é constituída de outras vozes que se sobrepõem

simultânea e independentemente, mas estão relacionadas de forma consoante. Apreendemos

também que o sujeito constitui-se no momento da enunciação, por ser aí que o locutor

construirá o diálogo com os outros da cadeia do já dito, os outros interlocutores e com tudo o

que esses representam.

Ter um lote, entrar no assentamento representa para os trabalhadores sem terra a

conquista da terra prometida, assim como o encontro com o sossego. Porém, a conquista do

lote, por meio da reforma agrária, nem sempre traz sossego, mas sim outras dificuldades,

como escassez de infraestrutura e de apoio técnico, terras impróprias para o cultivo, descaso

dos órgãos públicos, falta de crédito. Problemas como esses farão com que a luta somente se

amplie, mesmo estando no tão sonhado lote, como demonstram os relatos a seguir:

(1) Depois de morar três anos nos no acampamento, surgiram 10 vagas no pré-

assentamento onde o INCRA [...]. Pensei que tudo estava resolvido, pois afinal

estava dentro da terra desejada, mas a luta estava apenas começando [...].

Somos esquecidos pelos governantes e nos falta assistência básica em tudo:

saúde, educação, moradia, transporte, etc. Estamos assentados há três anos e

não conseguimos produzir nem para nossa subsistência, pois a terra precisa ser

corrigida pelos longos anos de maus tratos e os recursos que nos foram

prometidos, financiam o agronegócio e não a agricultura familiar. (Ivanilda)

(2) A maior parte desse grupo recebeu terras fracas, dependendo de correção

(adubação). Há falhas na política de assentamentos. O PRONAF não analisa a

terra de acordo com sua carência, pois o mesmo financiamento é igual para

todos independente da qualidade da terra, sem correção da mesma não tem

como produzir. Na preparação da terra o maquinário chega fora de época do

plantio. Já perdemos várias lavouras como: milho, feijão, três anos seguidos,

sem falar no maracujá e na mamona que induzidos por determinados técnicos

do IDATERRA na época, depois de colhida os compradores sumiram e por

falta de mercado, perdemos o produto, como o custeio que foi feito para o

plantio de mandioca, que por falta de visita do técnico também do

IDATERRA, para aprovar o pró-agro, perdemos a lavoura sem conseguir

pagar o banco. Com essas perdas, tivemos que trabalhar fora do assentamento,

para tentar pagar as dívidas obtidas pelas perdas freqüentes. (Alice).

(3) Ao adentrar o assentamento Colônia Conceição, uma nova realidade não

menos desoladora, surge diante dos meus olhos, o território de mata densa,

com caminhos estreitos, cortados por natureza bruta. Esperava eu ser um lugar

pelo menos com algumas clareiras para o cultivo dos grãos, onde produzir os

alimentos? Onde tomar banho nos dias de calor? O córrego que cortava o sitio

da nossa família, a água não era cristalina, a casa era um pequeno barraco de

lona. (Fabio)

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(4) Não podendo esconder a realidade gritante, da falta de água do assentamento,

realidade contraditória e até absurda a quem entende toda a região como

pantaneira, ou seja, alagada. A água que existe e é fornecida a comunidade, é

salgada ou (salobra) comprovadamente que faz mal a saúde, e esta ainda não

chega a todos, a partes da comunidade que sofrem de uma forma absurda com

essa realidade, por mais que a comunidade se organiza, não conseguem de

forma “ideal” ajudar a todos. (Jucélia)

O acampamento é um momento de prova para os trabalhadores sem terra por

apresentar diferentes dificuldades. Sendo assim, o sorteio do lote e a entrada na terra tão

esperada são momentos de renovação da esperança já desgastada nos anos de acampamento.

Isso fica evidente no discurso de Ivanilda, que, depois de três anos acampada, vê a

possibilidade de mudança de condição social ao entrar no assentamento. Ela pensa “que tudo

estava resolvido”, mas a entrada na terra mostra que “a luta estava apenas começando”, uma

vez que há falta de assistência básica: “saúde, educação, moradia, transporte”. Nesse discurso,

observamos a presença de uma voz opositora que afirma que os sem terra tem uma vida boa,

pois “pegaram” terra de graça. Nessa direção, o discurso refuta essa afirmação, ao mostrar que

as dificuldades no assentamento não cessam, são outras, o que faz com que a luta continue.

Também, percebemos uma denuncia a respeito do descaso de órgãos públicos com os

assentados, o que se evidencia na referência aos “três anos” de entrada na terra e no fato de os

assentados ainda terem de trabalhar fora para se manterem. Ainda é possível percebermos

que os assentados sabem que os governos “financiam o agronegócio e não a agricultura

familiar”. Ouvimos uma voz política do Brasil, pois, como vimos, no Governo Militar o

interesse está nos latifúndios e na produção de grãos a fim de serem exportados, uma vez que

a venda gera lucros para o governo e para a classe dos grandes produtores rurais. Com isso, o

pequeno agricultor, aquele que se dedica a plantar alimentos para os brasileiros consumirem,

vê-se desamparado quanto aos investimentos governamentais, o que os leva a contrair dívidas

nos bancos para financiar as lavouras. Pelo olhar de Bakhtin, entendemos que o discurso de

Ivanilda faz parte do fluxo da história da terra no Brasil ao se posicionar como pequena

agricultora e ao retomar a voz de governos passados que já privilegiam os grandes

latifundiários. Com isso, podemos inferir uma das razões que faz com que um país continental

tivesse e tenha pessoas ainda passando fome. O diálogo com a voz do Governo Militar

demonstra que o discurso não pertence ao eu, mas é tomado dos discursos dos outros,

respondendo também a eles. Por isso, no discurso ecoam, ao mesmo tempo, duas vozes, a voz

dos sujeitos acadêmicos sem terra e a voz de seus opositores, o Governo Militar.

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A denúncia acerca das relações entre governo e assentados também é feita por Alice,

ao mostrar que as terras dos assentamentos não são vistoriadas e analisadas antes da compra

pelo órgão competente, o que resulta em assentamentos com terras fracas para o plantio,

necessitando de grande investimento para corrigi-las e, assim, fazê-las produzir. Também

percebemos que o esforço feito pelos assentados pode ser perdido pela falta de assistência

técnica e pela escassez de instruções de plantio e de comercialização dos produtos. Além

disso, os assentados podem encontrar terras ainda não apropriadas para o plantio, como

demonstra o discurso de Fabio, o qual pensa que, depois dos anos de acampamento e do

sofrimento vivido, pode, agora, no assentamento plantar e colher. O que ele vê, inicialmente,

é uma terra ainda com “mata densa, com caminhos estreitos”, impossibilitando que os

assentados cheguem e já comecem a plantar para viver.

Um dos fatores negativos recorrentes nos relatos dos assentados é a falta de água

potável. No caso de Fabio, há o relato de que a água não é cristalina, sendo imprópria para

beber. Já Jucélia mostra que água existente no assentamento é salobra. São realidades

impensáveis em um estado como Mato Grosso do Sul e, principalmente, em uma região como

a do Pantanal, a qual apresenta como característica específica o alagamento, a grande

quantidade de água. Mas o Pantanal tem áreas de água salobra. Observamos uma denúncia

acerca da falta daquilo que é mais urgente ao ser humano, a sobrevivência, como também a

falta de análise da terra e das condições de plantio por parte do órgão que compra as terras, no

caso o Incra. Embora as famílias organizem-se e tenham apoio dos movimentos sociais, a

realidade não é a “ideal”.

Inferimos pelo discurso que a exclusão das análises da terra antes da compra pelos

órgãos competentes resulta em assentamentos com terras esgotadas pelo uso abusivo e longo

pelos latifundiários, com água imprópria para a saúde do ser humano e com matas densas

ainda a serem derrubadas. Podemos pensar que os discursos denunciam um jogo imobiliário

traçado entre órgãos públicos e latifundiários, pois terras que dificilmente seriam vendidas a

outros fazendeiros, são adquiridas pelo governo federal, a fim de assentar trabalhadores sem

terra. Percebemos que é recorrente entre os discursos o fator denúncia dos órgãos públicos

pela falta de infraestrutura, de investimentos para a plantação, de assistência técnica; há a

denúncia, ainda, da aquisição de dívidas com o banco.

As vozes que ecoam na história da terra no Brasil e em Mato Grosso do Sul são as

vozes de um governo que promete a assistência, mas não a efetiva, a de órgãos técnicos que

não cumprem com a obrigação de dar assistência aos pequenos produtores e, também, a de

uma sociedade que naturaliza um discurso de que sem terra não trabalha, de que sem terra não

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produz, o que leva a pensar a razão de um sem terra ter seu lote. Os discursos analisados

mostram que os problemas enfrentados pelos assentados são coletivos e recorrentes em Mato

Grosso do Sul. Além disso, eles estão relacionados aos problemas já enfrentados pelos

camponeses brasileiros que se veem invisíveis perante aos órgãos públicos de fomento à

produção agrícola. Historicamente, percebemos que leis e projetos políticos têm apresentado a

terra como um bem de capital poderoso, privilegiando governos conservadores e

latifundiários. Dessa forma, o fazendeiro que tiver mais terra tem mais poder, e com isso pode

financiar políticos para criarem leis para seu beneficio, mas também pode se favorecer de

políticas públicas destinadas aos trabalhadores sem terra, vendendo terras que nunca são

compradas por outros.

Percebemos que a identidade dos estudantes sem terra é marcada pela saga que não

cessa com a entrada no lote, pois, nesse momento, a eles são apresentadas outras demandas. O

mundo exterior e a sua organização alicerçada em padrões capitalistas de produção interagem

com esses estudantes que são trabalhadores rurais e que querem viver na/da terra. Essa

ideologia marca a identidade desses estudantes e mostra quem eles são – filhos de

camponeses, trabalhadores rurais sem terra, militantes, educadores –, de modo que a ideologia

capitalista ao atingi-los é refratada e recusada, tornando-se um instrumento de combate. Para

os graduandos sem terra, estar na terra é existência, é dignidade, negadas pelo descaso dos

órgãos públicos incumbidos de realizar ações para viabilizar a vivência na terra. Os discursos

mostram, ainda, que a identidade dos graduandos sem terra se estabelece na alteridade com o

outro, também o opositor, o governo e os órgãos públicos que os abandonam nos lotes sem

infraestrutura e sem crédito para investir na terra. Como afirmam Moura e Miotello (2014), o

outro é a outra pessoa, mas também é o mundo, as instituições, ou seja, tudo o que está fora

do eu e com ele tem relação. Essa visão aponta, portanto, que a alteridade é o eixo de

constituição da identidade do eu acadêmico sem terra, uma vez que o eu é reconhecido pelo

Outro: “[...] captamos os reflexos da nossa vida no plano da consciência dos outros”

(BAKHTIN, 2011, p. 14).

A entrada na Universidade também é um assunto recorrente entre os graduandos sem

terra, que viram uma oportunidade de concretizar um sonho seu e de seus familiares. Seus

discursos revelam frustrações na reprovação em outros vestibulares, dificuldades financeiras

para conseguir fazer a prova do vestibular da UFGD, como também avaliações da

metodologia utilizada em aulas do curso.

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(1) Em 2007 conclui meus estudos na cidade terminando o ensino médio, [tentei]

duas vezes o vestibular na UFMS de Campo Grande e me frustrando, com o

meu insucesso. Me senti desestimulado incapaz, parando por meio ano meus

estudos. Porém um dia após ter ido a FETAGRI meu tio Edson chega e fala

para mim e seu filho Wellyngtom, sobre um tal de Pronera para pessoas

oriundas do campo, sendo ministrado o curso de Ciências Sociais na UFGD de

Dourados, logo ao sabemos disto tanto eu quanto meu primo decidimos fazer o

vestibular para o curso de Ciências Sociais, então fomos para Dourados, não

tínhamos quase dinheiro algum e não conhecíamos a cidade (Diego)

(2) Fiquei sabendo do vestibular por meu irmão quando eu ainda morava no SÃO

GABRIEL, fiquei muito aflita porque não tinha como fazer minha inscrição,

passou alguns dias tentando emprestar uma quantia em dinheiro pra poder me

inscrever, mas não consegui ninguém que me emprestasse e a solução foi

vender um casal de cavalos dos meus filhos, mas DEUS foi tão bom que

consegui passar no vestibular e assim entrar numa faculdade federal de tão alto

nível e hoje eu me orgulho de dizer estou me graduando na UFGD. (Sônia)

(3) chegou o final de semana e com ele o vestibular, nós chegamos em Dourados

no sábado à tarde, nos hospedamos no SINTED, e o nervosismo e a

preocupação tomou conta de todos, estávamos em vinte e sete pessoas.

(Elisandra)

(4) Há oito anos fora da sala de aula, confesso que não estava preparado para

entrar em uma Universidade. No entanto, o vestibular foi feito e elaborado

para pessoas realmente assentadas, que vivem e conhecem a realidade agrária

e suas lutas. (Alessandro)

(5) Ao entrar na UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados) em Julho de

2008 no dia da matricula senti como se estivesse ganho uma medalha, estava

eu ingressando na melhor faculdade de Mato Grosso do Sul. [...] Nunca irei

esquecer da primeira aula que superou as minhas expectativas eu imaginava

mais uma aula chata de português na minha vida, e no final queria mais.

(Cristiano)

(6) Com o inicio do curso em julho de 2008, fui logo surpreendido com a

metodologia aplicada pelas professoras de língua portuguesa. A forma de

trabalhar com os alunos através de diálogos e de uma dinâmica diferente do

comum no ensino médio me impressionou muito, a simplicidade e empenho

dos professores em transmitir seu conhecimento aos acadêmicos é realmente

importante para uma boa formação. Essa forma de trabalhar seguiu com todos

os professores, em todas as disciplinas que já estudei. (Alessandro)

(7) [...] o Curso de Ciências Sociais contribuiu e muito com meu trabalho na

coordenação, e esse foi um dos objetivos com que iniciei esse curso, eu

acredito em uma educação libertadora, que contribui para a formação do

sujeito, enquanto ser social que constrói e transforma o meio em que vive.

(Vilma)

(8) Através dos cursos abertos para pessoas da área rural, aumenta a possibilidade

de os jovens se sentirem valorizados e terem vontade de permanecer no

campo. (Luci Dalva)

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Ao tratar do sonho de entrar na universidade, o discurso de Diego faz ecoar um

sentimento de frustação por ter feito dois vestibulares na Universidade Federal de Mato

Grosso Sul (UFMS) e não ter obtido êxito. Mesmo terminando o Ensino Médio na cidade, não

conseguiu entrar na universidade. Inferimos que esse fato decorra das dificuldades que um

adolescente acampado/assentado passa para permanecer na escola. São mudanças de escola,

reprovações, desistência, professores não habilitados. Não passar no vestibular é mais uma

frustação de uma pessoa do campo. Por isso, ele se interessa em prestar o vestibular para o

curso de Ciências Sociais, especificamente, realizado para pessoas de assentamentos. Porém,

ele não tem “quase dinheiro algum e não conhecíamos a cidade”, mesmo assim conseguiu

chegar a Dourados. Como podemos perceber, estar no assentamento não significa estar bem

financeiramente, como discutimos na macrocategoria assentamento. Isso ocorre do fato de

que, muitas vezes, os assentados não dispõem de crédito para investirem na agricultura ou na

pecuária. É o que acontece com Sônia que, por não ter dinheiro, tenta emprestar de outras

pessoas sem êxito. A solução é “vender um casal de cavalos” dos seus filhos. Sônia investe o

que os filhos têm para poder fazer a inscrição e chegar a Dourados para realizar a prova. Ela

consegue passar e se sente orgulhosa por estar estudando em uma universidade pública.

Vencer as dificuldades financeiras e chegar a Dourados foram apenas alguns dos

desafios enfrentados pelos graduandos, pois precisaram lidar ainda com “o nervosismo e a

preocupação” (Elisandra) e, também, com a prova. Mas como relatam “o vestibular foi feito e

elaborado para pessoas realmente assentadas, que vivem e conhecem a realidade agrária e

suas lutas” (Alessandro). Desse modo, aqueles que tinham maior vivência com os

movimentos sociais e com a luta pela terra consideram que a prova não tão difícil.

A grande maioria dos graduandos está há muito tempo fora da sala de aula, de modo

que ser aprovado na universidade significa ganhar “uma medalha”, pois eles valorizam o fato

de estarem em uma universidade pública, segundo Cristiano, a “melhor faculdade de Mato

Grosso do Sul”. Diante das experiências vivenciadas na escola, eles esperam que as aulas

sejam como as de suas infâncias, as mais tradicionais possíveis. Por isso, surpreendem-se com

a primeira disciplina ofertada pelo curso Língua Portuguesa, que, conforme Cristiano, não é

“mais uma aula chata de português na minha vida”, resultado de “A forma de trabalhar com

os alunos através de diálogos e de uma dinâmica diferente do comum no ensino médio”,

conforme Alessandro. O que pode ter impressionado os graduandos é o fato de não decorarem

verbos e fazerem análises sintáticas. Como vimos no capítulo III, o estudo da linguagem é

explorado em seus diferentes usos, como poesias, músicas, contos, notícias, filmes, causos,

sempre valorizando aspectos da memória e os conhecimentos que eles já tinham.

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Além de ser uma realização pessoal entrar na universidade, no curso de Ciências

Sociais, os graduandos enxergaram nessa conquista uma contribuição para seus trabalhos nos

assentamentos, como no caso de Vilma, ao analisar que “o Curso de Ciências Sociais

contribuiu e muito com meu trabalho na coordenação”. Assim, ecoa a voz dos objetivos do

curso que visa a fortalecer “[...] a educação e a possibilidade de ação qualificada nas áreas de

Reforma Agrária com conhecimentos teórico-metodológicos voltados às especificidades”,

como também contribuir para o “senso de compromisso social” (UFGD, 2007, p. 21).

Ademais, os graduandos analisam de forma mais ampla que o oferecimento de cursos

como o de licenciatura em Ciências Sociais, “abertos para pessoas da área rural, aumenta a

possibilidade de os jovens se sentirem valorizados e terem vontade de permanecer no campo”

(Luci Dalva). Esse discurso também dialoga com a voz do Projeto Político Pedagógico

(UFGD, 2007), ao anunciar que procura construir um perfil de profissionais que esteja

relacionado às necessidades concretas do campo, tendo em vista suas especificidades e

diversidades socioculturais. Os discursos revelam que os objetivos do curso foram

contemplados na prática de sala de aula na Universidade, já que os conteúdos e a metodologia

estão em consonância com os anseios dos graduandos sem terra e de seus objetivos de vida

enquanto estudantes, militantes e futuros professores.

A última macrocategoria de assuntos analisa o significado de ser professor do campo

para os acadêmicos sem terra do curso de Ciências Sociais da UFGD. Os excertos retratam o

desejo de ser professor, de contribuir para a coletividade e para o crescimento político e

intelectual das pessoas dos assentamentos. Eles mostram que ser professor do campo significa

desempenhar funções além daquelas realizadas por professores de escolas urbanas, como

veremos a seguir:

(1) As minhas expectativas para o futuro e bastante promissora, espero me formar

como um professor de ciência sociais e podendo assim ajudar a minha

comunidade, e ser um educador do campo, sendo assim visando a nossa

realidade e mostrar para todos a importância que um educador do campo que

sabe os problemas do local e principalmente ama o que faz [...]. (Adriano)

(2) [...] agora estou com novas perspectivas de mudança para melhor já que com

um curso superior fica mais fácil me relacionar com outras pessoas e ajudá-las,

e vou atuar como educador do campo e ainda quero fazer um mestrado, um

doutorado. (Andriever)

(3) Aprendeu durante o percurso das aulas que formar-se seria apenas um detalhe

e que o mais importante para um educador é saber que ele faz a diferença e

tem a responsabilidade de dar os nutrientes iniciais para que os educandos se

desenvolvam e possam escolher de que alimentos querem se alimentar nas

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inúmeras árvores de conhecimentos existentes e assim florir e dar frutos

multiplicando as árvores. (Cristiane)

(4) Embora passando dos 40 anos, estou me organizando para poder cursar outra

faculdade, para que possa me possibilitar uma melhor preparação e um

acúmulo de experiência, buscando contribuir com a formação de outros

indivíduos. (Eder)

(5) Edmilson e família contribui no Centro Formação Geraldo Garcia (CEPEGE)

no assentamento no qual é assentado á 8 anos. O mesmo tem muitos planos

para sua vida e pretende aprofundar nos estudos e com eles desenvolver

alguma atividade de pesquisa que venha a contribuir para a melhoria das

famílias assentadas e acampadas. (Edmilson)

(6) Temos necessidade urgente de mudanças e formações de novas mentalidades

que possam ajudar a enfrentar os problemas atuais enfrentados nos

assentamentos exercendo o papel não só de educadora, mas de uma pessoa que

sonha com uma sociedade mais justa e igualitária. (Ivanilda)

Os discursos dos acadêmicos sem terra da UFGD demonstram o que é ser educador

do campo. Para eles, é “ajudar a minha comunidade” (Adriano), é relacionar-se bem com

outras pessoas, é “contribuir para a melhoria das famílias assentadas e acampadas”

(Edmilson) e, também, para “a formação de outros indivíduos” (Eder). Notamos que ser

educador do campo está relacionado ao coletivo, a uma contribuição não só para o indivíduo

que vai à Universidade, mas também para aqueles que ficaram nos assentamentos e

acampamentos e são a marca da luta pela terra. Por isso, o discurso de Cristiane aponta que

“formar-se seria apenas um detalhe e que o mais importante para um educador é saber que ele

faz a diferença”. Essa afirmação leva-nos a pensar que o educador do campo não se forma

apenas com conteúdo ou se é educador do campo por ter um diploma. Ser educador do

campo, nessa perspectiva apresentada pelos acadêmicos, é fazer a diferença que, no

assentamento, é pensar no coletivo, na luta daqueles que ainda estão sob a lona preta, é pensar

em uma escola que fuja do modelo de educação rural vivenciado pelos assentados durante

suas infâncias, é pensar nos conhecimentos peculiares das pessoas do campo, os quais se

marcam pela ancestralidade e pela tradição. Nesse contexto, a voz da educação rural é ouvida

e refutada pelos discursos dos sujeitos acadêmicos, por ser um modelo que se mostra como

um agente destruidor da cultura do campo, não contribuindo em nada para que os filhos de

camponeses continuassem no campo e nele vivesse com dignidade.

O educador do campo é aquele que faz parte da comunidade, sabendo, assim, dos

caminhos percorridos pelas famílias assentadas para chegar à terra sonhada. É aquele que

conhece a dinâmica do campo, os tempos específicos quando toda comunidade se reúne para

plantar e depois para colher. Ser um educador do campo é ser um trabalhador rural sem terra

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e, por isso, conseguir entender um calendário diferenciado que possa atender aos tempos de

cultivo da terra, o que necessita as crianças. Com a visão de uma educação para transformação

social, o professor consegue apresentar “nutrientes iniciais para que os educandos se

desenvolvam” em diferentes espaços: escola, movimentos sociais, partidos políticos,

universidades, pois a educação do campo abrange a formação total da pessoa e não apenas

conteúdista, pensamento que dialoga com a voz de Marx, ao pensar na formação onilateral,

que se refere a uma práxis educativa revolucionária, a qual congrega diversas esferas da vida

humana que o sistema capitalista tenta separar do homem.

Percebemos que, ao apresentarem o professor do campo como aquele que visa à

realidade de ser um trabalhador rural sem terra, que de acampado passa a ser assentado, uma

voz histórica ecoa retomando as dificuldades enfrentadas pelas escolas do campo, quando

professores sem vínculo com o assentamento foram destinados por Prefeituras ou Estados

para assumirem disciplinas, o que pode ocasionar um ensino desvinculado com a luta pela

terra e, inclusive, desmerecê-la. Por isso, é fundamental mostrar para a sociedade, para os

governos locais e para as famílias assentadas a “importância que um educador do campo”

(Adriano) tem, sendo também fundamental mostrar à sociedade a importância social e

educacional que tem um curso como o de licenciatura em Ciências Sociais para assentados. A

educação tem um papel maior para os acadêmicos pelo fato de ela proporcionar mudanças e

formar novas mentalidades, contribuindo para a transformação social, para uma vida mais

digna, para uma sociedade mais justa e igualitária. Há, no discurso de Ivanilda, a voz do MST,

o qual defende que a educação, para o Movimento, é um processo político, que está vinculado

organicamente aos processos sociais, que pretendem transformar a sociedade atual e construir

uma nova ordem social, cujos pilares sejam a justiça social, a radicalidade democrática e os

valores humanistas e socialistas (MST, Caderno de Educação n. 8, 1996).

Podemos notar que a identidade do futuro professor do campo não é constituída

apenas por seus anseios e sonhos, mas pelos anseios e necessidades de um grupo social, os

trabalhadores rurais sem terra. É como Bakhtin (2011) elucida: o eu não é constituído por ele

mesmo, mas pelo outro. Notamos, assim, o encontro do eu/graduando sem terra com o

outro/trabalhador rural sem terra. Nesse encontro, o outro completa o eu, por este ser um

sujeito sempre em construção.

A identidade dos graduandos sem terra é, então, sempre coletiva, pois o ponto de

partida de sua constituição é sempre o outro, não só os trabalhadores rurais sem terra,

militantes, membros da Igreja Católica (Teologia da Libertação, das CEBS), movimentos

sociais rurais, como MST e CPT, os(as) companheiros(as), mas também pelos adversários

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construídos na disputa pela terra no Brasil, como governos de direita, associações rurais,

órgãos públicos e latifundiários. Logo, os acadêmicos sem terra são sujeitos fruto de um

fenômeno socioideológico. Eles são sujeitos tão sociais, a ponto de se constituírem fora de si

mesmos, pela ação do outro no eu-acadêmico.

As análises, aqui realizadas, evidenciam que o trabalho com o gênero discursivo

relato pessoal é uma oportunidade para relacionar aspectos da língua viva à constituição dos

discursos. Percebemos que os gêneros são fenômenos históricos, profundamente associados à

vida cultural e social dos enunciadores acadêmicos sem terra (MARCUSCHI, 2002).

O gênero relato pessoal nos leva à identidade dos sujeitos enunciadores, a qual é

constituída na alteridade, ou seja, na relação dialógica com o outro. Esse outro compõe o

passado dos graduandos sem terra, fazem parte de suas recordações e de sua constituição

como sujeito social: “[...] Na recordação que temos habitualmente de nosso passado, esse

outro é muito ativo e marca o tom dos valores em que se efetua a evocação de si mesmo (nas

recordações da infância, é a mãe incorporada a nós mesmos)” (BAKHTIN, 1997, p. 167).

O gênero relato pessoal resgata, portanto, eventos do passado e, ainda, possibilita,

por meio das condições do presente, avaliar e valorar experiências vivenciadas anteriormente.

O sujeito social emerge no uso da linguagem viva e nos discursos, o que nos possibilita uma

compreensão do homem social.

Os fatos foram rememorados com o olhar do graduando sem terra, que é mãe, pai,

filho e filha de camponeses, militante de um movimento social, católico (como a maioria se

mostra), professor, assentado. Isso é possível devido à situação de comunicação instaurada, às

finalidades apresentadas, à indicação de possíveis interlocutores.

Trazer à tona o vivido, tema dos relatos pessoais, rememorar um passado nem

sempre feliz – constituído de muitas perdas, conflitos, pressão, tensão, dificuldades e de

poucos momentos de alegria – é significativo para os sujeitos enunciadores, por possibilitar o

encontro entre passado e presente, como também por criar tendências de futuro: “[...] O

passado determina o presente de um modo criador, e juntamente com o presente, dá dimensão

ao futuro que ele predetermina. Atinge-se assim uma plenitude temporal que é sensível,

visível” (BAKHTIN, 1997, p. 253).

Além disso, o gênero oportuniza o encontro com o outro; o outro do passado e o

outro do presente. Os graduandos sem terra como sujeitos enunciadores dialogam com seus

interlocutores mais próximos, mais reais, professoras da disciplina. Do mesmo modo, também

se encontram com seus interlocutores não presentes diretamente na situação de produção, mas

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que fazem parte do processo comunicativo e com os quais interagem dialogicamente, bem

como constituem suas identidades, como, por exemplo, seus companheiros de movimentos

sociais, familiares, religiosos, outros professores, como também seus adversários na luta pela

terra – latifundiários, governos conservadores, órgãos públicos –, pois, como argumenta

Bakhtin (2011, p. 301): “[...] “Um participante-interlocutor direto do diálogo cotidiano, pode

ser [...] os correligionários, os adversários e inimigos”.

Rememorar o vivido, nem sempre agradável, ser sujeito de sua própria escrita, ter o

outro como interlocutor faz aflorar emoções – possíveis ao gênero relato pessoal –, como

demonstram as palavras de Valdirene que chora ao terminar seu texto,

Professora, desculpe, mas é isso, a minha vida é cheia de vitórias e

derrotas como a de todos. Seguiremos, porque não podemos parar e

nem fraquejar, pois, muitos dependem de nós, como agora que nossa

história se misturou. E já estou chorando, escrevendo, falando de mim.

O movimento mexe com a nossa vida, talvez vire de cabeça pra baixo,

mas nos encontramos como sujeitos históricos e capazes de mudar o

nosso destino de servidão (Valdirene).

As palavras de Valdirene demonstram como a escolha do gênero relato pessoal é

primordial para alcançarmos a identidade dos acadêmicos sem terra, a qual está sempre sendo

constituída numa relação dialógica com os outros e, no caso dos trabalhadores rurais sem

terra, na tensão, na pressão, nos conflitos, nas dificuldades, mas também nas conquistas, na

coletividade, na solidariedade, em busca sempre da justiça social.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No caminho percorrido na elaboração desta tese, propomo-nos, em um primeiro

movimento dialógico, trazer à tona vozes sócio-históricas constituintes da identidade dos

graduandos sem terra do curso de Ciências Sociais da UFGD no gênero discursivo relato

pessoal. As vozes sócio-históricas levantadas foram o ponto de partida para analisarmos a

tríade de signos ideológicos: terra, reforma agrária e educação do campo, herdeiros das

relações sócio-históricas entre grupos sociais antagônicos. A teoria de Bakhtin e de seu

Círculo leva-nos a perceber que a identidade dos referidos acadêmicos é constituída por vozes

que marcam a história da terra no Brasil desde quando ainda é Colônia de Portugal. Desse

modo, observamos que leis, decretos, regulamentos, sermões religiosos foram estratégias

políticas e judiciais utilizadas pelo governo em prol dos latifundiários, a fim de criarem

barreiras contra a justa distribuição de terras no Brasil. No entanto, vozes em apoio à reforma

agrária erguem-se em um movimento de resistência, demonstrando que os trabalhadores

rurais também têm suas estratégias de defesa e de pressão, como os acampamentos, as

manifestações em praça pública, marchas e romarias, as quais, em parte, são herdadas das

Ligas Camponesas e reelaboradas pelos movimentos sociais rurais. Por isso, não são vozes

unificantes, mas sim antagônicas, o que revela que a luta de classes se estabelece pela

linguagem.

A relação dialógica entre as vozes, que mostra um embate entre palavra e

contrapalavra, é percebida no gênero relato pessoal escrito pelos graduandos sem terra, nos

conduzindo a verificar que a identidade dos acadêmicos é construída na relação com o outro.

O outro é um elemento constante nos discursos do eu/graduando sem terra, o que evidência

que a identidade em si mesma não existe, pois eles representam diferentes papéis sociais que

se constituem por meio da linguagem e do outro. Entre esses papéis sociais estão o de mãe,

esposa, pai, esposo, filha, filho, estudante, militante, criança camponesa, trabalhador rural,

trabalhador rural sem terra, acadêmico, futuro professor, tudo isso cria a identidade. São

relações em que o outro é fundamental, pois os olhos do outro são como um espelho onde se

revela quem é o verdadeiro eu-graduando sem terra. É pelo olhar do outro que ele se vê, se

constitui, se avalia e se modifica.

Desse modo percebemos que o encontro com o outro é inevitável. Os outros

constituem os discursos e as identidades individual e coletiva dos acadêmicos sem terra, no

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sentido de que vozes históricas, sociais e políticas ecoam em seus discursos. São as vozes da

Igreja Católica, das Ligas Camponesas, dos Movimentos Sociais, as quais são reafirmadas e

justificadas, servindo também de apoio às posições tomadas. Do mesmo modo, as vozes

opositoras também aparecem com as respostas, os questionamentos, as denúncias ao governo

federal, órgãos públicos, políticos conservadores, latifundiários e sociedade. Isso evidencia

que os discursos apresentados nos três primeiros capítulos são constitutivos dos discursos dos

acadêmicos sem terra do curso de Licenciatura em Ciências Sociais da UFGD, o que

demonstra que fazem parte da cadeia discursiva da terra no Brasil, da mesma forma que

fazem parte do discurso do presente acerca da reforma agrária e da educação do campo. O

estudo mostra que os signos terra, reforma agrária e educação do campo foram deixando de

significar uma realidade em si e passaram, na relação dialógica, a refletir e a refratar uma

outra realidade por serem ideológicos e por carregarem em si realidades múltiplas, ora

conflitantes, ora consensuais, o que evidencia os lugares por onde esses signos circularam e os

grupos sociais em que eles estão inseridos.

A compreensão dos signos ideológicos nos leva a perceber que, sob a perspectiva da

luta de classes, a classe dominante busca, por meio da linguagem, conferir aos signos

ideológicos terra, reforma agrária e educação do campo um aspecto inatingível e naturalizar

as diferenças de classe, silenciando, ocultando e abafando as contradições e a luta que se

constroem. O signo é, então, uma arena de luta, é o lugar de encontro de ideologias diferentes

e reflete que mesmo em uma sociedade que comunga de uma mesma comunidade semiótica, a

língua portuguesa, os confrontos existem e as ideologias contrárias se confrontam.

A recorrência das vozes analisadas mostra que se trata de um discurso coletivo de um

determinado grupo social – trabalhadores rurais sem terra –, de forma que constituem a

ideologia desse grupo social, a qual, portanto, é social e representada na/pela linguagem. Da

mesma forma, a ideologia dos grupos opositores também emerge, ao ser respondida,

repreendida, combatida, refutada. Logo, o gênero relato pessoal é fundamental para trazer à

tona o vivido pelos acadêmicos sem terra, bem como a avaliação desse vivido, as projeções

para o futuro, as quais são individuais, mas também são coletivas.

A presença de vozes conflitantes na constituição da identidade dos acadêmicos sem

terra também revela a função social do gênero relato pessoal. Trata-se de uma função social,

histórica e política, ao possibilitar aos sujeitos enunciadores rememorarem experiências

vividas, avaliarem ocorridos no plano pessoal, nos movimentos sociais, nas relações com as

diferentes instituições públicas e, sobretudo, julgarem o sistema capitalista e a exploração e

exclusão sofridas pelos trabalhadores rurais em decorrência desse sistema.

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Percebemos, assim, que o trabalho realizado com o gênero relato pessoal atende às

propostas de ensino-aprendizagem de língua portuguesa, uma vez que observamos que aos

acadêmicos sem terra é possível desenvolver a competência comunicativa por meio do uso

concreto da linguagem, assim como enxergar que por traz de seus relatos há um sujeito

situado em um contexto específico e que suas escolhas linguísticas não são aleatórias, mas

carregam o objetivo de demonstrar seus pontos de vista, suas avaliações, sua ideologia,

mesmo que não tenham consciência disso. Além disso, o trabalho com o gênero demonstra

que o estilo e a organização são relevantes ao gênero relato pessoal não só por si mesmos,

mas por refletirem os sentidos da ideologia dos graduandos sem terra; da mesma forma, o

tema do gênero nos possibilita perceber os acentos valorativos quanto à percepção dos

sujeitos enunciadores ao que relata. Nessa perspectiva, o trabalho com o gênero relato pessoal

evidencia, ainda, que a preocupação com o ensino da escrita não deve estar somente no

produto em si, mas na sua relação com as valorizações e ideologias de quem escreve, levando-

se em conta o contexto sócio-histórico do qual faz parte.

As análises aqui empreendidas (vozes discordantes e consoantes à reforma agrária, o

PPP e os relatos pessoais) também marcam o encontro do pesquisador das Ciências Humanas

com o seu sujeito, os outros com quem dialoga. Em um movimento dialógico, a pesquisadora

voltou-se para o discurso e para o extraverbal, a fim de compreender os fatos sociais que

constituem os signos ideológicos e a identidade dos acadêmicos sem terra, passando a

também fazer parte desse movimento e a ser constituída por ele. Nesse encontro entre

diferentes vozes, trava-se uma luta com outras enunciações e com outras ideologias, mas o

trabalho de criação e de pesquisa possibilita inscrever a voz da pesquisadora no continuo da

história da terra, da reforma agrária e da educação do campo. A pesquisadora busca o outro, a

fim de que ele lhe dê respostas e caminhos para chegar aos seus objetivos, mas também se

coloca como o outro das vozes histórico-sociais analisadas. Algumas querem convencê-la,

outras objetivam levá-las a uma reflexão, outras a questionam e outras a respondem. É um

movimento dialógico do qual o pesquisador não pode se apartar, pois ele já faz parte do

processo, no mínimo, desde a entrega do projeto de pesquisa. Assim, esta pesquisa apresenta

esse processo de encontros entre sujeitos e seus outros, constituindo um novo contexto de

enunciação, o qual constrói um novo contexto dialógico, produzindo novos sentidos

(AMORIM, 2004).

Ademais, ao desenvolver e finalizar este percurso de pesquisa, especialmente, neste

momento histórico pelo qual nós, brasileiros, passamos, este estudo aponta caminhos para

entendermos as razões de hoje estarmos em um contexto social de perda de direitos e não de

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conquistas e, consequentemente, de maior exploração e exclusão. As vozes, levantadas no

primeiro capítulo, as quais querem calar aqueles que lutam pela justa distribuição de terras no

Brasil, desde os índios, passando pelos foreiros das Ligas Camponesas e demais militantes

dos movimentos populares (Canudos, Contestado), chegando até os trabalhadores rurais sem

terra, hoje ainda ecoam no meio político e com tons fortes desenvolvem golpes contra a

população. Como vimos, isso é possível, porque, desde o Brasil Colônia, o opressor está

revestido de direitos, os quais são garantidos por ele mesmo. À margem, continuam os mais

fracos, os esquecidos socialmente, os trabalhadores rurais sem terra que põem suas esperanças

na própria luta e na de seus companheiros, bem como na própria força de trabalho e de

resistência, ao continuarem à beira das rodovias reivindicando e pressionando as autoridades a

realizarem a justiça social tão esperada.

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