encontros e desencontros de dois filÓsofos … · ser homem é um drama; ser judeu é outro drama....

18
37 REVISTA Conatus Conatus Conatus Conatus Conatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 4 - NÚMERO 7 - JULHO 2010 MARIA LUÍSA RIBEIRO FERREIRA * ENCONTROS E DESENCONTROS DE DOIS FILÓSOFOS JUDEUSSIMONE WEIL E ESPINOSA 1 O CONFRONTO ENTRE FILÓSOFOS N ão há leituras neutras. Toda a hermenêutica que fazemos sobre o pensamento de um filósofo – no caso presente de uma filósofa – inevitavelmente apela para pressupostos, implícitos ou explícitos, que a condicionam. Ao reler alguns dos textos fundamentais de Simone Weil para preparar esta comunicação na homenagem ao centenário da sua morte, dei por mim a fazer anotações em que os referia ao pensamento de Espinosa, uma das temáticas dominantes na investigação filosófica que tenho desenvolvido ao longo de anos. De tal modo foi frequente o reenvio para textos da Ética que acabei por abandonar o assunto que primeiramente me propusera trabalhar – as éticas do cuidado – optando por me debruçar pelos encontros e desencontros entre dois filósofos, distantes no tempo, no espaço e no modo de encarar a vida: Espinosa e Simone Weil. É sempre ingrato comparar filósofos e estabelecer semelhanças ou ligações que eles próprios não consideraram e que eventualmente considerariam pouco pertinentes. Encontrei no entanto uma passagem de Weil que me convenceu a lê-la deste modo pouco ortodoxo que é confrontá-la com um filósofo do século XVII. Diz ela em La pesanteur et la grâce que “cada ser grita em silêncio para ser lido de uma outra maneira” 2 . E desenvolve este tema afirmando que nos lemos mas que também somos lidos pelos outros. Forçar alguém a ler-se a si próprio tal como o lemos é escravatura. Mas forçar os outros a ler-nos tal como nos lemos é igualmente um acto de prepotência. Não pretendendo ser escrava nem prepotente senti-me autorizada a fazer dos textos weilianos esta leitura pouco comum. De qualquer modo Espinosa não é para Weil uma presença estranha. Ao escrever sobre a condição operária no seu opúsculo Réfléxions sur les causes de la liberté et de l’oppression sociale, ela apela expressamente para o autor do Tratado Político, abrindo o seu texto com uma citação desta obra: “No que diz respeito às coisas humanas não devemos rir, nem chorar nem indignarmo-nos mas apenas compreender.” 3 . Ambos partilham esta atitude de interesse pelos fenómenos políticos, analisando-os tal como aparecem e procurando deles tirar ilações, numa tentativa de os perceber e não de os criticar, ou de pelo menos de perceber primeiro e criticar depois. É o que se passa com as análises da realidade social que Espinosa empreende nos seus tratados Teológico-Político e Político, uma perspectiva que reencontramos em Weil nos seus inúmeros textos sobre a situação dos operários e dos camponeses. * Professora associada (com agregação) da FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA onde leciona FILOSOFIA MODERNA, DIDÁTICA DA FILOSOFIA e FILOSOFIA DA NATUREZA E DO AMBIENTE. Coordenou um projeto de Pesquisa sobre FILOSOFIA NO FEMININO. 1 Texto apresentado a 11 de Dezembro de 2009, na JORNADA COMEMORATIVA DO CENTENÁRIO DE SIMONE WEIL, na Faculdade de Letras da UNIVERSIDADE DE LISBOA. 2 “Chaque être crie en silence pour être lu autrement”. S.Weil, La pesanteur et la grâce, ( P.G.) Paris, Plon, 2009, p. 215. 3 “En ce qui concerne les choses humaines, ne pas rire, ne pas pleurer, ne pas s’indigner mais comprendre.”. Simone Weil, Réfléxions sur les causes de la liberté et de l’ oppression sociale, Paris, Gallimard, folio, 2004, p. 7. A citação não é localizada mas trata-se de uma passagem do livro I, § IV do T.P onde Espinosa escreve: “humanas actiones non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere.”. (Citaremos Espinosa a partir de Spinoza Opera, hersg. von Karl Gebhardt, Heidelberg, Carl Winters, 1972, 5 vols.). T.P. I, § 4, G. III, p. 268.

Upload: trinhxuyen

Post on 01-Dec-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

37REVISTA ConatusConatusConatusConatusConatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 4 - NÚMERO 7 - JULHO 2010

MARIA LUÍSA RIBEIRO FERREIRA *

ENCONTROS E DESENCONTROS DE DOIS FILÓSOFOS “JUDEUS”SIMONE WEIL E ESPINOSA 1

O CONFRONTO ENTRE FILÓSOFOS

N ão há leituras neutras. Toda ahermenêutica que fazemos sobre opensamento de um filósofo – no caso

presente de uma filósofa – inevitavelmente apelapara pressupostos, implícitos ou explícitos, quea condicionam. Ao reler alguns dos textosfundamentais de Simone Weil para preparar estacomunicação na homenagem ao centenário dasua morte, dei por mim a fazer anotações emque os referia ao pensamento de Espinosa, umadas temáticas dominantes na investigaçãofilosófica que tenho desenvolvido ao longo deanos. De tal modo foi frequente o reenvio paratextos da Ética que acabei por abandonar oassunto que primeiramente me propuseratrabalhar – as éticas do cuidado – optando porme debruçar pelos encontros e desencontrosentre dois filósofos, distantes no tempo, noespaço e no modo de encarar a vida: Espinosa eSimone Weil.

É sempre ingrato comparar filósofos eestabelecer semelhanças ou ligações que elespróprios não consideraram e que eventualmenteconsiderariam pouco pertinentes. Encontrei noentanto uma passagem de Weil que me convenceua lê-la deste modo pouco ortodoxo que éconfrontá-la com um filósofo do século XVII. Dizela em La pesanteur et la grâce que “cada ser gritaem silêncio para ser lido de uma outra maneira” 2.

E desenvolve este tema afirmando que noslemos mas que também somos lidos pelosoutros. Forçar alguém a ler-se a si próprio talcomo o lemos é escravatura. Mas forçar osoutros a ler-nos tal como nos lemos éigualmente um acto de prepotência. Nãopretendendo ser escrava nem prepotentesenti-me autorizada a fazer dos textosweilianos esta leitura pouco comum. Dequalquer modo Espinosa não é para Weil umapresença estranha. Ao escrever sobre acondição operária no seu opúsculo Réfléxionssur les causes de la liberté et de l’oppressionsociale, ela apela expressamente para o autordo Tratado Político, abrindo o seu texto comuma citação desta obra: “No que diz respeitoàs coisas humanas não devemos rir, nemchorar nem indignarmo-nos mas apenascompreender.”3. Ambos partilham esta atitudede interesse pelos fenómenos políticos,analisando-os tal como aparecem e procurandodeles tirar ilações, numa tentativa de osperceber e não de os criticar, ou de pelomenos de perceber primeiro e criticar depois.É o que se passa com as análises da realidadesocial que Espinosa empreende nos seustratados Teológico-Político e Político, umaperspectiva que reencontramos em Weil nosseus inúmeros textos sobre a situação dosoperários e dos camponeses.

* Professora associada (com agregação) da FACULDADE DE

LETRAS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA onde leciona FILOSOFIA

MODERNA, DIDÁTICA DA FILOSOFIA e FILOSOFIA DA NATUREZA E DO

AMBIENTE. Coordenou um projeto de Pesquisa sobreFILOSOFIA NO FEMININO.1 Texto apresentado a 11 de Dezembro de 2009, naJORNADA COMEMORATIVA DO CENTENÁRIO DE SIMONE WEIL,na Faculdade de Letras da UNIVERSIDADE DE LISBOA.2 “Chaque être crie en silence pour être lu autrement”. S.Weil,

La pesanteur et la grâce, (P.G.) Paris, Plon, 2009, p. 215.

3 “En ce qui concerne les choses humaines, ne pas rire,ne pas pleurer, ne pas s’indigner mais comprendre.”.Simone Weil, Réfléxions sur les causes de la liberté et de l’oppression sociale, Paris, Gallimard, folio, 2004, p. 7.A citação não é localizada mas trata-se de uma passagemdo livro I, § IV do T.P onde Espinosa escreve: “humanasactiones non ridere, non lugere, neque detestari, sedintelligere.”. (Citaremos Espinosa a partir de SpinozaOpera, hersg. von Karl Gebhardt, Heidelberg, Carl Winters,1972, 5 vols.). T.P. I, § 4, G. III, p. 268.

38 REVISTA ConatusConatusConatusConatusConatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 4 - NÚMERO 7 - JULHO 2010

FERREIRA, MARIA LUÍSA RIBEIRO. ENCONTROS E DESENCONTROS DE DOIS FILÓSOFOS “JUDEUS” -- SIMONE WEIL E ESPINOSA. P. 37-54.

DOIS FILÓSOFOS JUDEUS?

Ser homem é um drama; ser judeu é outrodrama. Assim o judeu tem o privilégio de viverduas vezes a nossa condição. Representa aexistência por excelência separada, ou, paraempregar uma expressão com a qual osteólogos classificam Deus, o totalmente outro.E. M. Cioran 4.

A dificuldade em definir o que é serjudeu fica bem patente em ambos os filósofos.Na verdade é frequente classificá-los destemodo e no entanto nenhum deles se assumecomo tal. Pelo contrário, revelam uma atitudede conflito com esta identidade imposta, naqual não se reconhecem. No entanto aos doisse pode aplicar a tese de Cioran pois neles émuito visível a separação, o inconformismo, anão integração em comunidades ou grupos.Baruch de Espinosa foi expulso da comunidadehebraica de Amsterdão, num “herem”duríssimo em que lhe era interditado qualquercontacto com os outros indivíduos da sua raça.Assume esta excomunhão como um triunfopois por ela se desliga definitivamente de ummodo de pensar que considera tacanho epreconceituoso. Simone Weil é judia pornascimento mas considera-se próxima docristianismo cuja teologia e princípios moraisadopta e elogia. A difícil relação que ambosestabeleceram com o judaísmo manifesta-se,entre outros aspectos, no modo como criticamIsrael. Longe no tempo e no espaço, háinegáveis afinidades nos textos que escreveramsobre esta temática. Assim, é-lhes particularmentedesagradável a noção de povo eleito, um conceitoque deu aos judeus um forte sentido deidentidade, de diferença e mesmo desuperioridade. Tal facto teria sido responsávelpelo modo como os povos que professavamoutras religiões sempre os hostilizaram eperseguiram. No dizer de Weil: “Houve umanação que outrora se considerou santa e este

facto caiu-lhe muito mal.”(S. Weil, L’enracinement)5.

Ao longo do capítulo III do TratadoTeológico Político (“Da Vocação dos Hebreus e seo dom da profecia terá sido um privilégioexclusivamente seu”) Espinosa desconstrói anoção de povo eleito, censura o separatismo dosjudeus e nega que Deus lhes tenha concedidoqualquer privilégio ou protecção preferencial:

[...] os Hebreus só são superiores às outrasnações pela forma feliz como geriram aquiloque dizia respeito à sua segurança de vida,superando assim enormes perigos, tudograças unicamente ao auxílio externo deDeus; mas quanto ao resto foram iguais aosoutros já que Deus é igualmente favorável atodos. Espinosa, Tratado Teológio-Político6.

Um outro factor de convergência reside nacrítica que fazem ao carácter particular da religiãojudaica, à sua falta de generalização, aoparticularismo dos seus rituais e sobretudo à ligaçãodo judaísmo com um povo e com uma raça:

Um pensamento religioso é autêntico quandoé universal pela orientação que toma. Não éo caso do judaísmo que está ligado a umanoção de raça. S. Weil, L’ enracinement 7.

Espinosa critica a lei mosaica pelos seusobjectivos pragmáticos, analisa as suas cerimóniase rituais despojando-os de toda a sacralidade edespe o judaísmo do seu carácter espiritualnegando-lhe qualquer superioridade sobre osoutros povos:

Hoje em dia, portanto, os Judeus não possuemabsolutamente nenhuma razão para se

4 “Être homme est un drame; être juif en est un autre.Aussi le juif a-t-il le privilege de vivre deux fois notrecondition. Il représente l’existence séparée par excellenceou, pour employer une expression dont les théologiensqualifient Dieu, le tout autre.”. E.M. Cioran, La Tentationd’Exister, Paris, Gallimard, 1956, p. 70.

5 “Il y a eu une nation qui jadis s’est crue sainte, et celalui a très mal réussi.”. S. Weil, L’enracinement, Paris,Gallimard, 2007, p. 188.6 [...] Hebraeos in hoc solo caeteras nationes excelluisse,

quod res suas, quae ad vita securitatem pertinent, foelicitergesserint, magnaque pericula exsuperaverint, idquemaxime solo Dei externo auxilio, in reliquis autem caeterisaequales fuisse, et Deum omnibus propitium.”. TTP, cap.III, G. III, p. 47.7 “Une pensée religieuse est authentique quand elle est

universelle par son orientation. Ce n’est pas le cas dujudaïsme, qui est lié à une notion de race.”. S. Weil,L’enracinement, p. 121.

39REVISTA ConatusConatusConatusConatusConatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 4 - NÚMERO 7 - JULHO 2010

FERREIRA, MARIA LUÍSA RIBEIRO. ENCONTROS E DESENCONTROS DE DOIS FILÓSOFOS “JUDEUS” -- SIMONE WEIL E ESPINOSA. P. 37-54.

considerarem acima das outras nações. Opróprio facto de terem subsistido [...] não épara admirar, visto que se apartaram dequalquer nação e atraíram sobre si o ódio detodas elas, não apenas pelos ritos exteriores,que são contrários aos das outras gentes, mastambém pelo sinal da circuncisão, queconservam religiosamente. A experiência, deresto, ensina que o ódio das nações contribuiimenso para a coesão dos Judeus. Espinosa,Tratado Teológio-Político8

Um outro aspecto que os aproxima é arelação que estabelecem entre cristianismo ejudaísmo. Para a filósofa a vertente hebraicapresente no cristianismo é considerada um veneno9. As transformações negativas do cristianismodevem-se à sua vinculação ao judaísmo. É-lheparticularmente desagradável a ideia de um Deusdos exércitos, violento e possessivo. À omnipotênciade Javeh opõe a concepção de um Deus amoroso ecaritativo, já presente nos egípcios. Contrasta oshebreus com os gregos, os taoistas chineses, oshindus. Dos judeus, os cristãos herdaram a noçãode progresso, absolutamente falsa e perniciosa.Considera o capitalismo e o totalitarismo etapasde um desenraizamento progressivo que semanifestou na Europa e que tem em Israel a suaorigem. O Judaísmo é para ela uma religiãoexclusivamente colectiva, a tentativa de uma vidasocial sobrenatural. Despojados de espiritualidade,os judeus falam de Deus como educador do povo,o que para Weil é uma brincadeira de mau gosto.Eles acreditam na acção de Deus no mundo, umDeus que se entretém a recompensar e a punir oshomens, que faz promessas temporais a Moisés,num contraste com a religião já existente entre osegípcios, muito mais espiritual e colocando a tónicana busca da eternidade.

Na mesma linha de pensamento temosEspinosa que no capítulo já referido do TTPaproxima Israel de todos os outros povos,

verificando que os judeus apenas se distinguirampor uma organização social peculiar; remetecertas normas e preceitos para a sua conjunturahistórica, retirando-lhes qualquer relação com atranscendência. O cristianismo surge-lhe comoo alargamento e do judaísmo, a superaçãodefinitiva de particularismos historicamentedatados. Numa carta a Oldenburg sustenta queos valores legados pela cultura hebraica foramretomados pelo cristianismo que os investiu docarácter universal de que careciam,interpretando espiritualmente o que os judeustinham considerado num registo material 10.

DOIS FILÓSOFOS MAL AMADOS NO SEU TEMPO

Tanto de Weil como de Espinosa podemosdizer que foram “outsiders” e, usando umaexpressão hoje banalizada, podemos classificá-los de politicamente incorrectos, ou mesmo defilosoficamente incorrectos. No caso da primeira,as posições existenciais que evidenciouprovocaram desconforto. Ao escrever sobre avida e personalidade desta filósofa, SylvieCourtine-Denamy relata-nos o modo como osseus contemporâneos a encararam. Exemplifica-o com alguns relatos, entre os quais o de umamigo, Francis Louis Closon, para quem Simoneencarnava a miséria do mundo:

Numa primeira aproximação era difícildistinguir Simone das suas vestes de pobre, tudose confundia numa mesma nota. Usava umasaia castanha comprida de uma cor já um poucodesbotada e uma camisola que a mãe lhe tinhatricotado, mas vejo-a como se estivesse vestidade burel, sem formas, um corpo frágil,ligeiramente encurvada, aparentando cansaçona postura, cansaço na voz de um tom algoarrastado, interiorizado, raramente vivo e quasemonocórdico. Há pessoas que trazem às costasa miséria do mundo, o que é ainda uma maneirade lhe serem exteriores, mas Simone tinha-aintegrado. Fr. L. Closon 11.8 “Quare hodie Judaei nihil prorsus abent, quod sibi supra

omnes Nationes tribuere possint. Quot aut [...]persisterint, id minime mirum, postquam se ab omnibusnationibus ita seperaverunt, ut omnia odium in seconverterint, idque non tantum ritibus externis, ritibuscaeterarum nationum contrarius, sed etiam signocircumcisionis, quod religiosissime servant.”. TTP, cap. III,.G. II, p. 56.9 L’enracinement, p. 259.

10 “Ut taceam, quod Christiani omnia, quae Judaeicarnaliter, Spiritualiter interpretati sunt.”. Ep. LXXV aOldenburg, G. IV, p. 315.11 “Il était au premier abord difficile de distinguer Simone

de son vêtement de pauvre, tout se confondait dans unemême note. Elle portait une longue jupe marron de couleurpassée et un tricot toujours fait pour elle par (Continua)

40 REVISTA ConatusConatusConatusConatusConatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 4 - NÚMERO 7 - JULHO 2010

FERREIRA, MARIA LUÍSA RIBEIRO. ENCONTROS E DESENCONTROS DE DOIS FILÓSOFOS “JUDEUS” -- SIMONE WEIL E ESPINOSA. P. 37-54.

Um outro amigo, Maurice Schumann,descreve-a como uma pessoa de tal maneiraapaixonada no diálogo com os outros quedificilmente os escuta. E o fervor desmesuradocom que se entrega às causas que defende levaalguns responsáveis pelo movimento daResistência com quem trabalhou a desconfiaremdas suas capacidades de uma acção eficaz. AssimJean Cavaillès sustenta veementemente que nãose lhe confie qualquer missão de risco:

Em caso algum poderia ter utilidade osofrimento e o perigo que comportaria umamissão confiada a um ser tão singular e tãoidentificável. Jean Cavaillès 12.

Percebem-se assim os qualificativos que lhedavam os seus contemporâneos: virgem vermelha;“mostrum horrendum”, Lázaro, Marciana, “Dirty”13

são designações habituais dos maledicentes quecriticam a radicalidade e o irrealismo das suas teses.Esta atitude de incompreensão e mesmo de umcerto mal estar fica bem patente na descrição queSimone de Beauvoir faz de um encontro entreambas. Embora em sintonia com as críticas de Weilà instalação da burguesia, de Beauvoir sente-seagredida quando esta lhe diz “Vê-se bem que vocênunca teve fome”. Por isso, em Mémoires d’une jeunefille rangée, a filósofa existencialista refere esteencontro como uma relação esporádica, semcontinuidade possível devido à intolerância de Weil.Com algum sarcasmo de Beauvoir escreve: “Asnossas relações pararam aí. Percebi que ela mecatalogara como uma “pequena burguesaespiritualista” e isso irritou-me.” 14.

Também com os amigos constatamosalguma dificuldade de relacionamento. Avessa atodo o rótulo com a qual a pretendiam classificaré por vezes acusada de ser contraditória nas tesesque defende. Na verdade estamos perante umarevolucionária que simultaneamente faz aapologia da obediência e da hierarquia, umespírito imbuído de profunda religiosidade masprofundamente crítico quanto às religiõespositivas, uma convertida ao cristianismo querecusa o baptismo, alguém que procura as raízesmas que rejeita o sentimento do “nós”, uma tentaçãodemoníaca que rejeita15. São particularmenteambivalentes as suas relações com o marxismoparecendo por vezes em sintonia com algumasdas suas teses mas simultaneamente criticando oseu materialismo e pragmatismo.

Inegavelmente que Weil tem umasensibilidade de esquerda e uma inclinaçãonatural pelos desfavorecidos. O que não a impedede se demarcar dos dogmas do materialismocientífico e de criticar o desvio totalitário dosregimes socialistas. A filósofa não alinha com amaioria da esquerda francesa da sua época que,com diferentes cambiantes, colocava a UniãoSoviética como referência. É das primeiras vozesa recusar o modelo soviético, denunciando o seucarácter utópico e criticando a falta de liberdade,a opressão burocrática e o laicismo, todos elesfactores impeditivos de uma procura das raízes.

Também Espinosa foi alvo de interpretaçõesdiscordantes e de críticas violentas, de tal modoque o seu nome Baruch (Benedito ou Bento) foidepois traduzido para o latim Benedictus e comele se fizeram trocadilhos - Spinoza, Benedictus /Maledictus era uma designação habitualmenteutilizada pelos seus detractores. O artigo de PierreBayle que definitivamente lhe grangeou a fama deateu – “il a été un athée de systhème” 16 – levou aque a seu respeito se criasse uma aura de infâmia.Leibniz, que secretamente o admirou não se coibiude escrever:

A propósito de Espinosa a quem Arnauldchama o mais ímpio e o mais perigoso homemdo século; foi realmente um ateu, ou seja,

(Continuação da Nota 11) sa mère, mais je la voiscomme vêtue de bure, sans forme, un corps frêle,légèrement voutée, lasse en apparence dans son attitude,lasse dans sa voix d’un ton un peu traînant, interiorisé,rarement vif et quasi monocorde. Il est des gens qui portentsur eux la misère du monde ce qui est encore une manièred’en être extérieur, Simone, elle, l’avait intégrée.”. Fr. L.Closon, Le Temps des Passions, Paris, Presses de la Cité,1974, p. 33 in Sylvie Courtine-Denamy, Simone Weil. Laquête des raciness célestes, Paris, Cerf, 2009, pp. 33-34.12 “En aucun cas la souffrance et le danger que comporterai

une mission confiée à un être aussi singulier et aussireconnaissable ne pourraient être utiles.”. Sylvie Courtine-Denamy, ob. cit., p. 33.13 Ob. cit. p. 13.14 Simone de Beauvoir, Mémoires d’une jeune fille rangée,

Paris, Le livre de poche, 1966, p. 336.

15 “Le diable pense à dire nous”. S. Weil, At. D., Paris, LaColombe, 1963, p. 25.16 Pierre Bayle, artigo “Spinoza”, Dictionnaire Historique

et Critique, Amsterdam, 1740 (5ª ed.) t. IV, pp. 253.

41REVISTA ConatusConatusConatusConatusConatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 4 - NÚMERO 7 - JULHO 2010

FERREIRA, MARIA LUÍSA RIBEIRO. ENCONTROS E DESENCONTROS DE DOIS FILÓSOFOS “JUDEUS” -- SIMONE WEIL E ESPINOSA. P. 37-54.

não reconheceu qualquer Providência quedistribuísse boa ou má sorte de acordo com oque é justo. Leibniz 17.

Mesmo espíritos pouco religiosos não seeximem de o criticar. E assim Voltaire escrevesobre ele um pequeno poema, cujo conteúdomereceria ser desmontado mas que revela umolhar complacentemente negativo sobre estegrande filósofo que apelida de espírito subtil eoco e que considera uma espécie de criado deDescartes:

Alors un petit juif, au long nez, au teint blême,Pauvre mais satisfait, pensif et retiré,Esprit subtil et creux, moins lu que célébré,Caché sous le manteau de Descartes, son maître,Marchant à pas comptés, s’approche du grand être:Pardonnez-moi Monsieur, en lui parlant tout bas,Mais je pense, entre nous, que vous n’ existez pas.

Voltaire18.

Note-se que este olhar depreciativo quenalguns casos o filósofo conheceu, de modoalgum o perturbou. Criticado por judeus e porcristãos, que o acusam de impiedade, continuafirme no propósito com que inicia o Tractatus deIntellectus Emendatione, uma das suas primeirasobras : atingir neste mundo uma alegria eternae soberana, um projecto de vida que manteráconstante e que consegue levar a cabo com aÉtica, a sua obra maior.

Simone Weil está longe de partilhar estaautoconfiança. Na carta IV de Atente de Dieu traçaa sua biografia espiritual e assinala as suas fracasfaculdades, coloca-se entre os objectosdegradados que Deus utiliza na sua infinitamisericórdia, vê-se a si mesma como um ser malacabado, uma mendiga que tem sempre fome,semelhante à figueira estéril que Cristoamaldiçoou19.

DIVERGÊNCIAS INCONTORNÁVEIS MAS CRUZAMENTOS

POSSÍVEIS

Os filósofos são filhos do seu tempo masdestacam-se dos seus contemporâneos pelasubtileza com que o representam e pelacapacidade de distanciamento com que oanalisam. Ancorados em épocas diferentes,Espinosa e Weil foram sensíveis a temáticasespecíficas o que torna difíceis as aproximações.Há pressupostos de base que decididamente osafastam. Um deles é a relação com a religião.Esta foi sempre um dos alvos preferenciais dascríticas espinosanas, dela salvando uma práticaética que designa como “vera religio”. Tudo oresto é superstição e obscurantismo, umconjunto de ideias fictícias de que o poderestabelecido se serve para submeter o povo. OTratado Teológico Político é uma tentativa deseparar as águas entre filosofia e teologiamostrando os absurdos provenientes de umamistura abusiva. O que levou às já aludidasacusações de ateísmo.

Mas se é defensável considerar Espinosaateu, ninguém com um mínimo conhecimentode Simone Weil a poderia designar deste modopois nada há no seu pensamento que permitatal leitura. Note-se que há passos nas suas obrasem que revela uma atitude de empatia para comos incrédulos, admitindo que em alguns casosaqueles que negam Deus estão próximos dele.Entende que, quando confrontado com falsasinterpretações da divindade, o ateísmo épurificador, impedindo interpretações falsas.Contesta sobretudo os que entendem a religiãocomo consolo, um posicionamento que paraWeil constitui obstáculo à verdadeira fé 20.

Embora tenha recebido uma educaçãoagnóstica, Weil considera o cristianismo comoo seu ambiente natural pois viveu integrada nosseus princípios e participou no seu universo:

Nasci por assim dizer, cresci e sempre memantive na inspiração cristã. Enquanto queo próprio nome de Deus não ocupava nenhumlugar nos meus pensamentos, tinha relativamenteaos problemas deste mundo e desta vida umaconcepção cristã de uma maneira explícita,

17 “A propos de Spinosa que Mons. Arnauld appelle leplus impie et le plus dangereux homme de ce siècle; ilestoit véritablement Athée, c’est à dire, il n’admettoit pointde providence dispensatrice des biens et des maux suivantla justice, et en croyoit avoir demonstration;”. Leibniz,Samtliche Schrifften und Briefe, Darmstadt, 1926, II, 1, p.535.18 Les Systèmes, Oeuvres, Paris, ed. Moland, 1883, t.X,

p. 170.19 S. Weil, At. D. pps. 39, 48, 71, 83. 20 S. Weil, P. G., pp. 188-9.

42 REVISTA ConatusConatusConatusConatusConatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 4 - NÚMERO 7 - JULHO 2010

FERREIRA, MARIA LUÍSA RIBEIRO. ENCONTROS E DESENCONTROS DE DOIS FILÓSOFOS “JUDEUS” -- SIMONE WEIL E ESPINOSA. P. 37-54.

rigorosa, com as noções mais específicas queela comporta. S. Weil, Attente de Dieu21.

Mais tarde, o que a levou a aproximar-sedo cristianismo foi não só uma atracção crescentepela figura de Jesus mas determinadasexperiências que a marcaram profundamente eque interpretou como um chamamentodefinitivo. Relata-as na referida carta IV ao PadrePerrin, uma longa missiva que intitula “BiografiaEspiritual”. Neste texto revela três momentos queviveu com grande intensidade e nos quais apresença de Deus se lhe manifestou de um modoavassalador, modificando-a de um modoirreversível. Foram eles os cânticos das mulheresdos pescadores portugueses, que com a suatristeza a fizeram compreender o cristianismocomo religião dos oprimidos, uma situação coma qual a sua vivência do trabalho fabril a tinhafamiliarizado; a experiência mística em Assis, em1937, onde pela primeira vez algo de muito fortea tocou, fazendo-a ajoelhar-se; finalmente, no anoseguinte, as cerimónias pascais na Abadia deSolesmes onde apesar de violentas dores de cabeçase sentiu penetrada pelo amor de Deus 22. Masembora sublinhe esta tripla experiência comodeterminante na sua “conversão” ao cristianismo,o facto é que sempre se considerou “dentro” dele:

[...] nunca me veio ao espírito que poderiaentrar no cristianismo. Tinha a impressão deter nascido no seu interior. Simone Weil,Attente de Dieu.23

Deixando o plano das mundividências eentrando no das teses, uma divergência queimediatamente os opõe é o conceito de Criaçãoque tanto um como outro interpretam de ummodo pouco ortodoxo.

Espinosa nega a criação pois Deus éidentificável com a Natureza. Desprovido de

personalidade e de transcendência a sua potênciamanifesta-se nos modos que são sua explicitaçãoe expressão. Tudo decorre de um modoabsolutamente necessário desse Deus Natureza,no qual não há qualquer plano para o mundopois coincide com ele.

Weil fala da loucura do acto criador.Entende-o como um acto de renúncia, de recuoe de retracção afastando-se também, embora poroutras razões, da relação que a ortodoxiaestabelece entre um Deus omnipotente e as suascriaturas. Para Weil, Deus aceitou diminuir-se,apagar-se voluntariamente, por amor aos outrosseres24. Deus e todas as suas criaturas é menosdo que Deus sozinho.

Entre as teses que ambos partilham damosum particular relevo à descentração do Universo,à ausência de finalidade no mesmo e à crítica aoantropocentrismo. Em Attente de Dieu Weil fala-nos de um Universo sem centro, destituído dequalquer finalidade, alheio a qualquer desígnio25.É uma ilusão pensar o homem como eixo fulcraldo Universo. Tal pensamento corresponde a umasituação imaginária que nos coloca no centro doespaço, do tempo e dos valores. É fruto de umaimaginação essencialmente mentirosa, que urgetravar:

Esvaziar-se de uma falsa divindade, negar-se asi próprio, renunciar a ser pela imaginação ocentro do mundo, discernir todos os pontos domundo como sendo igualmente centros e overdadeiro centro como estando fora do mundoé consentir o reino da necessidade, da mecânicana matéria e da livre escolha no centro de cadaalma. S. Weil, Attente de Dieu 26.

Também Espinosa critica o finalismo e oantropocentrismo como dois dos maiorespreconceitos que impedem o homem perceberadequadamente o Universo e o seu lugar nele.Ao criticá-los no apêndice do livro I da Ética,21 “Je suis pour ainsi dire née, j’ai grandi, je suis toujours

demeurée dans l’inspiration chrétienne. Alors que le nommême de Dieu n’avait aucune part dans mes pensées,j’avais à l’égard des problèmes de ce monde et de cettevie la conception chrétienne d’une manière explicite,rigoureuse, avec les notions les plus spécifiques qu’ellecomporte.”. S. Weil, At. D., Lettre IV, p. 37.22 Ibidem, pp. 41-43.23 “[…] il ne m’est jamais venu à l’esprit que je pourrais

entrer dans le christianisme. J’avais l’impression d’êtrenée à l’intérieur.”. Simone Weil, At. D., Lettre IV, p. 41.

24 At. D., p. 132.25 At. D., pp. 147, 169.26 “Se vider de sa fausse divinité, se nier soi-même,

renoncer à être en imagination le centre du monde,discerner tous les points du monde comme étant descentres au même titre et le véritable centre comme étanthors du monde, c’est consentir au règne de la necéssité,de la mécanique dans la matière et du libre choix au centrede chaque âme.”. At. D., p. 148.

43REVISTA ConatusConatusConatusConatusConatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 4 - NÚMERO 7 - JULHO 2010

FERREIRA, MARIA LUÍSA RIBEIRO. ENCONTROS E DESENCONTROS DE DOIS FILÓSOFOS “JUDEUS” -- SIMONE WEIL E ESPINOSA. P. 37-54.

reforça a ideia de um Deus desprovido decaracterística humanas. No prefácio do livro IIIapresenta o homem como elemento da Natureza,obedecendo às mesmas leis que todos osrestantes modos. No prefácio do livro IVidentifica Deus e a Natureza, a realidade e aperfeição, afastando definitivamente qualquerhipótese de transcendência.

Note-se que para S. Weil o homem ocupaum lugar especial no conjunto da natureza pelofacto de ser dotado de razão:

O homem é uma criatura pensante; está dolado dos que mandam pela força. Certamenteque não é dono e senhor da natureza [...]mas é o filho do dono, o menino da casa. S.Weil, L’ enracinement27.

Certamente que Espinosa não subscreveriaa expressão “o filho do dono” pois a ideia de Deuspai é-lhe estranha. Contudo ao atribuir aoshomens uma capacidade reflexiva confere-lhespoder sobre as outras criaturas e permite que asusamos para nossa utilidade, sustentando quenos devemos unir aos nossos semelhantes e nãoaos animais28.

Tanto um como outro falam da relaçãoTodo/partes no que concerne à situação dos sereshumanos no mundo. A felicidade destes consistenuma sintonia com o mesmo: “ Somos uma parteque deve imitar o todo”, diz-nos S. Weil, incitando-nos a descobrir e a acompanhar o ritmo doUniverso para respirarmos em sintonia com ele:

Associar o ritmo da vida do corpo ao ritmo domundo, sentir constantemente essa associação[...] sentir também essa troca perpétua com amatéria, pela qual o ser humano se banha nomundo. S. Weil, La Pesanteur et la Grâce 29.

Também em Espinosa há um desejo deidentificação com o Todo, que o leva a escrever:“Padecemos enquanto somos parte da Natureza,que não pode conceber-se por si sem as outraspartes”. Espinosa, Ética IV 30.

Para Simone Weil essa ligação da partecom o Todo levou-a a assumir a sua condiçãohumana e a partilhar do sofrimento de todos oshomens, nomeadamente dos desventurados edesvalidos. Dai a compaixão que demonstroupelos proletários e pelos camponeses, cuja vidapretendeu partilhar. A experiência dura de ascesee despojamento que fez nas fábricas e noscampos são significativas desse desejo de viveruma condição desumana que os pobres tão bemconhecem. De onde a necessidade de participarno sofrimento do mundo.

A ideia de uma ordem do mundo é umtema forte nos dois filósofos. Um e outrovalorizam a concatenação das causas, orelacionamento necessário entre elas e afelicidade decorrente da contemplação do todo.Weil fala-nos de causas interactuantes que naordem que formam nos apresentam uma unidadee uma coesão necessárias. É na contemplaçãodessa ordem que somos invadidos por umasensação de felicidade e que alcançamos a beleza,entendida como perfeição e verdade:

[...] todos os dias temos sob os nossos olhos oexemplo do universo, em que uma infinidadede acções mecânicas independentesconcorrem para constituir uma ordem, a qual,através das suas variações, se mantém fixa.Por isso amamos a beleza do mundo, porquesentimos que por detrás dela está a presençade algo semelhante à sabedoria quegostaríamos de possuir para satisfazer o nossodesejo de bem. L’ Enracinement31.

27 “L’homme est une créature pensante; il est du côté dece qui commande à la force. Il n’est certes pas seigneur etmaître de la nature […] mais il est le fils du maître, l’enfantde la maison.”. L’enracinement, p. 366.28 Et. IV, 37, scol.29 “Nous sommes une partie qui doit imiter le tout.” P.G., p. 221.

“Associer le rythme de la vie du corps à celui du monde,sentir constamment cette association […] “sentir aussil’échange perpétuel de la matière par lequel l’être humainbaigne dans le monde.”. Ibid. pp. 222-223.

30 “Nos eatenus patimur, quatenus Naturae sumus pars,quae per se absque aliis non potest concipi.”. Et. IV, prop.II, G. II, p. 212.31 “[…] nous avons tous les jours sous les yeux l’exemple

de l’univers, où une infinité d’actions mécaniquesindépendantes concourent pour constituer un ordre qui,à travers les variations, reste fixe. Aussi aimons-nous labeauté du monde, parce que nous sentons derrière elle laprésence de quelque chose d’analogue à la sagesse quenous voudrions posséder pour assouvir notre désir dubien.”. L’enracinement, p. 19.

44 REVISTA ConatusConatusConatusConatusConatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 4 - NÚMERO 7 - JULHO 2010

FERREIRA, MARIA LUÍSA RIBEIRO. ENCONTROS E DESENCONTROS DE DOIS FILÓSOFOS “JUDEUS” -- SIMONE WEIL E ESPINOSA. P. 37-54.

Espinosa não nos fala da beleza do mundopois o belo é um conceito convencionado peloshomens e variável segundo os contextos e asnecessidades. Mas partilha da noção de coesão(coerentia) entre todos os elementos sustentandoque a nossa realização passa pelo conhecimentoda ordem da Natureza, mediante o qualalcançamos a beatitude.

A PROCURA DAS RAÍZES - A DIALÉCTICA ENRAIZAMENTO/DESENRAIZAMENTO

Vivemos numa época privada de futuro.S. Weil 32

Talvez Espinosa não subscrevesse estaafirmação pois a revolução científica do séculoXVII proporcionou uma visão optimista dostempos vindouros. Mas inegavelmente que viveumomentos difíceis. A comunidade hebraica a quepertenceu conseguiu estabelecer-se na Holanda,uma terra de adopção que acolhera os judeus eque os tolerava desde que não perturbassem aordem pública. A adaptação dos marranosportugueses e espanhóis a este mundo nemsempre foi fácil, como podemos constatar pelocaso paradigmático de Uriel da Costa. Ohorizonte de Espinosa é mais amplo do que odos seus compatriotas, daí não se ter ressentidograndemente quando sujeito a um afastamentoforçado dos seus pares. De qualquer modo, omundo novo que se lhe abre é atravessado porconflitos: digladiam-se as diferentes confissõesreligiosas, os partidários da democracia lutamcontra os defensores do poder absoluto, ospatriotas holandeses combatem os espanhóis, osdefensores da tradição insurgem-se contra asfilosofias incipientes que aceitam como normametodológica os preceitos cartesianos e de tudoduvidam. Nesse cruzamento de culturas a Éticaé uma tentativa de criar um edifício estávelquando tudo parece desmoronar-se. As suasprimeiras definições são princípios fundadores,a partir dos quais tudo se encadeia e ganhasentido. O “mos geometricus” é a tábua desalvação, a nova norma de verdade que nospermite manter um chão firme. É um tempo

sombrio de guerras entre nações, de lutasfratricidas no interior de um mesmo Estado, deperseguições religiosas, de denúncias e de medos.É significativa a recusa do filósofo a um convitepara leccionar em Heidelberg33, proposta que lheresolveria todos os problemas económicos masque ele rejeita em nome de uma tranquilidadede espírito. O filósofo tem consciência daperigosidade das suas teses no contexto deintolerância que o rodeia. O anel com que lacraa sua correspondência tem gravado “Caute”lembrando a necessária prudência para se podersobreviver sem grandes percalços.

Simone Weil escreve algumas das suasobras fundamentais numa França ocupada naqual ruíram as colectividades tradicionais ligadasà família, à profissão, à cidade e onde o sentimentonacional apenas tem como ancoragem arecordação e a esperança. Ao querer perceber afacilidade com que os franceses capitularamperante a invasão nazi traça uma genealogia quevai da Antiguidade ao século XX e estabelececomparações entre o império romano que detestae o poder de Hitler que igualmente abomina.Assim percorre a história de França para explicaro modo como esta se foi afirmando como naçãoe faz o diagnóstico da crise vivida neste paísdepois da primeira guerra mundial. Conclui quegrande parte dos males da sua época resulta deum desenraizamento. O que leva a um profundomal estar e traz sequelas, como por exemplo aagressividade e a violência. De onde a guerra.

Acreditando que a França sairá vencedorae procurando soluções para os anos futuros, Weilenfatiza a necessidade de recriar novosenraizamentos, substituindo os que se revelaramfrágeis e ultrapassados. A realidade humana estádependente do enraizamento de cada homemnum passado e da perspectiva que deverá ter deum futuro. Para todos se exige um universoreferencial que deverá ser mais lato do que afamília e o círculo de amigos. A filósofa usa ametáfora agrária da planta e do jardim, na buscaincessante das plantas por um solo que asalimente. A alma humana é como uma plantaque busca um solo fértil. A estrutura social é osolo que nos protege e permite crescer.

32 S. Weil, in Sylvie Courtine-Denamy, Simone Weil. Laquête des raciness célestes, ed. cit., p. 39.

33 Vj. a Carta XLVIII a Fabritius, de 30 de Março de1673.

45REVISTA ConatusConatusConatusConatusConatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 4 - NÚMERO 7 - JULHO 2010

FERREIRA, MARIA LUÍSA RIBEIRO. ENCONTROS E DESENCONTROS DE DOIS FILÓSOFOS “JUDEUS” -- SIMONE WEIL E ESPINOSA. P. 37-54.

Há desenraizamento sempre que háconquista militar e deportações, factores a queWeil é sensível pois fazem parte das suas vivências.Mas também considera o desenraizamentoprovocado pelo poder económico, pela influênciaestrangeira que nos impõe um modo de vidaestranho à nossa cultura, pelas relações sociaisno interior de um mesmo país, pelo dinheiro queela considera um veneno. O desenraizamentoprovoca uma letargia espiritual, que é umaespécie de escravatura. A situação dos operáriosque Weil viveu na pele, não lhes dá um sentidode classe mas antes uma enorme fadiga que osimpede de pensar e de agir.

A filósofa analisa diferentes manifestaçõesde desenraizamentos, dando um particular ênfaseaos operários e aos trabalhadores rurais cujosofrimento procura minorar apresentandosoluções concretas que passem pelo acesso dosmesmos à cultura. É tocante o programa queapresenta para tornar mais suave a integração nomundo do trabalho – a abolição das grandesfábricas, a modificação dos locais de produçãotornando-os espaços agradáveis, a exigência deque os operários sejam donos dos seusinstrumentos de trabalho, etc.

A experiência vivida da fome, daexaustão, de sucessivas humilhações, damonotonia, da ausência de horizontes,tornaram-na particularmente sensível àcondição do operariado. Defensora do carácterredentor do trabalho, não admite que ele sejaum labor servil e aviltante, causador de angústiae de tristeza. Do trabalho no campo queexperimentou concretamente tira a conclusão deque só poderão ser senhores da natureza e daterra aqueles que sentiram na pele o sofrimentoe o cansaço. Propõe-se insuflar nos camponesesa espiritualidade perdida. A situação quepresentemente vivem leva ao desencanto. Urgetirá-los desse fosso, dando-lhes terra – o velholema da terra a quem a trabalha.Apresentatambém para eles um programa de vida queatenda à sua formação, cultura e rituais próprios.É importante dar reformas aos idosos eprovidenciar para que jovens e mais velhospossam ter acesso a uma instrução especializada.

O enraizamento é um bem indispensávelaos humanos e Simone Weil inclui-o no quechama as necessidades da alma. Examina-as

exaustivamente na primeira partes da sua obral’ enracinement, com um destaque especial paraa liberdade. Para além desta necessidades elencaoutras como por exemplo a responsabilidade, quefaz equivaler ao desejo de ser útil. Cultivandosempre a linha do despojamento e do sacrifício,Weil valoriza as obrigações e secundarisa osdireitos. As primeiras são eternas pois constituemo destino do ser humano; os segundos de nadaservem quando não são reconhecidos.

Também entende como necessidades daalma a igualdade, pela qual todos devem sertratados com o mesmo respeito; a obediência quenão confunde com escravatura embora impliqueo cumprimento das regras estabelecidas e orespeito pelos dirigentes; o castigo que defendecomo possibilidade concedida aos criminosos dese reintegrarem na sociedade; a segurança queafasta o medo, essa doença que paralisa a alma;a propriedade privada e colectiva das quais todosdevem usufruir; o risco, necessário para nosmantermos despertos. Mas acima de todas essasnecessidades coloca a necessidade de verdade,a única que classifica como sagrada.

Weil vive a dialéctica entre enraizamentoe desenraizamento como um processo sempreem curso, numa atitude nómada que se recusa aassentar e a ganhar raízes, rejeitando todas aspossibilidades de enraizamento que examinou –adesão a grupos, a partidos, a ideologias, aIgrejas. avessa ao sentimento do “nós”, a suaabsoluta solidão impede-a de se integrar emqualquer corpo social, por ser:

Parece contraditório com o que vos escrevisobre a minha necessidade de fusão comqualquer meio humano pelo qual passe, e denele desaparecer; mas na realidade trata-sede um mesmo pensamento; desaparecer nelenão é fazer parte dele, e a capacidade de mefundir no todo implica que eu não faça partede nada. S. Weil, Attente de Dieu34.

E no entanto Weil defende o enraizamento comomotor da vida e da filosofia.

34 “Cela semble contradictoire avec ce que je vous écrivaissur mon besoin de me fondre avec n’ importe lequel milieuhumain où je passe, d’y disparaître; mais en réalité c’estla même pensée; y disparaître n’est pas en faire partie, etla capacite de me fondre dans tout implique que je nefasse partie d’aucun.”. S. Weil, At. D., p. 26.

46 REVISTA ConatusConatusConatusConatusConatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 4 - NÚMERO 7 - JULHO 2010

FERREIRA, MARIA LUÍSA RIBEIRO. ENCONTROS E DESENCONTROS DE DOIS FILÓSOFOS “JUDEUS” -- SIMONE WEIL E ESPINOSA. P. 37-54.

Num contexto muito diferente e servindo-se de outra linguagem, Espinosa fala-nos danecessidade humana de união e de sintonia poisa realização de cada um (a que o filósofo chamasalvação) exige como plataforma inicial umaintegração na cidade. Embora não use o termo,podemos encontrar nele um desejo deenraizamento que se processa a dois níveis – ocomunitário e o cósmico. O primeiro tem comopalco a actividade política e prende-se com aconvivência com os outros homens. O segundorealiza-se no registo ontológico, gnosiológico eético e diz respeito à união íntima com DeusNatureza, fonte de suprema felicidade.

A actividade política é imprescindível aoshomens pois eles não vivem isolados e beneficiamda convivência recíproca. O homem comum rege-se pela paixão e pela imaginação, sentenecessidade de se adaptar aos outros, no que éajudado por um governo é estável com leis justas.O “conatus” que habita cada um é uma forçaafirmativa, um poder em acto que pode encontrarno outro um impedimento para a sua expansãoplena mas que no entanto percebe nesse outroalguém que o complementa e lhe é útil. Aintegração num corpo social e político onde cadaum tenha liberdade de pensar e de agir, écondição imprescindível para a realizaçãoindividual. Por isso Espinosa vai analisar os váriostipos de governo e elege a democracia como oque melhor permite uma concertação deinteresses pois garante a obediência às leis e aosgovernantes sem que sejam alienados os direitosessenciais e a autonomia individual. O melhorEstado é o democrático pois nele não há rupturaentre a potência do Todo e as potênciasindividuais. Mesmo o sábio, que se distingue dohomem comum por perspectivar os problemas aum nível racional, não prescinde dessa integraçãona cidade e assim abdica de alguns privilégiospara poder beneficiar da convivência com os seuspares:

[...] o homem dirigido pela razão é mais livrena cidade onde vive segundo o decretocomum, do que na solidão onde só a si próprioobedece. Et. IV, LXXIII 35.

O sábio recebe dos seus semelhantes oauxílio de que necessita para sobreviver pois:“[...] nada é mais útil ao homem do que ohomem” 36.

É a sociedade que impede aos homens umconstante recomeço:

A sociedade é extremamente útil e tambémabsolutamente necessária, não só porque nosfaz viver seguros dos inimigos como tambémnos faz tirar proveito de muitas coisas; defacto, se os homens não quisessem entreajudar-se, faltar-lhes-ia tempo e capacidadepara, na medida do possível, se sustentareme conservarem[...]. TTP, V37.

Espinosa encara a vivência política comoptimismo considerando-a um factor de realizaçãoda natureza própria. A sociabilidade não é algoimposto pois está inscrita no “conatus” individual:

[...] porque .nenhum homem na solidão temforça para se defender e obter as coisasnecessárias à vida, daí resulta que os homenstêm, do estado civil, um desejo natural e quenão pode dar-se que tal estado seja nuncainteiramente dissolvido. TP, VI, 138.

Quando devidamente orientado, essedesejo leva à feitura de leis que permitem aoshomens uma convivência sã, salvaguardando osdireitos individuais e colectivos e a todosbeneficiando. A passagem do estado de naturezapara o estado civil implica o estabelecimento detais leis. É a sociedade que dá ao conatuspossibilidades para se desenvolver. É ela queconfere ao homem uma dimensão integrativa,essencial para uma vida ex ductu rationis. A

35 “Homo qui ratione ducitur, magis in civitate, ubi excommuni decreto vivit, quam in solitudine, ubi sibi soliobtemperat, liber est.”. Et. IV, prop. LXXIII, G.II, p. 264.

36 “Homini igitur nihil homine utilius...”. Et. IV, prop.XVIII, schol, G. II, p. 223.37 “Societas non tantum ad secure ab hostibus vivendum,

sed etiam ad multarum rerum compendium faciendum,perutilis est, et maxime etiam necessaria; nam, nisi hominisinvicem operam mutuam dare velint, epsis et ars, et tempusdificeret ad se, quoad ejus fieri potest, sustentandum etconservandum...”. T.T.P, cap. V, G. III, p. 73.38 “Cum autem solitudinis metus omnibus hominibus insit,

quia nemo in solitudine vires habet, ut sese defendere, &quae ad vitam necessaria sunt, comparare possit, sequiturstatum civilem homines natura appetere, nec fieri posseut homines eundem unquam penitus dissolvant.”. TP, cap.VI, § 1, G III, p. 297.

47REVISTA ConatusConatusConatusConatusConatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 4 - NÚMERO 7 - JULHO 2010

FERREIRA, MARIA LUÍSA RIBEIRO. ENCONTROS E DESENCONTROS DE DOIS FILÓSOFOS “JUDEUS” -- SIMONE WEIL E ESPINOSA. P. 37-54.

integração na cidade e a obediência às leis trazao homem comum uma pacificação e harmoniaque lhe dão felicidade. Daí podermos falar de umenraizamento social que está ao alcance de todose que a todos faz aceder à salvação. Podemos dizerque há uma salvação para todos – quem se integrenuma sociedade justa e cumpra as leis da cidadevive como um justo, está em sintonia com a razãoe, consequentemente, com as leis da Natureza.

A maioria contenta-se com a participaçãoque lhes é proporcionada pelas leis da cidade.Contudo, Espinosa busca um enraizamento maisfundo, propondo um itinerário individual que dizrespeito àqueles que aceitam o repto de uma “viaperardua” 39.

A busca integrativa do sábio é diferenteda do homem comum. A união do sábio com todaa Natureza implica o conhecimento da nossarelação com ela e simultaneamente exige umaprática de vida que nos dê acesso ao Todo. Trata-se de um processo em dois registos – gnosiológicoe ético. Enquanto filósofo, Espinosa exige para siuma integração que não se limite à aceitaçãoobediente das leis civis. No livro V da Éticaapresenta-nos o caminho que o sábio deve trilharem ordem à salvação. É um itinerário de auto-conhecimento que passa pelo reconhecimento daspaixões, procura perceber as suas causas e tentageri-las de modo a transformá-las tanto quantopossível em paixões de alegria. Ciente de que umapaixão não se combate com a razão mas de que,no entanto, é possível anulá-la com uma paixãomais forte, Espinosa estabelece um confronto deafectos passionais para os quais vai procurar umaideia adequada, de modo a poder orientá-los paraalgo que nos traga poder. Assim na proposiçãoXIV de Et. V, o filósofo propõe que orientemostodas as nossas paixões para a ideia de Deus,tomando-a como referência de todas elas:

A mente pode fazer com que todas as afecçõesdo corpo, ou seja, todas as imagens das coisas,se refiram à ideia de Deus. Et. V, prop. XIV40.

Trata-se de um trabalho sobre o mecanismopassional que passa pela libertação das ideias

confusas. Quanto melhor conhecemos as nossaspaixões melhor as integramos numa sequênciacausal, percebendo o que as originou e como fazerpara nos desprendermos delas. É um processo queimplica o conhecimento da nossa integração noTodo, ou seja, em Deus ou na Natureza. E esseconhecimento progressivo, fruto de um esforço ede uma descentração leva-nos a aceitar que somospartes da Natureza e não o centro da mesma. Aoconhecermo-nos enquanto parte de um todo,conhecemos melhor esse todo e somos levados aamá-lo. Daí Espinosa sustentar que:

Quem se conhece a si mesmo clara edistintamente alegra-se, e isto com oacompanhamento da ideia de Deus. Et. V,prop. XV, dem41.

Os efeitos estabilizadores que oconhecimento da ideia de Deus opera em nóslevam a que consigamos situarmo-nos num outroplano - a dimensão da eternidade:

[...] As coisas são concebidas por nós comoactuais, de duas maneiras: ou bem enquantoque concebemos a sua existência em relaçãoa um tempo e a um lugar determinados, oubem enquanto as concebemos como contidasem Deus e como seguindo da necessidade danatureza divina. Et. V, XXIX, dem42.

A beatitude reside em ver as coisas a partirde Deus. Usando a terminologia weiliana, é nissoque consiste para Espinosa o nosso enraizamento,a sintonia com o todo, percebendo o lugar quenele ocupamos. Poucos o conseguem mas a essesé concedida a salvação.

A COERÊNCIA DO PENSAR E DO AGIR

É importante fazer um diagnóstico e agirem conformidade com ele. O homem tem quereconquistar a sua capacidade de pensar e fá-lo

39 Et. V, prop. XLII, sch., G. II, p. 308.40 “Mens efficere potest, ut omnes Corporis affectiones,

seu rerum imagines ad Dei ideam referantur”. Et. V, prop.XIV, G. II, p. 290.

41 “Qui se suosque affectus clare et distincte intelligit,laetatur, idque concomitante idea Dei.”. Et. V, prop. XV,dem., G. II, p. 290.42 “Res duobus modis a nobis ut actuales concipiuntur,

vel quatenus easdem cum relatione ad certum tempus etlocum existere, vel quatenus ipsas in Deo contineri, et exnaturae divinae necessitate consequi concipimus.”. Et. V,prop. XXIX, dem., G. II, p. 298.

48 REVISTA ConatusConatusConatusConatusConatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 4 - NÚMERO 7 - JULHO 2010

FERREIRA, MARIA LUÍSA RIBEIRO. ENCONTROS E DESENCONTROS DE DOIS FILÓSOFOS “JUDEUS” -- SIMONE WEIL E ESPINOSA. P. 37-54.

através da acção. Simone Weil não é uma teórica,analisa as situações mas coloca a tónica na“praxis”, que nos permite inserir nelas eeventualmente modificá-las. É pela acção que arealidade atinge a sua plenitude, até porque aacção provoca a ocorrência de estados de almae de sentimentos que permitem compreendermelhor os móbeis que a determinaram. Pelaacção o amor que se encontra no coração doshomens ganha corpo:

A acção confere a plenitude da realidade aosmóbeis que a produzem. A expressão dessesmóbeis, entendida a partir de fora, apenas lhesconfere uma semi-realidade. A acção tem umavirtude muito diferente. L’enracinement43.

A dialéctica entre o pensar e o agir deveráser norteada pela coerência. Daí as longas eexaustivas análises que Simone Weil empreende,na tentativa de traçar uma arqueologia para umasituação que muito concretamente vive - a perdade independência dos franceses. Paralelamentepretende gizar um programa de acção, compropostas minuciosas de reformas nas váriasinstituições políticas (constituição, polícia,tribunais, etc.) Por isso a última parte, de L’enracinement, é prospectiva. Nela apresenta umprograma para uma França libertada do jugoalemão, facto do qual nunca duvida. Os francesespoderão recuperar a sua dignidade e autonomiase optarem por um bem absoluto, que não sesubmeta à utilidade. Para tal a filósofa apresenta,a partir do seu exílio londrino, um programaprático de actuações favoráveis ao advento dessenovo espírito. Coloca como meta primeira aprocura da verdade pois há que fazer descersobre nós o espírito da verdade. Hoje apenas nosé mostrada a força bruta. Para definir a alma deum país não bastam a raça, a língua e osinteresses comuns, há que encontrar umprincípio espiritual. É importante resgatar averdade que está presente na ciência, na história,na política, no trabalho e na religião, o que passapela atenção à ordem e à beleza do mundo.Também nos adverte sobre a necessidade de um

novo patriotismo, que valorize o sentimento decompaixão. Tal como os micro organismoscarecem de um solo propício, os humanosprecisam de uma pátria que se coloque comomeio natural onde possam florescer. Há que tirarensinamentos das situações vividas sob aocupação para fomentar a compaixão pela pátria.Weil considera que cada indivíduo deve ao seupaís a totalidade das suas forças, inclusive aprópria vida44.

O mesmo desejo de aliar uma teoria e umaprática está presente no filósofo holandês. Emtodas as suas obras as análises teóricas têm porobjectivo uma mudança de vida. Esta orientaçãopara uma alteração do “status quo”, seja eleindividual seja social, manifesta-se logo nos seusprimeiros escritos. Assim, o Tratado da Reformado Entendimento, apresenta-se como procura deuma conduta que permita alcançar uma“suprema alegria”. Propõe-se alcançar esta metacom outros que partilhem do mesmo desideratopois os homens precisam uns dos outros paraviverem bem. No § 14 desta obra Espinosaapresenta de um modo sintético as suasintenções, ficando patente seu desejo de alterartanto o ser próprio como a sociedade:

Eis pois o fim para que tendo, a saber, adquiriruma tal natureza e esforçar-me para quemuitos a adquiram comigo; isto é, à minhafelicidade pertence empenhar-se para quemuitos entendam o mesmo que eu, a fim de queo seu entendimento e os seus desejos coincidamperfeitamente com o meu entendimento edesejo; para isso é necessário ter da Natureza acompreensão suficiente para adquirir essa talnatureza; em seguida é necessário formar umasociedade como é de desejar, de modo queo maior número chegue a esse ponto commaior facilidade e segurança. Ibidem,Espinosa TRE § 1445.

43 “L’action confère la plénitude de la réalité aux mobilesqui la produisent. L’expression de ces mobiles, entenduedu dehors, ne leur confere encore qu’ une demi-réalité.L’action a une tout autre vertu”. L’enracinement, p. 263.

44 Ibidem, p. 209.45 “Hic est itaque finis, ad quem tendo, talem scilicet

naturam acquirere, et, ut multi mecum eam acquirant,conari; hoc est de mea felicitate etiam est operam dare,ut alii multi idem atque ego intelligant, ut eorumintellectus, et cupiditas prorsus cum meo intellectu, etcupiditate conveniant; utque hoc fiat, necesse est tantumde Natura intelligere, quantum sufficit, ad talem naturamacquirendam; deinde formare talem societatem, qualisest desideranda, ut quamplurimi quam facilime, et secureeo parveniant.”. T.I.E., G. II, p. 8.

49REVISTA ConatusConatusConatusConatusConatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 4 - NÚMERO 7 - JULHO 2010

FERREIRA, MARIA LUÍSA RIBEIRO. ENCONTROS E DESENCONTROS DE DOIS FILÓSOFOS “JUDEUS” -- SIMONE WEIL E ESPINOSA. P. 37-54.

A ideia de que devemos trabalhar para odesenvolvimento do nosso ser, potencializandoao máximo as virtualidades do “conatus” de cadaum, é sempre acompanhada da necessidade deum empenhamento social, de modo a que hajasintonia entre os vários “conatus”. Nas obrassubsequentes, nomeadamente nas de carácterpolítico, o filósofo analisa minuciosamente osvários tipos de governo, aconselhando-nos ademocracia como o regime que mais favoreceesse entendimento geral. E mesmo na Ética, quemuitos lêem essencialmente numa perspectivametafísica e gnosiológica, a vertente práxica estápresente pois o lugar que propõe ao homem naNatureza exige uma conquista na qual orelacionamento com os outros tem um papeldeterminante.

UMA RELIGIOSIDADE DEPURADA

É pacífico classificar Simone Weil dereligiosa, ou mesmo de mística. É discutível (masnão erróneo) fazê-lo relativamente a Espinosa.De qualquer modo é lícito falar de ambos comopossuidores de uma religiosidade depurada edefensores de uma concepção diferente de Deus,o que levou a que fossem olhados comdesconfiança por parte da “intelligentsia” daépoca. De facto, ambos criticam a imagem deum Deus entendido à medida do homem,resultado das suas projecções e utilizado emfunção dos seus interesses particulares.

Para Weil Deus é um pólo para o qualconvergem os desejos dos homens. Em Lapesanteur et la grâce recupera de um modooriginal o argumento ontológico e fala-nos deuma atracção para algo mais elevado do que nós,de uma orientação do pensamento que nosimpele para uma realidade superior, que nos levaà superação das nossas fraquezas. E aceita comoinquestionável a força desse apelo, fundadonuma experiência vivencial 46.

O Deus da filósofa, tal como o deEspinosa, é despersonalizado, alheio às relaçõespessoais – o sol nasce para todos, as desgraçasnão poupam os justos, a graça é universal. Numoutro registo, mais iconoclasta, o autor da Éticadenuncia as concepções imaginárias da

divindade e sublinha como particularmentenefastos dois preconceitos: o finalismo e oantropomorfismo. Sintetiza esta concepção naabertura do Apêndice ao livro I da Ética, um textodeterminante no qual ataca as concepções maiscomuns da divindade, considerando-as errónease mesmo perigosas, pela capacidade demanipulação que encerram. Por isso clarificaaquilo que entende serem as propriedadesessenciais de Deus:

[...] que existe necessariamente; que é único;que é e existe pela mesma necessidade da suanatureza; que é a causa livre de todas as coisas;que tudo está em Deus e depende dele [...];enfim, que tudo foi determinado por Deus, nãocertamente pela liberdade da vontade [...] maspela natureza absoluta de Deus, quer dizer,pela sua potência infinita. Et. I, Apêndice47.

Segundo ele não há um plano divino parao universo nem para cada um dos seres humanos.Tudo é regido por uma mesma necessidade. Éerróneo recorrer à vontade de Deus para justificaro que nos acontece – “a vontade de Deus, esseasilo de ignorância”48.

Também S. Weil identifica Deus com a ordemdo mundo quando escreve: “ A Providência divinanão é uma perturbação, uma anomalia na ordemdo mundo. É a própria ordem do mundo”49. Quantoa uma vontade divina constantemente interpeladapelos pedidos humanos, a tese espinosana pareceestar presente em passos como este:

Há tanta conformidade à vontade de Deus numafolha que cai sem ser vista quanto num dilúvio.No plano dos acontecimentos, a noção deconformidade com a vontade de Deus é idênticaà noção de realidade. L’enracinement50.

46 P. G., p. 170.

47 “quod necessário existit; quod sit unicus; qud ex solasuae naturae necessitate site t agat; quod sit omnium rerumcausa libera, et quomodo; quod omnia in Deo sint […] etdenique quod omnia in Deo fuerint praedeterminata, nonquidem ex libertate voluntatis […] sed absoluta Dei natura,sive infinita potentia.”. Et. I, Appendix, G. II, p. 77.48 “ignorantiae asylum”. Et. I, Apendix, G. II, p. 81.49 “La Providence divine n’est pas un trouble, une

anomalie dans l’ordre du monde. C’est l’ordre du mondelui meme.”. L’enracinement, p. 354.50 “Il y a autant de conformité à la volonté de Dieu dans une

feuille qui tombe sans être vue que dans le déluge. Sur le plandes événements, la notion de conformité à la volonté de Dieuest identique à la notion de réalité.” L’enracinement, p. 341.

50 REVISTA ConatusConatusConatusConatusConatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 4 - NÚMERO 7 - JULHO 2010

FERREIRA, MARIA LUÍSA RIBEIRO. ENCONTROS E DESENCONTROS DE DOIS FILÓSOFOS “JUDEUS” -- SIMONE WEIL E ESPINOSA. P. 37-54.

Ao reforçar a impassibilidade divina face aouniverso e ao destino humano, recorre à matemáticacomo ordem do mundo: “A matemática eterna,essa linguagem com dois fins, é o material comque é tecido a ordem do mundo.”. L’enracinement51.

Também Espinosa se congratula porquea matemática lhe deu a possibilidade de ter umavisão adequada da estrutura do mundo:

[...] o género humano seria para sempreignorante da verdade se a matemática,ocupada não com os fins mas apenas com asessências e com as propriedades das figurasnão tivesse mostrado aos homens uma outranorma de verdade. Et. I, Apêndice52.

A Ética espinosana é construída dedutivamente,“more geometrico” porque a linguagemmatemática é a que melhor se adapta à cadeiade causas e de efeitos que constitui a realidade.Talvez por isto ambos olhem o milagre comdesconfiança. No dizer de Weil acreditar emmilagres é fonte de impiedade53. Há umanecessidade implacável que rege os fenómenose que os justifica. Assim se explica o mal quenada tem a ver com um Deus, irredutível àmedida humana. A ideia de provar Deus pelaviolação das leis da natureza só pode ter surgidoem espíritos doentes54. Dizer que um milagrecontraria as leis da natureza é absurdo, tal comoé absurdo dizer que ele resulta de um desejoparticular de Deus. Um milagre pode provir dobem ou do mal. Há milagres diabólicos55. O únicofacto sobrenatural neste mundo é a santidade equem se aproxima dela.

Também Espinosa é avesso à ideia demilagre. Para lá de um conceito de Deuscoincidente com a ordem necessária do mundoe, por consequência, contraditório com a ideiade uma alteração gratuita, o filósofo consideraque os milagres são utilizados pelo poder vigentepara dominar os ignorantes. Assim dedica

especificamente a este tema o cap. VI do TratadoTeológico-Político, reiterando que “na naturezanão existe nada que seja contrário às suas leisuniversais, ou até que não esteja de acordo ouque não seja uma consequência delas”56. Osacontecimentos que consideramos inexplicáveissão os que escapam à compreensão humana.As Escrituras referem-nos recorrendo aosobrenatural porque se servem de umalinguagem susceptível de levar o vulgo à devoção,apelando aos aspectos imaginativos do intelecto.Porque, segundo o filósofo: “Tudo o que écontrário à natureza é contrário à razão; e o queé contrário à razão é absurdo e deve, porconseguinte, ser repudiado”57.

A ideia de Deus aparece muitas vezesdeturpada nas diferentes religiões, daí a críticaque Espinosa lhes faz. Para Simone Weil areligião identifica-se com a verdade mas hoje oespírito de verdade está ausente dela 58. Aspessoas são religiosas por terem necessidade dese sentir protegidas, o que é um erro. Deus dá-seao homem gratuitamente e este não tem que odesejar 59. O pragmatismo degradou tudo, mesmoa fé que deverá consistir essencialmente nacerteza de que o bem é único.

A crítica que ambos fazem às religiõespositivas não esconde uma simpatia pelocristianismo, acentuada em Weil e maismoderada em Espinosa. Ambos são sensíveis àfigura de Cristo. Para Espinosa Cristo é umhomem que admira. No TTP classifica-o como“a boca de Deus”60, pois nele se manifestoumaximamente a sabedoria divina. Numa carta aOldenburg chama-lhe “sabedoria eterna de Deus”e “filho de Deus” 61. No entanto esta últimadesignação é metafórica. Na verdade o filósofolevanta reservas ao dogma da Incarnação,considerando-o um ilogismo:

51 “La mathématique eternelle, ce langage à deux fins, est l’etoffedont est tissé l’ordre du monde”. L’enracinement, p. 368.52 “nisi Mathesis, quae non circa fines sed tantum circafigurarum essentias et proprietates versatur, aliam veritatisnormam hominibus ostendisse.”. Et. I, Appendix, G. II, p. 79.53 P. G., p. 177.54 L’enracinement, p. 339.55 Ibidem, p. 235.

56 “Nihil igitur in natura contingit, quod ipsius legibusuniversalibus repugnet; at nec etiam aliquid, quod cumiisdem non convenit, aut ex iisdem non sequitur.”. T.T.P.,cap.VI, G. III, p. 83.57 “[...] quicquid enim contra naturam est, id contra

rationem est, et quod contra rationem, id absurdum est,ac proinde etiam refutandum.”. Ibidem, p. 91.58 L’enracinement, p. 316.59 Ibidem, p. 313.60 “os Dei”. T.T.P., cap. IV, G. III, p. 64.61 “Dei aeterna sapientia […] filium dei”. Ep. XXXIII a

Oldenburg, G. IV, p. 308.

51REVISTA ConatusConatusConatusConatusConatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 4 - NÚMERO 7 - JULHO 2010

FERREIRA, MARIA LUÍSA RIBEIRO. ENCONTROS E DESENCONTROS DE DOIS FILÓSOFOS “JUDEUS” -- SIMONE WEIL E ESPINOSA. P. 37-54.

Quanto ao que acrescentam certas Igrejas, asaber, que Deus tomou a natureza humana,preveni expressamente que ignoro o quequerem dizer; mais, para falar francamente, asua linguagem parece-me tão absurda comose disséssemos que um círculo revestiu a formade um quadrado. Carta LXXIII a Oldenburg62.

De igual modo recusa os dogmas daressurreição e da transsubstanciação, bem comoo da Eucaristia. Adere sim ao espírito de Cristocomo mediador para a sabedoria, como provade que é possível neste mundo alcançar a uniãocom Deus.

Para Weil Cristo situa-se em dois registos– o Cristo da multidão e o da intimidade. Oprimeiro não lhe provoca grande interesse – é otaumaturgo que cura enfermos e ressuscitamortos. A ideia de um ser revestido de poderessobrenaturais não a impressiona grandementepois considera que também houve quem ostivesse noutras religiões e civilizações 63. O Cristoque a toca e que considera verdadeiro, é aqueleque tem o sentimento de ter sido abandonadopor Deus, o que agoniza e que sofre 64. O encontrocom este Cristo leva-a a recuperar todo o passadoem função dele. Profundamente imbuída decultura clássica, assimila Orestes a Cristo,considera que a Ilíada e a Odisseia estão banhadaspor uma luz cristã, que Dionísio e Osíris são opróprio Cristo, que Platão é um místico, etc.

A filósofa francesa admira o espírito dosEvangelhos, que classifica como uma físicasobrenatural da alma humana. Mas ao traçar agenealogia do cristianismo analisa severamenteas transformações que este sofreu quando passoua religião oficial do Império Romano. Ocristianismo foi marcado negativamente por umainfluência hebraica e quando se tornou religiãooficial fez de Deus um duplo do Imperador,apropriou-se do totalitarismo da civilizaçãoromana, arrogou-se o poder de anatemizar e deexcluir, expulsou os que não pensavam em

conformidade com a verdade estabelecida. S. W.manifesta as suas reservas à Igreja católica noque ela tem de segregador:

O que me faz medo é a Igreja enquanto coisasocial [...]. Tenho medo desse patriotismo daIgreja que existe nos meios católicos. Attentede Dieu65.

Também a perturba o carácter integradorda Igreja, o facto de ter havido santos queaprovaram as Cruzadas e a Inquisição.Considera-se afastada do espírito do Concílio deTrento mas próxima dos textos do NovoTestamento e dos escritos dos místicos. Na longacarta ao padre Couturier expõe as suasreticências quanto a tornar-se católica. É umlongo texto com trinta e cinco interrogações paraas quais pede uma resposta. Considerando-seherética pretende o aval do Padre para saber seapesar destas dúvidas poderá aderir aocristianismo. O Padre não lhe responde e pensoque o seu silêncio é significativo.

Também Espinosa encara o cristianismocom alguma simpatia. Integra-o naquilo quechama a vera religio, um código ético que valorizaa justiça e a caridade e que nos ajuda a viverbem. O cristianismo apresenta-se como umamoral universal, susceptível de ser aceite portodos os homens e contribuir para um aumentode ser em cada um. É uma religião que despojade todo o elemento sobrenatural e quetransforma num código ético. Encara-a como asequência lógica do judaísmo, do qual superouos particularismos. Mas enquanto fé não podeconfundir-se com a filosofia e muito menossubstituir-se-lhe.

A ATENÇÃO A DEUS, A SALVAÇÃO

O desejo orientado para Deus, é a única forçacapaz de fazer elevar a alma. Attente de Dieu 66.

Vimos que tanto Espinosa como Weildefendem uma religiosidade depurada, uma

62 “Caeterum quod quaedam Ecclesiaes his addunt, quodDeus naturam humanum assumpserit, monui expresse,me, quid dicant, nescire, imo, ut verum fatear, non minusabsurde mihi loqui videntur, quam si quis mihi diceret,quod circulus naturam quadrati induerit”. Ep. LXXIII aOldenburg, G. IV, p. 309.63 L’enracinement, p. 338.64 P. G., p. 154.

65 “Ce qui me fait peur c’est l’Eglise en tant que chosesociale […] J’ai peur de ce patriotisme de l’Eglise qui existedans les milieux catholiques.”. At. Dieu, p. 24.66 “Le désir orienté vers Dieu est la seule force capable de

faire monter l’âme.”. At. D., p. 91.

52 REVISTA ConatusConatusConatusConatusConatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 4 - NÚMERO 7 - JULHO 2010

FERREIRA, MARIA LUÍSA RIBEIRO. ENCONTROS E DESENCONTROS DE DOIS FILÓSOFOS “JUDEUS” -- SIMONE WEIL E ESPINOSA. P. 37-54.

concepção de um Deus sem rosto ao qual nãopodemos nem devemos exigir um amorpersonalizado. Um e outro falam de salvaçãomas, tal como acontece com outros conceitos,dão-lhe uma conotação diferente do habitual.

Para Weil, a atitude que permite asalvação não se assemelha a nenhumaactividade; é uma espera atenta67. A temática da“atenção” é determinante no pensamentoweiliano sendo um elemento imprescindível paraa salvação. Há que orientar para Deus toda aatenção de que a alma é capaz.

Embora não use o termo “atenção”, anecessidade da atenção a Deus está presente emEspinosa, sobretudo no livro V da Ética onde nosé proposta uma terapia das paixões com oobjectivo de alcançar a beatitude. Trata-se deum processo de disciplina passional, de umtrabalho sobre as paixões que leva a que assubstituamos umas pelas outras, de modo a quetodas convirjam para a ideia de Deus. Esta impõe-se com uma força irrecusável, como uma espéciede íman que polariza os afectos estabilizando-ose orientando-os para o que permite uma realizaçãoplena, ou seja, o “amor intellectualis Dei”.

Quando fala das formas implícitas do amora Deus68 Weil também alerta para a existência demediações. Estas assumem o estatuto de umapropedêutica, de uma antecâmara que nos levaráà contemplação. Estão neste caso as cerimóniasreligiosas cuja beleza nos eleva, o amor aopróximo, a consideração do mundo. Sãoaproximações que nos conduzirão a algo de muitomais forte que se nos impõe.

Mas será legítimo aproximar o Amor aDeus de que Weil no fala e o “Amor Dei”espinosano?

Uma diferença reside no caminho queambos traçam para alcançar a salvação. No queconcerne à filósofa esse itinerário não énecessariamente uma ascese gnosiológica; pelocontrário, muitos ignorantes estão mais próximode Deus do que os doutos. A atenção exige umesforço permanente para alcançar a verdade epode fazê-lo qualquer pessoa não dotada decapacidades intelectuais pois a verdade não tema ver com a razão. Se orientarmos a inteligência

para o bem é impossível que pouco a pouco aalma não seja atraída por ele. E não podemosesquecer que a inspiração divina actua de ummodo irresistível sobre todo aquele que é dócil.Deus é uma fonte de energia que se derrama emnós, que nos penetra gratuitamente, alheia aquaisquer iniciativas que a possam provocar. Éuma espera que pouco tem a ver com a iniciativahumana mas que se processa por um conviteirrecusável da transcendência divina. A atençãotem Deus como objecto último. Motivada pelodesejo, ela não é esforço mas abertura. Pelavirtude da atenção o homem esvazia a sua almae deixa-se penetrar pela sabedoria eterna.Devemos ter uma disponibilidade total para amarDeus e para nos deixarmos guiar por ele. Nãonos cabe a iniciativa mas há que estar atentosàquilo que nos é exigido. E, deste modo, o amora Deus apropria-se de nós sem que dele tenhamosqualquer responsabilidade69.

Espinosa considera o amor a Deus comoconquista, algo que exige um esforço próprio,um caminho que a poucos seduz pois implicauma mudança de vida. Só o sábio a alcança epor isso se demarca profundamente do homemcomum. Espinosa termina a Ética confrontandoo sábio com o ignorante:

Por aqui se vê o valor do sábio e como ele ésuperior ao ignorante, que apenas é levado peloapetite libidinoso. Efectivamente, o ignorante,além de ser agitado de muitas maneiras pelascausas exteriores e de nunca possuir umcontentamento da alma, vive quase semconsciência de si mesmo, de Deus e das coisas, elogo que deixa de sofrer deixa também de ser.Pelo contrário, o sábio, considerado enquantotal, desconhece a perturbação interior e,consciente de si mesmo, de Deus e das coisas,devido a uma certa necessidade eterna, nuncadeixa de ser e possui o verdadeiro contentamento.Ética V, prop. XLII, scol.70.

67 Ibidem, p. 193.68 Ibidem, p. 122 e segs.

69 “[…] vient nous saisir” At. D., p. 117.70 “Ex quibus apparet, quantum Sapiens polleat, potiorque

sit ignaro, qui sola libidine agitur. Ignarus enim, praeterquamquod a causis externis multis modis agitatur, nec unquamvera animi acquiescentia potitur, vivit praetera sui et Dei etrerum quasi inscius, et simulac pati desinit, simul etiam desinit.Cum contra sapiens, quatenus ut talis consideratur, vix animomovetur, sed sui et Dei et rerum aeterna quadam necessitateconscius, nunquam esse desinit, sed semper vera animiacquiescentia potitur.”. Et. V, prop. XLII, schol., G. II, p. 308.

53REVISTA ConatusConatusConatusConatusConatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 4 - NÚMERO 7 - JULHO 2010

FERREIRA, MARIA LUÍSA RIBEIRO. ENCONTROS E DESENCONTROS DE DOIS FILÓSOFOS “JUDEUS” -- SIMONE WEIL E ESPINOSA. P. 37-54.

Não nos é exigida a renúncia ao que nosagrada pois o filósofo não elogia o sacrifício. Trata-se sim de procurar aquilo que realmente é útil paraa nossa felicidade suprema. Esta consiste semprenum aumento de poder, pelo aprofundamento doconhecimento de nós mesmos, do mundo e daNatureza.

Contrastante é o modo como cada umencara o sofrimento. Espinosa insurge-se contraos que defendem a maldade natural dos homens.Inimigo dos pietistas e da moral protestante afastao sacrifício e a ascese, considerando-os impeditivosde uma saudável realização humana. A morte nãoo atrai, encara-a como um fenómeno natural,biológico. Pouco se debruça sobre ela porque:

Um homem livre em nada pensa menos doque na morte e a sua sabedoria não é umameditação sobre a morte mas sobre a vida.Ét. IV, prop. LXVII 71.

Um filósofo deve gozar a vida naquilo queela tem de bom, fruindo com moderação de tudoo que lhe traz prazer:

Digo que é próprio do homem sábio alimentar-se e recrear-se com comida e bebidamoderadas e agradáveis, assim como com osperfumes, a amenidade das plantasverdejantes, o ornamento, a música, os jogosdesportivos, os espectáculos e outras coisas dogénero de que cada um pode usar sem danoalgum para outrem. Et. IV, prop. XLV, scol. 72.

A alegria e o auto comprazimento sãosinais de um aumento do nosso “conatus”. Estevai crescendo ou diminuindo em função daspaixões que suporta. As paixões tristescorrespondem a uma diminuição da sua força eas alegres a um aumento de potência. A felicidadeé um indicador terapêutico do estado do nossoser. Não devemos desprezá-la nem temê-la.

A humilhação e a angústia são paixõestristes que urge substituir por outras quepermitam a nossa realização. Esta é umaafirmação do poder próprio, do esforço(“conatus”) que nos constitui e se transforma emdesejo quando sobre ele reflectimos.

Se para classificar cada um destespensadores usássemos a terminologia das paixõesutilizada na Ética, classificaríamos Espinosa comoo filósofo da alegria e Weil como a apologista dosofrimento. Para ela o que agrada é as mais dasvezes ilusório73. O contentamento de si que sesegue a uma boa acção que praticámos ou àcontemplação de uma obra de arte que nos deuprazer correspondem a uma degradação daenergia superior e não devemos cultivá-los. Háem Weil um distanciamento deliberado das coisas,uma opção por não fruir das mesmas, mesmo noque respeita a alguns bens de ordem espiritualque lhe poderiam trazer contentamento.

Mais do que a vida interessa-lhe a morte:

Sempre acreditei que o instante da morte é anorma e a finalidade da vida [...] posso dizerque nunca desejei para mim um outro bem. S.Weil, Attente de Dieu74.

Para Weil o desejo que nos habita orienta-se para Deus e realiza-se num despojamentosupremo que exige a negação de si e que cultivaa auto-destruição. A mística weiliana dá um pesogrande ao sofrimento e à morte. A morte é o queo homem tem de mais precioso e daí nãodevermos desperdiçá-la ou malbaratá-la75. Averdade está do lado da morte e não da vida;filosofar é aprender a morrer 76. O desejo deintegrar uma missão perigosa na resistência vem-lhe dessa necessidade de se redimir através damorte, de ser digna de morrer por uma causajusta, pela qual oferece a vida. A solidão, arenúncia, o abandono ou mesmo o martírio sãoo preço a pagar para alcançar Deus. A procurado prazer é vã e em nada contribuiu para arealização pessoal. Só a contemplação dos nossoslimites e da nossa miséria nos permite a elevação

71 “Homo liber de nulla re minus quam de morte cogitat,et ejus sapientia non mortis, sed vitae meditatio est.”. Et.IV, prop. LXVII, G. II, p. 261.72 “Virim, inquam, sapientis est, moderato et suavi cibo

et potu se reficere et recreare, ut et odoribus plangtarmvirentium amoenitate, ornatu, musica, ludis exercitatoriis,theatris, et aliis hujusmodi, quibus unusquisque absqueullo alterius damno uti potest.”. Et. IV, prop. XLV, sch, G.II, p. 244.

73 S. Weil, P. G., p. 110.74 “J’ai toujours cru que l’instant de la mort est la norme

et le but de la vie […] je peux dire que jamais je n’aidésiré pour moi un autre bien.”. S. Weil, At. D., p. 37.75 P. G., p. 152.76 P. G., p. 67.

54 REVISTA ConatusConatusConatusConatusConatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 4 - NÚMERO 7 - JULHO 2010

FERREIRA, MARIA LUÍSA RIBEIRO. ENCONTROS E DESENCONTROS DE DOIS FILÓSOFOS “JUDEUS” -- SIMONE WEIL E ESPINOSA. P. 37-54.

para Deus. Job e Cristo corporizam essa tónicaevidenciando que só uma infelicidade supremanos traz a redenção.

A abdicação da personalidade e da vontadepróprias a filósofa chama descriação (“décréation”).O apagamento de nós mesmos e o regresso ao vaziosão etapas desse processo de descriação. Esteimplica uma passagem do criado ao incriado.Participamos na criação do mundo ao descriarmo-nos, ou seja, ao passarmos por um processo denadificação. É na medida em que me anulo queDeus se revela em mim, que se ama a si mesmoatravés de mim. Temos que nos retirar para queDeus actue em nós, ultrapassando o obstáculo queconstituímos. Temos que renunciar à tentação dedizer “eu”, ao pecado de afirmação do ser próprio:“É-nos dado o dever de matar o nosso eu. E eudeixo enferrujar um instrumento tão precioso”77.

Weil defende uma anulação do eu, umafusão com os outros, com a massa anónima dosdesprezados de cuja sorte quis partilhar. Tambémesses foram despojados do seu eu, mas de um modoextrínseco, o que lhes conferiu uma infelicidadeinsuportável. A injustiça humana leva à revolta e aum profundo sofrimento. Não é essa dor que Weilbusca e advoga mas aquela, redentora, provocadapela experiência de despojamento, fruto da nossavontade. Ao tornarmo-nos escravos percebemos aescravatura. As experiências dolorosas quevoluntariamente viveu nas fábricas e no trabalhodos campos são manifestações de uma vocação quese nos impõe e que nos obriga a determinados actosdolorosos e aparentemente irracionais. A filósofaconsidera ter vivido a sua vocação quando se deixouperpassar pelo sofrimento dos outros, recebendo amarca de uma escravatura, para eles imposta, paraela escolhida como uma espécie de catarse. Assimescreve a Maurice Schumann:

A infelicidade que se espalha pela superfíciedo globo terrestre obceca-me e oprime-me, aponto de anular as minhas faculdades e sóconsigo recuperá-las e livrar-me dessa obsessãose eu própria participar do perigo e dosofrimento. Attente de Dieu78.

A salvação não se obtém pelas obras, peloempenhamento político ou pela obediência a

ideais. Ela surge no amor da ordem do mundo,na obediência à vontade de Deus, na anulaçãoda vontade própria. A docilidade face a Deusafirma-se na medida em que nos anulamos. Nãoé a vontade que nos leva a agir ou a decidir masa certeza que nos vem da transcendência quehabita em nós e se revela pontualmente emdiferentes situações. A anulação pessoal surgecomo um ideal a alcançar, a meta de umitinerário que exige um despojamento da vontadee do próprio ser: “E o meu maior desejo é deperder não somente toda a vontade mas todo oser próprio.”. Attente de Dieu79.

Se para os dois filósofos a salvação consistena união a Deus separa-os profundamente ocaminho que traçam para a alcançar. SegundoWeil tal união exige que o desejo se extinga eque o eu se anule. É um processo em que ainteligência não tem um papel relevante e emque a afectividade também não se faz sentir deum modo nítido. O amor a Deus não énecessariamente gratificante, não exigereciprocidade e não anula a distância80.

É grande o contraste com Espinosa para quema salvação consiste na vivência plena do “conatus”.Este é afirmação de vida e de potência. Ao intensificá-lo pelo conhecimento ficamos em sintonia com osoutros seres e com Deus, fruindo eternamente de“uma suprema e contínua alegria” 81.

Confrontámos os encontros e desencontrosde dois filósofos. Distantes no tempo e nosinteresses, une-os um desejo de absoluto e umcomum desprezo pelas soluções fáceis. Daí agratificação que sentimos ao revisitá-los.Gratificação essa que pensamos ter partilhadoconvosco nesta comunicação.

k k k

77 Le devoir nous est donné pour tuer le moi. Et je laisserouiller un instrument si précieux.”. P. G., p. 202.

78 “Le malheur répandu sur la surface du globe terrestrem’obsède et m’accable au point d’annuler mes facultes etje ne puis les récupérer et me délivrer de cette obsessionque si, moi même, j’ai une longue part de danger et desouffrance”. At. Dieu, Introd., p. 10.79 “Et mon plus grand désir est de perdre non seulement

toute volonté, mais tout être propre.” At D., p. 31.80 P.G., p. 125.81 “in aeternum fruerer laetitia” T.I.E., § 1, G. II, p. 5.