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I lil'll,nll III~tl< lI·tlA 11. I 11:.1 ( )I{IOU~NIA François Hartog Evidência da história o que os historiadores veem Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira com a colaboração de Jaime A. Clasen 1 9 edição 1 9 reimpressão BIBLIOTECA NGK· pueisP 1111~~l!~l~~~ : b\Ol\oteca Nad\r Gouvêa Ktou n PUC.•• $P autêntica

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HARTOG, François. a Testemunha e o HIstoriador in [ EVIDENCIAS DA HISTORIA - O Que Os Historiadores Veem.

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Page 1: HARTOG, François. a Testemunha e o HIstoriador in [ EVIDENCIAS DA HISTORIA - O Que Os Historiadores Veem

I lil'll,nll

III~tl< lI·tlA 11. I 11:.1( )I{IOU~NIA

François Hartog

Evidência da históriao que os historiadores veem

Tradução

Guilherme João de Freitas Teixeiracom a colaboração de Jaime A. Clasen

19 edição19 reimpressão

BIBLIOTECA NGK· pueisP

1111~~l!~l~~~:b\Ol\oteca

Nad\r Gouvêa KtounPUC.••$P

autêntica

Page 2: HARTOG, François. a Testemunha e o HIstoriador in [ EVIDENCIAS DA HISTORIA - O Que Os Historiadores Veem

Copyright © 2005 Éditions de I'EHESS

Copyright © 2011 Autêntica Editora

TITULO ORIGINAL

Évidence de /'histoire - ce que voient les historiens

COORDENADORA DA COLEÇÃO HISTeRIA E HISTORIOGRAFIA

Eliana de Freitas OutraPROJETO GRÁFICO DE CAPA

Teco de SouzaEDITORAÇÃO ELETR6NICA

Conrado EstevesChristiane Morais de Oliveira

REVISÃO TÉCNICA

Vera Chacham

REVISÃO

Vera Lúcia De Simoni CastroLira CórdovaEDITORA RESPONSÁVEL

Rejane Dias

Revisado conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,em vigor no Brasil desde janeiro de 2009.

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicaçãopoderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xeroqráfica.sem a autorização prévia da Editora.

AUTÊNTICA EDITORA LTOA.

Belo HorizonteRua Aimorés, 981,8° andar. Funcionários30140-071 . Belo Horizonte. MGTel.: (55 31) 3214 5700

Televendas: 0800283 1322wwvv.a utenticaeditora. com. br

São PauloAv. Paulista, 2073 . Conjunto NacionalHorsa I . 23° andar. Conj. 2301 . Cerqueira César

01311-940 . São Paulo. SPTel.: (55 11) 30344468

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do livro, SP, Brasil)

11·101101, (,1l1) 11111

Hartog, François

Evidência da história: o que os historiadores veem / François Hartog;tradução Guilherme João de Freitas Teixeira com a colaboração de JaimeA. Clasen. - 1. ed., 1. reimp. - Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.-(Coleção História & Historiografia / coordenação Eliana de Freitas Dutra, 5)

Título original: Évidence de I'histoire : ce que voient les historiens.

ISBN 978-85-7526-584-0

1. Historiografia. 2. História - Filosofia. I. Dutra, Eliana de Freitas.11. Titulo. 111.Série. ~~i~~J

""11i 11~ 1"111\ 1111,11"11" ',1'.1"'111\111111 111',1111111111111111'111/'

Para M. I. F.in memoriam

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1'111111) V

A testemunha e o historiador

A testemunha e o historiador? Segundo parece, o problemaestá resolvido há muito tempo: do ponto de visto prático e episte-mológico. A testemunha não é um historiador, e o historiador - se.lc pode ser, em caso de necessidade, uma testemunha - não devenssumir tal função; e sobretudo ele só é capaz de começar a tomar-se historiador ao manter-se à distância da testemunha (qualquertestemunha, incluindo ele mesmo). Assim, ser testemunha nunca

- -~..... "'--.. _ .. --- . ~foi uma condição suficiente, nem sequer uma condição necessária,para ser hist~riac!9~. Mas tal constatação já nos tinha sido ensinadapor Tucídides. A própria autópsia (o fato de ver por si mesmo)deveria passar, previamente, pelo filtro da crítica. S~t agor:a,~deslocamos do historiador para sua narrativa, a questão torna-se as~inte: -de que modo narrar como se eu tivesse visto (para fazerver ao leitor) o que não vi, nem podia ter visto? Velhas questõesque não deixaram de acompanhar a hist6ria e sua evidência.

~m seguida, quando a história finalmente, no século XIX, veioa ser definida como ciência, a ciência do passado, ela limitava-se aconhecer "documentos". As "vozes" haviam sido convertidas em"fontes"; e, no termo dessa mutação, as "testemunhas" chegarammesmo a acreditar que deveriam assemelhar-se a historiadoresjfiis oque é deplorado por Péguy, que observava: "Você entra em contatocom um homem; à sua frente, nada além de uma testemunha [...]Você vai ao encontro de um idoso; instantaneamente, ele nada éalém de historiador" (PÉGUY,1992, t. 3, p. 1187-1188). Ele falacomo um livro.

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EVID~NCIA DA HISTÓRIA - O QUE OS HISTORIADORES VEEM

~ tão reab . ssiê? Porque o fato de circunscrever uma vez mais - talvez, um pouco mais profundamente _ essadiferença primordial [principie~ e sua história poderia lançar algunuluz sobre a historiografia: oportunidade de voltar a percorrê-Ia, ;I

passos largos, desde os gregos até nossos dias, e reencontrar algUll1:1~das config\lrações epistemológicas que haviam sido como que seusnúcleos organizadores; finalmente, uma forma de questionar o papddesse personagem banal, familiar, sem deixar de ser estranho, que 7.o historiador nas nossas sociedades.

-"-- .-. - -Evocar essas primeiras partilhas é reabrir a questão das relações

_~~tr~@ e-sa~ãis <:..o~<:.elas ha~!ãillsi~õ e.stab_éle~~das,como j;~vimos, pelo grego; em seguida" enfrentar a relação entre fazer ver,

lTIostrar e persuadir,-Ou~~ja, emrar~o d~iê, nuncãê"ncerraêlo deSdI'Ãristót~l;s, d;-narrativa histórica e da mimesii, da naiTàfiva comoimitação do que se passou, como exposiçãõ- ou poiesis:J5õrtãríto,imergir plenamente na evidênciada história. Mas, em primeiro lugar, é a conjuntura recente, precisamente marcada, desde a dêcad.ide 1980, pela progressiva ascendência da testemunha, a "era" d.l

testemunha, como ela foi designada por um livro dedicado à análisedesse fenômeno (WIEVIORKA,1998), que vai orientar a reflexão queeu gostaria de esboçar. Começando por avançar do presente até ()mais longínquo e retornar, tentando esclarecer, em alguns pontos,um pelo outro: em suma, fazer história.

A testemunha, de que modo e por quê?

Arrastada pela agitação sublirninar da memória, a testemunhnentendida, por sua vez, como portadora de memória - impôs-se,

~ ~ -gradualmente, em nosso espaço público; ela é reconhecida e proClirãCfa,alé~d;~esente e, até mesmo, à prime.k<~ista, onipresen~e'.A testemunha, qualquer testemunha, mas, acima de tudo,a testemunha como sobrevivente: a pessoa que o latim dcsignnv.,precisamente por superstes, ou seja, alguém que está firlJ1:ldo sob, t'

a própria coisa, ou alguém que ainda subsiste (13J!NvJ!N'S'I'Il, 1%'1,p. 276). As testemunhas do Holocausro /S/w,d,/ S:I() .IS /WSS(),I~ </\11

atravessaranl essa provação. Mesmo '1\1(' () /l';III(';,n 1('1 oltllt'l illll'll(o

da tcxrcmunhn, nn ('t'm Pllh/i(., 111(,"".11 IIIII.rI, ft:II/liI ,,v, \ t~, Ifit.,Ic/1I 1111

A TESTEMUNHA E O HISTORIADOR

decorrer do julgamento de Eichmann, em Jerusalém, em 1961, suafunção acabou por se impor, e à primeira vista paradoxalmente, nosEUA. ('Se a tragédia foi inventada pelos gregos, o intercâmbio demensagens pelos romanos e o soneto pela Renascença, nossa gera-ção inventou um novo gênero literário, o testemunho." Indepen-dentemente da consistência dessa fórmula forjada por Élie Wiesel,todos compreendem sua significação; ele próprio definiu-se comoa testemunha e se tornou o bardo do Holocausto (para atribuir-lhe o termo utilizado em inglês). Há também, nesse mesmo papelda testemunha - embora de maneira mais sóbria, laica e trágica -,Primo Levi, que, à semelhança do Velho marinheiro de Coleridge,deve contar sua história sempre que, "em uma hora incerta, retornaessa agonia" (LEVI,1989, p. 10; RASTIER,2005).

Existem os testemunhos: transcritos e reescritos, gravados efilmados, até o empreendimento recente que empregou centenasde pessoas, promovido pela Fundação Spielberg. Mas há tambémreflexões sobre o próprio ato de testemunhar, suas funções, seusefeitos sobre a testemunha, sobre os ouvintes ou os espectadores,acompanhado pelo problema - inevitavelmente, lancinante ou recor-rente - da transmissão, ou seja, tudo o que gira em tomo, para utilizara expressão inglesa, do vicarious witness (testemunha de substituição).

Quem pretende refletir sobre o fenômeno do testemunhotem de partir, com efeito, da centralidade presente de Auschwitze, portanto, também ou em primeiro lugar, da centralidade doHolocausto no espaço norte-americano, em que o fenômeno podeser apreendido, se ouso dizer, em sua força e nitidez.

O que se passa, então, na França? A questão é, obviamente,inseparável de Vichy.l'" do processo contra o Estado francês. Detal modo que o ato de testemunhar apresentou-se, aqui mais do.]UCalhures, em termos estritamente, ou mais diretamente, judi-.iais. Eis o que é verdadeiro para as testemunhas comuns, assim,'01110 para as lCS!ClIllllllt,IS particulares em que se tornaram algunshistoriadores, pOI (li ."1,111 dos recentes processos por crimes contra

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a humanidade. M.'s I.d !11tH l·di"It'IIIII í(III.1

temunhas que, bem cedo, h.IVI.I'" ~idí) IIS l~l'Sl~tl'Iltl'~ 1,1111 "1nazista da França], ansiosos por escrever o que t inli.u: vrv 1111'1

(Douzou, 2005).

Três livros, publicados no final da década de I<)<)(). II ,11111.'11 111

na França, a tomada de consciência da amplitude desse (\.'11111111 11

e propuseram uma reflexão sobre o testemunho: o livro do ~I11 II

logo, Renaud Dulong, Le témoin oculaire; o de uma hisLoII.IIIIII'Annette Wieviorka, L'êre du témoin e, por último, o til' lI"l IIlósofo, Giorgio Agamben, Ce qui reste d'Auschwitz. Três II\TU

eruditos que mantêm certo distanciamento em relação no lrlih!

abordado. O primeiro é uma "pesquisa sobre as condições SOl 1.li

do testemunho" (com esta definição: "ser testemunha não (, 1.111

to ter sido espectador de um acontecimento, mas declarar qlll

o presenciou" e assumir o compromisso de voltar a exprinu I"nos mesmos termosi.l'" Por sua vez, a historiadora propõe lI"I.1"reflexão sobre a produção do testemunho" (WIEVIORKA,19<JH)Enfim, o terceiro livro reflete sobre a "defasagem inscrita na própu.testrutura do testemunho" (AGAMBEN,1999).

De que modo a testemunha e o dever de testemunho se impuseram nos EUA? Limitar-me-ei a algumas das manifestações maisrecentes e maciças desse fenômeno.

Emblemático, nessa área, é o United States Holocaust Memo-rial Museum, construído no Mall, em Washington, e inauguradem 1993. Cada palavra é importante: comemorado nesse perímetrosagrado, o Holocausto se torna um acontecimento da história norte-americana, inscrito na memória coletiva. Em sua arquitetura, o edifi-cio é já testemunho e máquina destinada a transformar o visitante emuma testemunha. As formas, a utilização do tijolo, as vigas metálicaslembram the bard industrial forms do Holocausto (LINENTHAL,1997,p. 88). Logo após a entrada, o visitante começa por atravessar umespaço justamente chamado Hall of Witness, espaço frio que, de

'04 DULONG,1998; em último lugar, DORNIER;DULONG,2005.

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111,111dll 111111 "11I11'1i11'III t: ", 1111111 1111'" (~I.II••lil de I.:slt':Hb (11.:((;1 -r0";

.lI:~Sl'pOllto, l'k I' "\11 Ip,.ltlII,I .,1'1 VII SI: dos elevadores para chegar\l)~ ,I,,~bres rcsc: v"IIIlN .\ l·l(llI)SI~·.IO pt:rmanente, antes de entrar noI ~PI\~'O hcxagonnl v:\l,io (11:1 origem) do Hall ofRemembrance.

A exposição reúne fotografias, filmes e objetos, como outrasr.uuas estratégias de apreensão do real. De fato, os organizadorestio Museu pensaram que era importante mostrar objetos autênticos,presentes em sua materialidade, permitindo quase o contato físico;de tal modo que eles se tornaram colecionadores e, até mesmo,.irqueólogos do Holocausto. Quanto às fotografias, elas atestamlue, tendo existido realmente, essas crianças, essas mulheres e esseshomens deixaram de existir, maneira de tornar presente a ausênciade todos esses rostos, cuja única demanda era a de viver. No seu'onjunto, a pedagogia do Museu visa levar os visitantes, durantesua visita, a se identificarem com as vítimas; aliás, nos primeirostempos, era distribuído, inclusive, a cada visitante, o fac-sírnile deuma carteira de identidade de um deportado, cujo percurso podiaser seguido pelo visitante.l'" Para além dessa imersão na históriae no Museu do Holocausto, a visita pretenderia transformar cadavisitante - cujo número se eleva a milhões - em uma testemunhadelegada, uma testemunha de substituição, um vicaríous wítness.Além disso, de acordo com as palavras de seu diretor, uma visitaao Museu visa contribuir "para o aprofundamento da vida cívicae política norte-americana, assim como para o enriquecimento dafibra moral deste país". Para além de si mesmo, o Memorial serviude referência e inspiração para outros museus que vieram a serconstruídos no mundo inteiro.

Em 1994, implanta-se a Survivors of the Shoah Visual HistoryFoundation, desejada e concebida por Steven Spielberg. Históriavisual? "Pretendo apresentar a história de cada um" (I want to geteverybody's stories), afirmava Spielberg. À semelhança de Schindler, elegostaria de salvar todos: coletar todos os testemunhos dos sobrevi-ventes, até mesmo daqueles que já haviam dado seu testemunho.

105 ldentificatiml Card que, acima da águia norte-americana, ostenta a divisa "For the dead and the living

we Il1HSt bear witnessu.

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Memória c pcd,\!J,oW'\' li\." p.II".1li'; im'I'II\ dl,II1111 Illill ("'li Ie acesso à intcrnct. O Ilolm.\lI1>11I 111I1'I.IIIVllI' 1'111dlllllll 11101críticas suscitadas por esse programa, assim C01110;\ hllSI.1til ~Idlipara os problemas de segurança (se111esquecer :1 pl,(,Olllpol~ 111 ,

evitar qualquer tipo de intervenção por parte dos lIeg.1!10llll,Uatrasaram no mínimo a realização desses projetos. Trata SI', j 111Isumo, de tornar presente a realidade de um passado pela IlIl'tlhlido virtual, com fins pedagógicos. Spielbergjulgava, 11!1 ('pOI 01,i.plessa forma de história vídeo ia fazer escola. Ela vai muda r, .\111111Iele, "a maneira como as pessoas vão conservar a própria 111\11111seja do movimento feminista, dos direitos cívicos, dos gays (lll dlllésbicas". Em seu entender, "a etapa seguinte será a GUCII.l li,Vietnã: next in line for the on line" (SHATZ; QUART, 1996, p. 'Ir,O aspecto importante é que se passa, assim, da testemunha p.1I01"espectador sem intermediário.

Já existiam outras iniciativas nesse campo, mas, considerandoos recursos à sua disposição, Spielberg foi levado a ocupá-lo intci 101mente. Bem anterior era o Fortunoff Video Archive for Holocnu-Testimonies, com objetivos muito diferentes: em vez de nan.uuma história, oferecia-se a quem manifestasse tal desejo a possil»lidade de narrar a própria história. Dori Laub - cofundador dessearquivos, autor com Soshana Felman de um livro frequentementecitado, Testimony - é, ao mesmo tempo, uma testemunha (foi umadas crianças sobreviventes), alguém que se dedica a coletar os tes-temunhos dos outros e um observador do próprio ato de testemu-nhar (FELMAN;LAUB, 1992). Dessa longa experiência de trabalhcom as testemunhas e sobre ostestemunhos, ele extrãiu a noção de?r .. _~---- ..

aconteCImento sem testemunha": não, obviamente, por falta deteste:rmnhãS;- mas ROE~_e o colaps~ do próprio ato do testem~dissolve a possibilidade de um testemunho comunitário. ~

...-..-----' '- ,--"'- -._- - -.Qual é o contexto dessas manifestações? O livro de Peter No-

vick, L'Holocauste dans Ia vie amérícaíne, expõe as etapas que levaramo Holocausto a passar das margens para o centro (atualmente, issosignifica vários milhares de profissionais que trabalham em tempointegral) e elucida o contexto desse deslocamento em um país famosopor cultivar o gosto das novidades e, ao mesmo tempo, ~ amnésia

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r'lIIVII_:I-:,I(U)lo 1{llII11I'I, '111)1) I\ld:lIll/tlIISt' 01ncccsxidadc delurnr (\l1111.111 olllli'~lliljli~llIll 1I'II.ISlI'lIll', de refutar o punhado delll~I'..I(ionistas, Il\.l~~lIhIIOllld(),em UI113época em que a identidade(" reivindica corno dilcrença, o Holocausto tornava-se o único

.h-nominador comum da identidade dos judeus norte-americanos.Arrl'scente-se ainda, na corrida ao reconhecimento público, essaj'sp6cie de competição vitimária, designada pelo historiador CharlesMnicr como "competitionfor enshrining grievances": obter um lugar,IllCSl110que não seja o primeiro, nessa competição dos sofrimen-tos suportados (MAIER, 1993, p. 147). Daí, o tema das lições eda testemunha no papel, não de doador, mas, acima de tudo, de

portador de lição.Neste ponto, e sem querer prolongar ainda mais essa análise

sobre o Holocausto nos EUA, é possível elaborar três observaçõesde alcance e ordem diferentes.

tt:!.ão será que vivemos em uma economia midiática quefunciona à base da testemunha? Impõe-se apresentar uma teste-munha (pensemos nos numerosos programas de televisão, cujastestemunhas são personagens importantes ou comuns; há o im-perativo do "ao vivo", a exigência de proximidade, ambos osaspectos envolvidos pela aura da compaixão~~fe!5n_ternenlr;; d-ªfi~ura evoc::d3..P_or Péguy, a teS$emunha de hoje em dia deixou de

Talar como um livro. Ela já não se transforma em "historiador",mas é e deve ser ~a voz e um rosto, uma presença; e ela é uma'Vítima. Desde' as fotografias dos campos de extermínio na épocade sua lib~r;çio~a·participaçãa" do visual no testemunho tem au--~~--~----' _ . .-- - -- ---

mentado ao pónto de se tornar constitlitlva de sua autenticidadee de sua verdaClê:-,",As fotografias não mentem", proclamava o

'diário Stars ân~rStripes no editorial de 26 de- abril de 1945. Desdeentao, essas fotografias publicadas, de novo, na imprensa por oca-sião das comemorações, reproduzidas em exposições e museus,tornaram-se a referência para medir o horrorva bitola mediantea qual se avalia os crimes contra a humanidade perpetrados desdeessa época (ZELIZER, 1998, p. 144). Como se tivéssemos de passarpor esses testemunhos de referência para nos convencermos darealidade e da gravidade de outros crimes.

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lctar, gr:lV~II.,COIISI'1V.II, 1i"~II'Il~ It'NII'llIllltI\lIM,t .\11.1111atualmente, se possívcl+, todos, () velho ÍllIpl'I,IIIVIl 111'1111:111111que exige no mínimo duas testemunhas, ll~O S<.' :Ipht.' 11que o problema não está aí. Trata-se sobretudo de <.'S( 111.11I'nd.! Iem sua singularidade: permitir que cada testem LI 11hn pm~.1 Ijlil

sua história, finalmente ou de novo.

A colocação no primeiro plano da testemunha leva 1.111""'liuma ampliação da noção de testemunha. O livro Testituonv IIll ipáginas sobre Paul Celan. Sua poesia é lida como um lc.:Sll'lIltlnhsobre o extermínio, o que ela é com toda a certeza; mas pcrrrl«também que o fato de instalar Celan no papel de (simples) It'NIClllíI

nha pode ser redutor para sua obra. O mesmo se passa com as 11'1,turas recentes de Albert Camus. Certamente, La peste aprcscut.icomo um testemunho, uma "crônica". "Tendo sido convoc.ulu II

testemunhar por ocasião de um tipo de crime", começa por der 1.".11o narrado r, o Dr. Rieux; em seguida, acrescenta que ele "manuv.certa reserva", como convém a uma testemunha de boa vontadr .mesmo que ele se posicione do lado das vítimas. Ou, ainda, t'~11trecho: "O narrador faz obra de historiador" (CAMUS,1965, p. 1" ) I

1468). Mas identificar necessariamente a testemunha Rieux COIIIa "testemunha" Camus seria obviamente simplista (e falso). COIIIIIse - depois de ter focalizado exclusivamente, durante um momento,o texto, ao proclamar a elisão do sujeito - ele pretendesse dar tudi Iao sujeito e nada mais ao texto. Camus, afinal de contas, conheci.itambém seu Tucídides e a descrição da peste de Atenas.

Da relativa indiferença do período pós-guerra à retomada na década de 1970, a curva do testemunho (pelo menos, em sua recepção)registra, certamente, a urgência relativa à geração, mas também, emuma proporção difícil de avaliar, a vontade - mais que legítima - dopor-se a esse punhado de "assassinos da memória" que tinham vindoinstalar seus lamentáveis estrados exatamente nesse ponto central edoloroso do testemunho. Uma vez que o plano de extermínio previatambém a supressão de todas as testemunhas, assim como dos vestígiosdo crime, o testemunho assumiu, de saída, uma posição crucial. No .entanto, ao longo dos anos, o número das testemunhas e o volumedos testemunhos reencontrados e descobertos têm vindo a crescer.

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210

1",111111.111111111111,11I1I111.IIIIIII,lllt·1I11AIIl'~(I'):,H) (,.'Illseu livro Ltt

/'" 1(11'''."A( ,11l:l'~l'S('lIlpl'l' pmsnber llldo". Ora, movidos pelo desejoI, IOIH"til' O lr:,b~\lho, os revislonistas ou negacionistas retomaram aI "I 1.1('x.ll.Il1Il!nLc.:no ponto em que ela havia sido abandonada pelos1\' 1~t.IS, "Mostrem-nos, nem que seja uma única testemunha." E a111111,1fê:!.. com que o pai do revisionismo, Paul Rassinier - friamente1I11

11psindona biografia escrita por Nadine Fresco - tenha começado

1"11 utilizar sua qualidade de testemunha, já que ele havia sido de-I"11lado para Buchenwald, em 1944. Mas seu testemunho visava, de.udn, não tanto dizer nem estabelecer, o que tinha visto e suportado,III,ISservir-se do procedimento revisionista: "A fim de restabelecer

como ele escreve - a verdade para os historiadores e os sociólogosdn futuro" (RASSINIER,1950, para a t- edição).106

Em terceiro lugar, a impossibilidade do testemunho. Para co-mcçar, há o fosso entre o que tinha sido suportado e o que poderiaser dito a esse respeito. Fosso, observado de saída por Robert Antel-me: "A desproporção entre a experiência que tínhamos vivenciado~ a narrativa que era possível elaborar a seu respeito" (ANTELME,1957, p. 9). Mas também porque, de acordo com a expressão, de-licada a manipular, de Dori Laub, trata-se de um "acontecimentosem testemunha" ou, na reformulação de Renaud Dulong, sempossibilidade de atestação compartilhada, como se fosse impossívelaplicar justamente a regra das duas testemunhas. Por sua vez, Primo

Levi avançava ainda mais longe:Nós, os sobreviventes, não somos as verdadeiras testemunhas[...] mas eles, os muçulmanos, os náufragos, é que são as tes-temunhas integrais, aqueles cujo depoimento teria uma signi-ficação geral. A destruição conduzida a seu termo, ninguémteria subsistido para narrá-Ia, como ninguém. nunca voltou paranarrar sua própria morte (LEVI, 1989, p. 82).

Toda a reflexão de Agamben se apoia precisamente nessa frasede Levi. E ouço como que um eco direto dessa frase nestas cinco

palavras de Paul Celan:

106 Essa frase é a última da dedicatória da edição de 1998. Ver FRESCO. 1999.

211

I

Page 8: HARTOG, François. a Testemunha e o HIstoriador in [ EVIDENCIAS DA HISTORIA - O Que Os Historiadores Veem

Nu-ru.uulzcugt /lh' dellZeugen.!'"

A testemunha está sozinha: ninguém pode Lest~'lillllrllllseu lugar. Ela não tem ninguém a quem recorrer. EIIU'l' .I(III!II.I ,

que ela foi testemunha e os outros, só existe ela. Ou, ela l'~1.1 l!illmais sozinha que a "verdadeira" testemunha é incapaz de ('NI.II li

para testemunhar. Ela é já, de saída, uma testemunha dckg.1( 1.1 111

de substituição, sobre quem pesa - nesse caso, ainda mais pcs,u 11,encargo de ter a obrigação de testemunhar. Não um dia, 11(,'111 IllIhivez, mas até o fim.

Da testemunha que escuta à testemunha que vê

Ao avançar do presente para um passado bem longínquo, ('li'cetamos uma digressão historiográfica que é tão válida quanto 11111

exercício de olhar distanciado. E, em primeiro lugar, algo parccidià pré-história das relações entre o historiador e a testemunha.

O grego antigo criou um vínculo entre ver e saber, estabck-cendo como uma evidência que, para saber, é necessário ver, ckpreferência a ouvir. Os ouvidos - diz um personagem de Herédoto - são menos confiáveis que os olhos (HERÓDOTO,I. Clio,8).Idein, ver, e oida, eu sei, remetem, de fato, a uma raiz comum: wid.Já evocamos esse assunto. Ora, a epopeia homérica conhece unpersonagem designado como histor, em que se encontra, portanto,a mesma raiz. Assim, de acordo com Émile Benveniste, este últimoseria "uma testemunha pelo fato de saber, mas, acima de tudo,pelo fato de ter visto" (BENVENISTE,1969, p. 173). No entanto,o histor - que intervém em duas situações de disputa - nada tinhaefetivamente visto, nem escutado. Ajax e Idomeneu, por ocasiãodas cerimônias fúnebres de Pátroclo, discordam em relação aquem, após ter contornado a baliza, havia tomado a dianteira nacorrida de carros puxados por cavalos. Ajax desafia Idomeneu epropõe Agamenon como histor (HOMERO, Iliade, 23, 482-487;

107 Paul Celan, Aschenglorie [Glória de cinzas].

212

1!,"lnoc:, W()·I,p. ijlll I)r),). (JlI,dqU('1 que srj., o papel exato de.'\1',;11111'11011, (, rcito que ele nada tinha visto da cena em questão.r~(1 cxt rnordinário escudo forjado por Hefesto para Aquiles, estáI ('IH'(,'sent:ldaLIma cena em que dois homens, às voltas com umI\l.lvr desentendimento (em relação ao autor de um assassinato),dn'idem recorrer a um histor (HOMERO, id., 18, 497-508); esteult imo não é, obviamente, uma testemunha desse ato.

Ao intervir nos dois casos, em uma situação de litígio, o histor (11,10é, dessa forma, aquele que, unicamente por sua intervenção, vaipôr fim à disputa, dando sua arbitragem entre versões confiitantes.j.;:', de preferência, creio eu, o fiador (no presente e, mais ainda, no Iluturo) do que tiver sido acordado pelas duas partes. Antes de terolhos, o histor deve ter, portanto, ouvidos (ver, supra p. 60-61).

E qual é, então, o papel da testemunha - chamada, em grego,martus? A etimologia nos leva ao radical de um verbo que significalembrar-se: em sânscrito, smaratí; em grego, merímna; e, em latim,memor(ía) (KrTTEL,1995, v. 4). Quando, no momento de prestarjuramento, sempre na epopeia, os deuses são invocados como teste-munhas, theoi marturoi, eles são convidados, não a ver, mas a ouvir ostermos do pacto. Trata-se também de ouvir e guardar na memória.O martus tem, igualmente, acima de tudo, ouvidos. Observemos que,no caso de um juramento, se pode dizer também "Isto Zeus" (QueZeus venha confirmá-Io, seja testemunha ... ); ora, nessa expressão,encontra-se a mesma raiz wid, presente em histor. Aliás, o latim con-vocará Júpiter, dizendo "Audi juppiter" (Ouve, escuta Júpiter).

Mas, então, qual é a diferença entre histor e martus, se ambostêm, acima d;-t~do-(está fora de qu~st~dizer "somente") ouvidos] _A mudança entr;~~ e'outr;-'[ ocãr;:'te~to de intervenção ~-;uasrespectivas relações com o tempo. O histor, que intervém em u~-;situação de conflito, é exigido pelas duas partes,- ele ouve uma e a'outra, enquã'ilto õ martus tem de se preocupar unicamenú com um'·lad'(;~ais exatamente, existe apenas um lado. O ~artus ínt~rvé~'-" ~ •...na presente e pârã o' fúturo, enquanto o histor deve acrescentar adime~ã-;- do -pa~sado,Ji que su~ intervenção n~ presente, reper-cute no futuro em relação a uma disputa surgi da no passado (até

~_. ',-- "-- - -'"

,!E-esmo, recente).

213

:111

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Desse tnartus, {()1I10 tl'sll'II"""';' (11111IIrllllll), 11t1,tj;" (',ld')Ipassou-se facilmente para a tcstcmuuh.t \ 1111111.lIltlllld.l\k. I~~I~~illlque Heródoto, para evocar - C0ll10 apoio tio que ele .lr,Ih,1 d,declarar - a autoridade do oráculo de Arnorn no I2giLO,:1(11111,11\111ele "dá testemunho", "marturei"; do mesmo modo, J 1011\('1<1convocado sob a forma de uma citação, "dá testemunho" VI'III

comprovar uma observação, um raciocínio do narrado r de II/\rll,res (HERÓDOTO, lI. Euterpe, 18; IV. Melpomêne, 29). São eSSl'S\1111Aristóteles vai designar, em sua Rhétoríque, como "as velhas 1111as antigas testemunhas" (palaíoí martures; ARrsTóTELES, 1, 15, I \)Dessa testemunha não ocular, Tucídides há de fornecer-nos 11111último exemplo quando ele opõe essas testemunhas que são 11,11rativas sobre acontecimentos antigos ao que tinha sido visto rH'l<1ouvintes do discurso que está em via de lhes ser dirigido: "De q"Iserve falar a vocês de acontecimentos muito antigos quando l'l,'são confirmados, de preferência, por narrativas (martures logon) <111chegaram a nossos ouvidos, e não pelo que viram nossos ouvint(opsís ton akousomenon)" (TuCÍDIDEs, 1, 73). As "testemunhas" CS1.1I1,assim, do lado das falas e do passado: do lado do que não se viu O"não se pôde ver.

Portanto, eu colocaria esse antigo hístor - tal como ele nos l'l ,Iapresentado, de maneira superficial, pela epopeia - na proximidadido mnemon, o homem-memória ou "registro vivo", de acordo COIII

a expressão forjada por Louis Gernet, e no qual ele reconhecia ""advento no direito de uma função social da memória" (GERNI!'I,1969, p. 286; e supra, p. 55-56). Na impossibilidade de retomar ,agora, o caminho que leva do hístor ao primeiro historiador (allhístoreín e hístoríe), sublinharei apenas o que do primeiro subsisti,ou passou para o segundo. Heródoto utiliza o verbo historein par.idesignar o tipo de trabalho que ele realizou, na maior parte d.tvezes, em um contexto de investigação oral. Ao empenhar-se CIIIresolver a controversa questão da nascente do Nilo, ele indica COI1Iprecisão: "Fui e vi com meus olhos (autoptes) até a cidade de Elefantina; em relação ao que está para além dessa cidade, empreendi'uma investigação oral (akoeí hístoreon)" (HERÓDOTO, 11. Euterpe, 29).

214

I~ss;,111\'1'~IÍI'A~1I ,10 cOI1(j'olllar o que ele sabe ou o que se diz,p.u tu ul.n uu-utc, entre os gregos, com o que dizem seus interlocu-rores (certamente, falando grego) - mantém algo como a conside-1':1ç50dos dois lados que, aliás, era a razão de ser do antigo histor. Deforma mais imediatamente impressionante, tem sido sublinhado, hámuito tempo, a preocupação anunciada - desde a frase de aberturade Histoires - em relatar o que havia sido realizado tanto pelos gre-gos quanto pelos bárbaros, estabelecendo uma simetria que, aliás,~ desmentida pela própria formação, por definição assimétrica, dobinômio gregos-bárbaros.

Retornemos, ainda um instante, à epopeia. Na cena em queUlisses encontra o bardo dos feácios, está desenhada uma notávelconfiguração de saber: a do historiador e da testemunha, ao pé daletra [à Ia lettre], mas por antecipação [avant Ia lettre]. De fato, Ulisses,que ainda não havia recuperado sua identidade, solicitou-lhe paradeclamar a tomada de Troia. Perante uma excelente apresen-tação - "de forma demasiado perfeita", diz o texto -, Ulisses nãopode deixar de declarar-lhe:

Tu declamas, respeitando demais a metrificação, a infelicidadedos aqueustudo o que eles realizaram e sofreram, assim como tudo o quelhes foi infligidocomo se, realmente, tivesses estado presente ou escutado essanarrativa de outra pessoa (HOMERO, Odyssée, 8, 489-491).

Como se o aedo fosse um historiador por antecipação quando,afinal, Ulisses sabe justamente que ele nada tinha visto, nem ouvido:ele é o bardo cego que extrai todo o seu conhecimento da inspiraçãoda Musa, que, por sua vez, se define como aquela que está sempreaí, sempre presente e onisciente. Tudo isso é conhecido por Ulissestanto mais que ele próprio se encontra na posição da testemunha(superstes) ou, até mesmo, da única testemunha. Emblemática emmuitos aspectos, essa cena conta, portanto, com a presença de umbardo, espécie de super-historiador, para quem ver, ouvir e dizernão passam de uma única e mesma coisa; de um "historiador" queocupa a posição de único sujeito de enunciação; e de uma testemunha

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~J

Page 10: HARTOG, François. a Testemunha e o HIstoriador in [ EVIDENCIAS DA HISTORIA - O Que Os Historiadores Veem

I:vlI,ill"\ I~"'III":,,,,~ I.! UIII

silenciosa (que chora; 11"ll'I'()(:, !OU I, 1\ 1111 11 I) '1'11I Ididn VIII

assumir essa posição de enunciado: OIlI,~111'111('.M.IS, ('111SlltI pll

tensão de ser resolutamente moderno, bem disuurriado 11:10NU d'ldispositivo da fala épica, mas também Cl11 ruptura rcbtiv.IIIH~111historia de seu predecessor imediato, ele deve legitimar L1111 IIII',Mde enunciação respaldada na autópsia, o que se acompanha 11111uma crítica das testemunhas e da memória, além de ter ('011111corolário que a única história viável é aquela do tempo preso 1111A autópsia - poderíamos afirmá-lo - é uma maneira de rCCLlS:II'1111silenciar as testemunhas: o olho do historiador, portanto, conu.i 1\

ouvido das testemunhas.

{

(

o latim dispõe de várias palavras, já estudadas por BCI1VI'niste, para designar a testemunha. Elas definem bem sua fUllÇill1e enriquecem a noção. Além de superstes, termo já mencionado,há arbiter (no sentido mais antigo, aquele que assiste a algo), tcstl,(por terstis, ou seja, aquele que assiste como terceiro elemento) I'

auctor (o fiador, como o palaios martus de Aristóteles; BENvENIS'I'I',p. 119-121,277). Em compensação, Roma não tem muito a JIO,

ensinar sobre a testemunha ocular na historiografia, nem sobre 1\

binômio testemunha/historiador. A história romana é, com efeito,em resumo demasiado rápido, uma história sem historia (no sentidogrego de investigação), sem testemunhas, nem autópsia, tampoucodois lados (Roma está inteiramente em Roma). Ela é concebidacomo opus oratorium, de acordo com Cícero, ou como narraüo,narrativa literária composta de autores (scriptores), personalidadesimportantes que, ao julgarem necessário, recorrem a fiadores Oll

autoridades (auctores).

A autoridade da testemunha ocular

o historiador grego pretendia adiar o esqu~cim~nto_d.Q~~es~."._----- - -momentos (Heródoto), ou fornecer uma ferramenta que permitisse

" .~~,não prever, mas compreender, no futuro, o que vai acontecer ~!u-.cídides); no ~.t:lE_llto,sua tarefa ou missão não era, de mod,9 alg1llll"t;ansmitir, - da forma mais fidedigna possível, uma experiência a

~ ••. 1·· • !~._.

G'-'/~~/~16 )\ ~.

"-.

11,"MIIIIII~ I ""I~I,,~IAI"-,H

Pl'('Sl'1v.u CI 111111t.rl, 1.'111 sua singularidade, E somente com. os primei-I'OScrist.ios, 11:1virada do 1U século de nossa era, que a testemunhase torna a ('igura indispensável, crucial para o estabelecimento e avalidação de uma cadeia da tradição. Evidentemente, essa testemu-11 ha havia sido judaica antes de ser grega. Desde o instante em quese penetra no espaço das religiões reveladas e do livro, a própriaconcepção da testemunha não pode permanecer indene e, aliás, vaiacabar marcando profundamente a figura moderna da testemunha.

A testemunha é, com efeito, uma figura importante na Bíblia:testemunha que vê ou escuta, testemunha que certifica e é fiador,testemunha que depõe perante o tribunal. O livro do Deuteronômiofixa, assim, a famosa regra (à qualjá fiz alusão) das duas testemunhasno mínimo necessárias para acusar e condenar uma pessoa. Mas acena do tribunal a que a testemunha é convocada pode ser trans-posta - por exemplo, no livro de Isaías (41 :21 ss.) - em que o casose passa entre lahvé, as nações e Israel: as nações são convidadasa apresentar suas testemunhas (evidentemente, algo impossívelporque elas não têm nenhum testemunho válido em favor deseus falsos deuses), enquanto lahvé transforma seu povo emsuas "testemunhas" (martures) e em seu servo. Além disso, lahvéapresenta-se como testemunha, dando testemunho a respeito ouem favor de outras pessoas, advogado e juiz, mas também - e eleé o único que pode ocupar essa posição - testemunha dele mesmo.

Em uma cena menos grandiosa e mais imediatamente conec-tada com nossos questionamentos, Flávio Josefo é, se ouso dizer,uma boa "testemunha": tratando-se, com efeito, do episódio dosuicídio coletivo na gruta de Y otapata ou do suicídio de Masada,sua narrativa - conforme já foi observado - não infringe a regra dasduas testemunhas: no primeiro caso, ele próprio e um de seus com-panheiros, enquanto as duas mulheres sobreviventes, no segundocaso, podem prestar testemunho do que se passou (FLÁVIOJOSEFO,Guerre des Juijs, 3, 8; 7, 8-9).

Naquelas circunstâncias em que Tucídides trabalhava, como jáevocamos, a partir de uma disjunção entre a testemunha e a visão,Flávio Josefo opera uma conjunção. Ao assistir ao cerco de Jerusa-lém, Tito é declarado, de fato, por Josefo "autoptes kai martus": o

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general romano viu (;0111 os plOpl illN IIIIII,~ (rir 1"111111,1 \1'1'11 Ili~l'iriador) e é testemunha (ele l(;1I1 um 1'0(\\'1 dl' ,llltl'lItl\ ,1~.III) (:1)111

efeito, martus não é simplesmente redundante, Illas :tCl'~'S( \'111.1 II/llIi

dimensão de autoridade. Flávio Josefo sublinha irncdiatauu-nu- 11"

Tito é "o administrador soberano das punições e das rccouipcus.: .•(Ibid., 6, 34). Excelente exemplo de expressão com rcssouâru 1.1

tanto gregas quanto judaicas.

Flávio Josefo conseguiu avançar ainda mais longe nesse S(;IIt i\ I1I

Para defender sua obra, Guerre desJuift, contra os caluniadorcs, rll

se apresenta como um historiador que põe em prática a aUl6p~I.I,portanto, à maneira de Tucídides. Sua história é verdadeira. M.I'vai além: ele serviu-se, de acordo com seu texto, "do testemunho"dos que haviam sido comandantes da guerra, Vespasiano e Tito. "( )imperador Tito - acrescenta ele, em sua Autobiographie - estava 1.111

interessado em que o conhecimento dos acontecimentos fosse trai I

mitido aos homens unicamente a partir de meus livros que estes It'llIsua própria assinatura e foram publicados por sua ordem" (FLÁVIII

JOSEFO,Autobiographie, 363). No entanto, tal operação é totalmenteoposta a Tucídides e à prática grega na área da história, já que se assisu:à primeira implementação do procedimento - que há de tornar-se 01

regra na Idade Média - da autenticação. A testemunha é o fiador (11

auctor latino assumindo algo do histor homérico), e a melhor testem t í

nha será, obviamente, aquele que vier a dispor da maior autoridade

Ao se basearem nesse quadro geral, os cristãos, além de adouna testemunha ocular como a pedra angular da Igreja nascente, transformam a testemunha, o testemunho e sua dramaturgia judicial emuma expressão da Revelação, uma maneira de dizê-Ia, retomandoe deslocando o Antigo Testamento. O texto mais impressionantea esse respeito é o Evangelho de João, o evangelho do testemunhopor excelência e sobre o testemunho. Ele começa com o testernunho de João Batista - questionado pelos fariseus, e cuja função t,

inteiramente a da testemunha (ele é, em primeiro lugar, uma voz:"Este veio para prestar testemunho") - e encerra-se com este ver-sículo que não é do próprio evangelista: "Este é o discípulo que dátestemunho continuamente dessas coisas e as escreveu; e sabemosque seu testemunho é verdadeiro" (Jo, 21:24). Ele estava presente,

218

lili li di~dl'ltllI qlll'jl'SIIS .uu.iv.r, acompanhou-o e quando entrou nrúmul« v.ivio '\:1<.:viu e acreditou". Ele é uma testemunha verídica(deixo de lado a questão de saber seJoão, o filho de Zebedeu, é, ounão, o autor do Evangelho). Entre o início e o fim, vários episódioss50 relatados e, principalmente, o debate - no fundo, o processorecorrente entre os judeus, em particular, os fariseus, e Jesus - quegira em tomo da questão do testemunho. Quem é ele? Se ele afirmaque presta testemunho de si mesmo, seu testemunho não pode serverdadeiro (até em virtude da lei das duas testemunhas). Somentelahvé pode prestar testemunho dele mesmo.

O problema do evangelista Lucas é diferente, e sua interven-ção situa-se em outro plano. Trata-se não tanto de uma mística oude uma teologia do testemunho, mas da sucessão das testemunhas.Não tendo tido contato direto com os acontecimentos, já quepertence à segunda ou à terceira geração, chegou o tempo - julgaele - de proceder a uma primeira colocação em ordem e fixaçãoda tradição, estabelecendo uma linhagem testemunhante. I:~I'i

Considerando que muitos, escreve ele em seu prólogo, já ten-taram reproduzir uma narrativa dos acontecimentos ocorridosentre nós, a partir do que nos foi transmitido por aqueles que,desde o início, se tomaram testemunhas oculares e servidoresda palavra (autoptai kai huperetai genomenoõ, pareceu-me conve-niente, também a mim, depois de me ter informado meticulo-samente de tudo, desde as origens, escrever com esmero para tisegundo a ordem, excelentíssimo Teófilo, a fim de que possasreconhecer a solidez das palavras que ouviste (Lc, 1:1_4).108

Todas as palavras gregas são importantes; elas têm sido, natu-ralmente, comentadas, e o prólogo, como um todo, foi equiparadoaos prefácios dos historiadores ou dos trabalhos científicos (na áreada medicina) gregos. Lucas indica ao destinatário de seu Evange-lho que sua narrativa parte das origens, baseando-se naqueles quetinham visto com os próprios olhos. Ele não utiliza o grego "tes-temunhas", mas a palavra com ressonâncias tucididianas: autoptai.

1I11

108 No original, cita-se a tradução francesa: 130VON, 1991.

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(~iI.:

Os apóstolos viram (;0111O~ p'úl'lin~ IIIIIII~ 1\\1'. i111 11'111111"lIltl/",II,ele cola imediatamente a palavra IIII/II'/I'(rll, SII vtt!tllt'S, ,1,~SIIlI(011111,1forma participialgenomenoi: neste caso, COIIVI'IIIll.tdllzir, creio ~'II,por "aqueles que, desde o início, se tornaram III/(V/I(lIi e scrvidcrc: "Aqueles que viram com os próprios olhos tornaram-se servidores 01/,

para dizer de outro modo, eles viram e acreditaram; e aqueles que,desde o início, se tornaram servidores são aqueles que viram. Vt'le servir são indissociáveis. De tal modo que aqueles que viram scntse tornarem servidores, no fundo, não chegaram a ver realmente. 11aqueles que se tornaram servidores viram - poderíamos acrescenuu- com os olhos da fé. É exatamente nesse ponto que Kierkegaanlbaseará seu paradoxo da contemporaneidade.l'"

Finalmente, compreende-se como é possível, em tal contextode valorização da testemunha, passar da testemunha, martus, parilo mártir - aquele que dá testemunho com seu sangue, não de)"mesmo, mas do Cristo - e que se torna, por sua vez, um elo dacadeia das testemunhas.

Quanto à história, ela se torna, um pouco mais tarde, COJ1lEusébio, Histoire ecclésiastique, precisamente a história da sucessârdas testemunhas, desde o Salvador até o tempo presente. Seu objctivo consiste em estabelecer, preservar e transmitir a sequência dosapóstolos e dos bispos, seus sucessores, além de determinar o queentra, ou não, no cânon dos textos. Nesse sentido, Eusébio cita"testemunhas" e, em seguida, testemunhas de testemunhas - demodo que as primeiras são precisamente aquelas a que se atribuimaior autoridade - e ele reúne "testemunhos" (textos, cartas "diversos documentos). Em resumo, essa história é uma históriacom testemunhas, mas nenhuma autópsia: a escrita do historiadorestá sempre em posição secundária, mesmo quando ele se refere aopresente (HARTOG, 1999, p. 270). Enquanto Tucídides silenciava

'09KIERKEGAARD, 1973, p. 97, 102 em que ele comenta a mensagem: "Bem-aventurados osque não viram e acreditaram". O contemporâneo de um acontecimento profano (por exemplo,assistir às núpcias de um príncipe) é beneficiário de um privilégio em relação à posteridade. Mas;quando se trata de um acontecimento, tal como a encamação, o contemporâneo imediato não viu,no fundo, algo a mais relativamente a alguém da geração posterior; ambos são contemporâneosna autópsia da fe. Eis o que já deixava entender a formulação do Evangelho de São João.

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A ""IMIIIIII~ I ti "IMIIMIAII"!

as Il~~lt1111I11has,ele lhes dá inteiramente a palavra e desaparece portrás delas. O historiador como compilador - que vamos encontrarexpressamente no século XIII - já se manifesta nesse momento.

Da testemunha dispensada ao retorno da testemunha

Tendo chegado a este ponto de nossa digressão historiográfi-ca, todos os componentes da testemunha, tais como os havíamosrecebido e esquecido, estão bem identificados; assim, o resto docaminho pode ser percorrido mais rapidamente. ~ test;:.munha {~mana e divina) constitui o núcleo dos escritos cristãos e se encontra~;-rm;go da Igreja- coii:to i~stitu;çio. Entretanto, 7s~;-;riunfo d~

~~_..- . ..-- - >- _ ••••. , fI'Ir •• ••.• -....,

testémunha parece abrir, paradoxalmente, uma era em q~a te~t~-munha (como presença viva) será dispensada, tanto mai~ q~~, ~séculos seguintes, aquela que será revestida de autoridade é, antesde mais nada, a testemunha como auctor, como aut.2.!i<!4fk.

'''!"' -

No século VIII, ao encetar sua Histoire ecclésiastique du peupleanglais, Beda começa por nomear suas principais testemunhas,auctores, seus fiadores, suas autoridades, a quem ele atribui tambémuma página mais abaixo, o qualificativo de testis, o termo usualpara testemunha (BEDA, 1969, 1999). Trata-se de pessoas que,por sua vez, haviam adquirido seus conhecimentos de diferentesmaneiras (tanto por via oral, quanto por escrito). À semelhançade Eusébio, Beda limita-se a coletar e reunir esses testemunhosad instructionem posteritatis. Ao traduzir por "sources" ["fontes"],como fazem os comentaristas modernos, queima-se uma etapa.Com efeito, tal economia do testemunho produziu, de formabastante lógica, um sistema de avaliação, organizado de acordocom a polaridade do autêntico e do apócrifo, que é de fato umaponderação da autoridade respectiva das testemunhas, a começarpor aquela que a possui em maior grau até aquela que dispõe demenor grau de autoridade. Tal sistema de produção e de controledos enunciados não coincide, como se compreende facilmente,com a partilha entre verdadeiro e falso. Eis o motivo pelo qual otriunfo da testemunha pode ser considerado também, em outrosentido, como seu canto do cisne.

221

11

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~\l1I11tII.I~ iI~ 11I00,~·~1

~:c(-riI,

Logicamcutc, O llistolltldol IHIH 1'lIdllf1,ll~d,l~IIIII.I~"1~1t1l1l.1

do final do século XII até o século X IV ,IPI t·St·I}!.II ·Sl' " 11111lI)

compilador (colligere, cornpilare), chegando JlICSlllO :\ rciviud]: .u ('~~,I

qualidade de cornpilator. Ele não é aucior, mas ((lll/pilrl/or (:, II~~"I •

1985, p. 124). Compilador significa, em primeiro lugar, qu« rI,não é uma "testemunha": não tem autoridade própria. O que (, '1"'ele faz? Reúne os textos dos outros; o próprio texto é composto d,extratos precisamente de auctores. Assim, logicamente, ele pcrnuuuce, muitas vezes, anônimo. Mas, em breve, ele vai reivindicar P,I 1.1

si, na primeira pessoa e com seu nome, a função de compilador."Ego ... compilavi"; não sou auctor, mas o autor de minha compilaç.mA tal ponto que os próprios prólogos hão de tornar-se compilaçõde prólogos anteriores. "Vejam só - eis o que ele poderia dizcisou um compilator que conhece seu ofício!". Finalmente, por lI11I.'

nova ousadia, essa autoridade incipiente do compilator poderá lcv.i10 a utilizar, de vez em quando, ao lado dos textos autênticos, 1I1I I

texto apócrifo, ou seja, sem autoridade própria, mas que, por SVII

intermédio, pode ser lido e aceito como autêntico. O que se produz.~efetivamente a partir do século XIII: quanto mais o,fqlJJpilator V,II

tornar-se um autor: tant~ '~enos ~ auctor se~á u-;:;~ autoridade 0'1,

y~d;ê-k;~de o~r;~fQL~~:=~..!ransform;çã~· J;;auêtor de testem 11

nha em fon~a afirmaç:;Io do hi;Í:~riador como compila(,o/------ _~ --- .•..• .,.., -,~... ,p''''' -"'---

Quando, no século XIX, a história torna::;;~'ciência, ciência do pnssado, resta-lhe tão somente declarar que ela se faz com "documentos", isublinhando - na esteira de Langlois e Seignobos - que a "autenticidade", noção "pedida de empréstimo à linguagem judicial, diz respeitounicamente à proveniência e não ao conteúdo do documento", alóm \de definir que uma ciência constituída só pode aceitar "a transmissãoescrita" (LANGLOIS;SEIGNOBOS,1898, p. 133, 153).A história é a ciênciados vestígios escritos. A partir da orla do presente, o historiador ausente limita-se a ser o olho que lê arquivos. Exit a testemunha. O audi»desapareceu. Mas o compilator é também recusado: os fatos exprimemalgo, e o historiador, à semelhança de Bouvard e Pécuchet,'!? deveriaser (idealmente) apenas um scriptor, ou seja, um copista.

110 Trata-se dos dois personagens, crédulos, do romance homônimo de Gustave Flaubert. (N.T.).

222

1111 hll MIIIIII~ I II 1114111~IAIi'.I~

H, Id, ulcmcntc, essa ciência pura, positiva e crítica, ql1e haviasido Ohjl'l o tI:1 mais ardorosa crença de l!m Pustel de C~l!la~g~§.,J:~1p-sido sempre contestada; recusada, mas também substituída por umaciência que, em estruturas invisíveis a olho nu, procurava em profun-didade apreender, da forma mais verdadeira possível, o movimentoreal das sociedades, na linhagem da visibilidade invisível perseguidapor Michelet (ver, supra, p. 149-154). História que conta e avalia,

.~ônim~as _io.r..ç~_s.2rodut!y'~~,~h~~ória_~E9..l!~gi_ógic.a~·"~t.§mesmo, arquitetônica dos períodos de .longa duração. As ver~ad.~~r~testemülllíáS'saü' iiJ'dices a calcular, ao passo que o~ teste~~"cllO~ ..S~º..---k ...,curvas a construir. As fontes tornam-se dados que, processados devi--,--- ~-,

damente e introduzidos em máquinas, dizem o que eram incapazesde exprimir em estado bruto. Colocados em série, os testemunhosrespondem a questões que eles não haviam formulado diretamente.As testemunhas de primeiro nível não sabem o que elas dizem ou,mais exatamente, eram incapazes de saber: somente o historiador(aliás, algo que é válido para qualquer especialista das ciências sociais)está em condições de decifrar, ou seja, de reconstruir as mensagensde que as testemunhas eram portadoras. Se ele põe em prática ereivindica uma forma de autópsia diferente daquela que havia sidoadotada por Tucídides, o historiador dos vestígios cada vez menosvisíveis (invisíveis a olho nu) tem a mesma ambição ou pretensãode ver o real e, como ele, de qualquer modo, é efetivamente oúnico sujeito de enunciação. Dessa história anônima, vai operar-sea passagem para uma história dos anônimos que, em parte, será o ca-derno de encargos de uma história das mentalidades. Até a enfrentaro desafio, identificado por Alain Corbin, de escrever a história deum anônimo em seu anonimato individual (CORBIN, 1998).

Mas, no decorrer dos séculos XIX e XX, não cessaram dese manifestar vozes dissonantes que, de uma forma ou de outra,procuraram reintroduzir a testemunha e o testemunho. Não, evi-dentemente, como sistema de autoridades, regulamentando o queé admissível, nem como elemento constitutivo de um indício, mascomo presença: como voz e memória viva. Na primeira fila, seriapossível encontrar Michelet, evocado precisamente como o ante-cessor da história das mentalidades. "Nas galerias solitárias do prédio

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dos Arquivos (ver supra, p. J 51) pelas tJlI,IIN11.'.,11111111111 dlll.llltl' VIII(('anos, alguns murmúrios, apesar do profundo siltil li 10, ('hl'l:~aV,\ll1aosmeus ouvidos. Os sofrimentos longínquos de tantas allllas SUfOC:HJ:tS

dessas antigas eras se queixavam em voz baixa" (MICI-IELET,Préfaccde 1869, 1974, p. 24, e supra, p. 152-154). Os documentos são vozesexigentes e portadoras de uma dívida a pagar. Mas, para ouvir essestestemunhos, o historiador deve dirigir-se aos arquivos, ou seja,mergulhar nas profundezas de uma época. Ele deve "atravessar evoltar a atravessar o rio dos mortos", transgredir deliberadamente afronteira entre o passado e o presente. Resta-lhe, na sequência, fazerouvir essas vozes, o que não significa, de modo algum, desaparecerà frente delas. É, pelo contrário, essa operação que, de acordo comMichelet, revela o verdadeiro historiador.

Seria possível mencionar, em seguida, Péguy, que, marcadoindelevelmente pelo "Affaire Dreyfus", 111 não cessou de opormemória e história, Michelet a Langlois, Seignobos ou Lavisse.Ele teria desejado tanto que o próprio Dreyfus não participasse natransformação do "Atraire"em história: essa é "longitudinal", diziaele, enquanto a memória é "vertical" e "rememoração" (PÉGUY,t.3, p. 1190-1191).

O "Affaire" teve também importante consequência, não previs-ta, acabando por ser como que um caso particular na longa históriadas relações entre o historiador e a testemunha. Alguns historiadoresforam chamados a intervir como testemunhas no processo Zola epor ocasião do processo de Rennes. Do ponto de vista do código,eles são testemunhas (e devem comportar-se como tais, prestarjura-mento, respeitar a natureza oral dos debates), mas tecnicamente, suaperícia na qualidade de cientistas (e seus títulos foram mencionadosno tribunal) é que lhes permite refutar, com autoridade, os Bertillone os outros que são os peritos oficiais (L'ciffaire Dreyfus, 1998). Nestecaso, encontramos a testemunha como auctor, como autoridade

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111 Pelo fato de sua ascendência judaica, o oficial francês, Alfred Dreyfus, foi injustamente conde-nado por espionagem em favor dos alemães (1894), tendo sido reabilitado (1906) após vioientacampanha de revisão de seu processo que tinha dividido a França em dois campos. Cf. adiante,nota 126, p. 241. (N.T.).

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liVll~S(,I, 111111 ,I dilt'1"cll<;:Ide que ela vem rejeitando desde o passad:lc6 () PI\'St'IIte, peja primeira vez ou durante um instante, o corteque, 110 resto do tempo, sua prática afirma ter a obrigação de exigir.Dessa experiência, vai permanecer até hoje uma matriz dreyfusardeque diz respeito ao papel do historiador. Se ele não é justiceiro,nem está "incumbido da vingança dos povos", de qualquer modoem uma cena efetiva ou supostamente judicial, o historiador (seriamais exato utilizar esta expressão: alguns historiadores) envolver-se-ános casos de seu presente: seja como testemunha (misturando auctore autópsia), seja como juiz de instrução (retomando uma instruçãomal feita, desmascarando as testemunhas falsas, substituindo os tes-temunhos que faltam). Após L'a.ffaire Audin de Pierre Vidal-Naquet(1958), travou-se, no decorrer das décadas de 1980 e de 1990, a lutacontra o revisionismo, assim como os processos por crimes contra ahumanidade, em que o historiador exerceu o papel de testemunha(THOMAS,1998; DUMOULIN,2003).

Nesse mesmo cortejo de vozes dissonantes, e marcada pelaGuerra de 1914, seria possível colocar tanto a reflexão de WalterBenjamin, organizada em torno da noção de "rememoração",quanto uma grande parte das críticas dirigi das contra o historicismo.

Mais perto de nós, a partir de meados da década de 1970, obrusco interesse pela história oral, à qual Philippe Joutard dedicouum livro - sob o título Ces voix qui naus viennent du passé, fazendo-seeco da obra de P. Thompson, The Vaiee if the Past -, seria umaindicação clara. História oral? Não - responderam, na época, algunshistoriadores, tais como Pierre Goubert. "Cada um de nós quer seucavalo do orgulho, seu antepassado vaticinante ou sua Mêre Denis'Fe nossos pedagogos adoram esse tipo de literatura: é o que se designapor história oral (eventuais bisbilhotices)" GOUTARD,1983, p. 7).Outros - a maioria dos historiadores do contemporâneo - após

112 A imagem sólida e simpática desta lavadeira era conhecida, em 1982, por mais de 80% dos franceses; defato, ela havia sido escolhida, na década de 1970, por uma grande marca de eletrodomésticos que pro-curava uma autêntica lavadeira para simbolizar a qualidade do trabalho executado por seus aparelhos.Por sua vez, o cavalo do orgulho faz alusão ao Livro, Le Cheval d'orgueil, de Pierre-jakez Hélias,publicado em 1975: em um recanto da Bretanha, um homem em idade avançada lembra-se desua infancia. (N.T.).

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reflexão, responderam: história or.il? Silll, (11111;1'Illldi~'n() de 1:.1:\1de "fontes orais" (VOLDMAN,1992).J5 villlus (01110 o autor se tinhatransformado em uma fonte; atualmente, a testemunha voltou asurgir como voz, a história profissional estende-lhe de bom gradseus microfones, com a condição de poder inscrevê-Ia em seusregistros como "fonte". Daí, talvez, a ambiguidade dessa definiçãoda história contemporânea ou do tempo presente como "históriacom testemunhas": nesse binômio proposto pelo historiador, a tes-temunha não correria o risco de esquecer que, para o historiador,ela não passa finalmente de uma fonte? Não seria tentada a escapara seus mentores e a falar em seu nome? Não teria encontrado ouvi-dos, microfones, rnídia para escutá-Ia, até mesmo, para solicitar-lhe apalavra? Sem intermediário. E o historiador fala, então, menos dememória e de história da memória, mas sobretudo de história, ouseja, de arquivos de textos escritos, de críticas das fontes e do oficiode historiador. Seu pesadelo seria, talvez, o de uma memória, aomesmo tempo, mercadoria e sacralizada, fragmentada e formatada,estilhaçada e exaustiva, escapando aos historiadores e circulando nainternet, como a verdadeira história da época.

Última voz dissonante, pelo menos, na aparência: a de ClaudeLanzmann. Ela não está assim tão distanciada, em princípio, nomínimo das vozes de Péguy ou de Benjamin. Com efeito, Lanz-mann se opôs com constância aos historiadores e ao que ele designacomo seu "ponto de vista saliente". Com sua película, Shoah, elepretendeu justamente "reabilitar o testemunho oral". Trata-se deum filme de testemunhas e sobre o testemunho, mas não sobre ossobreviventes e seu destino, de preferência, sobre a "radicalidade damorte". Shoah, afirmou ele e repetiu, não é da ordem da lembran-ça, mas do "imemorial" porque sua verdade está na "abolição dadistância entre passado e presente" (LANZMANN,1998). Com efeito,sua força está em levar o espectador a ver "homens que entram emsua existência de testemunha" (DEGUY,1990, p. 40).

Com o filme de Lanzmann, volto a meu ponto de partida.De fato, essa última voz dissonante está em plena ressonância coma centralidade recentemente adquirida de Auschwitz (ainda maisnitidamente perceptível nos EUA que na França, país em que ela

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dvv(' p.l~~;11IH'lo I'IIStll:! acinzcntado de Vicliy). 1\ maré viva emrclaçâo .1 IIIl'lI1Óriaque invadiu o mundo ocidental (e ocidentali-zado) é, com efeito, inseparável da - e seria incompreensível sema - onda propagada por Auschwitz. A testemunha é levada por ela,sem deixar também de transportá-Ia pelo fato de ser, se posso falarassim, seu rosto e sua voz, assim como seu rumor. Na expectativade outras ondas e de outras marés vivas.

A esta altura, vamos concluir com três observações.

A historiografia do século XX pode inscrever-se, em geral,em um paradigma do vestígio. Com o movimento ascendente datestemunha, é a voz, o fenômeno da voz que deveria ser levado emconsideração. Não estou em condições de garantir que a expressão"fontes orais" , proposta pelos historiadores, seja suficiente para resolvero problema. Paul Ricceur, observador sempre perspicaz e ágil do queestá em via de se passar, retomou ou completou sua reflexão sobre anarrativa histórica por uma análise das trocas entre memória e história.Considerando o testemunho como uma "estrutura de transição" entrea memória e a história, ele propõe "substituir o enigma da relação desemelhança (se e como uma narrativa se assemelha a um aconteci-mento) pelo enigma, talvez menos inacessível, da relação fiduciária,constitutiva da credibilidade do testemunho" (RICCEUR,1998, p. 14;ver depois RICCEUR,2000). Do ponto de vista epistemológico, essedeslocamento ou esse complemento ajuda a compreender e a refletir.Naturalmente, ainda sobram questões sem resposta.

A testemunha de hoje em dia é uma vítima ou o descendente deuma vítima. Esse estatuto de vítima serve de suporte à sua autoridadee alimenta a espécie de temor reverente que, às vezes, a acompanha.Daí, o risco de uma confusão entre autenticidade e verdade ou, piorainda, de uma identificação da segunda com a primeira, no momentoem que deveria ser mantida a separação entre a veracidade e a con-fiabilidade, por um lado, e, por outro, a verdade e a prova.

Em várias ocasiões, George Steiner estabeleceu a relação entrea noite do Gólgota e as fumaças de Auschwitz, indicando que aindadeveriam ser pensadas as "conexões" entre esses dois acontecimentos(STEINER,1995, p. 395). Não tenho nenhuma qualificação para me

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pronunciar sobre esse ponto t' dl'II'I'.1 ,111,1 I fI"I'! II I I~I t I di' 1111111nVI~;1I

uma teologia de pacotilha. Mas o perClIISO que ,1t':!l),IIIIOS til- 1.11'1'1

conduz, pelo menos, a colocar face a face esses dois 1)101l1l'IIIOS dIcrise do testemunho, respectivamente, por volta do século I n v 11.1

década de 1980. Se os conteúdos, as mensagens, as ternporalidndi-induzidas, etc., são totalmente diferentes, encontramos, no minimoem ambos os lados, a mesma questão da urgência a dar testemunho (a da transmissão (o vícarious witnessy."? O que designei como o tri LI Jl n)da testemunha (o primeiro momento) culminou em uma forma ti"história - justamente, de testemunhos -, a história eclesiástica qUI'

marcou de forma duradoura a historiografia ocidental. O segundomomento, atual, com a considerável literatura de testemunho (emsentido amplo) que, daqui em diante, vai acompanhá-Ia e continu.icrescendo, não correria o risco de reativar, em total ignorância,algo desse modelo?

A história é escrita pelos vencedores, mas apenas durantealgum tempo, como lembrou Reinhart KoseUeck, porque "osnovos conhecimentos na área da história provêm, no longo prazo,dos vencidos" (KOSELLECK,1997, p. 239). Eis o que reformularci,convocando pela última vez meu histor do início. Enquanto a his~ória dos vencedores limita-se a olhar para um só lado, o próprio, :Ihistória dos vencidos deve levar em consideração, para compreendero que se passou, os dois lados. Uma história das testemunhas oudas vítimas estará em condições de reconhecer essa exigência, aliás,l

embutida na antiquíssima palavra historia?

113 Sobre a questão da testemunha e do historiador em relação à história da "Rêsistance", incluindo,entre outros fatores, a entrada em cena dos descendentes, ver DOUZOU, 2005.

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APrlULO VI

Conjuntura do final de século:a evidência em questão?

Trata-se apenas de notas, extraídas do caderno de um historia-dor. Nada mais do que esboços rápidos de várias características daconjuntura recente. Fazer história, atualmente? Em primeiro lugar,como formular a questão, trinta anos depois dos volumes dirigidosporJacques Le Goff e Pierre Nora (1974), publicados sob esse títuloe que, rapidamente, se tornaram famosos com sua tripartição: novosobjetos, novas abordagens, novos problemasi'!'"

As páginas seguintes prolongam os capítulos prec~2t~~, focali-zados sobre as disputas da narrativa, assim como sobre a testemunha eõ historiador: maneiras modernas de retomar a questão da evidência. ,O primeiro capítulo sugeria abordar a questão da narrativa e de seu"retorno", assim como, de forma mais abrangente, o fenômeno davirada linguística sob um prisma de duração mais longa. O mesmoocorria com o segundo capítulo, que apresentava as relações esta-belecidas entre a testemunha e o historiador. A recente ascendênciada testemunha no espaço público é, com efeito, um nítido indíciodas mudanças da conjuntura e, em particular, da posição ocupada,daí em diante, pela categoria do presente (HARTOG; REVEL, 2001).Por sua vez, o capítulo sobre o olhar distanciado de Lévi-Straussajudou-nos a colocar a história em perspectiva.

Neste primeiro esboço, acrescentemos ainda três característicassuplementares: os problemas suscitados pelos arquivos, a questão

114 Para a conjuntura presente, ver, entre outros t.extos, Le Débat, 2000. E, em relação à história,DUMOULIN, 2003.

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