nefilim livro 01 o beijo do amanhecer leah cohn

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TWKliek Leah Cohn

Série Nefilim 01

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Comentário da Revisora Cris Reinbold: Um livro de narração fácil de ler, escrito na primeira

pessoa, conta a historia de uma humana que sem querer se pega entre uma guerra de anjos

caídos, seres cheios de mistérios, tendo que escolher, sem saber o que escolher, e escolhendo a

felicidade de sua filha.

Comentário da Revisora Ca S: Realmente um livro gostoso de ler, uma narrativa

envolvente... em uma batalha surpreendente entre bem e mal, gostei muito...

Quando, os Filhos do Céu, viram as filhas dos homens tão bonitas e doces, tiveram tanto

desejo delas, que disseram:

— Procuremos mulheres entre as filhas dos homens e tenhamos descendência com elas.

Cada um procurou então uma mulher e a deixou grávida, e deram a luz gigantes que

devoraram o fruto do trabalho dos homens e logo se voltaram contra estes para matá-los e

devorá-los. Os homens então se queixaram do que os Ímpios fizeram com a terra.

Os arcanjos Gabriel, Uriel, Rafael e Miguel olharam do céu e viram todo o sangue que

derramava sobre a terra e levaram o assunto diante do Eterno.

Então o Senhor disse:

— Vão contra os Bastardos, rechaçado-los. Eliminem estes filhos dos anjos caídos e deixem

que se enfrentem entre eles para que se eliminem na luta. Os pais desses filhos esperavam que

tivessem uma vida eterna, mas este desejo não será concedido.

—Livro de Enoc

Evangelhos Apócrifos

Prólogo

Viu-a e em seguida soube quem era.

Um meio-dia abafadiço deu passo a uma tarde temperada; as badaladas das numerosas

Igrejas da cidade anunciavam o fim da jornada trabalhista: as da catedral, ensurdecedoras e fortes,

as da igreja franciscana, mais clara e suave. Junto a ele discorriam pelo mole as habituais equipes

de operários, e entre eles um carro de cavalos chiavam carregados de turistas japoneses que

percorriam o capelo.

Todos aqueles ruídos extinguiram assim que a viu. E as massas humanas que naquele

momento desfilavam sem descanso pareciam voltar invisíveis. Um calafrio percorreu o corpo.

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Série Nefilim 01

3

Quando apenas afastou cinco passos, levantou de um dos bancos do Salzach e foi atrás dela. Tinha

o olhar cravado em suas costas, como se uma corda invisível o impulsionasse a segui-la.

Dava igual aonde fosse, para onde dirigisse o que planejasse como vivesse: a partir daquele

momento a seguiria e jamais a deixaria escapar.

Bastou uma fração de segundo para entrever os cantos mais ocultos de sua alma.

Era uma das escolhidas.

E ele a encontrou, já fosse por acaso ou graças a um plano urdido por um remoto poder do

destino. Sentia eletrizado, avançava a passos cada vez maiores e acelerava a respiração, embora,

quando se recuperou um pouco do impacto daquela repentina revelação, conseguiu dominar a

emoção. Não devia chamar a atenção, não podia apresentar sem mais. Ainda não.

Era uma das vantagens de viver uma vida tão longa, tão angustiosamente longa, de fato, que

depois de tanto tempo não só podia confiar na infalibilidade de seu instinto, mas também, além

disso, a magia do amor já não cegaria nem anularia a força de vontade como antes. Controlava

seus sentimentos, embora fossem intensos, os mais intensos, fascinantes, vivos, ansiosos.

Desfrutou de seu maravilhoso aroma, gravou cada detalhe de sua silhueta. Outras pessoas,

superficiais, precipitadas, indiferentes, carentes de seu olhar cultivado, talvez não se tivessem

fixado nela nem teriam precavido de sua beleza, da delicadeza de seus traços, a claridade de sua

pele, seu cabelo loiro e ligeiramente encaracolado, a cor mel de seus olhos, seu caminhar suave e

silencioso, a elegância de seus movimentos. Tinha a cabeça um pouco inclinada, mas os ombros

erguidos, e arrepiado o pelo dos nus antebraços. Suas mãos eram magras e finas. Não marcavam

as veias nem aparecia enrugada ou sulcos que entorpecessem o aspecto alabastrino de sua tez.

Ainda era jovem, uma cria, provavelmente não completou vinte anos.

Ela caminhava com obstinação, e não parou frente a uma cristaleira nem diante da mulher

que vendia pequenas bonecas que fazia dançar. Tampouco permitiu que um grupo de jovens que

gritavam, enquanto passavam cigarros e garrafas de cerveja, distraísse de seu caminho.

Quando ele viu que uma gota de cerveja salpicava a blusa clara, sentiu raiva diante de tanta

desconsideração e falta de respeito. Entretanto, também conseguiu contê-la, igual à necessidade

de dirigir a ela, agarrá-la. O que não conseguiu reprimir foi o grito que proferiu ao topar com uma

sombra. Uma silhueta do mesmo tamanho que ele, igualmente gracioso, magra e, ao parecer,

forte, interpôs em seu caminho.

Abriu os olhos de par em par e durante uns segundos ficou paralisado.

O desgosto, o asco e o ódio surgiram do mais profundo de sua alma. Aqueles sentimentos

eram velhos, antiquíssimos conhecidos, e mesmo assim não desapareciam, mas sim eram cada vez

mais intensos. Apertavam o pescoço.

—Você! — exclamou com voz rouca.

O delicioso aroma da garota evaporou, sua cabeleira loira desapareceu entre a multidão.

Afastou dele, e com ela se desvaneceu o triunfo de tê-la encontrado.

—Não dê nem um passo mais! — exclamou o outro com expressão ameaçadora e ar sinistro.

—O que fará se não? — respondeu ele entre dentes.

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Série Nefilim 01

4

Sentiu uma mão no pescoço que apertava sem compaixão. Uma mão quente.

Como odiava esse calor! Recordava à frieza de seu próprio corpo.

Afastou a mão com brutalidade, ao tempo que desviava o olhar com dissimulação para a

cintura do outro.

É obvio, ia armado. Como não?

O que odiava, mais ainda que o calor do outro, era a sensação de sentir constantemente

espreitado e açoitado, a certeza de que sempre, inclusive em um momento mágico como aquele,

encontraria com um adversário.

—Saia! —ordenou o outro— Não perdeu nada aqui!

Olhou ao redor e decidiu que devia evitar uma luta encarniçada diante de tantas pessoas.

Isso também o ensinou sua longa vida: era melhor trabalhar em sua obra às escondidas e

sem testemunhas. A paciência é uma virtude maior que a temeridade de colocar em uma briga

inoportuna.

Mediram em silencio durante um momento, logo ele assentiu supostamente abatido. Sem

afastar o olhar de seu adversário, retirou dando passos pequenos. Assim que teve afastado uns

dez metros, deu meia volta e desapareceu a toda pressa no labirinto de ruelas retorcidas.

Sim, jurou a si mesmo, o prudente era retirar, mas isso não significava que fosse renunciar a

ela. Lutaria por ela até derramar a última gota de sangue ou o que fosse que corresse por suas

veias.

Capítulo 1

O dia em que conheci Nathanael Grigori, e no que minha vida terminou e começou ao

mesmo tempo, era instável e borrascoso. Levava toda a semana garoando com frequência, e a

Getreidegasse de Salzburg se converteu em um mar ondulante de guarda-chuva. O guarda-chuva

dos guias elevava entre os grupos de turistas. As pessoas se aglomeravam como de costume,

diante da casa onde nasceu Mozart, mas essa manhã conseguiu abrir passo entre a multidão sem

levar nenhuma cotovelada.

Vivia em um pequeno andar na Rua Goldgasse que compartilhava com minha amiga Nele.

Saí dali e, ao chegar à ponte de Makartsteg, atravessei até a outra borda de Salzach, o rio marrom

esverdeado que discorria por debaixo com um murmúrio. Levava as partituras sob o braço, como

sempre, e enquanto caminhava ia repassando de cor a Sonata para piano op. 31, nº 2 em ré menor

de Beethoven, uma das peças que teria que tocar no exame de primeiro ciclo, para o que faltavam

poucas semanas. Só de pensar punha a tremer e suavam as mãos. Não me consolava que essa

mesma manhã Nele houvesse dito com uma convicção férrea que isso seria pão comido para mim.

Acaso não superei os primeiros sete semestres de meus estudos de piano sem esforços e quase

sempre com as melhores notas? Dizia. Teria-me aceito como aluna um professor como Rudolph

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Série Nefilim 01

5

Wagner três anos antes, então tinha dezesseis anos, de não ter visto em mim um talento

extraordinário? Normalmente não ensinava a estudantes de primeiro ciclo, a não ser a futuros

licenciados que não só eram maiores que eu, mas também tocavam em público mais

frequentemente.

Para mim, entretanto, saber que fez uma exceção comigo era uma carga mais que uma

honra. Apaixonava tocar piano sempre e quando estivesse sozinha, mas assim que havia alguém

escutando, me formava um nó na garganta pelo medo de me equivocar. E esse medo não era

capaz de me tirar isso nem o professor Wagner, que estava acostumado a me pedir entre bufos

que procurasse controlar um pouco os nervos, nem é obvio Nele, que dizia que, a julgar por minha

cara, parecia que em lugar de ir a aula fosse a minha própria execução. O que sabia ela! No final,

não se dedicava à música. Estudava psicologia, e além disso, sem muito esmero, porque, embora

fosse quase cinco anos mais velha que eu, não tinha as coisas claras: umas vezes queria dedicar à

publicidade, outras à investigação, e outras proclamava aos quatro ventos que seria assistente

social e ajudaria a jovens drogados a represar sua vida. A questão é que ela não tinha uma ideia

muito clara do que queria fazer na vida. Eu sim. Desde que tenho uso de razão sei que quero ser

pianista.

Minha aula particular com o professor Wagner começava às três da tarde, assim ainda

ficavam duas horas que podia aproveitar para esquentar em alguma das salas de estudo. Embora

em nosso pequeno andar também tínhamos um piano, se pudesse me organizar, preferia praticar

em um dos Bösendorfer ou Steinway de cauda da escola.

Cheguei a Mozarteum, nos Mirabellgarten, um imenso edifício cúbico que albergava sob seu

teto salas de aula, arquivos, salas de concertos e estudo. Nos anódinos corredores do primeiro

porão esperavam as dissonâncias que estavam acostumadas a criar a mescla de melodias, o aroma

de pó das partituras e uns quantos estudantes que falavam entre sussurros a caminho a suas

aulas. Passei apressada por seu lado sem chamar a atenção.

Sabia o nome da maioria de meus companheiros, e com alguns tocava com regularidade,

mas custava encontrar amigos de verdade. Uma vez ouvi por acaso que me chamavam “a

japonesa”. Fui tão tola que me senti muito adulada porque pensei nessas estudantes asiáticas que

pelo geral são muito trabalhadoras e perfeccionistas. Depois coincidi na aula de história da música

com Jan Meyer, estudante de clarinete, e me explicou que a comparação distava muito de ser um

louvor. A conversa começou porque ele perdeu as últimas aulas e me perguntou se podia copiar

meus apontamentos. Quando viu que não só estava disposta a emprestar de bom grado, mas

também a explicar os pontos mais importantes, olhou-me assombrado.

—Você não é assim!

—E como sou?

—Bom, já sabe... Como as japonesas.

Franzi o sobrecenho.

—Mas se forem das melhores estudantes!

—Por isso! —exclamou ele.

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Ao ver que minha confusão era cada vez maior, pôs a rir e me explicou entre gargalhadas

que me tinha por uma nerd triste, antiquada e bastante tímida. Eu me senti profundamente

ferida, mas tentei dissimulá-lo e forcei uma risada, que a meus ouvidos soava tensa igual a sua. Ele

pousou a mão em meu ombro com doçura.

—Não se ofenda — me disse.

—Não estou ofendida! —apressei a responder entre envergonhada e furiosa.

Ele pôs a rir de novo e me acenderam as bochechas até que, ao final, exclamei zangada:

—É que não têm nada melhor a fazer que rir de mim? —E depois baixei o olhar para evitar

que visse minhas lágrimas.

Essa classe de episódios não me ajudava a ganhar as simpatias de outros nem me animavam

a me mostrar mais sociável. Fazia muito tempo que nenhum companheiro me convidava a

acompanhá-los a um bar ou a alguma das muitas festas de estudantes. Por isso me surpreendeu

tanto que, de repente, esse dia alguém saísse dentre a multidão e gritasse meu nome. Depois de

ouvi-lo várias vezes me dava conta de que, efetivamente, referia a mim, e me voltei vacilante.

—Sophie! Sophie espera!

Quem apareceu correndo para mim era Hanne Lechner, uma estudante de canto tão vaidosa

e arrogante como se tivesse cantado várias óperas no Met. Os mesmos companheiros que riam de

mim e me chamavam “a japonesa” duvidavam à suas costas de que tivesse uma voz tão boa como

dizia. Comigo, entretanto, sempre se mostrou muito amável, provavelmente em parte porque eu

não era cantante e não competia com ela. Sua estatura, media mais de um metro oitenta, e sua

imponente voz me intimidavam, e na sua presença tinha a sensação de que devia encolher o

estômago e baixar a cabeça porque não ficava espaço ao seu redor.

—É que... Tenho que ensaiar...

—Como todos — respondeu, e bloqueou o passo sem alterar. Inclinou para diante em

confiança e me sussurrou ao ouvido— Se inteirou que deve tocar Nathanael Grigori?

Seu fôlego era quente e cheirava aos caramelos de hortelã que chupava com a mesma

ostentação com que se enrolava o lenço de cores ao pescoço. Assim era como conservava sua

delicada voz, algo que explicava com todo luxo de detalhes sempre que encontrava a ocasião,

queriam ouvi-lo demais ou não.

Neguei com a cabeça. Nunca ouvi esse nome.

—Pois a você deveria interessar especialmente — prosseguiu Hanne— Você também toca o

chelo, não?

Em efeito, havia tocado o violoncelo durante vários anos, mas desde que estudava piano,

minha grande paixão, não tinha tempo. De todos os modos, como na escola nos obrigavam a ter

aulas conjuntas além das individuais, às vezes aproveitava para tocar com uma chelista de

Hamburgo.

—Sim — me apressei a dizer, e comecei a tramar a maneira de me desfazer dela sem

parecer mal educada— Mas não conheço nenhum Nathanael Grigori — acrescentei em seguida,

embora minhas palavras não tivéssemos o efeito que esperava.

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—Por Deus, Sophie! —exclamou Hanne com histrionismo, me lançando à cara uma baforada

de fôlego mentolado mais quente ainda— Em que mundo vive? Nathanael Grigori ganhou o

prêmio Leonard Bernstein deste ano!

O Leonard Bernstein era, em efeito, um dos prêmios de música mais importantes para

jovens artistas.

—E isso não é tudo — continuou Hanne— além disso, obteve o primeiro posto no concurso

de violoncelo Leonard Rose, o prêmio Eugene Istomin, e faz uns anos foi renomado pela Fundação

Pró Europeia melhor artista novel. Imagine se aos onze anos já o admitiram na escola Yehudi

Menuhin de Londres!

—E o que faz em Salzburg? —quis saber.

Hanne encolheu os ombros e começou a fazer minuciosos nós no lenço.

—Nem ideia. Talvez tenha algum compromisso nos festivais do verão. Ou talvez viesse ter

umas horas de aula com algum dos professores. Não sei se terminou os estudos, jovem que é...

Deve ter vinte e poucos.

—Tenho que estudar... — repeti cada vez mais impaciente.

—Vamos, vêem dar uma olhada! À margem da música, não se vêem muitos homens como

ele. Esse menino é um presente para a vista, inclusive para uma ceguinha como você, que vai pela

vida com uma atadura nos olhos.

“Ceguinha.” Ao menos não me chamou “japonesa”, embora no fundo quisesse dizer o

mesmo: que era uma aborrecida. Ninguém trocava comigo mais palavras que as justas. Ninguém

queria perder o tempo comigo.

Dissimulei a dolorosa sensação de humilhação que comecei a sentir apertando os lábios, e

com isso perdi a oportunidade de fugir de Hanne. Antes que pudesse me negar, já me tinha

miserável com ela, assim que a segui, por um lado porque albergava a esperança de que assim

resultasse mais fácil me desfazer dela, e pelo outro porque não me atrevia a desafiar seu

autoritarismo. A mão quente e grande de Hanne sobre meu braço me resultava desagradável, mas

preferia morrer antes que demonstrar.

De caminho seguiu me falando de Nathanael Grigori.

—Já tocou com muitas orquestras grandes. Recentemente atuou com a Sinfônica de

Varsóvia e logo com a Orquestra de Câmara da Alemanha. Também ouvi que deu um concerto no

Royal Festival...

De repente calou. Ou talvez não calasse, mas sim eu simplesmente deixei de escutá-la

porque outra coisa cativou por completo minha atenção.

Hanne não era a única que queria ouvir tocar Nathanael Grigori. Diante de uma das salas de

estudo se congregou uma multidão que não parava de crescer. A porta estava totalmente aberta,

mas ninguém se atrevia a cruzar a soleira. Hanne foi à única que teve o descaramento suficiente

para abrir passo entre outros e entrar na sala comigo da mão. Eu, que naquele instante não pude

opor resistência, fiquei paralisada ao escutar a música que chegava a meus ouvidos.

Serguei Rajmáninov.

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Rajmáninov era, junto com Stravinsky e Chopin, meu compositor preferido. E ao que menos

justiça fazia, ou isso temia frequentemente. Uns anos antes havia tocado em um concurso musical

o Segundo concerto para piano e, em que pese a ficar em terceiro posto, dias mais tarde seguia

repassando de cor todas as passagens que poderia — ou, melhor dizendo, deveria— haver tocado

melhor. Em uma das atuações na Mozarteum interpretei as Variações sobre um assunto do

Chopin, opus 22 e, quando o professor Wagner me aproximou por atrás com cara de entusiasmo e

exclamou “ Excelente! Excelente!”, não me senti aliviada nem adulada, só pensei que mentia. É

obvio, isso não disse, tentei rir alegre e relaxada, e ao parecer não notou a desinteressada e

forçada que era na realidade minha risada. Não pude seguir os elogios que dedicou seu estudante

mais jovem, diante de seu círculo de colegas. Não parava de pensar que destroçou a peça. Como

sempre, quando tocava em público não conseguia demonstrar toda minha capacidade. Não era

boa. Não o suficiente.

Nathanael Grigori e seu acompanhante estavam tocando nesse momento a Sonata para

piano e chelo em sol menor de Rajmáninov. Não era a primeira vez que a ouvia, e sabia a

quantidade de dificuldades que continha a peça, não só quanto à técnica, mas também sobre tudo

em relação à interpretação. Em nenhum outro compositor era tão sutil a fronteira entre a

melancolia e a breguice, não se pode abordar essa música de uma forma prosaica e objetiva. Mas

quando um se deixa levar muito logo pelas emoções escuras, tristes e furiosas dos russos, corre o

perigo de exagerar. Justo em minha sequência favorita do primeiro movimento é fácil cair na

tentação de dar um ar de banda sonora sentimentaloide, em vez de provocar essa profunda

nostalgia, dolorosa e agridoce, nada adoçada.

Nathanael Grigori acertou no alvo. A variedade de timbres e matizes distintos, que até então

ninguém me fez perceber, fascinou-me. O chelo de Grigori, suave e aveludado, falava com um

murmúrio rouco, penetrante e escuro, entre gemidos e suspiros, tenros e brilhantes, sim, tudo de

uma vez. A música era minha vida. Tudo o que fazia ia dirigida a essa grande paixão. Entretanto,

estranha vez escutar era uma experiência sensorial tão intensa. Fraquejavam as pernas e tinha as

mãos úmidas, tremiam os lábios e os batimentos de meu coração alcançaram uns limites

insuspeitados quando, por fim, o chelo e o piano emudeceram.

Até esse momento não viu Nathanael Grigori. Levava com o olhar no chão do instante em

que Hanne me colocou a rastros na sala, como se meus sentidos, até tal ponto entregues ao

ouvido, não suportassem mais estímulos. Primeiro desviei o olhar para o pianista. Estava exausto e

enxugava o suor do rosto com um lenço, com um gesto mais próprio de um operário que de um

pianista. Por um momento pensei que Nathanael Grigori também tinha um aspecto bastante

comum, que sua aparência não se corresponderia com a força e a magia da música que era capaz

de criar, e que, portanto me levaria uma inevitável decepção. Mas não podia deixar de olhar.

Hanne não exagerou. Nem sequer uma ingênua cega como eu podia passar por cima seu

incrível atraente, embora não fosse uma beleza viril e física como a de Juan, por exemplo. Juan

Calisto era um estudante de direito de Madrid cujas aventuras com suas companheiras de estudo

normalmente não duravam mais de uma semana. Nele sentia um orgulho incrível por ter

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conseguido agradá-lo duas semanas, e naquela época me encontrei várias vezes com Juan meio nu

em nosso banheiro. Eu estava acostumada a baixar a vista em seguida, envergonhada, mas chegou

a ver mais de uma vez seus impressionantes abdominais sobre os nos braços cansados. Era muito

moreno, transbordante de vida e energia, e devia acreditar que isso era suficiente para ganhar a

simpatia de outros porque, pelo menos a mim, nunca me dirigiu umas palavras amáveis e

educadas, embora talvez se devesse a que sempre, inclusive no banheiro, tinha um cigarro entre

os lábios carnudos.

Nathanael Grigori, em troca, com seu rosto excessivamente magro e pálido, as olheiras

escuras sob os olhos e sua compleição robusta e fraca, possuía uma beleza anacrônica, decadente.

Os atores com esse aspecto protagonizavam filmes de época onde o herói não era a Raposa, ágil e

despachado com a espada, a não ser um dândi de gosto refinação da alta sociedade inglesa do

século XVIII. Uma dessas ficções onde jogam xadrez cismados, escrevem poemas à pele nua de sua

amada ou se desafogam com ideias românticas da morte, que sempre era temprana, como

consequência de uma tuberculose interpretada de forma pitoresca, e não de um corriqueiro

acidente de equitação. Fazia pouco que viu um desses filmes com Nele e, depois, enquanto

comíamos pizza, eu manifestei a fascinação que me produzia o protagonista. Nele disse que não

era homem para ela, que poderiam atá-la e não passaria nada, mas esboçou um sorriso bondoso

porque era a primeira vez que me ouvia falar de um homem com tanta efusão. Ainda cabia a

esperança de que não terminasse sendo uma professora de piano rançosa como Rottenmeier.

—A senhorita Rottenmeier não dava aulas de piano! —exclamei eu, escandalizada.

Nele se limitou a sorrir.

—Era brincadeira — particularizou.

Não podia fazer outra coisa que olhar embevecido a Nathanael Grigori, e em só uns

segundos ficaram gravados todos os detalhes: as maçãs do rosto elevadas, o nariz magro e bicudo,

as sobrancelhas bem desenhadas que elevavam com claridade no pálido rosto. O cabelo cortado

em camadas, ligeiramente ondulado, chegava até o queixo e era de cor castanha escura acetinada.

Folheava as partituras, com o chelo apoiado no joelho esquerdo.

Traguei saliva com dificuldade. É provável também que pigarreasse. Algum ruído devo ter

feito, porque naquele momento elevou a vista. Percorreu a sala com o olhar, como se, se desse

conta então de onde estava e quantos ouvintes se reuniram em torno dele, e finalmente parou em

mim. Durante um momento seus penetrantes olhos azuis posaram em mim — eu nem sequer

respirei— e depois baixou a cabeça e uma mecha de cabelo caiu sobre a frente limpa e tersa.

—Terminamos. —Falava em voz baixa, quase em um sussurro.

O pianista parecia surpreso — tornou a guardar o lenço— embora também aliviado.

Nathanael não voltou a levantar o olhar enquanto guardava o chelo com cuidado e o

acariciava alguns vezes com carinho, como se fosse um ser vivo. Por fim se dirigiu para a porta

com o olhar baixo. A maioria das pessoas dispersou com discrição, em troca eu seguia ao lado de

Hanne e, apesar de que um instante antes nem o pensava, nesse momento lamentei que

tivéssemos passado a soleira.

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Nathanael Grigori deixou de tocar porque se sentia incômodo?

Pensei que talvez devesse me desculpar ou pelo menos dizer o muito que cativou sua

atuação, mas não encontrava as palavras adequadas. Era impossível descrever o feitiço de sua

música! No final, o maior reconhecimento para um músico não era, mais que os aplausos, o

silêncio contido que se apoderava de toda a sala de concertos quando apenas se extinguiu a

última nota?

Ao ver que se aproximava, senti que ardia o rosto e desejei que ele não notasse.

Então parou, mas não por mim, mas sim porque Hanne fechou o passo.

—Excelente! —exclamou entusiasmada.

A diferença de mim estava claro que não temia dizer trivialidades nem parecer arrogante.

Elevei a vista. A curiosidade de ver que impressão dava Nathanael Grigori de perto venceu

ao acanhamento. Seus lábios esboçaram um sorriso entrecortado e estreito, mas não chegou aos

olhos. Já não eram penetrantes, a não ser frios e reservados. Desviou o olhar de Hanne para mim,

logo a voltou a olhar. Assentiu com um leve gesto da cabeça e foi pronunciar palavra.

Em que pese que não disse nada depreciativo, senti tão repudiada e envergonhada que

desejei que me tragasse a terra. Parecia que Hanne passava o mesmo, mas não reagiu com

acanhamento a não ser com indignação.

—Mas que arrogante! —exclamou com desprezo, e sacudiu o cabelo comprido e liso.

Eu a segui rápido para fora. Surpreendida, adverti que Nathanael Grigori parou ao final do

comprido e escuro corredor e voltou. Essa vez não viu primeiro Hanne, mas sim tinha o olhar fixo

em mim, e já não parecia frio nem calculador, a não ser desconcertado.

Não resisti muito tempo. Despedi rápido de Hanne e parti correndo. Quando cheguei à sala

de estudo, ardiam de novo as bochechas.

���

No final de dois dias voltei a ver Nathanael Grigori no MOZ, o refeitório universitário da

Mozarteum. Ao entrar na longa sala lotada de mesinhas vermelhas, não adverti sua presença, só a

do pianista que o acompanhou a última vez. Vi junto ao balcão, com as partituras sob o braço.

Pegou um café com leite e, quando quis pegar a taça, vários papéis caíram ao chão. Em vez de

agachar, permaneceu confuso um momento e manteve a taça em equilíbrio como se, agora que a

deram, não pudesse soltá-la sem mais. Deu pena vê-lo tão torpe, assim em seguida me ajoelhei

para recolher as partituras. Quando me levantei e as entreguei, vi que tinha a frente coberta de

suor.

—Obrigado — murmurou vacilante.

O café derramou. Em vez de aceitar por fim as partituras, levou a mão livre ao bolso da calça

e tirou o moedeiro para pagar. Eu não podia dissimular o sorriso diante de tanta estupidez, de

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modo que deixei as partituras em uma das mesas. Demorou uma eternidade em levar por fim a

taça até ali. Enquanto isso derramou ainda mais café.

Se Nele estivesse ali teria rido dele com crueldade. Divertia contar piadas graciosas sobre

músicos, como se todo aquele que tocasse um instrumento fosse um idiota exímio em outros

aspectos da vida. Entretanto, tinha a delicadeza de fazer uma exceção comigo. No final também

era a que enchia a geladeira, arrumava a sala e limpava o banheiro com regularidade.

—Obrigado — repetiu, apresentou como Matthias Steiner e perguntou de repente— Você é

Sophie Richter, verdade? Toca com o professor Wagner?

Assenti em seguida, sorridente, mas não por sua estupidez, mas sim porque me afligiu o que

tivesse ouvido falar de mim. Mas por quê? O que haveria dito de mim o professor Wagner? Que

tinha talento, mas não era o bastante boa para tocar em público? Que foi um engano me aceitar

como aluna?

Baixei a cabeça, tentei dissimular os medos habituais, ou pelo menos não mostrá-los

abertamente, e então vi Nathanael. Estava a certa distância, na zona de entrada do refeitório, e

nos esteve observando dali. Voltou a esboçar um sorriso, como no dia anterior, mas esta vez não

era frio, a não ser sarcástico. Os olhos, sob a luz tênue, não pareciam tão claros e radiantes, mas

mesmo assim não pude evitar responder enfeitiçada a seu olhar. Aproximou de nós devagar, com

a capa do chelo nas costas. Levava a mesma roupa do dia anterior: calças negras e pulôver cinza, e

ainda por cima um casaco escuro e folgado.

—Imagine — disse Matthias Steiner— toca com o professor Wagner. Um bom homem. —

Estava disposto a soltar uma larga enxurrada de elogios, mas Grigori interrompeu.

—Já sei — apressou a dizer— Sophie Richter, verdade? —Saudou com a cabeça, diante do

qual eu automaticamente me ruborizei. Como sabia meu nome também? É que no dia anterior

quis saber, zangado, quem o incomodou enquanto tocava chelo?

Entretanto, pelo tom de sua voz, não parecia molesto.

—Você também quer um café? —perguntou Matthias.

Recusei e depois, para minha surpresa, vi que o convite não dirigiu a mim, a não ser a

Grigori. Ele sacudiu a cabeça. Como no dia anterior, sobre a frente limpa caiu uma mecha de

cabelo castanho escuro que apressou a afastar.

—Possivelmente... —disse de repente, e me olhou fixamente com seus olhos azuis—

poderíamos tocar juntos algum dia.

Não levantou a voz, que soava um tanto rouca. Senti um comichão no antebraço que subiu

pelas costas até a nuca.

Matthias agarrou o açúcar, e ao colocar com brutalidade na taça de café, uns quantos

grânulos se pulverizaram por toda a mesa. Eu fiquei com o olhar fixo, enquanto tentava tomar

uma decisão. Pensar na mera possibilidade de tocar com Nathanael me acelerava o coração, esse

era o problema. Se me ruborizava só falando, como ia tocar com ele?

Recordei as palavras do professor Wagner: “ Sempre esses nervos! Sua técnica é excelente,

tem uma grande sensibilidade e um ouvido extraordinário, e na teoria musical é uma das

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melhores. Mas esses nervos...”

Quando se queixava com veementes gestos e sacudia a cabeça até que o cabelo frágil e

grisalho disparava emaranhado em todas as direções, eu desejava me desculpar uma e mil vezes.

Entretanto, não podia evitar: queria ser pianista porque amava o piano, não os grandes cenários.

Todas e cada uma das sete atuações que tive que realizar durante minha primeira etapa de

estudos foram acompanhadas de tantas noites acordada que depois sempre anunciava que

abandonaria os estudos. Quer dizer, diante de Nele eu insinuava algo que fazia que tomasse por

louca e exclamasse a voz em grito, convencida, que ninguém tocava piano com tanto entusiasmo e

entrega como eu, assim fizesse o favor de seguir. Diante do professor Wagner não me atrevia nem

sequer a mencionar.

—O que te pareceria? Tem tempo?

Seu olhar, embora frio e duro, era sedutor.

Abri a boca, queria dizer algo. Entretanto, não pronunciei nem a primeira sílaba quando

Hanne equilibrou sobre mim. Não a viu entrar no refeitório, e quando me abraçou com tanto

ímpeto, como se fôssemos amigas íntimas, estremeci por dentro. Em uma mão segurava uma

garrafa de suco, mas isso não impediu de me beijar primeiro na bochecha direita e logo na

esquerda.

Suspeitava que a euforia com que me saudou só era um pretexto, e em efeito não atraí sua

atenção muito tempo.

—Eu — dirigiu sem saudar Nathanael— eu adoraria tocar com você. O piano é uma

disciplina secundária para mim, mas acredito que seria divertido.

Para mim, “divertido” era um conceito que não encaixava com a música, e muito menos com

a maneira de tocar chelo de Nathanael Grigori. O que mais me irritava era que tomasse tantas

confianças com ele. É certo que os estudantes estavam habituados a isso, mas nesse momento me

pareceu de má educação. Não se queixou no dia anterior de que Grigori era “um arrogante”?

Era óbvio que mudou de opinião durante a noite.

Ele adotou de novo um olhar frio.

—Se quisesse tocar com você, teria feito isso — esclareceu com brutalidade, com essa voz

rouca cujo timbre me perseguiria durante horas.

Ouvi soprar Hanne, e não pude conter um sorriso. Um instante antes não sabia reagir a sua

oferta, e agora me invadia uma sensação de triunfo até então desconhecida que por um momento

afugentou todos meus medos.

Não queria tocar com Hanne. Queria tocar comigo.

—Por que não? —disse— Poderíamos tentar.

Hanne soltou um bufado, escandalizada, mas Nathanael fez como se não a ouvisse.

—Amanhã às três?

Quando ainda estava assentindo, ele voltou e saiu do refeitório tão devagar como antes se

aproximou de nós. Adverti que Hanne tinha um insulto na ponta da língua, mas Matthias

antecipou.

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Série Nefilim 01

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Deu um sonoro gole a seu café com leite.

—Não há quem o beba — lamentou, embora já esvaziasse a taça— Esta mistura está muito

doce.

���

À manhã seguinte eu levantei destroçada, e Nele, dos nervos. Eu estava acostumada a tocar

piano em nosso andar só até as dez da noite. Entretanto, naquela noite não pude separar os dedos

do teclado até a uma, embora isso significasse ter que aguentar os grunhidos de Nele depois.

—É uma nerd! —protestou— Se já está desenquadrada pelo exame de primeiro ciclo, não

sobreviverá às seguintes semanas. Relaxe!

Não era a primeira vez que soprava e grunhia impaciente quando eu passava horas

praticando. Diante dos amigos explicava bastante frequentemente o martírio que supunha viver

com uma pianista em florações. Entretanto, mais de uma vez a surpreendi na porta de meu quarto

escutando, às vezes com lágrimas nos olhos por causa da emoção. E quando em uma

oportunidade uma vizinha se queixou do constante teclar, Nele plantou diante dela e exclamou

indignada:

—Teclar! Ora! Incomoda-se é que tem o ouvido de madeira! Sophie é uma pianista

excepcional! Deveria alegrar de não ter que pagar por escutá-la!

Aquela manhã ninguém falava do excepcional, mas sim de meu perfeccionismo doentio.

Estive a ponto de confessar que aquela sessão noturna não tinha nada que ver com o exame,

a não ser com o chelista mais atrativo e genial que conheci, que queria tocar precisamente

comigo, sim, isso, comigo, Sophie Richter! Entretanto, decidi não contar a Nele que teria

compreendido melhor por que fiquei ensaiando até essas horas, mas provavelmente em troca

teria querido falar com todo o detalhe sobre como ia vestir para a ocasião e como tinha que me

pentear. Tinha ideias muito precisas sobre essas coisas e, se tratava de um homem bonito — fosse

um chelista genial ou não— podia tolerar que eu destroçasse uma obra de Rajmáninov, mas nunca

que me apresentasse vestida de cinza.

Entretanto, como ela não sabia nada de meu encontro, saí de casa com as bailarinas de

sempre, uma saia de cor azul escura e uma blusa branca. Usava o cabelo preso em uma singela

trança. Entrei na Mozarteum pelo menos com meia hora de antecipação, e ali me dava conta de

que na realidade não sabia onde devia me encontrar com Nathanael Grigori: ficou com ele à uma

hora — para falar a verdade ele disse uma hora e deu é obvio que eu não teria outros

compromissos— mas não tínhamos acertado em que sala de estudo tocaríamos. Desconcertada,

comecei a percorrer o corredor acima e abaixo, até que decidi entrar, ensaiar um momento e sair

depois ao vestíbulo para buscá-lo.

Desde no dia anterior a meio-dia estive trabalhando com insistência na sonata de

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Série Nefilim 01

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Rajmáninov. Já a havia tocado várias vezes, também o tentei com o chelo, mas faltava algo para

que “tivesse o efeito adequado“, conforme disse o professor Wagner.

Inundei no terceiro movimento, que começava com uma comprida passagem para piano, em

minha opinião uma das partes mais bonitas, não tão melancólica e escura como outras, mas muito

delicada, também um tanto volúvel, como se o compositor não pudesse decidir pelo modo maior

ou menor.

Como sempre que tocava só para mim, o piano era meu melhor aliado. Os dedos pareciam

fundir com as teclas, a música me alagava primeiro a cabeça, sim, e logo todo o corpo. O mundo

inteiro parecia ficar reduzido ao instrumento e a mim, e não havia nada que me incomodasse,

intimidasse nem me desse medo. Vivia por aqueles escassos momentos nos quais não tinha que

demonstrar nada a ninguém, nem estava à mercê de uma crítica, nos momentos que podia

entregar por completo a minha paixão. Compensavam o suplício das atuações em público.

Só quando me detive, os sons emudeceram e retirei as mãos das teclas, voltaram a apoderar

de mim as velhas dúvidas. Por que no décimo primeiro compasso sempre tocava um sol em vez de

uma associação de Fa sustenido? Podia transmitir o efeito da música com meu tempo?

Aproximava minha interpretação à quantidade de emoções, ambientes e magia que transmitiam

as notas do chelo de Grigori?

Pensei se não seria melhor me desculpar com ele em vez de fazer o ridículo mais espantoso,

talvez mudasse de opinião e nem sequer se apresentava, e não é que me desse medo, era minha

esperança. Voltei a começar com o andante desde o começo, até que cheguei ao compasso no que

entrava o chelo.

De repente retirei as mãos: naquele preciso instante soou de verdade um chelo que entrou

em minha interpretação com total naturalidade. Dei a volta com tal ímpeto que estive a ponto de

cair do tamborete. Nathanael Grigori sustentava tranquilamente o chelo atrás de mim, com a capa

do instrumento aberta aos pés.

—Como... Entrou?

Eu tinha a porta à vista enquanto tocava e, por muito concentrada que estivesse, teria

notado que alguém entrava na sala. Esboçou um sorriso. O azul de seus olhos me pareceu mais

brilhante e intenso ainda do que recordava. Levava as mesmas calças negras que em nosso

primeiro encontro, mas em lugar do pulôver cinza vestia camisa branca. Tirou o casaco.

—Estava tão concentrada em sua interpretação que nem sequer percebeu minha presença.

Custava de acreditar, mas me pareceu absurdo discutir. Talvez sim... Possivelmente fiquei

avoada durante uns segundos.

—Ah... — murmurei confusa.

—Tem o exame de primeiro ciclo em dois meses? — perguntou de repente.

Assenti.

—Morro só de pensar — foi o único que consegui dizer, e no final um instante me arrependi

de minhas palavras. Que inconsciente precipitado e imaturo era reconhecê-lo assim! Além disso, é

algo que poderia superar, embora fora o exame de primeiro ciclo, os nervos que sentia em sua

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presença?

Seus finos e largos dedos estendiam com suavidade sobre as cordas sem emitir um só som.

Passou pela cabeça que provavelmente já estava arrependido de ter pedido que tocasse com ele.

Seguro que estava procurando desesperadamente uma desculpa...

Em troca, disse com amabilidade:

—Não tem por que. Sempre se imagina um exame assim muito pior do que na realidade é.

Bom, poderíamos deixar de formalidades, não? E me chame Nathan, não Nathanael.

Para que fazer o esforço de pronunciar um nome tão longo?

Assenti de novo, com a boca seca, e, por medo de que me escapasse algo mais embaraçoso

ou indiscreto, anunciei com relativo entusiasmo:

—Eu gostaria de tocar Rajmáninov.

Assinalou as partituras que tinha abertas em frente de mim.

—Eu imaginava — repôs com ironia.

Passei as folhas até o primeiro movimento. Tremiam as mãos, mas assim que rocei as teclas

remeteu um pouco.

Os primeiros compassos da Sonata em sol menor serviram como primeiro contato. O chelo e

o piano pareciam medir com precaução, nem muito melódicos nem muito rápidos. Geravam sons

profundos e agudos, mas mantinham uma distância de cortesia sem arrastar o um ao outro.

Respirei fundo, tentei controlar os nervos e, para minha surpresa, resultou muito melhor do que

esperava. Depois de uns sons já se desvaneceram meus medos e inseguranças, os dedos se

moviam como se tivessem vida própria e as dúvidas sobre mim mesma estavam esquecidas.

O que aconteceu a seguir é difícil de descrever. É obvio, eu também provoquei os méis

artísticos quando tocava com outros, não só quando tocava sozinha, conhecia a embriaguez, a

absoluta entrega à harmonia. Mas para obter essa sensação de felicidade tinha que me esforçar

muito: necessitava uma concentração extraordinária, um esforço físico extremo e lutar contra as

dúvidas constantes de se cumpriria as expectativas de outros.

Com Nathanael Grigori tudo fluía por si só. Não, não era perfeita, houve sons que não

encaixavam, e tempos que não respeitei, mas esses enganos não incomodavam. Não importavam

pela facilidade que ele me transmitia, pelo virtuosismo que, simplesmente, arrastava, quisesse ou

não. Não ia atrás de sua magistral interpretação, mas bem ele me empurrava e dava de presente a

sensação de ser seu igual. O fato de que isso não me parecesse um sinal de arrogância a não ser,

pelo menos nesse momento, de uma profunda naturalidade, mostra o desprendido e ausente que

estava. Era como se abrisse umas asas por completo que até então só se estenderam pela metade,

e levassem sem esforço, de modo que nenhuma só vez tive medo de cair. Livre e ligeira como uma

pluma, podia elevar o voo na imensidão do céu e me despojar de toda a carga que me oprimia.

Assim que terminamos o primeiro movimento, fez o silêncio entre nós, um silêncio que me

resultava tão alheio como aquela música incrível: profundo, intenso, satisfatório, e ao mesmo

tempo tão cheio de desejo, de apresso por continuar, ao preço que fora. Tinha a sensação de que,

em lugar de sangue, corria adrenalina por minhas veias.

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Ouviu um suspiro, e no final um momento compreendi que saía de minha garganta. Quanta

calor havia sentido! Voltei devagar. Nathanael estava ali sentado, tão tranquilo como antes, e não

parecia nada cansado nem extasiado como eu. Tinha o olhar de seus olhos azuis velado pelo

desconcerto e uma tristeza cuja causa eu não compreendia.

—Foi incrível — disse. Minha voz soou penetrante aos meus ouvidos, e me lembrei da voz de

Hanne ao qualificar a interpretação de Nathan de excelente. Pareceu uma banalidade, mas não

me ocorria nada melhor para descrever meu entusiasmo e veneração.

Nathanael não disse nada.

“Arrependido. Desiludido. Não quer mais tocar comigo”, pensei atemorizada.

Então levantou o arco, fez um sinal com a cabeça, e começamos com o segundo movimento,

o allegro scherzando.

���

Naqueles dias pensava muito no amor.

Às vezes parecia um companheiro tenro, quente, amável. Outras o inimigo mais perigoso,

por traiçoeiro, ao que jamais enfrentou. Seduzia, comovia, enrolava, tentava, para logo dar uma

estocada sem compaixão. Não só aparecia acompanhado da cercania, a intimidade e a pátria, mas

também da impotência, a dor, o desespero e o ciúmes.

Só uma vez em toda sua existência quis, entregue e perdido tanto. Durante muito tempo

tentou desterrar todas essas lembranças de sua vida. Naquele preciso instante os evocou: o

doloroso e amargo final, assim como a felicidade do princípio.

Então nem ele mesmo teria acreditado capaz de desfazer daquela maldição que o perseguia

desde seu nascimento. Mas essa desdita pareceu por um breve instante, muito breve, uma bênção.

Sophie...

Talvez ela também fora uma bênção. Oxalá ela pudesse amá-lo. Até sabendo a verdade

sobre ele. E se seus adversários não se interpuseram em seu caminho de novo.

Sophie...

���

Cada vez que tocávamos juntos me dava medo que fosse a última. Apesar de que ficávamos

para outro encontro, eu contava em segredo com que Nathanael logo se fartasse de tocar com

uma estudante. Além disso, por quê? Eu não dei concertos importantes nem tinha experiência em

grandes cenários. Sim, certo que em algum momento deixaria de aparecer na sala de estudo.

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Tentava me preparar de antemão para o desengano, e estava decidida a tratar com a maior

naturalidade possível, em caso de que em um futuro nos cruzássemos por acaso na Mozarteum.

Comportaria como se nunca tivéssemos trocado uma palavra, é obvio não demonstraria minha

vulnerabilidade, inclusive sorriria. Para me sentir mais segura, praticava esse sorriso frente ao

espelho do banheiro, mas quanto mais me esforçava por que parecesse natural, mais forçada e

insegura me saía. Entretanto, por sorte não foi necessário sorrir: Nathanael acudia uma e outra

vez, e nossas sessões regulares se converteram em um costume. Além disso, antes de cada

encontro parecia um pudim, mas, com o tempo, embora não fosse uma rotina, sim adquiri a

confiança de que essa insólita obscenidade que percebi a primeira vez que tocamos juntos não foi

um pouco isolado.

Embora eu normalmente fosse com pontualidade à sala de estudo, Nathanael sempre

chegava antes que eu. Salvo uma breve saudação, pelo geral, não dizia nada. De vez em quando,

comentávamos alguma sequência, falávamos de quais eram os pontos complicados e como

queríamos interpretá-los. Ele se contentava deixando falar com chelo, e eu me concentrava no

piano. Quando partia, cravava seu penetrante olhar em mim — frequentemente tinha a sensação

de que ia atravessar com os olhos— mas a despedida era, mas bem direta.

No princípio me bastava estando com ele e me entregar por completo à maravilhosa música

que criávamos juntos. Passadas várias semanas me atrevi a fazer pela primeira vez uma pergunta

que não tivesse que ver com nosso seguinte encontro. Até então minha insegurança sempre

superou a curiosidade, mas naquele momento tirei a luz por fim algo que me tirava o sonho.

—Quanto tempo vai ficar em Salzburg?

—Não sei — limitou a responder.

Custou o inexprimível fazer de tripas coração, mas já que cheguei tão longe não queria me

render sem mais, de modo que, depois de vacilar por um instante, perguntei:

—O que fazia antes?

Hanne me contou isso a grandes traços, mas dissimulei quando começou a detalhar, de

forma telegráfica e sem o menor entusiasmo, alguns dos grandes cenários nos que havia tocado.

—Imagino que deve ser bonito tocar com essas ilustres orquestras... — murmurei, zangada

comigo mesma por que não me ocorresse nada mais engenhoso.

—Não importa onde, diante de quem, nem com quem — respondeu ele com sobriedade— o

chelo segue sendo o chelo.

Estava disposta a fazer uma nova pergunta, mas antes que pudesse formulá-la, interrompeu

com uma brutalidade estranha:

—Sigamos tocando!

Não podia me deixar mais claro que não queria falar dele, absolutamente. Notei que o rubor

cobria o rosto, e me pus a passar as partituras com as mãos trementes. Entretanto, em vez de

começar a tocar, quando encontrei a folha correta, ele deixou cair o arco do chelo e olhou

desconcertado. Parecia consciente da brutalidade com a que se comportou, assim começou — era

óbvio que queria demonstrar que não era sua intenção— a me fazer perguntas, embora fosse bem

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retóricas.

—Está no sétimo semestre, verdade? O professor Wagner parece entusiasmado com você.

Já obteve muitas coisas para ser tão jovem, porque não tem nem vinte anos, não?

Em que pese a que empregou um tom muito amável, respondi com monossílabos sem poder

evitar que meu rubor fosse aumentando. O fato de que mencionasse minha idade só podia

significar que me considerava pouco mais que uma menina. E assim era como eu me sentia nesse

momento: como uma menina torpe, ingênua e tensa.

Mas logo deixou de fazer perguntas e seguimos tocando e, como sempre que podia me

entregar a nossa música, a insegurança evaporou.

No princípio pensava que Nathanael Grigori só era tão calado e inacessível comigo, mas um

dia, quando saíamos da sala de estudo, abordou Matthias, que, como sempre, estava tão suado

como se saísse da obra. Era evidente que estava esperando Nathanael para comentar algo com

ele, posou com alegria a mão sobre seu ombro e aproximou tanto seu rosto que Nathanael seguro

que sentiu seu fôlego úmido. Matthias ficou a tagarelar animado sem mais, mas Nathanael

instintivamente retrocedeu. Lia a aversão em seu precioso rosto, logo os traços se endureceram.

Diante da corrente de palavras que o pianista verteu sobre ele, ele limitou a responder com um

sim ou um não antes de dar a volta e sair correndo pelo corredor como se o perseguissem. Mais

adiante reproduzi mentalmente uma e outra vez essa cena, e me perguntava se apareceria em seu

rosto essa mesma expressão de repugnância se eu o tocasse por acaso.

Já havia me resignado que jamais teríamos uma conversa como é devido, quando um dia

depois de tocar me perguntou se queria tomar um café com ele.

Eu estava guardando as partituras na bolsa, e seu convite chegou tão de repente que as

folhas me escorreram da mão pela surpresa. Ajoelhei em seguida para recolher, e ao me levantar

golpeei a cabeça contra o piano. Nathanael tentou em vão reprimir um sorriso que o fazia parecer

mais jovem, despreocupado, não tão sério, reservado e misterioso.

—Só se tiver tempo... —acrescentou.

—Pois claro que tenho tempo! —exclamei, e imediatamente me envergonhei de meu

excesso de entusiasmo.

Descemos em silêncio. Doía a cabeça, mas evitava tocar a zona do golpe. O incidente me

resultava tão embaraçoso que não queria nem recordá-lo.

Esperava que fôssemos ao MOZ, mas Nathanael tinha em mente outra coisa. Abandonamos

a Mozarteum e no final de0 uns minutos chegamos ao hotel Stein, de cujo terraço se via todo o

centro histórico de Salzburg e os arredores da cidade: as cúpulas das Igrejas e da catedral, o

Mönschberg e a fortaleza do Hohensalzburg, ao oeste o monastério dos capuchinos e, atrás, o

Gaisberg. Apesar de que estava três anos vivendo ali, era a primeira vez que ia e desfrutava das

vistas. Nathanael, em troca, não parecia muito impressionado. Só passeou o olhar um instante,

logo ocupou um lugar de costas no corrimão, em vista do qual eu também me sentei em seguida.

O coração começou me pulsar a toda velocidade quando me olhou, mas não o notava palpitar no

peito a não ser na garganta, e com tanta força que acreditei que ia sair pela boca. Já então me

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custava respirar, mas mais custou depois, quando surgiu um sorriso inesperado em seu rosto. Era

de cortesia? Zombaria? Amável?

Quando aproximou o garçom, eu pedi um café com leite e ele água. Apesar dos nervos me

rugia o estômago de fome — aquele dia não comi—, e quando vi que o garçom levava uns

pedaços de bolo Sacher e de maçã à mesa contígua, não pude evitar lançar um olhar ansioso. O

menino perceber e perguntou se também queria bolo.

Sacudi a cabeça, confusa, sem saber o que fazer com as mãos. Devia as apoiar na mesa? As

esconder embaixo?

—Coma um pedaço — disse Nathanael para me animar.

—Você... —disse eu com voz rouca—, mas você tampouco come nada. —Seu sorriso se

voltou mais amplo.

—Melhor não.

—Por quê? — perguntei, e logo acrescentei algo que passados uns dias seguiria morrendo

de calor — É que se preocupa sua figura?

Não sei como cheguei a essa conclusão, certamente porque pedi água. Retratei com a

mesma brutalidade com que pronunciei aquelas palavras.

—Sinto — murmurei, e baixei o olhar.

Ele soltou uma gargalhada e, entre risadas, disse:

—Não, é por outros... Motivos.

Quando o garçom retornou com as bebidas, concentrei por completo em meu café com

leite, mas chegou um momento em que já não podia removê-lo mais e dava um gole com cuidado.

Ao levantar de novo o olhar, vi que me observava dessa maneira que, sem ser desagradável,

resultava tão peculiar.

Com a mesma espontaneidade com que até então guardou de falar, começou a formular

perguntas: queria saber onde vivia e com quem, se sempre vivi em Salzburg, o que me parecia à

cidade, quando comecei a tocar piano.

Esse último era meu assunto, o único de que podia falar sem hesitações nem acanhamentos.

Falei de minhas primeiras aulas quando tinha só quatro anos, e da sensação então entristecedora

de poder produzir esses sons maravilhosos, dos primeiros professores que me deram aula, dos

compositores que mais eu gostava de interpretar, das atuações e a energia que custava da

esperança de não decepcionar ao professor Wagner. Expliquei os momentos mágicos nos que

imaginava me entregando por completo à música, quando os batimentos de meu coração se

amoldavam a seu ritmo e parecia que literalmente a inspirasse com cada fibra de meu ser. Então

me sentia insignificante ao pensar que alguém criou algo tão grandioso, privilegiada ao poder

percorrer esse estreito caminho que conduzia diretamente ao céu, e feliz de ter encontrado minha

vocação, embora às vezes tivesse que superar dificuldades para segui-la.

Ardia o rosto, mas já não por causa do acanhamento, mas sim da paixão.

—Se nota — disse Nathanael de repente.

—O que?

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—Esse... Entusiasmo. Não o perca! Muitas pessoas não sentem isso pelo que faz. —A cara de

despreocupação deu passo a uma profunda ruga na frente.

—Mas você... Também vive para a música.

Seus traços se escureceram ainda mais.

—Isso era antes — murmurou. Vi que ainda tinha o copo cheio bebeu só um gole.

—O que quer dizer? —perguntei— Mas você é...

—Não tem importância — interrompeu com aspereza— Em qualquer caso, me alegro de que

nos tenhamos encontrado.

Bebi o café, e ele chamou o garçom e pagou. Ao nos levantar, nossas mãos se roçaram.

Separei a minha imediatamente, como se tivesse queimado, e procurei seu olhar. E aparecia em

seus olhos a mesma aversão que quando tocou Matthias? Mas não vi nada parecido, seus olhos

azuis brilhavam e seu rosto pareceu ganhar um pouco de cor.

Talvez fora ridículo der tanta importância a um gesto tão pequeno, mas por um instante tive

a sensação de que ao fim podia respirar tranquila em sua presença e flutuava de felicidade.

A partir de então começamos a ir mais frequentemente a tomar café. Umas vezes nos

sentávamos no terraço de Stein e outras no Bazar ou o Furst. Em uma ocasião fomos dar um

passeio pela borda do Salzach, e outro dia, depois de tocar juntos, essa vez pela tarde, Nathan

convidou a uma pizzaria. Ele pediu algo para comer, mas só tomou uns bocados, logo revolveu o

resto da comida no prato com gesto desinteressado e se limitou, como sempre, a beber água. Eu

tampouco comi, estava muito emocionada, entretanto sua falta de apetite me desconcertava.

Rechaçava a comida com repulsão, como se chateasse ver obrigado a beber e comer algo com

regularidade. Entretanto, pese ao escasso apetite, jamais parecia debilitado, ao contrário: todos

seus movimentos eram sempre perfeitamente serenos e tranquilos. Nem sequer depois de horas

tocando o chelo mostrava algum esgotamento. E jamais suava, nem quando caminhava sob um sol

abrasador.

Entretanto, havia algo mais que me irritava. Em cada encontro se mostrava mais aberto,

amável e loquaz — pelo menos quanto a mim e à música, porque de si mesmo não falava nunca—

mas às vezes ficava calado a meia frase e seus traços adotavam uma expressão melancólica e

ausente. Era como se de repente tivesse ouvido algo que só era perceptível para ele, ou visto algo

invisível para o resto dos mortais. Nunca se mostrava inquieto nem nervoso — só uma vez vi que

tremiam as mãos, e isso foi muito tempo mais tarde— e não obstante me dava à impressão de

que sentia um profundo desassossego, de que era infeliz.

Às vezes, quando estava com ele, tinha a sensação de que aquela tristeza invadia como uma

onda negra e inevitável que afogava quanto alcançasse uma forma de desespero, violenta e

absoluta, como não havia sentido jamais. Nessas ocasiões faltava o ar, sentia tensa, impotente e

vulnerável, e, embora desfrutasse da cada segundo que acontecia ele, assaltava a imperiosa

necessidade de fugir o mais longe possível. Não obstante, a maior parte das vezes esse

arrebatamento só durava uns instantes, depois do qual desaparecia a escuridão de seu semblante

e eu voltava a me sentir como nos momentos em que sua música me dava asas: acordada,

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eufórica, sensível, despreocupada.

Então chegou o dia —eu já não contava com isso— em que estive esperando Nathan

durante horas na sala de estudo. Não apareceu. Fiz o impossível por me convencer de que gravei

mal a data, mas no fundo sabia que não era certo.

Passada uma hora que me fez interminável outros estudantes reclamaram a sala. Eu

comecei a percorrer o corredor acima e abaixo, ofuscada, incapaz de ir da Mozarteum. Propus

firmemente não me incomodar com ele se chegava um dia em que não queria seguir tocando

comigo, mas agora não podia deixá-lo passar sem mais, sem que me desse uma explicação. E

embora não estivesse disposto a falar comigo de sua decisão, pelo menos queria vê-lo e ouvir sua

voz, se não podia ser o chelo!

—Vá — exclamou Hanne— seu ídolo te deixou plantado?

Como não a viu aproximar, sobressaltei. Aproximou para mim como se queria me dar um

abraço de consolo, mas, em troca, disse com tom mordaz:

—Não importa. O que ia fazer ele com uma garota como você?

Limitei a olhá-la, indefesa. Embora tivesse ocorrido algo que responder, teria calado isso.

Doía a garganta como se tivesse tragado uma parte de cristal.

—No final, ele também é um tipo estranho — prosseguiu ela com indiferença— O único que

sabemos dele é o que aparece na biografia de nossa página da Web. Parece que ninguém o

conhece bem. Na realidade pode estar contente de ter liberado de semelhante tipo.

Embora fosse incapaz de pronunciar palavra, consegui escapar dela e, quando me afastei uns

dez passos, sussurrei:

—Me deixe em paz.

Aquele dia não tinha sentido ficar na Mozarteum, mas à manhã seguinte apresentei

pontualmente e percorri de novo o corredor acima e abaixo, frenética, em busca de Nathan. Saltei

uma aula e uma audição, embora depois já não me atrevesse a faltar à aula do professor Wagner,

que brigou com uma dureza incomum por minha falta de concentração. Eu não parava de me

desculpar, mas não podia me conter: tinha os dedos rígidos e desajeitados, e as partituras

apagavam diante de meus olhos.

Durante todo o meio-dia e a manhã seguinte estive indo de uma sala de estudo a outra, mas

não encontrei Nathan em nenhum lugar. No refeitório, onde fui procurar por último, pedi um chá,

mas não tomei, só mexi a taça, obstinada à esperança de que tivesse passado algo tão urgente

como inevitável que o tivesse obrigado a ir de Salzburg. E não pude avisar a tempo porque não

tinha meu endereço nem meu número de telefone. Sim, devia ser isso!

A última hora da tarde do terceiro dia estava pelos corredores da Mozarteum não Nathan, a

não ser Matthias Steiner. Abordei e, sem saudá-lo sequer, cansada de ser educada ou me fazer à

indiferente, perguntei se sabia onde estava Nathanael Grigori. Encolheu os ombros.

—Nem ideia — murmurou laconicamente, mas me deu seu endereço.

Nathan vivia no cruzamento do Linzergasse e Priesterantsgasse, não muito longe dali. Fui

correndo e cheguei quase sem fôlego. Repassei os nomes do porteiro automático e me detive

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diante de um timbre com as iniciais N. G. por toda indicação. Tive que me conter para não me pôr

a chamar o interfone como uma desesperada. Por muito que custasse esperar, não queria

apresentar diante dele empapada em suor e ofegando. Assim, aguardei recuperar o fôlego e

chamei. Ninguém abriu. Fiquei até que escureceu, sem parar de chamar, embora suspeitasse que

fosse inútil, e logo fui à casa a passo lento, desanimada e abatida. Esperava uma noite agitada.

Passada a meia-noite consegui conciliar o sonho, mas às quatro da manhã voltei a despertar. Sem

pensar o que fazia, vesti como se fosse sonâmbula e saí de casa para me dirigir de novo ao

Linzergasse.

“Louca, louca, louca!”, ressonava em minha cabeça ao ritmo dos passos, estava obcecada

com ele, não podia afastar o de meus pensamentos!

Até então só uma coisa podia gerar em mim semelhante determinação: tocar o piano.

Entretanto, durante os últimos três dias não pratiquei, e agora me reprovava isso, “louca, louca,

louca!”, apesar do qual não podia reprimir o fervente desejo de ver Nathan.

Quando cheguei era noite fechada. Esperei a recuperar o fôlego e voltei a chamar. Durante

uns minutos não passou nada, e já ia desistir quando de repente apareceu uma sombra depois da

porta de vidro da entrada. Em vez de abrir com o porteiro automático de sua casa, Nathan desceu.

—O que faz aqui? —perguntou sem me saudar.

Ao vê-lo senti um alívio quase doloroso. Foi como se, depois de estar inundada durante

muito tempo em água fria, tivesse recuperado a sensibilidade no corpo. Entretanto, o alívio não

durou muito, já que em seguida se converteu em horror: sob a deslumbrante luz do abajur que

iluminava o corredor parecia outra pessoa. Estava magro e débil, como se tivesse perdido vários

quilos nesses poucos dias, e caminhava curvado, como se arrastasse uma pesada carga. Tinha o

rosto desfigurado, como se tivesse posto uma muito fina máscara de cera que o fazia aparecer

ainda mais pálido, cansado e, em certo modo, sem vida, e matava por completo a cor e o brilho de

seus olhos. Durante um momento não pude fazer mais que observá-lo atônita.

—O que faz aqui? — voltou a perguntar.

Esfreguei as mãos em um gesto de impotência. Até então não me precavi do frio que fazia

aquela noite.

—Eu... Só queria saber se... Estava bem... —gaguejei. Pareceu inevitável ir até ali e,

entretanto, nesse instante desejava que me tragasse a terra. Como me ocorria tira-lo da cama a

essas horas da madrugada! A julgar por seu lamentável aspecto, provavelmente estivesse doente,

e eu o despertei!

Baixei a cabeça e dava um passo atrás.

—Sinto muito... —murmurei, e de novo ressonaram em minha mente as mesmas palavras:

“louca, louca, louca!”.

Ao voltar, estive a ponto de cair. A rua estava deserta e na escada reinava um silêncio

sepulcral.

—Não quero te ver de novo por aqui! —gritou. Sua voz soava gélida, inexpressiva. Podia

haver uma ofensa maior?

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Série Nefilim 01

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Deveria ter imaginado que ia incomodar... “Já não quer tocar comigo... É isso...”

Pensei no sorriso que esteve ensaiando frente ao espelho, e que devia fingir diante dele que

me era indiferente, mas agora era impossível salvar a situação e me voltar para ele por última vez.

Só podia fugir, embora não à velocidade a que foi até ali. Custava dar um passo atrás de outro.

Sentia que seu olhar me queimava nas costas. Como não ouvi que fechou a porta, estava segura

de que seguia me observando da entrada, e de repente tropecei.

Antes que caísse ele já estava ao meu lado. Agarrou por braço e me ajudou a endireitar. Não

o ouvi aproximar, deslocou para mim absolutamente silencio. Estremeci do susto.

—Sophie, espera! —A voz já não soava fria, mas sim bem triste e afligida. Soltou e, apesar de

sua reclamação, segui caminhando, inclusive acelerei o passo. De novo correu atrás de mim, tocou

os ombros, primeiro vacilante, precavido, logo me agarrou com força e me obrigou a me deter—

Sophie! Há tantas coisas que não posso te contar... —Fez uma pausa e prosseguiu— Mas... Não

queria te ferir. Lamento ter deixado plantada, e lamento ainda mais ter ofendido assim. Mas isso

não significa que não queira tocar com você! Para mim é muito importante que sigamos

colaborando...

Nathan, a quem até então sempre viu tão sereno e dono de si mesmo, de repente se

mostrava desanimado.

Isso me deu coragem para voltar a olhá-lo.

—Por quê? —perguntei— Por que quer tocar comigo? Não sei nada de você, só que é um

chelista com talento e muito êxito. Eu, em troca, sou uma simples estudante. Então, por quê?

Eu tremia sob suas mãos, mas por dentro estava tranquila.

—Minha mãe, que perguntas faz, Sophie. —Esboçou um sorriso— Fazia muito tempo que

não conhecia uma mulher tão extraordinária como você.

Estava segura de que se burlava de mim. Sem dúvida era uma pianista entusiasta, talvez com

um talento extraordinário, mas nem muito menos uma mulher extraordinária. Não me sentia

especialmente bonita nem segura. Por experiência sabia que as pessoas se fixavam nas mulheres

como Hanne ou Nele, mas não como eu. Entretanto, não havia rastro de brincadeira em seu olhar,

a não ser um afeto profundo e sincero.

—Nathan... —murmurei.

No final de um instante já dava igual quão absurdas soassem suas palavras. Poderia me ter

dito algo que teria acreditado.

Estreitou entre seus braços com mais força, e deixei de tremer. O azul de seus olhos voltava

a ser penetrante e claro. Parecia perceber seu brilho em minha frente, no nariz e as bochechas.

Aproximou o rosto do meu, e parou no último momento. Senti seu fôlego, e salvei a última

distância que nos separava, impulsionada pela mesma estranha força que me fez cruzar Salzburg

de noite e tocar em sua porta. Nossos lábios se encontraram, quentes e suaves. Ele deslizou as

mãos por meu pescoço e o acariciou. Senti nas costas um comichão que transformou em calafrio.

A pressão de seus lábios, hesitante no princípio, voltou mais urgente. Abri a boca, saboreei-o e

segui sentindo calafrios, que agora resultavam agradáveis. Nossas línguas se encontraram um

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Série Nefilim 01

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instante, salgadas, formigando, fogosas. A sensação foi estranha, quase muito intensa para resistir

a ela, de modo que separei. Entretanto, não aguentei muito tempo sem senti-lo e saboreá-lo, sem

desfrutar dessa cercania e intimidade. A segunda vez aproximei a boca com maior ímpeto, com

paixão e impaciência. Quando nossas línguas se encontraram, já não foi estranho. Nossos lábios

pareciam fundir igual aos nossos corpos, em um.

Quando finalmente nos separamos, já não estávamos às escuras. Ao longe começava a

vislumbrar uma luz cinzenta sobre o manto escuro da noite. Por uma estreita franja surgia um

resplendor vermelho que banhava de uma luz tênue os terraços da cidade, as torres das Igrejas e o

bairro alto de Salzburg. O novo dia ainda duvidava, tiritando no frio ar matinal, se despojar de sua

camisola. No céu seguiam acumulando nuvens de um violeta escuro, até que ao fim foram

arrancadas de repente, como uma molesta cortina, e atrás delas apareceu o fúlgido círculo do sol

nascente.

Capítulo 2

Mais tarde Nele me contou que durante aquelas semanas eu ia pela vida como uma

sonâmbula. Nunca escutava com atenção, apenas me dava conta de sua presença, o único que me

afetava era Nathan e a música, que na realidade eram inseparáveis. Nathan representava a

música, perfeita, celestial, apaixonante, absorvida, nostálgica, divina. O tempo que não podia

passar com ele era insuportável, como um grande vazio em minha vida que devia superar de

algum modo.

Não me dava conta de que naquela época Nele tinha uma aventura com um estudante de

biologia de Amsterdam. Além disso, o iminente exame de primeiro ciclo já não me dava medo.

De ter estado mais acordada e atenta, teria advertido muito antes esses sinais misteriosos

que só mais tarde, muito mais tarde, soube interpretar. Então me passavam por cima muitas

coisas que poderiam me ter posto em alerta e ter preparado para o que estava por vir. Mas uma

noite notei algo.

Durante o caminho de volta para casa, seguia encantada. Primeiro Nathan e eu havíamos

tocado juntos, logo fomos passear em Kapuzinerberg. Sei que me admirou sua forma física porque

apenas me chegava o ar para falar atrás da levantada costa, enquanto ele contemplava tranquilo e

meditabundo, em Salzburg vespertina. O ar era nítido e temperado. As moscas zumbiam ao redor,

melhor dizendo, sobretudo a meu redor, porque eu estava suada, e Nathan não. Não falamos

muito, mas me rodeou com o braço com cuidado. Esperava que me beijasse como aquela vez à

alvorada, mas, embora não fez, não tive a sensação de que faltasse algo, de que aquele momento

não fosse de perfeita felicidade, plenitude e ternura. Beijar era emocionante, estar muito perto

dele um prazer um pouco menos excitante, mas, precisamente por isso, mais depravado.

—Nele, está aí? —gritei ao entrar no andar. Estava segura de que estava em casa, pareceu

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notá-lo. Entretanto, não respondeu quando voltei a chamá-la, e em seu quarto só encontrei o caos

habitual: montanhas de apontamentos e cópias, trastes, caixas de pizza vazias e latas de refresco.

Segui avançando e abri a porta da sala. Na soleira me dava à volta.

Senti frio, um frio gélido. O salão estava às escuras, a casa de em frente projetava sombras

alargadas sobre a nossa e afugentava os raios do sol. Quando íamos de Salzburg no inverno

durante as férias do semestre e não acendíamos a calefação, depois sempre nos esperava um

congelador. Mas não era inverno, as noites eram frescas, mas não frias, e mesmo assim a sala

estava tão fria que me pôs a pele arrepiada.

Não consegui desentorpecer até que comecei a tiritar. Fui correndo para a calefação e a

acendi. Os tubos começaram a ferver, mas tinha tão frio que não quis esperar a que o radiador se

esquentasse. Saí correndo da sala e fechei a porta com força atrás de mim.

Em seguida voltei a sentir calor, mas seguia estando incômoda. Vacilante, fui de um cômodo

ao outro, sem saber o que ou a quem procurava. Tudo parecia normal, o banheiro, a minúscula

cozinha em que só cabia uma pessoa. Tive que fazer de tripas coração para baixar o pomo da

porta de meu quarto. Suspirei aliviada ao notar que nesta reinava uma temperatura normal, mas

fiquei de pedra ao desviar a vista para o escritório.

Eu sempre era mais ordenada que Nele, e em meu quarto estava quase perfeitamente

arrumado, mas nunca era meticulosa, embora Nele às vezes me acusasse disso em brincadeira.

Entretanto, meus papéis — sobre tudo partituras, mas também alguns manuscritos e

documentos— estavam empilhados com muito cuidado no escritório, como se alguém tivesse

medido as distâncias com regra e tivesse comprovado folha por folha que as esquinas

coincidissem milimetricamente. Aproximei hesitante e fiquei um momento frente ao escritório,

sem me atrever a tocar a primeira folha. Estaria fria? Alguém mexeu minhas partituras para logo

esmerar em voltar às colocar? Ou é que a imaginação me estava dando uma má passada?

Quando chegou Nele um pouco mais tarde, se riu de mim. No salão fazia fresco, mas não um

frio gélido. Eu ia por atrás dela a muita distância enquanto examinava todo o salão.

—Supõe que aqui faz frio? —voltou para mim e sacudiu a cabeça— Certamente se sente

gelada porque não está perto de seu Romeo.

De repente me envergonhei de me haver mostrado tão temerosa. Afugentei todos os

pensamentos sobre o frio e tentei deixar de inspecionar com receio o escritório. No dia seguinte

não o expliquei a Nathan.

No final três dias o frio do salão já estava esquecido. Quando Nele me comunicou pela tarde

que não dormiria em casa —provavelmente ia para casa do estudante de biologia de

Amsterdam— não me deu medo, ao contrário, alegrei-me de poder praticar sem que me

incomodassem. Aproveitei cada minuto que ficava até as dez da noite, depois me dava um

generoso banho e deitei pouco antes de meia-noite. Desde que conhecia Nathan, dormia mal e

pouco, mas como não estava de tudo cansada decidi ler um pouco. Não podia me concentrar nas

palavras. Não parava de pensar em Nathan, no tempo que tínhamos passado juntos, e sorria para

dentro: contente, como diria eu, como uma boba, como haveria dito Nele, em tom de mofa.

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26

Quando despertei estava muito escuro. Não recordava ter apagado a lamparina de noite. O

livro, fechado, estava entre o queixo e o peito.

Um dos cantos me pareceu na pele e me fazia mal. Deixei o livro a um lado e me esfreguei

na zona dolorida. Fiquei adormecida meio sentada, assim que me incorporei para colocar bem o

travesseiro.

Naquele momento o ouvi: vozes, várias vozes, apenas mais audíveis que um sussurro, mas

furiosas.

Deixei cair o travesseiro. As vozes pareciam vir diretamente do corredor. Falavam entre si

cada vez mais rápido, entre os sussurros só distinguia um resmungo, mas nenhuma palavra.

—Olá? —Falhou a voz. O único que consegui emitir foi um grasnido, mas foi suficiente para

que os sussurros e murmúrios cessassem por um instante. Agucei o ouvido em tensão. Silêncio

sepulcral. Enquanto isso a vista acostumou à escuridão, e em meu quarto tudo parecia estar como

antes. Procurei provas da lamparina de noite, tentei acendê-la, mas por muito que apertasse o

interruptor seguia às escuras. De repente me deu um tombo o coração.

Não havia luz.

Alguém cortou a corrente.

Levantei, fui às pontas dos pés até a porta e coloquei o ouvido nesta. Tudo seguia em

silêncio.

A lanterna... Ocorreu-me que em algum lugar da casa tínhamos uma lanterna para casos de

emergência como aquele... Entretanto, quanto mais me perguntava onde estaria, mais voltas

absurdas davam meus pensamentos.

De repente ouviu outro ruído, e não pude evitar soltar um grito. Esta vez não era um

sussurro nem um murmúrio, a não ser um estrondo. Fechou uma porta, e em um primeiro

momento tive a certeza de que se tratava da de nossa casa. Tremente, precipitei ao corredor às

escuras, olhei em todas as direções, presa do pânico, e por fim compreendi que os sentidos me

enganaram.

Os sussurros reataram, mas, ao igual à portada, não vinham de nossa casa, mas sim da

escada. Percorri o corredor tiritando e me dava um golpe no cotovelo com uma cômoda. Do

gancho pendurava minha jaqueta, cujo contorno, na escuridão, parecia à silhueta de um

enforcado.

Introduzi a chave na fechadura da porta de casa e a fiz girar duas vezes, procurei testar o

fecho de segurança, que quase nunca utilizávamos, e o corri. Logo desviei a vista para a mira. As

vozes foram subindo de tom, mas, em que pese a que se ouviam várias pessoas que cochichavam

na escada, diante de casa também estava escuro.

Que fazia aquelas pessoas aí às escuras?

Um momento de lucidez me permitiu dominar o pânico, cada vez maior.

“Vai ver idiota!”, repreendi. É obvio que na escada também estava escuro! Não havia

corrente! Outros inquilinos da casa se deram conta muito antes que eu de que se foi à luz e seguro

que agora discutiam sobre o que fazer.

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A tensão se converteu em uma risada nervosa. Queria voltar a me deitar rápido e entrar no

calor sob a colcha. Entretanto, ainda não me separei da porta quando desatou um ruído

ensurdecedor. Ouvi ofegos e gemidos, passos rápidos e um rangido forte, sacudidas, empurrões,

patadas. De novo se fechou uma porta, ouviram reveste de sapatos que chiavam contra o chão de

linóleo, uma curiosa esfregada e um tinido. Isto último soou como se quebrasse uma quantidade

enorme de porcelana.

Voltei a me aproximar da mira, mas, uma vez mais, o único que distingui foi um grande

negrume, assim que me retirei assustada, não só pelos inquietantes ruídos, mas também porque

de repente tive a certeza de que havia alguém justo em frente de minha porta, que respirava

devagar e me olhava fixamente. Um calafrio percorreu minhas costas e, apesar de estar tiritando

de frio e medo, senti palmas das mãos empapadas de suor.

De repente aquela figura estranha começou a falar comigo. Sua particular voz não soava

humana, mas sim como o vaio de uma serpente, mas mesmo assim pareceu entender quatro

palavras que me sussurrou através da porta.

“Ele é o impostor.”

O eco daquela breve frase não cessava em meus ouvidos. Tinha a sensação de que foram

rasgar, e desta vez não fiz nenhuma reflexão sensata que me salvasse do pânico. Fui correndo ao

salão, e de caminho rocei a jaqueta que pendurava do gancho e este caiu ao chão com grande

estrondo. Entretanto, aquele som era suave em comparação com o angustiado estrépito que se

produziu na escada.

No salão procurei testar o telefone. O auricular escorregou várias vezes e, quando por fim

consegui marcar, não recordava o número de emergências. Em algum momento consegui contatar

com a polícia. Enquanto os gemidos, patadas e ruídos continuavam, tive que me tranquilizar, dar

meu endereço e explicar o que estava passando.

Sei que balbuciei meu nome, mas não recordo como matei o tempo até que por fim

apareceu a polícia.

���

Quando apareceram os dois agentes de polícia, o ruído já fazia tempo que parou e eu me

vesti. Toquei o interruptor do corredor sem querer, e as lâmpadas se acenderam em seguida. Uma

vez controlados os nervos, decidi que provavelmente não se tratava de um blecaute,

simplesmente minha lamparina de noite quebrou. Isso não explicava absolutamente o que faziam

todas aquelas pessoas às escuras na escada.

Só quando os agentes chamaram embaixo e liberei o porteiro automático me atrevi a abrir

devagar a porta de casa. Uma luz cinza penetrava pela janela da escada, não ouvia nem via

ninguém; tudo parecia normal. Ouvi os passos dos policiais e também que de repente ficavam

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quietos. Inclinei sobre o corrimão da escada.

—Estou aqui! Sophie Richter! — Minha voz soava fraca — Eu os chamei.

Um robusto agente elevou o olhar para mim, o outro se agachou sobre algo e parecia estar

observando com atenção.

—Que curioso — ouvi dizer— É tão... Escura. Isto tem que ver a polícia científica.

Pus as sapatilhas e me aproximei deles. Quando os alcancei, o fornido de uniforme verde

revolveu algo e tirou um celular que parecia bastante grande e antiquado.

—E se tiver algo que ver com os assassinatos do Untersberg? —perguntou o outro com

gesto pensativo.

—Assassinatos? —perguntei eu, consternada.

—Não é tão importante —foi à parca explicação do gordo, que desviou o olhar para mim—

Você é Sophie Richter?

Era uma pergunta muito normal, mas por um momento me pus nervosa, como se tivesse

que aprovar um exame.

—Sim —balbuciei— Sim, chamei porque ouvir o ruído...

—Que ruído?

—Não sei como descrevê-lo. Soava de um modo muito particular, como um... Fragor. Como

se quebrasse uma baixela, mas...

Fiz uma pausa ao ver o olhar mais que cética que trocaram. É que não me acreditavam?

Tomavam por uma histérica? O certo, entretanto, é que era assim como me sentia naquele

momento.

—Esses assassinatos no Untersberg... — disse nervosa— não sabia nada disso.

—Durante as últimas semanas desapareceram alguns excursionistas —me respondeu o

outro agente, um pouco mais amável— Os encontraram muito depois e...

—Alguns excursionistas? —interrompi horrorizada.

—É evidente que foram vítimas de um crime violento. Foram... —Essa vez não fui eu quem

interrompi, a não ser seu colega, que parecia de mau humor.

—Isso não tem nada que ver com isto —exclamou— Além disso, se interessar pode informar

em qualquer jornal. Faz dias que os jornalistas não falam de outra coisa. Melhor nos explique com

mais detalhe o que ouviu.

—Bom... — comecei, mas guardei silêncio.

Meu olhar topou com aquilo que os atrasou. Sobre o chão cinza de linóleo e em uma parte

da parede clara havia uma magra mancha de sangue. Observando de perto via que estava

composta de muitas gotas. Entretanto, o sangue não era de cor vermelha intensa, a não ser

escura, quase negra, como se levasse horas sob o sol ardente.

—Meu Deus! —exclamei, horrorizada.

—Vamos, venha. —O oficial amável me agarrou por braço com suavidade e me conduziu

para cima— Falaremos em sua casa.

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���

Durante a manhã acudiram mais agentes a examinar a mancha de sangue. Quando falei com

um deles mais tarde, já não comentavam a conexão com a série de assassinatos. Provavelmente

prevalecia a suspeita de que dois vagabundos bêbados brigaram com garrafas de cerveja vazias, as

pessoas feriam aos outros e logo fugiram os dois. Interrogaram a todos os residentes do edifício,

mas como ninguém podia completar meu testemunho, não seguiram o caso.

Nele se zangou quando expliquei.

—Isso é porque esses idiotas nunca fecham a porta do edifício com ferrolho! Imagine que

chega a casa de noite e encontra com um bêbado!

Esteve um momento imersa em suas fantasias selvagens sobre tudo o que poderia ter

passado. Só dedicou um comentário casual ao feito de que eu ainda tinha o susto no corpo:

—Parece muito mal.

—Ouviu falar da série de assassinatos no Untersberg? —perguntei.

Nele me olhou com uma careta de impaciência.

—Tudo o que não vai cego de amor pela vida ouviu falar disso. Desapareceram algumas

pessoas, e as encontraram mortas no final uma semana.

Eu seguia tiritando de frio, embora já colocasse duas jaquetas.

—Como?

—Como as encontraram?

—Não! Como as assassinaram!

Nele encolheu os ombros.

—Pelo visto abriram o tórax e extraíram o coração. Mas para então já estavam mortas.

Provavelmente se trata de um assassinato ritual. — Não soava horrorizada, mas sim, mas bem

fascinada, como se estivesse resumindo a trama de um filme de terror muito recomendável.

Sacudi a cabeça, enojada; não queria aprofundar no assunto, e Nele seguiu

destrambelhando sobre os vizinhos, que não fechavam bem a porta do edifício pelas noites.

No final recolhi minhas coisas e dirigi a Mozarteum.

���

Contemplou sua imagem no espelho, e seu aspecto repugnou.

Os olhos.

Como sempre, notava nos olhos.

A maioria das vezes podia ocultar perfeitamente quem era, mas uma noite como a de ontem

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fazia mal. No branco dos olhos explodiam multidão de veias, e o sangue que saía delas não era

vermelho, a não ser azulado. Parecia que atraíssem gotas de tinta nos olhos.

Baixou a cabeça e soltou um grunhido involuntário, levantou a mão e a fechou em um

punho. Antes de saber o que estava fazendo deu um murro ao espelho e o destroçou. Com um

suave tinido, caíram ao chão milhares de pedaços que deixaram um buraco. Só o marco do espelho

ficou intacto.

Respirou fundo e por um momento se envergonhou de sua debilidade.

Arrependia de ter entrado na briga aquela noite. Saiu gracioso, mas seguia sendo uma

imprudência e, sobre tudo, não tinha sentido: era muito logo para forçar a decisão, e depois da

sensação de embriaguez só ficavam um vazio, cansaço, aborrecimento.

Retrocedeu, contemplou o prateado mar de cristais e logo olhou as mãos. Estavam intactas.

Como foram ferir uns ridículos fragmentos de cristal?

Suspirou e pensou nela para acalmar.

Pensou em seu aroma, sua música, seus passos suaves, seu ágil figura. Recordou seus gestos,

que pareciam um tanto assustadiços quando se apartava o cabelo loiro, a ruga da frente quando

se concentrava, e seu quente sorriso quando ficava contente.

Quando voltou a abrir os olhos, a imagem que evocou desvaneceu, e viu seu próprio rosto,

tal como se refletia nos fragmentos do chão. Em nenhum em concreto se via de tudo, seu rosto

parecia desagregado, decomposto em muitas partes que não encaixavam.

“Assim sou —pensou— Esquartejado.”

Ia de um lado a outro sem rumo naquele imenso oceano, infinito, vasto e vazio, de cujas

insondáveis profundidades sempre surgiam inimigos insidiosos. Só consolava a ideia de um porto

de salvação.

Soltou um gemido, voltou a fechar a mão em um punho, mas essa vez, em lugar de golpear o

espelho, quis fazer uma promessa a si mesmo.

Decidiu que não seria assim para sempre. Chegaria um dia em que mudaria sua sorte.

���

O inquietante barulho na escada e a noite de calafrios já quase estavam esquecidos. Depois

de maio chegou um junho mais quente e ensolarado. Talvez não sempre fizesse calor e sol, ao

melhor também chovia de vez em quando, mas eu não me dei conta, e precisamente por isso

tampouco me incomodava. Não me importou que em uma ocasião ficássemos sem corrente ao

meio dia-e essa vez não eram minhas imaginações, como aquela noite—, depois do qual Nele

esvaziou o congelador e propôs muito séria, que nos comêssemos isso tudo porque do contrário

estragaria. Lástima que os mirtilos, o molho bolonhesa e os espinafres não combinassem bem.

Não me incomodava que as legiões de turistas fossem cada dia mais numerosas na Getreidegasse,

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nem que uma vez me insultasse uma senhora com traje amarelo porque pensava que pareceu

uma câmara nas costas. Deu igual a uma manhã o chão do refeitório universitário aparecesse

coberto de bitucas, restos de uma festa de estudantes clandestina cujos organizadores todo

mundo encobria, e me perguntassem quem a organizou. Era a única que não mentia ao dizer que

ignorava, mas mesmo assim não me liberei do olhar furioso da proprietária do MOZ. Pouco antes

teria morrido de vergonha e me sentiria culpado, embora não fora culpa minha. Agora já não.

Nunca vivi, visto sentido nem cheirado com tanta intensidade, e ao mesmo tempo jamais esteve

tão cega a tudo o que acontecia ao redor. Às vezes Nathan e eu íamos passear nos Mirabellgarten,

e, sobre tudo no labirinto dos sebes altos, tinha a sensação de que estávamos sozinhos no mundo,

um mundo multicolorido, de um verde tão suntuoso que cheirava ao verão e emanava felicidade.

Era feliz quando simplesmente passeávamos tranquilamente juntos, feliz só de poder

contemplá-lo. O único que me dava medo eram os momentos breves e estranhos em que de

repente Nathan parecia taciturno, ausente e melancólico, mas não duravam muito, e por outra

parte fui me acostumando a eles. Começou a me confundir outra coisa: às vezes, quando

passeávamos juntos por Salzburg, parava de repente, dava a volta, nervoso, e procurava com a

vista por toda parte, como se sentisse que alguém o seguia. Nesses momentos marcavam as rugas

de preocupação na frente, e inclusive quando seguíamos caminhando me dava à impressão de

que esperava ouvir passos que se aproximavam de nós.

Uma vez reuni o coragem para perguntar o que ou quem o inquietava tanto.

—O que acontece?

Entretanto, quando posou seu olhar em mim, vi como ausente, como se despertasse de um

sonho tenebroso.

—Não é nada.

—Parece que... —Não pude seguir falando, porque nesse preciso momento se inclinou para

mim e me beijou como aquela vez ao amanhecer, diante de sua casa. De novo senti seu fôlego

quente em meu rosto, saboreei seus lábios, estremeci e ao mesmo tempo senti um calor

abrasador. Quando finalmente me soltou, tremiam os joelhos. Estivemos olhando um momento,

fascinados, logo me aproximei dele, beijei-o e ele me correspondeu imediatamente.

A partir de então não falamos, beijávamos tão frequentemente e com tanta naturalidade e

intensidade que não ficava tempo para falar. Beijávamos diante da porta de casa, na Goldgasse,

quando me acompanhava de noite, nos corredores da Landertheater, aonde vimos uma ópera, e

em um banco de Mönchsberg, de onde se via a escola Felsenreitschule, o parque Furtwängler e o

colégio beneditino. Uma tarde no Mönchsberg parecia que não queria me soltar, e não só me

beijou na boca, lambeu os lóbulos das orelhas, durante tanto tempo e com tal intensidade que me

contraíram as vísceras. Aproximei a ele, senti cada fibra de seu corpo, não recordava ter estado

tão ávida de algo como do sabor de seus lábios, sua pele quente e suave, o cabelo sedoso e um

pouco encaracolado em minhas mãos. Queria senti-lo, não só em meu rosto, na boca, mas

também em todas as partes, assim agarrei suas mãos e as deslizei pelo pescoço até os peitos.

Então ficou olhando e se afastou com delicadeza e decisão.

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—Há tempo —murmurou com voz rouca— Melhor... Não precipitar as coisas.

Assenti com as bochechas ardendo e contemplei o entardecer de Salzburg. Tudo me parecia

estranho, uma cidade desconhecida, como se jamais tivesse pisado em suas ruas e becos nem

ouvido tanger os sinos das Iglesias. O mundo de Nathan e meu era único, separado e liberado de

tudo, mas quando despertava de novo à realidade sentia fria e sozinha. Entretanto, não

passávamos muito tempo separados. Depois do beijo ao amanhecer diante de sua casa, estivemos

nos vendo todos os dias durante duas semanas.

Tempo mais tarde, cheguei a pensar que sua ternura e os numerosos beijos talvez só

tivessem como objetivo evitar todas minhas perguntas. Durante aquelas semanas vivi unicamente

para estar perto dele, para sentir a paixão que despertava em mim. Estava apanhada em uma

onda de felicidade, convencida de que não podia ser mais feliz.

Por isso me resultou ainda mais duro quando de repente Nathan se foi. Em meados de junho

desapareceu pela segunda vez, sem avisar, sem um bilhete nenhuma explicação. Tínhamos

despedido diante de Mozarteum e no dia seguinte já não o vi. Ele sabia onde vivia, e tinha meu

número de telefone, mas não deu sinal de vida.

A primeira vez, que desapareceu três dias, me fez insuportável. Agora já passou uma

semana, e os dias transcorriam com tanta lentidão que me parecia um ano inteiro. Não parava de

repetir que a primeira vez voltou, e tentava ensaiar para meu exame final e me comportar diante

de Nele como se não me importasse. Não poderia aguentar nem suas brincadeiras bem-

intencionadas nem suas indiretas sobre meu amado, que, segundo ela, para mim era pouco

menos que um Deus, algo que basicamente era um engano, já que um homem sempre é um

homem. Entretanto, cada dia estava mais assustada: e se não retornava? Como ia viver sem sua

música, seus beijos e suas carícias, sem essa forma de me olhar entre pensativa e melancólica?

Nathan me deu a entender que não voltasse a procurá-lo em sua casa nunca mais, mas

depois dessa semana me dava igual. Meu desespero forçou a decisão de não seguir de braços

cruzados. Queria uma explicação! Devia isso! E não voltaria a ruborizar, a me sentir culpada,

quando me encontrasse isso! Pelo menos, essa era minha intenção.

Justo quando cheguei a sua casa em Linzergasse, uma mulher saía do edifício, assim

aproveitei e entrei correndo sem chamar o interfone. Subi olhando todos os nomes que figuravam

nas placas das portas, todos de desconhecidos, até que, no apartamento de cobertura, encontrei

as iniciais N. G.

Em lugar de tocar o timbre, esmurrei a porta enquanto gritava seu nome. Meus gritos, no

princípio um pouco contidos e reservados, voltaram mais fortes e enérgicos e, ao ver que não

havia reação alguma, comecei a vociferar, cada vez mais desesperançada e cegada pela raiva:

—Nathan! Nathan, onde está? Não pode me fazer isto! Não pode ir sem mais, sem dizer

nada! Preocupa. Se não quiser estar mais comigo, diga, mas não fuja de mim! Só quero saber se

esta bem!

Não tinha esperanças de ver, mas não parava de falar, de chamá-lo. Enquanto estivesse

imersa naquela voragem de palavras, não sentia mal-estar nem confusão. De repente abriu a

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Série Nefilim 01

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porta e apareceu Nathan. Além de esmurrar a porta com força, estava apoiada contra ela, de

modo que a ponto estive de perder o equilíbrio e cair sobre ele. Recuperei o equilíbrio bem a

tempo. Fiquei olhando e me separei tão consternada como aturdida.

Nunca o viu assim, vestido só com umas calças negras, com o torso nu. Sempre pareceu

muito magro e robusto, mas agora via seus imponentes músculos. Não entendia como podia ter

passado por cima quando o abraçava, mas possuía uns ombros, um ventre e uns antebraços fortes

e marcados, de uma beleza perfeita.

Ocorreu-me que uma figura assim só conseguia a base de horas de treinamento diário,

tempo que um chelista deveria aproveitar para outras coisas. Não podia afastar o olhar dele, e

meu assombro era tal, que nem sequer pensei em me envergonhar por vê-lo meio nu.

—Sophie...

—Onde diabos estava?

—Sophie... —Tinha os olhos como afundados nas conchas. Olhou ao redor na escada,

inquieto, logo me agarrou pelos braços, fez entrar no apartamento e fechou a porta— Não deveria

ter vindo... —Não parecia molesto nem receoso, mas bem abatido.

—E o que se supõe que devia fazer? —exclamei— Passou uma semana desaparecido!

Ninguém sabia onde se meteu. De fato ninguém sabe nada de você. Quem é Nathan? E sobre

tudo, o que significo para você, se pelo visto nem uma vez te digna...?

—Sophie...

Então caí na conta de que seguia me agarrando pelos braços, que me abraçava com força.

Senti a pele fria e suave de seu peito nu. No final um momento me soltou, mas eu já não podia me

separar dele, porque o alívio era maior que toda a raiva e a confusão. Ali estava de novo. Podia

voltar a acariciá-lo.

Já não tinha o olhar nublado, era penetrante. Estremeci ao levantar a mão e passá-la por seu

peito nu a câmara lenta.

—Tive que ir de Salzburg — murmurou — Tinha que arrumar uma coisa... Não posso explicar

isso... Mas por favor, Sophie! Por favor, confia em mim! Não tem nada que ver com você, que eu

não queira...

No princípio minhas carícias eram prudentes, logo se voltaram mais atrevidas. Uma vez

salvas as distâncias, já não podia parar de tocar. Não pensava no que fazia se podia ou devia fazê-

lo, simplesmente me deixei levar pelo instinto. Nathan se afastou um pouco, ao final separou de

mim e foi do corredor ao único quarto do apartamento. Eu segui e vi que o quarto era amplo e

claro, mobiliado com austeridade. Em vez de uma cama havia só um colchão: não havia manta,

nem travesseiro em cima, só estava coberta por um lençol. Havia uma cadeira ao lado, e vi a capa

do chelo, mas não vi um armário ou uma mesa. Deu a sensação de que era a casa de um monge,

não de um músico.

Entretanto, no final um segundo, deu igual onde me encontrava e como estava mobiliado o

quarto. Fiquei ao lado de Nathan, muito perto, e quando se voltou para mim abracei de forma

instintiva seu pescoço. Antes de poder me aproximar dele, já inclinou sobre mim e nos fundimos

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Série Nefilim 01

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em um comprido beijo, tão intenso e apaixonado que me tremia o corpo de desejo.

Quando retirei, não podia respirar.

—Não volte a fazê-lo... Ir assim, sem mais.

—Isso não posso prometer.

—Mas por quê? — perguntei sem entender nada.

Ele sacudiu a cabeça e mostrou inquieto.

—Sinto muito, Sophie. Eu gostaria, mas...

De repente seu rosto refletia tal desespero que eu só sentia a necessidade de consolá-lo,

fazer feliz de novo e pôr de bom humor. Voltei a beijar, e uma vez mais foi tão formoso sentir seu

sabor e o calor de seu corpo que quase resultava doloroso. A tensão entre nós fazia vibrar o ar,

como se fôssemos dois ímãs que se atraem e se repelem ao mesmo tempo, e de repente aquela

tensão já não estava no meio, a não ser ao redor, como se nos achássemos em um círculo secreto

que nos protegesse do mundo. O que acontecia parecia irreal, e ao mesmo tempo muito natural.

Já não havia tempo para refletir e fazer uma pausa, nem para retroceder ou fugir da intimidade

excessiva. Só me impulsionava o desejo de notar ao máximo sua pele tersa e nua, de me assegurar

uma e outra vez de que voltava a estar ali, que sentia me ter preocupado, e que me queria. Em um

momento dado já não tive suficiente beijando, acariciá-lo e sentir seu corpo contra o meu. Queria

mais, queria sentir todo seu corpo. Deu um puxão a minha blusa, com as pressas arranquei alguns

botões, logo caiu ao chão, seguida de meu sutiã, e eu também fiquei com o torso nu. Não me senti

exposta nem insegura, sentia que era o correto, que estava bem.

A melancolia desvaneceu de seu olhar quando me atraiu para si. Perdi o equilíbrio e me

deixei cair em seus braços, entregue. No final um segundo estávamos tombados no colchão.

Murmurou algo que não entendi de tudo. “Tentei... De verdade que tentei...” Enquanto

falava cobriu meu rosto de beijos, e o pescoço, os ombros, os peitos. Desabotoei a saia ao tempo

que tirava suas calças. Depois de alguns movimentos bruscos e impacientes ficamos os dois nus.

—O que? —perguntei, com a voz entrecortada— O que tentou?

Entrelacei as pernas com seu corpo para aproximá-lo mais a mim, sentir sua pele suave, toda

sua cercania. Ainda tinha frio e calor ao mesmo tempo, e, além disso, estava essa sensação de me

derreter, arder, explodir, me fundir, tudo de uma vez.

—Tentei resistir — murmurou.

Por que ia querer resistir?

Entretanto, não tinha a cabeça para indagar o sentido de suas palavras. Guiei através de seu

cabelo castanho escuro, enquanto ele acariciava meu corpo com as mãos. Estava totalmente

possuída pelo desejo, e não havia dúvidas, reflexão nem pausa. Abri a ele, quente, úmida,

preparada. Quando entrou em mim, nossos olhares se encontraram.

Senti um tremor, rápido e incontrolado. Tentei contê-lo, mas me dava conta de que não era

meu corpo o que se agitava, a não ser o seu. Quase vibrava, não parava de tremer.

—O que acontece?

Nossos olhares se fundiram em uma.

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—Amo, Sophie —sussurrou— Te amo.

���

Ainda ficava uma semana para o exame de primeiro ciclo quando soube que estava grávida.

Não me surpreendeu muito. Visto em retrospectiva, talvez só tentasse me convencer a mim

mesma, mas na realidade já o suspeitei muito antes, a manhã depois de nossa noite juntos.

Fazíamos amor uma segunda vez, mais devagar, com querida, com calma, logo dormi nos

braços de Nathan e despertei com a luz do alvorada. Primeiro o quarto estava cinza e brumoso,

logo estenderam os primeiros fios vermelhos. Para então Nathan já não dormia. Quando levantei

a cabeça, vi que me estava observando. Antes de poder interpretar a expressão de sua cara, ele se

inclinou, beijou e me abraçou. Depois me levantei sem dizer uma palavra e me vesti. Não havia

nada que dizer. Não havia palavras para descrever a embriaguez a que nos tínhamos entregado

aquela noite, a intimidade e o amor, o desejo e a satisfação. Quando saí da casa, o céu estava

vermelho vivo. Nathan me acompanhou ate em baixo e me seguiu com o olhar enquanto me

separava dele, devagar. Na realidade não caminhava, mas bem dançava, dava saltos e voltas sem

sentir o chão sob os pés. E enquanto me voltava uma e outra vez para olhá-lo, me passou pela

cabeça pela primeira vez a ideia de ter concebido um menino.

Não pensei nas consequências, que não era o momento adequado, o insensato de não ter

evitado: estava tão impressionada pela ideia como pelas lembranças daquela noite.

Ficaria o único que ia passar com Nathan. Durante as seguintes três semanas vivemos dias

maravilhosos, embora sem que se repetisse a paixão daquela noite. Logo Nathan me explicou que

tinha que ir uns dias e, embora sentisse, pareceu que o fato de que me dissesse era isso uma

prova da formalidade de nossa relação. Essa vez não se foi sem avisar, explicou não sei quanto

Múnich e de um antigo professor de chelo ao que tinha que ir ver uma ocasião única, já que o

professor vivia nos Estados Unidos e estava na Europa pouco tempo. Tempo mais tarde me

perguntei por que não me incomodei que não me convidasse para ir, mas naquele momento nem

o pensei, na realidade não pensava absolutamente, só desejava voltar a estar entre seus braços

quando retornasse. Entretanto, quando por fim voltou para Salzburg, esteve afastado de mim.

Morria de vontade de vê-lo de novo, mas durante a viagem contraiu um vírus, nada sério, mas

contagioso, assim era melhor que só falássemos por telefone. Saber que estava em Salzburg e não

poder vê-lo resultava insuportável, mas não ficava outra opção que me aguentar, e não duvidei de

sua curiosa enfermidade, como tampouco de sua viagem a Múnich. Via tudo o que acontecia ao

redor, mas, em meu estado de felicidade, não o questionava.

Nem sequer os primeiros sintomas físicos da gravidez — os peitos inchados, as leves

náuseas, a sensação de vertigem quando me levantava com brutalidade— conseguiram aplacar

essa felicidade. Quando comprei um teste de gravidez, pareceu que a farmacêutica me olhava com

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compaixão, mas eu esbocei um sorriso sincero e radiante.

Justo no momento em que esperava a que as raias do test mudassem de cor chegou Nele a

casa. Em seguida soube o que tinha entre mãos e viu o resultado quase antes que eu. De fato, eu

não necessitava confirmação. Sabia que o filho de Nathan, nosso filho, crescia em meu interior.

—Mas como pode ter passado?

Sorri feliz a Nele.

—Alegra? —disse atônita.

Assenti. Não podia evitar sentir mais que alegria.

—Mas não me dirá a sério que quer ter um menino agora, na metade de seus estudos? Mas

se não ter nem vinte anos! Você... Quer ser pianista!

Em algum lugar dentro de mim sabia que era uma insensatez, mas estava feliz, sentia forte e

segura de poder, contudo. Tinha vontade de abraçar o mundo inteiro.

Plantei um beijo na bochecha de Nele e, sem dizer uma palavra mais, fui de casa. Corri

eufórica pela Getreidegasse e o Markartsteg em direção a Mozarteum. A noite anterior Nathan me

ligou, explicou que se recuperou da enfermidade e me propôs que nos víssemos. Percorri o

caminho muito rápido, mas não cheguei esgotada, tinha a sensação de que podia seguir correndo

assim para sempre. Nathan já estava na entrada e olhava inquieto ao redor. Era um dia

temperado, mas levava um casaco grosso e escuro. Depois de fazer um gesto com a mão e que me

visse, seguiu passeando o olhar, inquieto.

—Nathan! —gritei— Nathan!

Sem reduzir a velocidade, equilibrei sobre seu pescoço sem poder conter a alegria de voltar

a vê-lo por fim e a emoção se soubesse grávida. Nossos corpos se chocaram com força, e ele se

sobressaltou. Não pensou em como comunicar a notícia, se dizer a boca grande ou adotar uma

atitude mais cautelosa, e ao vê-lo saiu de carreirinha. Estava tão ébria de felicidade que não

imaginei que sua reação fosse ser tão parecida com a de Nele. Estava apanhada naquela ideia e

não podia parar de dizer que ia ter um filho dele.

Nathan não respondeu e voltou a olhar com inquietação em todas as direções. Quando por

fim posou o olhar em mim, pareceu que me atravessava. No princípio reagiu a minhas palavras

devagar, muito devagar. Algo desfigurou seus preciosos traços finos: era puro terror.

—O que diz? —sussurrou.

Dava um passo atrás.

—Não ouviu o que acabo de dizer? Estou grávida. Vou ter um bebê e...

Antes que pudesse continuar, tampou a boca com a mão. Ardiam os lábios.

Retrocedi de novo.

—Ficou louco? —balbuciei como pude, já que Nathan seguia pressionando a mão contra

minha boca.

—Não fale tão alto! —repreendeu— Alguém poderia ouvir.

Olhei ao redor. No pátio interior da Mozarteum se reuniram alguns estudantes de música

para fumar. Pela rua corria uma mulher com um menino pequeno da mão e um cesto com as

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compras na outra. Um senhor maior tinha pacote um poodle com um estridente vestido de ponto

rosa. Não se via ninguém mais, e essas poucas pessoas não prestavam atenção nem em Nathan

nem a mim.

Separei a mão com um gesto brusco.

—Quem... Quem ia nos ouvir? Além disso, embora...

Esta vez me colocou a mão com muita mais delicadeza nos lábios, não foi rude como a

primeira vez, mas seguia sendo desagradável. Antes me sentia alegre e cheia de energia, mas

agora me ameaçavam a sensação de engano e o medo, cada vez mais ao ver que não parava de

voltar inquieto.

Poderia chegar a entender que não se alegrasse, mas que nem sequer reagisse diante da

notícia? Nem sequer quando finalmente me levou para Salzach, e não a Mozarteum?

—Vamos, vou levar para casa...

—Mas...

—Vamos!

A ordem soou tão contundente e dura que me estremeci e não me atrevi a desobedecer.

Caminhamos juntos em silêncio. Depois dos primeiros passos não só me soltou, mas

também afastou claramente de mim. Desde fora, qualquer teria pensado que não nos

conhecíamos, que caminhávamos ao lado por acaso. Olhei de soslaio várias vezes, queria dizer

algo, mas ele evitava meu olhar, e não me saíam as palavras.

Quando cruzamos Salzach estava convencida de que foi um engano assaltá-lo de surpresa

com uma notícia assim. Tentei me convencer de que só necessitava tempo para digeri-la.

Chegamos a Goldgasse.

—Sophie — começou, e parecia que custava pronunciar as palavras, mas logo,

laconicamente, disse — Falaremos disso mais tarde. Virei de noite.

Olhou com olhos ausentes, como antes, parecia pensativo. Não fez nenhuma ameaça de me

abraçar nem me dar um beijo.

Dei a volta vacilante e subi a escada. Os pés me pesavam como se fossem de chumbo. Assim

que cheguei a casa fui a meu quarto, abri a janela e olhei em baixo. Nathan seguia no mesmo lugar

diante de casa, eu quis fazer um gesto, mas ele não levantou a vista, não parava de olhar em uma

e outra direção, como se procurasse algo, e ao final se foi pressuroso.

Segui com o olhar até que desapareceu de meu campo de visão, me debatendo entre o

desgosto, a desilusão e a alegria pelo bebe.

De noite não apareceu como prometeu, e tampouco ao dia seguinte. Fui procurá-lo a

Mozarteum, mas não o encontrei, e quando voltei correndo a minha casa, esperançada, tampouco

estava ali.

���

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Esperei.

Esperei durante o meio-dia, toda à tarde, toda a noite. Não dormi, não comi nada, não bebi

nada. Quando à manhã seguinte Nele encontrou com todo o corpo tremendo e banhada em

lágrimas, ficou furiosa.

—Vêem aqui — soprou, enquanto me agarrava por braço— mas o que esperava? Que desse

saltos de alegria ao ver que fica grávida a primeira noite? Isso não funciona assim!

—Nele...

—Agora vai comer e vai tentar dormir! Está horrível. —E logo, ao ver que eu não reagia,

disse— A maioria dos homens é assim. Primeiro fazem os heróis, e logo escondem a cabeça. Se

tiver sorte, em uns dias terá passado o susto e talvez esteja disposto a te ajudar economicamente.

—Não se trata de dinheiro — gaguejei.

—Ora! —exclamou— Em todas as relações, cedo ou tarde, trata-se só de dinheiro. Assim é a

vida. Ai, Sophie... Não se engane!

Possivelmente me levantei comer algo, talvez dormisse também umas horas, já não sei. Só

sei que mais tarde segui esperando, de novo durante o meio-dia, toda à tarde, mas só a metade da

noite. Depois já não aguentei mais.

Bom, não era a primeira vez que desaparecia sem avisar nem dar uma explicação, mas isto

era distinto, isso sabia: havia dito que estava grávida e me prometeu que falaríamos aquela

mesma noite.

Quando se foi de Salzburg a última vez me deu seu número de telefone, mas me deixou

claro que só devia chamar em caso de emergência extrema. Marquei seu número sem parar, e só

escutei uma e outra vez uma voz metálica que me informava que o número já não existia. De

madrugada tomei a decisão de ir a sua casa: outra vez, como me reprovava uma voz em minha

cabeça que ainda não foi vencida pela pena e a fadiga. No princípio chamei com acanhamento,

logo a golpes: não passou nada. A casa estava completamente às escuras.

Fiquei até o amanhecer na porta da entrada, logo fui correndo a Mozarteum para perguntar

a todo mundo, literalmente, inclusive à mulher da limpeza, se viram o Nathanael Grigori. A mulher

me olhou confundida, em troca no olhar de Hanne Lechner vi compaixão, mas também um pingo

de desdém.

—Já está procurando outra vez? Pode ser que seu menino se vá a cada duas semanas? Eu

não o toleraria. Pelo visto te está destroçando, viu a cara que tem?

Fiz caso omisso de seus comentários e voltei a perguntar se viu Nathanael. Hanne já não se

lembrava de quando se encontrou com ele por última vez. Ao igual às outras vezes, ninguém o viu

ninguém sabia nada dele, era como se esfumou.

De caminho para casa, comecei a chamar a todas as partes. Primeiro à polícia, logo a todos

os hospitais da cidade. Chamei até aos mais longínquos, como o de Hallein.

—O que faz aí? —perguntou Nele surpreendida ao entrar no salão.

—Deve ter acontecido algo. Não pode ser que desapareça assim, sem mais.

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Ela enrugou a frente, cética.

—Não desapareceu já uns dias alguns vezes sem te avisar?

—Sim, mas esta vez parece distinto. Eu tampouco sei. Eu... —Os olhos me encheram de

lágrimas.

Mantive a esperança durante dois dias mais, e prossegui minha busca, já menos frenética,

embora igualmente desesperada, seguindo sempre a mesma rotina: chamava a seu número de

telefone, aos hospitais, esperava diante de sua casa, perguntava por ele na Mozarteum. Então

chegou a carta.

Aquela manhã estava tão sem energia que não podia me levantar. Até então não notei a

gravidez, e tampouco esbanjei um só pensamento nele, mas agora sentia fortes náuseas e mal-

estar. Não recordava me ter sentido nunca tão mal. Por volta do meio-dia me arrastei até a

cozinha para fazer um chá e comer uns palitos salgados, convencida de que não ia poder retê-los

em meu interior muito tempo. Estava removendo a colherada de mel no chá quando bateram na

porta. Contente, precipitei para o corredor, mas quando abri não era Nathan o que estava diante

de mim, a não ser um mensageiro que trazia uma carta. Fixei no remetente. No dorso, com uma

letra fina e elegante, figurava “Nathan”. Não havia sobrenome, nem direção. Nada mais fechar a

porta, abri o sobre.

Tirei uma folha branca e vi que as linhas só ocupavam o terço superior.

Disseram que me está procurando, e queria pedir que deixasse. Decidi não ficar mais em

Salzburg. De um princípio minha estadia ia durar umas semanas.

Sophie dei falsas esperanças, mas pensava que sempre teve claro que o que havia entre nós

não podia durar. Não queria te fazer mal. Se o tiver feito, sinto muito. Desejo todo o melhor em sua

futura vida, mas é melhor para os dois que não voltemos a nos ver nunca mais.

Nenhuma despedida. Nenhuma assinatura. E sobre tudo: nenhuma palavra sobre minha

gravidez.

Li a carta três vezes, logo me escorregou das mãos geladas. Falharam os joelhos e me

desabei no frio chão. Fiquei ali sentada durante horas, logo me arrastei até o piano. Coloquei

diante das teclas sem tocar.

Quando chegou Nele, encontrou ainda ali. Não levantei a vista, não disse uma só palavra de

explicação, mas ela devia ter encontrado a carta de Nathan e a leu, porque disse muito zangada:

—Não pode ser verdade! Desapareceu assim, sem mais?

—Sim — respondi, sem me voltar para ela, com uma firmeza que me assombrou mesma.

Deslizei as mãos devagar sobre as teclas, primeiro sem as apertar, como se as acariciasse.

Quando por fim comecei a tocar, eram notas confusas sem uma melodia.

—Que canalha! —soltou Nele.

—Sim— limitei a responder.

—E o que quer fazer agora? —Senti por seu quente fôlego que se colocou atrás de mim.

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Tinha que gritar para superar as dissonâncias— Não pode aceitá-lo! Em algum lugar tem que estar.

Traz aqui! Peça explicações! Que não despache com estas ridículas linhas! Tem que assumir sua

responsabilidade.

—Não.

Eu esmurrava as teclas. A multidão de tons dissonantes fazia mal aos ouvidos, mas de algum

modo me sentavam bem, eram liberadores.

—E o bebê? —gritou Nele entre o ruído— O que acontece com o bebê? Quer ter?

—Sim.

Apenas se ouvia minha voz.

—Mas segue querendo ser pianista? Como o vai fazer? Talvez fosse melhor...

—Não.

Parei de tocar de repente. Nele colocou as mãos sobre meus ombros, mas eu me separei

com brutalidade. Naquele momento não podia suportar tanta cercania, cercania física.

—Vamos, Sophie... —suspirou Nele com tristeza— não pode dizer outra coisa que não seja

sim ou não?

Dei a volta e a olhei fixamente. Lancei um olhar terrível, e ela conteve a respiração,

assustada.

—Sophie... —sussurrou temerosa.

Sentia petrificada, incapaz de voltar a roçar as teclas, e muito menos de seguir tocando.

Pensei em minhas atuações, nos nervos que sempre me acompanhavam o desespero que se

apoderava de mim quando, face aos protestos do professor Wagner, estava convencida de não ter

tocado bem. Não o suficiente.

Tampouco foi boa para Nathan, não o suficiente. Sem dúvida ele tampouco se levou bem

comigo, mas isso o que importava?

Disse que me queria, mas agora via claro que me enganou. Eu não duvidava de meu amor

por ele, sempre o ia querer, mas duvidava de mim em outro sentido: não acreditava ter um

talento extraordinário, que valesse para ser pianista, todo isso era só minha invenção. Nesse

instante o vi claro.

Fechei a tampa do piano com um ruído metálico. Quando o som se extinguiu, disse com uma

voz fria que nem eu mesma reconheci, no meio do silêncio:

—Não vou tocar o piano nunca mais.

���

Não fui consciente de como passaram os meses seguintes, de que um verão caloroso se

converteu em um outono chuvoso depois do que chegou um inverno cinza. Não sentia o frio nem

o calor, só dor: no princípio tão intenso como se fosse rasgar mais adiante uma palpitação

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constante e surda no peito. Não estava segura da causa da dor, se era a pena ou também as

moléstias físicas próprias da gravidez. Não a combatia, a tomava com a mesma indiferença que a

apatia que se deu em mim. Cada passo era uma provocação, cada bocado de comida me

provocava náuseas. Enquanto outras mulheres engordavam durante a gravidez, em meu caso

crescia a barriga, mas o resto do corpo parecia cada vez mais consumido e débil.

Nele já não tinha conselhos para dar, debatia entre a impotência que produzia que eu

rechaçasse todas suas recomendações e a consternação de um estado tão lamentável. No

princípio tentou tudo para me tirar de minha letargia. Foi inútil.

Entretanto, Nele se atreveu a fazer uma nova tentativa e no final das férias do verão

convidou para casa de alguns companheiros de estudos, embora soubesse que eu não era

especialmente querida na Mozarteum. Hanne Lechner era uma das convidadas. Quando viram

meu estado, ficaram perplexos e todos começaram a me bombardear com que não devia deixar

de tocar o piano porque tinha um talento incrível. Observei seus rostos, não acreditei, murmurei

algo de como japonesa eu era aos seus olhos, uma nerd, solitária, nada interessante. Por que não

me deixavam em paz?

—Já sei que dão medo as atuações em público — disse Jan Meyer, o clarinetista— mas isso

não é motivo para...

Como se eu tivesse deixado o piano por medo cênico! Como se essas razões tivessem

alguma importância, comparadas com o único grande medo que era real: o medo a viver sem

Nathan!

—Já não posso mais —murmurei— simplesmente não posso mais.

Ao ver que não conseguiam me convencer, deixaram com uma mescla de estranheza,

lástima e desprezo. Ao dia seguinte veio para ver o professor Wagner. A raiva porque tivesse

deixado passar meu exame de primeiro ciclo era muito mais profunda que a preocupação. Esteve

falando durante uma hora, disse que não deixasse escapar meu dom, e me assegurou que tinha

que recuperar o exame mais adiante, que não era problema suspendê-lo durante uns meses, se...

Antes teria resultado muito embaraçoso que me encontrasse em semelhante estado — ainda na

cama em camisola, sem tomar banho, com o cabelo desgrenhado e a pele mortiça— mas agora

tudo me dava igual, também que sua voz adquirisse um tom cada vez mais colérico.

—O que quer fazer com sua vida? —perguntou, e eu o olhei com expressão ausente e

pensei: “A que vida se refere?”

O único que não me dava igual era o bebê. Durante os primeiros cinco meses notei primeiro

seus suaves movimentos, como se uma mariposa revoasse no interior de meu abdômen. Negava a

me preocupar com o parto —nem lia conselhos nem assistia a cursos de pré-parto— mas quando

acariciava o ventre redondo, espionava a luz ao final do túnel. Nada me impulsionava a recuperar

minha antiga vida, o ponto de inflexão que Nathan provocou era insuperável, era como se minha

vida se dividiu em duas partes que jamais fossem conformar um tudo. Entretanto, de uma coisa

estava segura: nesta nova existência, que talvez em algum momento voltasse a ser uma vida com

desejos, sentimentos e desejos, não estava sozinha.

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Nele chamou em seguida a meu pai, com o qual eu não tinha contato. Separou de minha

mãe muito em breve, e a última vez que o viu foi quando ela morreu, cinco anos antes. Meu pai se

apresentou em casa, olhou de cima abaixo como se fosse uma desconhecida e não pôde

dissimular o desgosto que sentiu. Justo aquela criatura descuidada tinha que ser sua filha. Tentou

recompor e me explicou que me apoiaria em tudo o que pudesse. Ficou claro que se referia a

dinheiro. Dinheiro era o que sempre me deu —pagava o aluguel do apartamento e meus

estudos— mas nunca tempo para me conhecer melhor. Assenti, sem saber o que dizer, e ele

pareceu aliviado quando, poucos minutos depois, despedimos.

Naquela época —isso me confessou isso mais tarde— Nele também tentou localizar Nathan.

De ter podido, não teria importado seguir por meia a Europa para pedir explicações, não só para

me ajudar, mas também porque ela também sofria muito me vendo nessa situação. Entretanto,

ninguém sabia nada dele, e não só no Salzburg, tampouco nas grandes salga de concertos onde

Nathan atuou. Nele não encontrou a ninguém que soubesse dizer onde estava. Todas as chamadas

caíram em no vazio, todas as buscas por Internet acabaram em um beco sem saída.

Em um momento dado, Nele se deu por vencida, e também começou a perder a esperança

de chegar até mim. Falávamos pouco e, embora de vez em quando Nele me preparasse um chá ou

algo de comer, eu tinha a sensação de que cada vez me evitava mais. Para falar a verdade, eu o

preferia, porque me sentia melhor quando estava sozinha.

No Natal partiu com seus pais, e quando voltou para Salzburg e entrou em meu quarto,

decompôs o rosto. Mais tarde compreendi que nesse momento temeu que eu tivesse cometido

uma loucura, embora a mim jamais me ocorresse semelhante ideia. Face às contínuas náuseas, eu

comi durante as festas com regularidade, mas não me notava e, salvo pelo ventre e os peitos

inchados, me via mais magra.

—Quando pegar esse canalha! —exclamou Nele de repente.

Durante os últimos meses já não falava de Nathan. Sempre que nos aproximávamos do

assunto eu me punha a falar de outra coisa.

Eu olhei minhas mãos com gesto pensativo.

—Disse que me amava —murmurei— e que era uma mulher extraordinária...

—Certamente para levar para cama. É um porco!

Não respondi, sabia que tudo indicava que era assim. Entretanto, nem a tremenda desilusão,

nem a desolação nem a insegurança turvavam a certeza de que Nathan não mentia.

Estava convencida de que seu desaparecimento tinha algum motivo, e também de que

jamais chegaria a conhecê-lo.

���

Minha filha nasceu em março do ano seguinte.

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Despertei na escuridão da noite ao notar um doloroso puxão no abdômen. Consegui

recordar vagamente que o relógio da catedral havia tocado as doze quando apaguei a luz. Pouco

depois dormi. Não tinha nem ideia de quantas horas passaram após, mas quando abri os olhos me

senti desvelada. Levantei, acendi a luz. A dor que me despertou provocou uma nova espetada no

ventre. Era molesto — como se alguém atirasse de meus órgãos, atasse e os voltasse a soltar—,

embora não de tudo angustiante, e quando se extinguia me sentia tão viva e febril da embriaguez

como fazia meses que não me sentia. Escutei em meu interior, mas não havia tristeza. Limpei o

cabelo desgrenhado da cara, com cuidado, vacilante, como se algo fosse me agarrar, segurar e

condenar à imobilidade. Mas não foi assim. A fadiga, a letargia e a melancolia se desvaneceram

em poucos minutos.

Acariciei com ambas as mãos o ventre volumoso, esperei quase ansiosa que a dor remetesse

e com ela a repentina certeza de que era o bastante forte para suportá-lo, que não sucumbi à

separação de Nathan, que ainda ficava força, muita força para mim e para meu filho. Primeiro

chegaram às contrações a intervalos de dez minutos e logo eram cada vez mais frequentes. Os

puxões se converteram em sacudidas, a respiração em ofegos. Apesar de tudo, permaneci

tombada e não me levantei até que a luz começou a despontar depois das cortinas.

Estava procurando minhas sapatilhas de estar por casa quando me sacudiu uma nova onda

de dor, mais intensa e muito maior que a anterior. Já não eram como nós, mas sim como se

alguém cravasse uma faca afiada e o removesse ao azar sem acabar de decidir em quantas partes

me esquartejar. Soltei um alarido, apoiei na parede e permaneci nessa posição até que senti um

líquido quente entre as coxas. Pensei que era sangue, já que pela dor não podia ser outra coisa.

Em que pese que me sentisse enjoada, teimada em suportar toda a dor, naquele momento o

pânico se apoderou de mim.

—Nele! —gritei—. Nele!

Saí dando tombos e bati em sua porta. Demorou um momento em tirar a cabeça, sonolenta.

—O que acontece?

Quando olhei as calças do pijama molhados, vi que não era sangue.

—Tenho a bolsa furada... Tenho contrações há umas duas horas...

Ela despertou de repente.

—Mas está louca? Por que não me disse antes? Vamos agora mesmo ao hospital. Ou deveria

chamar o médico de urgências? Meu Deus, não sei o que fazer! E não preparou uma bolsa para o

hospital...

De repente fez uma pausa.

—Minha mãe, Sophie!

Agarrei ao marco da porta. A dor aumentava e penetrava, cortava e dava puxões, afundava e

despedaçava. Pus em cócoras por instinto.

—Acredito que não chegamos ao hospital-murmurei. Então me dava conta que mordi os

lábios até me fazer mal.

Nele equilibrou sobre o telefone, chamou uma ambulância e me levou a sala. Ajoelhei com

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Série Nefilim 01

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as pernas abertas diante do sofá e apoiei as mãos e a cabeça nele. Essa era a única posição em que

suportava as ferroadas da faca que se revolvia em meu interior. A dor das contrações se atenuou,

mas se transladou às costas. Apalpei a coluna vertebral; sentia como uma serpente ondulada que

cuspia veneno em todas as direções.

Gritei sem parar, uma e outra vez.

—E agora o que faço? —lamentava Nele—. Estudo psicologia, não medicina.

Eu não podia dar conselhos, mas meu instinto me dizia que o médico de urgências chegaria

tarde. Nele não podia parar de falar dos nervos. Falava do pescoço uterino... De quanto dilatei...

De se o bebê estava pronto... Se a dor era já das contrações do parto... Porque se não —isso o viu

em um filme— havia um momento em que a mulher tinha que deixar de empurrar e acompanhar

as contrações com a respiração.

Eu não alcançava a desentranhar suas palavras. Minha mente parecia separada do corpo,

elevada a algum lugar do espaço muito por cima da dor espasmódica que me infligia a faca, a faca

ao vermelho vivo que se revolvia uma e outra vez em meu interior. Eu não respirava para aliviar a

dor, como gritava Nele histérica, mas sim me deixei levar por seu ritmo. A energia, a força e a

resolução de antes deixaram passo a um único desejo: a esperança de que tudo acabasse e os

dores diminuíssem.

Em algum momento tive a sensação de que, por um instante, a faca se detinha. Levantei a

cabeça e vi que Nele abriu as cortinas. O vento batia nos matagais de nuvens em finos fios que se

entreteciam com o cinza escuro até que penetraram os primeiros raios de sol, ainda débeis e

apagados, de cor rosa pálido.

Fechei os olhos com força, e me ouvi gritar ao longe de dor.

—Sente no sofá! —gritou Nele— E abre as pernas! Se não, não vejo nada.

Obedeci, troquei de posição e finalmente deixei cair à cabeça para trás. Quando voltei a

olhar ao céu, as nuvens se dispersaram e o rosa pálido se converteu em um vermelho abrasador

que retirou o último véu da noite.

—Vejo a cabecinha — vociferou Nele. Ou mais que gritar, soltou uma risada histérica.

Eu, em troca, estava absolutamente tranquila. Já não chiava nem gemia. Fiquei olhando

fixamente o vermelho ardente do céu com a sensação de que flutuava para ele, me liberando de

meu próprio corpo e abandonando tudo o que constituía a antiga Sophie: a insegurança, que

frequentemente disfarçava de aspereza, o medo a me equivocar, do que não conseguia me

desprender, esse amor incondicional e frustrem para Nathan, que tão feliz e tão desventurada me

fez, a teima com a que enfrentava às coisas, embora me destruísse. Em quem ia converter se não

ficava nada dessa Sophie? Poderia me desfazer dela tão facilmente?

Justo quando contemplava o céu absorta, convencida de que não haveria um momento em

minha vida mais intenso, mais duro e mais bonito que aquele, a voz do Nele me devolveu ao mar

de dor.

—Empurra! Tem que empurrar!

Então já não pude pensar mais em mim e me aferrei à esperança de que as dores

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Série Nefilim 01

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desaparecessem em algum momento.

Quando chegou a ambulância, minha filha já tinha nascido. Nele a segurou nos braços e

sorria feliz e esgotada de uma vez.

Os enfermeiros bateram na porta e ela deixou à menina sobre o ventre. Estava quente e

úmida, e gritava a pleno pulmão. Levantei a mão, acariciei a cabecinha, que parecia esmagada, e o

cabelo escuro, que estava coberto de sangue e uma mucosidade amarelada.

Os prantos se voltaram um pouco mais suaves. Quando o médico de urgências chegou

correndo na sala, minha filha abriu os olhos pela primeira vez. Inundei naquele azul brilhante, o

azul de Nathan.

—É uma menina — sussurrou Nele.

Eu sempre soube, embora durante a gravidez não quisesse saber e naquele momento

tampouco o comprovei.

O vermelho ardente empalideceu enquanto o médico examinava primeiro à menina e logo a

mim.

—Aurora —murmurei— Tem que chamar como a deusa da vermelhidão. Aurora.

Capítulo 3

Durante os primeiros anos evitou por todos os meios aproximar dela. Nem sequer quis

observar da distância como crescia a menina, mas sim se manteve firme em sua ridícula manobra

de distração.

Não era fácil vencer a melancolia, mas tampouco insuportável. No final tinha que prestar

atenção a tantas coisas, havia tanto sobre o que refletir, tanto que preparar para a futura obra...

Tinha que reunir a serventes em torno dele que fossem dóceis, combativos, submissos, e devia

ocupar de que fossem o bastante fortes.

Além resultava mais fácil enquanto a menina fosse uma lactante bochechuda e calva e

carecesse de atração para ele.

Isso foi mudando pouco a pouco..

Quando, passados muitos anos, atreveu a aproximar delas pela primeira vez, viu que se

converteu em uma menina de extraordinária beleza. Possuía uns traços finos similares aos de sua

mãe. O cabelo escuro e ondulado desprendia um brilho avermelhado ao sol. O penetrante azul de

seus olhos ressaltava sobre sua pálida pele.

Sabia que não ficaria assim, mas quando o tempo trouxesse a transformação, pressentiria

quem era. Até então não havia nada que aprendesse com especial rapidez nem lentidão. Era um

pouco reservada, parca em palavras e insegura, mas não para chamar a atenção.

Sophie parecia aceitar que Aurora fosse uma dessas meninas mais caladas e sensíveis, talvez

muito racional e pragmática para sua idade, mas ao que parecia contente e tranquila consigo

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mesma.

Não suspeitava para onde se dirigia Aurora.

Tampouco imaginava que ele voltou para sua vida como uma sombra silenciosa.

Sairia à luz no momento adequado, não só para reclamá-la de forma definitiva, mas também

à menina, sobretudo à menina.

���

Passados sete anos

Quando cheguei com Aurora ao lago de Hallstatt, era passado meio-dia. A bruma estava

suspensa sobre a água e a superfície de cor verde escura parecia sedosa como o musgo. Nenhuma

só ruga sulcava aquele manto liso e desvelava as frias profundidades que se encontravam debaixo.

A água se aproximava sem fissuras à borda, que era rochosa, coberta de erva ou por espessos

bosques de coníferas, cujas sombras bicudas se enchiam na água.

Baixei o vidro do carro, respirei fundo o ar fresco e senti que diminuía a tensão.

Era certo que tínhamos chegado, dizia, sim, era certo.

Não era a primeira vez que tentava me convencer de algo, mas nunca o obtive de tudo.

Tínhamos saído de Salzburg pouco depois do almoço, e na A1, antes do Thalgau, chegamos a

um engarrafamento onde permanecemos paradas pelo menos duas horas. Não parava de

tamborilar impaciente no volante, enquanto Aurora folheava um de seus livros completamente

alheia ao atraso. Tínhamos parado em Wolfgangsee, bebemos chá de frutas e comemos bolo de

papoulas. O céu era de cor azul reluzente, só manchado por algumas nuvens brancas, mas quando

chegávamos a Hallstatt a luz se voltou mais turva.

As primeiras casas se elevaram sobre nós e falei com Aurora do lugar pitoresco e as

imponentes montanhas que o rodeavam. Só via o pé das montanhas de Dachstein. Os topos

estavam cobertas de véus de névoa. Aurora não respondeu, mas vi pelo retrovisor que deixou a de

lado o livro e olhava fora com curiosidade quando deixamos atrás Steingraben, passamos por um

túnel para a arrevesada cidade de Hallstatt e chegamos à rua Obertrauner. dali saía uma ruela, a

uns cinco quilômetros do centro, para a zona alta em que se encontrava o casarão. Herdei de meu

pai, que o comprou uns anos antes e nunca chegou a realizar o sonho de mudar de Salzburg e

passar ali a velhice. Eu, nos três anos que passaram desde sua morte, tampouco me preocupei

com aquela propriedade porque temia a grande quantidade de reformas que necessitava.

A última parte era tão escarpada que só se podia percorrer em primeira. O motor rugiu

várias vezes.

Quando paramos diante da casa, voltei para Aurora com um olhar que, em que pese o meu

estado de indisputável relaxamento, não deixava de estar carregada de preocupação. Não era

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para menos, em vista do que ocorreu desde seu sétimo aniversário. Além disso, o fato de ir de

Salzburg de forma precipitada, uma semana antes das férias escolares oficiais, fazia que parecesse

uma fuga. Entretanto, ao ver o rosto de curiosidade com o que Aurora observava a casa, tive que

sorrir.

Sim, era certo que tínhamos chegado, voltei a pensar. “Aqui tudo voltará a sair bem, ou pelo

menos será normal, igual a nossa vida uns meses antes.”

—Bom, aqui estamos — disse.

Aurora desabotoou sozinha o cinto da cadeira infantil e saiu do carro de um salto para

inspecionar o edifício.

Elevou a vista, fascinada, por volta do primeiro andar.

—Essas torres daí de cima parecem de um castelo!

Meu sorriso se tornou mais amplo. Fazia semanas que nada a impressionava tanto. Mesmo

que até esse momento sempre havia me queixado ao ver a casa porque havia montões de coisas

por reparar, agora só a via através dos olhos de Aurora.

Foi construída no final do século XIX por uma família de comerciantes de Viena que

veraneava ali com sua prole, cada vez mais numerosa. Parecia que o tempo parou depois. Devia

ter passado pelo menos um século desde que pintaram pela última vez o edifício. Na fachada

ainda se viam as cores claras esverdeadas originais do estuque, mas na maioria da casa a pintura

estava descascada. Os mirantes, antes de cor branca reluzente, estavam de uma cor cinza suja,

enrugados por algumas gretas profundas. A hera subia por vários lugares, embora as folhas

perdessem seu verde intenso tempo atrás, estavam murchas e em parte caíram ao chão, onde se

decompunham em uma massa imunda e marrom. Perto do chão a parede mostrava várias

manchas úmidas coroadas com mofo escuro. O telhado foi vermelho em algum momento, mas as

cores empalideceram e encontravam cobertas por uma capa esverdeada de mofo. Inclusive

faltavam algumas telhas, de modo que a madeira debaixo ficava ao descoberto e já estava podre.

Em caso de chuvas intensas, estava segura de que havia goteiras nos quartos superiores, mas de

todos os modos nós não íamos utilizá-los. Junto à cozinha e o banheiro, arrumei a sala de estar,

além disso, a pequena sala de jantar contígua que serviria de quarto para Aurora. A sala octogonal

do primeiro andar eu utilizaria para trabalhar.

Agarrei a mão de Aurora, que estava assombrada, e a levei até a entrada.

—É verdade, isto é nosso? —perguntou, impressionada.

—Pois claro!

A porta de ferro forjado estava coberta de óxido e chiou ao abri-la. Tive que empurrar com

todas minhas forças para abrir de um golpe. O caminho que conduzia à entrada da casa estava

invadido pelo musgo e a grama. Quando chegamos à porta de entrada da casa, Aurora deu uma

volta sobre si mesma. O solar estava rodeado por abetos comuns e vermelhos em três dos lados.

Entre a espessa ramagem divisava ao longe o cintilante lago. Por volta do oeste se elevava uma

sebe silvestre que ninguém podava fazia anos. Em todo o jardim a grama chegava à altura dos

joelhos, exceto nos lugares onde a pressionavam os ramos e as cascas que as últimas tempestades

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de inverno arrancaram das árvores. No antigo canteiro de flores viam algumas roseiras murchas,

arbustos que proliferaram, raízes e matagal.

Evitei pensar no enorme trabalho que suporia converter aquela selva virgem em um jardim

agradável.

—Olhe! —gritou Aurora.

Estava olhando emocionada uma estrutura circular que antes serviu de pérgula, onde a

família de comerciantes vienenses tomava o café da tarde. Agora estava abarrotada de utensílios:

debaixo havia carrinhos de mão, rastelos e uma vassoura, inclusive um velho cortador de grama

completamente oxidado.

—Note! —gritou Aurora, e pôs a correr para examinar tudo mais de perto.

Enquanto ela explorava o jardim, eu entrei na casa e apressei a abrir todas as janelas.

Durante as últimas semanas arejei continuamente os quartos, mas o aroma ligeiramente rançoso

e carregado, próprio das casas antigas, persistia.

A seguir tirei do carro só o imprescindível. Em uma bolsa havia sanduíches e uma sopa de

sobras. Ao abrir em um princípio o grifo da cozinha, começou a sair borbulhas de água suja de cor

marrom avermelhada, mas no final de um momento a água era clara e pude preparar a sopa.

Tive que obrigar literalmente Aurora a entrar em casa. Quando por fim se sentou à mesa da

sala de estar, estava muito emocionada para comer. Olhava fascinada a enorme chaminé de

pedra, com as paredes negras da fuligem.

—Podemos acender um fogo? —perguntou pronta para colocar mãos à obra.

—No verão não — expliquei, sem me explicar.

Por fim Aurora começou a tomar a sopa. Levou a boca umas dez colheradas com uma

lentidão incrível, logo disse que estava cheia e afastou com energia o prato meio cheio. Desceu de

um salto e examinou o salão com atenção. Era óbvio que a enorme livraria a fascinou. Dei uma

olhada aos títulos dos lombos — muitos deles rachados e poeirentos— e vi que a maioria era

velhos dicionários que o antigo proprietário colecionava e meu pai decidiu conservar. Decidi que,

se em algum momento tivesse tempo, revisaria e venderia uma parte deles a um antiquário. Mas

agora a primeira coisa era colocar na casa o resto da bagagem, que o carro ainda estava cheio até

os batentes. Uma parte do mobiliário da casa ainda podia utilizar, mas não havia roupa de cama,

baixela, toalhas nem aspirador. Tudo isso tive que trazer de Salzburg. E junto a tudo isso, também

aguardava La fora uma multidão de caixas de livros que ia necessitar para trabalhar.

Só de me pensar doía às costas, mas esse dia estava decidida a realizar aquele esforço físico.

Aurora me seguiu fora. Ela carregou as bolsas menos pesadas, mas ficou no caminho, entre a

casa e o carro, e olhou ao redor. A luz cinza crepuscular se tragou enquanto isso todas as cores. O

verde do lago empalideceu a lua crescente, ainda desfilava por fios de nuvens, aflorava com

nitidez no céu. As moscas e mosquitos que zumbiam ao redor procuravam a luz com desespero. O

bosque, que na nossa chegada brilhava uma cor verde intensa, tornou como um muro escuro que

rodeava a casa. As taças das árvores sussurravam. Uma coruja iniciou seus gritos aveludados ao

longe. Escutava-se com atenção, também se distinguia o ruído dos carros que passavam, mas a luz

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dos faróis não chegava até nós entre a densa ramagem.

Depois de percorrer pela terceira vez o caminho do carro a casa, fiquei pensativa diante do

porta-malas aberto. Devia deixar o carro aí fora ou estacioná-lo na garagem? A segunda opção

significava ter que abrir a porta grande junto à pequena de ferro forjado e, a julgar por seu estado,

fazia tempo que ninguém o fazia. Duvidava se devia fazer aquele esforço, e ao final decidi que não

e tirei a última bolsa do porta-malas. Fechei o carro, e então peguei um respingo.

Aurora parou a uns passos do carro. Estava muito rígida, como uma estátua de mármore, e

olhava em direção ao bosque. Tinha a seus pés uma bolsa de plástico com alguns animais de

pelúcia. Deixou cair distraída e não percebeu que a lebre que Nele deu por seu quinto aniversário

saiu rodando e estava junto aos pneus do carro.

—Aurora! —Minha voz soou estridente. Não era a primeira vez que encontrava isso nesse

estado, mas não deixava de me impressionar—. Aurora! —voltei a gritar seu nome, mas ela não

respondia, nem sequer se alterou.

Então eu também deixei cair minha bolsa. Equilibrei sobre Aurora, agarrei-a pelos ombros e

a sacudi com suavidade.

—Aurora, o que acontece?

Levantou a cabeça, e seu rosto refletia um terrível pavor. O resplendor da porta da casa

entreaberta era débil, mas mesmo assim vi que tremiam os lábios e tremiam os dentes. Era certo

que durante as últimas horas esfriou, mas o ar seguia sendo temperado, de veraneio.

—Aurora! —Pus de cócoras a sua altura, queria estreitá-la entre meus braços e fazê-la

esquentar, mas ela deu um passo atrás.

—Ele está aí — disse em voz baixa.

Não estava segura de ter entendido bem. As sílabas ficavam entrecortadas pelo bater dos

dentes e não tinham sentido.

—O que diz?

O tremor remeteu um pouco.

—Ele está aí — repetiu, e voltou à cabeça de novo na mesma direção em que observava com

tanta intensidade.

Segui seu olhar. O céu estava agora tão escuro que apenas se distinguiam as árvores. Nas

copas seguia sussurrando o vento, e ao grito da coruja se uniu o penetrante alarido agudo de uma

coruja.

—Olá? —gritei com decisão à escuridão.

Por um instante parecia ter percebido um movimento: entre os troncos muito juntos

deslizou uma silhueta negra, cujos passos ficaram amortecidos pelo suave musgo. Entretanto,

pouco depois já não estava segura que não tivesse sido uma alucinação. Talvez só fosse um ramo

dobrado que o vento balançava de um lado a outro.

—Olá? —gritei de novo.

Soltei Aurora e me dirigi com decisão ao bosque. Se realmente havia alguém aí escondido

que nos observava, que não pensasse que me ia assustar tão facilmente.

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—Não, mamãe! —Aurora agarrou minha mão com a sua suave e me parou.

Sua voz transmitia tal pânico que em seguida fiquei quieta. Dei a volta de novo para ela,

abracei com força e acariciei a cabeça. Esta vez não resistiu ao abraço.

—Não aproxime dele! —disse com voz afogada ao ouvido.

Os tremores pararam pouco a pouco.

—Tranquila — consolei Aurora— tranquila. Só era o vento... e embora se verdade houvesse

alguém, faz tempo que se foi.

Olhei ao bosque, mas não percebi nem o mínimo movimento.

Aurora permaneceu durante uns minutos abraçada a mim. Logo soltou e recolheu seus

animais de pelúcia. A lebre de Nele se manchou de barro.

—Podemos lavá-la, disse Aurora, embora estivesse segura de que o desespero de seu rosto

não era pela pelúcia sujo.

Fomos correndo para a casa, assim que entramos joguei o ferrolho à porta e fechei as

portinhas das janelas, inclusive nos quartos de cima, que estavam sem reformar.

Estive dando voltas na cama, inquieta.

Alguns pensamentos escuros não me deixavam dormir, sobretudo lembranças das últimas

semanas, mas também me corroia a dúvida de se a decisão de passar ali o verão foi um engano.

Por quê? Perguntei, como tantas vezes. Por que mudou tanto Aurora?

Tínhamos uma vida sem preocupações, nós duas formávamos uma unidade perfeita, embora

Nele afirmasse que isso não existia.

Desde dia de seu nascimento me dedicava plenamente a ser mãe, e nisso nunca teve que me

enfrentar à insegurança nem à sensação de não ser o bastante boa como quando era uma pianista

em floração, pelo menos até agora. Desfrutava de minha vida, e era feliz, todo o feliz que podia

ser sem Nathan. Às vezes não podia evitar pensar nele e sentia um grande vazio no mais profundo

de minha alma, mas a melancolia e o descuido que me acompanharam durante a gravidez

desapareceram no dia em que nasceu Aurora, e com elas o acanhamento, o medo de me

equivocar e o desagradável costume de me ruborizar continuamente. Limitava a ter só o contato

imprescindível com pessoas externas e evitava sobretudo aos desconhecidos, mas já não me

assustavam nem me afetavam como antes.

Se Aurora estava bem, eu também, e enquanto ela estivesse bem, tudo ia bem.

Sim, levava uma vida tranquila, aprazível, plena... até que Aurora fez sete anos.

Segui dando voltas, nervosa. Veio à cabeça aquela tarde com Nele. O dia em que contei

minhas preocupações.

���

Nele se mudou às poucas semanas de nascer Aurora. Disse que o apartamento era muito

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pequeno para as três, embora acredite que também tinha vontade de começar de novo, sozinha.

De todos os modos, disse que adoraria ser a madrinha, que nos visitaria com regularidade e que

faria presentes e me daria uma mão quando necessitasse uma babá.

Segundo o que esRvesse passando em sua vida ― se apaixonou outra vez ou mudou de novo

de vocação — Nele vinha com maior ou menor frequência nos visitar. Durante os últimos meses

levava uma vida um pouco mais instável. Seguia trocando de garotos a três por quatro, como

sempre, alguns eram o amor de sua vida durante pouco mais de cinco semanas, até que

resultavam serem uns idiotas e uns fracassados, mas pelo menos a eleição da profissão era

definitiva. Depois de várias incursões no setor da publicidade e em redações de revistas de estilo,

fazia dois anos que decidiu ser psicóloga infantil, e após fazia aulas e cursos de formação sem

parar. Antes não acreditava que estivesse feita para isso, mas depois de vê-la tratar Aurora com

tanto carinho e desenvoltura, estava segura de que podia ter um trato extraordinário com as

crianças. Era brincalhona e um pouco amalucada, fazia rir Aurora e conseguiu ganhar sua

confiança.

E com a sua, ganhou também a minha. Durante a conversa não parei de caminhar de um

lado a outro do salão, nervosa, enquanto Nele massageava os pés, sentada no sofá.

No princípio insinuei só vagamente que Aurora se comportava de forma estranha, e Nele o

descartou em seguida e afirmou que possivelmente estava passando por uma etapa excêntrica.

— Oxalá só fosse isso! — exclamei— . Mas é muito pior!

— O que? O que é muito pior?

— Será melhor que você veja mesma.

Convidei a me acompanhar ao quarto da menina, abri um pouco a porta e cedi o passo.

Quando Nele viu Aurora sentada na cama, decompôs a expressão do rosto. Deixou de rir de forma

zombadora por minha exagerada preocupação, retrocedeu um passo e chocou comigo. Quando

olhou nos olhos, tinha-os exagerados.

— Mas o que faz aí? — perguntou Nele, impactada.

— Entende agora por que me preocupo tanto? — sussurrei.

Nele baixou a cabeça afetada e assentiu.

— Sim — respondeu— , agora entendo.

���

Não podia dormir. Incorporei e esfreguei as têmporas. Tinha a nuca rígida, como se tivesse

um nó na cabeça que me provocava dores agudas. Talvez devesse levantar e tomar um

comprimido, mas não sabia em que bolsa havia guardado os medicamentos. Caí de novo sobre o

travesseiro com um suspiro. Possivelmente a dor de cabeça se devesse à longa viagem exaustiva,

ou à imagem que gravei na mente e que me perseguia sem cessar.

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A imagem de Aurora, sentada em seu quarto, sobre a cama, com os olhos azuis totalmente

abertos...

Aurora não nos olhou — nem sequer percebeu nossa presença—, parecia olhar fixamente a

um ponto imaginário na distância. Estava sentada com as pernas cruzadas e se balançava com o

torso adiante e atrás. Então já sabia que podia passar horas naquele estado, completamente

ausente e abstraída, surda e cega ao mundo que a rodeava.

—Meu Deus, mas o que faz aí? —sussurrou Nele, profundamente consternada— É como, é

como um...

—Como um transe — apontei para acabar a frase por ela.

—E diz que cada vez passa mais frequentemente?

—Vi-a assim pela primeira vez faz umas semanas — expliquei— No princípio pensei que só

estava divertindo; além disso, as primeiras vezes duravam muito pouco, quando muito uns

minutos. Mas logo ficava nessa posição durante meio-dia. Além disso... —suspirei— em certo

modo já não é a mesma. Já sabe que sempre foi um pouco sonhadora, mas agora parece que

dorme com os olhos abertos. E quando dorme de verdade, a maioria das vezes acordada gritando.

Acredito que tem pesadelos, mas não explica isso, embora peça muitas vezes. Na realidade quase

não me conta nada. Às vezes me observa e ao mesmo tempo olha através de mim. Rechaça

quando quero abraçá-la, e já não me lembro de quando foi à última vez que riu de coração.

Nele enrugou a frente, desconcertada.

—Está muito distante comigo. Já não sei como acessar a ela. Diga-me, poderia ser que...

que...? —duvidei em transmitir meus piores temores, mas logo respirei fundo e perguntei—

Poderia ser autista?

Nele esteve refletindo um momento, mas finalmente sacudiu a cabeça.

—Não acredito. Os sintomas do autismo se manifestam muito antes. Além disso, nunca teve

dificuldades com a fala.

—Mas então o que é? —exclamei eu, desesperada.

—Me deixe testar uma coisa... —disse Nele ao fim.

Aproximou-se devagar a Aurora e sentou a seu lado na cama. Esperava que a agarrasse pelos

ombros e a sacudisse, como fez eu tantas vezes, por desgraça sempre em vão, mas Nele respeitou

a distância. Aurora olhava fixamente à frente para o ponto imaginário, o torso balançava frente e

atrás, frente e atrás... Não suportava vê-la assim.

Então Nele levantou uma mão de repente, parou justo frente à cara de Aurora e estalou os

dedos com força.

Uma sacudida percorreu o magro corpo de Aurora, deixou de balançar, levantou a cabeça e

olhou Nele aturdida, como se despertasse de um profundo e comprido sonho.

Escapou-me um grito de surpresa e alívio ao mesmo tempo.

—Olá, tia Nele — disse Aurora. A voz soava apagada, débil, mas sobre tudo abatida. Meu

alívio se desvaneceu. Onde ficou a menina que antes esperava emocionada na escada com toda

sua ilusão quando Nele vinha de visita?

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Aproximei devagar à cama. O olhar de Aurora era de novo acordado, mas parecia perdido e

triste. Não me olhou, nem a mim nem a Nele, estirou as pernas, levantou os joelhos e apoiou o

queixo nelas.

—O que fazia? —perguntou Nele, em um tom despreocupado.

Eu esperava a resposta em tensão. Na realidade contava com que não respondesse, mas

finalmente Aurora explicou quase inexpressiva:

—Meditava.

Esperava que Nele seguisse perguntando, mas mudou de assunto.

—Quer que leiamos juntas um livro?

Aurora encolheu os ombros. Agarrava as pernas com as mãos, parecia mais magra e delicada

do normal.

—Se não tem vontade, podemos brincar de teatro.

Nele deu a Aurora no seu quarto aniversário um jogo de teatros de fantoches e, após, em

todos os aniversários e Natais, trazia uma figura nova. Nele era fantástica modulando a voz, e

dando vida tanto à princesa como ao crocodilo. A Aurora entusiasmava aquelas representações,

mas esta vez voltou a encolher os ombros com indiferença.

—Também poderíamos ir tomar um sorvete — propôs Nele, que tentava soar entusiasta.

Aurora levantou a cabeça, vacilante.

—Já não gosto dos sorvetes.

Era essa maldita palavra a que mais me assustava.

—Já não gosto dos sorvetes.

Assim, como se a essência da menina pequena a que alguém podia seduzir com doces de

todo tipo tivesse mudado para sempre. Como se tudo o que até então alegrava e divertia já não a

entusiasmasse.

—Talvez queira comer outra coisa — disse Nele.

—Não tenho fome.

—Então o que você gostaria de fazer?

Nele levantou a mão e acariciou os cachos de Aurora. Ela não resistiu, mas o corpo ficou

rígido.

—Na realidade preferiria estar sozinha.

Nele não respondeu.

—Bom, então a deixo tranquila. —Soava carinhosa e contente, como se a frieza de Aurora

fosse o mais natural do mundo.

Assim que se levantou e aproximou da porta, a expressão do rosto refletiu sua consternação.

Aurora não voltou a entrar em transe. Quando fechei a porta de seu quarto ficou sentada,

perdida em seus pensamentos como uma menina desgraçada e solitária.

���

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Assim tomei a decisão de passar o verão em Hallstatt. De momento Nele não me

aconselhava recorrer a um psiquiatra. Tal como ela via a situação, a um médico não ocorreria

outra coisa que receitar remédios que anestesiassem o espírito de Aurora, em vez de reanimá-la.

Nele sugeriu que talvez ajudasse uma mudança de ares que despertasse uma nova vitalidade na

menina. E tampouco estaria mal que eu saísse por uma vez. Não fazia muito tempo que vivia

naquela ratoeira?

Dei razão a Nele, não quanto à ratoeira, a não ser quanto a que a Aurora iria bem uma

mudança de ares. Pensei na casa de meu pai, vazia há tantos anos, e decidi me colocar de cheio

nas reformas.

E agora?

Já a primeira noite tínhamos tido aquele curioso incidente. Não podia tirá-lo da cabeça, quão

rígida se pôs Aurora, como tremiam os dentes, e como sussurrou presa do pânico: “Ele está aí.”

Passada a meia-noite por fim me venceu o sono. Foi uma noite intranquila. Perseguiam

sonhos confusos. Aparecia Aurora, mas também um bosque que parecia formado por pessoas. Da

espessa ramagem saíam mãos com compridos dedos negros que tentava me agarrar, das raízes

garras que me rodeavam os pés, das ásperas cascas rostos enrugados que se burlavam de mim.

Entretanto, finalmente meu corpo cansado se impôs. Os sonhos se desvaneceram, e sumi na

escuridão mais profunda.

No dia seguinte pela manhã despertaram os quentes raios de sol que penetrava enviesado

através das portinhas das janelas, e nos que dançavam pequenas partículas de pó.

Estirei, sentia repousada e, assim que entrei na cozinha e pus água para ferver para o café,

comecei a pensar de novo no que aconteceu a noite anterior. Com aquele dia ensolarado o medo

e os pensamentos exaustivos perdiam força, e o pânico com o que entrou na casa no dia anterior e

fechou todas as janelas me pareceu quase ridículo.

Quando Aurora chegou à cozinha, ainda parecia adormecida, mas em nenhum caso

assustada. Enquanto misturava o leite e o chocolate, não mencionou o homem escuro que

acreditou ver, queria falar de Hallstatt.

—Sabe que este lugar foi dos primeiros povoados da Europa? —começou muito séria— Há

rastros que chegam ao neo... neo...

—Neolítico — ajudei— o neolítico.

—Em todo caso aqui já viviam pessoas faz mais de dez mil anos — explicou muito

impressionada.

—Também está o ossário — expliquei— Poderíamos ir ver o algum dia. Ali...

—Já sei, já sei! —interrompeu, emocionada— Ali há caveiras. Mais de mil! De pessoas

conhecidas de Hallstatt! Pintaram e têm escrito a data da morte.

—Ensinaram isso no colégio? — perguntei.

Ela assentiu contente.

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—Quando podemos ir?

—Bom, as caveiras terão que esperar. Hoje a primeiro coisa é desempacotar tudo.

Demorei meia hora em abrir a porta grande para poder colocar o carro na garagem. A porta

apenas se movia. Estava invadida pela hera e outras andares trepadeiras, e tive que me desfazer

delas com esforço. Quando por fim abri a porta, o chiado doía aos ouvidos, e propus comprar algo

para engordurá-la assim que tivesse tempo.

Antes de voltar a entrar em casa, olhei em direção ao bosque, onde Aurora viu a silhueta

escura no dia anterior. Não se via ninguém em nenhum lugar. Pela manhã, as árvores não

projetavam sombras no jardim. Ouvi gorjeios dos pássaros e muito ao longe as vozes de alguns

ciclistas ou turistas. Fiquei imóvel um instante, desfrutando de do silêncio e o ar fresco e resinoso.

Logo me dava à volta e elevei a vista para as montanhas. Enquanto que nos desfiladeiros ainda

estava apanhada a bruma, mais acima as cúpulas escarpadas e cobertas de neve se elevavam

entre a luz cinza. Quando baixei o olhar, vi pela primeira vez o edifício próximo a casa: inclinado

para mim, construído no pendente, a só umas centenas de metros em linha reta. Provavelmente

acessavam a ele pela rua paralela. A diferença de nossa casa, desgastada pelo rastro do tempo,

aquela moradia branca parecia muito moderna. Por isso via, a fachada estava composta só por

enormes janelas de vidro, o teto era plano e a grama estava talhada com esmero. Como não me

fixei até esse momento?

Desviei o olhar e voltei a entrar. Mais tarde limpei a cozinha e o salão, pendurei alguns

quadros nas paredes e decorei as salas com almofadas e mantas. Agora tudo parecia um pouco

mais agradável, só meu quarto futuro de trabalho seguia cheio de pó e repleto de uma montanha

de caixas de livros sem ordenar.

Tal como anunciei em seu dia, contidos e em todos esses anos não havia tornado a tocar o

piano, mas não dei as costas de tudo à música. Durante o semestre de inverno, depois de nascer

Aurora, comecei a estudar musicologia e história e, quando terminei, comecei a trabalhar como

autônoma para uma grande editorial de música de Salzburg. O professor Wagner me facilitou o

contato, embora nunca me perdoasse que abandonasse os estudos de piano de forma tão brusca.

A seguir comecei no departamento de imprensa, logo aceitei como leitora e no final o diretor da

editorial me propôs desenvolver um projeto: uma série de biografias musicais mais entretidas que

científicas. Vendiam bem e recebiam boas críticas.

Para falar a verdade, não teria sido necessário trabalhar. Três anos antes meu pai me deixou,

além da casa no lago de Hallstatt, uma considerável fortuna como única herdeira.

Quanto mais contemplava as caixas cheias de livros do escritório, menos vontade tinha de

começar desempacota-las. No final decidi postergar a tarefa para os seguintes dias — como a de

limpar as janelas— e sair a comprar com Aurora. No caminho paramos em uma pequena

hospedaria, onde Aurora não comeu muito, mas o fez sem pigarrear.

Não sabia onde estava o supermercado mais próximo, assim que parei na seguinte loja, das

que já só se encontram nos povoados isolados. Ali pude comprar o imprescindível, para fazer mais

tarde uma grande compra no Eurospar, Hofer ou Billa. A loja estava a menos de meio quilômetro

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da casa. Mais adiante poderia ir a pé ou de bicicleta. Enquanto pensava se devia comprar uma ou

pegar emprestada para o verão, Aurora descobriu um parque infantil perto da loja, uma superfície

redonda em meio das árvores com um balanço torcido, um tobogã velho e um carrossel oxidado.

Olhava ansiosa pelo balanço. Duvidei por um momento se deixá-la ali sozinha, mas então vi uma

mulher com dois meninos pequenos que se dirigia para o parque.

—Está bem. Suba e me espere aí.

Vi como subia ao balanço e entrei na loja. Ao abrir a porta, soou uma aguda campainha. O

sortido estava ao alcance da vista. Havia todo o necessário: detergente em pó, escovas de dente,

macarrão, conservas, fruta e queijo, tudo com uma variedade reduzida. Como não havia alface,

comprei um repolho, em vez de plátanos, peras, e por último a única verdura congelada

disponível, ervilhas.

Deixei as coisas em uma cesta e com ela percorri os estreitos corredores para os queijos, que

estavam colocados junto a pacotes, latas e garrafas. Conforme me aproximava, vi atendente, que

estava ali sentada. Era uma anciã com o cabelo cinza recolhido em um coque, um colete marrom

sobre a bata branca de trabalho, uns óculos grosas e um amável sorriso.

Diante dela havia uma cliente que, apesar de ter pagado já e ter guardado com atitude

cerimoniosa toda a compra, resistia a partir. Pela maneira de falar, diria que era alemã, e parecia

estar de férias. Levava um pesado casaco de pano tirolês, que sem dúvida devia ser muito caro,

mas muito grosso para aquele dia do verão.

—Inteirou? desapareceu outro.

Olhou o montão de jornais junto à caixa. A anciã sacudiu a cabeça e suspirou.

—Esta vez foi um ciclista de montanha! —disse a turista alemã— Três pessoas em três

semanas, como se as tivesse tragado a terra! Primeiro dois montanheses, e agora este.

Assinalava a fotografia de debaixo do titular, em branco e negro, e tão imprecisa que apenas

se distinguia um rosto.

—As pessoas frequentemente subestimam o tempo que faz — opinou a atendente— No alto

da montanha pode mudar rápido. As pessoas saem a caminhar com sol e de repente chega uma

tempestade glacial.

—Mas essas pessoas desapareceram sem mais! Não as encontram!

—A zona é muito ampla...

A turista soprou, estava indignada. Parecia que incomodasse que seu destino de férias, no

princípio tão idílio, resultasse ser uma zona perigosa onde os montanheses podiam despencar em

qualquer momento. Inclinou sobre sua bolsa da compra e saiu da loja. A campainha soou de novo.

A empregada me dedicou um sorriso e marcou os preços em silencio na caixa. Eu revolvi no

carteira.

—Está de férias? —perguntou de repente.

Olhei pela janela se por acaso via Aurora. Estava sentada no balanço, absorvida. Havia mais

meninos e mães no parque.

—Vivo em uma casa do povo que herdei que meu pai — respondi— pelo menos durante o

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verão.

Lancei um olhar para as montanhas.

—Ah, na casa Leiningen?

Encolhi os ombros.

—Não sei se chama assim. Só ouvi que a construiu uma família de comerciantes vienenses

no século XIX.

—Sim, era a família Leiningen. É um edifício precioso, mas provavelmente terá que fazer

muitas reformas para poder viver em condições.

—Sim... depois do verão saberei quanto devo investir.

—Bom, pois bem-vinda. —levantou-se um pouco da cadeira giratória e me estendeu a mão.

O apertão foi quente e firme— Me chamo Josephine Rutting, me chame Josephine. E se necessitar

algo, não duvide em me pedir. Vivo em cima da loja, assim muito perto de você.

—Muito obrigada.

Voltou a tomar assento e me ajudou a colocar a compra em uma bolsa de plástico. Paguei e

voltei para a porta, mas então voltei a ficar irrequieta.

—Por certo — comecei duvidosa— a minha filha pareceu ver ontem a um homem vestido

com roupa escura no bosque em frente de nossa casa.

—Tem uma filha?

—Sim, Aurora. Tem sete anos. —Assinalei para ao parque, e Josephine seguiu meu olhar.

—Que menina mais bonita.

Sorri, mas de repente me pus séria.

—Esse homem, ao melhor o imaginou, mas também me pareceu...

—Caspar von Kranichstein — me interrompeu Josephine em seguida. Só pode ser ele.

Sempre vai de negro. Talvez em seus círculos seja o habitual.

—Seus círculos?

—Os Kranichstein são uma antiga família nobre, são proprietários de muitas terras e bens da

zona. Caspar von Kranichstein fez construir o imóvel que se inclina sobre sua casa. Certamente a

viu, é um edifício claro com uma enorme fachada de vidro.

—Sim, vi esta manhã.

—No princípio se dizia que Caspar ia converter a em um hotel, mas tomou outra decisão.

—Qual?

Josephine se encolheu de ombros.

—Pelo visto oferece seminários regularmente. Uma espécie de formação para diretores, ou

algo parecido. Peixes gordos desses que estão tão podres de dinheiro que podem permitir- algo

assim. Caspar von Kranichstein leva uma vida retirada. Durante os últimos anos nunca comprou

aqui em pessoa, seus empregados fazem tudo. Mas se diz que gosta de sair passear. Poderia ser

que ontem passasse junto a sua casa.

—Como dizia, não estou segura de que realmente houvesse alguém.

—De todos os modos não deve ter medo de Caspar. É inacessível, muito calado. Aqui as

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pessoas dizem que é um tipo muito extravagante. Mas bom, quando as pessoas têm tanto

dinheiro, tampouco precisa ter trato com o povo. - pôs a rir com ironia.

—Leve isto! —Agarrou uma barra de chocolate e me ofereceu— Para sua filha.

—Muito obrigada.

Quando deixava a barra de chocolate com o resto da compra, meu olhar recaiu de novo no

jornal local, os enormes titulares e a fotografia imprecisa dos turistas desaparecidos.

Josephine seguiu meu olhar.

—E tampouco tem por que preocupar disso. A imprensa local tem pouco sobre o que

informar, assim que gostam de exagerar algo que ocorra. Aqui vêm muitos esportistas: saem mal

equipados, perdem ou surpreendem as tempestades. Uns imprudentes! Mas estou certa que você

não é como esses loucos.

—Não — respondi. Devolvi o sorriso e depois de me despedir, saí da loja e chamei Aurora.

���

A semana seguinte foi tranquila e relaxada. Tempo mais tarde recordaria essa época

frequentemente e agradeceria àquelas horas de despreocupação que me deram coragem e forças,

mas nesse momento desconhecia até que ponto me fizeram falta. Cada dia a casa era um

pouquinho mais nosso lar. Quase todos os dias passavam pela manhã um operário para arrumar,

renovar ou reconstruir algo. Pela tarde, estávamos acostumadas a fazer uma excursão ou fazíamos

compra. Meu estudo ia tomando forma, e comecei a adotar o costume de me sentar pelas tardes

a trabalhar em meu livro. Até que anoitecia deixava as janelas totalmente abertas, para que o ar

morno da tarde, que desprendia aroma a bosque, flores e verão, perfumasse a casa. Durante o dia

frequentemente tombava ao sol no jardim. Evitava a propósito o trabalho que teria que fazer,

enquanto Aurora dava saltos ao redor. Recolhia flores, ou jogava com a bola, e já não tinha nada

em comum com a menina letárgica que tanto me preocupava.

Fomos várias vezes ao parque junto à loja de Josephine. Eu me sentava no banco, lia livros

para meu trabalho e de vez em quando levantava o olhar para ver como Aurora se fazia amiga de

outras crianças.

Na realidade custava aproximar das crianças de sua idade e fazer amizade. Eu a entendia, já

que para mim era difícil igual e, além de Aurora e Nele, não deixava que se aproximasse ninguém.

Sempre desejei que fosse mais fácil e encontrasse amigas, e fiz todo o possível para ajudá-la,

embora, por desgraça, sem muito êxito. Havia aniversário aos que havia convidado a metade do

grupo da creche, e mais tarde que a classe do colégio, mas ao final sempre presenciava como as

crianças brincavam entre eles em harmonia, enquanto Aurora os observava de um canto. No

Hallstatt, obviamente, tudo parecia mais fácil. Os dois meninos e uma menina maior da vizinhança

não falavam muito e, portanto, tampouco esperavam que ela fizesse, e não duvidavam em deixar

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participar a Aurora quando jogavam a ver quem saltava mais longe. Para minha surpresa,

desenvolveu uma verdadeira ambição de ser melhor cada dia.

Eu também conheci as mães dos meninos, e às vezes trocava de algumas frases de cortesia

sobre o tempo se convertia em uma breve conversa. Eu falava um pouco de nós, e elas, em troca,

contavam as últimas fofocas do povoado. Seguro que não me contavam isso tudo porque era uma

forasteira, mas não me incomodava, sentia a gosto. Preferia ler.

Um dia, enquanto estava com Aurora no parque, voltei a ver Josephine. Estava repondo a

prateleira de frutas da loja e, ao me reconhecer, saudou fazendo gestos com a mão. Seu sorriso

era igual de quente e amável que a última vez, mas de longe tive a sensação de que aquele dia não

se refletia em seus olhos. Demorou bastante tempo em encher a prateleira de fruta. Seus

movimentos pareciam vacilantes, como se doesse às costas. Além disso, olhou várias vezes em

uma ou outra direção, como se procurasse a alguém com a vista. Parecia inquieta por algo.

Cruzei a rua e dirigi à loja. Em minhas compras a seleção de fruta e verdura fresca era mais

que previsível, mas as maçãs vermelhas pareciam muito doces e suculentas, e queria comprar

algumas para Aurora e para mim. Entretanto, antes de dizer, Josephine já colocou algumas na

bolsa de papel.

—Para você e sua filha! —exclamou, e me fez um gesto quando quis revolver no carteira.

—Não é necessário...

Insistiu, assim que agradecia de coração e me voltava para ir ao parque. Já quase estava na

rua, quando de repente Josephine me parou:

—Já... já se inteirou?

—Do que?

Embora até esse momento brilhasse um sol esplêndido, o céu acabava de cobrir de nuvens

cinza que levantaram um vento fresco. Josephine olhou a prateleira da imprensa, mas o vento deu

a volta à capa do periódico de maneira que não pude ler os titulares.

—No princípio pensei que a imprensa voltava a exagerar, mas agora...

—O que aconteceu?

—Ha... encontraram essas pessoas.

No princípio não sabia do que falava, mas logo recordei nossa última conversa sobre os

excursionistas e ciclistas desaparecidos, e me veio à mente a turista alemã que se mostrou

inquieta e verdadeiramente indignada.

—Onde? —perguntei— Onde os encontraram?

Josephine começou a sacudir a cabeça. Parecia afetada, e em seu rosto já enrugado se

desenharam sulcos mais profundos. O vento fez que soltassem algumas mechas cinza do coque.

—É uma história realmente terrível...

—Surpreendeu um temporal? Ou se despenharam?

—Não... assassinaram.

—A todos? —perguntei, horrorizada.

—Sim, os três — confirmou Josephine.

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Ficamos um momento em silêncio. Eu sustentava a bolsa das maçãs apertada e

instintivamente a estreitei contra meu peito.

—E como? —perguntei por fim.

Encolheu os ombros.

—Não se sabe. A polícia quer manter em segredo, embora se tenha feito muitas conjeturas.

Pelo visto os encontraram em um estado horrível... provavelmente mutilados.

—Mas se a polícia não deu informação, talvez o tenham inventado tudo os jornalistas. Talvez

fosse um trágico acidente com o que querem saltar às capas dos jornais. —A última vez ela me

tranquilizou ao adotar uma atitude despreocupada, e agora era eu a que tentava acalmá-la. Pelo

visto não o estava conseguindo.

Josephine encolheu os ombros.

—Sim, ao melhor...

Despedimos, e me apressei a ir procurar a Aurora. Tentei não pensar nas vítimas e, durante

os dias seguintes, neguei a ler o jornal e me encontrar com suas truculentas especulações. Mesmo

assim, todas as noites cuidava de passar o ferrolho na porta e de que todos as fechaduras das

janelas estivessem fechadas, e já não perdia de vista a Aurora nem um segundo.

Até então sempre adiei o trabalho no jardim, mas depois de tropeçar com uma raiz pela

terceira vez no caminho que conduzia da grade a casa, uma manhã, depois do café da manhã,

decidi declarar a guerra à chata raiz.

Coloquei umas luvas de borracha e rebusquei uma ferramenta adequada na pérgula ou,

melhor dizendo, parei frente à montanha de cacarecos sem saber o que fazer, com medo que a

escada, o carrinho de mão, o cortador e outros trastes caíssem em cima ao escolher algo do

matagal. No final encontrei um rastelo de madeira. Embora faltassem algumas puas, por sorte me

serviu para rastelar no mínimo a raiz e, com muito esforço, pude limpar o estreito atalho.

Aurora me observava trabalhar com curiosidade, embora desenhasse com receio um amplo

arco ao redor do montão espinhoso de más ervas que foi crescendo ao longo da manhã em um

canto do jardim.

—E o que faremos depois? —perguntou.

Enxuguei o suor da frente. Na realidade queria dedicar todo o dia a trabalhar no jardim, mas

não estava acostumada ao trabalho físico e decidi que pela tarde fôssemos de excursão.

—Podemos ir às minas de sal — propus.

—E o que há aí?

—Há galerias que levam ao mais profundo da montanha. Puseram um cartaz para que

entrem os turistas. Vêem lagos salgados, e há desprendimentos...

—E se a montanha se afunda enquanto estamos dentro?

Sorri.

—Isso não passa. As galerias são antiquíssimas. Faz séculos que os mineiros extraem sal dali.

Aurora fez uma careta de cepticismo.

—Melhor essas pessoas perderem na montanha.

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—Que gente? —perguntei ao não compreender do que falava.

—Os que... desapareceram sem mais durante as últimas semanas. E que encontraram depois

mortos.

Demorei um instante em recordar a quem se referia.

—Seguro que essas pessoas não se perderam na montanha. Ao melhor... —Refleti

atentamente como ocultar que essas pessoa foram assassinadas, sem mentir, mas economizei a

resposta porque naquele momento chegou um carro.

Sobressaltei sem querer. Vivíamos tão isoladas que aquele ruído resultava quase estranho.

Durante as últimas semanas passou só um carro de improviso, o do guarda florestal, que era um

dos poucos com autorização para utilizar a pista florestal em que desembocava a rua principal.

Ouvi que se fechava a porta do carro, deixei a vassoura e me dirigi à porta do jardim. Aurora me

seguiu vacilante.

Quando vi aquele caro Mercedes negro estacionado diante da casa, pensei que seu

proprietário havia se perdido, sobretudo porque não conhecia o senhor que acabava de sair.

Entretanto, em vez de me perguntar pelo caminho correto, como eu esperava que fizesse, não

pareceu perceber minha presença e se dirigiu a uma das portas traseiras para abri-la. Então me

ocorreu que devia ser o chofer, e que o verdadeiro visitante sairia agora do carro.

Notei que Aurora se aproximava para mim.

—Olhe que gorro tão gracioso leva o homem! —Queria soar divertida, mas aquele chapéu,

que formava parte de um uniforme escuro, parecia muito estranho naquela zona rural.

Entretanto, ainda me inquietou mais a vestimenta do homem que por fim apareceu e se

aproximou devagar a nós.

Em face de quente temperatura, levava um casaco até os joelhos, também negro, ao igual às

elegantes calças, a brilhante camisa de seda e os sapatos. O chofer fechou a porta atrás dele e

ficou parado junto ao carro sem emprestar atenção a Aurora e a mim, enquanto o homem de

negro sorria.

Soube quem era antes que apresentasse. Vieram à cabeça as palavras de Josephine.

Descreveu Caspar von Kranichstein como uma pessoa extravagante e inacessível, mas, agora que o

tinha diante, a descrição não me pareceu de tudo ajustada.

Seu sorriso parecia do mais amável, seus passos não eram rígidos, a não ser ligeiros e

flexíveis, e sua erguida postura, elegante. Debaixo daquele ser extravagante imaginava a alguém

excêntrico, calado, tímido, mas quando Caspar von Kranichstein começou a falar, resultou

extremamente íntimo.

—Acabo de voltar de Bad Ischl e pensei dar um pequeno rodeio e aproveitar a ocasião para

me apresentar diante de você. No final somos um pouco parecidos a vizinhos, não é certo?

Falava de forma mesurada. Embora sua voz não fosse especialmente forte, soava

desagradável a meus ouvidos, como se chocassem dois pires metálicos.

Parou uns passos da porta do jardim, mas em vez de abri-la e me aproximar dele, de forma

instintiva retrocedi um passo. Não era extravagante nem antissocial, mas ao ver de perto parecia

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bastante estranho.

A figura sob o casaco escuro era de uma magreza insólita. Seus dedos finos e largos

recordavam a uma aranha. A pele pálida do rosto parecia lívida, como se na realidade se coberto

provisoriamente o rosto com uma máscara de cera, um pouco desgastada em alguns lugares,

como ao redor das bochechas e no flácido queixo. O que mais me inquietava eram os olhos. Eram

tão negros que apenas se distinguiam as pupilas e a íris. Quando devolvi o olhar tive a sensação de

estar contemplando um espelho escuro. Brilhava o cabelo negro penteado para trás com goma de

tal modo que parecia levar um casco na cabeça.

Quando viu que retrocedia um passo mais, reforçou seu sorriso, mas já não era amável, a

não ser sarcástico.

—Meu nome é Caspar von Kranichstein — continuou, com a mesma voz metálica—. Mas

provavelmente isso já sabe. Vivemos mais ou menos em um povo, onde são costume os falatórios.

Assenti cada vez mais incômoda.

—Sophie Richter ― apresentei com rapidez— herdei a casa de meu defunto pai.

Seu sorriso se voltou de novo um pouco mais quente.

—Já sei, conversei várias vezes com ele. Para falar a verdade a casa foi minha.

—Ah — escapou. Não sabia.

—De todos os modos nunca a utilizei. Era necessário fazer tantas obras de saneamento e

reforma... mas isso seguro que já sabe. Assim no final decidi vendê-la. Acredito que, se estiver

disposta a investir um pouco de dinheiro, poderia convertê-la em uma verdadeira jóia.

Enquanto me falava, mantinha o escuro olhar cravado em mim. Não piscou nenhuma só vez,

nem olhou em direção a Aurora. Ao parecer nem sequer percebeu sua presença. Eu notei que ela

se agarrou em mim com mais força. Posei as duas mãos sobre seus ombros para acalmá-la, mas

não podia afastar o olhar de Caspar von Kranichstein. O rosto pálido, os olhos escuros e a voz

metálica provocavam rechaço, o ridículo penteado estava passado de moda e a indumentária

negra era exageradamente elegante, e, entretanto tinha uma presença fascinante. Era dessas

pessoas que atraem todas as olhadas assim que entram em uma sala e provocam um mutismo

geral embora não digam nada. Não era de importar que falasse tão baixo. Provavelmente nunca

tivesse que elevar a voz para chamar a atenção.

Tentei dissimular meus sentimentos encontrados — angústia, mas também fascinação—, e

expliquei em seguida:

—Me alegro de que tenha vindo. A casa fica bastante afastada, está bem saber quem vive

perto.

—É o lugar perfeito quando busca um pouco de tranquilidade, verdade? Por sorte longe do

centro. Quando penso nessas massas de turistas que vão à turba a Hallstatt... —Fez uma careta de

aborrecimento.

—Sim — me limitei a dizer— Sim, isto é muito tranquilo.

—Entretanto, nem muitas pessoas suportam esta solidão. Em caso de emergência, as

pessoas não têm a quem recorrer.

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Não estava segura do que queria dizer com isso, mas não respondi.

Fez um silêncio. Permaneci um momento olhando embevecida, logo me desfiz de seu escuro

olhar. Vi que o chofer continuava na mesma postura rígida junto ao veículo, mas já não estava

sozinho. Uma moça e um homem saíram do carro, as duas com a mesma roupa escura que Caspar.

—Meus assistentes — observou de maneira direta.

Recordei que Josephine me explicou que Caspar oferecia seminários e formações para

diretores.

Não apresentou a seus assistentes por seu nome, mas tampouco deu amostras de querer

partir.

—Por certo, esta é minha filha Aurora ― apressei a dizer, para quebrar aquele silêncio

incômodo—, e agora tenho que voltar...

—Sei — interrompeu com brutalidade.

Dirigiu para a porta do jardim com seu andar leve e lento.

Como sabia de Aurora? Acaso meu pai falou dela?

Desde perto, sua pele pálida me pareceu mais branca ainda, e os olhos mais negros. De

repente, levantou a mão. Pensei que queria me saudar, mas sua intenção era outra.

—Aurora — disse sem empregar o tom metálico de antes, a não ser com um sussurro

sedutor similar ao resmungo de uma serpente— A deusa da vermelhidão.

De repente baixou a mão para os cachos de cor mogno da menina, acariciou com suavidade

e posou seu olhar nela.

Por um instante ficamos como se estivéssemos esculpidos em pedra: ninguém se movia

tampouco ninguém parecia respirar. Então começaram a me tremer os joelhos. de repente ouvi

em minha mente a voz de pânico de Aurora, a forma em que sussurrou aquela tarde “ele está aí”,

e isso me tirou de meu pensamento.

—Sinto muito, mas tenho coisas que fazer. —Soou mais mal educado do que pretendia.

Caspar von Kranichstein não reagiu. Não afastou a mão do cabelo de Aurora, assim que eu a

agarrei com mais força dos ombros e a separei dele.

Então começou. Sem prévio aviso, o corpo de Aurora começou a tremer e a sofrer

convulsões. Quis dar um abraço de consolo, já que pensava que aquela estranha situação a

assustou e era a causa dos tremores, mas de repente desabou sobre os joelhos, o torso caiu a um

lado e deu um forte golpe na cabeça contra o chão. Tinha os olhos exagerados, logo começaram a

desviar as pupilas e os olhos ficaram completamente em branco.

—Aurora!

Não só tremia, todo seu corpo sofria as sacudidas dos espasmos. Deslocavam as articulações

de forma antinatural, tremiam os dentes, custava respirar e o fazia de maneira entrecortada.

—Aurora! —voltei a gritar.

A cabeça caía uma e outra vez para trás. Eu tentava segurar manter a erguida, mas os

espasmos eram mais fortes que eu. Quando ao fim conseguiu abrir a mandíbula e separar os

dentes, começou a sair espuma branca pela boca e a deslizara pelo queixo.

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Capítulo 4

Não podia parar de caminhar de um lado a outro do corredor do hospital. Respirava um

intenso aroma de desinfetante, e no final um momento comecei a sentir um ligeiro enjoo. Servi

um copo água de um filtro, mas estava morna e tinha sabor rançoso. Só peguei um gole, e me

tremiam as mãos quando atirei o copo de plástico meio cheio.

Ninguém parecia perceber minha presença. Os médicos e as enfermeiras passavam

ocupados ao meu lado, portas se abriam e voltavam a fechar. Uma mulher passeava acima e

abaixo junto a uma senhora maior em penhoar e, com olhar impaciente, cravava os saltos no

chão, como se assim pudesse conseguir que a senhora caminhasse mais depressa. Um paciente

saiu de um quarto e sentou não muito longe de mim, em uma das cadeiras brancas de plástico,

para ler um livro. Era óbvio que no corredor era mais tranquilo que em sua cama.

Eu me esfregava as mãos, inquieta. No momento, quando Aurora sofreu os espasmos, expus

a possibilidade de chamar o médico de urgências, mas logo decidi levá-la eu mesma ao hospital o

mais rápido possível.

Agora me parecia uma negligência imperdoável por minha parte não ter pensado antes onde

estava o hospital mais próximo e como chegar em caso de emergência.

—Melhor que vá a Bad Aussee.

Isso me disse Caspar von Kranichstein. Já não recordava como reagiu ele quando Aurora

sofreu o colapso, se mostrou afetado, indiferente ou inclusive sentiu repugnância. Ao pensá-lo

agora, quase me dava à sensação de que tivesse aparecido um sorriso nos seus lábios.

Sacudi a cabeça, era ridículo. Por que ia divertir ver uma menina pequena sofrendo

espasmos e expulsando espuma branca pela boca? Além disso, me lembrei nesse momento—

indicou o caminho ao hospital mais próximo e se ofereceu a nos levar em seu carro. Eu declinei a

oferta. A presença daqueles desconhecidos ainda me resultava mais ameaçadora nessa situação,

queria ficar a sós com Aurora quanto antes e pedir ajuda a um médico.

De novo abriu uma porta com grande barulho. A bata branca de um médico revoou com a

corrente de ar. Resultou familiar, provavelmente examinou Aurora antes na urgência. Quando

chegamos, Aurora já se acalmava. Seguia com o olhar fixo — um pouco como quando estava em

transe—, mas os espasmos cessaram, já não tinha os olhos revirados e não saía espuma pela boca.

O médico, que agora procurava a alguém com o olhar, perguntou nada mais ao chegar, se

além de expulsar espuma branca, vomitou. Quando quis responder, estava tão nervosa que não

me saiu a voz. Nesse momento neguei com a cabeça e não recuperei a fala até que quiseram me

levar da urgência. Então rompi a gritar feita uma fúria e me neguei a deixar ali Aurora, até que

uma enfermeira com a mão esquerda me agarrou pelos ombros e me empurrou para fora.

Tratando de me apaziguar, me convenceu de que se ocupariam o melhor possível de minha filha,

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não parava de me assegurar isso e de que eu não podia ajudar, e não sei se foi sua voz cadenciosa,

a pressão da mão ou a sensação de fadiga que me invadiu depois da tensão, mas ao final me

acalmei.

Nesse instante me equilibrei sobre o médico.

—Como está minha filha?

—Sophie Richter?

Observou com gesto pensativo, que refletia —não podia interpretar de outra maneira—

cepticismo e um indício de aborrecimento.

—Primeiro fizemos um TAC, logo, como não se via nada, um eletroencefalograma —

explicou— Sem resultados.

—Isso o que significa?

Suspirou.

—Não há comoção cerebral, nem hemorragia cerebral, nem indícios de epilepsia. Também

fizemos teste de glicemia, tudo em ordem. Realmente sua filha expulsava espuma branca pela

boca?

Não acreditava em mim? Parecia recordar que limpei a boca ao chegar ao hospital.

—É obvio! —gritei indignada— Já disse!

—Teve antes um... ataque parecido? —perguntou, alargando a palavra “ataque”.

Certamente com seus colegas não falaria de um ataque, mas sim das imaginações de uma mãe

histérica.

—Não, não. —Refleti um instante se devia mencionar os curiosos estados de transe de

Aurora, mas a expressão de seu rosto era tão fria que deixei passar o momento sem aproveitá-lo.

—A sua filha não tem nada, absolutamente nada — explicou.

—Tem que... ficar aqui? —perguntei.

Rabiscou algo em uma folha médica.

—Não vejo por que. Poucas vezes vejo uma menina tão sã. Todos os parâmetros perfeitos,

tudo em ordem, nem um resfriado.

Parecia óbvio que aquele tipo pensava que não merecia a pena falar comigo.

—Mas o que faço se voltar a...?

—Vou receitar algo.

Tirou um bloco de papel do bolso, escreveu algo e não pude evitar pensar que só se tratava

de um placebo. Tinha as mãos empapadas em suor quando me entregou a receita na mão.

—Obrigada — murmurei e no final de um segundo me zanguei comigo mesma. Por que não

insistia que não inventei os espasmos de Aurora? Por que deixava que me despachasse como uma

menina tola?

Uns instantes depois voltou a abrir a porta, e saiu uma enfermeira com Aurora pela mão.

Estava pálida, mas gritou com alegria:

—Mamãe! —E veio correndo para mim.

Suspirei aliviada, parecia que estava bem de verdade. Abri os braços, estreitei-a contra mim

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Série Nefilim 01

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e inundei meu rosto em seu cabelo mogno.

—Mamãe, podemos ir para casa?

Por um momento me expus se devia voltar a falar mais calma com o médico, mas logo se

impôs o alívio de que os espasmos não tivessem tido nenhuma consequência grave. Tinham

examinado, disse, não encontraram nada, estava sã... Além disso, não era bom sinal que Aurora

tivesse vontade de retornar a sua nova casa? Isso só podia significar que se sentia bem! Quando

me voltei, o médico já desapareceu.

Saímos do hospital de mão dadas. Voltamos para casa em silêncio. Aurora foi contemplando

a paisagem pela janela, observando as montanhas, que se elevavam cada vez mais altas diante de

nós, até que ficou adormecida.

Quando chegamos a casa, seguia dormindo. O Mercedes negro já não estava ali, só às

marcas dos pneus no cascalho recordavam a visita da manhã. Por isso me surpreendeu mais ainda

ver Caspar von Kranichstein perto da grade do jardim. Parecia rígido, como se não tivesse se

movido durante as últimas horas. Então fui consciente do tempo que passou. Tínhamos chegado

ao hospital por volta de meio-dia, e agora o sol tecia seus últimos fios vermelhos.

Olhei o assento traseiro, certifiquei de que Aurora seguisse dormindo, e saí do carro

procurando fazer o menor ruído possível. Caspar se voltou para mim enquanto me aproximava

dele. Tinha um sorriso amável, mas inexpressiva, e sob a luz do crepúsculo a negrume de seus

olhos parecia mais insondável ainda.

Onde estava seu carro? perguntei. Que fazia ali sozinho? Era impossível que tivesse estado

esperando todo esse tempo frente à casa, e sobretudo: qual era a razão? Preocupação sincera?

Então, por que esse sorriso tão peculiar?

Talvez me visse chegar de carro de seu imóvel, pensei, mas não podia ter chegado tão rápido

para me receber.

Esteve a ponto de lançar uma pergunta, mas antes que pudesse formular apressei a explicar:

—Minha filha está bem, nos exames não viram nada... mau. Mas... preferiria que Aurora não

o visse. —A situação me superava muito para disfarçar minhas palavras com fórmulas de cortesia.

Entretanto, minha brutalidade não fez mais que reforçar seu sorriso.

—Me alegro muito de que se encontre melhor — disse, mas suas palavras, mais que afeto,

denotavam sarcasmo.

Cada vez me sentia mais desconcertada e incômoda, mas tentei dissimulá-lo.

—Não sei o que ocorreu exatamente —esclareci, sem vacilar— Só que o encontro com você

a afetou muito. Senhor Von Kranichstein, acredito que o melhor seria que não voltasse a vir.

Uma vez mais, fracassei em minha vontade de guardar as formas ao não acrescentar a

minhas palavras um, “por favor”.

Pelo visto, não importou absolutamente.

—É obvio! —Levantou as mãos. O vento inflou o casaco escuro.

O sorriso se apagou de seus lábios assim que deu volta, mas seus olhos negros despediam

um brilho, como se o embargasse a alegria.

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Quando partiu, Aurora seguia dormindo.

���

Despertei Aurora só um momento para levá-la para casa. Assim que caiu na cama, voltou a

dormir. Fiquei um bom momento sentada ao seu lado, observando seu rosto dormido, que refletia

autêntica placidez e no que já não se mostrava nenhum sinal dos espasmos. Enquanto escutava

sua respiração regular, o sono me venceu.

No dia seguinte tentei despertá-la várias vezes, mas ela torcia o gesto a contra gosto, resistia

a levantar e se voltava a dormir. Eram mais das doze quando por fim apareceu na cozinha. No

princípio eu sorri preocupada, mas quando me saudou com um radiante “bom dia”, senti um

grande alívio.

Só comeu meia fatia de pão com manteiga, mas tomou duas taças de leite com chocolate e,

ao terminar, desceu da mesa de um salto, cheia de energia, e deixou o copo na pia. Depois

tampouco pôde ficar quieta, saiu correndo de camisola ao jardim e ali passou um momento

saltando na grama, que ainda estava úmida do sereno.

—O que fazemos hoje? —perguntou por fim com vontade de atividade.

Eu propus que passássemos à tarde tranquilamente no jardim, já que não queria que se

fatigasse muito, mas ela franziu o sobrecenho e ficou aborrecido. A experiência no hospital parecia

esquecida, e no momento não disse nenhuma palavra da visita de Caspar von Kranichstein.

Pensei que talvez não fosse má ideia fazer algo e afastar um pouco do ocorrido no dia

anterior, assim propus ir ao centro de Hallstatt, que ainda não tínhamos visitado. Aurora logo

concordou.

Brilhava o sol quando, junto com outros turistas, passeamos pelas pitorescas ruelas que

rodeavam a praça maior. Relaxei ao ver que Aurora assinalava com entusiasmo a multidão de

casas rústicas pintadas com graça, levantadas umas junto a outras nas levantadas costas. Mais

tarde, admiramos no museu de Hallstatt os aparelhos com os que se extraía sal três mil anos

antes, os custosos objetos fúnebres que tiraram o chapéu no século XIX em famosas necrópole, a

baixela de cerâmica e vidro que deixou os romanos, e finalmente os quadros do grande incêndio

de 1750. Enquanto que geralmente Aurora estava acostumada me bombardear a perguntas, esse

dia lia em silêncio os textos dos folhetos e depois me explicava isso com grande solenidade.

Surpreendia que soubesse ler tão rápido, no colégio nunca era das melhores. Quando saímos do

museu ainda não estava cansada, e quis dar uma volta de bote. Eu estava querendo agradá-la, e

Aurora em seguida conduziu o barquinho elétrico com entusiasmo para a borda do leste do lago,

onde contemplamos a certa distância o castelo Grub, uma enorme construção cercada e em parte

ruída que necessitava mais reforma ainda que nossa casa.

Quando voltamos para o píer, Aurora seguia sem dar mostra alguma de cansaço. Saltou do

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bote com agilidade e foi dando saltos todo o caminho. Eu tratei de segui-la, mas alguém me parou

pelo caminho com um “Desculpe-me”.

Ao ver a barco, dois turistas ingleses se aproximaram de mim e me perguntaram quanto

custava à hora.

Já me dispunha a responder enquanto pensava como diria “bote a motor” em inglês, quando

Aurora voltou correndo, colocou-se com arrogância a meu lado e olhou nos olhos os dois ingleses

sem seu acanhamento habitual. Continuando, deu toda a informação em um perfeito inglês.

Os ingleses agradeceram com um sorriso amável e se dirigiram decididos ao píer.

Olhei Aurora estupefata. Ela me pegou pela mão e queria me levar com ela, mas resisti.

—Onde aprendeu? —perguntei, sem fôlego.

—O que?

—Falou com eles em inglês!

—De verdade? —Já não tinha o olhar radiante, parecia um pouco ausente, como se não

recordasse o que acabava de acontecer.

—Sim, e sem acento! —exclamei elevando o tom sem querer— Como sabe esse vocabulário

tão complicado?

Aurora encolheu os ombros.

—Aprendemos não sei quando no colégio.

Que eu soubesse, as poucas aulas de inglês da semana consistiam em cantar canções

infantis.

—Aprendeu como diz “bote a motor” em inglês? —Custava moderar o tom.

Esta vez não respondeu, voltou a encolher os ombros e seguiu me puxando pela mão. Eu a

segui, embora com a frente enrugada, até uma sorveteria.

—Compra um sorvete? —perguntou, como se não tivesse acontecido nada, e acrescentou

com insistência— Por favor!

Assenti distraída enquanto nos colocávamos ao final de uma longa fila.

Quando por fim chegou nossa vez, perguntei qual sorvete queria, porque ia pedir por ela,

como de costume.

Entretanto, em vez de responder sorriu com simpatia ao homem de trás do mostrador. Era

italiano, como revelavam não só o cabelo escuro e a pele morena, mas também o fato de que

exclamasse “Che bela ragazza!”1

No princípio olhou radiante a Aurora, logo a mim.

—E que mãe tão bonita! —acrescentou.

Respondi ao completo com um sorriso fugaz, que desapareceu em questão de segundos

quando Aurora ficou nas pontas dos pés e pediu um sorvete em fluido italiano.

Fiquei de pedra, boquiaberta, ao ver que Aurora falava italiano com a mesma naturalidade e

fluidez com que acabava de falar inglês um momento antes. Por um instante não vi nada, nem os

sorvetes de distintos sabores que tinha diante no balcão, nem às pessoas que empurrava por trás,

1 Que linda menina!

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nem ao italiano que deu o sorvete a Aurora.

—Mamãe, tem que pagar!

Sua voz foi o primeiro que me chegou. Ouvi de longe. Estremeci, senti como se despertasse

de um comprido sonho escuro, logo procurei a carteira desatenta. Tirei umas moedas e as deixei

sobre o balcão, sem comprovar se era a quantidade correta. O italiano olhou sorridente enquanto

eu seguia com passos rígidos a Aurora. A menina deu algumas lambidas ao sorvete.

—Não quer um, mamãe?

O corpo me pedia que falasse com ela, que perguntasse onde aprendeu o vocabulário em

italiano que utilizou com tanta segurança, mas pensei que reagiria igual à antes, quando perguntei

por seu inglês.

Ofereceu seu sorvete.

—Pode tomar o meu, é muito para mim.

—Poderia tê-lo pensado antes! —briguei. Minha voz soou aguda e transmitia muita tensão—

Foi você que queria um sorvete.

—Sim, mas não mais.

Fez pegar a casquinha, e eu o lambi distraída, sem saboreá-lo. Tinha a língua e os lábios

intumescidos.

“Não mais...”

Eram as palavras que disse Aurora a Nele aquela vez em Salzburg, quando despertou de seu

estado de transe.

“Já não gosto dos sorvetes.”

De todos os modos, naquela ocasião estava tão pálida e frágil, e tinha o olhar perdido, como

se não soubesse certo aonde estava. Agora, entretanto, dava saltos tão fresca e tinha as

bochechas ruborizadas.

O sorvete derretia nas mãos e me gotejava pelos dedos. Joguei quando chegamos ao carro.

Uma vez dentro, Aurora foi incapaz de estar quieta. Tamborilava com os pés no assento dianteiro,

enquanto eu procurava um lenço para limpar as mãos. As batidas me deixavam nervosa, mas

mordi a língua para não voltar a brigar.

Como podia falar inglês? E italiano?

Nele falava um pouco de italiano. Talvez tivesse ensinado a pedir um sorvete.

Quando paramos frente à casa pouco depois, Aurora seguia cheia de energia. Apenas parou

o carro quando tirou o cinto e desceu do carro de um salto. Era óbvio que estava ansiosa por

chegar a casa, mas de repente ficou imóvel, paralisada pelos ruídos que agora eu também ouvia.

Estremeci.

Ouvimos uns fortes latidos atrás de nós. Voltei para a pista florestal, e vi que se equilibrava

sobre nós um cão enorme, com o cabelo marrom escuro, a cauda entupida, as orelhas voltadas

para trás, provavelmente um rottweiler. Não levava focinheira, nem sequer corrente, e ao parecer

ia sozinho.

—Fora! —gritei, presa do pânico.

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O cão nem me viu, tinha os olhos amarelos cravados em Aurora. Acelerou o passo, começou

a ladrar, grunhiu mostrando os dentes e saltou sobre minha filha.

���

Procurei ao redor algo que me servisse de arma, talvez um ramo grande para dar ao vira-lata

se era necessário, mas já não havia tempo. Ouvi que uma voz se fundia com os latidos. Entre

ofegos, um homem gritava um nome, o do cão, mas este não reagia, mas sim corria cada vez mais

rápido para Aurora. Já não podíamos nos esconder. Recordei a recomendação que li em uma

ocasião para as pessoas que saem a correr: se atacar um cão, deve proferir chiados agudos porque

ao animal recorda a seus cachorrinhos. Mas eu tinha a garganta seca e, em lugar de seguir esse

conselho, no último momento decidi me colocar diante de Aurora. Já quase sentia as patas

cravando em meu estômago e minhas coxas, os dentes me rasgando a pele, fincando na carne e

despedaçando, quando, de repente, o cão ficou quieto a uns três passos de nós. Não que

diminuísse o passo, mas sim ficou petrificado em meio de um movimento, como se fosse uma

imagem congelada de um filme.

Aurora ficou tão imóvel como o cão. Eu pensava que estava a salvo atrás de mim, mas de

algum modo consegui ficar diante.

—Benni Benni, não! —gritou uma voz masculina. Então alguém saiu do bosque

precipitadamente. Era um homem barbudo com uma jaqueta de pano tirolês, o cabelo empapado

de suor e o rosto corado. Ao ver seu cão, ele também ficou pasmado.

Durante um momento ninguém se moveu, todas os olhares estavam centrados em Aurora,

que além de situar diante de mim, tinha a mão direita levantada com os dedos estirados e

separados. Seus olhos azuis, que nunca pareceram tão brilhantes e penetrantes como agora,

estavam cravados no cão. Seu olhar não só impediu que nos atacasse, mas também além, estava o

obrigando a retroceder. A pelagem do lombo ainda encrespado foi alisando, o animal começou a

menear o rabo avoado e o leve latido se converteu em um gemido lastimoso enquanto se afastava

e se tornava ao chão. Estava tremendo, e parecia tão bondoso que eu teria agachado para

acariciá-lo. Já nada lembrava o cão furioso que segundos antes nos mostrava os dentes.

Aurora baixou devagar a mão. O dono do cão se aproximou com passo vacilante e o olhar

inseguro. O medo que o cão escapasse deu passo primeiro à confusão e logo a um profundo

assombro.

—Benni — disse em tom neutro, e depois acrescentou— Não houve nada.

Seu olhar de confusão oscilava entre Aurora e o cão.

—Se não for capaz de controlar seu cão, deveria levá-lo preso. —Na realidade pretendia

repreender com rudeza para me desforrar do susto, mas minha voz, longe de corresponder com

minhas palavras de aborrecimento, soava quase tão lastimosa como o gemido do cão. Tampouco

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podia afastar o olhar de Aurora e do amedrontado animal.

No final a menina se aproximou do cão. Por um momento parecia que fosse retroceder de

novo, mas logo se levantou com segurança, como se respondesse a um sinal invisível, e Aurora

acariciou um pouco o cangote. Depois voltou a afastar do animal e voltou para mim.

—Entramos em casa? —perguntou, impassível.

Antes que eu pudesse responder, interveio o proprietário do cão:

—Por favor... por favor, não me denuncie! Não aconteceu nada!

Franzi o sobrecenho e não consegui entender por que sua voz raiava o desespero.

—Como não aconteceu nada? —exclamei ainda ofegando.

—Benni já mordeu uma vez a uma excursionista — explicou Aurora em seguida, antes que o

homem acrescentasse nada mais — Se produzir outro incidente parecido, terá que sacrificá-lo.

Voltei para ela aterrada, mas evitou meu olhar.

Como sabia?

O dono do cão não reagiu com a mesma perplexidade. Pelo visto, aquela história deslocou

como a pólvora, e pareceu obvio que nos contaram isso. Ficou cabisbaixo e assentiu, abatido.

—É verdade.

Não disse nenhuma palavra.

—Vêem, Benni — murmurou ao fim, e o cão o ouviu em seguida e se deixou atar sem

pigarrear— Por favor —repetiu quando já havia devolvido Benni à pista florestal— por favor, não

me denunciem!

Eu seguia sem poder dizer nada, e ele, sem esperar uma resposta, desapareceu no bosque.

—Como acalmou esse cão? Por que não tinha medo? Por que deixou acariciar por você? E

como sabe...?

Aurora encolheu os ombros. Brilhavam os olhos com um azul tão penetrante como antes,

mas já não parecia concentrada, a não ser ausente.

—Os meninos do parque me contaram isso...

Estava segura de que não estava me dizendo a verdade. De todos os modos, não sabia se

mentia de forma consciente ou nem sequer ela mesma entendia o que aconteceu.

Caminhamos devagar para a entrada da casa.

—E o que devo fazer... com o cão? —gaguejei, e antes de acabar de formular a pergunta já

me estava arrependido de estar carregando ela uma decisão que na realidade devia tomar eu.

Aurora encolheu os ombros de novo.

—Não sei — murmurou, lacônica, antes de passar a me explicar com todo detalhe— O cão

era um rottweiler. A raça se chama assim porque antes se criavam por toda parte na cidade do

Rottweil, para os boiadeiros locais. De fato, os rottweiler são pacíficos, afetuosos e amantes das

crianças, sempre e quando os tratar bem. Se não sabe tratar, ficam agressivos e têm mais

tendência a morder que outras raças caninas. Terá que ter experiência em cuidar cães para

comprar um rottweiler. —Fez uma breve pausa e logo, como se nada, perguntou— Abre?

Eu sustentava a chave de casa com a mão, mas me tremia tanto que não acertava a

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introduzi-la na fechadura.

Não podia deixar de me perguntar como sabia tudo isso. Por que falava inglês e italiano?

Como apaziguou o cão? E de onde saíam seus conhecimentos sobre a raça?

Recompus, reprimi com todas minhas forças os tremores da mão e abri a porta. Aurora me

adiantou e, quando seu corpo me roçou, senti um calafrio.

Segui com o olhar enquanto corria pelo corredor para o salão e me invadiu um frio gelado. O

pior não eram suas peculiares capacidades, não, o pior era que naquele momento sentia medo de

minha própria filha.

Medo. Aurora me inspirava medo.

���

No dia seguinte me sentei para trabalhar cedo. Justo depois do café da manhã, voltei para o

primeiro andar, liguei o computador e ordenei os papéis da investigação. Não o fazia por vontade

própria, de fato estava muito desconcentrada e as letras se dissipavam diante de meus olhos. O

fazia porque durante o café da manhã Aurora se desprendeu me dizendo que, depois da pausa do

dia anterior, devia retomar meu trabalho se pretendia terminar o livro no final do verão.

Empreguei um tom não só petulante, mas também em certo modo autoritário, e muito

seguro, como se tivéssemos trocado os papéis e eu fosse a menina a que terei que dizer o que

tinha que fazer e ela a mãe que tomava as decisões.

Quis responder, não só porque me parecesse inconcebível voltar para ao cotidiano depois de

todo o acontecido no dia anterior, mas sim porque ouvia a voz de Nele me dizendo que jamais

devia ceder a autoridade, e muito menos sendo uma mãe tão jovem. “É sua filha, e você assume a

responsabilidade. Não é sua amiga, nem sua companheira, nem sua janela ao mundo.”

Essa advertência sempre me pareceu exagerada, e sobretudo infundada. Entretanto, assenti

diminuída enquanto Aurora me dava ordens, e me sentia como se me tivessem descoberto

fazendo algo errado.

—Não o está fazendo bem... não é boa mãe... não o bastante boa... olhe como te

comporta... põe limites... não deixe que confunda... como pode ter medo a sua própria filha... é

impossível... é incapaz...

A voz que ouvia em meu interior era na realidade a de Nele ou era a minha? Uma voz

carregada das velhas inseguranças que acreditava superadas tempo atrás, mas das que na

realidade só me escondia, ingênua como uma menina pequena que acredita que só terá que

fechar os olhos para ser invisível.

A expressão do olhar de Aurora me incomodava mais que aquelas vozes. Não sabia como

interpretá-la. Era entre sinistra e fascinante, e ao mesmo tempo intransigente, curtida, ressabiada,

intensa.

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Sucumbi a seu peculiar olhar porque não pude suportá-la, e menos ainda a pergunta que

suscitava: por que se ergueu um muro invisível entre nós e não me sentia capaz de tocá-la, nem

sequer de acariciar o cabelo.

Esse dia o céu estava brumoso, o ar ainda era frio, e enquanto trabalhava —ou fingia fazê-

lo— Aurora estava sentada no salão lendo uns livros. Eu aparecia cada meia hora e perguntava se

tudo ia bem. Ela me olhava um momento, com certa severidade, como se fosse a me perguntar

até onde cheguei. No fundo me sentia aliviada ao sair do salão e poder me evadir no trabalho, não

estar com ela em uma sala e esperar que dissesse ou fizesse algo que me parecesse inexplicável.

Assim transcorreu a manhã, seguida da refeição, que consistiu em alguns sanduíches

preparados de qualquer maneira. Aurora só comeu um, mas ao menos era algo. Depois quis fazer

um café, mas estava tão absorta em meus pensamentos que enchi a máquina com muito mais

café do necessário.

—Vamos... vamos passear? —propus.

—Eu prefiro seguir lendo. E assim você segue trabalhando.

Uma vez mais, sua contundência não deixava espaço à réplica. E de novo obedeci como uma

menina assustadiça e diminuída.

Depois de cada linha que escrevia, e de cada nota que elaborava, tomava um gole de café,

tão forte que logo começaram a tremer as mãos. Entretanto, segui tomando, como se fosse um

alívio que aqueles tremores e formigamentos se devessem excepcionalmente um pouco tão banal

e cotidiano como o café, e não ao desgosto, a inquietação e o desconcerto.

A última hora da tarde já não podia seguir, desliguei o computador e fui ao quarto de Aurora

a ordená-la. Entretanto, não havia muito que fazer, e não era o habitual: a cama já estava

arrumada, os livros e os jogos estavam cuidadosamente colocados na estante. Só a lebre de

pelúcias de Nele estava jogada em um canto. Agachei a recolhê-la e recordei como caiu das mãos

o pelúcia a Aurora a primeira tarde, quando disse ver uma silhueta escura.

“Ele está aí.”

Sem querer apertei a pelúcia, enterrei a cara na suave malha, cheia de nostalgia de poder

abraçar e acariciar assim Aurora, sem temor nem desconfiança. Os olhos de plástico me cravavam

nas bochechas, mas não me incomodava enquanto cheirasse a Aurora e fosse suave como seu

cabelo.

De repente deixei cair a pelúcia.

Murmúrio... ouvi um murmúrio.

No princípio não estava segura de onde procedia, e quanto mais escutava, parecia menos

um murmúrio e mais uma espécie de grunhido, ou não, mas bem um sussurro, um resmungo que

me parecia conhecido.

Ao entrar correndo no salão caiu a lebre de pelúcia da mão. Notei um sopro de ar frio, e vi a

grade do jardim aberto. Entretanto, o que me aterrou não foi o vento, a não ser outra coisa.

Aurora devia ter aberto a porta, porque de repente apareceu uma figura, uma silhueta

escura. O casaco que levava ondeava ao vento, o único que não levantava o vento eram seus

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negros cabelos, repicados e grudados à cabeça como um casco.

Caspar von Kranichstein.

Por que Aurora abriu? E sobre tudo: que fazia ali? Não fui bastante clara no dia anterior ao

pedir que não voltasse a aproximar de Aurora?

Talvez esse fosse o motivo pelo que entrou no jardim diretamente, sem chamar.

Pelo visto, nem sequer percebeu minha presença. Tinha os olhos escuros, que de longe

pareciam buracos, cravados em Aurora, enquanto tocava a cabeça com a mão direita e dizia algo

entre sussurros. Aurora não fazia sinal de se afastar. Estava quieta, escutando. Quando corri para

ela e a agarrei pelos ombros, tinha o corpo rígido como uma tabela. A última vez, ao tocá-la, ela

começou a tremer e a jogar espuma pela boca. Essa vez, entretanto, foi diferente. Seu corpo

estava como petrificado, igual a seu olhar, como se estivesse hipnotizada. Tinha um leve sorriso,

mas era um sorriso frio e inacessível.

—O que faz aqui? —repreendi Caspar von Kranichstein— Que diabos perdeu aqui?

Encontrava inclinado para a menina e se incorporou devagar, muito devagar. Afastou o olhar

de Aurora. Não passou a soleira até o salão, e tampouco nesse momento ameaçou se aproximar. A

luz do dia, em decadência, dava um aspecto mais escuro a seu rosto e mais magro a sua figura.

—Só queria passar para vê-la — disse, com pouco mais que um sussurro. Apressei a me pôr

diante de Aurora e toda a sensação de que o olhar fixo da menina me queimava as costas.

—Vá! Fora! Não quero que se aproxime dela, já disse!

Minhas primeiras palavras soaram secas e enfurecidas, logo quebrou a voz. Ele seguia

mantendo a distância, sorridente. Entretanto, havia algo nele que me assustava, que me

impulsionava a me afastar, a me agachar, a me tampar a cara com as mãos, e me custou um

grande esforço conter esse impulso. O que não pude dissimular era que tinha as bochechas

vermelho vivo. Sentia em parte como quando era estudante de piano antes das atuações: indefesa

e exposta.

—Vá agora mesmo! —gritei.

—Sophie... —Pronunciou meu nome com seu característico falar sussurre. Apesar de que

não se moveu, deu a sensação de que ia acariciar o rosto e o corpo com suas largas mãos

magras— Sophie, não faria nada que pudesse... prejudicar sua filha.

—Eu digo o que prejudica a minha filha e que não! Saia de meu jardim! —gritei quase

esgoelando.

Seu sorriso voltou mais amplo e denotava uma espécie de indulgência. Era como se

pretendesse me dizer que, por muito fria que me mostrasse com ele, cedo ou tarde acabaria

aceitando seus conselhos. Senti que o medo me agarrava à garganta. Não, isso nunca!

Retirou com muita lentidão, atravessou o jardim e por fim chegou à porta. Antes de abri-la

com um leve chiado, voltou sorridente uma última vez e levantou a mão para despedir.

“Não irão se privar tão facilmente de mim”, pareceu que dizia uma voz, como se Caspar

falasse comigo sem pronunciar realmente as palavras.

O casaco negro se inchou com o vento, que parecia sopro com mais força e frio que antes.

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Tremia todo o corpo. Fechei a porta do jardim em seguida e me agachei para Aurora. Não ficava

nada de minha aversão nem desconforto ao tocá-la. Agarrei pelos ombros, abracei com força e ao

final a sacudi com suavidade.

—Aurora, Aurora, está bem?

Permaneceu um momento dominada por uma rigidez antinatural, até que de repente uma

sacudida percorreu o corpo e seu inexpressivo olhar voltou para a vida.

—O que queria de você? O que houve antes que eu entrasse no salão?

Arrependi profundamente de tê-la deixado sozinha, uma menina pequena e desorientada,

que pelo visto já não ficava nem rastro da segurança e o aura de poder que transmitia só umas

horas antes.

—Caspar von Kranichstein... O que queria?

Mas Aurora nem sequer parecia saber de quem estava falando e não reagiu. Só transformou

o azul dos olhos, que de um tom mais pálido e descolorido passou a um mais escuro. Uns instantes

antes a cor recordava ao de um arroio cristalino, e agora em troca ao de um mar profundo e frio.

—Não deve ter medo — expliquei, tratando de transmitir maior segurança da que na

realidade sentia— Já não virá mais por aqui. Se... o proibi.

Aurora separou de mim, dirigiu para o sofá e agarrou um de seus livros, como se não tivesse

passado nada. No final um momento levantou a cabeça e disse:

—Não servirá de nada. —E o disse como se albergar qualquer classe de sentimento, fosse de

medo, firmeza, indignação ou pânico, constituísse um ato de tudo inútil— Não servirá de nada.

Ele... tem que voltar.

Quando mais tarde bateram na porta, o susto que me levei no corpo foi quase doloroso.

Assim que desapareceu Caspar von Kranichstein, fechei todas as venezianas sob o olhar cético de

Aurora. Não queria abrir a porta, baixei à menina do sofá e a abracei com força. Permanecemos

assim no meio do salão, e nem sequer quando chamaram pela terceira vez me movi.

Aurora me seguiu sem pigarrear, mas nesse momento disse em voz baixa:

—Não acredito que... seja ele.

Como as venezianas estavam fechadas, o quarto estava quase às escuras. Não estava segura

da hora que era. As quatro, às cinco da tarde? Quem ia vir a essas horas?

Deixaram de chamar o timbre, que foi substituído por uns golpes, seguidos por uma voz

furiosa.

—Sophie? Sophie, está aí? O carro está aqui! Havíamos ficado de...

Fui correndo à porta e abri. Nele vinha de férias no dia seguinte ou ao outro, por isso

havíamos ficado de que nos faria uma visita, já que queria ver a casa do lago de Hallstatt.

—Aqui está. —inclinou para me abraçar e me beijar nas bochechas, mas eu a agarrei com

força do braço, atirei dela para dentro e, depois de olhar temerosa a todas as partes, voltei a

fechar a porta. Depois dava duas voltas à chave.

—O que te passa? —perguntou Nele, e me olhou de cima abaixo, irritada.

Me tranquilizou um pouco o pulso.

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Série Nefilim 01

76

—Nada, é só...

Esteve olhando um momento, preocupada. Logo tirou a jaqueta e a pendurou do gancho.

—Por que me teve tanto tempo na porta? Tem medo? É por...

Não terminou a frase. Aurora me seguiu até o corredor, e nesse momento gritou,

visivelmente emocionada:

—Tia Nele! —Aurora saiu correndo para Nele e esta a recebeu com um sorriso e os braços

abertos.

Eu observei o abraço com uma mescla de sentimentos. Sentia dividida por dentro: por uma

parte me aliviou ver que Aurora seguia sendo a menina despreocupada e acordada de sempre, e

que a estranha visita não afetou absolutamente, mas por outra me produziu certo receio

comprovar que diante de Nele se comportava com total normalidade, que com ela não se

mostrava autoritária, rígida, inacessível nem exageradamente amadurecida. Isso me causou certa

confusão: e se era eu a que estava provocando tudo isso pela aversão que sentia dela, o

desconforto que me produzia tocá-la? Embora, por outro lado, minha atitude era a consequência,

não a causa de seu comportamento!

Nele separou de Aurora.

—Está preciosa! —afirmou.

Aquilo foi um dos exageros de Nele, porque tampouco podia dizer que Aurora tivesse boa

cara: estava pálida e magra igual ao nosso último encontro em Salzburg. Entretanto, a Nele

resultou um alívio o mero feito de não encontrar a paralisada em sua sala, olhando a um ponto

fixo.

Agora, em troca, apaziguava aos cães violentos, deixava hipnotizar por nosso sinistro vizinho

e falava inglês à perfeição, pensei para mim, mas não o disse em voz alta.

—Você, em troca, não tem bom aspecto. —Nele se levantou e se aproximou de mim— Tem

que ver com esses... assassinatos? —perguntou.

Durante os últimos dias eu não havia tornado a pensar nisso, mas o assunto seguia

ocupando as primeiras páginas dos jornais e se feito especulações em toda Áustria sobre o que

significavam três mortos em poucas semanas. Nele disse que, conforme leu, o turismo sofreria

perdas.

—Lembra? —acrescentou— Quando ainda estudávamos, também se colocaram os

assassinatos em série pela zona de Untersberg. Às vítimas arrancaram o coração! Que espanto!

Tentei fazer calar Nele assinalando com o queixo para Aurora, embora não parecia que

estivesse escutando a conversa.

—Quanto tempo fica, tia Nele?

—Não muito, só umas horas. Amanhã voo a Rhodes2.

Enquanto eu ia à cozinha a preparar um café a Nele — eu já estava bastante excitada por

dentro para tomar outro café— a ouvi fantasiar com o hotel que reservou. Aurora não parecia

muito impressionada.

2 Ilha Grega cerca de 18 km a sudoeste da Turquia no leste do Mar Egeu.

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Série Nefilim 01

77

—Uf! —exclamou Nele, e me seguiu à cozinha— hoje foi um dia dos mais ocupados. Os

últimos dias antes das férias sempre são assim.

Caiu um pouco de café moído, tentei limpá-lo em seguida e esperei que Nele não percebesse

como me tremiam as mãos. Mas ela não se fixou porque estava muito concentrada me contando

até o último detalhe de seu trabalho: nesse momento estava fazendo umas aulas de vários meses

em um consultório de psicologia infantil.

Contou que todas as entrevistas se reservavam com semanas de antecedência, o que na

realidade era bastante triste, porque significava que muitos pais não saíam graciosos da educação

de seus filhos. E que sabia que soava mal, mas que sem dúvida isso era bom para ela, já que assim

sempre teria suficiente trabalho, embora durante as semanas prévias às férias não teria importado

ter um pouco menos.

Enquanto falava, abriu a bolsa e tirou uma garrafa de um vinho branco que estava

acostumado a levar quando jantávamos juntas. Guardei na geladeira.

Falava como um periquito, quando comentava casos concretos da consulta apenas a seguia,

mas todo aquilo pouco a pouco foi acalmando. A energia de Nele... Aurora, que sempre se

alegrava de suas visitas... o aroma de café... tudo prometia normalidade.

���

Quando levei o café ao salão, Nele olhou ao redor assombrada.

—Por que estão às escuras?

Encolhi os ombros e voltei a abrir em seguida todas as venezianas. A histeria que Caspar von

Kranichstein acabava de suscitar em mim nesse momento me pareceu quase ridícula. No final não

entrou a força em minha casa, simplesmente acessou o jardim. Em que pese que não fosse de boa

educação, tampouco era motivo para entrincheirar.

—Por aonde vai? —perguntou Nele— Sim, pela menina pequena cujo nome não posso

revelar. Ainda não tem dez anos e já sofre um transtorno dismórfico3 corporal extremo. Até agora

só encontrei adolescentes com esses sintomas.

Nele adorava ir lançando conceitos científicos, e a maioria das vezes eu não perguntava o

que significavam para me economizar uma de seus intermináveis conferencias, mas como até

então quase não disse nada, perguntei por educação:

—O que é isso?

Nele tomou ar e estava a ponto de responder, quando antes que pudesse dizer nada,

Aurora, que se ficou de pé junto à porta, explicou:

3 A dismorfofobia, também denominada transtorno dismórfico corporal ou síndrome da distorção da imagem, é um transtorno

psicológico caracterizado pela preocupação obsessiva com algum defeito inexistente ou mínimo na aparência física. Esta fobia de ter um aspecto anormal é observada com mais frequência nos adolescentes, de ambos os sexos, estando relacionada com as transformações ocorridas na puberdade.

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—As pessoas com algum transtorno dismórfico corporal sofrem porque se consideram

extremamente feias.

Nele soltou o ar e voltou para ela surpreendida.

—E você como sabe isso, anã?

Aurora encolheu os ombros.

—Tem razão! —exclamou Nele— São pessoas que estão completamente obcecadas: porque

têm acne, os peitos pequenos ou o nariz torcido. Resulta impossível levar uma vida normal porque

sempre estão pensando em como são feias. Como dizia, até agora nunca viu uma paciente tão

jovem. Um drama! Tudo é culpa do culto à imagem da televisão, que envenena a alma.

Nele suspirou.

—Os transtornos dismórficos corporais são muito difíceis de tratar —acrescentou Aurora,

muito séria— Sem ajuda psiquiátrica continuada não melhoram.

—Chapou! —exclamou Nele para demonstrar sua admiração— Tem lido em algum lugar?

Aurora voltou a encolher os ombros.

—Talvez tenha um duende em casa, Sophie... Sophie, o que acontece, que está tão pálida?

Mordi os lábios para reprimir um grito. Um segundo antes estava esperançada de que

aquele dia tão demente acabasse de uma forma normal e agradável. Nesse instante, voltaram a

me invadir esses sentimentos que tanto me desmoralizavam: pânico, histeria, desgosto e medo

para minha própria filha.

—Sophie, o que acontece?

—Nada. —Sacudi a cabeça e desejei que não visse como me esticava o peito e me contraía o

estômago— Nada... é que acabo de recordar uma coisa... queria ir as compras... mas logo me

concentrei tanto no trabalho que me esqueci... agora que está aqui... e que Aurora não tem por

que vir... posso ir a um momento...?

Minhas palavras cada vez eram mais confusas.

—Quer ir às compras agora? —perguntou Nele, obviamente molesta porque queria deixá-la

a sós com Aurora, depois de fazer uma viagem tão comprida para ver.

Entretanto, sentia incapaz de dar mais explicações.

—Eu... eu... volto em seguida —disse muito rápido, e não dei tempo de responder. Saí

correndo pelo corredor, agarrei as chaves e a bolsa e saí da casa.

Pouco depois me meti no carro e parti.

Não sabia como enfocar o fato de que Aurora soubesse tantas coisas que era impossível que

soubesse, que eu não fora capaz de entendê-la e, o que é pior, que minha própria filha me

parecesse uma desconhecida. Mas, embora não podia influir no comportamento de Aurora, podia

fazer outra coisa.

Caspar von Kranichstein... tudo tinha que ver com ele...

Desde que apareceu, tocou Aurora e ela teve o ataque espasmódico, estava claro que

mudou.

Naquele momento não tive presente que os estados de transe de Aurora não podiam

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guardar relação com ele, já que começaram a ter muito antes. O único que tinha claro era que não

pensava ficar de braços cruzados. Caspar von Kranichstein ia ter que as ver comigo.

Não ia voltar a pedir em pessoa que se afastasse de nós, mas me ocorreu outra ideia para

conseguir, e não queria deixar passar mais tempo sem levar a cabo essa decisão.

Apertei o acelerador, deixei atrás a casa e cheguei ao bosque. Até então sempre conduzi

com prudência por aquele lance íngreme, mas desta vez tomei a primeira curva a muita

velocidade. Os pneus chiaram ao sair do meio-fio, e o carro deu uma inclinação brusca quando

apertei com todas minhas forças o pedal do freio. Cravou o cinturão no corpo e me tirou a

respiração. Embora agarrasse o volante com as duas mãos, por um momento perdi o controle do

veículo. Pisei no pedal uma e outra vez, tentando controlar o giro, mas não consegui dominar a

força invisível que o empurrava. Depois do que pareceu uma eternidade, o carro por fim parou.

Todos os ruídos se extinguiram. Desabotoei o cinto, respirei fundo e amaldiçoei minha

imprudência. Que loucura tomar a curva tão rápido!

Olhei pelo retrovisor e confirmei que tive uma sorte incrível. Os pneus da direita, tanto o

dianteiro como o traseiro, saíram do meio-fio e escorregaram pela superfície do bosque, mas

naquele lado o penhasco não era muito pronunciado, justamente o contrário que no lado oposto

da estrada. Se tivesse derrapado pelo outro lado, teria caído pelo precipício e me teria estrelado

contra as árvores.

Voltei a respirar fundo, coloquei a marcha atrás e apertei o acelerador, essa vez com muito

cuidado. As rodas traseiras deram algumas voltas escorregando pelo chão do bosque com um

rangido até que por fim alcançaram ao asfalto. Entretanto, uma vez estive em terreno seguro me

assustei até tal ponto que fiquei encolhida e retirei os pés dos pedais, de modo que o carro deu

uma sacudida inesperada e o motor desligou.

Puxei o freio de mão, olhei para fora angustiada e abri devagar a porta do carro. Não, não

me enganou a vista... havia algo vermelho pendurando... entre os ramos escuros... uma parte de

tecido que parecia feito migalhas.

Não podia afastar a vista dali e de repente pensei que talvez não fosse parar a ali por acaso.

Vacilante, saí e olhei a meu redor. Não se ouvia ruído de gente, só o vento que sussurrava

entre a ramagem e o grasnido de um pássaro. Aquele ponto de cor me atraiu como se fosse

mágico, parecia um sinal dirigido só a mim. Afastei do carro passo a passo, entrei no bosque, em

cuja espessa frondosidade se extinguia a última luz do dia, e finalmente cheguei à árvore de que

pendurava o tecido. Em que pese a estar rasgada, pude distinguir com claridade que se tratava de

uma camiseta, e pelo tamanho parecia de homem. O vento a levou e ficou pendurada entre os

ramos.

Pensei que talvez alguém dos arredores tivesse penetrado, a camiseta se soltou e chegou até

ali...

Os farrapos de tecido vermelho já não eram significativos. Um sinal! Ora... um sinal do que?

Afastei sacudindo a cabeça, separei a vista da camiseta e baixei o olhar para o chão do

bosque, e então fiquei petrificada. Foi como se o bosque tivesse escurecido de repente. As folhas s

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das árvores frondosas, as agulhas bicudas dos abetos, a casca sulcada dos troncos, tudo deixou de

ser verde e marrom e se tornou negro.

Perguntei se talvez ao me encontrar em estado de choque não distinguia as cores e por isso

o via tudo em branco e negro.

O bosque estava negro e... o cadáver branco.

Justo debaixo da camiseta vermelha, em um leito de musgo brando levantado por uma raiz

nodosa, uma pessoa morta me olhava com os olhos exagerados.

Capítulo 5

Voltaram às cores. O bosque seguia negro e o cadáver branco, mas os uniformes dos agentes

de polícia eram de cor verde escura.

Já não sabia quanto tempo passou desde que encontrou o cadáver. Depois de informar à

polícia, entrei no carro, fechei dentro e esperei. Só vi a cena um instante, mas cada horrível

detalhe ficou gravado em minha mente e agora essas impressões se reproduziam em ondas, cada

vez mais impactantes, mais atrozes, mais repugnantes.

Os olhos.

O pior era sem dúvida a expressão dos olhos completamente fora das órbitas. Além de

refletir o vazio negro do morto, também transmitiam os últimos sentimentos que essa pessoa

experimentou: um medo atroz, pavor, pânico, e a certeza de que se aproximava seu fim.

O homem não era velho. Entre a abundante cabeleira marrom não se havia nem uma só

mecha branca, o corpo parecia musculoso e fornido. Entretanto, sua pele branca exibia um

aspecto senil. Em alguns lugares parecia uma capa flácida cujo contido original tivesse ido

minguando, e em outros, em troca, via avultada de forma artificial, como se a tivessem recheado.

Havia outro detalhe quase tão insuportável como o olhar oco: as mãos do falecido, que não

se assemelhavam em nada às de uma pessoa. Quando posei meu olhar nelas, em seguida pensei

sem querer em um dos livros infantis de Aurora. Nele aparecia desenhado um homem dos

bosques ao que cresceram raízes de árvore nos braços. As mãos do cadáver eram igual de escuras,

nodosas e com crostas, não porque se tornaram de madeira, mas sim porque estavam cobertas de

sangue, que se encravou e voltado negra. Sangue próprio? A do assassino? O leito de musgo sobre

o que jazia também estava escuro, cheio de um líquido viscoso que, mais que sangue, parecia

betume.

Os policiais chegaram à conclusão de que o homem resistiu a seu agressor e por isso

apresentava feridas graves nas mãos. Esse sangue não tinha nada que ver com a causa da morte

real. Havia falecido por um profundo corte na artéria carótida que o levou a sangrar. Um dos

agentes comentou em voz alta que havia algo curioso. Normalmente uma ferida assim deixava um

rastro de sangue. O sangue devia ter brotado do pescoço como uma fonte e ter desenhado uma

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81

linha rodeada de bolinhas cada vez mais finas. Entretanto, nas árvores e matagais de ao redor não

encontraram nada parecido.

—Deveria ter perdido muita mais sangue d que se vê debaixo do corpo —assinalou o agente.

Eu escutei em silêncio. Ao chegar a polícia, desci do carro e os levei até o cenário. Nesse

momento me encontrava ali, com o olhar cravado no tronco de uma árvore para evitar

contemplar a imagem do cadáver. E não voltei a olhar o chão do bosque até que chegou a

ambulância e levaram o morto, coberto com um tecido escuro através da qual se distinguia o

contorno de seu corpo rígido.

Um dos policiais aproximou.

—Pode ir, se quiser, senhora Richter. Se tivermos mais pergunta nos poremos em contato

com você.

Já não recordava se dei meu nome e meu endereço a algum de seus colegas. Entretanto,

ainda ressonavam em meus ouvidos as poucas palavras com as quais expliquei como encontrei o

morto e o que me fez fixar nele.

Enquanto isso, retiraram a camiseta vermelha dos ramos e a guardaram em uma bolsa de

plástico.

—Ou prefere que a acompanhe alguém em casa?

Sacudi a cabeça em silêncio, dirigi para o carro, mas a meio caminho me detive de novo.

—Perdoe... — comecei.

O homem se deu a volta. Transmitia uma tremenda tranquilidade. Provavelmente seus

largos anos de profissão ensinaram a superar a repulsão, e uma imagem horrível como aquela já

não revolvia as vísceras, mas sim, no máximo, danificava o humor.

—Sim? —perguntou ao voltar.

—Quando encontrei o morto, na realidade ia ver — murmurei — Queria... queria fazer uma

denúncia.

—Sim? — voltou a perguntar.

Respirei fundo. As palavras que me saíram naquele momento soaram confusas.

—Caspar von Kranichstein... dá medo... assusta a minha filha... não quero que se aproxime

dela... há alguma forma de que vocês se o proíbam?

O agente de polícia apenas me olhou. Não teria podido deixar mais claro o que passava na

realidade pela cabeça: “Enfrentamos a pior série de assassinatos em anos... e você me vem com

isso?”

Nada mais terminar a frase, ruborizei. Fazia muito tempo que não sentia tanta vergonha.

—Quando o senhor Von Kranichstein — pronunciou o nome com toda naturalidade,

provavelmente o conhecia — quando o senhor von Kranichstein se aproxima de sua filha, como

diz, o que faz? Há... tocado de forma desonesta?

Soava indiferente, como, embora pudesse ser certo, não fosse grave.

Cada vez que dizia algo me sentia mais insegura.

Antes de encontrar o cadáver estava decidida a não permitir mais essas visitas, mas agora

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82

todas minhas preocupações e medos pareciam ridículos em um lugar como aquele, onde uma

pessoa encontrou uma morte cruel e sangrenta.

—É seu vizinho, verdade? —perguntou o agente.

De novo quase ouvi o que passava pela cabeça: “O vizinho passa por sua casa por acaso e

fala com a menina. E o vizinho acaricia a cabeça. Se não houver nada mais...”

Seguia com os olhos cravados na mancha situada no lugar de onde acabavam de levar o

cadáver. Ouviu o chiado de pneus ao parar mais carros de polícia. Os agentes falavam com vozes

entre si ou pelos aparelhos de rádio, seus passos rangiam sobre o leito do bosque e o revolviam.

Embora a simples vista já não houvesse rastro do cadáver sobre o suave leito de musgo, me

parecia seguir vendo aí, sentia a mercê de seu olhar de terror.

—Não é para tanto —murmurei— Provavelmente agora tem outras preocupações...

Não respondeu, e eu me dirigi pressurosa ao carro.

���

Antes de entrar em casa, estive passeando um momento para me acalmar.

Enquanto respirava fundo o ar fresco, sem querer me desviou o olhar acima para a

propriedade de Caspar von Kranichstein. Embora ainda não fosse de noite, parecia que atrás das

enormes janelas reinasse uma escuridão absoluta. Estava aí sentado? Observava? Mas por que ia

fazer o, e o que queria de Aurora?

Um ruído na porta fez que me voltasse, mas só era Nele, que me ouviu e saía para me

buscar.

—Sophie, o que faz aqui?

Estive a ponto de explicar tudo: o sinistro descobrimento que fiz, os olhos vazios de cadáver,

cuja imagem não podia me tirar da cabeça, as suspeitas da polícia de que racharam a carótida e

sangrou. E também teria gostado de explicar o estranho comportamento de Aurora, falar de

Caspar von Kranichstein e seu poder hipnotizador sobre ela, de minha decisão de denunciar, que

de novo começava a cambalear. Mas fiquei calada. Não encontrava as forças para dizer.

Reproduzi-lo em palavras significava revivê-lo.

—Vai tudo bem com Aurora? —perguntei em seguida.

—Claro! Estivemos vendo livros ilustrados. Agora mesmo queria deitar. Parece que sinta

bem a mudança de ares... embora não posso dizer o mesmo de você. O que te passa? Onde

estava?

—Como te dizia, tinha que me ocupar de uma coisa — disse para evitar responder.

Ela enrugou a frente com um gesto de ceticismo, e não podia censurá-la por isso. Não levava

nenhuma só bolsa que contivesse a suposta compra.

Baixei a cabeça diante de seu olhar escrutinadora.

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—Não podemos ficar aqui — expliquei em seguida. Até então eu tampouco o deixava muito

claro, mas no momento em que o disse em alto, pareceu a única solução sensata — Sim —insisti—

não foi boa ideia nos mudar aqui. E mais, foi um grande engano! Não aguento estar aqui. Não...

não funciona. Hoje mesmo farei as malas e logo voltaremos para Salzburg.

As rugas da frente de Nele se voltaram mais profundas.

—Mas por que tão de repente? —exclamou ela, surpreendida— Sophie, o que passa? O que

passou?

Não respondi, só queria passar, disposta a levar a cabo minha decisão. Na entrada de casa

encontrei Aurora. Deu a sensação de que levava ali muito tempo, e eu não tivesse reparado nela.

Sacudia a cabeça com força. Levava a fina camisola, ia descalça, fiquei arrepiada nos braços.

—À cama agora mesmo! —gritei com severidade— Vai se resfriar!

Ela seguia sacudindo a cabeça. Logo disse algo, mas em voz tão baixa que quase não a

entendi.

—O que? —perguntei, aturdida.

—Temos que ficar aqui — repetiu— Não podemos voltar para Salzburg.

—Por que não?

—Por favor, mamãe, por favor... não quero voltar. Temos que ficar aqui.

Soou a súplica, como se sua vida dependesse disso, e por um momento fez que se

cambaleasse minha determinação. Encolhi os ombros, impotente.

—Mas...

Antes que Aurora dissesse nada, Nele ficou de parte da menina.

—Vê! Aurora está gostando daqui!

Aurora me olhava desesperada, Nele me fez um gesto para me animar. No final era ela a que

me aconselhou passar ali o verão.

Senti indefesa diante daquela superioridade de forças.

—Ficamos, verdade? — perguntou Aurora. De novo empregou um tom de súplica.

—Vai à cama e cubra-se — resignei isso — E sim... por minha parte... ficamos.

Mais tarde Nele e eu tomamos uma taça de vinho, melhor dizendo, ela bebia vinho e eu

brincava a girar minha taça com a mão. Estive a ponto de contar tudo em várias ocasiões, mas não

fui capaz.

—Como leva seu trabalho? — perguntou Nele, depois de que eu respondesse a todos outros

assuntos que expus com um esquivo “sim”, “não” ou “não sei”.

Encolhi os ombros.

—Aí está. Hoje estive escrevendo todo o dia.

Duvidava que tivesse escrito algo com sentido, mas não disse isso em voz alta.

—Sim? — observou Nele com prudência — Aurora acredita que não leva muito bem.

—Como? — Surpreendeu que Aurora tivesse falado com Nele de meu trabalho.

Nele não insistiu.

—Já sei, já sei — disse em seguida— economicamente não necessita... mas sempre tive a

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impressão de que você gostava de escrever.

Como sabia Aurora como ia com o trabalho?

—De momento não tenho tranquilidade para trabalhar — disse com brutalidade.

—Sabe? — Nele levantou— isso é precisamente o que me preocupa. Sophie, sempre gostou

de entrincheirar em seu pequeno mundo, mas nunca foi tão medrosa.

—A que refere?

—Notei como olha Aurora como se fosse uma menina frágil de cristal, como se a mais

mínima corrente de ar fora a derrubá-la. Não é bom para ela, mas para você tampouco. Transmite

verdadeiro pânico, e...

—Não tem nem ideia do que aconteceu — a interrompi de repente. Respirei fundo,

precisava me desafogar e contar tudo, mas Nele continuou decidida.

—Nunca vi Aurora tão cheia de vitalidade, tão contente, tão acordada. Parece que aqui

avança bem... e você... você não é mais que a sombra de você mesma. Esses estranhos transes não

tornaram a repetir, ou sim?

Não, me disse, ao menos não enquanto Caspar von Kranichstein se mantivesse afastado

dela.

—Não tem problema que me convença que fiquemos aqui —murmurei— Já está decidido.

Faço por Aurora.

Nele sacudiu a cabeça.

—Não é suficiente, Sophie. Sabe que vou amanhã, esta vez não posso te ajudar, mas

acredito que deveria procurar alguém por horas... para Aurora.

—Por quê? —perguntei, desconcertada.

—Para poder trabalhar tranquila! Assim tem um pouco de tempo para você e de passagem

relaxa um pouco! Seguro que neste lugar há um montão de garotas agradáveis às que gostariam

de ganhar um pouco de dinheiro assim.

A só ideia de deixar Aurora em mãos de um desconhecido me revolvia o estômago.

—Antes que mudassem me preocupava sobretudo Aurora — continuou Nele — mas, se for

sincera, agora me preocupa você. Comeu algo hoje?

Sabia que Aurora havia comido um sanduíche, mas não recordava se eu comi ou não. Tinha

o estômago vazio, mas para falar a verdade tampouco tinha fome.

—Vou preparar algo para comer — anunciou Nele com resolução — Não sou boa cozinheira,

mas terá uns espaguetes e um pouco de molho em casa, não?

Encolhi os ombros de novo, mas Nele já se levantou para dirigir à cozinha.

—E pense isso né? De procurar uma babá!

Eu não gostava de nada a ideia, mas para não ter que seguir discutindo isso com Nele,

assenti fracamente.

���

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Estava ocorrendo rápido, muito mais rápido do que esperava, e ainda não sabia se alegrar ou

alarmar.

Nesta etapa Aurora era muito frágil. Algo podia sair errado e destruí-la para sempre. E se

Sophie não estivesse preparada? E se ficasse louca?

Por outro lado, produzia um profundo alívio que por fim essa árdua e angustiosa espera

estivesse chegando a seu fim. Um homem normal não teria demonstrado tanta perseverança,

tanto controle sobre si mesmo, tanta determinação. E é que não se tratava de dias, semanas,

meses ou anos de espera. Na realidade foram décadas. Séculos. A espera não só foi por ELA e por

sua filha... mas também por outra coisa bem distinta.

O único que mantinha firme era pensar na felicidade que aguardava. Isso, se tudo fosse bem,

se ninguém se interpunha em seu caminho, se Sophie conseguisse resistir.

A pressão que sentia era quase insuportável. Apenas perceber como agarrava com as mãos a

árvore atrás da qual estava escondido. Não notou que a áspera casca estava cravando na pele. Só

quando se ouviu um rangido ameaçador e choveram multidão de pequenas agulhas, deu um salto

atrás com brutalidade. Se aquele descuido tivesse durado um segundo mais, teria destruído a

árvore.

Que insensatez!

Sophie tinha que aguentar, mas ele também. O mínimo engano estragaria tudo o que

planejou até o menor detalhe.

���

No final de dois dias bateram na porta primeira hora da manhã. Estava passando manteiga

em uma torrada, e caiu a faca das mãos. Aurora estava me olhando fixamente com um gesto

pensativo e um tanto crítico. Seguia sem saber como enfrentar isso, como quebrar essa distância

que se abriu entre nós e que crescia dia a dia.

Fui correndo à porta de casa.

Quem poderia deslocar até ali sem avisar? Seria um agente de polícia que vinha me

perguntar pelo cadáver? Ou Caspar von Kranichstein, que talvez se inteirasse de que queria

interpor uma denúncia contra ele?

Ao abrir a porta, comprovei que não era nenhum dos dois, a não ser uma moça que me

esquadrinhava de cima abaixo com seus olhos verdes. Face à tensão, a primeira vista chamou a

atenção sua incrível beleza. Não era uma dessas belezas espetaculares e chamativas; a blusa cinza

e o lenço cor bordo eram muito singelos para isso, e pelo que eu via não utilizava maquiagem.

Entretanto, seu rosto em forma de coração emoldurado em uma abundante cabeleira, castanha e

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brilhante, era absolutamente harmonioso: os grandes olhos brilhantes sob as sobrancelhas finas e

arqueadas, o nariz fino, os maçãs do rosto que se sobressaíam e os lábios suaves. Tinha a tez

luminosa e clara, só se distinguia uma cor rosa claro nas bochechas.

Fiquei olhando uns instantes em silêncio.

—Sim? —perguntei ao fim.

—Disseram que procura uma babá para sua filha.

Estendeu a mão, extremamente suave, e com uma pele tão pálida e fina como a de seu

rosto. Não notei o apertão.

Não havia tornado a pensar nisso, mas naquele momento recordei as palavras de Nele... que

insistiu em que contratasse uma babá.

Pelo visto não ficou de braços cruzados e o dia antes de ir procurando a alguém e mandou

isso.

Não era próprio de Nele, que não estava acostumado a tomar decisões precipitadas nem se

meter tanto na vida de outros.

—Na realidade... — disse, insegura.

Ouvi uns passos por detrás de mim. Voltei e vi que Aurora se aproximava de nós. Agarrou

pela mão, aproximou de meu corpo — pela primeira vez em muitos dias— e olhou fixamente à

desconhecida. No final uns segundos, seus lábios desenharam um amplo sorriso sem nenhum

indício de acanhamento.

A mulher também sorriu.

—Meu nome é Cara Sibelius.

—Sophie Richter — respondi.

Embora seguisse surpreendida, convidei a entrar. Atravessou a soleira devagar e com uma

atitude cautelosa, e ao chegar ao corredor parou e deu uma olhada a seu redor.

—Seu nome —murmurei— Cara... é muito pouco comum.

—Cara é italiano. Significa “querida”. Também existe a palavra em gaélico, mas significa

“amiga” — atravessou Aurora antes que Cara tivesse ocasião de responder.

O sorriso de Cara intensificou, eu, em troca, horrorizei, como sempre que Aurora falava de

algo que era impossível que soubesse.

—Espero não vir em momento errado — desculpou Cara.

Desviou o olhar com dissimulo para a cozinha, onde se amontoava a baixela dos últimos dias

sem lavar na pia. Havia coisas por toda parte. Deu vergonha surpreendida em semelhante estado

de descuido; pelo general nunca descuidava as tarefas domésticas.

—É que não estou segura de que necessite realmente uma babá —expliquei, e me apressei a

fechar a porta da cozinha. Pensei no que estado se encontrava o salão, e em como conseguir tirá-

la dali com boas maneiras. Mas Cara não se moveu.

—Se atrapalho, só tem que dizer — esclareceu isso em voz baixa, e essa vez me chamou a

atenção como era melodiosa sua voz.

—Não atrapalha — adiantou Aurora— E não vem em momento errado.

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Série Nefilim 01

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De onde tirava a confiança para tutear assim a essa desconhecida? Geralmente, estava

acostumada a se mostrar bastante distante com os adultos.

—Em todo caso, não necessitaria uma babá todo o dia — me desculpei com voz trêmula—

só pela tarde, talvez umas duas ou três horas... enquanto escrevo. Mas isso...

—Vai bem — a interrompeu— Pela manhã trabalho na creche local.

—Ah.

Havia outra coisa que me surpreendia. Como encontrou Nele uma empregada de creche em

Hallstatt? E se informou no povoado, como não me contou isso?

Aturdida, avancei devagar pelo corredor enquanto pensava se devia oferecer algo para

beber. De novo, Aurora me adiantou. Aproximou de Cara e a agarrou pela mão.

—Vêem! —exclamou de repente, e a conduziu ao salão— Da janela se vê o lago de Hallstatt.

—Terei que fixar muito para distinguir ao longe as finas franjas de cor verde escura, mas

Cara assentiu.

—O lago de Hallstatt mede 5,9 quilômetros de comprimento e 2,3 quilômetros de largura —

explicou Aurora— Ele atravessa o rio Traun, encontra na zona norte de Dachstein e limita ao este

com Sarstein.

Cada palavra soava como se recitasse de cor, como um robô, uma entrada enciclopédica.

—Aurora! —interrompi, muito mais cortante do que pretendia. Aurora emudeceu— Sabe?

—adicionei me voltando para Cara Sibelius— talvez fosse melhor que voltasse mais tarde. Ainda

não tenho claro que necessite uma babá, mas deixe seu número de telefone e assim posso chamá-

la quando tiver decidido e...

Não acabei a frase. Aurora me olhou fixamente com seus brilhantes olhos azuis e sentenciou

com contundência:

—Mamãe, quero que fique.

Olhei desconcertada. A expressão de seu rosto era séria e decidida.

—Mas...

—Por favor! —suplicou, e repetiu— Quero que fique.

Senti tão impotente como quando se empenhou que tínhamos que ficar em Hallstatt.

—Aurora, de verdade que não sei se...

Cara soltou Aurora e aproximou de mim. Seus passos eram delicados, quase silenciosos.

—Testemos uma semana — sugeriu com uma voz agradável capaz de apaziguar até à pessoa

mais aterrorizada— Logo veremos.

���

Custava reconhecer, mas Cara Sibelius foi como uma bênção caída do céu. No princípio,

resultou inclusive inquietante como Aurora tomou confiança com ela rápido. Já o primeiro dia não

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88

separou de seu lado: primeiro mostrou o jardim e a pista florestal. Mais tarde encontrei Aurora no

colo de Cara, enquanto lia um livro. Não saía de meu assombro, embora entendesse Aurora. Cara

parecia uma mulher tranquila e aprazível. Suas palavras desprendiam sensatez e prudência, e

tinha um sorriso quente e carinhoso. No final uns dias, todas minhas dúvidas se dissiparam e,

depois da semana de teste, via claro que devia seguir vindo para casa.

Chegava à uma, sempre pontual, mas a maioria das vezes ficava mais do combinado, quase

sempre até que obscurecia. Embora me perguntasse se Cara tinha vida privada, nunca tirei o

assunto porque para mim era um descanso que ficasse para jantar conosco tão frequentemente e

Aurora esvaziasse o prato sem pigarrear.

Além disso, na presença de Cara era como se Aurora florescesse. Não só ganhava peso, mas

também seu rosto foi adquirindo um tom rosado, e cada dia estava mais ativa e ansiosa por

explorar ao redor. No princípio, eu preferia que se mantivesse perto de mim, se estava

trabalhando em cima, para poder dar uma olhada ao jardim de vez em quando ou ao salão.

Entretanto, no final de poucos dias deixou de me preocupar e dava permissão para fazer

grandes excursões, e o certo era que eu também agradecia o fato de poder me concentrar em

meu trabalho e fazer chamadas. De noite, Aurora me contava entusiasmada o que fizeram: uma

vez uma excursão à mina de Hallstatt, outra uma visita à caverna de gelo de Dachstein.

—Fomos por uns passadiços muito compridos, cada vez mais para dentro da caverna! E logo

chegamos a uma sala de estalactites e logo à cúpula do rei Artur. Havia blocos de rocha enormes

por toda parte! Imagine, faz um tempo se encontraram ossos de ursos das cavernas. E logo fomos

ao palácio de gelo e a uma grande montanha de gelo que mede quase dez metros de altura. E

como reluzia o gelo! Parecia que toda a caverna estivesse cheia de diamantes.

Fez uma breve pausa, logo acrescentou em tom explicativo:

—O gelo se forma com as águas de infiltração que chegam à caverna da planície de

Dachstein por ranhuras e colunas na rocha. Se a temperatura exterior superar os zero graus, mas

nas salas da caverna o ar segue mantendo frio, a água que entra se congela e assim se formam os

objetos de gelo.

Enquanto me explicava isso tudo com um grau de detalhe insólito, voltou a me invadir certa

inquietação, mas o brilho de seus olhos fez que passasse por cima meus medos. Havia uma coisa

que me tranquilizava por cima de todo o resto: desde que apareceu Cara, Aurora não voltou a se

mostrar esquiva e não só procurava sua cercania física, mas também a minha, e além disso fazia

com tanta naturalidade que não entendia como pude duvidar acariciá-la em algum momento.

Mesmo assim, muitos de seus comportamentos seguiam sem ter explicação, mas, além dos vastos

conhecimentos que exibia como se fosse o mais normal do mundo, não ocorria nada

extraordinário.

���

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Os primeiros dias de julho fez um calor abafadiço. Inclusive no fresco entorno do lago o

abafado era cansativo. Custava trabalhar, e cada vez com mais frequência acompanhava a Aurora

e Cara aos lagos ao redor, de Altaussersee ou de Grundlsee, para um banho com elas. Na

superfície, a água estava a uma temperatura agradável, mas justo debaixo estava congelada e era

uma maneira estupenda de refrescar.

Um dia Cara chegou um pouco antes porque eu queria ir a Salzburg. Tinha uma entrevista na

editora para mostrar uma parte do manuscrito e logo fiquei com um assistente da universidade

que estava trabalhando, igual a mim, em um livro sobre Anton Bruckner. No princípio também

queria aproveitar para fazer uma visita a Nele e agradecer que nos tivesse enviado Cara, mas ainda

estava de viagem.

De volta, entrei no Café Demel da praça Mozart e comprei um bolo Sacher porque Aurora

adorava. Entretanto, quando cheguei em casa não me passou pela cabeça que a cobertura

pudesse ter derretido durante a viagem.

—Aurora? Cara?

Deixei o bolo na cozinha e lavei rapidamente as mãos antes de procurar Aurora e a Cara.

Encontrei Aurora só em seu quarto, e no salão se ouviam murmúrios.

—Está falando no telefone —disse Aurora, antes que perguntasse.

—Ah.

Saí de seu quarto e me dirigi à cozinha para resgatar o creme de chocolate, mas, ao passar

pelo salão, uma frase de Cara me deteve.

—Não —me pareceu ouvir— não, não tem nem ideia.

Aproximei nas pontas dos pés à porta. Estava entre aberta e apareci pela fresta. Cara estava

sentada com as pernas cruzadas no sofá, de costas a mim, e não me via.

—Não me parece bem —disse no final um momento— Terá que dizer o quanto antes.

Contive a respiração instintivamente para não fazer ruído.

—Claro que é difícil, mas...

Interrompeu. Pelo visto, seu interlocutor a interrompeu.

—Já sei que não quer reconhecê-lo, mas tem que me fazer jus! Não podemos ocultá-lo —

disse passado um momento— Sim, está bem... os sinais são menos frequentes, mas porque eu

estou a seu lado e vou guiando. Sabe tão bem como eu...

Esforcei para não fazer ruído, mas de repente Cara deu a volta e me olhou. Não se mostrou

absolutamente surpreendida, limitou a me dirigir um olhar amável e aberto.

—Tenho que desligar — disse de repente, e desligou.

—Sophie —disse— assim já voltou. Não ouvi o carro.

Fazia já uns dias que tínhamos começado a conhecer-nos.

—Algum problema?

Levantou devagar.

—Não — respondeu, direta.

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—Lamento interromper, mas com quem falava?

—Não importa. —Quis passar por meu lado, mas agarrei pelo braço, com mais energia da

que esperava. Ela me esquivou em seguida.

—Quem... a quem terá que dizer algo? —perguntei.

Suas bochechas claras se tingiram de um vermelho suave. Então pensei que durante as

últimas semanas Aurora ficou muito morena, e Cara, que passou como mínimo tanto tempo como

ela ao sol, não pegou nada de cor.

—Estava falando por telefone com um conhecido. Sua mãe tem Alzheimer, e até agora não

disse ninguém.

O rubor desapareceu de seu rosto. Seu sorriso se voltou inexpressivo, estava certa de que

mentia. Durante as últimas semanas esteve tão preocupara com o estado de ânimo de Aurora que

desenvolvi uma extrema sensibilidade para as mudanças de tom e de gestos, por sutis que fossem.

—Vou ver como está Aurora — explicou.

—Sim— disse eu, confusa.

Aquela noite Cara não ficou para jantar. Preparei uns sanduíches de queijo para Aurora e

para mim, e de sobremesa comemos uma parte de bolo, ou o que pude resgatar dele. Aurora

comeu com fome, mas só respondeu com monossílabos quando perguntei o que fez com Cara.

Depois de deitá-la, comecei a andar nervosa pelo salão. Não tirava da cabeça as palavras de

Cara.—

“Não tem nem ideia.”

—Terá que dizer.

“Os sinais são menos frequentes porque eu estou ao seu lado.”

Observei fixamente o telefone. Por desgraça não tinha uma tela onde se gravassem os

números das últimas chamadas. No final agarrei o telefone e chamei Nele ao celular. Soaram sete

tons antes que atendesse. Apenas a ouvia, já que se perdia entre uns fortes murmúrios.

—Sophie? —gritou— É você?

—Ainda está em Rhode?

—Estou no aeroporto... hoje tenho o voo de volta... tenho que desligar.

Só entendia uma de cada duas palavras.

—Tenho que perguntar algo sem falta —gritei ao auricular— É importante!

—Sophie, não pode...

—Só queria saber até que ponto conhece Cara.

—Que Cara?

Os murmúrios recolocaram, mas de fundo se ouviu um forte e confuso rumor de vozes. A

conexão se interrompeu várias vezes.

—Bom, a babá de Aurora... já sabe, a garota que trabalha na creche do Hallstatt. A que me

enviou para que cuidasse de Aurora.

—De que fala? Eu não enviei ninguém.

Notei que começavam a suar as mãos e por pouco me escorre o telefone.

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—Ao melhor não conhece em pessoa... melhor através de algum contato... —Fiquei sem

palavras.

—O que? —disse, não entendia nada.

—Nele — expliquei com insistência, tentando manter a calma— Me recomendou que

procurasse uma babá que ficasse com Aurora e assim poder trabalhar tranquila. E no final dois

dias se apresenta uma garota na porta e me oferece sua ajuda. Pensava que você enviou ela.

Voltou a crescer o murmúrio no telefone.

—É verdade — ouvi que dizia Nele ao longe— é verdade que aconselhei isso

encarecidamente, mas estou segura de que não enviei ninguém. Como ia fazer? Não conheço

ninguém em Hallstatt além de você. Algo não vai bem?

Não esperou minha resposta.

—Sophie... agora tenho que desligar de verdade, a aeromoça já me está olhando muito

zangada, assim logo falamos... —As últimas palavras mesclaram com interferências e murmúrios, e

depois cortou a conexão.

Estive por um momento paralisada. Fiquei com o telefone na orelha, como se ainda fosse

receber uma explicação de Nele se esperasse o suficiente. Quando os tons regulares fizeram

insuportáveis, pendurei.

Levantei do sofá, no mesmo lugar onde antes estava sentada Cara enquanto falava por

telefone.

“Não tem nem ideia.”

—Terá que dizer.

“Os sinais são menos frequentes porque eu estou ao seu lado.”

Não conseguia entender o que significavam exatamente aquelas palavras, mas sabia que a

tranquilidade das últimas semanas era uma ilusão e terminou definitivamente.

Queria falar com Cara no dia seguinte pela manhã, mas estava muito alterada para esperar

tanto. Não conseguiria conciliar o sonho se não esclarecesse em seguida o que estava

acontecendo.

No princípio, Cara me deu seu endereço, assim procurei a rua no mapa de Hallstatt. Achava

a só uns quilômetros da casa e pensei se era melhor deixar Aurora só ou despertá-la e levá-la

comigo. Finalmente entrei no quarto da menina com o coração encolhido, acendi a luz e a sacudi

com delicadeza.

—O que acontece, mamãe?

—Sinto muito, querida... mas temos que ir a casa de Cara. Agora.

Incorporou sem pigarrear e deixou que a vestisse embora continuasse com os olhos

fechados. Seguiu ao carro sem fazer perguntas. Assim que fechei o cinto, abriu os olhos de

repente.

—Não estará zangada com Cara?

—Não, não — murmurei, e arranquei o carro. Quando nos afastávamos da casa, perguntei—

Disse por que... por que veio justamente a nossa casa?

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92

Vi pelo retrovisor que Aurora esfregava os olhos, sonolenta.

—Acredito que me procurava — disse em voz baixa.

Um instante antes me havia sentido mal por tê-la despertado há essas horas, mas nesse

momento tive que me conter para não repreendê-la impaciente: o que significa que procurava?

A que vinham essas peculiares alusões? Todos esses segredos?

Mordi os lábios e calei, e apertei com tanta força o acelerador que os pneus chiaram.

“Calma! —tentei me acalmar— Não é o momento de perder os estribos! Já esteve a ponto

de cair no penhasco uma vez!”

Evitei pensar no acidente que quase cheguei a provocar esse dia e no que aconteceu depois,

e me concentrei na via. Quando por fim cheguei à rua onde vivia Cara, percorri várias vezes

porque não conseguia ler os números das casas.

—Aí! —disse Aurora de repente, e assinalou um edifício amarelado— Ali vive Cara.

—Esteve alguma vez aqui?

—Não, mas sei.

Suspirei, mas não disse nada.

A casa era singela, pequena e antiquada. No andar de baixo havia uns três locais. No andar

superior, segundo a placa pendurada na porta do jardim, alugava um apartamento para férias, que

agora mesmo estava livre. O jardim era muito menor que o nosso, e estava muito mais cuidado. A

grama estava recém cortada, havia um lago com nenúfares e as sebes cresceram tanto que era

impossível ver o jardim do outro lado do imóvel, em que pese a estar podados com esmero.

—Está bem esperar aqui no carro? Só um momento?

Tinha que falar a sós com Cara.

Aurora assentiu, deixou cair a cabeça para trás e fechou os olhos. Saí do carro, fui correndo à

porta da casa e chamei com força.

A raiva e a impotência que acabava de conter com tanto esforço, voltaram a brotar em mim.

Quando por fim Cara abriu e apareceu diante de mim, eu com o rosto enfurecido,

empalideceu.

—Sophie...

Comecei sem saudar.

—Já não aguento mais! —gritei com força — Todas essas insinuações estranhas! O

comportamento de Aurora! E agora aparece você de repente, embora Nele não tenha feito nada,

e...

—Quem é Nele? —perguntou, já que não me entendia.

—Minha amiga de Salzburg! —Tremia a voz, mas me esforcei porque não notar. - É psicóloga

infantil. Recomendou que procurasse alguém que cuidasse de Aurora com regularidade. Pensava

que deu o contato e que por isso veio para casa para...

—Sophie. — Cara aproximou de mim e me pôs as mãos sobre os ombros para me acalmar—

Sophie, podemos falar disso mais tarde? Amanhã?

Eu a separei, impaciente, e entrei em sua casa.

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—Não, não podemos — respondi, decidida— Nele não sabe de nada. Assim não pôde...

—Foi Josephine! —interrompeu Cara em seguida.

Só deu uns passos quando ela me agarrou e se interpôs em meu caminho. Voltou a me pôr

as mãos sobre os ombros, essa vez não para me acalmar, a não ser para evitar que desse um passo

mais.

Então me dava conta de que jogou vários olhares intranquilos por cima do ombro.

—O que? —perguntei.

—Josephine... sabe, a proprietária da pequena loja de comestíveis... conheço-a bem. E me

avisou de que procurava alguém para Aurora.

Sacudi a cabeça, confusa. De verdade mencionei alguma vez enquanto comprava?

—Não recordo... —murmurei baixando o tom.

De repente notei que o ar se estava rarefazendo ao meu redor e que o rosto arredondado de

Cara era cada vez menor.

Deu a sensação de que as paredes do saguão me vinham em cima. Senti um formigamento

nos braços e logo nas costas.

Lutei contra o enjoo.

—Sophie, verdade que agora não é o momento...

Suas palavras foram cedendo até converter em um murmúrio.

—Perdoa... tenho que me sentar um momento...

Separei dela e avancei entre cambaleios para onde supus que se encontrava o salão. Embora

a imagem que via diante de meus olhos se diluía em multidão de pequenos brilhos, vi que a sala

não estava vazia. Havia alguém ali, e Cara, nervosa, voltava a vista uma e outra vez. Ele estava

sentado em uma cadeira giratória, e no princípio só vi as pernas.

O enjoo diminuiu, embora seguisse ouvindo murmúrios nos ouvidos.

Então o pressenti. Intuí quem sentou na frente muito antes que girasse a cadeira devagar

para mim e se levantasse. Levantou os braços quase como pedindo desculpa.

Mais de sete anos depois de me abandonar sem nenhuma explicação, voltava a ter diante de

mim Nathanael Grigori.

Capítulo 6

Não sei quanto tempo estive olhando, completamente imóvel, como se um só movimento

brusco fora a destruir a imagem que tinha diante de mim. Parecia que nenhum de nós respirava,

tragava saliva nem se movia.

Cara, que se ficou quieta na porta do salão, foi primeira em se mover. Não ouvi que se

aproximava de mim, mas senti como puxava o braço com suavidade.

—Sophie, deixa que explique...

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Voltaram os sussurros, sua voz se mesclou com eles. Não via nem ouvia nada do que havia a

meu redor, só podia olhar Nathan, que naquele momento também abriu a boca e disse algo.

Apenas o ouvi, como me passou com a tentativa de me acalmar. Não havia espaço mais que para a

perplexidade que me invadiu, e um segundo sentimento que jamais teria me embargado se minha

mente tivesse sido capaz de lutar contra ele: carinho, um profundo carinho.

Nunca tive uma foto dele, e cada ano que passava tinha a sensação de que sua lembrança

ficava cada vez mais apagada. Quando me propunha isso, conseguia evocar o som de seu chelo,

mas não o de sua voz. Os olhos azuis de Aurora me recordavam todos os dias aos seus, mas

quanto a seus traços, sua corpulência, seu cabelo, sua altura, esqueci quase tudo. Entretanto, não

era certo que o tempo e a distância o tivessem convertido em um estranho. Nesse momento me

encontrava frente a ele e me resultava próximo, como se durante todos estes anos tivesse ido

dormir com ele pelas noites e tivesse despertado a seu lado todas as manhãs, como se tivesse

acariciado seu rosto frequentemente —essa cara pálida, fina, bela— e sentido seu corpo suave,

robusto, magro. Não mudou o mínimo, os sete anos passaram por ele sem deixar rastro, e de

repente senti como se eu também voltasse a ser a garota de dezenove anos, um pouco torpe e

tímida, que se ruborizava diante da menor emoção, mas ao mesmo tempo ambiciosa e decidida,

às vezes brusca e teimosa, quase sempre para dissimular a própria vulnerabilidade.

—Sophie... —Esta vez sua voz soou mais alta que os sussurros. Provocava uma dor incrível,

como a que pode causar uma peça musical que na realidade é muito bela para suportá-la, que

aflige, encurta a respiração e enche os olhos de lágrimas.

As lágrimas caíram por minhas bochechas devagar, muito devagar, até os lábios, salgadas e

quentes, e foram essas lágrimas as que me fizeram recuperar o conhecimento.

Derramei tantas, tantas lágrimas por ele os dias, semanas e meses depois de que me deixou

sem mais.

—O que faz você aqui? —perguntei com um fio de voz.

Em lugar de responder, aproximou mais a mim. Então pareceu notar o calor de seu corpo e

me senti envolta em seu aroma. Era tão agradável e prazenteiro... como se me rodeassem com um

lenço de seda suave, acariciassem, dessem calor, e isso ajudasse há acalmar um pouco o susto de

vê-lo, a dor das lembranças. Retrocedi por instinto e levantei as mãos com um gesto de rechaço.

—Não se aproxime de mim! —gritei, embora houvesse distância suficiente entre nós e não

podia me tocar. Minha voz não era suave, sedosa e melódica como a sua, a não ser alta, estridente

e dura. Não transluzia nenhum traço da familiaridade, a nostalgia, a lembrança da felicidade que

uma vez existiu: só refletia decepção, solidão e dureza.

Dirigi a Cara.

—O que faz aqui? —gritei— De onde o conhece?

Antes que eu entrasse em sua casa, Cara parecia muito assustada. Agora, entretanto, pela

expressão de seus olhos, dava a sensação de que sabia com exatidão o que passava, ou de que se

sentisse aliviada por não ter que guardar mais o segredo.

—Sophie, deixa que explique... —disse em voz baixa. Voltou a me tocar, era óbvio que

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queria me levar para o sofá.

—Não! —Retirei o braço com ímpeto e separei as mãos— Não, não há explicação que valha!

Não para o que me fez!

Voltei para Nathan. Apesar de todo o aquecimento e a ira justificada que me invadiu, sentia

muito insegura. Sua presença era tão forte que, além de fazer que os olhos me enchessem de

lágrimas, parecia me engolir. Quando ele baixou o olhar, embora o brilhante azul de seus olhos

continuasse me enfeitiçando, parecia muito mais fácil aguentar o terrível aborrecimento, insultar,

tornar tudo em sua cara. Depois de nascer Aurora tentei aplacar minha ira para ele, mas naquele

momento vomitei em cima todos os desenganos poeirentos e rançosos que foi acumulando com o

tempo em algum canto de meu interior. E quando comecei, já não pude parar. Foi como se me

visse arrastada por um escuro torvelinho em cujo final aguardava tudo o que já não queria ser:

uma garota jovem, insegura, perdida, só com sua gravidez, e até certo ponto só também em um

mundo onde tudo o que importava até então de repente precisava de coragem.

—Não, não há explicação que valha! —gritei— Como se atreve a aparecer aqui? —Naquele

momento não pensei que era eu que tinha aparecido sem avisar na casa de Cara e não ele na

minha— Você... você... foi sem mais! Sabia que ia ter teu filho e me abandonou! E essa ridícula

carta! Tem ideia do que me fez? Desapareceu sem mais! Estive esperando durante dias. Fui a sua

casa mais de uma vez, perguntei por você, procurei... inclusive chamei à polícia e a todos os

hospitais... tive tanto medo que te tivesse passado alguma desgraça que... que... venha já, poderia

ter morrido! E talvez tivesse sido melhor, mais fácil, pelo menos teria sabido que , e... e... mas

como pôde! Tinha dezenove anos! Era uma menina e fiquei sozinha, e você...

Deixei de falar não porque me faltassem palavras, mas sim porque precisava respirar.

Nathan elevou a vista, e diante de seu olhar emudeci. Já não me ocorria nenhum insulto, nem

reprovação, nem desprezos. Só uma pergunta: como pude viver sem ele? Como suportava tê-lo

perdido?

—Sophie, temos que falar de Aurora.

Para ouvir pronunciar seu nome com tanta naturalidade voltou a fúria, mas essa vez não se

traduziu em palavras acesas. Senti a frieza, uma agradável frieza que mitigava, paralisava e aturdia

a dor.

—Não —disse quase com indiferença— não temos nada...

—Sophie, a menina...

—Não é filha tua —interrompi— Quer dizer, é obvio que é, mas não tem nenhum direito

sobre ela. Não se ocupou dela durante todos estes anos. Não me ajudou economicamente

nenhuma só vez. Por que aparece agora? Por que justo agora?

Veio uma ideia... as palavras de Cara... “não tem nem ideia”... “terá que dizer os sinais não

são tão frequentes”...

Possivelmente Cara sabia o motivo do peculiar comportamento de Aurora igual a fato de

que Nathan estivesse frente a mim naquele momento. Entretanto, não queria escutar suas

explicações, agora não, e sobretudo não queria ouvir a voz de Nathan, essa voz suave, melódica,

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sussurrem...

—Não se atreva a aproximar de Aurora, não se atreva! —disse com voz entrecortada, entre

ofegos— Não tem nada que fazer com ela. E eu tampouco quero voltar a te ver, Nathan, nunca

mais! Foi sem me dar uma explicação. Agora não perdeu nada em minha vida.

Seus olhos tinham uma expressão quase suplicante, mas quando parecia estar a ponto de

falar, Cara fez um sinal e ele se manteve calado.

Já não aguentava seu olhar nem um segundo mais. Tampouco suportava minha amargura,

nem muito menos a nostalgia, que não conseguia erradicar a amargura: nostalgia de estar com

ele, de olhar nos olhos, beijá-lo e abraçá-lo, tocar com ele essa música mágica, divina.

Dirigi à porta com os joelhos trementes, passei junto a Cara e atravessei o corredor. Quando

por fim saí ao ar livre, fiquei um momento quieta, quase esperando ouvir sua voz me pedindo que

ficasse. Entretanto, só escutei silêncio, nenhum dos dois tentou me deter. A distância até o carro

pareceu eterna, cada passo supunha um esforço. Quando por fim abri a porta, sentia vazia.

Pelo visto, Aurora não se moveu do lugar em todo o momento. Olhava intrigada, mas não

disse nada. O ar era pesado, quente e pegajoso, embora a ela não parecesse incomodar.

Quando arranquei o carro, perguntou por fim em voz baixa:

—Voltamos para casa?

Assenti.

—Sim —murmurei, embora de repente não entendesse como podia ter encontrado um

lugar para chamar de lar em um mundo sem Nathan— Sim, isso faremos.

���

Aurora seguiu calada quando entramos em casa. Logo tirou a roupa e colocou o pijama sem

sair de seus pensamentos. Eu a ajudei com gestos mecânicos. Não podia deixar de ouvir o

incessante eco da voz de Nathan pronunciando o nome de Aurora.

O nome de nossa filha.

Não, corrigi em seguida, Aurora era minha filha, só minha.

Agasalhei Aurora, apaguei a luz e fechei a porta de seu quarto. Fiquei apoiada na parede do

corredor.

Sim, convenci, era o correto dizer que nos deixasse tranquilas. “Como ocorre aparecer por

aqui!”

Repeti isso uma e outra vez com insistência, embora depois saísse ao jardim com a

esperança oculta de vê-lo aparecer. Tudo seguia em silêncio.

“Graças a Deus! — pensei, com teima — Pena não poder jogar na cara nossa vida uma

segunda vez. Na realidade eu adoraria fazê-lo, uma e outra vez! Insultá-lo, amaldiçoá-lo, gritar e

reprovar tudo, proibir que se aproximasse de nós.” Ao final me preparei para dormir

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mecanicamente, igual como ajudei antes Aurora a se despir. Passei várias horas às escuras, proibi

de pensar em Nathan, mas não podia deixar de ouvir sua voz. Soava mais rouco quando falava

comigo, embora cuidadoso em perspectiva o tom de voz tinha todos os matizes: irônico,

carinhosos, nostálgico, atrativo, ousado, despótico, cheio de remorso, frio, amável, arrogante,

tenro, inseguro. Parecia que não me falava um só Nathan, a não ser vários...

Muito mais penetrante que sua voz foi o som que despertou a primeira hora da manhã

seguinte de um sonho prazenteiro. No princípio me achava ainda tão dentro no sonho que não

sabia nem quem era. Nathan não aparecia nos sonhos, mas eu voltava a ser a jovem aspirante a

pianista que queria tocar ante os rigorosos olhos de distintos professores e não o conseguia.

Estava sentada frente ao piano e não podia levantar as mãos, e quando depois de um esforço

enorme por fim o obtinha, tinha os dedos tão rígidos que não podia tocar nenhuma tecla.

Voltou a soar o timbre da porta. Fui correndo para ela com o coração acelerado, sem saber

se ter medo ou desejar que fosse Nathan o que chamava.

Entretanto, quando abri, vi Cara diante de mim, bem vestida e penteada como sempre, com

um sorriso quente e em certo modo compassiva.

Senti vontades de fechar a porta no nariz. Era consciente de que minha reação era infantil,

mas não podia fazer outra coisa. Entretanto, quando me dispus a fechar, ela impôs com energia e

cruzou a soleira.

—Por favor, Sophie...

De todos os sentimentos que se desencadeavam em meu interior, o da obstinação era o que

se manifestava com maior insistência.

—Não quero ouvi-la —disse com a voz mais bronca— não quero saber que fazia Nathan

Grigori com você nem por que apareceu aqui. Será melhor que vá.

—Não pronunciarei o nome de Nathan —respondeu Cara— Mas eu gostaria de ver Aurora.

—Sua voz soava muito decidida, mas eu me interpus em seu caminho com a mesma

determinação.

—Não —disse— Não, não me parece bem.

Nesse momento me veio à cabeça a conversa telefônica com Nele, e o fato de que não

tivesse sido ela, a não ser Josephine, quem enviou Cara Sibelius a minha casa. Era o momento de

insistir nisso, mas não tive forças. Havia muitas coisas sem esclarecer, muitas coisas que me

superavam. Tinha a sensação de que todos meus temores e meu mal-estar foram desabar sobre

mim se tocava uma só coisa, como uma fileira de fichas de dominó onde basta que caía a primeira

para que caiam, uma detrás de outra, todas as demais.

Cara não tentou passar, mas tampouco retrocedeu nem um passo.

—Só quero...

—Não, por favor, vai!

De repente, um grito mais penetrante e mais forte que minhas encolerizadas palavras me fez

estremecer. Ao me voltar, vi Aurora no corredor. Seus olhos exagerados refletiam o mesmo pânico

que expressava sua voz à tarde que chegamos e viu o homem de negro.

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Série Nefilim 01

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—Não pode ir! —Já não gritava, sussurrava.

—Mas...

Antes que pudesse impedi-la, saiu correndo para Cara, abraçou-a com força e se estreitou

contra seu ventre. Na realidade sempre me alegrou de que tivesse tanta confiança com Cara, mas

nesse momento senti uma pontada de dor. No fundo, sabia que Cara e eu não éramos rivais, e

mesmo assim não pude evitar pensar: “por que fica ao seu lado e não ao meu? Eu sou sua mãe!”

A mãe que não a entendia.

A mãe que tinha medo.

A mãe que não era o bastante boa.

Tentei afugentar aqueles pensamentos porque, de repente, uma dúvida despertou minha

inquietação: acaso Cara falou de Nathan? Sabia Aurora que seu... pai estava perto?

Além disso, não era seu pai. Não ganhou esse título. Só a gerou.

—Não quero que se vá, por favor, mamãe, tem que ficar. —Abraçou-a mais forte, enquanto

eu me esfregava as mãos com impotência.

—Sophie —Cara tentou mostrar tranquila, imparcial— Sophie, não temos por que falar de...

ele, se não querer. Não temos por que remover o passado. Eu me limitarei a seguir vindo todos os

dias para que possa trabalhar.

A mera ideia de me sentar frente ao computador e escrever textos como se não tivesse

passado nada me resultava absurda.

—Sei que há muitas coisas que agora mesmo não entende, mas...

—Não entendo nenhuma palavra! —exclamei levantando a mão com um gesto ameaçador.

—Mas insisto em que eu gostaria de estar perto de Aurora — esclareceu sem mais.

Era parente de Nathan? Vinha daí seu interesse por minha filha?

Entre suspiros, repassei as três possibilidades que ficavam. Podia aceitar a proposta de Cara

e fazer como se não tivesse passado nada a noite anterior. Podia me opor aos desejos de Aurora e

despedi-la. Ou podia fazer a multidão de perguntas que me atormentavam. Expressar.

Faltavam forças e coragem para esta última opção. E ainda era mais impensável fazer algo

que fizesse mal a Aurora, assim só ficava a primeira possibilidade.

Fechei a porta com um forte golpe, enquanto Aurora levava Cara ao salão.

—Nenhuma palavra sobre ele — murmurei, e ocultei minha humilhação, desconcerto e

vulnerabilidade depois de um gesto de indiferença.

Cara assentiu e tampouco transmitiu nenhum sentimento.

—Prometo isso.

���

Visto em perspectiva, parece ridículo que nesse momento chegasse a acreditar que íamos

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Série Nefilim 01

99

recuperar a normalidade tão facilmente. No princípio me pareceu possível, mas o preço que

paguei foi muito alto. Ia pela vida como sonâmbula, e tinha todos os sentimentos como mortos.

Aurora o notava, Cara o notava, e eu também notava. Elas duas passavam a meu lado nas pontas

dos pés, como se estivesse doente e conviesse me manter afastada de tudo o que pudesse me

perturbar. Tudo o que fazia ou dizia me parecia absurdo, como se tratasse de uma peça teatral em

que cada um seguia interpretando seu papel embora o cenário ardesse em chamas.

Caía em meu trabalho até que me saía fumaça da cabeça. Nunca produzi tantos textos em

tão pouco tempo, mas assim que apagava o computador já não sabia o que escrevi.

As tarefas do jardim as tinham completamente abandonadas, e me punha de mau humor

quando tinha que arrancar a raiz e as ervas daninhas dos canteiros de flores e a grama. O fazia

com tanta raiva que, depois, em lugar de apresentar um aspecto mais cuidado, parecia que tivesse

passado pelo jardim uma manada de rinocerontes. Enquanto me lavava as mãos cheias de terra,

Aurora me observava em silêncio. Notava que meu comportamento a alterava, mas não podia

explicar. Como ia explicar o que dizer que seu pai apareceu de um nada? E com sua babá?

Quase não podia suportá-lo, e procurava a ocasião de fugir seu olhar. Fui a pé à loja de

Josephine, e ao sonar a campainha, como de costume, tive a sensação de que entrava em um

mundo maravilhosamente normal no que só contava se as pessoas tinham leite suficiente para o

café da tarde.

Comecei a colocar coisas na cesta da compra, sem critério, entre elas muitas, que não

necessitava: compota de maçã, cereais torrados e vários cilindros de filme transparente.

Josephine me observava com um sorriso que parecia afetada.

—Não tem bom aspecto. A afetou o do morto?

Em um primeiro momento, não tinha nem ideia da que se referia. Distraída, coloquei as

coisas junto à caixa.

—Não, não — murmurei.

—Acabo de fazer um chá —disse— gosta de uma taça?

—Não —respondi— tenho... algo... algo... —Fiz um esforço para controlar a gagueira— O

que disse de um morto?

Suspirou.

—Disseram que você encontrou o cadáver. Sinto muito. Deveu ser uma experiência terrível...

Instintivamente fechei os olhos, mas não encontrei o consolo da escuridão que procurava. A

imagem me assaltou imediatamente: vi o cadáver branco, os olhos fixos que refletiam o terror, e

as mãos sujas e escoriadas com as que se defendeu até o último momento.

Os acontecimentos dos últimos dias substituiriam aquela imagem, mas não podia apagar a

de minha lembrança. Estremeci.

—É certo —disse com voz rouca— eu o encontrei. Dizem que... que sangrou.

Não sabia se podia contar ou se a polícia ainda ocultava os detalhes da causa da morte, mas

Josephine assentiu com o sobrecenho franzido.

—Tenho lido. Não queria recordar desnecessariamente. O que passa é que como tornaram...

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Série Nefilim 01

100

Interrompeu e lançou um suspiro.

—Voltaram para que? —perguntei, e tentei conter o tremor da voz.

Josephine não disse nada mais, mas o li em seu olhar, em que se mesclavam a compaixão, a

repugnância e a preocupação.

—Desapareceram mais pessoas?

Seguia sem dizer nada, só me olhava.

—Não só desapareceram —deduzi de seu silêncio— Já apareceram os cadáveres... —

adicionei com um fio de voz.

Por fim assentiu.

—Esta vez foram dois excursionistas —anunciou— saíram para caminhar juntos... mas não

sangraram, a não ser... —Respirou fundo, parecia que custava falar— Os degolaram —acrescentou

ao final em um tom apenas audível.

Comecei a passar mal, tinha a sensação de que não podia permanecer nem um só instante

mais na estreita loja sem gritar ou me asfixiar.

—Tenho que ir — me apressei a dizer, e evitei olhar à prateleira de imprensa, onde seguro

que havia grandes titulares sobre os terríveis sucessos. Logo saí correndo.

Percorri a costa de volta quase sem fôlego. As asas das bolsas de plástico me cravavam nos

dedos, mas não diminuí a marcha porque ao menos a dor me distraía dos pensamentos escuros.

Quando cheguei à casa, deixei as bolsas e recuperei o fôlego. A dor no peito diminuiu um

pouco. No final um momento pude abrir a porta e atravessar a soleira. E então o ouvi: senti como

um golpe e deixei cair às bolsas.

O pacote de cereais se abriu, as maçãs puseram a rodar diante de mim. Os ovos, que já não

tinha consciência de ter comprado, quebraram. As gemas amarelas caíram espessas nos ladrilhos

claros.

Escutei atônita.

Não, os sons que tanto me aterrorizavam não eram uma invenção. Fui correndo tão rápido

ao salão que escorreguei com os ovos quebrados. Caí ao chão e me machuquei.

Ainda se ouvia a música.

—Não! —gritei—. Não!

Já não reconhecia minha voz. Soava profunda, como um bramido.

O que ali soava era Serguei Rajmáninov. A sonata em sol menor para piano e chelo. Esse

maravilhoso fragmento do segundo movimento, o Allegro scherzando, uma passagem que soava

extraordinariamente melódico depois de uns primeiros compasso confusos, trepidantes.

Faltava o piano, cujas notas tive que imaginar, mas a música de chelo cessou. Cada nota era

muito dolorosa, como se o arco não acariciasse cordas, a não ser minha alma nua, e deixasse

profundas feridas sangrentas.

Fazia anos que não ouvia aquela música, e naquele momento essas notas evocavam todo

um mundo. Apareciam imagens diante de mim que enterrei no mais profundo de meu ser: vi

percorrendo os corredores de Mozarteum quando vi Nathan pela primeira vez junto a Matthias

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Steiner, quando nos encontramos no refeitório da universidade. Recordei a insônia, a sensação de

felicidade, a inquietação, o desconcerto, os altos voos no piano, o primeiro beijo ao amanhecer, a

única noite nos braços de Nathan. E voltaram a me invadir o insondável desespero e o vazio que

senti quando desapareceu sem mais e que aprendi a aguentar ao nascer Aurora.

—Não! —voltei a gritar.

O medo e também a tristeza —que me provocava um nó na garganta— se converteram em

raiva. Como podia! Disse abertamente a Nathan que não queria saber nada dele e que não

voltasse a aproximar de mim! E agora apresentava ali sem mais e se sentava em minha sala a tocar

o chelo?

Avancei para o salão feita uma fúria. Apenas me dava conta de que Cara saiu a meu

encontro e levantava as mãos para me acalmar. Provavelmente, queria me advertir da imagem

que estava a ponto de presenciar, como se à força de persuasão acreditasse que podia mitigar o

espanto.

Fiquei gelada.

Quem estava tocando o violoncelo de maneira magistral não era Nathan. Era Aurora.

���

A música de chelo emudeceu, talvez porque Aurora deixou de tocar, ou porque o zumbido

de minha cabeça sossegava tudo. Detive junto ao marco da porta.

Um sonho, só era um sonho... ou melhor, uma alucinação. Isso era. Tinha que ser isso.

Estava imaginando tudo. Provavelmente estava doente. Fazia semanas que ouvia e via coisas que

não existiam.

Entretanto, as cascas de ovo que ficavam grudadas aos dedos eram reais. A casa, em cujo

salão me encontrava, também. E também Aurora, que estava ali sentada com o chelo entre as

pernas e que era tão pequena que não podia agarrar bem o instrumento. Sim, tocava o chelo, e

não como uma principiante que arrancava das cordas gemidos dolorosos para os ouvidos, a não

ser com a mesma perfeição que Nathan. Não se apreciava nem uma só hesitação, nenhuma nota

dissonante, e no meio do torvelinho de sentimentos me invadiu o imperioso desejo de ter um

piano para fazer um tudo daquela metade. Durante os últimos anos não senti falta do instrumento

para o qual vivi em minha juventude, ou mas bem me proibi pensar, mas ao ver as partituras

frente a mim recordei a digitação. Sim, agora vem ré bemol, a bemol, associação de fa, a bemol, ré

bemol, meu bemol, associação de Fa...

—Não! —gritei de novo, essa vez com uma voz menos sombria e penetrante que antes.

Aurora deixou cair o arco. Levantou a vista como se a tivesse despertado de um sonho. No

princípio seu olhar de olhos azuis estava ausente, logo se encheu de culpabilidade.

Cara se aproximou de mim, quis dizer algo, mas antes que pudesse articular a primeira

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palavra, eu perguntei em sussurros:

—De onde tirou o chelo?

Assim que pronunciei essas palavras fui consciente o ridículas que soavam. O que na

realidade me preocupava era outra coisa. Como podia tocar o chelo com a mesma mestria que seu

pai?

Entretanto, resultava impossível expressar em palavras um fato tão desconcertante.

—É o chelo de Nathan — afirmei, antes que Cara pudesse responder.

—Sophie, tem que me acreditar, ele não queria. Foi minha ideia. A suas costas hei...

“Não tem nem ideia.”

—Terá que dizer.

“Os sinais já não são tão frequentes porque eu estou a seu lado.”

Tinha a sensação de que o espaço que me rodeava começava a dar voltas lentamente, mas

não me dava por vencida. “Não fique histérica! Não perca os estribos”, disse.

Passei junto a Cara. Dirigi a Aurora sem mediar palavra, tirei o chelo das mãos e o guardei na

capa, com brutalidade e sem me importar que pudesse danificar. Sabia que os músicos odiavam

que os profanos tratassem seu precioso tesouro como se fosse um aspirador, mas naquele

momento tinha vontade de arrancar todas as cordas.

—Sophie — insistiu Cara. Aproximou de Aurora e acariciava a cabeça para acalmá-la— é o

momento de que...

—Fique aqui — a interrompi em um tom gélido.

Agarrei a capa do chelo e saí correndo. As compras seguiam no corredor, no chão. Limpei os

dedos pegajosos na jaqueta.

Lancei o chelo com brutalidade ao assento traseiro do carro, agradada em segredo pelos

ruídos metálicos que provoquei. Vi que Cara e Aurora me seguiram e olhavam com perplexidade

da porta do jardim. Cara pôs as mãos sobre os ombros de Aurora, como se quisesse consolá-la.

Dei a volta rápido e arranquei o carro. A minha volta da loja de Josephine estava caindo a

tarde, e agora já a escuridão começava a eclipsar os restos de luz avermelhada que tingiam de

dourado a superfície encrespada do lago. Quando atravessei o bosque, já não resplandecia sob as

últimas luzes, mas sim descansava pálido e frio atrás de mim.

Olhei uma e outra vez pelo retrovisor a capa do chelo. Jogava pestes contra ele como se o

instrumento fosse um ser humano contra o que podia destrambelhar e me rebelar. No

cruzamento com a rua principal estive a ponto de bater com um pequeno ônibus. O condutor

gritou algo e gesticulou com os braços. Levantei a mão a modo de desculpa. A tremenda tensão se

foi dissipando pouco a pouco, ao menos até que cheguei a casa de Cara, porque ao deter o carro

na porta comecei a me irritar de novo. Saí, agarrei o chelo do assento traseiro e fechei de uma

portada. Nem sequer o ar da tarde conseguia aliviar o calor de meu rosto aceso.

Dirigi à entrada da casa, chamei uma vez, dois, e até uma terceira. Ninguém respondeu. Fui à

esquina, vi que pelo menos havia luz em uma sala, que, se não recordava mal, era a sala. Voltei a

chamar, e de novo ninguém me abriu.

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—Não vai escapulir tão facilmente! —gritei, furiosa.

Passados outros cinco minutos comecei a esmurrar a porta.

—Nathan! Nathanael Grigori! Abra de uma vez! Sei que está aí. Como ocorre dar seu chelo a

minha filha? Quem acha que é para aparecer assim, sem mais? Canalha! Maldito bastardo! É...!

Gritei até ficar afônica, e quando já não pude continuar, rompi a chorar. Podia vencer a

histeria, mas não a profunda tristeza e o desespero que me assolavam.

—Maldita seja! —Sequei as lágrimas dos olhos—. Merda, merda, merda!

Quando ao fim fiquei em silêncio e deixei de soluçar, pareceu ouvir um ruído. Não estava

segura de onde procedia, mas deixei o chelo na entrada e apareci na esquina do jardim. Na

penumbra, os sebes altos pareciam uma parede negra, e o lago com nenúfares, um buraco. Não se

via ninguém.

Quis retornar à entrada e voltar a chamar, mas então voltei a advertir esse estranho ruído.

Soava como um tinido de vidros, mas mais forte e ameaçador, e ao ouvir repetidas vezes surgiu

uma lembrança do mais profundo de minha memória. Esse tinido... já o ouvi antes... aquela vez

em Salzburg... no patamar de nosso piso... quando chamei à polícia, e os agentes descobriram o

sangue azulado...

Sem me separar da parede da casa, entrei no jardim e me dirigi à parte norte do terreno. O

limite não estava marcado nem por uma parede nem por uns sebes, mas sim por uns enormes

abetos como os de meu jardim. Não pude distinguir as duas figuras que se batiam diante das

enormes árvores e se fundiam quase completamente com a escuridão. O tinido e os ofegos eram

o único que me permitia saber que estavam ali.

Apareci e presenciei uma cena que fez me sentir igual a antes, ao surpreender a Aurora com

o chelo e contemplar algo que na realidade era impossível, algo que não podia ser a não ser uma

má jogada de meu cérebro doente.

Entretanto, meus sentidos não me enganavam, embora em meu foro interno desejava que

fosse assim. Diante de meus olhos havia dois homens liberando uma encarniçada luta... com umas

espadas enormes.

���

Notei que me sobrevinha uma risada nervosa que finalmente brotou de minha garganta.

Talvez fora expressão da histeria, ou mera diversão. Se o que tinha diante de meus olhos era real,

e não uma alucinação, não podia ser a sério. Era uma paródia, uma ridícula representação de dois

homens adultos que queriam jogar como meninos pequenos. Ensaiavam para uma peça de teatro,

queriam dar uma alegria a seus filhos, tinham uma afeição desatinada...

Meus pensamentos se viram interrompidos.

O fragor das espadas era mais forte que minha risada. E não se aproximavam o um ao outro

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104

como se brincassem, a não ser com raiva, com decisão e sem piedade. A risada me engasgou

quando a luz da lua caiu sobre os dois e sob o pálido resplendor azulado pude vislumbrar seus

rostos. Não sabia o que me dava mais medo, se o fato de reconhecê-los aos dois —eram Caspar

von Kranichstein e Nathan— ou seus rostos desencaixados pelo ódio, a raiva e a tensão. Parecia

que o ar que os rodeava cintilasse, como se estivesse carregado de eletricidade e criasse ao redor

dos dois homens uma esfera que impedia que nenhum espectador pudesse aproximar sem pôr a

arder e acabar carbonizado. Retrocedi, ou talvez uma força invisível me jogou contra a parede da

casa.

Tinha a cabeça a ponto de explodir, mas não podia deixar de olhá-los. As peculiares espadas,

que pareciam tiradas de um museu medieval —eram de aço, chegavam à altura do quadril e

luziam um punho adornado com pérolas e uma folha muito afiada—, já não eram o que mais me

desconcertava. O que mais me impressionava era a força, uma força sobre-humana, com a que

investiam e golpeavam. Em suas mãos parecia que as espadas não pesassem, embora

provavelmente o só feito de segurar o precioso punho decorado exigisse um esforço desonesto. O

ritmo de seus movimentos resultava igual de incrível: precipitavam- um para o outro, retrocediam,

saltavam, davam a volta, levantavam as armas e as deixavam cair, agachavam e voltavam a

levantar. Era como se aquele grotesco baile se acontecesse diante de mim a câmara lenta. Quando

me parecia ver cair uma espada, já a pagavam. Trocavam de posição em poucos segundos,

percorriam distâncias de quatro, cinco metros com um só salto.

Era um espetáculo horrível, e ao mesmo tempo fascinante e cativante. Não recordava ter

visto nunca nada tão bonito, tão delicado e elegante face à crua violência. Cada movimento

parecia formar parte de uma coreografia aperfeiçoada com esmero, sim, como um complicado

exercício acrobático que só podia executar atrás de ensaiar cada movimento com grande esforço e

dedicação.

Embora reconheci Caspar e Nathan, à medida que passava o tempo me pareciam dois

autênticos desconhecidos, como se seus corpos não fossem mais que modelos de uma perfeita

animação por computador.

Apesar da luta, falavam entre si, Nathan com seu habitual sussurro e Caspar com esse

resmungo metálico que era tão desagradável aos ouvidos. Em um primeiro momento eu estava

muito aturdida para entender o que diziam. Na realidade, entendia tão pouco como se falassem

um idioma estrangeiro. Entretanto, nesse momento, tentei me concentrar com todas minhas

forças para desentranhar o significado de suas palavras.

—O que, já teve suficiente? —burlou Caspar.

—Não pode me vencer, sabe —respondeu Nathan.

—Quem disse que queira ganhar ? De verdade acha que esta é a verdadeira luta? Isto não é

mais que um passatempo... para ir entrando em calor.

—Então, como é que está tão fatigado?

—Fatigado eu? Poderia seguir durante horas. Acaso tem medo?

—De você seguro que não!

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Enquanto falavam, mantinham certa distância. Logo empreenderam um novo ataque,

embora sem obter que a balança decantasse. Estavam completamente igualados. As pessoas

retrocediam, mas no final poucos segundos voltava a levar vantagem ao outro, e ao reverso. Em

um momento dado, parecia ver que Caspar arranhava ao Nathan no braço com a espada e me

tampei a boca com a mão para conter o grito. Mas Nathan continuou lutando como se não tivesse

passado nada. O tecido da camisa estava rasgado, mas ele não sangrava. Nenhum dos dois dava

sinais de cansaço. Parecia que o ritmo, em lugar de diminuir, aumentava. Seus movimentos eram

cada vez mais ágeis, os giros mais rápidos e os saltos mais altos. Era como se reunissem as

faculdades de todos os esportistas de elite: saltadores de altura, velocistas, patinadores artísticos.

Em um momento dado, já não pude continuar olhando e fechei os olhos até que, de

repente, o fragor se extinguiu.

—Sophie!

Quem pronunciou meu nome era Nathan, mas quando abri os olhos vi que quem se dirigia

correndo para mim não era ele, a não ser Caspar. Seu rosto parecia pálido sob a luz da lua, e seus

lábios torcidos desenhavam um sorriso sarcástico. Aproximou com as mãos em alto e então

vislumbrei o brilho da espada. Não queria me render sem me defender, assim tentei me agachar,

mas pensei que me faltariam forças e agilidade para esquivá-lo.

A espada passou roçando a toda velocidade. Estava segura de que ia partir o crânio, mas

quando se achava a só uns centímetros de meu rosto, parou.

O sorriso do Caspar se voltou mais amplo. Seu aspecto já não resultava ameaçador, mas sim

bem como o de um jovem descarado que quer alardear de seu brinquedo preferido e o que mais

diverte é que os outros tomem a sério.

Vi que abria a boca para dizer algo, mas antes que o primeiro som chegasse a meus ouvidos

apareceu atrás dele uma sombra escura. Caspar se afastou a um lado. Eu tentei aproveitar a junta

para me escapulir e fugir, mas justo quando me dispunha a saltar, senti um golpe na cabeça. O

mundo inteiro começou a dar voltas, já não sabia nem onde estava o chão, e tampouco se seguia

apoiada contra a parede, ou cai em cima dela, ou ela em cima de mim. Tudo se voltou negro.

Capítulo 7

Despertou um leve balanço e, ao abrir os olhos, tive a certeza de que me achava deitada em

uma barco que avançava de noite sem rumo por um escuro lago.

Muito longe da borda... sobre águas de uma profundidade inescrutável... as ondas

tamborilavam contra a proa... eu tinha a mão pendurando por cima da amurada e acariciava a

superfície fria da água... sem nada sobre mim salvo o céu estrelado...

Mas quando ao fim abri os olhos, o céu estrelado se converteu em dois abajures. Alguém me

iluminava diretamente do teto; a luz da outra me apontava para o rosto de um lateral. O abajur

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descansava sobre um armário junto ao sofá... sim... um sofá, muito mais cômodo e brando que a

dura madeira de uma barco. A almofada era o mais brando, embora não, não era uma almofada

porque se balançava com um leve movimento. Talvez daí viesse a sensação de balanço. De

repente ouvi uma respiração, era a minha? Em todo caso, os dedos que me acariciavam o rosto

com gestos tenros e queridos sim que não eram meus. Se antes me sentia sozinha em um lago

escuro e profundo, perdida, à deriva, nesse instante uma sensação de calor alagou meu corpo

transido de frio e todo se voltou bem-estar. Voltei a fechar os olhos e me entreguei ao roçar

daquelas mãos, sob as quais parecia que minha pele se fundisse e as deixasse transpassar a meu

interior, desenterrando lembranças e sentimentos até então ocultos. Lembranças de amor, de

sofrimento, de desejo abnegado, incondicional.

Não teria sabido dizer quando foi a última vez que me havia sentido tão protegida, sem me

preocupar com Aurora, sem sentir a pressão de que tinha que ser forte, por ela e por mim. A

pressão de que tinha que agarrar as rédeas de minha vida e as agarrar bem forte com as duas

mãos, de que não podia perder o controle, de que não podia me permitir debilidades, de que não

podia me abandonar e deitar sem mais... liberada, como agora, sem ter que tomar decisões nem

levar a prática.

Suspirei. Tudo era tão quente... tão depravado... tão agradável. Tudo era tão claro e tão leve,

que na realidade, mais que estar deitada, sentia nas nuvens, onde só existia a música que tocavam

as mesmas mãos que nesse instante me acariciavam, as mãos de Nathan, as mãos de meu

amado...

—Sophie... ai, Sophie.

O que se ouviu foi só um murmúrio, mas essa voz temerosa bastou para evocar uma imagem

em minha mente: a luta entre Nathan e Caspar, a forma em que se equilibraram um sobre o outro,

espada em mão, e o inalterável sorriso no rosto de Caspar quando se dirigiu para mim hasteando a

espada, resolvido a cortar a minha cabeça.

Incorporei e me dava conta de que levava todo esse tempo deitada sobre o colo de Nathan e

não sobre uma almofada. A mão, que continuava me acariciando o rosto, afastou. O calor

diminuiu imediatamente, a sensação de amparo, entrega.

—Não me toque!

Nesse instante notei uma pontada de dor. Se Caspar não me alcançou com a espada, com

que então? Talvez com o punho?

Nathan me olhou e ao pouco não pude evitar me sumir em seus olhos azuis preocupados,

tristes... cheios de amor.

—Não me toque! —sussurrei de novo. Em um abrir e fechar de olhos, seus traços se

endureceram e adquiriram um gesto inexpressivo e distante.

—Sinto muito. —Falava como um estranho— Não pretendia te ofender... só queria...

—O que passou? O que tem feito aí fora, no jardim? Por que enfrentou Caspar...?

Sentia incapaz de descrever a briga com palavras; ao recordá-la agora tudo me parecia muito

absurdo, uma completa loucura.

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107

Um expressão de preocupação escureceu seu rosto por um instante fugaz, mas depois me

perguntou com frieza:

—Que Caspar?

—Caspar von Kranichstein! —gritei— Ele... ele me ameaçou!

Nathan se separou de mim e ficou de pé. Por um momento me pareceu advertir que

tremiam as mãos, mas em seguida as guardou nos bolsos.

—De quem está falando? —perguntou sacudindo a cabeça— Eu não conheço nenhum

Caspar von Kranichstein.

Meus olhos percorreram todo seu corpo, mas não descobri nenhum sinal de luta. Estava tão

pálido como de costume, e em sua pele não se apreciavam vermelhidões nem feridas. Na roupa

negra tampouco se observava sujeira nem rasgões, e ele se movia com a agilidade habitual.

—Caspar von Kranichstein... e você... lutavam com espadas. —No fim pude pronunciar as

palavras, por absurdas que resultassem. Estava convencida de que passou, embora Nathan, com

expressão de reserva, repôs:

—Deve ter sonhado.

—Quando ia ter sonhado?

—Antes encontrei aí. Por pura casualidade. Estava caída no jardim.

—Por que ia A...

—Deve ter escorregado ao sair para me buscar —me interrompeu— Caiu, levou um golpe na

cabeça e perdeu o conhecimento.

Com um gesto instintivo levei a mão à nuca e notei um arranhão e um vulto na pele, mas por

muito lógicas que soassem as palavras de Nathan, eu estava convencida de que estava mentindo e

de que essa ferida não me provocou uma queda.

—Eu vi o que vi —insisti com teimosia.

Levantei devagar, procurando não realizar nenhum movimento brusco com a cabeça.

Entretanto, tinha a sensação de que alguém estivesse cravando uma faca ardendo na minha nuca.

—Mas isso é ridículo, Sophie! Não estará dizendo a sério que... —de repente se

interrompeu, como se minhas palavras sequer merecessem ser repetidas.

Durante um momento permanecemos calados, um frente ao outro, nos olhando. E então

nesse instante recordei por que fui a sua casa. Por Aurora... porque comecei a tocar o chelo... com

uma mestria como se levasse anos estudando.

Mas se agora contava, o que ia dizer? Que isso também sonhei ou que estava inventando

isso?

Abri a boca, mas depois voltei a fechá-la.

Já estava bem.

Não pensava deixar que tomasse por tola.

Se ele não estava disposto a dizer nada, eu buscaria uma maneira de descobri-lo por meus

próprios meios. Em seguida me ocorreu uma ideia, e rapidamente a ideia se converteu em um

plano.

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Olhei para o chão porque me parecia mais fácil mentir quando não tinha que sustentar seus

olhos azuis.

—Foi minha tolice vir até aqui —murmurei— Pensei... pensei que devíamos... que depois de

tanto tempo o mais sensato seria... mas é ridículo acreditar que... Além disso, tampouco sei se...

Minha gagueira não tinha sentido, mas ele não questionava.

—Me... dá um copo de água? —disse de repente.

Nathan assentiu, parecia um pouco desconcertado e ao mesmo tempo aliviado por minha

banal petição.

No tempo que ele abandonou a sala e foi procurar um copo para me servir a água, eu

aproveitei para procurar meu celular no bolso do casaco, pulsar uma tecla e escondê-lo debaixo de

uma das almofadas do sofá.

Ao pouco Nathan voltou com o copo de água, mas em lugar de agarrá-lo, levantei as mãos

com gesto de rechaço.

—Já não quero água, e além disso tenho que ir —disse em um tom frio— Equivoquei-me

vindo. Não te incomodo mais.

A mão que sustentava o copo voltou a tremer de maneira quase imperceptível. Era possível

que estivesse perdendo a serenidade?

—Sophie, eu...

—Não! —interrompi—. Talvez tenha razão e é certo que tenho caído e perdi o

conhecimento. Acredito que é melhor que me deite na cama. Dói a minha cabeça e estou um

pouco enjoada.

—Sophie, seriamente que não queria...

Sem esperar a que terminasse a frase, dirigi à porta. Ele me seguiu até o corredor, e depois

parou.

Uma vez na rua, suspirei. O ar frio da noite me fazia tiritar, mas não era isso o que me

incomodava; era a sensação de desgosto que tinha enquanto examinava com cuidado o jardim em

busca de rastros da briga. Na escuridão não consegui distinguir se tinha pisadas na grama. Ao

avançar às escuras para a sebe, estive a ponto de tropeçar com um objeto negro. Fiz mal ao me

golpear na tíbia e saí correndo, embora mais pelo susto que pela dor. Olhei em todas as direções

com a repentina sensação de que alguém que estava observando e colocou aquele obstáculo em

meu caminho de propósito.

Logo, entretanto, dei conta de que se tratava da capa do chelo, que eu mesma deixei ali.

Agarrei, levei ao carro e me sentei, mas ao invés de arrancar o motor e partir, fiquei um momento

esperando.

Contei lentamente em silencio até cem.

“Já deve ter passado tempo suficiente”, disse.

Voltei a sair do carro, fechei a porta com muito cuidado e não foi necessário chamar o

timbre uma segunda vez. Nathan me esperava com a porta aberta e expressão de assombro.

—Sophie...

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Série Nefilim 01

109

—Não se preocupe, logo parto. É que não encontro meu celular, deve ter caído da bolsa.

Entro um momento para buscá-lo.

Abri passo rapidamente por seu lado até o salão. Fingi durante uns segundos que procurava

o celular nos cantos do sofá antes de encontrá-lo, como por acaso, debaixo de uma almofada.

—Aqui está! —Aos meus ouvidos minha voz soou um tanto artificial, mas Nathan, que

estava apoiado no marco da porta, não pareceu precaver.

—Quer que te leve para casa? —perguntou— Digo por... pela dor de cabeça...

Em sua voz já não se percebida a desapegada frieza de antes. Possivelmente agora estava

mentindo, como eu com o conto de que perdi o celular. Curioso como era aquele matiz de sua voz

ao som de um chelo —tenro e triste de uma vez— evocava todo um universo: Salzburg, a

primavera, a música, os passeios, a terraço de pedra, os sebes de Mirabellgarten.

Eu neguei com gesto mal-humorado. Permitia-me que cegasse a nostalgia, jamais

conseguiria averiguar o que era o que estava ocorrendo.

Logo estaria bem, disse-me de novo.

Não seguiria consentindo que tomasse por tola. E a Cara tampouco.

Quando ela — a diferença de Nathan— tentou em repetidas ocasiões me esclarecer isso

tudo, eu não a escutei.

—Não se incomode.

Passei junto a Nathan a toda pressa. Não tentou me deter.

No final de um momento arranquei o carro e uns duzentos metros mais à frente voltei a

parar. Parei em uns dos múltiplos estacionamentos que habilitavam para os turistas, que estavam

repletos durante o dia e de noite ficavam meio vazios. A maior parte das casas dos arredores

estavam às escuras; só em algumas salas se via a luz azulada do televisor.

Com as mãos trementes procurei o celular na bolsa e voltei a pressionar uma série de teclas.

A diferença de Nele, eu utilizava meu telefone para ligar, não para fazer fotos nem para escutar

música. Mas no sétimo aniversário de Aurora, Nele me ensinou tudo o que se podia fazer com

meu celular. E assim tínhamos gravado uma canção que Aurora aprendeu na escola.

Não sabia se havia feito tudo certo, mas quando acabou a gravação da canção, ouvia ao

menos um ruído de fundo. Parecia que funcionou. Agora só ficava saber se Nathan ligou para Cara

para contar o que ocorreu e dizer que eu estava voltando para casa. Isso era o que eu esperava.

A gravação durava uns oito minutos. Os sete primeiros só ouvia um ruído de fundo, e então,

quando perdi toda esperança, ouvi ao longe, como se encontrasse a uma distância infinita, a voz

de Nathan.

Assim em efeito, eu estava certa.

A voz não era clara. No princípio só o ouvia falar, mas não entendia o que dizia. No final uns

quarenta e cinco segundos, voltei a ouvir o ruído, e depois se cortou, fosse porque nesse instante

eu havia tornado a entrar na casa ou porque a memória do móvel estava cheia .

Escutei a gravação uma e outra vez, tentando me concentrar em cada uma das palavras, até

que ao final decidi procurar uma caneta no porta-luvas e comecei a escrever as poucas palavras

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Série Nefilim 01

110

que entendia no verso de um tíquete de compra velho e enrugado que havia casualmente no

carro. Depois de escutá-la três vezes me pareceu que consegui captar o conteúdo da conversa, ao

menos a grandes traços.

“Certamente... deixado partir. O que... que fizesse? Obrigá-la? Dizer tudo... não, não...

acompanhasse... não acredito!”

Li cismada uma e outra vez as palavras que rabisquei. Ao que parecia Cara —estava

convencida de que só podia ser ela— não entendia por que Nathan me deixou partir.

A seguir ouviu uma frase que entendi à perfeição: “Não fará nada.”

Referia a Caspar von Kranichstein? Acaso tomou comigo?

Olhei várias vezes pelos vidros do carro. De repente tive a sensação de que havia alguém

rondando ao redor, mas ao acender as luzes, o único que vi foi um gato que me olhou assustado

com seus olhos amarelos.

Escutei de novo a conversa tratando de me concentrar nas três frases indecifráveis que se

ouviam antes que a gravação se parar com brutalidade.

“Não... contar... não... inteirar... que... somos... Felim.” Para ouvir essa última palavra me

deu um caiu o coração. Provavelmente, embora a gravação fosse melhor, tampouco a teria

entendido. Devia ser uma palavra importante, pensei, do contrário Nathan não a teria sussurrado

dessa forma.

“Felim.” Ou talvez “Filim”.

Voltei a escutar o final da gravação outras três vezes, mas não esclareci mais nada. O que

queria dizer? Ao melhor as frases que disse eram: “Não posso contar a verdade. Não pode inteirar

de que somos. Somos Felim.”

Mas o que significava a palavra Felim?

Finalmente deixei o celular no assento do carona e me dirigi à casa.

���

Ao chegar, toda a casa estava às escuras. Só na janela da cozinha se via uma tênue luz. Cara

colocou Aurora na cama e estava me esperando ali. Tinha diante uma xícara de chá, mas nem

sequer o provou. Removeu a colherinha com um gesto nervoso quando entrei na cozinha. Quase

parecia ouvir as imperiosas perguntas que queimavam os lábios, mas se conteve e eu me limitei a

dizer:

—Pode ir.

Levantou rapidamente. Ao passar a meu lado, eu instintivamente me separei. Seu rosto se

estremeceu com um gesto de compaixão.

—Sophie...

—Peço isso, por favor. Parte !

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Ela desistiu. Ouvi que seus passos se afastavam, o golpe da porta e logo o rugido do motor

de seu carro. Ao fazer de novo o silêncio, eu fiquei de pé na porta da cozinha. Não sei quanto

tempo permaneci ali antes de aparecer no quarto de Aurora e subir ao estúdio. Não acendi a luz

do corredor para não despertar Aurora. A cada passo que dava na escuridão, voltava mais intensa

a sensação de que estava fazendo algo às escondidas, um pouco proibido.

Quando ao fim cheguei ao estudo, fechei a porta e liguei o computador portátil. O brilho da

tela me deslumbrou. O tempo que demorou o modem, com um estridente assobio, em conectar a

Internet me pareceu uma eternidade. Nas últimas semanas a conexão tornou-se o mais instável:

umas vezes podia navegar e enviar mensagens sem problemas, mas outras passavam horas sem

poder estabelecer nenhum contato com a web.

Hoje funcionava à perfeição. Abri a página de início do Google, teclei primeiro a palavra

“Filim” e, ao ver que os resultados de minha busca não eram satisfatórios, então teclei “Felim”.

Descobri que era um nome próprio, mas não consegui esclarecer o que quis dizer Nathan.

Apoiei o queixo sobre as mãos e fiquei pensativa frente à tela. Que alternativas tinha? Devia

voltar a escutar a gravação do móvel? Já havia feito isso no carro como dez vezes e o único que

consegui entender era esse “Felim” que Nathan havia meio resmungado.

Possivelmente, me disse, podia levar a gravação a um estúdio de som para que a

analisassem corretamente. Mas para isso devia esperar ao dia seguinte.

“Filim. Felim.”

Então me ocorreu que podia provar a escrever o de outra maneira.

“Philim.”

Teclei a primeira letra e, de repente, ouvi umas pegadas a minhas costas. Sobressaltei, e

nesse instante penetrou uma luz pela fresta da porta. O trinco começou a inclinar e a porta se

abriu lentamente. Depois dela apareceu Aurora descalça. Seus cabelos se viam avermelhados sob

o reflexo do abajur do corredor, mas seu rosto ficava na penumbra.

Voltei a ter a sensação de que estava fazendo um pouco proibido, sobretudo quando Aurora,

que estava olhando, deslocou o olhar para o computador. Podia ver desde essa distância a palavra

que estava procurando?

Eu fechei a toda pressa a tampa e forcei um sorriso.

—Como é que não está dormindo, tesouro?

Aurora agarrou com as mãos ao marco da porta e ficou nas pontas dos pés. Não sei se o fez

porque o chão estava frio ou porque estava tensa.

—Esteve na casa de Nathan —disse.

Eu saltei. Pronunciou o nome. Seu nome. É que o conhecia? Sabia quem era? Seu pai... ou

não... o homem que sete anos atrás me abandonou não só , mas também a ela, sem dar nenhuma

explicação.

—Amanhã falaremos disso, certo? Agora, por favor, vai à cama. —Nesse momento

empreguei um tom de voz mais duro.

Aurora pousou os calcanhares no chão e lentamente deu meia volta. Quando já avançou uns

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112

três passos, voltou:

—Nefilim —disse de repente. Chamamos-nos... chamam “nefilim”.

Olhei boquiaberta e um calafrio percorreu minhas costas. Aurora teve algumas atitudes

inquietantes nas últimas semanas, e agora voltava a me inspirar essa mesma inquietação. Mas a

isso acrescentava outra coisa: a sensação de que eu estava excluída. Ela sabia do que falavam

Nathan e Cara. Eu não.

—A que se refere? —perguntei em um tom afetado.

—Ao que queria procurar. Os nefilim.

Subi a tampa do portátil só para mostrar que o apagava e me levantei rapidamente da

cadeira.

—Só estava procurando documentação para meu livro. Mas posso deixá-lo para amanhã. A

verdade é que estou cansada.

Acariciei o cabelo, mas ela fugiu e se dirigiu para seu dormitório. Eu a segui até a porta e de

ali vi que se metia na cama e cobria com o edredom até o pescoço. Nesse instante me invadiram

sentimentos contraditórios: por um lado sentia uma necessidade quase irreprimível de entrar e

dar um beijo de boa noite; mas, por outro, estava muito emocionada para me aproximar dela.

Reprimia-se esses sentimentos encontrados, conseguiria me dominar, mas se me deixava levar por

um sentimento e era por meu temeroso amor por Aurora, não poderia resistir o insuportável

impulso.

Balancei sobre uma e outra perna com um gesto nervoso.

—Apago a luz —disse— para que possa dormir.

Já havia entrecerrado a porta, quando de repente Aurora sussurrou:

—Se quer saber mais coisas sobre os nefilim, procura na Bíblia. Livro da Gênese, capítulo

seis, versículo quatro.

Avancei, como antes, às escuras pelo corredor. Até que não cheguei a meu dormitório e

fechei a porta atrás de mim, não acendi a luz. Talvez tivesse sido mais simples voltar a subir a

tampa do portátil e procurar no Google a palavra “nefilim”, mas lembrei que entre a infinidade de

livros de meu pai havia também uma Bíblia. Tirei-a da livraria. Estava desgastada pelo uso e tinha

as capas desvencilhadas. Tanto a leu meu pai? Ou é que se tratava de um exemplar velho que

passou já por muitas mãos?

Eu não era nenhuma perita no assunto das Sagradas Escrituras, mas sabia que Gênese era o

primeiro livro. Fui passando as folhas até deixá-lo aberto pelo sexto capítulo; era como se uma

densa nuvem de pó surgisse de entre as páginas e me envolvesse em seu interior. Umedeci os

lábios ao notar que o pó me penetrava na garganta e isso me ressecava.

“Quando a humanidade começou a multiplicar sobre a face da terra e nasceram filhas, viram

os filhos de Deus que as filhas dos homens vinham bem, e tomaram por mulheres às que

preferiam dentre todas elas. Os gigantes existiam na terra naquela época, e também depois,

quando os filhos de Deus se uniam às filhas dos homens e elas davam filhos. Estes foram os heróis

da antiguidade, homens famosos.”

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Li o fragmento uma e outra vez, mas não entendia nada. Sentei no sofá, coloquei a Bíblia a

meu lado e peguei o telefone. Quando comecei a estudar musicologia depois de nascer Aurora,

não tive apenas relação com outros estudantes. Mas em uma ocasião tive que fazer um trabalho

com um estudante de música sacra e a partir de então nos falávamos muito de vez em quando.

Algumas vezes deu uma mão com as biografias de músicos. Era um organista entregue e escreveu

a tese sobre o profundo teológico de algumas cantatas de Bach.

Assim que deu o sinal, respondeu ao telefone sobressaltado.

—Sim? —gritou.

—Perdoa que incomode a estas horas.

—Quem é? —perguntou com inquietação.

—Sophie... Sophie Richter.

—Deus Santo. Sabe que horas são?

—Sinto —repeti— Não queria despertar.

Exalou um suspiro afetado; sempre foi uma dessas pessoas histriônicas que parece que

celebrem em toda regra todas e cada uma das emoções que têm.

—Não estava dormindo. O que ocorre é que, quando soa o telefone em plena noite, o

primeiro que pensa é que aconteceu algo terrível.

—Só queria fazer uma pergunta. —Não sabia nem que hora era. Perdi a noção do tempo.

—Venha, dispara — grunhiu com inapetência, embora em certo modo adulado de que

necessitasse sua ajuda.

—O assunto é o seguinte — comecei a dizer, e expliquei em poucas palavras que estava em

pleno processo de documentação e que precisava recolher informação sobre os nefilim, esses

seres que ao parecer se mencionavam na Gênese.

Ele voltou a suspirar com afetação.

—Pensei que estava escrevendo biografias de músicos.

—Sabe algo do assunto?

Ao falar quebrava a minha a voz. Tinha os nervos tão alterados que dava a impressão de

que, em qualquer momento, ia começar a chorar, ou a rir, ou às duas coisas de uma vez. Enquanto

falava com ele por telefone, os olhos foram permanentemente para a porta como se temesse que

me pegasse em flagrante outra vez. Que me pegasse Aurora? Ou talvez outra pessoa?

De repente apareceu na minha mente a imagem de Caspar e Nathan, a assombrosa

velocidade e agilidade e de uma vez odeio e brutalidade com que se equilibraram um sobre o

outro...

Tentei me acalmar e respirar devagar.

—Pois... —começou a dizer o músico sacro. Eu o chamava sempre assim, mas se chamava

Martin Schmitzke— Aos nefilim... os menciona no sexto capítulo da Gênese.

—Até aí cheguei eu. Tenho a Bíblia diante de mim. Mas não vi em nenhuma parte o nome

nefilim.

—Na tradução unificada fazem referência aos “gigantes”, mas no texto original aparece o

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conceito de “nefilim”. O término provém da palavra hebreia “nefal”, que significa “cair”. Assim

que os nefilim são os “caídos”. Ao que parece o texto da Gênese guarda relação com um antigo

mito babilônico. A Bíblia contém numerosas referências a tradições e culturas não judaicas.

Provavelmente essas passagens o redigiram os yahvistas.

—Quais?

—Yahvistas é como se conhece os autores que escreveram os textos do Antigo Testamento

no século IX. Os livros ou passagens do Antigo Testamento que se originaram tempo depois se

conhecem, em função do nome com que designam a Deus, como escritos elohistas ou sacerdotais.

Suas palavras eram instrutivas e traduziam o orgulho que sentia ao poder mostrar seu

conhecimento.

—E esse mito significa que, além da raça humana, há outros seres na terra? —perguntei

dúbia.

—Exato. Esses seres eram os descendentes dos filhos de Deus e as filhas dos homens, quer

dizer, seres mistos. Eram imortais, mas segundo a Bíblia desapareceram depois do dilúvio

universal. Existem outras referências além de Gênese. Acredito que no Livro de Enoc também se

menciona algo.

—E isso também está na Bíblia? —perguntei com precipitação enquanto passava páginas.

—Não, pertence às chamadas escrituras apócrifas.

Eu ouvi antes essa expressão, e se não recordava errado, chamava assim aos textos que se

originaram na mesma época que a Bíblia mas que não foram aceitos nas Sagradas Escrituras.

—E o que diz no Livro de Enoc sobre os nefilim?

—Descrevem como uns seres com uma força sobre-humana e uma maldade temível.

Cometem atos violentos, ocasionam a ruína, atacam aos homens, destroem suas casas, ocasionam

desordem de toda classe e semeiam o pânico. Em algumas ocasiões não denomina nefilim, a não

ser awwim, que significa “filhos das serpentes”. Os pais da Igreja viram depois nisso uma

referência aos anjos caídos, quer dizer, a Lúcifer. Agora que penso, os nefilim não só faziam a vida

impossível aos humanos torturando-os e escravizando-os, mas além disso perpetravam autênticas

massacres. Parece ser que cobiçavam a carne humana e devoravam os homens à mãos. Acredito

que no Livro de Enoc se conta que com a aparição dos nefilim os homens começaram também a

comer carne, mas a verdade é que deveria voltar a ler o texto devagar para confirmá-lo. Esses

escritos podem chegar a ser muito confusos.

—Em qualquer caso, dão testemunho de que, além da raça humana, existe na terra outra

raça que é imortal e tremendamente malvada — exclamei sem fôlego.

—Sim — limitou a me responder, antes de prosseguir— Acredito que em alguma passagem

do Livro de Enoc se narra com todo detalhe a origem dos nefilim. Neste caso já não provêm dos

filhos de Deus, como se refere na Gênese, mas sim de um grupo de anjos que Deus enviou à terra

para que custodiassem o jardim do Éden. Mas ao invés de cumprir sua obrigação, deixaram-se

distrair e seduzir pelas filhas dos homens. A esses anjos se conhece como os Guardiães ou, na

tradução grega, os Grigori.

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Apertei o auricular do telefone com tanta força que pensei que ia quebrar em mil pedaços.

—Sophie? Sophie, o que acontece? Acelerou a respiração. Encontra-se mal?

Ouvia sua voz na lonjura.

—Não —sussurrei— não, estou bem. Obrigada pela informação. Para começar, é mais que

suficiente.

Pendurei sem me despedir; sentia incapaz de pronunciar uma só palavra mais.

Grigori.

Nathanael Grigori.

Um instante antes tinha a sensação de que a tensão ia quebrar o corpo em pedaços, mas

nesse momento me invadiu um profundo esgotamento. Pus de pé e avancei para a estante para

colocar a Bíblia em seu lugar. Mas ao tentar levantar o braço, não me respondia. De repente o

livro pesava como se fosse de chumbo. Desabei desfalecida no chão, junto à livraria, estreitando a

Bíblia com força contra o peito. Permaneci ali sentada durante horas, no mesmo estado no que

encontrei Aurora e que me aterrorizou: os olhos quase fora das órbitas e o olhar cravado em um

ponto imaginário enquanto balançava o tronco adiante e atrás.

“Gigantes... caídos... seres malvados... imortais...”

Ao despontar o dia, dormir.

���

Enquanto dormia caiu a cabeça para um lado. Ao despertar, doía o pescoço. Cara se agachou

junto a mim e me acariciou com suavidade no ombro.

—Sophie? O que está fazendo aqui?

Eu me incorporei sobressaltada, separei a mão e dissimulei a dor. Tinha um gosto amargo na

boca. Tentei recordar o que sonhei; algo vago, ameaçador, confuso.

Entretanto, ao repensar sobre isso me dei conta de que não foi um sonho, que foi real. Li um

fragmento da Bíblia e falei com Martin Schmitzke por telefone sobre os nefilim. Cara se agachou

para recolher a Bíblia, que estava jogada no chão.

—Não! —gritei, presa do pânico, e arranquei o livro das mãos.

Ela me olhou com gesto de preocupação e certa tensão.

Antes que ela pudesse abrir a boca, apressei a perguntar:

—Que horas são?

—Quase oito e meia. Aurora abriu a porta. Preparei um copo de leite com chocolate, e...

—Tanto dormi?

Embora uns minutos antes sentia todos os membros de meu corpo duros, agora sentia uma

profunda intranquilidade e inclusive agitação. Levantei a Bíblia com um gesto acusador.

—Temos que falar— disse— Não penso permitir que sigam tomando por louca. Quero que

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me expliquem isso tudo de uma vez por todas, e...

—Tem razão — me interrompeu. Agarrou pelo ombro com delicadeza e prosseguiu—

Sophie, tem toda a razão. Não foi bom te manter à margem. Eu só o fiz porque Nathan me pediu

isso. Mas ele mesmo percebeu com o tempo de que não pode seguir ocultando a verdade.

A claridade de suas palavras me deixou petrificada. Quando podia me zangar e me

escandalizar porque os dois mantinham o segredo, estava decidida a levantar a lebre. Agora,

entretanto, deu medo pensar que, de uma vez por todas, ia descobrir a verdade.

—A luta... —prorrompi de repente— O que aconteceu ontem no jardim... que Caspar e

Nathan se encetaram em uma briga... Nathan me disse que foi um sonho... e que eu cai... mas

ocorreu de verdade!

—Nathan está aqui. —Cara assinalou com o queixo para a porta— Está te esperando.

Passamos toda a noite discutindo este assunto, e agora está disposto a explicar isso tudo, do

princípio a fim. Acredito que é seu dever, não o meu.

Cara me soltou. A angústia de seu olhar se converteu em ternura.

Enquanto me dirigia ao jardim passei várias vezes as mãos pelo cabelo; notava o rosto

pegajoso, seguia tendo o gosto amargo na boca e os olhos incharam e me picavam. Ao sair ao ar

livre, não dirigi o olhar para Nathan, que aguardava apoiado na grade, a não ser para a mansão do

Caspar, que se erigia no alto da montanha.

Não sei exatamente o que esperava, talvez algum sinal visível do que ocorreu no dia

anterior. Mas o moderno edifício branco com grandes janelas de cristal e a coberta plaina

permanecia intacto em metade do bosque. O dia estava espaçoso, a neblina descendeu e já cobria

o lago, que parecia um enorme prato de sopa fumegante.

Esfreguei o pescoço dolorido enquanto avançava com passo vacilante para Nathan.

—Sophie...

Baixou o olhar. Tinha a voz rouca.

—Quem é? —perguntei. Mordi os lábios para retificar imediatamente minhas palavras— O

que é?

—Sophie... —Suspirou, parecia abatido pelo esgotamento— Sophie, não sabe quanto sinto...

teria gostado de te poupar tudo isto, me acredite. Mas agora já sabe muitas coisas. Muitas coisas.

—Sim —respondi— sei tudo isso... isso dos... nefilim. —Custou pronunciar a palavra. Nathan

levantou por fim a cabeça e dirigiu seus penetrantes olhos azuis para mim.

—Na Bíblia diz que são gigantes, mas você não é nenhum gigante! E Caspar tampouco! —

Nesse instante ri; os nervos se conjugaram em um grito estridente e artificial.

—Sophie, eu acredito que o melhor é que se sente e assim poderei explicar isso tudo com

calma...

—Assim está bem. Não é humano. É um desses... desses... —Senti incapaz de pronunciar a

palavra uma segunda vez, e ele tampouco disse nada, só se limitou a assentir com a cabeça— E

Caspar von Kranichstein também —acrescentei— E Cara? Cara também é...?

Ele assentiu de novo. Eu notei que me ressecava a boca.

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—Vamos para dentro —sugeriu com um sussurro— me deixe que explique isso com calma...

Uns minutos antes estava decidida; decidida a olhar à verdade à cara e a fazer o que fosse

necessário para espremê-la, mas quando Nathan levantou a mão e me acariciou o ombro com

delicadeza, senti verdadeiro medo. Enquanto ele seguisse negando meus disparates, seguiriam

sendo isso, desatinos, loucuras, delírios de minha exagerada imaginação.

Eu me estremeci e, quando ele se levantou para falar, eu o interrompi com um estridente

grito:

—Não, espera! Antes que comece a falar, quero saber uma coisa: há alguma possibilidade de

que possamos deixar Aurora à margem de tudo isto? É absolutamente imprescindível que me

conte isso tudo? Não posso seguir atuando com ela como se não tivesse ocorrido nada?

Nathan baixou o olhar; uma profunda ruga sulcou sua frente pálida e tensa.

—Quer dizer que se houver alguma forma de fugir de tudo isto? —Negou com a cabeça, e ao

levantar o olhar sua expressão era de profunda tristeza— Por desgraça, não. Isso era o que

desejava, a esperança que alberguei até o último momento, e o que resisti a aceitar até esta

manhã. Mas agora que Caspar e os seus apareceram, é muito tarde. Aurora se encontra há muito

tempo em meio de uma... uma... uma...

—Uma o que?

Nathan suspirou.

—Uma antiga batalha.

���

Agora se achavam em uma encruzilhada. Já não havia possivelmente nem talvez, nem pode

ser que algum dia. Já não havia dúvidas, nem preâmbulos nem esperas.

Agora tudo seria branco ou negro.

Logo Sophie saberia toda a verdade, e então a decisão viria sozinha.

Separou do vitrô ao ver que Nathan entrava com ela na casa.

A dor estendia pelo peito quando Nathan acariciava o braço dela com suavidade, a mesma

dor insuportável dos tempos em que falavam e riam, beijavam e se amavam, a mesma dor

insuportável que produzia pensar que Nathan, e não ele, era o pai de Aurora. Mas ele jamais se

deixou vencer pela dor, e agora tampouco o faria. Nathan gerou a Aurora, mas ele conseguiria

convertê-la em sua própria filha.

Emitiu um agudo assobio e um de seus serventes apareceu imediatamente.

“São como cães mulherengos”, pensou com desprezo.

Não gostava de nenhum deles. Davam o mesmo asco que a plebe humana, essas gente

estúpidas, débeis, impudicas e fedorentas. Só se salvava alguma ou outra mulher como Sophie, que

se contava entre os escolhidos.

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Desprezava seus serventes pelas emoções, que desfiguravam o rosto, por seu entusiasmo e

seus temores, pela ilusão com que aguardavam a guerra.

A ele todas essas emoções resultavam alheias, as ânsias de destruição, o prazer de matar, a

sede de sangue. Antigamente seu pai tinha que obrigá-lo a agarrar as armas para brigar.

O que, entretanto, conhecia bem, era o desejo de vingança, uma vingança bem meditada e

planejada. Algo que não era fruto de um arrebatamento de fúria momentâneo, mas sim de uma

funda necessidade de alcançar o equilíbrio e causar a Nathan a mesma dor que em seu dia

padeceu ele.

Quando teve a todo seu círculo de confiança reunido, Caspar von Kranichstein os olhou nos

olhos um a um. Depois sorriu com malícia.

“Chegou a hora. Hoje começa tudo”, disse a seus seguidores.

Capítulo 8

Entramos em meu estudo e fechei a porta. Nathan se dirigiu à janela e eu tomei assento em

meu escritório. Separei o computador portátil e os livros a um lado, apoiei os cotovelos sobre a

mesa e esfreguei as têmporas. A dor do pescoço passou, mas mesmo assim tinha a sensação de

que me ia explodir a cabeça, de que não era capaz de assimilar tudo o que me vinha em cima.

Eram tantas as perguntas que me queimavam a língua que não conseguia me decidir por

nenhuma e, em lugar das soltar, segui com o olhar Nathan, que caminhava nervoso de um lado a

outro da sala octogonal. Prometeu que me contaria isso tudo, mas nesse instante não só não

parecia ter a menor intenção de fazer, mas também, bem, parecia arrependido.

No final de um tempo já não pude suportar mais o silêncio.

—No Livro de Enoc diz que os nefilim são seres malvados —disse— Que tendem à destruição

e a repressão com avidez e violência, que são pessoas vorazes e temíveis.

Nathan parou e voltou para mim com gesto de perplexidade.

—Não terá medo de mim? —exclamou, e adicionou em tom de súplica— Não me diga isso,

por favor! Não poderia suportar.

A tristeza de seu olhar me chegou à alma e por um momento se desmoronou a dura couraça

atrás da que eu escondia. Mas não podia ceder diante do menor espiono de cercania e compaixão,

ao instinto de consolá-lo, de acalmá-lo. Estava convencida de que, assim que desse pé a certo

calor, voltaria louca pensando em todos os segredos.

—No momento que me abandonou —repliquei em um tom frio e distante— acreditava que

dava igual o que pense de você.

—Pois o certo é que é justo ao contrário! —precipitou a responder— Eu acreditava que

agora poderia entender por que tive que partir naquele tempo. Naquele tempo. E certamente não

foi porque não me importasse! Mas sim porque tinha que te proteger. A você e também a Aurora.

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—Nos proteger do que? Dessa... essa luta da que falava? De que caíssemos em mãos de um

desses seres malvados, vorazes e asquerosos? Um ser como você ou como Cara, que não são

humano, a não ser... nefilim?

De novo me custou um grande esforço pronunciar a palavra.

Nathan agachou o olhar.

—Nem todos os nefilim são maus —murmurou— e aí está precisamente o problema.

De repente reparei no computador, onde no dia anterior procurei no Google a palavra

“filim” sem êxito. Respirei fundo e tratei de dominar os sentimentos que nesse momento me

oprimiam a garganta. Devia manter a cabeça fria, me disse, não devia me pôr nervosa, a não ser

proceder como em um trabalho de investigação. Recolher dados, ordená-los e analisá-los. Com

discernimento, deixando o coração a um lado.

—Na Bíblia se diz que os nefilim... esses gigantes... provêm dos filhos de Deus e as filhas dos

homens —disse— Mas também se refere que se extinguiram depois do dilúvio.

Nathan dirigiu para mim e inclinou sobre a mesa. Eu parei de esfregar as têmporas, deixei

cair as mãos e, de repente, de forma totalmente inesperada, minhas mãos ficaram sobre as suas.

Uma descarga de adrenalina me percorreu o corpo quando Nathan estreitou as mãos, uma

sensação agradável e insuportável ao mesmo tempo. De repente me senti completamente limpa,

notava todas e cada uma das fibras de meu corpo tão tensas que pareciam a ponto de quebrar.

Separei as mãos com um gesto brusco diante do qual ele retrocedeu envergonhado.

—Tudo o que se diz na Bíblia, nos escritos apócrifos e em outros textos como lendas e

fábulas —começou a me explicar em voz baixa— não terá que acreditar ao pé da letra. São as

tentativas dos povos que de algum modo pressentiam nossa existência de explicar o inexplicável,

quer dizer, de dar conta de que existem duas raças no mundo.

—Os mortais e os imortais —apontei eu.

—No Livro de Enoc aparece explicado este fato com a queda dos anjos que tinham o encargo

de custodiar o paraíso e, entretanto, deixaram seduzir, dando origem aos seres mestiços —

prosseguiu. Estes eram tão vorazes que no princípio comiam as colheitas dos humanos e, quando

tiveram acabado com todas elas, começaram a devorar os homens, a comer sua carne e beber seu

sangue. Assim, seguindo seu exemplo, começaram também os homens a comer carne e, o que

constitui um pecado mais grave, a cobiçar o domínio de outros. Dessa forma criou a injustiça no

mundo. É obvio, é só um mito, mas em todos os mitos há algo de verdade. O que na realidade

aconteceu então só os anciões sabem, aqueles nefilim que povoam o mundo desde tempos

imemoriais. Eu, ao contrario, nasci muito tempo mais tarde, e o único que sei é que se produziu

alguma falha na longa história da humanidade. Que existem seres... criaturas que nunca morrem,

e que isso não deveria ocorrer. Somos um engano da natureza, sim, isso é o que somos! Na

realidade nós... nós não deveríamos existir...

Seu tom de voz era cada vez mais frio, mais depreciativo.

—Nathan! —exclamei.

Um momento antes afastou como se o contato com ele me queimasse, e nesse instante não

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pude resistir a tentação de me levantar e acariciar a frente com a mão, não como gesto de

carinho, a não ser para comprovar que era real. Sua pele era lisa como o mármore, mas

desprendia o mesmo calor que a de qualquer humano.

—Nathan —voltei a dizer, com um fio de voz apenas audível.

Ele afastou o rosto. Ao contrário de suas palavras, que me provocavam uma profunda

estranheza, a expressão de dúvida, incerteza e melancolia que desenhava seu semblante me

resultava familiar. Na época de Salzburg, essa expressão se apoderava de seu rosto com bastante

frequência e me desconcertava.

—Sim— insistiu— eu não deveria existir.

—Mas...

—Todas as histórias sobre nossa origem coincidem em uma coisa —me interrompeu— Em

que alguém cometeu um engano, que foi incapaz de resistir uma tentação. Em que se uniram duas

espécies que deviam ter permanecido afastadas uma da outra. O mundo pertence à humanidade,

não a nós, os mestiços, não a mim... Eu só tenho direito a ficar até que tenhamos completo nosso

encargo.

—O que cometido?

Separou de mim e começou a caminhar de novo de um lado a outro.

—É um pouco complicado, mas tentarei explicar isso passo a passo —me disse— Como disse

antes, nem todos os nefilim são maus. Melhor dizendo, há duas classes de nefilim. Estão os que

são como eu, os guardiães ou custódios, que perseguem um objetivo muito concreto, que consiste

em proteger aos humanos e desculpar o engano que colocaram nossos antepassados. E logo estão

os outros, os que em algumas parte do Livro de Enoc os denomina awwim, ou filhos das serpentes,

que é como os conhecemos na atualidade. A diferença de nós, eles não consideram que os nefilim

sejam fruto de um engano da natureza, de uma falha na evolução para o que deve buscar solução.

Eles nos consideram a coroação da criação, querem erigir como donos do mundo, e o submetem

tudo a suas ânsias de poder. Nossos objetivos são, portanto, radicalmente distintos. E isso

provocou que os guardiães e os filhos das serpentes nos achemos em luta permanente.

—Mas não se menciona essa luta no Livro de Enoc? —perguntei.

—Como mínimo se faz alusão a ela. Os arcanjos Gabriel, Rafael, Miguel e Uriel, ou assim se

relata aí, observaram que a humanidade estava sendo escravizada, explodida e aniquilada pelos

awwim e Deus encomendou a missão de lutar contra isso. Precisamente esse é nosso encargo,

proteger à humanidade dos awwim. Se nós não existíssemos, não nos houvéssemos interposto em

seu caminho e não tivéssemos ido eliminando ao longo de história (com terríveis perdas para nós),

faz já muito tempo que a humanidade se teria extinguido. Os awwim matam de maneira

desumana. E de um tempo a esta parte não só as impulsionou a avidez de carne e sangue, como

no princípio. Matam aos humanos e, se tiverem ocasião, também a nós, porque desse modo

obtêm novos poderes e habilidades.

Minha mente processava devagar. Até esse momento tinha a impressão de que estava

entendendo o fundamental —a raça imortal, as duas espécies e a luta eterna em que se

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achavam— mas agora me dava a sensação de que as palavras de Nathan me escapavam.

—Novos poderes e habilidades? —repeti com desconcerto.

—Isso não se menciona no Livro de Enoc —respondeu ele— não se fala do verdadeiro

motivo da apetência de carne e sangue humanas...

Nathan falava em um tom quase mecânico, como se estivesse repetindo o que dizia pela

centésima vez. Era isso certo? Perguntei de repente. Tentou fazer entender essa barbaridade a

outras pessoas antes que a mim? A pessoas que, como eu, foram testemunhas de acontecimentos

inexplicáveis e que já não podiam seguir tomando à ligeira essas histórias e se viram obrigadas às

aceitar como reais?

Entrecruzei de forma instintiva as mãos à altura do peito, como se quisesse me proteger de

suas palavras, embora minha mente lutava desesperadamente por compreender, interpretar e

assimilar todas e cada uma delas.

—Os nefilim são imortais, mas não possuímos poderes mágicos —prosseguiu— Temos muito

em comum com os humanos, compartilhamos o mesmo aspecto, e não somos capazes de fazer

nada que eles não possam fazer. A diferença mais importante é que temos a capacidade de

potencializar todos os conhecimentos, as destrezas e a força física. Mas a explicação não só radica

que dispomos de muito mais tempo para adquirir e exercitar essas faculdades. Radica sobretudo

que podemos nos apropriar das faculdades de outros nefilim, mas também dos humanos, sempre

e quando... sempre e quando... —Fez uma breve pausa, parecia que custava continuar— Sempre e

quando os matarmos.

Eu abri arregalei os olhos, mas ele esquivou meu olhar e se precipitou a acrescentar:

—Roubamos, por assim dizê-lo, os talentos, fundimos e, dessa maneira, ficamos cada vez

mais fortes, mais multifacetados e mais geniais. Dependendo de quais são as virtudes da vítima,

aumentamos nossa força física, nossa intuição, nossos dotes artísticas ou nossas capacidades

intelectuais. Quanto maior é um nefilim e mais humanos ou nefilim matou, mais poderoso e,

portanto, mais perigoso é.

Eu neguei com a cabeça sem compreender. A possibilidade de que alguém pudesse roubar

virtudes como se fossem algo tangível e material me desejava muito completamente absurda. De

repente cruzou por minha mente uma imagem de uma criatura humanoide, tão pouco acreditável

como as dos filmes de Hollywood, ajoelhada diante de um cadáver de cujo espírito nebuloso e

escurecido se apodera enquanto exala um profundo e ávido ofego. Sacudi a cabeça para afastar a

imagem de minha mente. Mas havia algo mais que me desconcertava.

—Se os nefilim forem imortais, como pode ser que outro possa matá-los para roubar seus

talentos?

—Um humano normal não pode —me explicou— só um nefilim é capaz de arrebatar a vida a

outro. Existem três formas de matar um nefilim... ou a humanos. Se decapitar à vítima, suas

habilidades intelectuais se transpassam ao assassino. Sangra-se, então se transpassa sua

vitalidade, quer dizer, suas faculdades físicas. E se arrancarmos o coração do peito da vítima,

arrebatamos suas capacidades intuitivas e emocionais.

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De novo me sobreveio uma imagem à mente, e nessa ocasião não era pouco realista, a não

ser uma lembrança concreta... de um cadáver... ensanguentado... com o olhar perdido...

—Não possuímos poderes mágicos —disse Nathan— Não podemos voar, porque os

humanos não voam. Mas a capacidade de saltar muito longe ou muito alto, por exemplo, algo que

qualquer humano pode fazer, pode chegar a estar tão desenvolvida em nós que somos capazes de

saltar tão alto e tão longe como um campeão olímpico. Isso significa que podemos chegar a reunir

capacidades especiais e extraordinárias que só alguns humanos possuem: pensa no melhor

velocista do mundo, que possui um ouvido perfeito, fala trinta idiomas com fluidez e é um

destacado egiptólogo e não será um humano, a não ser um nefilim. Nossos limites são quase

inexistentes, não há quase nada do que não sejamos capazes. Com o tempo não só nos tornamos

multifacetados, mas também virtualmente invencíveis. Mas isso não só ocorre com os guardiães,

mas também com os filhos das serpentes. Ao longo dos séculos se produziram grandes perdas em

ambos os bandos, mas os poucos que sobreviveram aos tremendos massacres e seguem

povoando o mundo, que serão uns poucos milhares, estamos igualados. A maioria das batalhas

acabam sem vencedores nem vencidos. Só há um claro vencedor quando um nefilim jovem

enfrenta um muito maior. Pelo resto, resulta quase impossível cumprir nosso encargo...

—O encargo —murmurei— de proteger aos humanos...

—No fundo nosso encargo vai mais à frente: não só consiste em proteger aos humanos dos

graves perigos, algo que geralmente nos agrada, mas também em libera-los de uma vez por todas

dessa ameaça. Teremos alcançado nosso objetivo quando tivermos aniquilado a todos os filhos

das serpentes.

—E então, o que ocorrerá então?

—Custa imaginar que, tal como estão as coisas neste momento, possamos obtê-lo. Mas se

chegasse o dia em que realmente tivéssemos eliminado a essas criaturas da face da terra, então

nossa missão teria concluído. E teríamos que auto-aniquilarmos.

Eu me sobressaltei e o busquei com o olhar. Parecia um destino aterrador, mas seu rosto

não translucía nem rastro de melancolia, a não ser uma determinação que me estremeceu. Só a

tensão de seu corpo e a pressa de seus passos revelavam o preço que devia custar essa

determinação e a brutal pressão a que devia estar submetido... a que esteve submetido sempre,

inclusive naquele tempo em Salzburg, quando nos conhecemos.

—Os mortos de Hallstatt —gaguejei— e naquela época de Salzburg, os mortos de

Untersberg. Arrancaram o coração, deixaram sangrar, decapitaram. Foram nefilim quem os

assassinou, verdade? Os maus... os filhos das serpentes.

—Sim —se limitou a responder.

Estremeci mais ainda.

—Mas acreditava que vocês... os guardiães... protegiam aos humanos. Como é possível

então que...?

—Protegemos aos humanos, muitas vezes sem que eles se percebam. Mas não sempre

podemos intervir a tempo. E em ocasiões os próprios humanos são vítimas de nossas lutas,

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homens que por acaso se encontram entre os dois frontes. Em qualquer caso, a cobiça dos filhos

das serpentes as impulsionou a atrair a humanos que têm faculdades especiais, uma forma física

extraordinária, uma inteligência formidável ou algum dom pelo que destaquem.

A frase “Uma forma física extraordinária...” ficou ressonando em minha cabeça. Os

alpinistas... os ciclistas de montanha…

De novo voltou a formar em minha mente a imagem do morto que encontrei, estendido

diante de mim, sobre o musgo, desfalecido, rígido e com a pele branca torcida... despojado de

todas suas forças...

—Se forem igual de fortes, significa isso que os guardiães também matam a humanos? É

assim como mantêm à mesma altura que os filhos das serpentes? —perguntei com um fio de voz.

Foi evidente que minha pergunta o incomodou. Acelerou o passo, retorcendo as mãos

enquanto caminhava. Ao responder, agachou de novo o olhar.

—Por norma geral, só nos permite matar a awwim para ampliar nossas capacidades. De fato,

somos proibidos de matar humanos. Entretanto, o bem da comunidade está por cima do bem do

indivíduo. E por isso existem exceções. Se necessitarmos de maneira inevitável determinados

poderes e capacidades para permanecer igualados com os awwim, e resulta impossível obtê-los

através de outro nefilim, então nos permite matar a um humano. A esse humano sacrifica em bem

da comunidade. —Tinha as mãos entrelaçadas.

—E você há...? —comecei a perguntar, mas as palavras me engasgaram.

—Há dons tão especiais que não podemos renunciar a consegui-los, dons que muito poucos

humanos e nefilim possuem. Não se trata de habilidades físicas, mas sim de destrezas mentais

extraordinárias como, por exemplo, dote telepáticas ou telecinesia. Fortes, ágeis ou habilidosos o

somos todos, também somos excepcionalmente preparados, cultos, poliglotas... mas só alguns de

nós, muito poucos, podem ler o pensamento.

—E se encontram com um humano que seja capaz —disse em uma tentativa de

compreender o incompreensível— então o matam...

Durante uns segundos se impôs um silêncio tenso entre nós. Sentia todas as fibras de meu

corpo em tensão, e não só pela sensação de horror que me invadia e que tratava de conter com

todas minhas forças, mas também pelo esforço de concentração. Pressentia que havia uma razão,

uma boa razão pela que me estava contando todas aquelas coisas tão depressa, pela que não me

introduzia lentamente e com cautela nesse estranho mundo, um mundo que existia no meio do

meu e que entretanto não era visível para os não iniciados. Quem quer ou o que queira que

delimitasse nosso tempo, este era muito breve para que ele se detivera me explicar uma e outra

vez o que já me explicado, de modo que eu não podia passar por cima nenhuma de suas frases,

nenhuma só de suas palavras.

—Também existem talentos que só se encontram nos humanos e virtualmente nunca se dão

nos nefilim —adicionou— já que resultam simplesmente pouco interessantes por sua falta de

utilidade. Para nossa luta não é necessário ser pintor, escultor ou músico. Por isso a maioria dos

humanos com talentos artísticos vivem tranquilos sem que os nefilim os incomodem.

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De repente interrompeu seu nervoso caminhar e parou na metade de um movimento,

paralisado pela força de uma lembrança que escureceu mais ainda seu rosto. Eu me debatia entre

a compaixão que me provocava o verdadeiro suplício no que Nathan vivia apanhado e o espanto

que me produzia me precipitar a aquele abismo. “Cala! —desejava gritar— Basta, já está bem!”

Tudo o que ouvi... o que experimentei... era tanto que já não queria saber nada mais.

Mas não me deixei levar por esse impulso, mas sim permaneci sentada em tensão e com a

voz tremente formulei a pergunta que uns instantes antes não me atrevi a formular:

—A quantas pessoas matou?

—Às vezes nas batalhas é inevitável... —começou a dizer arrastando as palavras.

Dirigiu para uma das paredes e se apoiou. De repente, apesar de sua beleza, de sua erguida

postura e seu tamanho, parecia perdido, miserável.

—Mas houve uma vez... —Dava a impressão de que custava pronunciar as palavras. O tom

de sua voz era cada vez mais baixo— Houve uma vez que não o fiz para proteger aos humanos, fiz

só por mim. Por meu próprio interesse. Completamente a propósito.

—Quando? —perguntei. Para minha surpresa, deixou de tremera minha voz. Nathan

acabava de me confessar um assassinato e eu nem sequer me alterei. Era como se tivesse

transpassado uma espécie de barreira depois da qual se podia recolher o máximo de informação

possível, mas não julgá-la, depois da qual os pecados podiam ser nomeados, mas não castigados.

Incorporei e olhei fixamente— Quando? —voltei a perguntar— E a quem?

—Andrej Lasarew —respondeu com grande esforço— Sim, assim se chamava. Andrej

Lasarew. Foi no começo deste século. Andrej estava doente... padecia dos pulmões... acabava de

fazer vinte e cinco anos. Provavelmente teria morrido de todas as formas. —Soprou com força e

acrescentou em seguida— Ou ao menos isso quero acreditar. Que não o assassinei, mas sim

procurei uma morte clemente. Que sua morte era um fato irrefutável e eu o único que fiz foi

antecipá-la. Quando penso assim, sinto que se alivia um pouco o peso da culpa. Mas na realidade

não posso evitar a certeza de que não fiz o correto, de que quebrei uma proibição. Permite-nos

matar na luta para nos armar ou nos fortalecer, para vencer aos awwim ou para ao menos poder

mantê-los sob controle... mas não podemos matar por nossos interesses.

—E então, por que fez? —perguntei. Minha curiosidade venceu o medo ao horror.

—Andrej Lasarew era músico... chelista... provavelmente teria chegado a ser o mais virtuoso

jamais visto... jamais escutado... de ter vivido o suficiente. Em uma das épocas mais escuras de

minha vida, um dia o ouvi tocar: deixou tantos mortos no caminho, foram tantas as batalhas

liberadas com os awwim que não levavam a nenhuma parte. Não conseguíamos nos destruir uns

aos outros, não conseguíamos nos aniquilar... Estava tão cansado de lutar! Já não suportava mais,

todos os dias me perguntava quanto ia durar. Sei que não podemos pensar como os humanos, que

não podemos sentir como eles, que não podemos esperar viver livres de preocupações nem

aspirar a sua sorte. Para nós só existe nosso destino, nossa missão. Mas para ouvir tocar Andrej,

de repente senti que via o mundo com outra luz, mais luminoso, mais resplandecente, mais

colorido, sim, como se fosse capaz de percebê-lo como o percebem os humanos, muito mais

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diverso e formoso. Ouvi tocar o chelo e fiquei tão inquieto que senti um desejo imperioso de

poder tocar como ele. Estava obcecado com a ideia de que poderia ser não só chelista, mas

também um homem como ele se dava procuração de seu talento.

—E por isso o matou —sentenciei.

—Sim —admitiu—. Por isso o matei. Por mim. Só por mim. Não pela luta. Não se derrota aos

awwim com a música de um chelo.

Cravou seus olhos em meus. Era como se os sons que Andrej Lasarew obtinha com o chelo

ressonassem em sua cabeça, e imediatamente tive a sensação de que eu também os ouvia.

Rajmáninov, triste, tenha saudade, doce, hesitante, confuso, esperançado.

Ressecou a boca. Senti um desejo irresistível de escutar a música, não, não só de escutá-la,

de tocá-la, de me sentar ao piano e me fundir com o teclado com essa facilidade para interpretar

melodias que me conferia sua presença. E desejava também —a raiz do desejo de música— me

levantar, me aproximar dele, tocá-lo e senti-lo. Que loucura! Justo depois de sua confissão! Seria

muito mais lógico afastar dele, sentir rechaço e desprezo, julgá-lo e inclusive temê-lo. Mas não

podia. Só podia... amá-lo. Voltava a me sentir capaz de amá-lo. Já não tinha que seguir reprimindo

porque tivesse me traído e abandonado. Podia olhá-lo nos olhos e acreditar que ele também me

amava e que não se partiu porque eu não importasse ou não fosse suficiente para ele.

Nathan baixou o olhar e foi como se a música se quebrasse. O instante em que ansiava

abraçá-lo e procurar consolo se desvaneceu e, de repente, o fato de ter albergado tal desejo me

desejou muito estranho.

—E eu? —perguntei. Minha voz voltou a tingir de frieza, já não transluzia nenhum dos

sentimentos que um instante antes me invadiu— Eu sou... era uma pianista com talento... passou

alguma vez pela cabeça a ideia de me matar? E assim poder tocar o piano? — Nathan estremeceu.

—Jamais! —exclamou totalmente escandalizado— Nem te ocorra pensar algo assim! Nem

por um só momento! Naquele tempo, naquele tempo eu...

—Mas o que quer que pense? —interrompi com brutalidade— Se não é humano, a não ser

um desses... desses... nefilim. Se viver para aniquilar aos seus semelhantes, por que aproximou de

mim? O que queria de mim?

Segui tentando manter um tom frio, indiferente e sóbrio, mas começou a partir minha voz.

Na realidade era outra pergunta a que me queimava os lábios. Queria lhe gritar: “por que me

quebrou o coração?”

Não foi necessário que a formulasse. Foi como se ele soubesse o que eu sentia porque seu

rosto refletiu meu pensamento, revelou que durante todos esses anos ele sofreu igual a mim.

—Você pertence aos poucos escolhidos —sussurrou com a voz rouca— Por isso, só por

isso...

—Escolhidos? —interrompi— Escolhidos para que?

Assentiu com a clara consciência de que, por muito receptiva e concentrada que eu me

mostrasse, eram muitas as coisas que ficavam por saber. Começou a caminhar de novo de um lado

a outro, levantando os calcanhares do chão de um modo quase cerimonioso, e me esclareceu com

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precipitação:

—Na luta entre os guardiães e os filhos das serpentes se produziram descendentes em

ambos os bandos. Com o objetivo de nos manter igualados, de evitar que o outro bando se faça

mais forte, devemos nos reproduzir. Mas não podemos fazê-lo com nossos iguais. Por causa de

nossa natureza, só podemos procriar com humanos. Eu jamais quis fazer. Não queria ser o culpado

de que uma criatura tivesse que levar minha vida e de que...

Interrompeu. Evidentemente percebeu que acabava de referir-se a Aurora. E tinha se

referido a ela como a uma “criatura”...

—Sinto —murmurou.

Eu não disse nada, desterrei de minha mente o pensamento de Aurora. Já me ocuparia de

seu destino — do destino de uma descendente de um nefilim— quando soubesse mais a respeito

desses seres.

—E por que me encontro eu entre os escolhidos?

—São muito poucos os humanos com os quais os nefilim cercam relações —prosseguiu—

Porque devem cumprir uma série de requisitos determinados. Escolhidos, que é como os

chamamos nós, são humanos muito especiais, com uma grande sensibilidade, inteligência e

talento... humanos, em sua maioria, que descendem de algum nefilim desconhecido, quer dizer,

que, sem saber, já levam nosso sangue. Humanos como você, Sophie. Esses humanos exercem um

poder sobre nós quase mágico, uma atração a que nós não podemos resistir. Nos...

Interrompeu como se não existissem as palavras adequadas para expressar o que sentiu

naquele tempo. Tempo.

Eu de repente recordei o que disse na primeira e única noite que dormimos juntos.

“tentei lutar contra isso.”

Nesse momento não perguntei do que estava falando. Nesse então não podia imaginar a

transcendência que tinha essa frase.

—Os humanos possuem livre vontade —prosseguiu— Em nosso caso é distinto. Sim, é certo

que em ocasiões eu me rebelei contra minha missão, que frequentemente quebrei as regras; e é

obvio tomei algumas decisões por minha conta, como fiz quando me apropriei do talento do

Andrej Lasarew. Mas mesmo assim: nós nefilim nos movemos por algo que é tão forte como o

instinto animal. Podemos resistir a ele, mas para isso se necessita uma força extraordinária que eu

nem sempre consegui reunir. Ao te conhecer, ao te amar... senti que me arrastava uma força da

natureza a que não podia escapar. No fundo de meu coração sabia que na realidade devia te

manifestar meu amor me afastando de você, te mantendo à margem de minha vida e de tudo que

a rodeava, te deixando viver em paz, viver sem mim. Mas não fui capaz. Não fui o bastante forte...

e quando consegui me afastar de você... já era tarde, muito tarde.

Esse “muito tarde...” ficou ressonando em minha cabeça, “muito tarde”.

Logo sacudi a cabeça com um gesto decidido.

—Seriamente era muito tarde? —perguntei em um tom carregado de ceticismo.

—Sophie, fiz tanto dano! —lamentou com pesar.

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Isso era certo. Nada poderia me fazer esquecer o muito que sofri, a quantidade de pedaços

em que se quebrado minha vida. Nos piores momentos, cheguei a desejar que nossos caminhos

não se cruzassem nunca. Entretanto: o fato de ter concebido e ter dado a luz a Aurora não podia

ser, de nenhuma das maneiras, um fracasso ou um engano!

—Chega! —gritei com crueldade— Aurora não é o fruto de uma... um equívoco. E tampouco

é uma criatura, nem uma falha da natureza, como você descreve. Você pensa o que queira, mas

eu não estou de acordo. É minha filha. É isso por cima de qualquer outra coisa. Talvez seja

também um de vocês... uma nefilim... e...

—Não necessariamente — me interrompeu.

Eu emudeci e o olhei sem compreender.

—Não necessariamente? —repeti no final uns segundos, me debatendo entre a confusão e o

alívio.

Voltou a me dar as costas.

—Como mencionei antes, escolhidos descendem de nefilim não reconhecidos, quer dizer, do

filho de um nefilim e um humano que desconhece por completo sua verdadeira natureza e não se

criou como tal. Isso significa que os seres que nós geramos não têm por que converter em nefilim.

Os primeiros sete anos de vida parecem crianças humanas completamente normais.

—Como Aurora... —murmurei.

—Exato, isso é o que tem que ter acontecido com Aurora. Antes não deu mostra nenhuma

de ser especial, verdade? O mais provável é que fosse tímida e reservada como qualquer criança,

mas não de uma forma preocupante.

Assenti.

—Mas ao fazer os sete anos, mudou.

—Sim, a partir do sétimo ano começa a transformação. Sua verdadeira natureza começa a

impor.

Nesse instante me assaltou uma imagem, o quarto de Aurora em Salzburg e ela sentada

completamente imóvel na cama...

—No princípio Aurora só ficava olhando a um ponto imaginário, como se tivesse entrado em

transe; perdeu o apetite, a ilusão, e logo, quando chegamos aqui...

Interrompi.

—Se nenhum nefilim os instruir como tal — continuou Nathan— são crianças que crescem

como crianças humanas normais, como nefilim inadvertidos. Alguém dos nossos deve, por dizê-lo

de algum jeito, “despertá-los” e instruí-los, e o período de tempo que fica para isso não é

especialmente longo.

Se não ocorrer antes dos quatorze anos, logo é muito tarde.

—Significa isso que estas crianças, esses nefilim desconhecidos, podem levar uma vida

normal? —perguntei esperançada.

—Nem sempre. Terá que sim, mas também os terá que se sentem infelizes e que não

conseguem desprender da sensação de que são diferentes. Alguns são seres com um grande

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talento, pessoas dotadas de uma sensibilidade especial, talvez inclusive gênios; outros se revelam

como pessoas instáveis, doentes mentais e, em ocasiões, como psicopatas. Muitos dos grandes

artistas são nefilim não reconhecidos, mas também muitos ditadores, assassinos, dementes...

—E entre meus antepassados houve um deles — disse tentando compreender seu

discurso— que é o que me converte em um dos escolhidos. Mas Aurora... essas habilidades

especiais que demonstra de forma inesperada, o fato que fale idiomas estrangeiros, que possa

apaziguar aos animais, que saiba coisas que não deveria saber... tudo isso não começou quando

fez sete anos, mas sim desde que... —gaguejei— desde que... Caspar... —concretizei ao fim.

—Sim —respondeu Nathan com gesto sombrio— Caspar von Kranichstein. Ele foi o iniciador.

Foi ele quem fez que despertasse em Aurora a semente que habitava em seu interior: capacidades

que herdou de mim, ou de algum de meus antecessores.

—E Caspar é um dos filhos das serpentes — supus ao cair de repente na conta.

Nesse instante me veio à mente mais claro do que nunca a forma como Caspar sussurrou ao

meu ouvido. No resto, não havia nele nada que recordasse a uma serpente. Quando pensava em

seu olhar vigilante, em sua enxuta figura e seu andar um tanto rígido, recordava mais a uma

aranha que tece sua teia mortal e aguarda sua vítima...

Comecei a tremer ao rememorar a imagem de Caspar hasteando sua espada e equilibrando

sobre mim com um pérfido sorriso.

—Sim —repetiu Nathan— Caspar e eu... somos mais ou menos da mesma idade, do século

XVIII, e nos cruzamos em multidão de ocasiões ao longo de nossa larga existência. Para ser mais

exato, direi que nos conhecemos desde nossa mais tenra infância e que então liberamos nossas

primeiras batalhas, embora nenhuma acabava com um claro vencedor. Tempo mais tarde cada um

tomou seu próprio caminho para evitar as lutas. Já nenhum dos dois estávamos seguros de que

fôssemos sair vivos da batalha. É obvio Caspar não era nem é o único inimigo que tenho, e estou

seguro de que eu não sou o único guardião que desejaria vê-lo morto. Entretanto, acredito que

não há ninguém que me odeie tanto como ele, nem ninguém que o despreze tanto como eu.

—Quando Caspar tocou a Aurora... —de repente essa cena me assaltou com uma nitidez

pasmosa— Quando a hipnotizou... ela se retorceu... começou a espumar pela boca...

—Porque o lado humano que há nela, por um momento, viu transbordado, seu cérebro não

suportava esse instante do desenvolvimento.

—Está dizendo que você... —gaguejei— que você despertou nela... tudo o que sabe fazer.

—Não tudo —respondeu— Só em algumas coisas é como eu, em muitas outras é distinta.

Pode tocar o chelo e domina várias línguas. Entretanto, Cara me contou que conseguiu apaziguar a

um cão raivoso e isso, ao contrário, não herdou de mim, mas sim de meu pai, que dominava com

maestria a linguagem animal. E ainda possui outra habilidade que nem Caspar nem eu possuímos,

só Cara talvez, e certamente não na mesma medida que Aurora. Aí é onde entra minha avó, sua

bisavó: ela tinha habilidades telepáticas e era capaz de ler os pensamentos.

O dono do cão. Seu medo que eu o denunciasse porque não era capaz de controlar o cão,

seu medo de que o obrigassem a sacrificá-lo. Aurora sabia o que passava pela cabeça...

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Série Nefilim 01

129

Era capaz Aurora de ler também meus pensamentos?

Percebeu minha desconfiança das últimas semanas, minha desconfiança para ela?

—E é também... tão forte como você?

—Ainda não. As crianças não herdam todas as habilidades de seus pais. E não todas as

habilidades se manifestam imediatamente; algumas delas devem aprender com esforço. É

provável que Aurora pudesse levantar minha espada, mas não acredito que fosse capaz de dirigi-la

com desenvoltura.

—Mas se ela for sua filha —exclamei— então pertence aos bons, aos guardiães. E isso a

converte em uma inimizade para Caspar! Quando Caspar esteve aqui, não me deu a impressão de

que queria a destruir. Parecia que o que divertia era exercer seu poder sobre ela.

Nathan assentiu de novo.

—Nessa delicada fase entre os sete e os quatorze anos a linha divisória entre nossas estirpes

ainda não está clara. Segundo quem educa o menino, se for um awwim ou um guardião, o menino

passará a pertencer a um bando ou a outro. Se Aurora estivesse submetida à influência de Caspar,

ele poderia convertê-la com facilidade em um dos seus. Mas isso depois seria virtualmente

impossível. Existem casos isolados de nefilim que trocam de bando, mas para isso faz falta muita

força, teria que ter mais força ainda para resistir a nossos instintos. Tem lido alguma vez sobre o

assunto dos anjos? A Igreja diz que podem ser bons ou maus, mas que não há opções intermédias.

Só existe o branco ou o negro, os cinzas não. Algo similar ocorre com os guardiães e os filhos das

serpentes.

—Mas os anjos não existem... ou sim?

—Grande parte do que se conta sobre eles pode aplicar a nós. As histórias sobre os anjos

pertencem aos numerosos mitos que recolhem a ideia de que existem outros seres além dos

humanos. Existem os anjos bons, que protegem aos homens, e os anjos caídos, que os conduzem a

sua perdição. Essa crença tem muito que ver conosco. E também outras lendas que refletem

conhecimentos ocultos como são as histórias de vampiros, fadas, bruxas, gigantes, homens lobo e

coisas similares. São seres que não existem, mas no fundo essas histórias promulgam uma antiga

verdade. São relatos de homens comuns que se encontraram com os nefilim, em seus diversos

aspectos, e tentaram explicar assim sua conduta. O que não ocorre virtualmente é que os

humanos nos vejam lutar. Quando nos movemos entre eles, passamos inadvertidos. Não há

apenas traços pelos que nos possa distinguir.

Tratei de recordar nossa época em Salzburg, quando começamos a nos conhecer melhor, e

me lembrei de algo que sempre me chamou a atenção.

—Você não bebia e comia — assinalei.

—Sim — respondeu sem poder conter um sorriso que apagou imediatamente o gesto

sombrio e triste de seu rosto.

Suponho que pensou naquele momento que acreditei que não queria comer o bolo por

paquera. Que desagradáveis foram nesse momento minhas indiscretas palavras! E apesar disso ele

se limitou a sorrir, com expressão risonha, e ao pouco, por acaso, nossas mãos se roçaram...

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Série Nefilim 01

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—Embora os guardiães têm que se alimentar de vez em quando, não experimentamos

nenhuma sensação de fome —me explicou Nathan— enquanto que os awwim são extremamente

vorazes e não só devoram humanos para apoderar de suas habilidades, mas também por pura

avidez de carne. —Seu rosto refletia uma repugnância que eu também senti— O que temos em

comum — prosseguiu em seguida— é a resistência. Não percebemos o frio e o calor. A maioria

dos movimentos nos supõem um esforço mínimo, o que significa que somos capazes de correr

depois de um humano sem suar e sem que nos acelere o coração.

Nessa época... quando subimos passeando ao monte Kapuzinerberg... eu ia com a língua

fora e ele caminhava a meu lado sem alterar...

—Outra anomalia é que temos o sangue um pouco mais azulado.

De novo me assaltaram lembranças do passado.

O rastro azul na escada de nossa casa... quando ouvi aqueles ruídos estranhos... uns ruídos

que pareciam idênticos ao tinido metálico de espadas que ouvi no jardim de Cara.

—Entendo...

—Os filhos das serpentes geram um halo de frio a seu redor. Nem sempre, só de vez em

quando.

Embora na sala fizesse boa temperatura, nesse instante me percorreu um calafrio. Pensei no

gélido frio que fazia no salão de nossa casa em Salzburg. Que awwim esteve ali? Caspar? Acaso já

sabia de mim naquele tempo? Era por ele por quem Nathan se sentia observado frequentemente?

E tempo mais tarde se inteirou de que Aurora estava crescendo, uma menina humana-nefilim que

possuía habilidades que fascinavam?

Houve algo mais que me veio à mente. A casa... Caí na conta de que a casa em que vivíamos

eu e Aurora foi propriedade de Caspar no passado. Ele a vendeu ao meu pai.

O calafrio foi em aumento à medida que reafirmava minha suspeita de que os sucessos das

últimas semanas eram fruto de uns planos urdidos com premeditação. Para conter os tremores,

levantei devagar, justo no mesmo momento no que Nathan se separou da parede.

Recordei seu torso nu, e como fiquei boquiaberta ao ver que era tão musculoso como o de

um esportista de elite. No princípio me perguntava de onde tirava o tempo para treinar, mas

depois não voltei a pensar nisso. Esse corpo foi o único que despertou em mim era o desejo de

tocá-lo, de acariciá-lo, de possuí-lo e estreitá-lo contra mim. Naquele momento não se tratava de

formular perguntas nem de compreender tantas coisas, a não ser se entregar ao calor e a cercania,

à despreocupação, ao sentimento de que quando estávamos juntos nada importava.

Nathan ficou imóvel e fui eu quem percorreu o último trecho que nos separava. Duvidei se

poderia tocá-lo, mas finalmente, com um gesto vacilante, pousei a mão sobre seu peito, sem a

intenção de ser delicada, mas sim uma tentativa de descobrir as formas que me pareciam

familiares naquele estranho ser.

Por um momento acreditei não sentir nada, nem sua respiração nem os batimentos de seu

coração, como se fosse uma estátua sem vida. Mas de repente, no final de um instante, senti um

calor imenso sob as mãos. Um estremecimento percorreu o corpo e transpassou logo ao meu. Em

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meu interior afloraram vários sentimentos, uns insondáveis e escuros, outros envoltos de

nostalgia e esperança. Quis me separar dele, mas não pude. Por muito que tivesse contado sobre

si e que eu não pudesse apagar de minha memória, seguia sendo Nathan, meu Nathan, o genial

chelista com o que havia tocado, a quem amei como ninguém, o pai de minha filha.

—Por que não me contou tudo isto naquele momento? —perguntei— Por que foi, sem

mais? —Até esse instante consegui conter minhas emoções, mas ao pensar na carta... sua última

carta, impassível e fria... encheram-me os olhos de lágrimas.

—Naquele momento Caspar estava em Salzburg —respondeu com gravidade— Ele sentia

ciúmes de você como jamais havia sentido nem sentirá por nenhuma outra escolhida. Eu

subestimei o furor com que estava disposto a nos espiar e arruinar nossa vida. Depois de que nos

encontrássemos por acaso (isso foi antes que você e eu nos conhecêssemos), pensei que se

afastaria, que se iria do meu caminho e cumpriria o acordo tácito que, ao sabermos de nossa força

igual, existia entre nós. Entretanto, ficou na cidade e se dedicou a me seguir de perto. Embora não

me atacasse, seguia-nos com obstinação. No princípio pensei que conseguiria afugentá-lo...

—Esteve em minha casa —o interrompi— e eu ouvi como brigavam... na escada...

—Era a primeira vez em décadas que nos enfrentávamos. Não só empregamos as armas para

nos atacar, mas também o fizemos em um lugar aberto. A briga não durou muito porque ambos

decidimos nos retirar em seguida ao invés de procurar a vitória. Mas desde esse mesmo instante

soube que Caspar não desistiria, que continuaria me incomodando. E quando você ficou grávida,

só me ocorreu uma solução: se fingia que você já não me importava, ele perderia o interesse em

você e dessa maneira não se inteiraria jamais que você esperava um bebê. Eu parti de Salzburg, e

ele também. O que eu não sabia era que Caspar só fingiu partir. Despistou e, no final um tempo,

retornou. Em circunstâncias normais isso não teria ocorrido, mas naquela época a dor me levou a

borda da loucura. Além disso, ele descobriu que você ia dar a luz a um bebê. Todos estes anos se

dedicou a esperar que Aurora fizesse sete anos para poder exercer influência sobre ela.

—Por quê? —Eu não podia evitar perguntar uma e outra vez, embora imaginasse que essa

pergunta devia levar anos torturando — por que não insinuou ao menos...?

—Porque acreditei que, se o fizesse, a colocaria em perigo! —exclamou com desespero.

—Mas agora, agora também estou em perigo!

—E eu me amaldiçoo por isso. Todos e cada um dos dias que passam. Amaldiçoo-me e...

—Se cale! —interrompi, mas para conseguir que se calasse tive que tampar a boca com a

mão. Senti a suavidade de seus lábios e, quando ao fim calou, deslizei a mão para a bochecha e o

acariciei. Em seus traços via, e por dentro sentia com maior nitidez ainda, como se não houvesse

fronteiras entre sua alma e a minha. Sim, ele mesmo se amaldiçoou e odiou, havia se sentido

perdido e miserável, esteve a ponto de morrer de preocupação por Aurora e por mim. Amava-me.

Sempre me amou.

—Quando Caspar veio aqui, me inquietei —murmurei— Não sabia o que pensar dele. Esse

corpo consumido, esse rosto acartonado, e sobre tudo os olhos... esses olhos escuros e

inescrutáveis.

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—Essa é a característica que nos diferencia com maior claridade. Os guardiães têm os olhos

azuis. Os filhos das serpentes os deixam negros.

Ainda não tirei a mão de seu rosto, não podia deixar de acariciá-lo e ele não fez gesto de

afastar.

—Mas Cara... disse que Cara também é uma nefilim, e ela tem os olhos verdes.

—Cara é um caso muito especial, ela é distinta de todos nós, mas essa é uma história longa e

complicada... Como expliquei antes, é quase impossível que um nefilim troque de bando, mas não

impossível de tudo...

—Ela não pertenceu sempre aos guardiães? —perguntei confusa.

—Isso tem a ver também com Caspar, mas... —Nathan sacudiu a cabeça, com o que deixou

claro que preferia não me falar disso nesse momento. Afastou o rosto de mim com delicadeza e

voltou a apoiar na parede.

—Sophie, vivi muito e sempre evitei manter relações com mulheres humanas. Apaixonei

algumas vezes, mas nunca senti o que sinto por você. Aquelas semanas em Salzburg foram as mais

felizes nestes longos oitocentos anos que vivi... que existi. Cheguei a acreditar que era um

humano, um chelista... um homem.

Levantou a vista e, por um instante, pareceu que estava assustado.

—Não acredita em mim, não é? Não acha que te quisesse de verdade, que não estivesse

brincando com você, que...

Evitei sua pergunta.

—E agora, por que voltou? Como soube que Caspar quer se apoderar de Aurora?

—Cara —respondeu— Confiei em Cara, e Cara nunca quis acreditar em todo aquele tempo

que Caspar se desse por vencido. Você não percebeu, mas faz muito tempo que ela mantém

vigiadas Aurora e você, e assim que descobriu as intenções de Caspar, chamou-me para que

viesse. Mas Sophie... —Vacilou um momento— Não respondeu a minha pergunta. Acredita?

Acredita quando te digo que te abandonei porque te amava? Que te amava com loucura?

Durante uns instantes fui incapaz de responder, tinha como um nó na garganta.

—Pode —consegui articular ao final com muito esforço— pode ser que simplesmente tenha

se deixado arrastar por esse impulso... esse instinto... essa atração mágica que eu exercia sobre

você como escolhida... mas pode isso ser chamado de amor?

Ele sacudiu a cabeça com um gesto enérgico.

—Um impulso seria se não tivesse a deixado apesar de saber que era o melhor para você!

—Mas você mesmo disse...

Nathan voltou a aproximar de mim e, pela primeira vez, foi ele quem me tocou, pousou as

mãos sobre meu rosto e cravou seus brilhantes olhos azuis.

—Sophie! —Apertou tanto as mãos que por um momento pensei que ia espremer a

cabeça— Sophie, me olhe!

Como se pudesse fazer outra coisa!

—Sophie, as emoções dos nefilim são muito mais extremas que as dos humanos, e muito

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mais intensas, e em ocasiões essas emoções nos controlam, queiramos ou não. Mas são emoções,

emoções humanas. Quando escutei Andrej Lasarew, o que mais desejava era voltar a escutá-lo

tocar. E quando te conheci, o que desejava era estar com você. Meus sentimentos eram reais...

autênticos... profundos. Todo o tempo foram. E seguem sendo agora.

Separou de mim, mas eu segui sentindo o rastro de suas mãos. Deu a impressão de que o

azul de seus olhos se tornou mais penetrante ainda. Agora podia experimentar em minha própria

pele o que significava sentir submetido a uma força mais poderosa que as pessoas mesmo, uma

força que anula por completo qualquer espionagem de sensatez e prudência e faz que

desvaneçam o desalento, o desconcerto e a inquietação absolutos de uma confissão. Amo você.

Pertence a mim.

—Sophie, acredita em mim?

Nathan, meu Nathan, voltou a desenhar em minha mente como antes. Sim, por muito que

fosse o que fosse, por muito que me tivesse contado a respeito de si mesmo e eu tivesse que viver

com isso, era meu Nathan, ao que eu amei, ao que seguia amando e ao que sempre amaria.

Ele voltou a apoiar na parede.

—Sophie... —insistiu, me implorando uma resposta.

Não pronunciei uma só sílaba, mas havia outra maneira de responder, mais clara que

qualquer palavra. Impulsionada por um instinto me aproximei dele, nas pontas dos pés, levantei a

cabeça e pousei os lábios com delicadeza sobre sua boca fechada. Em um primeiro momento notei

que tentou afastar, mas tinha a parede atrás e diante estava eu. Então deixou de resistir e

respondeu. Não foi um beijo febril, apaixonado ou efusivo dos que provocam um calafrio por todo

o corpo, a não ser uma demonstração afetuosa, natural e íntima de amor e proximidade. Dei de

presente meus lábios, minha língua e meu abraço sem reservas, e por um instante deixamos de

lado o mal-estar e os temores. Eu não tinha a menor ideia do que seria de nós depois desse beijo

—de Aurora, de Nathan e de mim— como devia viver sabendo tudo o que sabia sem enlouquecer

nem cair no desespero. Mas no meio daquele imenso oceano de perigos, ameaças e perguntas

sem resposta havia uma pequena ilha onde podíamos nos refugiar, não por muito tempo, só

durante um fugaz instante, mas sim, podíamos nos refugiar, nos abraçar, nos acariciar e nos beijar.

Despertou então a lembrança de nosso primeiro beijo ao amanhecer, e me pareceu que o

resplendor avermelhado do sol nos envolvia, embora ainda sem força suficiente para esquentar,

como um rescaldo de esperança que ilumina com indulgência unicamente a beleza do mundo, e

nada de quanto é maligno e execrável. Estreitei com força, queria que sentisse todas e cada uma

das fibras de meu corpo, não queria pensar no que nos diferenciava, a não ser no que nos unia: o

amor, o desejo, o desejo. Depois de evocar a lembrança de nosso primeiro beijo, reviveu em

minha memória também nossa primeira noite juntos, o formigamento que senti em cada parte de

pele que me acariciava, seu tremor quando abri a ele, a fusão de nossos corpos como se fossem

um só e entrada no abismo interior, e nesse instante explodisse um nó na multidão de brilhos que

povoavam um céu estrelado infinito onde voávamos, flutuávamos e dançávamos até alcançar os

limites e nos deixar cair derrotados. Tendidos nos braços do outro, sentíamos como se acalmava o

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fluxo do desejo, como passava de um arrebatamento fogoso a uma leve comichão.

Proibi a mim mesma evocar essas sensações e agora me invadia um desejo irreprimível de

reviver uma e outra vez, de não soltar Nathan, de me entregar a ele, de desterrar tanto os

pensamentos sobre quem era ele como a ideia de que já não tínhamos tempo.

Não tive chance de me deixar arrastar por meus sentimentos porque tudo acabou muito

rápido. Seguíamos enlaçados no mesmo abraço quando de repente se ouviram passos. Não

tínhamos tido tempo de nos separar quando a porta se abriu bruscamente.

—Vêem, depressa! —Cara ficou junto ao marco da porta, seu rosto sempre contido estava

chateado— Vêem, depressa!

Os traços de Nathan, que fazia um instante transmitiam doçura e paixão, endureceram

imediatamente refletindo tanto fatalismo como uma profunda determinação.

—Já? —perguntou Nathan.

—Sim —respondeu Cara com expressão sombria— Já estão aqui.

Desci correndo as escadas sem saber o que era o que me esperava. Jamais ouvi a voz de

Cara, sempre serena, carregada de semelhante espanto. Eu imaginei o pior, mas ao entrar no

salão e olhar angustiada a meu redor, tudo parecia no seu lugar. Os raios do sol penetravam,

oblíquos, pela janela, e as bolinhas de pó dançavam na luz. No jardim faiscavam gotas de rocio. O

único estranho era o sepulcral silêncio que reinava: não se ouvia nem o canto dos grilos nem o

gorjeio dos pássaros.

—O que... o que passou?

Aurora saiu correndo e se equilibrou sobre mim. Eu acariciei o cabelo e nesse instante não

importou absolutamente nada do que acabava de descobrir sobre ela, seu pai e sua natureza...

Nesse instante Aurora era simplesmente minha filha, e meu dever era protegê-la de quem fosse

ou do que fosse.

—Estão por toda parte — disse Cara com uma expressão lôbrega.

—Quais? —perguntei ansiosa.

—Seus ajudantes — respondeu Cara, e me dei conta de que Aurora tremia ligeiramente—

ordenou capturar a Aurora...

Eu sabia a quem se referia, mas ainda havia muitas coisas que não acabava de compreender.

—Ajudantes? —exclamei— O que quer dizer?

—Chama companheiros, serventes ou soldados —respondeu Cara— São nefilim treinados

por Caspar... e que passaram as últimas semanas reunindo forças.

Embora a serenidade voltasse a dominar a voz de Cara, nesse instante eu comecei a tremer

como Aurora.

“Reunindo forças.”

A quantas pessoas teria arrebatado essa vida... turva de nefilim.

—Sigo sem entender! —exclamei confusa— Caspar está fazendo tudo isto só para apoderar

de Aurora? Ela não é a única menina que alberga um nefilim em seu interior! Pensa reunir todo

um exército para apoderar de cada criança?

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Pensei nos dois supostos assistentes que o acompanhavam na primeira visita. De que eram

um homem e uma mulher, ainda me lembrava, mas não de sua estatura nem de seus traços. Sei

que me pareceu um tanto descortês que não me apresentassem eles, mas jamais passou pela

cabeça supor nenhuma classe de perigo, que não fossem pessoas normais e correntes a não ser

seres com a ajuda que Caspar pretendia me arrebatar a minha filha para convertê-la em uma

awwim.

—Você disse — assinalei voltando para Nathan — que são inimigos desde tempos

imemoriais... e que estão igualados. Como é que isso não o intimida? Parece lógico que tentasse

fazer com Aurora enquanto você não estava, mas agora, por que não voltar atrás? Ele sabe que

estão aqui e que vocês protegerão Aurora dele, você e Cara!

Observei que Cara e Nathan trocavam um olhar, e uma vez mais me senti excluída. Mas já

estava cansada de tanto respeito para seus segredos.

—O que me estão ocultando? —inquiri em tom impetuoso— Não importa que sigam me

protegendo. Agora sei tantas coisas que quero que me contem isso tudo, absolutamente tudo!

Nathan suspirou.

—É certo —disse em voz baixa— que a rivalidade que existiu sempre entre nós não é motivo

suficiente para que Caspar anseie apoderar de Aurora com tanta voracidade. As habilidades

telepáticas de Aurora por si só suporiam uma vantagem tão mínima em uma luta, que poderia

perder. A isso terá que acrescentar que ele é extremamente precavido e prudente.

Eu desviei o olhar para Aurora e observei a atenção com a que escutava aquelas palavras.

Ela, entretanto, longe do desconcerto que me invadia , mostrava-se bem mais acalmada, como se

tudo que dizia Nathan parecesse familiar, como se tudo o que ele explicou com tanto empenho ela

compreendesse de forma instintiva. Perguntei se sabia também que Nathan era seu pai, e o que

opinaria a respeito, mas não havia tempo para dar voltas a esse assunto.

—O que segue impulsionando a Caspar a manter na luta —continuou Nathan— é,

sobretudo, a sede de vingança.

De repente me sobressaltei e me voltei. Um ruído me fez estremecer. Um ruído

desconhecido para meus ouvidos, mais similar a um rangido que a um raio, uma espécie de estalo

mais que uns passos. No jardim, entretanto, reinava a calma... uma calma extrema. Separei a

Aurora de mim, dirigi à janela e inspecionei minuciosamente o jardim passando o olhar de um lado

a outro. A pérgula, cheia de trastes, estava na sombra. Não era acaso o lugar idôneo que

escolheria um agressor para esconder?

Senti-me observada e indefesa.

—Vingança, do que? —perguntei.

Cara se aproximou de mim. Seu rosto voltava para transluzir serenidade, mas me precavi de

que todas as fibras de seu corpo estavam em tensão enquanto seu olhar vagava pelo jardim.

—Faz muitos, muitos anos, decênios, ou melhor dizendo... séculos —começou a dizer entre

hesitações, dando sinais evidentes de que custava depositar sua confiança em mim, em uma

humana—, Caspar tinha uma companheira —prosseguiu— Se chamava Serafina, era uma mulher

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humana e ao mesmo tempo uma escolhida. Era exatamente como você. Não, não é certo, na

realidade era muito distinta de você porque era tremendamente malvada. Era uma mulher de

uma beleza, uma inteligência e um talento assombrosos. Não sabia tocar piano, mas tinha uma

voz que enfeitiçava e cativava aos humanos... uma voz sedutora como a de uma sereia... e

precisamente esse era seu propósito: Serafina não queria deslumbrar aos homens com sua voz, o

único que desejava era ser o centro de todas as olhadas e arrebatar aos homens sua vontade.

Serafina era uma mestra da manipulação, da chantagem, da tentação, uma mulher vaidosa e

egoísta, fria e desumana. Todas elas eram características que Caspar não possuía, ao contrário. Ele

dependia dela para tudo, e ela pressentia como podia ser poderosa se chegasse a ser convertida

em sua servidora. O fato de que Caspar fosse quem era não assustava o mínimo, mas sim o

convertia em uma grande tentação para ela. De forma que se entregou a ele, gerou um filho dele

e desde o começo Caspar albergou a esperança de que esse menino —nascido de seu sangue e a

de Serafina— chegasse a ser um nefilim mais poderoso e forte que ele. Um que fosse capaz de

vencer Nathan e aos muitos outros por quem ele se sentia ameaçado. —Cara fez uma pausa e

tragou saliva—. Nós... nós tínhamos o dever de impedi-lo.

Não acrescentou nada mais, mas não era necessário. Um calafrio percorreu as costas, e essa

vez não o provocou um estalo desconhecido, a não ser a certeza de qual era o final da história.

Mataram à mulher. A Serafina. E também ao seu filho. O filho do Caspar von Kranichstein. E

por isso agora ele queria Aurora.

Cara não mencionou em nenhum momento qual era o sexo do menino, mas de repente me

apareceu na mente a imagem de um menino de olhos negros e cabelo negro que tinha a pele

pálida e as extremidades magras e robustas, um menino que parecia com Caspar, embora fosse

muito menor, mais tenro, e em lugar desse desagradável resmungo, tinha um timbre de voz claro

e luminoso.

Sacudi a cabeça para afugentar essa imagem de minha cabeça e voltei para Nathan com a

esperança de que as coisas fossem diferentes do que como eu temia. Entretanto, Nathan adotou o

mesmo gesto de desespero ao me relatar o assassinato de Andrej Lasarew, e seu rosto escureceu.

Finalmente o desespero deixou passo a uma profunda determinação.

—Até então jamais havia... matado um menino nefilim —murmurou— Mas nessa ocasião

era inevitável... não só por minha própria integridade... mas sim pelo bem de todos. Consegui

fazê-lo graças à ajuda de Cara. Se não fosse por ela, jamais teríamos conseguido derrotar Caspar...

E agora... Caspar não ocorreria jamais matar Aurora, porque tem habilidades muito valiosas, mas

nos quer arrebatar isso para me ver sofrer da mesma forma que eu o fiz sofrer. Sua ideia é

substituir com Aurora o filho que perdeu...

Eu estremeci mais ainda. A imagem desse menino me aparecia na mente cada vez com

maior intensidade e nitidez. Até esse momento consegui reprimir toda a repugnância que sentia

para o que Nathan era e fazia. Mas agora... como podia fazer algo assim?

Entretanto, quanto mais tempo contemplava a imagem mental daquele menino, mais vazios

me apareciam seus olhos, mais afiados e angulosos seus traços; e quando abria a boca, em lugar

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de surgir dela sons claros e vivos, brotava uma gargalhada, estridente e dilaceradora. Sacudi de

novo a cabeça e a imagem se esfumou, mas a gargalhada não só permaneceu, mas também

retumbava cada vez com maior intensidade. Já não surgia dos finos lábios do menino, mas sim de

outro lugar... parecia que envolvia toda nossa casa.

Outros a ouviram antes que eu. Nathan começou a correr pelo corredor e, ao retornar, não

só levava um casaco negro, mas também sua espada. Embora não fosse a primeira vez que o via

empunhando a espada, a visão dessa arma perigosa e arcaica em suas finas e largas mãos de

chelista me parecia insuportável.

Cara me afastou rapidamente da janela.

—Se você ajudou Nathan a matar ao filho do Caspar, ele deve estar tão ansioso de vingar de

você como dele — disse pensando em alto.

Os olhos de Cara brilharam, verdes, e então recordei o que mencionou Nathan um momento

antes, que a cor de seus olhos a diferenciava de todos os de sua espécie, que não era uma nefilim

corrente, a não ser —algo quase impossível— uma nefilim que mudou de bando. Guardava isso

também relação com Caspar?

—Conheço melhor do que eu gostari—respondeu, e depois acrescentou com raiva— mas se

acredita que vai intimidar com suas miseráveis criaturas, está muito equivocado!

—Mas se sabiam que tudo isto ia ocorrer, se sabiam de sua sede de vingança, de suas ânsias

por apoderar de Aurora, como é que Caspar dispõe de tantos ajudantes e vocês não?

Cara e Nathan voltaram a trocar um olhar fugaz.

—Tem que haver muitos guardiães que vejam Caspar a seu pior inimigo! —gritei ao ver que

nenhum dos dois respondia— Como é que só estão vocês dois aqui para nos proteger, Aurora e a

mim?

Cara teve uma reação inesperada. A fúria se desvaneceu de seu rosto e pôs a rir. Era uma

risada carregada de amargura, um resmungo como o do Caspar. Sempre me pareceu a mulher

mais formosa que jamais conheci, mas nesse instante seus traços se desfiguraram de uma forma

que me resultou muito estranha. Refletiam tanta amargura e decepção, tanta raiva contida e tanta

tristeza...

—Cara não é muito querida —repôs Nathan em um tom evasivo— É por sua procedência. —

Guardou silêncio antes de continuar com a explicação e, depois de uma breve pausa, adicionou

em seguida— Eu, entretanto, perdi muitas amizades porque questionei meu destino com

frequência. Muitos de meus semelhantes me acusam de ser um traidor e um covarde que prefere

tocar o violoncelo antes de cumprir nossa missão. —Voltou a fazer uma breve pausa, e a seguir

sentenciou com firmeza— Mas eu lutarei quando chegar a hora.

—Não tenha medo —apontou Cara— Ninguém pode nos pôr em perigo. Caspar, no máximo.

E ele não se acha entre os que estão rodeando a casa.

As palavras de Cara deveriam ter me tranquilizado, e além disso silenciou sua inquietante

risada, mas ao pensar que a casa estava rodeada de inimigos formou um nó na minha garganta.

—Como sabe? —perguntei com um fio de voz.

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—Porque o sentiria.

Seus olhos verdes se iluminaram.

—Como? Como o sentiria?

—A razão é que nós...

Não pôde continuar. O vidro de uma janela que se achava a nossas costas explodiu como

pedacinhos com grande estrépito.

Dei a volta e vi como os afiados pedaços choviam sobre o chão do salão. A luz do sol incidia

sobre eles como antes sobre as bolinhas de pó, fazendo brilhar como em um faiscante lago de

cristal que se revelava muito formoso para ser um augúrio de perigo e ameaça. Separei a vista e só

alcancei a distinguir que não era uma janela, a não ser a porta que dava ao jardim a que se

quebrado em pedaços. Mostrava um buraco o suficientemente grande para introduzir as duas

mãos, mas muito pequeno como para que alguém se deslizasse por ele. Não vi ninguém quando

procurava com o olhar no jardim e ouvi uma revoada, a revoada de um pássaro, não, de vários

pássaros, pelo que parecia um gigantesco bando de pássaros. Então me pareceu ver acontecer

algo escuro a toda velocidade, muito maior que um pássaro e muito mais rápido também.

Os fragmentos de vidro já não cintilavam. A luz que penetrava no salão perdeu intensidade e

agora era pálida, não só como se uma nuvem tampasse o sol, mas sim como se este se converteu

em uma imensa lâmpada que luzia cada vez com menos força e acabava piscando.

Abracei Aurora e notei que ela também me rodeava com os braços. A segurança sumiu de

seu rosto e nesse momento não era mais que uma menina de sete anos que tinha medo.

Mesmo assim, ela não gritou aterrorizada, como eu, quando vimos que Nathan não era o

único que ia armado com uma espada. Cara também. Havia trazido tempo atrás a casa essa

espada com a que agora sulcava o ar, e a guardou para poder defender em qualquer momento

dos inimigos?

Procurei Cara com o olhar, depois Nathan, procurava fôlego, consolo, a tranquilidade de que

tudo sairia bem, mas foi como contemplar os rostos de dois desconhecidos.

Os olhos de Nathan brilhavam, mas não era o único, todo seu rosto parecia coberto por um

véu de luz azulada. No caso de Cara, o véu era de um verde cintilante. Não a vi passar junto a mim,

mas de repente apareceu na parede da janela. Seus movimentos eram ágeis e suaves, e ao mesmo

tempo tão mecânicos e precisos que pareciam efetuados por um robô.

—São cinco —disse Cara, com a mesma firmeza na voz e no olhar— cinco ou talvez seis.

As últimas palavras se perderam no estrépito que provocou de novo o bando de pássaros.

Na fachada da janela me pareceu distinguir outra vez uma sombra, ou possivelmente mais de

uma. Cara conseguiu contar o número de atacantes, e eu nem sequer teria podido afirmar com

segurança que os que rodeavam a casa fossem seres com forma humana.

—Segue sem haver nem rastro do Caspar — anunciou.

Por um instante se mostrou aliviada, e portanto humana, mas o momento de debilidade não

durou muito e em seguida seus traços voltaram a endurecer.

Eu tentei estreitar a Aurora com mais força, mas de repente ela resistiu e se separou de

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139

mim.

—Auro...

Seu nome engasgou. Seu rosto já não mostrava o medo de uma menina, e uma luz

fluorescente — similar ao resplendor azulado que desprendiam os olhos de Nathan— a envolvia a

ela também. Sua pele se tornou mais pálida, reluzente como o marfim, seu cabelo parecia brilhar,

como banhado pelo sol, apesar de que o céu se turvou mais ainda, e todos seus músculos, que

estavam em tensão, pareciam dotados de uma insólita força. Nathan disse que não possuía ainda

uma força física extraordinária, mas nesse instante eu tinha a certeza de que podia me mandar

voando ao outro extremo da sala com um leve empurrão.

Olhei com uma mescla de estranheza e desgosto, mas também com respeito e amor,

quando de repente me puxou a mão e me afastou para um lado. Ela, muito antes que eu, advertiu

o estrondo e os golpes no jardim. Algo negro e pesado passou me roçando e, por um instante,

pensei que uma das figuras escuras tomou impulso e se arrojou com todas suas forças contra a

porta do balcão que já estava meio quebrada. Mas o que caiu no meio do salão não era uma

pessoa, a não ser um tronco de árvore do que ainda penduravam as raízes cobertas de terra.

Enquanto que eu nem sequer teria tido força para afastá-lo rodando a um lado, havia alguém que

o utilizou, a modo de lança, para aumentar o buraco da porta. Os fragmentos de vidro caíram em

forma de chuva sobre mim. Olhei as mãos e adverti uma gota de sangue que escorregava com

lentidão para o cotovelo.

—Sophie, cuidado!

Um segundo depois senti como os braços de Nathan me capturavam com tanta força que

me faltava o ar. E um instante mais tarde me vi no corredor junto a Cara e Aurora sem conseguir

entender como tínhamos podido nos deslocar até ali, tanto elas como eu mesma, com tanta

rapidez.

No salão se ouviu esse chiado estridente tão desagradável que, mais que uma gargalhada,

era um ofego, um chiado angustiante, como se alguém estivesse esfregando duas partes de

porexpan4 muito lentamente. Eu tampei os ouvidos com um gesto instintivo; Nathan e Aurora

ficaram petrificados. Cara, em troca, deslizou silenciosamente junto a mim e, então, em lugar do

chiado, começou para ouvir o estrépito metálico das espadas. Apareci no salão e, ao ver como

duas das figuras escuras se equilibravam ao mesmo tempo sobre Cara, gritei horrorizada, mas ela

começou a brandir a espada em todas as direções até que obteve que os atacantes

retrocedessem. Eu não podia seguir seus movimentos; era como se a espada não só cortasse o ar,

mas também além disso levantasse uma barreira de força entre ela e os inimigos, dos quais só se

alcançava a distinguir um revoo de casacos. Eu sabia que estes eram de tecido comum, como a

roupa dos humanos, mas se nesse instante alguém dissesse que aos nefilim cresciam plumas,

como aos morcegos, teria acreditado isso.

Eu esperava que Nathan entrasse na briga mas, no lugar disso, o que fez foi me afastar

4 Poliestireno expandido e um material plástico de espuma derivado de poliestireno e utilizado no domínio da embalagem e

construção. Também conhecido como isopor.

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140

rapidamente da porta do salão.

—Sophie, escuta, aqui corre perigo!

Eu ri com secura.

—Ah, sim? Não me diga?

—Caspar tem o ponto de olho posto em Aurora e, se Cara e eu nos concentramos em

protegê-la, não poderemos nos ocupar de você. Até no caso de que os ajudantes de Caspar

ignorem, é fácil que saia ferida. É muito lenta e torpe para esquivá-los.

—Obrigado pelo elogio! —disse soltando outra gargalhada.

Era como se tivesse o cérebro bloqueado e já não fora capaz de sentir medo. A situação era

tão absurda que sobreveio um ataque de risada histérica, mas imediatamente passou. Voltei a

ouvir o estrépito de uma espada, embora nessa ocasião não foi no salão, a não ser a meu lado e,

em lugar de Cara, agora era Nathan quem agitou a arma e se defendeu como um raio de um

inimigo que tentou surpreendê-lo pelas costas. Não sei como entrou em casa nem como Nathan

conseguiu dominá-lo tão rápido. O único que vi foi que de repente aquela criatura escura jazia no

chão, retorcendo, e agarrava o braço. Mas ainda tinha braço? Ou Nathan o cortou?

Nesse instante meu olhar recaiu sobre a pele e o sangue azulado daquele ser. O único que

não consegui distinguir foram os olhos negros, já que os fechou e afundou nas conchas.

—Sophie, tem que ir procurar ajuda! —gritou Nathan. Entre sílaba e sílaba ressonava o ruído

das espadas entrechocando. Outro inimigo apareceu do nada e se equilibrou sobre ele.

Eu me agachei.

—Ajuda, de quem?

De repente, Cara apareceu a meu lado e se inclinou para me proteger justo no instante em

que a folha de uma espada passou quase me roçando. Enquanto isso devia ter conseguido vencer

aos agressores do salão.

—Caspar trata de nos pôr nervosos, de nos intimidar — me disse—, por isso mandou estes

awwim, mas esta não é a verdadeira luta para a que leva tanto tempo preparando, a luta por

Aurora, a luta de vida ou morte. Se houver algo que Caspar não admitirá é que haja testemunhas.

Não quer armar nenhum escândalo, nunca gostou, por isso... Sophie, tem que chamar à polícia!

Estou seguro de que os ajudantes têm ordens de retirar-se imediatamente se aparecerem

estranhos.

Escutei suas palavras com ceticismo. Parecia segura do que dizia, mas e se equivocava? E se

essas criaturas negras decidiam lutar com suas espadas contra as pessoas que viessem a nos

ajudar? Podia assumir essa responsabilidade?

No final de um instante deixei de lado todas essas considerações e o único que contava era

Aurora. A criatura que um instante antes estava se retorcendo no chão e com dor no braço,

incorporou de um salto, já recuperada, acabava de agarrar a Aurora pela cintura e nesses

momentos estava arrastando pelo corredor. Cara se plantou diante e fechou o passo, antes que a

criatura capturou a Aurora mais forte ainda com suas enormes e robustas mãos. Vi como Cara

tentava arrebatar a Aurora a aquele ser e que, ao não conseguir, começou a agitar de novo a

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espada. A gritaria aumentou; as figuras se davam meia volta, saltavam, bracejavam, corriam e se

arrastavam tão rápido que já não alcançava a distinguir de quem eram as mãos e os pés que

participavam daquela selvagem dança da morte. Ao ver a espada de aço sulcando o ar, a ponto de

roçar o frágil corpo de Aurora, senti o impulso de me jogar sobre aquela massa de corpos porque

preferia que me ferissem com uma espada antes ver que faziam mal a ela. Pus a correr para o

tumulto para poder —ou isso acreditava— resgatar a Aurora, mas antes de chegar, a batalha se

recrudesceu em outro ponto do corredor. Nathan tinha razão, eu era muito lenta e torpe para

intervir na briga.

Então se detiveram o fim o estrépito, os gritos, os gemidos. Vi que Cara afundava a espada e

puxava Aurora para si para protegê-la, e então a criatura ficou estendida no chão, imóvel. Nesse

momento notei uma dor no estômago, porque alguém devia ter dado uma cotovelada. Se fosse

uma espada, já estaria morta, e Nathan não teria podido evitá-lo porque —pelo que ouvia no

salão— seguia combatendo os ataques de um atacante.

“Nathan tinha razão —pensei— As criaturas de Caspar têm o ponto de olhar posto em

Aurora, não em mim. E Nathan e Cara não poderiam nos proteger às duas.”

Reprimi o impulso de olhar a Aurora, de abraçá-la, de perguntar uma e outra vez se estava

bem, e confiei que as mãos de Cara eram por agora as mais seguras para ela.

Procurei a meu redor com desespero. Onde coloquei a bolsa no dia anterior? A bolsa com o

telefone celular?

No instante em que o encontrei — estava debaixo do cabide—, uma sombra negra passou a

toda velocidade a meu lado. Agachei instintivamente, me abaixei, sem levantar a vista, e avancei

junto à parede, sabendo que a meu redor se estava liberando uma batalha parecida com a de

antes. Tentei não olhar sabendo que não poderia distinguir nada nem intervir, e me concentrei por

completo na missão de chamar à polícia.

Quando por fim me encontrava o bastante perto da bolsa, estendi o braço, tirei o celular e

apertei as teclas com impaciência. A tela não se acendeu, a bateria estava descarregada. A

gravação do dia anterior, que eu escutei até não poder mais, consumiu muita energia.

Tentei me abstrair do fragor da batalha que ouvia por detrás e manter a cabeça fria. O

telefone fixo estava no salão e chegar até ali resultava impossível. O que devia fazer? Cara e

Nathan não me disseram que, em caso de emergência, podia abandonar a casa para ir procurar

ajuda, mas talvez devesse me arriscar. Falaram de uns cinco ou seis atacantes: as pessoas estavam

mortas no corredor, outros dois jaziam no chão do salão, e Cara e Nathan estavam liberando uma

árdua batalha nesse momento com o resto. Quando vencessem a estes, teria passado o perigo?

Ou haveria mais ajudantes de Caspar em caminho?

Permaneci um momento escondida, até que de repente ouvi Aurora gritar aterrorizada e,

nesse instante, soube exatamente o que devia fazer.

Em questão de segundos estava no carro. De acordo, não podia me mover com tanta rapidez

como um nefilim, mas agora podia atuar sem vacilações. Não recordo como pus um pé diante do

outro e saí caminhando da casa.

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Tentei abrir a porta do carro, dei conta de que estava fechada e joguei a mão ao bolso sem

pensar. Ao final encontrei a chave no fundo de meu casaco e a introduzi na fechadura com a mão

tremente. Acabava de abrir a porta do carro e me inclinar para arrancá-lo quando de repente ouvi

minhas costas esse chiado tão desagradável como familiar, como o que soa ao esfregar duas

partes de porexpan.

Ao me voltar, vislumbrei algo negro: um casaco ou, melhor dizendo, umas plumas negras.

Mas não era nenhuma coisa nem a outra: era uma camisa negra.

Apenas a um metro de distância de mim se achava Caspar von Kranichstein. Em todas as

ocasiões em que nos tínhamos encontrado, seu rosto recordava a uma máscara, flácida e de cera.

Agora, entretanto, sua pele exibia um aspecto ligeiramente ruborizado e mais saudável. Seria

acaso pela vitalidade que roubou das pessoas às que matou?

Cravou o olhar como se queria me atravessar com ela. Ele seguia imóvel, embora em um

momento dado levantou lentamente a mão em direção a mim, aproximando cada vez mais a meu

rosto.

—Pensei que era a minha filha a quem queria — disse em um tom inexpressivo. Saiu de

forma natural o falar de você. Não havia tempo para formalismos nem palavras de cortesia.

—Também —respondeu laconicamente— Mas não só ela. —Então explodiu em gargalhadas

e acrescentou— Estava convencido de que Nathan e Cara se desfariam de meus lacaios sem

problemas. E também que pensariam que a prioridade era proteger Aurora. —Sua risada se

extinguiu— Que insensatez... —acrescentou fingindo compaixão.

Que insensatez a minha, sobretudo, por abandonar a casa quando é obvio que a essa

distancia Cara podia perceber a presença de Caspar.

Talvez sim percebesse, e agora já era muito tarde para intervir.

Caspar se aproximou de mim, nesse instante sua mão estava a ponto de me roçar a pele. Eu

me aproximei ao carro, mas não tinha margem para retroceder mais e já me parecia notar o roce

desses magros e afiados dedos que estavam a ponto de me acariciar quando percebi que Caspar

sustentava algo na mão, algo branco e suave. Nesse momento um aroma penetrante subiu por

meu nariz, senti que algo me abrasava a mucosa e, entre ofegos, tratei de tomar ar. Logo,

desmaiei em seus braços.

Capítulo 9

Estava no fundo de um poço, negro e profundo, úmido e frio, e de repente um raio de luz

muito tênue e proveniente de muito longe caiu sobre mim. Devia percorrer um comprido caminho

através do negro buraco para poder me alcançar, me acariciar o corpo, despertar pouco a pouco a

pele.

Sol…

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Sim, estava convencida de que me cegava o sol, de que caía sobre minhas pálpebras

fechadas cada vez mais resplandecente, mas ao abrir os olhos e afastar a vista da fonte de luz, não

vi o céu azul, a não ser uma parede branca. Voltei de novo à cabeça procurando o sol, mas

desapareceu, e em seu lugar pude contemplar um teto branco igual à parede. Não sentia nada,

tampouco me zumbiam os ouvidos, nem tinha o estômago revolto, nem a garganta irritada. Era

como se já não estivesse em um poço sombrio e me encontrasse envolta em suaves algodões, ou

ao menos o chão sobre o que me achava estendida, depois de apalpá-lo com cuidado, pareceu

com penugem. Não... não era algodão... era bem um couro.

Fechei um instante os olhos, voltei a abri-los e girei a cabeça com grande esforço para o

outro lado. Ali, em lugar de uma parede branca, abriam-se umas janelas em cujos vidros via

refletida, umas janelas imensas que chegavam do chão até o teto e deixavam à vista um céu

descolorido. Não parecia em nenhuma parte um sol que desse consolo, calor... só branco.

Ao ver as janelas até o chão soube onde me encontrava. Tratei de me incorporar, ofegando

com fadiga, e quando ao fim consegui sentar, notei um puxão no ventre e uma espetada na nuca.

Branco. Tudo seguia sendo branco: a mesa de centro, o sofá de couro branco, um piano. Em

meio de todo esse branco, entretanto, vislumbrei algo negro que ia ganhando nitidez, uma forma

cujos contornos foram definindo pouco a pouco. Caspar. Estava sentado tranquilamente no sofá

de couro, com as pernas cruzadas e as mãos largas e afiadas posadas no colo.

Levantei de um salto e senti como se me tivessem parecido uma flecha no cérebro. Movi

com muita brutalidade. Endireitei as costas não só para ver se desse modo conseguia aliviar a dor,

mas sim porque pressentia que não me deixariam estar muito tempo de pé, que alguém me

agarraria, puxaria ao chão, equilibraria sobre mim, golpearia... estrangularia... Não uma pessoa

qualquer, a não ser Caspar...

Entretanto, Caspar continuou sentado tranquilamente frente a mim e não parecia ter a

menor intenção de levantar. Eu podia me mover com total liberdade, ao menos por essa sala

branca.

—Sinto muito — se desculpou de repente.

—Como? —Tinha a língua tão esponjosa que ficava presa aos dentes.

—Sinto-me ver obrigado a te causar tantos males.

Não sabia como interpretar seu tom de voz. Eram essas maneiras tão deliciosas uma

brincadeira? Ou o sentia seriamente?

Não. De maneira nenhuma. Nathan matou Serafina, o grande amor de Caspar, e agora

Caspar queria matar a mim para vingar. Esse era o plano, seu interesse por Aurora era fingido, não

era mais que um pretexto para enganar Cara e Nathan.

Nesse instante Caspar levantou, andava com passo capengante. Eu fiquei tensa, mas não se

dirigiu para mim, mas sim começou a caminhar em amplos círculos a meu redor.

Não tirava a vista de cima, sabia que aquela lentidão não era mais que uma representação,

que Caspar era capaz de realizar movimentos imensamente mais rápidos e ágeis e que eu não

podia fugir dele. Entretanto, por muito desatinado que fosse, comecei a imaginar um modo de

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escapar dessa sala. A porta — que nesse momento se achava detrás de Caspar— estava a uns dez

passos de distância. Pelas janelas seria mais fácil, mas podiam abrir? Deixei de olhar Caspar e

escrutinei a sala com nervosismo em busca de algum objeto com que pudesse ameaçá-lo, com que

pudesse golpeá-lo.

Essa ideia era tão ridícula como tentar escapar. Caspar era tão mais forte que eu que, assim

que levantasse a mão, mataria sem pensar. Como faria? Degolaria e deixaria que sangrasse?

Cortaria a cabeça com a espada? Embora não a levava consigo, estava convencida de que a

escondeu em algum lugar daquela sóbria sala e que podia pegá-la em um abrir e fechar de olhos.

Ou talvez não necessitasse a espada; talvez me arrancasse o coração do peito com suas próprias

mãos... Sim, isso era o mais provável porque assim, além disso, quebraria o coração de Nathan.

Entretanto, Caspar continuava sem aproximar de mim, permanecia de pé em meio da sala.

—Não tenha medo! —Sua voz soava como um sussurro metálico, como de costume, mas

havia algo nela que me tranquilizava, que me paralisava. Sentia tão incapaz de resistir a ela como

antes ao penetrante aroma que me fez perder a consciência.

—Quer me matar — disse em um tom acalmado. Não sentia medo, mas parou meu coração

ao escutar as palavras que pronunciou depois, umas palavras com as quais não contava e que não

compreendi.

—É obvio que não vou matá-la — respondeu indignado— Seria impensável. Amo muito para

fazer algo assim.

Fiquei olhando sem compreender. Embora ouvisse suas palavras, custava acreditar. Amava-

me? Disse que me amava?

Parecia inconcebível que essa palavra existisse no idioma de Caspar, e mais ainda que

significasse o mesmo que no meu. Caspar não podia me querer. Caspar queria vingança.

Voltou de costas para mim com lentidão, foi ao piano branco e levantou a tampa. Logo, com

atitude vacilante, começou a tocar algumas notas agudas.

Embora suas palavras não fossem capazes, tanto me tranquilizaram esses sons inesperados

mas tão familiares para mim. Não pude fazer menos que me relaxar. Parecia que no meio desse

mundo estranho e perigoso surgiu um espaço protetor onde podia sentir segura e respirar com

liberdade.

Sem deixar de tocar, sentou na banqueta, pousou a outra mão sobre o teclado e começou a

tocar, não notas ao acaso, mas sim uma singela melodia. Eu fiquei olhando as mãos. Tão

assombrada como escutei sua confissão, escutei a música que, face à ausência de magia e mestria,

procurava uma sorte de alívio depois do fragor da batalha.

De repente interrompeu a melodia.

—Eu não sou músico como Nathan —anunciou— mas fui que descobriu...

Dava a impressão de que o piano tingiu sua voz, porque já não soava desagradável aos meus

ouvidos, a não ser muito mais profunda, vigorosa e melosa.

—Quando? —perguntei entre hesitações— Como?

Sem levantar da banqueta do piano, voltou para mim.

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—Vi faz tempo em Salzburg, e soube imediatamente que foi uma das escolhidas... uma das

poucas pessoas que se diferenciam do resto da massa. Foi mais formosa que o resto, mais lúcida,

mais inteligente, mais nobre, mais valiosa. Não há muitas mulheres humanas com as que nós

tenhamos relações, mas você é uma delas. Aurora poderia ter sido nossa filha... deveria ter sido

nossa filha.

Sua mão esquerda voltou a pousar sobre o piano, voltou a teclar, mas já não seguia uma

melodia. Eu percorri toda sua figura com o olhar. Já não me inspirava medo, a não ser uma mescla

de repugnância e fascinação. Naquele momento, quando nos vimos pela primeira vez frente a

nossa casa, causou uma sensação especial, apesar do mal-estar, e agora sentia o mesmo. Não

havia nada formoso nele, nada atraente, a não ser algo poderoso, algo que o enchia todo.

—Sei o que está pensando —disse soltando uma risada fria— Está me comparando com

Nathan, esse genial chelista, esse homem formoso. Eu, ao contrário... não só sou tolo ao piano, é

que sou um filho do mal. Acha que nem sequer teria podido me amar como a ele, imagina como

algo horroroso estar perto de mim... levar dentro de si meu filho.

Fechou a tampa do piano com um golpe seco e forte que me assustou. O ruído me recordou

à tarde em que Nathan me deixou e disse a Nele que jamais voltaria a tocar piano.

—O que te contou sobre nós? —perguntou com aparente serenidade e indiferença

enquanto levantava da banqueta — De nós, os awwim, os filhos das serpentes? Desses nefilim tão

malvados que querem subcolocar os pobres humanos? E de sua nobre missão de nos deter e, uma

vez tenham conseguido nos aniquilar, exterminar a si mesmos?

Cada nova palavra parecia exacerbar sua repugnância e desprezo por Nathan. Sempre me

deu a sensação de que seu rosto era postiço, como uma espécie de máscara enorme e flácida que

agora parecia franzir e grudar ao rosto. O único gesto que a transpassava era um ódio que o

desfigurava todo.

—Eu sou o monstro, e ele é o herói; nós somos os adversários e eles os salvadores —

prosseguiu— Assim contam desde tempos imemoriais. Mas essa é só sua visão... a visão de

Nathan do assunto. Entretanto, há outra visão. Quer escutá-la?

—Acaso tenho escolha? —disse sem pensar.

Ele voltou a rir. A expressão de seu rosto relaxou um pouco quando mostrou o sofá branco

de couro.

—Sente! —ordenou— Levará um bom momento. Gostaria de tomar algo?

Soava como o anfitrião perfeito. Até esse momento nem sequer me dei conta de que tinha

os braços cruzados à altura do peito, para me proteger, e fiz tanta força que, ao baixá-los,

formigavam. Fui ao sofá com as pernas trementes. Nesse instante já não me provocava tanta

repugnância, mas em troca me assaltou de novo o medo por Aurora. Embora Caspar tivesse o olho

em mim, e não nela, não deixaria passar a menor oportunidade de capturá-la. O que estaria

acontecendo na casa? Teriam podido Nathan e Cara vencer a todos os agressores?

De todos os modos, ao menos pelo que eu sabia, Caspar era o rival mais forte e perigoso, e

enquanto estivesse ali comigo não podia fazer nada a minha filha. Cara e Nathan tinham tempo de

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levá-la um lugar seguro, fosse onde fosse.

—Bom, o que gostaria de tomar?

—Não quero nada —murmurei.

—Vá —respondeu.

Apareceu a ponta da língua e a passou pelos lábios. Tinha fome? Fome de carne humana?

As pernas começaram a tremer com mais força ao me aproximar do sofá e me sentar

lentamente. Apoiei as mãos contra a tapeçaria do sofá e o couro me pareceu escorregadio e frio.

Caspar deixou de lamber, mas seguia obcecado com o assunto da comida e a bebida.

—Eu sempre estou preparado para receber convidados —esclareceu— Já sabe que ofereço

seminários para empresários e políticos. E seus desejos se satisfazem sempre.

Eu não sabia o que dizer, mas pensei de novo em Aurora e me disse que o melhor que podia

fazer era alongar essa conversa durante todo o tempo possível, entretê-lo.

—Acreditava que esses seminários eram só um pretexto para poder viver aqui

tranquilamente sem que ninguém pergunte o que faz. Se considerar que nós humanos somos lixo,

não acredito que queira ter nada a ver com eles nem que os trate com atenção por própria

vontade.

Ele sentou em frente a mim. Entre nós se encontrava a mesa de cristal, uma barreira fácil de

transpassar mas ao menos uma barreira visível que me dava certa tranquilidade. Reclinei sobre o

respaldo e senti as mãos um pouco duras.

—Tem razão — disse ele muito erguido enquanto pousava as mãos sobre as pernas— os

humanos são lixo. Mas há exceções, e não me refiro só às escolhidas como você. Segundo Nathan,

os filhos das serpentes querem escravizar aos humanos, submetê-los e explodi-los sem piedade

alguma. Não é de tudo incerto o que diz, embora tampouco seja do todo verdade. Os humanos

estúpidos, inúteis, folgados, feios, insolentes e desencaminhados, toda essa plebe que não vale

nada deveria estar contente de nos servir no caso de que os deixássemos viver. O que outra coisa

iriam fazer a não ser matar ou devorar lentamente os uns aos outros se ninguém desse ordens?

Mas não todos os humanos são iguais. Há algumas mentes acordadas que entendem como

funciona o mundo. Deixam-se aconselhar, podem chegar a aprender muito de nós. Nathan diria

que esses são os humanos corrompidos pelas ânsias de conseguir dinheiro e poder, luxo e

reputação, humanos que seguem seus impulsos mais escuros, que trapaceiam e manipulam sem

consideração, que se alimentam das calamidades de outros; pessoas, em definitiva, que

fomentam as injustiças do mundo. Entretanto, eu me pergunto: e o que é o justo? É justo acaso

que os nefilim não possam existir e o lixo humano sim?

Enquanto falava, agitou alguns vezes as mãos fibrosas no ar. Quando voltou às pousar sobre

os joelhos, inclinou para diante e cravou seus olhos negros em meus.

—Nathan sustenta que os nefilim são um engano da natureza. Que o mundo pertence aos

mortais e que nós deveríamos desaparecer. Mas me permita que pergunte: por que tem que ser

assim? Nós somos mais formosos, mais fortes e inteligentes, mais brilhantes, poliglotas e cultos

que os humanos. A terra nos corresponde muito mais que a eles! Os poucos humanos que são

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capazes deveriam adaptar a nós e ficar ao nosso serviço, e não ao contrário, não podemos ser nós

quem tenha que ceder!

Não podia afastar o olhar de suas mãos, embora não as movia, umas mãos que assassinou.

—Vocês mataram — disse de repente sem poder dissimular meu espanto— matou de

maneira brutal... nas últimas semanas... a todas essas pessoas.

A garganta ressecou mais ainda e a dor de cabeça se voltou mais intensa.

—Vamos — disse tirando ferro, e por um momento apareceu em seu rosto uma expressão

de repugnância— Entre eles não havia nenhum que se destacasse, nenhum por quem merecesse a

pena esbanjar uma palavra, ninguém por quem valesse à pena chorar. Eram puros e aborrecidos

medíocres, planos, simples e brutos como animais. Centramos sobretudo nos esportistas, porque

do que servem? Têm uma fortaleza física que nos resulta de grande utilidade, e entretanto eles a

empregam para fins ridículos como subir uma montanha de bicicleta e voltar a descê-la depois.

Para que serve isso? Para enganar acreditando que serão eternamente jovens? No final todos

acabam clandestinamente. Ora! Todo esse estúpido treinamento para nada! Eu, caminhando

devagar, sou mais rápido que esses fetos suarentos. Dependo de minha força! Necessito para

sobreviver! E parece que essa plebe só a cultiva para estar em forma, fortalecer os músculos e

ganhar rapidez. Isso demonstra os mentecaptos e cretinos que são. De modo que não merece a

pena esbanjar palavras com eles.

Um calafrio percorreu todas as costas, e ao dar conta a máscara voltou a esticar sobre o

rosto.

—Já vejo —prosseguiu, e a sua arrogância e seu desprezo somou também a fúria— que não

conseguirei evitar seus temerosos tremores. Nathan pôs todo seu empenho em nos descrever

como uns assassinos frios. Mas o certo é que há outra forma de vê-lo. Esquece os mortos das

últimas semanas. Não pense em como morreram. Veja do mesmo ponto de vista que eu. Pensa

um momento: acaso os guardiães, que nos fazem a vida impossível, são realmente tão puros e tão

bons? Os filhos das serpentes poderiam ter vivido em paz com eles há muito tempo. Entretanto,

eles embarcaram nessa missão de nos liquidar e estão dispostos a abandonar. O que é o que

fazem, então? O que é o que são? Não são mais que uns assassinos! O único objetivo que têm na

vida é aniquilar aos outros. Você acha que eu sou um assassino desprezível, mas eles, os

guardiães, foram quem começaram quando se propuseram nos matar. Nós não temos feito nada

salvo nos defender.

—Mas eles têm que proteger aos humanos.

—E por que merecem os humanos mais amparo que nós? —exclamou indignado— por que

eles merecem consideração e nós não? Todo aquilo meritório que faz a humanidade (a arte, as

línguas, a arquitetura, a criação dos estados, as religiões, a filosofia) é fruto das ideias de uns

poucos, e me acredite se disser que a esses poucos não tocaríamos nem um cabelo; que esses

serão sempre bem recebidos. Mas a multidão... a massa... são pedaços de carne, simples

parasitas, todos iguais, e portanto substituíveis. O impulso de fazer algo com sua vida e mudar o

mundo desaparece assim que se sentam ao volante para conduzir um carro potente, têm um teto

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sob o que refugiar e se juntam renegando com umas mulheres que renegam como eles para gerar

pirralhos miseráveis. Deve ser essa a coroação da criação?

Seus olhos se tornavam cada vez mais negros, mais profundos. Eu não podia aguentar o

olhar, e de repente me recordou ao cadáver que encontrei no bosque. Estava vazio igual. Aflito

igual. Desesperançado igual.

Foi elevando o tom de voz, e nesse momento esfregou os magros lábios e respirou fundo.

—Sei —disse em voz baixa, como se tivesse recuperado a compostura— que o assassinato

repugna. Mas acredite em mim: Nathan também deixou atrás de si um longo rastro de sangue,

uma montanha de cadáveres. Quantas vezes golpeou brutalmente com a espada! Quantas vezes

arrebatou vidas sem piedade, nossas vidas, as dos filhos das serpentes! E o que acha que seria de

Aurora se a deixasse em suas mãos? Sua filha também assassinaria... para lutar contra nós sem

compaixão. É esse o tipo de vida que deseja? A vida de uma assassina? A de uma assassina de

terrível reputação que não confie nas tréguas?

Já não falava impulsionado pela raiva, pronunciava as palavras de maneira calma e enérgica

ao mesmo tempo, palavras que ficavam ressonando em minha dolorida cabeça. Tentei pigarrear,

mas não pude, tinha a sensação de que o menor movimento de minha língua faria explodir o

couro gretado do sofá.

—O que seria de Aurora, então, se você exercesse poder sobre ela? —perguntei com um fio

de voz— Diz que Nathan a poria contra vocês, mas você faria exatamente o mesmo. Inculcaria a

ideia de que os humanos são seres sem nenhum valor aos que alguém pode pisotear como

baratas. Como posso desejar essa classe de vida?

Traguei saliva. Tinha a garganta como se um lento veneno me estivesse chateando isso

pouco a pouco.

Ele negou com a cabeça.

—Isso é outra coisa. Repugna-me a plebe, mas não encontro nenhum prazer no ato de

matar. Já sei que se conta que não só trouxemos a injustiça e o egoísmo ao mundo, mas também a

sede de sangue. Entretanto, nos mitos antigos não nos representa unicamente como monstros

devoradores. O Livro de Enoc não narra que os anjos cansados, os pais dos nefilim, tentassem aos

homens a comer carne e a fazer a guerra. Mas bem ao contrário, diz que os instruíram em

multidão de matérias: ensinaram a fabricar armas e escudos, mas também braceletes e joias,

ensinaram a pintar os olhos e a enfeitar-se com as pedras mais preciosas. Transmitiram aos

homens a medicina e a astrologia, ensinaram a interpretar o céu e os sinais do sol e a lua. —Sorriu

e fez uma breve pausa—acredite se disser que vai muito mais à frente do mero ato de matar.

Quando é útil ou necessário, jamais renuncio a matar, mas eu adoraria viver em paz se me

permitissem isso os guardiães. Se Aurora ficar de seu lado, viverá entre a espada e a parede

durante o resto de sua vida. Terá que cumprir uma sangrenta missão. Eu, pelo contrário, o único

que quero é transformar o mundo segundo minhas ideias. E se te detém contemplar o que a

humanidade tem feito com ele, é impossível que acabe sendo um lugar mais deplorável do que é.

A Aurora daria tudo: prosperidade, poder, arte. Se os guardiães não se interpusessem

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Série Nefilim 01

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constantemente em nosso caminho, faz já muito tempo que teríamos assumido o controle, e

Aurora poderia viver como uma rainha. Ouve? Como uma rainha, e não como uma assassina! Todo

o talento que tenha dentro de si poderia desfrutá-lo em lugar de esbanjá-lo cega pela ira a que

conduz uma guerra que ela não começou nem desejou. Poderia decidir sobre sua vida, o ter tudo

e ver cumpridos todos seus desejos. Eu trataria de protegê-la de todos aqueles que desejam o

mal. De modo que não sou eu, são eles quem traz a desgraça sobre todos nós.

Enquanto pronunciava as últimas palavras, levantou. Eu tive que apoiar a cabeça sobre a

nuca para poder olhá-lo. Olhava pela janela para o infinito com o olhar perdido, sumido em seus

pensamentos. No final de uns instantes voltou de novo, rodeou lentamente a mesa de cristal e

deixou cair com atitude descuidada sobre o braço do sofá. Embora mantivesse em todo momento

a distância que nos separava, eu parecia sentir seu corpo como se estivesse apertando contra o

meu. Ele desprendia frio, mas não foi isso o que deixou gelada, o que me paralisou. Eram suas

palavras as que formavam um vigamento de finos fios. Foram me envolvendo de maneira quase

imperceptível, como uma teia, tão repugnante e mortal e ao mesmo tempo tão artística e bela

como se brilhasse sob o sol.

—Olhe a seu redor — ordenou, agora em sussurros— Fixa em minha casa, em como está

construída e decorada. Não regulei em nada. O que para os humanos é o maior dos luxos, para

mim não é mais que justo o suficiente. Não sou uma besta, nem um assassino sanguinário, nem

uma ave de rapina. Sou um ser que ama as coisas belas e gosta de estar rodeado delas. Não desejo

o mal à plebe humana. O único que peço é que não me incomodem nem me ponham travas

quando escolho aos mais débeis e faço negócios com eles.

Fez uma pausa, deslizou com suavidade do braço do sofá e veio sentar a meu lado. A

distância entre nossos corpos ficou reduzida a um palmo.

—Essa luta para a que levo tantos anos me preparando... a luta por Aurora e por você, eu a

teria abandonado com muito prazer! Nathan sabia que eu a descobri primeiro, e no lugar de

manter a margem e me deixar via livre, agarrou seu violoncelo, penetrou no conservatório de

música e esperou que você passasse por ali. Não só te queria porque eu desejava antes dele,

porque para ele era uma provocação ganhar sua conquista, porque queria me demonstrar que na

luta por seu coração ele era o melhor. E talvez fora certo. Ele é mais atrativo, mais simpático e

mais humano que eu. Mas já naquele tempo há algo que teria podido dar: amar-me e ter um filho

comigo não teria dado tantas torturas, decepção e solidão. E ainda estamos a tempo. Não me

importa o que tenha passado nem quanto o tenha amado. Não me importa que ele seja o pai de

Aurora. Eu a cuidarei como se fosse minha própria filha, e ela será minha, sem ambiguidades, sem

meias verdades.

A teia me capturava cada vez com mais força; não podia respirar e já não notava o frio,

levaria muito tempo paralisada pelo veneno? Tinha a sensação de que já não podia me mover,

embora por dentro estivesse alterada: o coração palpitava a tropicões até a garganta e o notava

reverberar ao mesmo tempo no estômago. Eu sabia que não demoraria muito em transbordar a

distância que nos separava e percorrer com seus largos dedos meu rosto, meu corpo. A imagem

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me resultava insuportável, embora também excitante, porque se achava além de qualquer outro

sentimento que tivesse experimentado antes e não podia compará-lo com nada. Tinha medo, mas

ao mesmo tempo me sentia preparada e estava ansiosa por saber ao fim o que sentiria quando

me tocasse. Um frio gelado? Um calor abrasador? Tudo me parecia possível; os extremos podem

chegar a tocar: o asco e o desejo, a repugnância e a avidez, a necessidade de afastar de mim como

fosse e de mantê-lo perto, de negar com força e ao mesmo tempo de entregar o que tanto

desejava. A mim.

Mas ao invés de se aproximar de mim, Caspar se limitou a recostar a cabeça no respaldo do

sofá.

—Já conhece Nathan —disse com o olhar cravado no teto— sabe que briga, que vive sumido

na auto compaixão e a melancolia, que sempre está pensando em fugir. Gostaria de se dedicar à

música, mas não pode porque a única razão de sua existência é outra. Não vou negar que eu

também me sinto apanhado, mas só por meus inimigos, não pelo que sou. Nathan tem medo de si

mesmo, não de mim, e agora me diga sinceramente: qual dos dois é mais feliz? Qual dos dois está

em paz com seu destino?

Endireitou a cabeça de novo e voltou para mim. Por um fugaz instante me pareceu que seus

olhos já não eram tão escuros e que neles refulgia alguma cor, embora não sabia qual —se

marrom, verde ou azul—, o único que sabia era que havia algo em seu olhar e em muitas de suas

palavras que recordou Nathan. Ele insistia em destacar as grandes diferenças entre um e outro,

mas o que se apreciava em sua voz não era o que define aos inimigos a morte, a não ser aos

irmãos da alma: saudade e desespero de uma vez.

—Você o que quer é se vingar dele —disse hesitante— Isso é o único que te move. Sei de...

Serafina... e o do menino.

Ele estremeceu ao escutar seu nome, mas recuperou a compostura em seguida. Sacudiu a

cabeça como se a lembrança fosse um mosquito molesto ao que podia afugentar.

—Essa, efetivamente, é uma conta pendente entre Nathan e eu. Mas não tem nada a ver

com você. Não se trata de vingança. Ou pelo menos, não somente. Eu teria querido Aurora e a

você embora meu caminho jamais se cruzasse com o seu e Aurora não fosse sua filha.

—Mas o que é exatamente o que espera de mim? —perguntei.

—Quero que me ame, que confie plenamente em mim e se converta em minha

companheira. E quero que traga Aurora até mim. Risquemos um plano, se você me ajuda poderei

enganar Nathan. Não acredito que lutasse com todas suas armas se soubesse que veio

voluntariamente para mim. É provável que simplesmente... se fosse. E se você me pede isso,

Sophie, eu seria piedoso e inclusive o deixaria partir. Além disso, renunciaria à vingança por

Serafina. E compreendo que esse não pode ser o único incentivo que tenha. Quero que sobretudo

pense na vida que poderia oferecer a Aurora... em que poderia oferecer a você.

Então se produziu ao fim o contato que tanto temia e ao mesmo tempo esperava com

impaciência. As pontas de seus dedos percorreram minhas bochechas com delicadeza, exercendo

uma pressão muito ligeira, mas bem uma comichão, um formigamento que logo se converteu em

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carícia. Minha pele passou do adormecimento à incandescência. Não podia retirar a cabeça, não

podia afastar meu olhar do seu. Na escuridão já não se adivinhava nenhuma classe de cor, e seus

olhos, que tampouco refletiam a dureza e a frieza de antes, pareciam carvões desintegrando em

poeirentas cinzas pulverizadas por um golpe de vento. E parecia que essas cinzas me envolvessem

e começassem a pousar, não só em meus pulmões, mas também em meu coração, minha alma e

minha mente.

De novo voltei a notar aquilo que, em lugar de separá-lo de Nathan, aproximava dele, e era o

esforço que faziam por dar uma imagem de indiferença e contenção, por exercer um controle

absoluto sobre si mesmos enquanto, no mais fundo, bulia uma força que eram incapazes de

dominar por culpa do desejo de levar uma vida o mais normal possível. Os dois queriam viver sem

lutas, mas não podiam evitar matar. Nathan os nefilim e Caspar os humanos.

Entretanto, era certo que Nathan matou a um homem inocente, Andrej Lasarew, o virtuoso

chelista, por puro egoísmo.

Ele se arrependia na alma de tê-lo feito, enquanto que Caspar jamais havia sentido o menor

cargo de consciência pela morte cruel de um humano.

—Você me compara com ele — murmurou.

Eu sabia que Caspar não possuía habilidades telepáticas, mas nesse instante, enquanto me

acariciava o rosto, deu a impressão de que podia ver o interior de minha mente, como se com o

olhar pudesse abri-la, introduzir e me arrebatar isso tudo. Com outros humanos utilizava a força

bruta e arrancava o coração do peito ou os deixava sangrar; no meu caso bastava à vontade para

sugar todos meus sentimentos e minhas sensações, meu julgamento, meus desejos e minhas

ideias. Nesse momento, eu já não sabia o que queria nem o que estava bem.

—O que está fazendo? —perguntei com a voz rouca.

Ele retirou a mão.

—Não se assuste —respondeu com um espiono de sorriso— Posso exercer poder sobre

Aurora... posso despertar suas habilidades, mas não tenho nenhum poder sobre você. Você é

humana, e como tal obras por própria vontade. Pode tomar suas próprias decisões e refletir sobre

todas as facetas de um assunto. Sabe que às vezes isso me dá inveja?

—Inveja do que? —sussurrei.

—Os nefilim são guardiães ou filhos das serpentes, mas não há meio termo. Não existem os

cinzas, tudo é branco ou negro. Em umas ocasiões o considero bom. E em outras, resulta-me

muito pouco.

Dei uma olhada à sala e reparei precisamente no contraste dos móveis brancos com sua

vestimenta negra.

—Sim, em ocasiões é muito pouco —insistiu— porque a autêntica beleza reside, ou isso

acredito às vezes, nos matizes. Não falo de meio vermelhas, mas quando se vive nos extremos, um

sempre se balança no abismo mais longínquo do mundo. As pessoas nunca estão no ponto do

meio simplesmente para viver... para amar... —Exalou um suspiro— Mas seja fácil ou não, você é

uma escolhida e eu te quero, amo. Eu gostaria de ter filhos com você para por o mundo a seus

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pés. E aos teus.

Quando deixou de me tocar, baixou a mão. Em lugar de me acariciar, inclinou o rosto para

mim e não parou até que quase roçasse o meu. Essa cercania foi mais intensa que sua suave

carícia. Todas e cada uma das fibras de meu corpo reagiram a seu contato, sentiam repelidas e

atraídas, seduzidas por ele e inclusive hipnotizadas, e ao mesmo tempo totalmente ultrapassadas.

Todas as sensações me superavam. Era como se tivesse que ver cores que o olho humano não é

capaz de perceber, como se cheirasse algo tão forte que fossem explodir os pulmões, como se

todos os sons do mundo fluíram por meu interior e meu cérebro fosse muito pequeno para

assimilá-lo. Foi como se de repente pudesse pressentir como era entristecedor seu talento, como

sua força era esmagadora, como seus poderes eram diversos, e tudo isso, no lugar de me

embriagar, me revelava como algo insondável, como algo muito grande para mim que quase não

podia suportar.

Nesse momento me acariciou as bochechas com as duas mãos, e minha fatigada mente

renunciou a distinguir as sensações: o bem do mal, o agradável do repugnante, o calor do frio. Que

aspecto devia exibir eu nesse instante? Pareceria assustada, confusa, aturdida, desconcertada? Ou

acaso sua poderosa aura me envolvia com tanta força que me convertido em outra pessoa e todas

as deficiências e as misérias se desvaneceram?

Nele me disse em várias ocasiões que era bonita, mas eu sempre me considerei do montão.

Agora, entretanto, agora talvez fosse formosa de um modo frio e inacessível, mais formosa que

nunca. Agora não gaguejaria ao falar, tocaria o piano com uma mestria formidável, se assim o

desejasse, e flutuaria pelo ar em lugar de caminhar. Assim me senti tempo atrás junto a Nathan,

tão leve como se pudesse acariciar o mundo com a ponta dos dedos. Caspar elevava a uma altura

superior, suspendia no ar, onde gozava de uma liberdade inigualável e aparecia de uma vez a um

ameaçador abismo. Cair dessa altura não significava unicamente uma dolorosa descida, a não ser

a morte...

—Posso te oferecer tanto, Sophie, a você e a Aurora. Posso dar isso tudo, posso te fazer

feliz.

Era realmente sua voz? Essa voz que soava a música celestial? Uma voz que tanto prometia:

uma vida sem medo, sem encolhimentos, sem preocupações, sem impotência.

Não pestanejei nenhuma só vez enquanto o olhava, mas de repente seus olhos escuros se

apagaram; seus traços se sobrepuseram com os de outro rosto. No princípio pensei que era o de

Nathan, mas de repente começou a entrever o semblante de Aurora. Seus olhos azuis, muito

abertos, observavam como o dia em que, ao entardecer, apareceu frente a mim rígida como uma

vara e disse gaguejando: “Ele está aí.”

Esse dia estava assustada e tremia, e o horror e a angústia de seu rosto aumentaram mais

ainda quando Caspar a tocou pela primeira vez, quando acariciou levemente a cabeça, quando a

Aurora revirou os olhos, começou a expelir espuma pela boca, a sofrer convulsões em todo o

corpo e a retorcer.

Não, aquela não era uma Aurora feliz. A Aurora feliz era a que aparecia na presença de Cara,

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que inspirou confiança imediatamente, ou de Nathan, a quem não teve medo nem um só instante.

Talvez nunca fosse uma menina normal; talvez a carga que levava sobre seus ombros era

realmente pesada, e a vida que aguardava, se convertia na Guardiã, veria determinada por sua

cruel missão mais frequentemente que pela alegria.

Mas de Cara e Nathan jamais teve medo. A Caspar, sim.

Eu era consciente disso, e segui sendo mesmo que o rosto de Aurora se apagou diante de

meus olhos e voltei a me encontrar frente à máscara de Caspar.

—Sophie... —de repente sua voz já não soava a música celestial, recuperou seu habitual

timbre metálico, e em seu olhar já não transluzia desejo, a não ser crueldade; toda a fascinação

que exercia sobre mim se esfumou de repente. Já só sentia repugnância.

Tratei de dissimular minha repugnância quanto pude, tentei desterrar de minha cabeça a

ideia de que Caspar podia ler o pensamento, de que observava todos e cada um dos movimentos

de minha mente e inclusive manipulá-los.

“Não! — disse— Não pode. Não sabe o que é o que estou pensando. Não exerce nenhum

poder sobre mim, porque do contrário não invejaria a livre vontade dos humanos nem quereria

me cortejar.”

Deixou-me decidir, e eu decidi.

Antes que ele me estreitasse à mão com mais força, antes que aproximasse seu rosto mais

ainda ao meu, inclinei para diante, rompi a última distância que nos separava e o beijei. Passei por

cima à repugnância, o terror, a sensação de estar beijando a morte. Lutei contra a bofetada de frio

que me provocou calafrios e tentei procurar calor no olhar de Aurora, cuja imagem aflorava de

novo em minha mente. Apertei meus lábios contra os seus, abracei pelo pescoço, acariciei o

cabelo negro e brilhante... e segurei às imagens. Imagens de minha vida... imagens de épocas

felizes. Não estava beijando-o, a não ser a Nathan, e tampouco aspirava seu aroma, a não ser o

aroma do verão de Salzburg. Não estava apanhada entre o branco e o negro dessa sala, mas sim

contemplava o céu rosado do amanhecer em que nasceu Aurora.

Por fim terminou. O beijo já durou suficiente.

—Fico com você — me apressei a procolocar assim que separei meus lábios dos seus— Tem

razão. Foi um engano escolher Nathan. Quero fazê-lo, quero voltar atrás. Mas me sinto tão

cansada... Necessito algo que me levante o ânimo, beber algo, e eu gostaria de ficar para

esclarecer minhas ideias... só um momento... seriamente... e logo já pensaremos entre os dois

como devemos atuar.

Abaixei o olhar. Não ficava alternativa que enganá-lo, mas o brilho escuro que desprendia

seu olhar me resultava insuportável. Eu compreendia que não sempre foi um monstro, que seu

amor não era fingido, que era real. Entretanto, também sabia que por esse amor, ou o que ele

denominava assim, era capaz de passar por cima de quantos cadáveres fosse necessário.

Não me respondeu nem fez perguntas, simplesmente se levantou e saiu da sala com um

sorriso e com um passo que já não era rígido, a não ser animado e ligeiro.

Durante uns minutos não me movi. Enquanto o estreitei contra mim, consegui vencer o frio

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de meu coração, mas agora me sentia como apanhada em um iceberg. Quando ao fim pude me

levantar, só consegui dar uns poucos passos. Ao passar junto ao piano, detive, coloquei com um

gesto instintivo as mãos sobre o teclado e depois de muitos anos sem fazê-lo, voltei a tocar.

“Ouça — disse— alegrará. Certamente acreditará que estas notas selam minha decisão de

ficar.”

Sentei na banqueta e toquei a duas mãos algo que nem sequer sabia o que era, se era

harmônico e melodioso, se era uma peça de algum compositor ou uma improvisação. Enquanto

tocava, procurei por toda a estadia com o olhar. Meus olhos repararam primeiro na porta, e logo

nas janelas, que chegavam até o chão. Antes pareceu que era impossível abri-los, mas nesse

momento notei que na lateral esquerda da parede havia uma placa de vidro sobreposta sobre

outra. Possivelmente se podia aumentar a estreita fresta que ficava entre elas e pudesse me

deslizar por aí.

O som do piano ainda ressonava quando me equilibrei para a janela e comecei a empurrar e

a puxar das folhas de cristal. O cristal me partiu nas mãos; rompi a suar e a frente me cobriu de

fria umidade. Em um dos puxões, a janela finalmente cedeu. Contive a respiração, deslizei para o

exterior e avancei pelo batente, a uns dois metros de distância do chão. Sem pensar isso duas

vezes, saltei ao vazio, aterrissei sobre a erva branda, permaneci uns segundos feita um novelo no

chão e esperei até que a dor de braços e pernas passasse. A seguir me levantei de um salto e pus a

correr.

Caspar sairia atrás de mim assim que se precavesse de que escapei, mas possivelmente

ainda dispunha de alguns minutos e isso me concederia certa vantagem. Talvez inclusive desse

tempo de chegar a casa e me pôr a salvo.

���

Um grande vazio apoderou dele ao vê-la sair correndo. Um vazio conhecido. Um vazio

odiado. E também irrelevante.

Fazer de morto, cego e frio não só significava renunciar à plenitude, mas também proteger

da decepção e a loucura.

Eram duas escolhas que teve que salvar em diversas ocasiões. Decepção porque não

conseguiu cumprir um objetivo, porque perdeu sua amada, porque roubaram de repente aquilo

que estava a ponto de alcançar. E a loucura era pior ainda porque já nem sequer estava seguro de

que valesse a pena lutar por aquilo que queria obter a toda costa. Porque já não sabia quem era,

nem quem tinha que ser.

Um instante antes pareceu tão singelo seduzir Sophie, cativá-la com a promessa de luxo e

poder, de uma vida cômoda consagrada a alcançar seu próprio bem-estar e não uns ideais.

Entretanto, nesse momento, ao observar o salão vazio, tudo isso que devotou como uma

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reclamação valiosa desejava muito miserável e mesquinho.

Não foi suficiente para mantê-la ao seu lado. Fugiu.

Ele apertou os punhos.

Deu conta em seguida, e não valia muito detê-la, mas como tantas outras vezes, conteve-se

e decidiu esperar. Para que ter pressa? Dispunha de tempo de sobra para castigá-la quando tivesse

recuperado o controle e se repôs da tristeza, quando tivesse conseguido enterrar todos os

sentimentos, os sentimentos vivos e a flor de pele que albergava para ela.

Não custaria. Porque como ia sobreviver algo vivo e a flor de pele nesse vazio envolto em frio

e solidão?

Resmungou seu nome uma e outra vez.

Sophie...

Sophie!

Sophie. Elegeu Nathan.

Pensou naquela noite, muitos anos atrás, em que esperou Sophie à porta do edifício onde

vivia em Salzburg e sussurrou ao ouvido: “Ele é o impostor.”

Sentiu um desejo irreprimível de voltar a gritar essa mesma frase ao vê-la fugir de sua casa,

de rogar que reconsiderasse sua decisão, que não temesse. Mas ao abrir a boca, surgiram de seus

lábios umas palavras totalmente distintas.

Não, Nathan não era o homem inadequado para ela. Ela era a mulher inadequada para ele,

Caspar. Não estava a sua altura.

Ele colocou o mundo inteiro a seus pés e ela o rechaçou, revelou, apesar de ser uma

escolhida, como uma completa estúpida.

Afrouxou os punhos e em seu rosto se desenhou um sorriso. O beijo do Sophie dissipou todas

suas tensões, estendeu um ardor agradável por suas duras extremidades, provocando calafrios em

uma pele que pelo general era de tudo insensível. Agora já não era ela, a não ser um recordação o

que provocava tudo isso. A lembrança de Serafina.

Serafina nunca foi tão estúpida como Sophie, Serafina aspirava a levar a coroa que devotou.

De fato, em sua mente, ela encaixava muito mais que Sophie com a imagem que ele tinha de uma

rainha perfeita: tão voluptuosa como era, com seus chamativos cabelos ruivos, sua voz melódica,

sua escandalosa risada... Agora bem, sempre foi um pouco vulgar, nunca gozou da elegância e a

delicadeza de Sophie.

E entretanto: Serafina o queria. Deu um filho... um varão com o cabelo negro.

Suspirou, pressentiu que por um momento seu rosto refletiria sua dor, seu abatimento, sua

decepção. Ao pouco já não ficava nada: nem sentimentos, nem lembranças, nem dúvidas.

Mataria, naturalmente que sim.

Sua expressão se voltou hierática.

“Posso viver sem ela — pensou. Além disso, ainda fica... Aurora.”

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Capítulo 10

—Aurora, Cara, Nathan!

Gritei seus nomes uma e outra vez. Da distância da casa parecia intacta. Não se viam rastros

da batalha que levou e talvez seguisse levando ali. O único que me chamou a atenção foi à porta

do carro aberto. Nesse instante cheguei ao carro, parei e agucei o ouvido. Quando se extinguiram

o rangido de meus passos e o ofego de minha respiração, tudo ficou em silêncio. Ao longe se ouvia

o tráfego, as taças das árvores sussurravam com o vento, mas já não se ouvia o tinido metálico,

nem o assobio das espadas cortando o ar, nem os gritos.

—Aurora, Cara, Nathan! —gritei de novo, com cautela no princípio, e logo cada vez mais alto

ao ver que nada se movia.

Sabia que não dispunha de muito tempo, provavelmente Caspar já percebeu que fugi e viria

atrás de mim.

Corri até a porta da casa, que estava entreaberta. Abri empurrando cuidadosamente com o

pé. Embora acreditasse preparada para assumir o horripilante espetáculo que esperava encontrar,

não pude evitar um grito rouco ao contemplar a magnitude dos destroços. Havia pedaços de vidro

por toda parte, e partes de pratos quebrados, o que significava que a batalha se estendeu também

à cozinha. O rack estava atirado no chão, e as cortinas arrancadas.

O pior de tudo era a infinidade de manchas azuis que havia por toda parte, manchas —agora

sabia— de sangue. Entretanto, das criaturas negras que Nathan e Cara mataram não havia nem

rastro. Segui avançando com as pernas trementes até chegar à porta do salão, que a arrancaram

das dobradiças e pendurava meio torcida do marco. Respirei fundo antes de afastá-la a um lado

para poder ver o salão. Estava vazio. Ali tampouco se viam mortos por nenhuma parte, o único

que permanecia intacto era o gigantesco tronco que alguém colocou contra a porta de vidro. O sol

penetrava enviesado fazendo resplandecer as manchas de sangue azul e dotando os fragmentos

de vidro de uma cor esbranquiçada. As cadeiras estavam viradas para cima, os livros caíram das

estantes e tinham páginas arrancadas, e uma parte da velha chaminé ficou reduzida a escombros.

Saltei com cuidado por cima do tronco e saí ao jardim. A terra dos canteiros estava removida, a

erva pisoteada, e as ferramentas que guardava sob a pérgula estavam dispersa por toda parte.

Notei o chão pegajoso, quase como se estivesse enlameado, ao caminhar pela grama.

—Aurora, Cara, Nathan!

Gritava cada vez mais forte. O pânico estava se apoderando de mim. O que aconteceu

depois de que eu abandonei a casa? A julgar pelo caos que reinava na casa, o assunto não ficou

resolvido com os cinco primeiros atacantes. Como terminou a batalha? Onde devia procurar

Aurora, Nathan e Cara?

A casa de Cara. Pode ser que tivessem levado Aurora ali... não era um lugar muito seguro,

afinal Caspar sabia onde vivia, mas refugiar ali por um tempo daria a possibilidade de recuperar

forças e urdir um novo plano...

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Que eu conseguisse chegar até casa de Cara já não era tão certo.

Antes que tivesse tempo de decidir se tentava chegar até lá ou não, adverti uma sombra

pela extremidade do olho. Ao me voltar, vislumbrei uma figura estática junto à grade do jardim. O

forte contraluz me deslumbrava de maneira que, em um primeiro momento, só alcancei a

distinguir os contornos, mas não o rosto.

“Caspar!”, pensei, e um tremendo calafrio me percorreu o corpo.

Seguiu-me até ali... e agora me apanharia... ou não... não era Caspar... a figura era menor...

mais redonda... era uma mulher.

—Cara...

O nome se extinguiu em meus lábios. A mulher saiu de sua paralisia e começou a correr para

mim.

—Sophie, o que houve?

Jamais a viu tão horrorizada. A mulher que estava ali não era Cara. Era Nele.

—O que faz você aqui?

A voz saiu rouca e quebrada. Acredito que Nele não me ouviu. Veio correndo para mim,

agarrou pelo braço e ficou me olhando um momento, logo me soltou, dirigiu para o imenso

buraco da porta de vidro e nesse instante estava contemplando o salão. Os olhos saltaram ao ver

o tronco.

—Sophie, o que passou? E todas essas manchas azuis... o que são?

Sem responder, olhei rapidamente a meu redor e a obriguei a entrar no salão. Ali não

estaríamos a salvo de Caspar e seus ajudantes, mas ao menos dentro de casa não me sentia tão

exposta. Tínhamos alguma possibilidade de nos esconder? Salvou algum dos quartos dos

destroços? Meu escritório, possivelmente. Ou melhor o quarto de Aurora. Também havia um

porão, embora eu só descesse uma vez. Quando quis voltar a puxar do braço de Nele, ela resistiu.

—Por todos os Santos, quer me dizer o que ocorreu? —Estava virtualmente afônica.

Eu não sabia o que responder, e me limitei a suspirar:

—Ai, Nele, por que veio?

—Não podia tirar da cabeça a conversa que tivemos por telefone! Passei horas esperando

que me ligasse, mas não me ligou.

Em um primeiro momento não compreendi a que se referia, mas no final de uns instantes

recordei a conversa em que eu perguntei por Cara, que se apresentou em minha casa de maneira

inesperada. Dava a sensação de que passou anos antes.

—Nele, agora mesmo não posso explicar isso Você tem que esconder, e eu... eu tenho que

procurar Aurora.

—Aurora. —Seus lábios pronunciaram seu nome em silêncio. Voltou a percorrer o dantesco

cenário do salão com os olhos exagerados e sussurrou com cara de pânico— Onde está?

Aconteceu algo? Antes ouvi que chamava Nathan! Nathan voltou...?

Assenti, logo neguei com a cabeça, voltei a assentir.

—É uma história muito longa, mas não tenho tempo para contar isso. Tenho que procurar

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Aurora, e...

Nele me agarrou pelo antebraço.

—Levo todo o dia te chamando, mas chamava a secretária eletrônica, e o telefone fixo

estava comunicando. Estava tão preocupada que vim até aqui assim que pude. Sophie faz o favor

de me contar isso. O que passou? Tem algo que ver com... com os mortos?

Sobressaltei. Parecia ouvir uns passos que se aproximava e um murmúrio de vozes...

—Chisss! — disse, e agucei o ouvido, nervosa.

Equivoquei-me? Era só o sussurro do vento?

Os pensamentos me amontoavam na cabeça. Esconder Nele... procurar Aurora... talvez

devesse pegar o carro... embora a última vez Caspar me pegasse ali...

—Nele, sério! Explicarei isso tudo, mas em outro momento. Tem que se esconder! Melhor

dizendo, tem que partir daqui agora mesmo!

—Mas por que tenho que me esconder? De quem?

—Veio de carro, verdade? Onde esta?

—Mas...

—Corre tudo o mais rápido que possa até o carro e vai. Eu te chamo mais tarde.

Agarrei pelo braço com um enérgico gesto e a arrastei até a porta.

—Não penso ir —resistiu— vou ficar aqui.

Antes só o ouvi ao longe, mas nesse instante ouvi os passos e o murmúrio de vozes com

nitidez. Foram aproximando cada vez mais. Os passos se detiveram diante da porta; o murmúrio

de vozes guardava parecido com o resmungo dos ajudantes de Caspar.

A porta seguia entreaberta. Primeiro chamaram com uns golpes e, ao ver que ninguém

respondia, um pé se deslizou pela fresta.

—Senhora Schwarz — disse uma voz masculina— Senhora Richter?

—Eu sou Nele Schwarz! —gritou Nele, e começou a correr para o homem. Era um oficial de

polícia que me parecia um tanto familiar. Ao menos exibia uma expressão mal-humorada igual a

do policial ao qual me queixei das intromissões de Caspar.

Voltei para Nele com um olhar interrogante, logo para o oficial e de novo para Nele.

—Informei à polícia — precipitou a esclarecer Nele, e antes que dissesse nada, acrescentou

exaltada— O que queria que fizesse? Chego aqui... encontro a casa vazia... a porta do carro

aberta... Procurei a Aurora e você por toda parte, e ainda por cima... este caos!

O oficial avançou para o interior e, ao ver os destroços, mudou a expressão de seu rosto. O

mau humor pareceu se converter em uma profunda desconfiança.

—Mas o que é que...? —começou a dizer.

Sem prestar atenção às palavras do oficial, suspirei:

—Ai, Nele, tem que entender! Deve partir daqui quanto antes! E eu também!

O oficial negou com a cabeça, parou diante de mim com as pernas abertas e levantou os

braços.

—Inspetor Roland Wenzel. —E atrás dessa breve apresentação, adicionou com

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Série Nefilim 01

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contundência— E nesse momento ninguém vai a nenhuma parte.

Poucos minutos mais tarde se reuniu em casa perto de uma dúzia de policiais. Chegaram em

quatro carros patrulha e fecharam as portas de um golpe ao sair dos veículos. O que Nele contou,

fosse o que fosse, os alarmou.

Dois dias antes eu haveria me sentido completamente segura em sua presença. Entretanto,

agora sabia que todos aqueles homens com suas armas de serviço não podiam nos oferecer

nenhum amparo. Caspar e seus bandidos podiam converter a casa em um campo de batalha em

questão de minutos e matar a todos. E eu tinha que evitá-lo por todos os meios.

Reprimi o impulso de pôr a correr e sair em busca de Aurora, e aguentei o duro olhar do

oficial.

—Não ocorreu nada — disse, tentando sair da situação enquanto os agentes abriam passo

entre nós— Minha amiga foi excessivamente prudente ao chamar porque estava muito

preocupada. Acreditou que passou algo porque não conseguia me localizar. Mas já estou aqui, e

estou bem. Seriamente! Assim já podem partir.

O inspetor Roland Wenzel lançou um olhar carregado de desconfiança e não se moveu nem

um centímetro quando seus companheiros passaram a seu lado. Não foi até que se ouviu uma

gritaria de vozes no salão quando se dirigiu para ali para ver o que provocava aquele escândalo.

—Por favor... —roguei com desespero, e saí atrás dele— Seriamente que não aconteceu

nada.

Quando entrei no salão, um dos agentes assinalava com o sobrecenho franzido ao tronco da

árvore que saiu pela janela; outro gritou desconcertado ao descobrir as manchas de sangue azuis.

—Bom, bom... — O inspetor Wenzel me olhou com cepticismo— Assim não aconteceu nada.

E quer me explicar por que parece que um furacão tenha arrasado seu salão?

Tentei procurar as palavras adequadas, mas antes as encontrasse notei que Nele me

agarrava pelo braço.

—Sophie, por favor, tem que nos contar o que aconteceu aqui! Olhe como está tudo! Tem

isto algo que ver... algo que ver com os terríveis assassinatos?

Fiquei olhando a fixamente ao seu rosto e ao mesmo tempo abstraída em meus próprios

pensamentos. Os assassinatos... Suas palavras ressonaram em meus ouvidos... Os assassinatos de

Caspar... os assassinatos de suas criaturas... que arrebatavam as forças a suas vítimas... Estaria

pisando os calcanhares? Teriam a casa rodeada de seus lacaios?

Sacudi o braço para me liberar de Nele.

—Me solte! —gritei com impaciência— Esta é minha casa! —acrescentei em um tom um

pouco mais moderado, me voltando para o oficial de polícia— Não têm direito de entrar aqui

dessa maneira. Partam! Não é o momento de fazer perguntas!

Roland Wenzel trocou um fugaz olhar com seus companheiros; alguns mostravam o mesmo

gesto de desconfiança que ele, outros pareciam inquietos, e outros não podiam ocultar sua

imensa perplexidade.

Nele me agarrou com mais força.

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Série Nefilim 01

160

—Onde está Aurora? —gritou presa do pânico.

O inspetor assentiu com gesto de aprovação.

—Isso eu gostaria de saber também — disse— Sua filha tem sete anos, não é assim?

A desconfiança se converteu então em suspeita. Acaso acreditavam que eu fiz algo a minha

filha? Que o caos do salão provoquei eu mesma? Que joguei um tronco através da janela? Disso

não podiam acreditar a sério que fosse capaz!

—Minha filha está bem. Tudo está em ordem. Aurora está... está... —mas não continuei— O

rogo, vão de uma vez! —insisti— Não temos tempo para...

—Não temos tempo para que? —apressou o oficial.

Parecia impossível acabar a frase que tinha em mente “ Não temos tempo para ficar aqui

parados conversando. Porque se ficamos, morrerão todos. Morrerão degolados pelos nefilim,

pelos filhos das serpentes... uma raça imortal que povoa a terra e que só pode ser controlada

pelos guardiães, uns seres da mesma espécie que, ao contrário que os primeiros, dedicam a

proteger à humanidade.”

Respirei fundo enquanto procurava desesperadamente uma escapatória.

—Minha filha está com seu pai — disse por fim— e asseguro que está bem.

Nele ficou boquiaberta para ouvir minhas palavras.

—Está com Nathan? Nathanael Grigori? Então, é certo que tornou? Já me pareceu estranho

que antes...

—Pode saber quem demônios é Nathanael Grigori? —perguntou irritado o inspetor.

Eu me sobressaltei, não pela pergunta, mas sim porque eu parecia ter ouvido um ruído, um

sussurro que me resultou familiar, uma espécie de rumor, um resmungo. Voltei para a janela e vi

passar uma das silhuetas negras, que talvez viessem por mim, ou possivelmente por Aurora.

—Nathan Grigori é o pai de Aurora — se apressou a esclarecer Nele— Faz oito anos ele...

—Se cale! —exclamei, tampando bruscamente a boca— Isso não importa a ninguém. —

Depois, me dirigindo à polícia, disse— E agora vocês façam o favor de partir de minha casa

imediatamente. Têm uma ordem de busca? Não? Então não tem nenhum direito de estar aqui.

Isto é... é... invasão de moradia!

Nele agarrou pelos ombros e me obrigou a olhá-la nos olhos.

—Sophie... do que está falando? Se tranquilize! Os policiais só pretendem nos ajudar! Seja o

que for que passou, tem que se acalmar!

—Me acalmar? Mas você tem a menor ideia do que...

Mordi a língua. Por mais que suplicasse, os oficiais de polícia não mostravam a menor

intenção de partir. Além disso, Nele começou também a trocar olhares com os agentes e, para

minha surpresa, advertiam em seus olhos não só desconcerto e pânico, mas também resignação.

Assentia com a cabeça como se assim confirmasse que, em efeito, eu perdi o julgamento...

Talvez já dissesse por telefone que meu estado nervoso era bastante delicado e que com o

tempo perdi a cabeça por completo.

—Por favor! —gritei, embora soubesse que era em vão— Por favor, Nele, ao menos você

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tem que acreditar! Tem que ir daqui agora mesmo! Não pode ficar... é uma questão de vida ou

morte... se não parte poderia...

—De modo que realmente tem relação com os assassinatos — asseverou o oficial— Conte o

que sabe a respeito, senhora Richter.

Fechei os olhos, tentei me concentrar de novo em minha respiração, pensar a toda pressa o

que devia fazer, o que devia dizer. Um ruído me sobressaltou, de novo o mesmo resmungo, não,

uma estridente gargalhada. Ninguém pareceu precaver-se, todas os olhares se centravam em

mim. Dos lábios de quem sussurrou essa risada? Dos de Caspar? Eu estava convencida de que, se

voltava a cair em suas mãos, me mataria. Possivelmente essa era a única oportunidade que tinha

de proteger aos outros: escapar deles.

—Não posso... não posso explicar — gaguejei.

Depois me soltei de Nele, passei correndo junto ao oficial e corri para a porta de casa. Se

conseguisse chegar até o carro... enquanto houvesse testemunhas, Caspar não me capturaria...

esperaria até que estivéssemos fora do alcance da vista dos policiais.

Enquanto corria caí na conta de que não tinha a chave do carro. Deviam ter caído da minha

mão quando Caspar me assaltou. Ao melhor ainda estavam ali... no cascalho…

Não comecei a me agachar quando de repente notei que me agarravam com força e me

levantavam bruscamente. Eram dois policiais, que, segurando cada qual um braço, me conduziram

de novo até a casa e me arrastaram pelo corredor até o refeitório. Não pareceu impressionar

absolutamente que eu resistisse e esperneasse com todas minhas forças.

—Não quero...

—Você não vai a nenhuma parte, senhora Richter.

Algo se desatou em minha cabeça, provavelmente o imenso nó de nervos, incerteza e medo

da morte, e perdi os estribos.

—Me soltem! —Era minha voz?— Me soltem! Não podem me deter! Ou acaso acreditam

que podem me proteger? Que podem proteger vocês? De Caspar? Caspar von Kranichstein? Não é

um homem normal, é um...

—Sophie, pelo amor de Deus!

A força com que estavam me segurando não conseguiu me deter, mas sim a voz de Nele. Por

uns instantes me olhou fixamente como se não só tivesse medo por mim, mas também de mim.

—Eu não estava absolutamente consciente de que era tão... tão grave — murmurou Nele

com perplexidade.

Não me escapava que Nele estava falando de mim.

Comecei a espernear de novo e em uma de minhas sacudidas golpeei na tíbia um dos

agentes, que torceu o gesto, dolorido, enquanto eu lutava com os braços e as pernas, mas as mãos

que me seguravam eram fortes como o aço e, em questão de segundos, encontrei caída de barriga

para cima no sofá. Tentei levantar a cabeça, mas Nele se inclinou sobre mim e me acariciou a

frente.

—Tudo ficará bem, Sophie — dizia uma e outra vez em tom tranquilizador— Tudo ficará

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bem.

—Nada ficará bem! — gritei— Nele, suplico isso! Sou sua amiga, você me conhece, pode

confiar em mim, tem que acreditar. Sei que parece uma loucura, mas…

Ouvi o rangido de um carro sobre o cascalho, logo o chiado da grade do jardim e depois

passos. Alguém estava aproximando da casa. Era um humano? Um nefilim?

Fechei um instante os olhos e, ao abri de novo, já não era Nele quem estava inclinada sobre

mim, a não ser um homem vestido de branco.

—Antes chamei também aos serviços de emergências — esclareceu Nele para me

tranquilizar, e depois voltou para o homem de branco e disse — Pode dar algo para acalmá-la?

Acredito que sofre uma forte crise nervosa. Já faz algum tempo que... está muito preocupada.

O enfermeiro inclinou-se ainda mais sobre mim e um segundo homem apareceu a seu lado.

Nesse momento já não me seguravam os policiais, a não ser os dois homens de branco. Gritei

primeiro a Nele, logo aos enfermeiros, até sabendo de que minhas resistências só conseguiriam

piorar minha situação, mas a impotência, o medo e a incompreensão de todos eles me

impulsionavam a lutar com unhas e dentes até que esgotassem as minhas forças.

—Me deixem! —gritei— Deixem em paz!

De repente notei uma pontada na zona de flexão do braço; uma agulha me atravessou a

pele, entrando na carne, outra pontada, não, e sim um formigamento que começou a se estender

por todo o corpo. No princípio via tudo vermelho, como se uma nuvem sanguinolenta me

envolvesse a cabeça, e então todo se desvaneceu. Muito ao longe, como se encontrasse no

extremo oposto de um túnel, ouvi que Nele tratava de convencer os agentes de polícia:

—Não podem interrogá-la agora. Olhem no que estado se encontra! Agora não está em

condições, deixem tranquila...

O inspetor Wenzel objetou algo em um tom áspero, mencionando várias vezes o nome de

Aurora.

—Não, não — ouvi que respondia Nele— Está equivocando! Sophie jamais faria nada a sua

filha. Isso garanto!

Fazer algo a Aurora! Como podiam pensar algo assim? Eu queria dizer algo, me defender,

mas os lábios não respondiam. Não consegui articular nenhuma só sílaba. Nem sequer podia

levantar a mão. A única prova de que meu corpo seguia com vida era o formigamento. Tinha a

sensação de que milhares de formigas percorriam a pele. De repente cambaleou o sofá onde me

cai, não, não era o sofá, era uma maca. Já não podia opor nenhuma classe de resistência; a

flacidez se deu não só de meu corpo, mas também de minha mente; já não sentia medo, só sentia

vontade de estar em silêncio, tranquilidade... não ter que lutar contra ninguém... nem contra

nada...

Vi que o inspetor se inclinava sobre mim, murmurava outra vez algo sobre um interrogatório

e ordenava que me levassem. Nele o afastou a um lado.

—Faça o favor de deixá-la em paz!

—É uma questão de minutos! —respondeu o inspetor, e não sabia quanta razão tinha!—

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Temos que encontrar à menina e ela é a única que sabe onde está...!

—Não — pensei para dentro—” não sei”, embora possivelmente isso tivesse sua parte boa...

se eu não sabia, talvez Caspar tampouco.

Nele acariciou a frente.

—Tudo sairá bem, Sophie, tudo sairá bem.

O balanço aumentou quando me tiraram do salão; dava a impressão de que cada vez o teto

claro do corredor estava mais perto... cada vez mais perto... E logo voltou a aparecer o rosto de

Nele, que permaneceu a meu lado e inclinava sobre mim. Nele, que fazia tudo que podia para me

proteger e que queria impedir que me submetessem a um interrogatório de várias horas. Não

tinha nem ideia.

—Sophie... —balbuciou.

“Deveria ter acreditado em mim, está equivocada”, queria dizer, mas não podia articular

palavra.

���

As portas da caminhonete se fecharam atrás de mim. O último que vi foi o rosto de

preocupação de Nele. Tentou que a deixassem me acompanhar na ambulância, mas como não

éramos parentes, não permitiram. Eu me senti aliviada, porque, com um pouco de sorte, se

mantinha afastada de mim, estaria a salvo de qualquer ataque.

A ambulância ficou em marcha lentamente; de novo se ouviu o rangido das rodas sobre o

cascalho. Alguém me acariciou o rosto.

—Aonde me levam? —perguntei. Notava a língua deformada e rígida, mas ao menos podia

falar.

O rosto sorridente do enfermeiro inclinou sobre mim. Em tom tranquilizador, disse meu

nome.

—Nós cuidaremos de você.

Comecei a procurar desesperadamente como podia me defender de seu contato e evitar

que me levassem ao hospital contra minha vontade. Entretanto, minha escassa mobilidade não

me permitia nem levantar a cabeça. A sensação de rigidez na nuca era tão forte como na língua.

“Ai, Nele...”, lamentei silenciosamente.

—Você não deve se preocupar com nada — insistiu o enfermeiro.

—Me deixem... deixem que... que me levante... —sussurrei com um fio de voz. Cada sílaba

me supunha um esforço sobre-humano.

—Tudo está sob controle.

Nesse momento, apesar de que aquele homem tão sorridente não tivesse culpa nenhuma de

minha situação, teria dado uma bofetada, mas as forças tampouco me chegavam para isso. Nem

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sequer podia apertar o punho, e depois do fatigante esforço que foi falar, a língua inchou por

completo e me enchia toda a boca.

—Tudo está sob controle — repetiu— Tudo ficará bem.

“Nada... nada sairá bem!”, queria gritar, mas não podia, já não podia resistir, e tampouco

podia advertir do perigo.

De repente ouvi um golpe tremendo na ambulância, os freios chiaram e o veículo começou a

dar inclinações bruscas. O vaivém foi tão forte que os enfermeiros — nesse momento pude ver

que eram dois— caíram para o outro extremo da ambulância. Na parte dianteira ouviu que

alguém amaldiçoava:

—Mas está louco...

A frase acabou com um estridente chiado, e eu estive a ponto de cair da maca, que bateu

contra a parede da ambulância.

—Escapem — tentei dizer, mas o enfermeiro, que conseguiu levantar com grande esforço e

esfregava o cotovelo com gesto de dor, olhou sem compreender o que dizia. Não sei se porque

minhas palavras não tinham nenhum sentido para ele ou porque não podia falar.

—Escapem — insisti de novo, mas minha voz se perdeu entre os ruídos: os freios voltaram a

chiar, o motor rugiu, de repente tudo ficou em silêncio, e depois ouvi um último estrondo.

Procedia de cima. Algo pesado caiu sobre o teto da ambulância. Ou alguém saltou em cima.

O enfermeiro voltou.

—Mas que demônios...? —gritou.

Eu tentei levantar a cabeça, cada centímetro era um suplício. No final de uns segundos

consegui erguer a cabeça o suficiente para ver que ambos trocavam primeiro um olhar de

confusão, e logo elevavam a vista horrorizados. A causa do violento choque o veículo seguiu

cambaleando uns instantes, e finalmente parou.

—Não! —queria gritar, quando um dos homens se dirigiu para a porta— Não abram a porta!

Embora tivesse dito com claridade, minhas palavras não tinham nenhum sentido. Como se

uma porta pudesse deter Caspar...

Imediatamente uma rajada de ar fresco irrompeu no interior da ambulância. Voltei a

recostar a cabeça sobre a maca porque já não tinha forças para mantê-la levantada. Apanhada na

paralisia de meu próprio corpo, não ficou outro remédio que me limitar para ouvir o que

acontecia: as vozes nervosas dos enfermeiros, que depois converteram em um grito de pânico, um

som metálico, um golpe seco e uma gargalhada. Como a câmara lenta, levantei a mão e vi que

estava coberta de multidão de pequenas gotas vermelhas. Sangue.

Um segundo grito, e de novo o ruído metálico e a gargalhada.

—Por favor — supliquei, embora soubesse que já era muito tarde e que ambos os

enfermeiros morreram— Por favor, deixa-os viver... eles não têm nenhuma culpa... não têm nada

a ver comigo...

Seguia sem poder levantar a cabeça, mas consegui me mexer até ficar de lado e foi então

quando vi os dois corpos de branco retorcidos no chão cinza. As pessoas caíram de barriga para

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baixo; o outro, que me deu vários sorrisos cheios de compaixão, olhava com os olhos vazios.

Do corte da garganta brotava sangue. Nesse instante uma sombra cobriu aos mortos e logo a

mim. A luz era tão cegadora que não consegui distinguir Caspar mais que sua enxuta e negra

silhueta.

—A culpa é tua, Sophie — sentenciou com frieza, assinalando com o queixo por volta dos

dois cadáveres— Não deve escapar.

Eu esperava ouvir algum ruído na cabine do condutor, supliquei que o condutor fugisse, que

saísse correndo dali tudo quão rápido pudesse, mas tudo ficou em silêncio, e então compreendi

que ele foi o primeiro a morrer.

—Nathan disse que você nunca atacaria diante de testemunhas... —A língua ficava grudada

no paladar em cada sílaba— E a ambulância — acrescentei fazendo um esforço desonesto para

continuar— está no meio da rua... descobrirão em questão de minutos...

—Isso agora já não importa — respondeu com indiferença— É muito tarde para seguir

mantendo as regras. Cara e Nathan tomaram as dores de tirar do meio do salão os cadáveres de

meus servidores para economizar o espetáculo à plebe humana. A mim, entretanto, a estas alturas

não importa o que o povo pense de mim.

Caspar veio para mim muito devagar, quase recreando em cada passo. Nesse momento, sua

figura negra tampava por completo a luz, enquanto inclinava seu rosto macilento sobre mim,

como fez antes o enfermeiro. Seus largos dedos me acariciaram a pele.

—Pobre Sophie — sussurrou— agora já não pode voltar a escapar, por muito que deseje. E

nem sequer é minha culpa.

Parecia que o frio que fluía por suas mãos deixasse uma fina camada de gelo sobre meu

corpo. Eu nem sequer tentei resistir a suas carícias.

—Faça a mim o que queira — murmurei—, mas Aurora se encontra a salvo. Nathan e Cara a

protegerão e...

—Isso veremos! —interrompeu.

Caspar levantou. Eu, paralisada pelo medo, o frio e o sedativo, não podia me defender.

Esperava que me empurrasse da maca, mas ele tinha algo diferente em mente. Não vi o punho, de

repente notei o golpe no rosto, carregado de ira.

No princípio acreditei que ia explodir a cabeça, que arrebentaria a pele, mas quando limpou

a vista, dei conta de que a dor gerou tanta adrenalina em meu corpo que perdi a rigidez.

—Traidora! —vaiou Caspar.

Notei um gosto metálico na boca; o sangue quente deslizava pelos lábios e o queixo.

—Pode me golpear tanto como queira — resmunguei— mas sempre amarei Nathan. E

Aurora sempre será sua filha.

—Eu teria convertido na rainha de meus domínios...

—Rainha! Que estupidez! —Depois de cada palavra notava que recuperava mais mobilidade

na língua— Você não é nenhum rei. É um assassino.

Caspar emitiu um estridente som, e eu me preparei para receber o golpe seguinte.

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Entretanto, ao invés de me golpear de novo com o punho, levantou e me carregou nas costas

como um saco. Contraí o ventre de dor quando seu ombro me cravou na carne. Quase não

respirava.

Ele saltou da ambulância e começou a correr. Eu fechei os olhos. Cada vez que os abria um

momento, via o chão do bosque, folhas, pedras, musgo, ramos, raízes. Íamos pela montanha,

montanha acima, cada vez mais acima e mais depressa. No final um momento o bosque já não era

tão frondoso, o úmido chão marrom e verde se tornou mais árido. Em nenhum momento ouvi

seus ofegos nem gemidos, só minha fatigada respiração. A seguir deixamos atrás o bosque e

chegamos a uma pradaria. Ele começou a abrir caminho através da erva alta e rangente e, a cada

passo, as flores cheirosas me faziam cócegas na cara, zumbiam as abelhas, e de vez em quando as

fibras me enredavam entre os dedos. Em um momento a grama estava mais curta, mais fina, mais

amarelada. Sebes espinhosos e somente alguma ou outra conífera rodeavam o caminho. As

pedras começavam a cobrir o chão, até que finalmente desembocamos em um campo rochoso. Eu

tentei levantar a cabeça para dar uma olhada ao vale e ter uma ideia da altura que tínhamos

alcançado, mas foi impossível.

Por fim Caspar parou, e ao olhar para baixo já não vi nada vivo, só uma rocha cinza, fria e

nua. Jogou no chão duro. Na superfície sobre a qual caí não cabiam mais de duas pessoas, e ao

redor se abria um grande abismo.

���

Do estreito saliente de rocha se divisava todo o lago, tão negro como, no lugar de água,

estivesse composto de pegajoso breu.

Elevou a vista. À cúpula nevada da montanha não chegava nenhuma das nuvens cinza que

avançavam diante de seus olhos: velhas, imponentes e tão por cima da plebe humana, que esta

corria a prostrar aos seus pés.

Ambas eram boas: a brancura da neve, a escuridão da água; ambas separadas por uma

fronteira definida, de uma nitidez absoluta, sem mesclar. Claridade e escuridão. Bondade e

maldade. No meio, nada. Nada perdido, ao contrário dos frondosos bosques verdes entre o lago e

a montanha, onde alguns claros se ressecaram pelo sol do verão, que as pradarias e os pastos

repletos de flores, ou que o brilho azulado dos arroios e charcos.

Tudo não era a não ser o traje de um mundo enganador que fingia que a vida era luxuosa e

colorida, aromática e esplêndida, de um mundo que incitava a alcançar beleza, alegria e felicidade,

todas elas envoltórios chamativos e, entretanto, ocas por dentro. A verdade que se ocultava nelas

era plaina e prosaica: a existência no mundo se reduz à luta, nada mais. Os desprezíveis humanos

acostumavam contemplar boquiabertos o brilho do mundo como os meninos as bolhas de sabão,

que ignoram que imediatamente explodirão, mas ele não pensava se deixar enganar. Não seguiria

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tratando de convencer de que havia algo que na realidade não havia, não voltaria a desejar jamais

encontrar os matizes nem os diferentes lados das coisas.

Observou que Sophie decompôs o gesto de dor quando a jogou sobre a rocha, mas mordeu

os lábios e reprimiu um grito. Ao menos isso devia reconhecer, Sophie possuía um grande domínio

de si mesma. Em nenhum momento mostrou tremente, suplicante ou covarde. Era toda

determinação. Enquanto soubesse que sua filha se encontrava a salvo, manteria serena, e isso

produzia admiração. Contemplou com tanta frequência rostos desfigurados pelo pânico a morrer,

observou como as almas supostamente orgulhosas se convertiam em insetos queixosos cujas

ânsias de dinheiro, amor ou prestígio ficavam empanadas pelo impulso de sobreviver. A morte era

um espelho, e tinha limites muito bem definidos. E nesse espelho se via refletido com absoluta

crueldade quem era cada qual, muito mais claro que na vida.

Sophie tentou levantar, mas ele a agarrou pela nuca, arrastou uns quantos passos mais para

diante e parou no bordo mais extremo do abrupto precipício. Um empurrão e Sophie cairia ao

vazio.

—Faz o de uma vez! —murmurou ela. Ele a soltou e retrocedeu uns passos.

—É que não quer me matar? —perguntou, e levantou a vista— A que espera?

—A Cara e Nathan.

Capítulo 11

Caspar retrocedeu e me deixou estendida no precipício. Olhei ao céu. Embora nesse instante

não me empurrasse ao vazio, tal como eu me esperava, bastaria um só movimento em falso e

cairia, sulcaria o vazio até bater contra o chão, um chão pedregoso e semeado de arbustos

espinhosos, quebraria todos os ossos ao escorregar sobre pedras, ramos e pontas agudas e

finalmente ficaria estendida no chão, coberta de arranhões e rodeada de sangue. Imóvel. Morta.

Imaginava-me à perfeição e, entretanto, não sentia medo. Nesse momento me parecia,

talvez devido ao efeito do calmante, que nem sequer tinha de cair, que poderia estender as asas e

começar a voar, liberada de todo perigo, de todo medo.

Enquanto permaneci estendida, o sol alcançou seu ponto mais alto, ficou oculto depois das

nuvens e voltou a sair de novo. Perdi a noção do tempo, mas mesmo assim reparei que o efeito da

injeção ia acabando pouco a pouco. Nas partes por onde me bateu e apertou as mãos de Caspar,

começava a sentir dor. Levantei a cabeça e essa vez o consegui. Ergui sem que nenhuma força

invisível me impedisse isso.

A rocha sobre a qual me sentei era lisa e fria. Nem sequer havia uma fenda que poderia me

segurar. Evitei olhar ao vazio e me voltei para Caspar. Não estava longe de mim, como uma coluna

magra, escura. Não prestou atenção em mim, parecia imerso em seus pensamentos. Olhava ao

infinito com o olhar perdido. Como pude provocar esse homem... não, não era um homem, era um

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filho das serpentes... como pude provocar em algum momento algo que não fosse profundo

desprezo e repugnância?

—Nathan e Cara não virão — disse em sussurros.

Ele não reagiu. Já acreditava que não me ouviu, quando de repente murmurou:

—Sim, claro que virão. —Depois de uma breve pausa, adicionou com fúria— Virão porque

você pedirá ajuda a Nathan.

Eu neguei com um gesto enérgico de cabeça e senti uma pontada de dor tão forte que um

sem-fim de faíscas brancas me encheu a vista.

—Não penso pedir ajuda.

Avançou lentamente um passo para o precipício, mas não se aproximou mais.

—Traiu-me, Sophie — assinalou— mas vou conceder outra oportunidade. A deixarei viver se

chama Nathan e o atrai até aqui.

Sua voz já não possuía um tom sedutor, mas sim era fria e sóbria, como de quem se propõe

fechar um trato comercial.

—Minha vida em troca da de Nathan — observei lentamente— Parece que essas são as

contas que tem feito.

—Sim — respondeu, lacônico.

Eu voltei a negar com a cabeça, embora essa vez com um gesto mais lento e delicado.

—Não se conformaria com a morte de Nathan. Quer A... Aurora. E eu seria capaz de morrer

com sabendo que minha filha está bem.

Nesse momento Caspar pousou um pé sobre o saliente de rocha. Eu senti um formigamento

no estômago, como se me encontrasse no terraço de um arranha-céu olhando para o vazio. Só

três passos mais... pensei... três passos mais, um empurrão, e cairei...

Caspar não seguiu avançando.

—Comigo estaria bem.

—Não — respondi— disso não conseguirá me convencer. E não pode me obrigar a atrair a

Nathan até aqui. Ele verá igual a mim. O bem-estar de Aurora está por cima de... de minha própria

vida.

—Nesse caso estarei forçado a recorrer a outros meios.

Avançou um passo mais para mim e, embora tentasse reprimi-lo com todas minhas forças, o

formigamento que sentia no estômago voltou tão intenso que começou a tremer o corpo inteiro.

O mais provável era que Caspar não pensasse empurrar sem mais, certamente pensava me

agarrar, me levantar e não... não ia jogar no vazio, ainda não. Seria uma morte rápida, muito

rápida, e não serviria para alcançar seu objetivo. O que queria era me assustar, me conduzir uma e

outra vez a borda do abismo, me deixar suspensa no ar e me jogar no último momento. Talvez

pensasse golpear outra vez, me causar dor. Apoderou de mim um medo indescritível. Não sabia se

ia poder suportá-lo, se não foram abandonar as forças. Endireitei as costas, tentei deixar a mente

em branco, não pensar em nada salvo em Aurora. Entretanto, ao tentar evocar a imagem de seu

rosto em minha mente não vi minha filha, a não ser Nathan me olhando com uns olhos carregados

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tanto de preocupação como de ternura. No meio do pânico, invadiu uma agradável sensação de

calor.

“Cuida dela — supliquei para dentro— cuida bem de minha pequena!”

Fechei os olhos, concentrei-me nessas palavras, e me endireitei mais ainda. Não aconteceu

nada. Quando voltei a abrir os olhos, Caspar se achava diante de mim com os braços no alto, e não

para agarrar, me ameaçar ou me fazer mal.

Nesse momento percebi a rouca respiração, os ofegos e os fôlegos, mas não procediam da

boca de Caspar, mas sim das gargantas das figuras negras que subiam à corrida pela montanha.

Gritei horrorizada. Não vinham sozinhos... traziam consigo uma mulher que balançava

indefesa a ombros de uma das criaturas.

Nele... capturaram Nele!

Ao chegar a jogaram com brutalidade aos pés de Caspar.

—Nele...

No princípio, ao pronunciar seu nome uma e outra vez, estremecia o corpo. Estava deitada,

como se queria fazer muito pequena, mas ao fim entreabriu os olhos, assustada. Seu olhar recaiu

em mim, abriu os olhos um pouco mais, mantendo fixos pelo medo. Tinha os olhos cravados em

mim e ao mesmo tempo me atravessava com o olhar. Ao observá-la com maior cuidado notei que

no princípio devia ter defendido com unhas e dentes. Prova disso eram os inumeráveis arranhões

ensanguentados que salpicavam seu rosto, assim como as feridas das mãos, com as quais devia ter

repartido golpes a torto e direito. Tinha o cabelo alvoroçado.

—Nele... —murmurei de novo.

Capturaram-na em minha casa ou a pegaram depois?

—Por favor... —Embora fosse consciente de que minhas súplicas seriam inúteis, não pude

evitar— Por favor... não a meta nisto!

Caspar inclinou sobre mim e imediatamente notei uma rajada de frio que, como um manto

grosso, envolvia.

—Não deixou alternativa. —Falava em um tom tão baixo, e essa vez sem resmungos, que

sua voz resultava quase doce, amável.

Incorporou de novo, afastou a vista de mim e inclinou sem nenhuma pressa sobre Nele. Por

um instante, pensei em tentar deslizar a rastros, mas depois dei conta de que não realizasse o

mínimo movimento, ele ia agarrar.

A sombra de Caspar caiu então sobre Nele. Ele levantou as mãos com um gesto de

recebimento como dando a boas-vindas a seu nobre lar a uma convidada muito esperada.

—Vê sua amiga? —perguntou com voz amável— E vê o vazio ao que cairia... se por acaso

caísse?

Nele seguia com o olhar fixo e perdido, mas os lábios começaram a tremer, e então vi que

tentava balbuciar alguma coisa que não cheguei a ouvir.

Gaspar entregou um celular que eu reconheci em seguida; era o meu, já com a bateria

completamente carregada.

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Série Nefilim 01

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—O que tem que fazer para salva-la de uma morte terrível é muito simples. Disca o número

de Cara Sibelius, peça que passe com Nathanael Grigori... e descreva o que vê. —O sorriso de

Caspar ia ampliando, um sorriso que, mais que maliciosa, era a de um homem de negócios

simpático e atento.

A Nele não só tremiam os lábios, as mãos também. O telefone escorreu nada mais agarrá-lo,

mas o recuperou imediatamente.

—Não faça, Nele, rogo isso, não faça! —gritei.

Tentei atrair seu olhar para mim, gritei seu nome uma e outra vez, sem reparar que Caspar

deslocou de um salto até mim, quando de repente me agarrou, pôs de pé e me ameaçou com a

mão em alto. E eu, que levava tanto tempo reprimindo o medo aterrador que sentia, já não pude

me dominar.

Alguém começou a dar uns gritos estridentes e ensurdecedores. Tanto que pensei que

fossem explodir os ouvidos.

Nele...

Mas não era a voz de Nele. A mesma voz, torturada e atormentada, voltou a gritar, e então

me dava conta de que se tratava de minha própria voz. Gritava, invadida por uma dor que, sem

saber brotava do rosto, o pescoço ou o estômago, culminava na cabeça como uma explosão de

luz. Quando o sem-fim de brilhos começou a apagar, voltei a abrir os olhos e tentei mover com

cuidado, submetida ao ritmo dessa dor palpitante, e nesse instante vi que Nele falava nervosa por

telefone.

—Não faça isso! —tentei gritar outra vez— Não diga a Nathan que venha!

Mas não consegui articular uma só palavra. Era muito tarde.

���

Deixei cair sobre a rocha, fechei os olhos e, por um momento, esqueci onde estava, quem

me ameaçava. Assaltou a sensação de que, como um verme apanhado na borda de um

despenhadeiro, eu havia sido lançada a um vazio sem perigos nem temores, mas também sem

amor e esperança, só e órfã.

Ao abrir de novo os olhos, entreabri o olhar deslumbrado; o sol incidia diretamente sobre

meu rosto. A julgar por sua baixa posição, a tarde devia estar bem avançada. No céu azul não

aparecia nenhuma só nuvem.

“Que paradoxal — disse— que paradoxal que faça um dia tão esplêndido...”

Não encaixava que fizesse esse tempo em um dia assim. Em alguma parte prosseguia a vida,

as crianças riam e brincavam, as pessoas se sentiam felizes ou de mau humor, beijavam ou

discutiam. Sim, o mundo era imenso, mas meu mundo não. O meu se restringia àquele precipício,

ao redor do qual aguardava a morte.

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“Ah, se só se tratasse de minha morte!”

Mas no rosto de satisfação de Caspar adivinhava que o plano funcionou e Nathan e Cara se

achavam já do caminho, provavelmente acompanhados por Aurora.

Levantei a mão e apalpei o rosto. Não sabia onde nem como me bateu para que eu tivesse

dado semelhantes gritos de dor. Voltei a notar um gosto metálico na boca, mas talvez tanto o

sangue como o inchaço e o formigamento da bochecha provinham ainda do golpe que me

proporcionou na ambulância. Em todo caso, comprovei que podia mover as extremidades — não

quebrei nada— e que podia também inspirar e exaltar profundamente.

Olhei para Nele. Depois de ter completo sua missão, permaneceu deitada, sem se mover,

com um olhar que recordava a de um cadáver. Por um instante me assaltou o temor de que

realmente pudesse estar morta, que tivesse sucumbido ao medo ou que alguma das criaturas a

tivesse liquidado porque já não desempenhava nenhuma função.

—Nele... —sussurrei.

Uma das figuras escuras que encontravam apostadas junto à ponta da rocha pôs a rir. Voltei

para ela, entretive uns segundos em examiná-la e separei a vista dela: era uma autêntica

caricatura de Caspar. Não cabia dúvida de que Caspar era um ser inquietante, mas irradiava um

brilho que o dotava de um aspecto humano, uma aura que desprendia algo repugnante e

fascinante de uma só vez. Seus ajudantes, entretanto, pareciam autômatos sem alma. Horrorizo-

me saber que Nathan matou o filho de Caspar, mas agora, ao pensar nele, não me imaginava

como um menino indefeso, mas sim como uma dessas desprezíveis criaturas, embora menor e

débil, e nesse momento compreendi que Nathan não teve escolha.

Dirigi o olhar de novo para Nele, que continuava imóvel.

—Nele! —tentei chamá-la uma vez mais.

Caspar avançou um passo e se colocou entre nós duas para me impedir que visse minha

amiga.

—Tudo isto é por sua culpa — sentenciou com sarcasmo.

Embora tivesse a voz tremente por causa do medo, consegui controlá-la suficiente para

perguntar:

—O que fez com Nele?

Caspar encolheu os ombros como se queria dilatar a resposta.

—Fazer? Na realidade nada! Mas ao parecer ela não resistiu tão bem à ascensão da

montanha. Não se preocupe, não está morta. Só desmaiou. —Olhando ao céu, soltou uma

gargalhada de desdém e de mofa para a fragilidade da multidão humana, embora também de

repugnância.

Eu desejei com todas minhas forças que, tal como Caspar dizia, Nele só tivesse perdido o

conhecimento, embora poucos segundos mais tarde deixei de pensar no estado de minha amiga.

De repente um rumor rompeu à calma, quase como o sussurro do vento que assobiava entre

os arbustos espinhosos. Depois se converteu no rangido de uns passos apressados abrindo

caminho entre a erva. Alguém chegou correndo, com uma exalação. Eu, que seguia com o olhar

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cravado no rosto de Caspar, notei que mudava a expressão, que o desprezo e a ironia deixavam

passo à avidez. Seus olhos negros brilhavam.

—Mas bom... —exclamou em tom triunfante.

Eu me voltei muito devagar, embora já soubesse quem vinha para nós antes que Caspar

anunciasse com tanto júbilo. Até o último instante alberguei a esperança de que mantivessem

afastados do perigo, mas nesse instante, quando Nathan e Cara se dirigiram para nós e eu devolvi

a Nathan o olhar de preocupação, invadiu uma sensação de calor e por um fugaz instante senti

que não me achava à borda de um precipício. Inundei no azul dos olhos de Nathan, e o senti tão

perto que acreditei notar suas mãos delicadas sobre meu rosto, seu fibroso corpo, quente e

protetor, contra o meu, nossos corações pulsando ao mesmo compasso. Ninguém nem nada podia

me arrebatar essa felicidade: seu amor incondicional, sua firme vontade de me proteger do mal, e

a certeza de que — embora morresse ali mesmo— abandonaria este mundo em paz com ele,

sabendo que me amava e amando eu também. Já não me assustava tanto morrer. Minha situação

era desesperadora, mas mesmo assim podia me aferrar à ideia de que Nathan e eu nos

pertencíamos. No mais fundo de mim sentia a esperança de que nada poderia nos separar, a

confiança de que, de algum modo, tudo ia sair bem.

Quando Nathan afastou o olhar de mim e se voltou para Caspar, a calor se desvaneceu por

completo. O que não me abandonou foi o alívio, o grande alívio que senti ao ver que Aurora não

estava com eles.

Não tinha nem ideia de onde podiam tê-la escondido, nem sequer estava segura de que se

encontrasse a salvo, mas algo me dizia que estava bem, ao menos nesse instante.

Nathan e Cara percorreram os últimos passos com tanta velocidade que eu não pude segui-

los com a vista. E o que aconteceu a seguir, quando chegaram à cúpula, também transcorreu a um

ritmo que me transbordou por completo. Ainda não conseguia distinguir as espadas quando

investiram com elas às criaturas de Caspar. Em um instante rangia a grama sob seus pés e ao

seguinte voltavam a pisar na rocha nua; não, não a pisavam, mas bem revoavam, ágeis e ligeiros,

sobre ela. Nesse momento se ouviu um chiado tão ensurdecedor que acreditei que ia explodir a

cabeça.

Imediatamente duas das figuras negras que trouxeram Nele até ali, jaziam no chão com os

braços estranhamente retorcidos. Eu os olhei confusa, até que compreendi que os degolaram e

que do pescoço brotava sangue azul.

Assombrou ver como rápido Nathan e Cara acabaram com essas criaturas, e isso despertou

esperanças em mim. Conseguiram vencê-los aos dois tão facilmente, talvez unindo suas forças

pudessem eliminar Caspar, me liberar, levar Nele dali... Justo nesse instante Cara inclinou sobre

Nele. Tomou o pulso e fez um sinal a Nathan para indicar que estava viva.

“Sim, Nele está viva... só sofreu um desmaio... tudo sairá bem...”

Mas cantou vitória muito logo. Assim que olhei o rosto de Caspar, o horror voltou a apoderar

de mim.

Caspar não inquietou o mínimo pela perda de seus dois companheiros de batalha. Pelo visto

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eram os mais débeis, duas criaturas das que podia prescindir e cuja morte assumiu de antemão.

Soltou uma ameaçadora gargalhada e pareceu que não só ouvia sua risada, mas também esta

percorria todo meu corpo como uma onda de frio que impregnava tudo, alagando e cobrindo de

horror cada fibra e cada poro.

—Bom — disse— vocês esquentaram antes de vir.

Nathan foi muito devagar até ele e parou poucos passos de distância. Em seu rosto não

apreciava movimento, mas vi que as mãos tremiam ligeiramente. Eu também percebia a tensão,

quase corporal, que crescia entre eles. Já na batalha que liberaram no jardim de Cara notou essa

mesma sensação, como se o ar estivesse carregado de eletricidade; nesse instante, o ódio e o

rechaço que sentiam um pelo outro sulcavam o ar como raios. A luz do sol já não era quente,

luminosa nem agradável, mas sim parecia o frio resplendor de um abajur de néon.

Quando Nathan começou a falar, sua voz resultava quase irreconhecível. Era dura e distante,

sem da rouquidão que comovia, e do calor que conferia a delicadeza de sua melancolia.

—Você nunca desejou lutar contra mim. Por que agora? Ou é que leva anos planejando essa

traição?

O sorriso apagou dos lábios de Caspar; em lugar de diversão, seu rosto exibia uma careta de

funda satisfação.

—Tem razão. Sempre evitei. Mas isso não significa que seja um covarde. Talvez em alguma

ocasião me comportei como tal, quando em seu momento deixei escapar a oportunidade de

vingar Serafina. Mas não voltarei a permitir que, pela segunda vez, arrebate aquilo que é meu. —

Fez uma breve pausa— me responda com sinceridade, Nathan: não quer você também resolver

este assunto entre nós de uma vez por todas? Quanto tempo faz que nossos caminhos se cruzem?

Não está tão farto de ver minha cara como eu de ver a tua? No final desta luta só ficará no mundo

um dos dois. Você ou eu.

—Se você diz — respondeu Nathan com expressão de indiferença— Mas há algo que deve

saber: embora consiga me derrotar, Aurora nunca será tua.

Cortou minha respiração ouvir o nome de minha filha.

—Não a encontrará — apontou Cara, e avançou também para eles— porque a escondemos

em um lugar seguro. Embora Nathan não possa, eu jamais permitiria que caísse em suas mãos!

Com um gesto ameaçador, Cara hasteou a espada, mas Caspar não só não pestanejou, mas

também soltou uma gargalhada. Nesse instante, os olhos verdes de Cara resplandeceram sob o

escuro olhar de Caspar.

—Eu de momento só pretendo lutar com Nathan, não com você — esclareceu, recuperando

a seriedade de súbito— Acredite que não seria para mim um prato de bom gosto lutar com você,

querida Cara. Serafina sempre odiou, e sei que por então entrou no jogo... mas não sou um

monstro. Quer refugiar-se em um lugar seguro, esta é sua oportunidade.

Cara sacudiu a cabeça com raiva. A oferta de Caspar não a desconcertou como a mim. O fato

de que Nathan e Caspar fossem velhos inimigos, sabia, mas eu estava convencida de que Caspar

sentia também um profundo desprezo por Cara. Entretanto, ele acabava de oferecer a

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possibilidade de fugir, a nefilim de peculiares olhos verdes, à única que se mantinha fiel a Nathan e

que estava disposta a tudo para proteger sua Aurora.

A Caspar não passou inadvertida minha estupefação, e pela primeira vez se dirigiu para mim:

—Sim, não sou um monstro — repetiu com ironia— Se Cara não elevar sua espada contra

mim, não farei nada. É tão merecedora da vingança como Nathan. Mas há ocasiões em que

alguém deve situar a piedade por cima da justiça... não acha, irmãzinha da alma?

Ao pronunciar essas últimas palavras, fez uma leve reverência para Cara.

Eu me voltei, esquadrinhei os olhos verdes de Cara e vi que seu rosto se achava comovido

por sentimentos que jamais vi nela. Ela sempre se mostrava calma, destilava uma serenidade

capaz de aplacar qualquer confusão da alma e, entretanto, nesses momentos seu rosto transmitia

vergonha e uma profunda consternação.

—Cara...

—É certo — afirmou depois de uma breve hesitação— sou irmã de Caspar.

Minha confusão aumentou.

Nathan me explicou que Cara se contava entre os casos excepcionais de nefilim que se

rebelaram contra seu destino — seus olhos verdes eram a prova visível disso— e passou a

fronteira quase invisível que separava aos guardiães dos filhos das serpentes. Mas jamais teria me

passado pela cabeça que unisse uma relação de parentesco, e jamais reparei na semelhança de

seus nomes.

Cara e Caspar.

Cara me olhou.

—Minha mãe —começou a me explicar— era uma das escolhidas. Amava meu pai e aceitava

quem era... o que era... mas nunca aprovou seus atos. Não podia impedir que matasse a humanos,

na realidade nem sequer tentava porque era muito fraca. Mas ela sempre foi consciente de que

ele era malvado, e jamais permitiu que arrebatasse seu amor pela beleza, à verdade e a bondade.

Caspar soltou de novo uma gargalhada, embora sem tanta convicção. Por um fugaz instante

seu olhar ficou tingido pela gravidade e tristeza, como a de sua irmã, refletindo essa herança de

sua mãe, embora nele não pulsasse com a mesma força que em Cara, que mudou de lado.

—Nos economize suas sensibilidades! —sibilou— Estou seguro de que agora me recitará

esse velho dito teu: “ Não podemos escolher de quem nascemos, mas podemos decidir quem

somos.” Pequena estupidez!

—Está certo! —respondeu Cara com firmeza— Talvez não valha para todo mundo. Mas eu

consegui, você também teria se quisesse!

—Conseguir o que? Negar simplesmente o que sou? Sair correndo? Como você? A meu lado

estava destinada a converter em alguém grande.

—Sim, em uma grande assassina! —Cara estava tão irada que nesses momentos sua voz

sibilava como a dos filhos das serpentes.

—Quem quer matar a quem aqui? —perguntou Caspar.

—Isso deveria perguntar eu a você. Você é quem nos trouxe até aqui, que planejou tudo.

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—Se Nathan não tivesse se interposto em meu caminho... —Caspar sacudiu a cabeça— Mas

esse é um problema entre ele e eu. Você não tem nada que ver nisto. Esta não é sua luta, Cara.

Vá! Desaparece! Não entendo por que sempre ajuda Nathan e por que quer manter Aurora

afastada de mim. Comigo tudo estaria bem!

—Bem igual ao que foi com nosso pai? —respondeu Cara— Na realidade também repugnava

o que fazia! O que passa é que empenhava em dissimular e me enganar. Eu tive que presenciar

como vocês atacavam os homens como animais de caça, como riam a gargalhadas deles quando

olhavam com a face decomposta pelo pânico, como você se sentia cheio de orgulho quando ele

elogiava. Mas não me enganava. Não produzia o mesmo prazer que ele. Depois sempre limpava a

consciência, embora às escondidas, o sangue de suas vítimas. E apesar de tudo ria de mim quando

eu fazia o mesmo.

O rosto de Cara não havia mostrado jamais suas velhas tribulações e, entretanto, nesse

instante parecia que as tivesse gravadas no semblante. O dela era uma tortura mais destruidora

que a constante luta interna de Nathan com seu destino, e mais profundo ainda que o desejo

oculto do Caspar de viver em paz. Nenhum deles se sentia de acordo com o que era, mas ambos

pareciam ser capazes de superar sua infelicidade interior quando chegava o momento de lutar.

Entretanto, Cara provavelmente nunca conseguia esquecer, sua tortura a acompanhava sempre,

em cada passo, em cada fôlego. Seria talvez essa a razão de que sempre se mostrasse contida?

Porque levava anos, décadas, treinando para que ninguém pudesse intuir seus verdadeiros

sentimentos?

—Você teve culpa de que ele atormentasse desse modo! —gritou Caspar— Se tivesse

demonstrado uma só vez como era forte ele teria te deixado tranquila. Acaso era tanto pedir? Ele

só queria que matasse uma pessoa e se apropriasse de suas qualidades! Tão terrível é isso? Uma

pessoa?

Cara negou energicamente com a cabeça.

—Que não seja capaz de compreendê-lo... que me faça essa mesma pergunta uma e outra

vez... isso é o que nos manterá separados o resto da eternidade!

—Vejo que está convencida de que é melhor que eu, mas acha que lutando também será

superior?

Eu me preparei instintivamente para o começo da luta, e tampouco me passou por cima a

inquietação com a que o esperavam as criaturas negras, que observavam tudo. Mesmo assim,

depois da troca verbal dos irmãos, surpreendeu quando de repente desencaparam as espadas, a

tal velocidade que eu não pude distinguir quem a elevou primeiro para investir ao outro.

Contemplei boquiaberta aos ágeis movimentos circulares, essa dança magistral que constituía um

espetáculo de harmonia e morte de uma vez só, sem ter ciência se a percepção do que estava

acontecendo diante de mim era correta: parecia que Caspar atacou Cara, diante do qual Nathan

tentou protegê-la enquanto os três ajudantes de Caspar que estavam vivos se equilibraram sobre

ele. Moviam tão rápido que eu só conseguia distinguir um matagal inextricável de corpos da que

apareciam espadas por aqui e por lá. Os gritos elevavam, gritos de vitória, dor, ódio e sarcasmo.

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—Corre! —ouvi que gritava Cara— Saia correndo!

Nesse instante me dava conta de que Caspar estava muito ocupado para precaver de minha

fuga e que podia me afastar do precipício. O caminho para o vale estava livre. Mas não pus a

correr para baixo, mas sim me equilibrei sobre Nele, apalpei o corpo e peguei o braço.

Comprovei que respirava, o coração palpitava, mas continuava com as pálpebras fechadas.

—Nele! Por favor, Nele! Acordada!

Como seguia sem mover, tentei carregar com ela, mas pesava muito.

—Disse que corra! —voltou a gritar Cara— Tem que ir daqui!

Eu segui sem fazer caso da ordem desesperada de Cara. Nem por um momento passou pela

cabeça abandonar Nele, que sempre esteve ao meu lado, que sempre me ajudou.

A gritaria era cada vez mais ensurdecedora, parecia que o chão vibrava.

Comecei a sacudir Nele, a beliscar a pele e a dar socos cada vez um pouco mais fortes. O

tinido metálico das espadas se ouvia mais perto; pelas rajadas de ar que chegavam sabia que as

folhas nos passavam roçando. Nossa situação era cada vez mais perigosa, mais desesperada, e

então ao fim Nele abriu os olhos.

—O que houve? —balbuciou.

���

Embora voltasse a si, permaneceu uns instantes deitada no chão, sem força, com o olhar

vazio igual a antes. Ainda não era nem a sombra da Nele enérgica, faladora que eu conhecia.

Parecia uma menina desorientada.

—Se levante! —gritei. Acima! Sua vida corre perigo!

Depois de uma sacudida que percorreu o corpo, começou a piscar quando se precaveu do

que estava acontecendo a nosso redor. A ela, que não as ouviu, o estrépito das espadas devia

resultar mais ensurdecedor ainda que a mim. Justo ao nosso lado caiu uma figura negra e exalou

um último suspiro. Eu já o ouvi outras vezes e mais ou menos pude suportá-lo, mas Nele chiou

horrorizada quando salpicou um jorro de sangue.

O susto deu força. Por fim se levantou e deixou que eu a guiasse. Forcei a agachar ao passar

correndo junto aos que liberavam a batalha, tentei manter a máxima distância procurando ao

mesmo tempo não dar nenhum passo em falso para o ameaçador abismo. As pedras que

pisávamos pareciam tremer sob nossos pés enquanto nos afastávamos correndo. Quando

atravessamos os seixos e conseguimos deixar atrás o precipício e o tumulto, segui o rastro das

pisadas que Cara e Nathan deixaram seu passo na terra úmida e na grama. Em várias ocasiões

escorreguei ou me enganchei com os ramos espinhosos de algum arbusto. Levava Nele agarrada

pela mão, mas não a soltei em nenhum momento, e tampouco voltei à vista atrás.

Longe! Longe! Tinha que levá-la longe dali!

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Essa ordem ressonava em minha cabeça a cada passo que dava. O caminho do vale, que a

ombros de Caspar me pareceu tão curto, me estava fazendo eterno. Quando deixamos atrás os

arbustos de espinheiro, ia roçando com as pedras, me enganchando com as raízes, me cortando

com a grama, mas não sentia nada, só o impulso do temor a que alguém nos assaltasse no

caminho, detivera e Nele voltasse a ver ameaçada.

Ao fim chegamos à entrada da arvoredo, cujo teto de folhas e agulhas nos protegia da

resplandecente luz do sol.

Nele choramingou.

—Sophie! —Pela primeira vez resistiu contra a firmeza de minha mão e me obrigou a olhá-

la— Sophie, o que está acontecendo?

Em suas facções podia adivinhar um desconcerto absoluto. Eu a compreendia

perfeitamente, viveu em minha própria pele o que significava ver rodeado de sucessivos fatos

inexplicáveis. Mas não era o momento de parar e dar explicações.

“Longe! Longe!” Em minha cabeça seguia ressonando o mesmo “Tenho que levar Nele longe

daqui!”

—Nele, corre! —supliquei com urgência— Agora não faz falta que saiba o que está

passando. Agora tem que pôr a salvo!

Minhas palavras foram inúteis.

—Esses homens... —balbuciou entre hesitações— assaltaram a casa... e aos policiais os...

Ao recordá-lo, levou a mão à boca.

—Nele! Se acalme! Não pense nisso! Agora tem que...

De repente saiu da paralisia. Então foi ela quem me agarrou pela mão, puxou a mim e seguiu

correndo, depressa, cada vez mais depressa. Quando escorregava, me arrastava com ela e ambas

caíamos ao chão. Patinamos no chão enlameado do bosque, enganchávamos com os troncos das

árvores. Mas ela se levantava imediatamente e seguia me puxando sem alterar. Eu me deixei levar

até que atravessamos o bosque quase inteiro, e então a freei.

—Nele! —gritei— Nele! Não posso seguir!

—Mas se você mesma acaba de dizer! Temos que nos afastar daqui! —respondeu.

—Tenho que voltar — respondi— Só queria que você ficasse a salvo, e aqui ninguém a

assaltará. Segue correndo, busca um lugar onde se esconder e não chame à polícia, ouve? A polícia

não pode com eles. Já viu, não existem armas para vencê-los. O único que pode derrotar Caspar

é...

Interrompi. Nele puxou pela mão, mas finalmente me soltou ao ver que eu resistia com

firmeza e se pôs a correr de novo. No final de poucos passos parou e olhou para trás.

—Sophie...

—Vai! —implorei uma vez mais— Corre! Não se preocupe por mim! Mas não diga uma só

palavra... a ninguém!

Não fez perguntas, mas tive que pedir, suplicar e ao final gritar várias vezes que fosse, até

que em algum momento deu meia volta e, empurrada pelas arrepiantes imagens que presenciou,

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entrou no vale.

Eu me senti aliviada ao vê-la afastar-se, com a esperança de que no caminho se cruzasse

com alguém que cuidasse dela.

Remoia a consciência deixá-la partir assim, mas não podia acompanhá-la. Não enquanto

Cara e Nathan estivessem lutando por sua vida. Tinha que ajudá-los!

Tinha claro que não podia entrar na batalha, mas talvez conseguisse distrair Caspar, fazer

perder os nervos com minha inesperada volta e que por uns segundos Nathan gozasse de uma

ligeira vantagem.

Não sabia como, mas sabia que tinha que tentar. Quando Nele ao fim desapareceu na

sombria frondosidade do bosque, dei meia volta e voltei a subir.

Por um momento só existimos minha ofegante respiração, o tortuoso chão que pisava e eu.

Depois já não pude manter esse passo tão ligeiro, mas apesar dos fôlegos não me detive nenhuma

só vez.

Ao tempo comecei a ouvir ao longe o estrépito das espadas, mas à medida que me

aproximava do precipício, dei conta de que já não era intenso. Nesse instante ouvi com nitidez os

gemidos, os chiados e o estrépito metálico, mas já não era tão estridente, pois tanto as bocas

como as espadas se reduziram em número. Estava a ponto de dar os últimos passos quando

tropecei com uma figura escura e caí no chão. Rapidamente me levantei assustada e retrocedi

alguns passos e rodeei o cadáver, sem parar para olhá-lo com atenção. O seguinte corpo que

encontrei no caminho esquivei com cuidado, e o mesmo fiz com o terceiro.

O exército de Caspar... minguado... talvez todo destruído.

Senti aliviada, esperançada, até que, uns passos mais à frente, gritei horrorizada. Havia

tornado a topar com um corpo na metade das pedras, mas nessa ocasião a vestimenta não era

negra.

Olhei Cara nos olhos, seus olhos verdes permaneciam tão imóveis que temi que estivesse

morta. Aterrada, ajoelhei junto a ela e notei que as pedras afiadas cravavam na pele.

—Cara...

Emitiu um débil gemido. A espada deslizou das mãos e jazia a uns quantos metros de

distância, não muito longe de onde lutavam Nathan e Caspar, os únicos que ainda se achavam em

disposição de brandir suas espadas. A luta parecia mais encarniçada e feroz que na noite que se

enfrentaram no jardim, mas mesmo assim Caspar tinha forças para gritar a Cara:

—Adverti isso, Cara! Não deveria ter me desafiado!

Nesse instante vi a ferida: um corte aberto e profundo com o passar do peito, de onde

brotava o sangue azul.

Inclinei sobre ela e a olhei aturdida. O que devia fazer? Tentar deter a hemorragia? Sabia

que aos nefilim só podiam matá-los seus iguais, mas o que acontecia quando os feriam?

—Cara! —exclamei— O que devo fazer?

Não respondeu, mas nesse instante ouvi a voz de Nathan, que gritou entre ofegos:

—Leve-a daqui!

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Série Nefilim 01

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Os acontecimentos pareciam acontecer em um círculo absurdo. Acabava de confrontar

exatamente a mesma situação uns instantes antes, frente ao corpo imóvel do Nele e ter que fugir

com ela. Agora tinha que fugir de novo, mas desta vez com Cara, que me olhava com o olhar

perdido sem se mover.

—Cara! —chamei-a, e voltou a soltar um gemido.

De novo ouvi a voz de Nathan:

—Ela levará até Aurora. Eu enfrentarei Caspar.

Os gritos de Caspar, mais fortes e estridentes que o estrépito das espadas ao chocar,

destilavam autêntica ira. Possuído ainda pelo desprezo para sua irmã, percebeu que cometeu um

grave engano ao feri-la ao invés de matá-la. Não sei se não pôde ou não quis, mas em seu rosto

notei a surpresa ao ver que eu retornei e estava me ocupando de Cara.

Brotava cada vez mais sangue da ferida aberta. Eu, sem duvidar mais, tirei rapidamente a

jaqueta — até esse momento nem sequer fui consciente de que a usava— e a pressionei contra o

peito de Cara. No final um instante a malha ficou impregnado do viscoso líquido azul. Reprimi a

repugnância que me produzia, não só o aspecto do sangue, mas também o insólito frio que

desprendia sua pele.

Em um primeiro momento Cara jazia imóvel sob minhas mãos, com o rosto cada vez mais

pálido, o olhar cada vez mais vazio, mas de repente uma sacudida percorreu todo o corpo e

começou a levantar pouco a pouco.

Então ouvi um grito furioso de Caspar. Queria equilibrar sobre nós, mas Nathan o impediu.

Embora fosse certo que Caspar não podia me alcançar com a espada, dei a sensação de que

atravessava com os olhos cada vez que me olhava. Por um instante fiquei olhando, como

enfeitiçada, a negrume de seus olhos e só vislumbrei instinto assassino.

—Você...! —exclamou.

—Parte daqui agora mesmo! —gritou Nathan.

E uma vez mais tive a impressão de que o tempo, em lugar de avançar, girava em círculos, de

que na realidade era impossível sair dessa situação porque retornava uma e outra vez ao

angustiante ponto de partida. Puxei a mão flácida de Cara. Apoiei seu corpo débil no meu e

empreendi a descida da montanha. Entre escorregões e tropeções, conseguimos avançar, embora

com a constante inquietação de que alguém pudesse nos assaltar.

Mas eu consegui chegar até o bosque com Nele, e com Cara também faria. Seu rosto

mostrava a imensa dor, mas respirava e podia caminhar.

—Onde está? Onde a escondeu?

Detive-me pela primeira vez e segurei Cara com os braços ao ver que, entre ofegos, tentava

balbuciar algo. Dava a impressão de que falar custava um esforço desonesto. Até então tínhamos

atravessado o bosque sem problemas, mas nesse instante voltava a sair sangue do peito a

fervuras; empalideceu mais ainda e caiu de joelhos.

—Onde está Aurora?

Cara tentou falar de novo, mas antes de articular palavra, elevou a vista atemorizada.

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Estavam nos seguindo? Teria sobrevivido alguma das criaturas escuras do Caspar e tramava nos

atacar por surpresa? Agucei o ouvido, atenta aos ruídos do bosque, mas não ouvi absolutamente

nada, nem o gorjeio dos pássaros nem o sussurro do vento.

—Cara, aonde quer que te leve?

Por um instante temi que esgotassem as forças e ficasse estendida no chão do bosque, mas

apertou os dentes e lutou por levantar de novo.

—Só... Ne... necessito... tempo...

—E Aurora?

—Com... Josephine...

Eu demorei uns segundos em compreender de quem falava. A bondosa e anciã mulher da

pequena loja de mantimentos não pertencia a este mundo, formava parte de uma normalidade

que desvaneceu fazia tempo. Mas quando Cara assentiu com firmeza, dei conta de que tomaram a

decisão correta. Josephine era discreta. Caspar jamais ocorreria procurar Aurora precisamente

nessa pequena loja, à vista de todos.

Cara avançou alguns passos e voltou a deter.

—Continua você! —pediu.

—Quando não puder mais, continuarei eu sozinha. Mas enquanto possa ir avançando,

embora seja passo a passo, penso ficar com você para ajudar — disse com determinação.

Voltei a me perguntar se Cara possuía poderes autocurativos e como funcionavam. Sem

dúvida devia ter, porque do contrário já teria sangrado. Enquanto caminhávamos segui

pressionando contra o peito a jaqueta da que caíam gotas escuras. Também eu estava manchada

de sangue azul por toda parte. Perguntei como ia explicar a Josephine.

Cara pareceu adivinhar meus pensamentos e disse com a respiração entrecortada:

—Josephine e eu... somos amigas... faz tempo que... Sempre está disposta A... a ajudar... É

muito amável... e sobretudo... não faz perguntas.

Conseguimos avançar outros dez passos mais e nesse momento confrontávamos um lance

do caminho especialmente escarpado. Deslizamos de árvore em árvore pelo chão rangente do

bosque. A casca ficava gravada nas palmas das mãos.

—Como é que Caspar não matou?

Cara continuava sem poder fiar uma frase completa.

—Nathan ... impediu... mas de todos os modos... não teria atrevido...

Respirou fundo, sua voz possuía um tom metálico.

—De menino Caspar estava como eu... perdido... odiava com toda sua alma o mundo de

nosso pai. Mas depois ele acabou acomodando enquanto que eu enfrentei a ele.

Sua voz era cada vez mais débil, e não quis seguir fazendo perguntas para não fatigá-la.

Confundia-me que Caspar não a tivesse matado, mas mais ainda que, agora que seu exército ficou

totalmente destruído, continuasse lutando ele sozinho contra Nathan. Por que, sabendo que seu

regimento não resistiria, não preparou melhor para procurar uma maior vantagem sobre seu

inimigo mortal? Por que justamente agora embarcava em uma luta de igual a igual que levava

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séculos, inclusive depois de morrer Serafina, evitando? Existia a possibilidade de que, sem nós

sabermos, tivesse um ás guardado na manga?

Não valia a pena pensar nisso. Escorregávamos, tropeçávamos e voltávamos a nos levantar.

Cada vez que caíamos assaltava o medo de que em algum momento a Cara esgotassem as forças,

mas sempre conseguimos seguir adiante.

No final um momento ouvi ao longe o ruído dos carros na estrada. Nunca teria imaginado

que algum dia esse ruído pareceria música celestial.

—Estamos no alto da cidade — resmungou Cara—,só fica uma parte... e sairemos do bosque

justo ao lado da loja de Josephine.

Eu apenas me atrevia a pensar que nosso destino se achasse tão perto. Entretanto,

certamente, no final pouco tempo o mar escuro de árvores começou a esclarecer, deixando à vista

o parque, onde poucas semanas antes Aurora esteve brincando com outras crianças de sua idade,

e o telhado vermelho da loja de Josephine. Até então concentrei todas minhas forças em obter

que Cara chegasse até ali, mas nesse momento notei que os joelhos tremiam de cansaço. Não

podia me sustentar em pé, e menos ainda seguir ajudando a Cara.

Josephine devia nos ter visto porque saiu precipitadamente da loja e se dirigiu correndo para

nós.

O bombardeio de perguntas que eu esperava não se produziu. Em silêncio e sem emprestar

atenção a viscoso sangue azul, agarrou a Cara e a sustentou por debaixo do braço, como eu, para

aliviar o resto do caminho.

—Aurora... onde está Aurora? —gritei eu, presa do pânico.

—Aurora está bem. Tudo está bem.

Com grande fatiga conseguimos percorrer os últimos metros. As enormes árvores que

rodeavam a rua nos protegiam dos olhares dos curiosos. E quando alcançamos ao final da loja,

tivemos que levantar Cara para que transpassasse a soleira. Nada mais entrar, Cara desabou, e eu

caí também de joelhos.

—Aurora! —gritei.

Josephine se apressou a fechar a porta do interior.

—Vamos! —respondeu assinalando a suas costas— Aurora está em cima...

Então distingui a portinhola que se abria depois da caixa. Voltei a ficar em pé, e quase sem

forças, dirigi-me para a porta e a abri. Uma escada conduzia ao andar de cima, onde ao parecer

vivia Josephine.

Cara, não sei como, também conseguiu levantar e me seguiu com ajuda de Josephine. A cada

degrau se queixava de dor, e eu mesma também acreditei que ia explodir o peito de cansaço. Mas

sentia capaz de suportá-lo tudo sabendo que estávamos a salvo. Ao fim chegamos ao andar de

cima e Aurora se lançou a meus braços. Estava pálida, tinha os olhos muito abertos, mas se

encontrava sã e salva e, nesse instante, isso era o mais importante.

Tomei Aurora em meus braços, estreitei contra mim e notei que não só seu corpo, também

o meu, relaxava. Não disse nada, tampouco fez perguntas, só enterrou a cabeça em meu peito.

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“Bem... está bem...”

Ao levantar a vista, vi que Josephine estava fechando as janelas. Não compreendi o que

pretendia com isso. Fechou a porta da loja para que ninguém nos incomodasse, mas por que

fechava todas as janelas? Sabia que na montanha estava livrando uma batalha? Era uma medida

de amparo contra Caspar, do que talvez falasse Aurora?

Aurora se separou de mim e correu para Cara, que se encontrava estendida no chão com o

olhar cravado no teto. Aurora acariciou o rosto.

Cara tentou sorrir e levantar a mão, mas não alcançaram as forças e voltou a cair com

flacidez sobre o chão.

—Não tenha medo — disse com um fio de voz— estarei bem em seguida. Aqui estamos a

salvo.

Eu segui a Aurora e ajoelhei a seu lado.

—O que devo fazer então para ajudar?

—Curará sozinha... só necessito tempo... tempo para descansar...

Fechou os olhos e não pareceu dar conta de que Josephine acabava de fechar a última janela

da loja. A sala — nesse instante reparei que, salvo por um velho sofá desgastado, estava vazia—

ficou quase às escuras, pois pelas frestas penetrava uma luz débil e mortiça. Sem o sol abrasador

ficava mais frio; o suor que ainda me cobria a frente, secou sobre a pele.

Elevei a vista.

—Onde... onde posso me lavar? Estou cheia de...

Não continuei a frase. Josephine se encontrava não muito longe de mim, com o corpo muito

erguido e os braços cruzados à altura do peito. Havia algo em sua postura que me irritou. De

repente parecia muito maior e a corcunda que formava suas costas desapareceu. E sua pele, sua

pele enrugada e já murcha, como é que de repente exibia essa vivacidade? Além disso se desfez o

coque que acostumava usar e usava o cabelo solto sobre os ombros. Entretanto, o mais estranho

de tudo era seu olhar. Como os quentes, bondosos e expressivos que me resultaram sempre seus

olhos, e agora de repente eram tão escuros... tão negros... negros e inescrutáveis.

Ouvi um grito, mas essa vez não provinha de minha garganta, mas sim da de Aurora. Cara

também protestou. Vi que tentava levantar não o conseguia.

—Não se esforce — disse Josephine. Não era sua voz, a voz da mulher anciã e amável que

estava acostumada a conversar comigo e me dar de presente maçãs. Sua voz recordava bem ao

sibilo de uma serpente.

—Não se esforce! —exclamou de novo— Nunca gostei de empregar a força física, mas em

seu lamentável estado poderia te derrotar quase sem mover um dedo...

—Você... — exclamou Cara.

—Sim — Josephine explodiu nessa gargalhadas — é a mais valiosa de minhas faculdades!

Que ninguém me reconhece. Só Caspar sabe quem sou! E estou disposta a ajudar Caspar na luta

contra Nathan.

Abandonou a postura erguida, desenlaçou as mãos e as levantou com um gesto ameaçador

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enquanto se aproximava para nós e nos fulminava com o olhar.

—Assim que matá-las, levarei Aurora para ele.

Capítulo 12

Eram muitas as coisas que nos últimos dias custava compreender. Sumida no desconcerto e

a estupefação, passava o dia boquiaberta, sacudindo a cabeça ou simplesmente pasmada, sem

querer acreditar o que via e ouvia.

Entretanto, nesse momento não só me sentia tremendamente impactada, mas também

enganada. Enganada por Josephine, a anciã supostamente íntima e encantadora, mas também por

Cara, Nathan e Caspar, que me contaram muitas coisas sobre os nefilim, mas ao parecer se

esqueceram de mencionar uma questão capital. Que nem todas as pessoas dessa raça eram, à

primeira vista, mais formosas, fortes, rápidas, inteligentes e ágeis que os humanos. Sacudi a

cabeça. Era muito, simplesmente muito!

Era incrível que Josephine pertencesse também aos nefilim! E mais incrível ainda que ao

mesmo tempo luzisse essa aparência de anciã débil. Ou não, ao parecer já não era débil, porque

nesse instante tirou a espada que guardava sob o sofá e começou a brandir no ar com uma força

que dava medo.

Eu fiquei olhando boquiaberta, e talvez fosse precisamente isso o que nos salvou: eu

expressei minha indignação, confusão e desconcerto, mas em nenhum momento mostrei medo.

De alguma isso forma pareceu ferir o orgulho de Josephine.

Ao ver que não punha a tremer nem me intimidava diante de seu ataque, Josephine baixou a

espada.

—Não esperavam isso? — sibilou, abrindo os lábios em um sorriso cada vez mais amplo e

alienado— Pois sim, eu também sou nefilim.

Algo se iluminou em seus olhos; provavelmente não era a primeira vez que desfrutava na

sensação de triunfo que experimentava ao revelar sua verdadeira natureza.

Abriu passo junto a mim e agachou diante de Cara.

—Que Sophie não me reconhecesse é lógico — exclamou quase com júbilo— Como ia uma

estúpida humana como ela intuir a verdade? Aurora me dava um pouco mais de medo, mas um

pirralho que ainda está começando é fácil de enganar. —Com evidentes ares de suficiência,

lambeu— Mas você — acrescentou inclinando com um gesto exagerado sobre Cara— que tenha

enganado você é uma autêntica proeza! — Lançou a cabeça para trás e soltou uma estridente

gargalhada. Seus finos cabelos ficaram flutuando no ar como uma teia.

O aspecto daquela mulher me repugnava mais ainda que o de Caspar e suas criaturas

negras. Josephine não estava rodeada de um aura escura, maligna e sinistra; a imagem que dava

com a imponente espada na mão era bem ridícula e grotesca. A rapidez de seus movimentos e a

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força hercúlea não encaixavam com seu velho corpo.

—Jamais teria pensado que foi uma nefilim desconhecida... —observou Cara entre gemidos.

—A grande debilidade dos nefilim —apontou Josephine em tom instrutivo— é sua vaidade.

Vêem um humano formoso, inteligente e com talento, e imediatamente estão desejando apoderar

de suas habilidades. —A anciã sacudiu a cabeça com desprezo, como se essa vaidade o fosse de

tudo alheia, embora seu presunçoso sorriso demonstrasse o contrário.

—Eu jamais fui assim pelo mundo —continuou— Ser cada vez mais formoso, mais forte e

mais inteligente no fundo significa também chamar cada vez mais atenção. Dessa forma um acaba

atraindo aos guardiães como um ímã. A mim, entretanto, nunca me incomodaram. É certo! Sou

uma nefilim incógnita. Fui reunindo poderes e talentos, mas sempre procurei matar a pessoas às

que já ninguém prestava atenção, ou possivelmente nunca gozaram dela: os anciões, aos

mentecaptos, aos medíocres. Não queria à escória, mas tampouco aos melhores. Procurava o

termo médio. Procurava aqueles que não destacam em nada para bem nem para mau, e dessa

maneira tive muito onde escolher. Alguém como você, Cara, chama a atenção; eu não. Eu aprendi

a viver tranquilamente entre os humanos, aprendi não só a conhecê-los a fundo, mas também a

me comportar como eles, e em um grau de perfeição que nenhum de vocês alcançou.

Cara fez tentativa de dizer algo, mas não pôde.

—Se o que deseja é levar uma vida normal e discreta — perguntei eu no seu lugar entre

sussurros— como é que decidiu aliar com Caspar? Traz sem cuidado o que o mundo dele pensa.

Com o tempo acabou ultrapassando os poucos limites que um dia respeitava.

Josephine voltou para mim e me esquadrinhou de cima abaixo. Duvidou na hora de

responder, como se cercar conversa com uma estúpida mulher humana fosse um ato de extrema

amabilidade.

No final, teve a bem me responder.

—Eu não quero passar inadvertida para levar essa classe de vida! Essa é minha arma, e é

uma das melhores existem. Eu também disputei minhas brigas. Matei a muitos guardiães, e

desfrutei com isso. O que mais eu gosto de é contemplar seus estúpidos rostos quando se vêem

apanhados em minhas garras. Como vocês agora.

Contraíram as comissuras dos lábios e o rosto desfigurou ao esboçar um sorriso tão delirante

como cruel.

—Terá que ver como são tolos os guardiães! —disse voltando de novo para Cara— por que

fixou o objetivo de proteger aos humanos? Ora! Eu vivi muito tempo entre essa plebe, conheço

bem, muito melhor que vocês, sei das trivialidades às que dão voltas todo o dia, e a verdade é que

nunca entenderei por que complicam a vida por eles. Custa entendê-lo tanto como a Caspar.

Cara conseguiu levantar a cabeça o suficiente para apoiar os cotovelos no chão, mas depois

Josephine colocou os braços debaixo das costas, pousou o pé sobre a pálida frente de Cara e

empurrou a cabeça contra o chão.

—Já falamos bastante — exclamou, e o sorriso se apagou de seu rosto— Caspar deixou

muito claro o que espera de mim. Se alguém afastar à menina dele, eu matarei. E levarei Aurora

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com ele.

Retrocedeu, se colocou sobre Cara com as pernas abertas e levantou a espada. Eu sabia que

não tinha nenhum sentido tentar detê-la, mas não pude evitá-lo. Antes que atirasse o golpe —

provavelmente para decapitar Cara— equilibrei sobre ela. Meus olhos nos repararam de Cara, mas

embora meu olhar estivesse sumido no desespero total, a sua carecia de expressão, como se já

tivesse morrido, como se não tivesse sentido lutar, como se liberar da carga de sua existência

supusesse quase um alívio. Puxei o braço de Josephine e consegui que voltasse a baixar a espada.

Ela me olhou como a um inseto molesto e me deu um empurrão com o que me enviou voando à

outra ponta da sala. Eu caí contra o chão, soltei um gemido e esfreguei os membros do corpo

doloridos.

Enquanto isso Josephine voltou a elevar a espada e a brandir sobre Cara. Eu já não podia

fazer nada, salvo gritar, gritar com total desenfreio e desespero. Mas não foram meus gritos o que

fez que Josephine se estremecesse e ficasse paralisada.

Aurora plantou diante dela, elevou a mão com os dedos estendidos, como o dia que

conseguiu apaziguar o cão raivoso. Em seu rosto não se apreciava via nada de estremecimento

nem de medo, só determinação. Eu senti o impulso de me lançar sobre ela, afastar de Josephine,

protegê-la com meu próprio corpo, mas antes que pudesse me mover, Aurora ordenou em um

tom frio e autoritário:

—Não! Não faça!

E Josephine baixou a espada.

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Por um momento invadiu uma sensação de alívio, convencida de que se obrou um milagre,

de que Aurora conseguiu dominar a vontade de Josephine graças a suas habilidades telepáticas.

O que disse Aurora a seguir foi de terror e turbador. Nada me fazia supor que presenciaria

algo assim.

—Não o faça! —repetiu Aurora, ainda com a mão no alto— Quero fazê-lo!

Eu fiquei paralisada, tinha a sensação de que não chegava o ar. Josephine afastou dela.

—Você...?

Então Aurora pôs a rir, mas não como estava acostumado a rir minha menina, com

gargalhadas alegres e luminosas. Não, ria com um resmungo metálico e ao mesmo tempo os

dentes tremiam muito depressa, de tal maneira que a risada ficava estranhamente entrecortada.

Soava sarcástica e malvada.

Entretanto, de repente, Aurora calou.

—Caspar se zangaria se contrariar meu desejo — esclareceu, adotando de novo o mesmo

tom frio e autoritário.

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Eu sacudi a cabeça. Não podia ser que fosse minha Aurora quem falava e ria assim. Seu

corpo, de repente, era diferente. Era maior, mais esbelto?

Essa não era Aurora, não era minha menina, alguém a mudou, alguém introduziu em seu

envoltório outro ser distinto, a um ser malvado e cruel.

—Quer matar Cara? —perguntou Josephine, visivelmente desconcertada e fascinada,

porque ela tampouco esperava essa transformação.

—Acredita que não sou capaz? —respondeu Aurora com aspereza— Caspar se zangaria

muito se soubesse que dúvida de minha capacidade.

—Bom, é que sua formação —se defendeu Josephine— acaba de começar! Tem sete anos

recém feitos! E eles... Cara e Nathan... exerceram muita influência sobre você.

Aurora sacudiu a cabeça com desprezo.

—Se ouvisse Caspar a mataria aqui mesmo! —exclamou Aurora furiosa— Acaso acha que

Cara e Nathan exerceram o mínimo poder sobre mim? Muito antes que eles aparecessem em

minha vida, Caspar se comprometeu comigo. E não pensará — Aurora falava com ar de

superioridade— não acreditará que ele renunciou a seu compromisso?

Josephine encolheu os ombros com perplexidade, e nesse instante pareceu de novo uma

mulher anciã completamente normal, com a pele enrugada, os olhos sem brilho e o corpo

curvado.

—É certo então que quer matar Cara — observou— E a sua própria mãe.

Aurora baixou a mão, que até esse momento manteve elevada com um gesto ameaçador, e

se dirigiu a Josephine. Eu tentei atrair sua atenção, queria olhá-la nos olhos azuis, mas quando

continuou falando, só fui capaz de ir para trás, agachar e levar as mãos à cara horrorizada.

—Se você soubesse — prosseguiu Aurora— Se você soubesse o repugnantes que me

resultam todos eles! Acha que o compreenderia só porque viveu muito tempo com os desprezíveis

humanos? Oculta, sem sair à luz? Nada disso! Meu suplício e minha repulsa não podem comparar

com nada! Como olhava minha estúpida mãe tremendo de medo! E como estava acostumada a

me tocar, com cuidado, como se eu fosse de cristal! Como era incapaz de compreender que eu de

repente soubesse falar outros idiomas! Mas era muito covarde para fazer perguntas. Sempre

fechou os olhos, fez de cega e surda... Cara, pelo contrário, não era covarde nem cega, a não ser

atrevida e vaidosa. E seriamente chegou a acreditar que podia me educar. Ora, ora!

Soltou uma gargalhada estridente, e igual à antes, de repente, ficou calada. O silêncio nos

envolveu. Impedia-me de falar a estupefação, e Cara a falta de forças. Quanto Josephine deu a

impressão de que sua mente maquinava a um ritmo febril. Parecia haver assaltado a dúvida de

que Aurora realmente fosse como aparentava ser e de novo o mesmo brilho, tão triunfal como

alienado, voltou a refulgir em seus olhos.

—Agora entendo por que Caspar mostrava esse exagerado interesse em você! —exclamou

em um tom estridente— Certamente é uma menina especial... Não... —retificou em seguida—

uma nefilim muito especial. Chegará a ser uma dos grandes.

Com um gesto de respeito abaixou o olhar, e essa vez já não duvidou na hora de elevar a

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espada, mas não para golpear Cara, a não ser para entregar a Aurora. Esta a esperou com a mão

estendida e, quando estava a ponto de agarrá-la, separou do punho.

—Ainda não — esclareceu— ainda não. Devo esperar a que chegue minha hora.

Eu não compreendi o que quis dizer com isso, e menos ainda por que de repente se dirigiu à

janela e abriu as portinhas. Uma pálida luz crepuscular penetrou na sombria estadia; uma prova de

que já estava entardecendo.

Josephine franziu a frente.

—Mas nesse caso teremos que esperar muito — apontou com manifesta decepção.

—Caspar o quer assim — respondeu Aurora friamente.

Eu já não entendia nada, como ia entender? Minha cabeça dava voltas e voltas em torno de

uma só coisa: onde estava minha filha? O que fiz com Aurora? De onde saiu esse monstro terrível

que explodia em gargalhadas, dava ordens com uma tremenda frieza e falava de mim com tanto

desprezo?

Em troca, Cara entendeu.

—À alvorada — murmurou— esperam à alvorada...

As horas que seguiram se fizeram longas e curtas de uma vez. Em alguns momentos, tive a

sensação de que estava ali agachada toda uma eternidade. Em outros, voltava a albergar a

esperança de que só tinha que abrir os olhos, despertar de tudo e comprovar que tudo aquilo foi

um sinistro pesadelo. Enquanto aguardava imóvel no canto, parecia que a sala se fazia cada vez

mais estreita e pequena, que o ar era mais sufocante, mas na realidade era a prisão de minha

mente a que era mais estreita e terrível. As perguntas davam voltas em círculos como detentos

que desejavam a liberdade e chocavam uma e outra vez contra os muros frios e mofados da

prisão. Realmente era possível que fosse me matar minha própria filha, que parecia me odiar com

toda a alma?

Demorei em compreender por que estavam esperando à alvorada: ao parecer à luz a dotaria

de uma força especial e o monstro que dormia em seu interior despertaria de tudo.

Minha perplexidade era ainda maior. Essas horas em que a noite se desvanece e o dia

começa a despontar, sempre foram especiais para mim. Os momentos mais formosos de minha

vida produziram nessa franja do dia: meu primeiro beijo com Nathan ao amanhecer, e depois o

nascimento de Aurora, que deu seu primeiro grito justo quando a luz rosada banhava todo o

quarto. Parecia impossível que queria me matar precisamente há essa hora!

Busquei com o olhar, mas ela me evitou. Tentei me aproximar, mas se afastou em seguida.

Tempo atrás, quando começou a sofrer a transformação, eu tinha medo, era difícil tocá-la, abraçá-

la, acariciá-la. Entretanto, nesse momento, apesar de suas más palavras, não me inspirava

nenhum medo. Teria sido capaz de algo para expulsar de seu tenro corpo a esse demônio que a

possuía, a essa força estranha e abominável que residia em seu interior.

Agora desejava tocar ao menos seu envoltório, estreitá-la contra mim, cheirar seus cabelos,

acariciar sua pele... queria demonstrar ao demônio que não tinha medo e que estava disposta a

vencê-lo com amor.

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Mas depois de tentar várias vezes em vão me aproximar de Aurora, Josephine se plantou

diante de mim com a espada em alto.

—Mantém afastada dela e não te ocorra tocá-la! Não se dá conta de que a aborrece?

Eu não me intimidei diante da espada. Mantive firme, sem medo, diante do aço ameaçador,

porque preferia morrer antes que manter afastada de minha filha. Entretanto, a voz de Cara me

freou.

—Não a enfrente — ordenou em sussurros.

Não sabia por que razão Cara queria me conter. Acaso ela aceitou, ao contrário que eu, que

tínhamos perdido a Aurora? Ou ainda albergava a esperança de que algo fizesse dar um giro a

nossa situação e não morreríamos à alvorada?

Esquadrinhei-a com atenção, mas sob a luz mortiça do anoitecer não pude distinguir seus

contornos. Pela voz parecia algo mais recuperada, embora continuasse tendo as bochechas

afundadas e pálidas. Levantou a cabeça, talvez em sinal de que começava a recuperar forças e

logo poderia nos defender.

Entretanto, embora em efeito esse fosse seu plano, no final de um instante já o jogaram por

terra.

—Está recuperando — observou Josephine cravando o olhar em Cara.

Que ingênua fui acreditar que Josephine não se daria conta nem faria nada por impedi-lo!

Com a espada em alto e atitude ameaçadora, Josephine se aproximou de Cara e começou a agitar

a arma sobre sua cabeça. Eu intuí qual era seu plano. Não pensava matá-la, mas sim feri-la de

novo para que seguisse perdendo sangue. Cara tentou rodar para ficar de lado, mas não

conseguiu. Josephine esboçou um sorriso sarcástico, levantou o braço e quando ia carregar contra

Cara... parou na metade do movimento.

—Eu — disse Aurora com essa voz estranha e metálica, mais repulsiva que qualquer voz que

tivesse ouvido jamais— Quero fazer eu!

Josephine se voltou lentamente para ela. Igual a antes, seu olhar ficou nublado pela

confusão e o ceticismo.

—Sim — insistiu Aurora— Caspar iria querer que eu fizesse isto para... praticar.

Com atitude resolvida se dirigiu a Josephine, tomou o punho da espada e a tirou das mãos.

Josephine opôs uma débil resistência e se tornou atrás, como eu, que o único que pude fazer foi

me afastar. Na realidade o que queria fazer era me plantar diante de Cara e cair nos braços de

minha filha, queria gritar até que expulsasse o demônio de seu interior. Mas ao vê-la com a

gigantesca espada no alto e a expressão vazia no rosto, baixou tudo o sangue aos pés, perdi a

sensibilidade em todo o corpo e a imagem me apagou. Caí de joelhos. Todos meus pensamentos

convergiam em um único grito: “ Não! Não, não, não!”

Não podia me mover, não podia me proteger daquela visão.

“Não, não, não!”

O que me fez recuperar o conhecimento foi ouvir umas palavras em língua estrangeira que

soavam a enxurrada e que alguém pronunciava lentamente como um feitiço. Não sabia de que

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boca provinham, e tampouco estava segura da que idioma pertenciam.

Antes de bater a cabeça contra o chão. Agora, pouco a pouco, o sangue voltava para circular

por minhas extremidades e eu ia recuperando a vitalidade.

—O que disse? —ouvi que gritava Josephine com voz estridente— O que disse a ela?

Assim, foi Aurora quem falou a Cara nessa estranha língua. Esse sinal de esperança não

durou muito tempo.

—Era russo — respondeu Aurora, e continuou no mesmo tom metálico— Quando cuidava

Cara sempre queria saber quantos idiomas dominava. Ela estava convencida de que podia me

ensinar algum mais, e também de que sua missão era me preparar para viver como uma nefilim.

Sim! Eu já sabia, desde fazia muito tempo, quem era e do que era capaz. Que chatos eram seus

permanentes comentários de sabichona!

—E agora, o que disse agora?

—Como era insuportável para eu ter que estar com ela. Como foram sofríveis as últimas

semanas! Você já conhece a plebe humana, Josephine. Sabe por que tipo de coisas se interessam.

Sempre com o ditoso assunto da comida... sempre me tocava engolir alguma coisa: bolos,

chocolate, ovos...

Estremeceu de asco como se tivessem posto um verme diante dos olhos, e empenhou em

levantar a espada. Não o fez com a extrema facilidade de Josephine, teve que realizar tanto

esforço que desfigurou o rosto, mas mesmo assim conseguiu levantar a arma e agitá-la a toda

velocidade sobre Cara.

Eu fechei os olhos quando ouvi que Cara gritava angustiada. Pode que os nefilim fossem

mais fortes, preparados e habilidosos que os humanos, mas sentiam a dor exatamente igual. Ao

menos essa era a conclusão mais evidente ouvindo os gritos de Cara. Seus alaridos eram

estridentes e ensurdecedores, a seguir diminuíram e finalmente se converteram em lastimas

gemidos e soluços.

Quando cessaram, quis me aproximar para acalmar de alguma forma a dor — embora

soubesse que não estava em minha mão— ou ao menos dar apoio, mas ao dar o primeiro passo,

Aurora desviou a espada para mim. Pela primeira vez pude olhá-la diretamente nos olhos, mas

como na rua anoiteceu, já não pude distinguir sua cor e o vi todo cinza.

—Não se aproxime dela — vaiou.

Eu estremeci, voltei a me sentar no chão e escutei como pouco a pouco foram extinguindo

lamentos de Cara. O “não” suplicante que me ressonava na cabeça se converteu em uma certeza

simples, mas imóveis: não ia matar... minha filha não ia matar... não, ia matar o demônio.

Mas se esse demônio era tão poderoso, se já não podia chegar a Aurora, isso só podia

significar que ele não só a suplantou, mas também a matou, sim, que Aurora morreu muito antes

que eu. Nesse instante perdi todo o medo de morrer; e mais, desejava morrer. A morte já não

simbolizava umas trevas desertas e vazias, a não ser a promessa de voltar a ver Aurora. Sim,

Aurora aguardaria na porta do mundo até que eu chegasse e fora com ela.

Meus pensamentos eram cada vez mais confusos. Levava dias sem comer, beber e também

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sem dormir. Nesse instante tampouco podia conciliar o sonho, mas me vi apanhada em uma

espécie de sonho, como se sonhasse com os olhos abertos. Sim, me precavi de que o demônio

seguia rindo uma e outra vez de Cara, que gritava atormentada, mas já não impressionava, já não

parecia real. Também os pensamentos sobre Nathan desvaneceram. No princípio me preocupava

como estaria desenvolvendo a luta contra Caspar. Imaginava que o derrotaria e viria a nos

resgatar, mas já fazia momento que perdi toda esperança. Se Nathan descobrisse em que tipo de

monstro cruel se converteu Aurora, mataria como matou o filho de Caspar, e embora, salvo o

envoltório, aquele ser não tinha nada em comum com minha filha, a imagem me resultava

insuportável. Preferia morrer antes que presenciar essa cena, morrer e reencontrar com a

verdadeira Aurora.

Meu corpo voltou insensível, vazio e leve. Parecia que a gravidade perdesse força. Eu

flutuava, flutuava cada vez mais afastada do chão, para o teto, e da altura me via estendida, como

um pedaço inútil de carne do que talvez quisesse apoderar outro demônio. Entretanto... eu não

era uma nefilim... porque eu pertencia à massa humana... ao menos para Josephine, que se burlou

e riu de mim... e para o demônio, que não parava de dizer coisas terríveis sobre Cara e sobre

mim...

De repente ambas ficaram em silêncio. Também Cara emudeceu. Deixou de emitir gemidos

de dor. O que acontecia?

Voltei em meu ser, mas já não me sentia luz nem liberada, a não ser pesada e paralisada.

Mesmo assim, pude girar a cabeça o suficiente para advertir a luz amarelada que penetrava pelas

frestas, que pareceu muito deslumbrante para ser a alvorada.

Vi que Aurora enchia a mão para a espada.

—Chegou a hora.

Apesar de meu vazio interior, por um momento senti certa satisfação. Talvez transcorresse a

noite, talvez chegasse minha hora, mas essa luz não era a luz da alvorada, não era a autêntica.

Essa luz não era do suave e lento despertar de um novo dia.

Josephine também duvidou:

—Não, não — murmurou—, ainda é muito cedo. Não deu meia-noite.

A luz amarelada desenhava sombras estranhas nas paredes que logo se desvaneciam.

Aurora, ou bem o demônio, não se deixou confundir.

—O momento dito eu — sentenciou.

—Mas você não pode...

—É que não confia em mim? — perguntou interrompendo com brutalidade Josephine— O

que acha que pensaria Caspar disso?

—Mas... —respondeu Josephine.

—Caspar me ordenou que as matassem. É minha primeira prova de fogo.

—Eu não tenho nada contra isso, mas... a luz... ainda não amanheceu. É...

Aurora ficou olhando fixamente nos olhos.

—Abre uma das janelas! — ordenou que— Abre bem! Assim poderá ver o céu. Assim que as

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nuvens se desfaçam em fios rosados, me faça um sinal.

—Seriamente que ainda não amanheceu!

—Se eu o disser, é que é assim!

Durante uns instantes olharam, liberaram uma luta de poder silenciosa que fez vibrar o ar.

Eu me aproximei instintivamente à parede e notei na expressão de Josephine como o desconcerto

deixava passo ao medo, nem tanto a Aurora como Caspar.

Ao final cedeu, abaixou o olhar e se dirigiu para uma das janelas. Abriu, abriu também as

venezianas e piscou ao se ver cegada pela luz, igual a mim.

Eu me levantei de um salto, não só estimulada pelo ar fresco que irrompeu de repente na

asfixiante estadia, mas também porque de repente intuí, ou melhor, dizendo, soube o que

aconteceria, e não me cabia na cabeça que até esse instante não o tivesse visto acontecer.

Josephine separou da janela. O resplendor amarelado que iluminava a sala não provinha do

sol nascente, mas sim dos carros que passavam pela estrada. Ouviu o rugido dos motores e logo

tudo ficou às escuras e em silêncio.

—Não é...

Ao voltar-se e dar conta do que aconteceu a suas costas, Josephine rompeu a gritar.

Aurora passou a toda velocidade a espada a Cara e esta se levantou com uma agilidade

felina. Nem rastro das queixas, lastimas das últimas horas, da rouca respiração, da fragilidade,

nada. Agarrou o punho da espada e se sustentou sobre as pernas firmes com a arma em alto.

—Poderá fazer? —perguntou Aurora.

Aquela já não era a voz metálica do demônio, a não ser a voz de minha menina. Minha

Aurora.

—Poderá fazer? —voltou a perguntar.

Eu já não ouvia os suspiros de Josephine nem o que respondeu Cara. Para mim só contava

uma coisa: que era Aurora quem pronunciava essas palavras.

Cara não estava absolutamente surpreendida, agitava a espada no ar com facilidade, como

se não pesasse. Para Josephine, entretanto, descobrir de repente que Aurora não era uma atriz

boa, a não ser soberba capaz inclusive de enganar a sua própria mãe, supôs um impacto tão

gigantesco como para mim. Josephine se separou da janela.

—Mucoso descarado! —exclamou ao equilibrar sobre Aurora— Mentiu! Esteve enganando

todo este tempo! Você...

—Não acreditará seriamente que eu pertenço a Caspar — interrompeu Aurora.

Sua voz voltava a ser completamente nova para mim, embora já não soasse tão

desagradável como o vaio metálico de antes. Soava antiga, antiquíssima, e não encaixava

absolutamente com uma menina de sua idade. Era como se em seu corpo albergasse uma alma

que tivesse vivido desde o começo dos tempos.

Lançando um grito, Josephine levantou as mãos em uma tentativa de capturar a Aurora, mas

a ira e a raiva a fizeram esquecer de Cara, que apareceu como um raio e se interpôs entre elas.

Imediatamente seguinte a espada sulcava o ar a toda velocidade, ouvi um ruído, como um rasgão

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ou um estalo, e depois um grito, mais dilacerador ainda que os gemidos que Cara lançou de noite.

antes que tivesse ocasião de ver o que aconteceu, Aurora apareceu junto a mim e me pegou pela

mão.

—Vêem, vêem comigo, depressa!

De novo o mesmo ruído, e o mesmo grito a minhas costas, logo baixei dando tombos a

escada da mão de Aurora e, ao chegar à loja, golpeei com uma estante. Sem prestar atenção à dor

que notei no cotovelo, estreitei Aurora contra mim e a abracei. Acreditei que ia explodir de pura

felicidade, gratidão e alívio.

—Sinto — resmungou, quando por fim a soltei— Mamãe, tinha que fingir que eu...

—Eu sim que sinto! — interrompi-a— Sinto muito que, embora só fosse por um momento,

tenha chegado a acreditar nisso.

Não sabia se algum dia me conseguiria perdoar isso.

—Mas tinha que acreditar isso. Só podia funcionar se acreditava. Se você tivesse fingido

acreditar Josephine teria se dado conta.

—Mas... e Cara? O que tem feito a Cara?

Nesse momento me lembrei das palavras russas que Aurora falou.

—No princípio ela tampouco entendia nada —me explicou Aurora— Mas logo disse em

russo que fingiria que a feria e que ela devia gritar. Não me ocorria nenhum outro idioma, o que

passa é que não sabia se Josephine entendia também russo. Mas funcionou!

Os gritos de Cara ressonaram de novo em minha mente, tão dilaceradores, e tão reais!

Nesse instante soaram no piso de cima uns gritos similares. Como não quis imaginar o que

estava acontecendo, agucei o ouvido e soube imediatamente: se eu tivesse tido a possibilidade e a

força, teria ido, igual à Cara, por Josephine.

No fim cessaram os gritos. Notei que uma sacudida percorria o corpo de Aurora liberando

com ela toda a tensão acumulada ao longo das últimas horas. Teve que defender sozinha. E teve

que esperar o momento adequado em que Cara recuperou mais ou menos as forças. E todo isso

com o medo constante que Josephine a descobrisse.

Cara começou a baixar as escadas, e já não tinha nada em comum com o ser débil e indefeso

que pouco tempo antes estava estendido no chão sem poder defender. Desceu devagar, degrau a

degrau. Na penumbra e com a espada na mão, parecia um arcanjo. Seu rosto mostrava uma

expressão de gravidade.

Sem perguntar, soube imediatamente que Josephine estava morta e que Cara deixou que

sangrasse para apoderar de sua força física, que nesses instantes era o que necessitava com maior

urgência. Discretamente a examinei com o olhar em busca de algum rastro do viscoso sangue azul,

mas na penumbra não se distinguiam as cores. Veio para mim, e eu instintivamente fiz gesto de

abraçá-la, mas a espada que sustentava na mão me fez voltar atrás. O aço desprendia um brilho

negro, como se estivesse coberto de peixe.

—Tinha que tê-lo imaginado! —exclamou Cara— Tinha que ter imaginado quem era

Josephine. Como pude ser tão tola, como pude acreditar que era uma adorável velhinha, é

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imperdoável!

Uma profunda ruga sulcou sua fronte.

—Mas estou segura que eles dois, Caspar e Josephine, levam muito tempo planejando tudo

isto. Provavelmente ele procurou de propósito um nefilim secreto que queria associar com ele e

ganhar não só sua confiança, mas também a minha. Com o bem que soube fingir e dissimular,

como iria imaginar isso.

Cara sacudiu a cabeça com gesto sombrio.

—Talvez fosse impossível saber que era uma nefilim, mas pelo menos não devia ter

depositado toda minha confiança nela sem nenhum olhar... Não devia ter deixado a Aurora com

ela... Isso foi...

Interrompeu ao compreender que não era o momento para quebrar a cabeça com isso.

Josephine estava morta; o perigo estava conjurado. Mas isso não significava que estivéssemos a

salvo.

—Caspar — murmurei— Nathan...

A luta que estava livrando na montanha quando nós fugimos dali, continuaria ativa ou já se

teria decidido o vencedor?

—O que devemos fazer agora? —perguntei— O que...?

Engasguei com minhas próprias palavras. Até esse momento dirigi o olhar todo o tempo para

Cara, mas ao apartá-la e procurar no lugar onde se encontrava Aurora, descobri que já não estava.

—Aurora! —gritei.

Cara suspirou e, ao contrário que eu, não se mostrou surpreendida nem assustada, mas sim

pareceu resignar-se a aceitar o inevitável.

Eu pus a correr para a entrada da loja. A porta, que até um momento antes estava fechada,

encontrava totalmente aberta. Fora era noite fechada, e ao olhar a um lado e a outro em busca de

minha filha, não achei nem rastro dela.

—Aurora! —gritei para a escuridão. Quando Cara se aproximou de mim, já não me atrevi a

tocá-la— Onde está? —gritei desesperada, e a agarrei pela mão— Aonde foi?

Cara voltou a exalar um suspiro e respondeu:

—Foi a fazer o que tem que fazer. Resgatar Nathan.

���

A noite era fechada, escura como boca de lobo. Frente à loja de Josephine, o resplendor das

luzes marcava o caminho; de vez em quando passava um carro e iluminava a rua; ao longe,

algumas luz que não se apagavam em toda a noite situavam a cidade de Hallstatt. Mas à medida

que entramos no bosque e subimos à montanha, tudo ficou sumido na escuridão. Só de vez em

quando aparecia a lua entre as nuvens, e seu débil halo desprendia uma luz pálida que permitia

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distinguir o negro das árvores do cinza ainda escuro do céu. Cara ia me puxando de tal maneira

que eu percorria o escarpado caminho a um ritmo incrível.

—Nathan disse que você podia sentir a presença de Caspar — sussurrei. No silêncio da noite

qualquer estalo soava como um estrondo, e meus sussurros pareciam gritos.

—Quando crianças eu estava acostumada a me esconder frequentemente de meu pai, e a

maioria das vezes Caspar era quem se encarregava de me buscar... e me castigar — respondeu—

Acabei desenvolvendo uma sensibilidade especial a sua presença. Quando se trata dele, é como se

tivesse olhos na nuca. Sinto sua presença.

—E agora — perguntei— sente-o agora?

—Ainda não.

Deixei de falar para economizar forças e tratei de concentrar toda minha atenção em não

tropeçar com as raízes. Nossos passos não sempre rangiam sobre o manto de folhas, às vezes se

afundavam no musgo aveludado. Quando abandonamos o bosque e chegamos à pradaria, me

molharam os pés com o rocio que se deslizava pelas fibras de erva.

Já não era tão de noite. O ar parecia mais frio, mais inclemente, começava há despontar o

dia. Em um momento dado, Cara ficou imóvel e afiou o ouvido.

—Ouve algo? —perguntei sem fôlego. Eu não ouvia nada salvo os batimentos de meu

próprio coração, que eram como um tumultuoso martelo.

—Não estou do todo segura...

—Acredita que seguirão lutando ainda?

Não sabia se devia esperar ouvir o já familiar estrépito metálico das espadas ou não. De

ouvi-lo, significaria que Nathan ainda não derrotou Caspar, ou inclusive que existia o risco de que

Nathan perdesse a batalha, mas se seguia com vida, teríamos a possibilidade de intervir nós, e

também Aurora.

—É que Aurora sabe... sabe que Nathan é seu pai? —perguntei entre ofegos— Por isso quer

ajudá-lo?

Eu era consciente de que Aurora adquiriu de forma instintiva todos seus conhecimentos

sobre os nefilim e reconhecia Nathan e Cara como iguais, mas não sabia se intuía o vínculo

especial que os unia.

Cara assentiu.

—Ela sente... —limitou a dizer justo antes de me agarrar de novo e arrastar montanha

acima.

Eu a segui às cegas, perdi a orientação. Quando me ocorreu abrir os olhos em algum

momento, só via sombras cinza e negra, mas era incapaz de distinguir onde acabava a montanha e

terminava o céu. Pouco a pouco começou a clarear. Não só a lua desprendia uma pálida luz; a

bordas da abóbada celeste também resplandeciam fracamente na saudação, ainda tímida e

retraída, da alvorada.

—Agora — murmurou Cara de repente— agora parece que ouço algo...

Não disse o que, mas acelerou o passo. Devia ter um ouvido muito agudo, porque eu

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demorei uma eternidade em começar a entreouvir o estrépito metálico, os ofegos e os gemidos.

Tentei distinguir alguma figura da escura parede de rocha que se erigia diante de nós, mas a

névoa, que se elevava vaporosa do chão, engolia todo indício da alvorada e cobria a montanha

como um manto cinza. Por um momento me pareceu perceber um movimento, mas assim que

meus olhos se centraram em um ponto fixo, já não vi nada.

—Aurora! —gritei olhando com desespero em todas as direções, mas a névoa cinza envolvia

tudo e não me permitia ver—. Aurora!

As paredes de rocha devolveram o eco de minha voz, mas também o estrépito metálico das

espadas, que se ouvia sem cessar.

—Aurora!

Cara me agarrou.

—Ali! —gritou.

E nesse instante a vi, vi no saliente de rocha, no precipício onde eu estive antes. Encontrava-

se na borda do abismo. Sua esbelta figura me sobressaía por cima da névoa. Estava de costas a

nós, de tal maneira que não podíamos ver o rosto, só os cabelos, que caíam soltos sobre as costas

e, em lugar do habitual brilho avermelhado, luziam uma cor negro. Sua fina roupa ondeava ao

vento, mas não parecia ter frio, porque aguentava em uma posição erguida.

O estrépito metálico se extinguiu e então, ao deter, pude ver pela primeira vez as duas

figuras, distinguir uma da outra, e observar como ambas se voltavam para Aurora com gesto de

estupor.

—Aurora! —gritei de novo.

Aurora não se moveu, nem sequer se alterou. Embora o abismo não parecesse inspirar

nenhum medo, me cortou a respiração. O banco de névoa se amoldava à rocha abrupta como um

leito acolchoado, mas eu sabia que ao menor passo em falso Aurora se precipitaria ao vazio.

Quis pôr a correr para ela e afastá-la do abismo, mas Cara me impediu isso.

—Não — exclamou— Não, deixa! Deixa que faça!

Eu não sabia do que falava, sobretudo porque Aurora não fazia nada; os dois homens

voltaram para a realidade e reataram a luta. Desapareceram na sombra da parede de rocha, a

névoa começou a descampar e envolveu as pernas de Aurora. Mas antes que engolisse toda sua

figura, as nuvens cinza se decompuseram em fios brancos cada vez mais finos, cada vez mais

transparentes. Cara me puxou pelo braço e assinalou em outra direção. Eu resistia a afastar o

olhar de Aurora, mas ao final me voltei.

Eu contemplei o amanhecer em muitas ocasiões, mas nunca experimentei a violência com

que o novo dia se desfazia da noite. Imóvel, dediquei a olhar e a escutar; minha mente parecia

cheia de música, mas não de música terrestre composta pelo homem, mas sim de uma música tão

perfeita que tinha que ser celestial. Soava melancólica como a arisca flauta enquanto um sutil raio

de luz subia pelas costas da montanha de em frente, cada vez mais rápido, até que finalmente

alcançou a cúpula — os sons da flauta deixaram passo às agudas e penetrantes notas de um

flautim— e iluminou o escuro topo. Os tons intensos dos ventos graves punham música de fundo a

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cintilação da calota de neve que coroava a montanha com sua poda brancura. O sol ascendeu mais

ainda e começou a nos cegar. Seus raios eram como mil braços que arrancavam o manto cinza de

noite até liberar da penumbra as montanhas que se elevavam em frente. Infinidade de tons

isolados se fundiram em minha mente em um tudo entristecedor. O sol resplandecia ainda com

grande esforço; as primeiras luzes avermelhadas caíam sobre o lago escuro e ficavam engolidas

por seu negrume. Mas pouco a pouco as taças das árvores começaram a revelar seu verdor. Em

minha cabeça ressonava um rufo de tambores, temperado e contido unicamente pelas cordas

escuras, enquanto o astro ardente alcançava definitivamente o céu. A cruz que coroava uma das

montanhas se via aumentada sob a luz fogosa e não só parecia gigantesca, mas também tão

próxima como se pudéssemos tocá-la com apenas alargar a mão. Os tons selvagens e fragorosos

se tornaram mais suaves, doces e harmoniosos, quando nesse instante os quentes raios de sol

começaram a banhar também a montanha onde nos achávamos. Só o lago permaneceu nu e

negro.

Voltei. O amanhecer acariciava a figura de Aurora. Seus cabelos brilhavam como se

ardessem. Assim que percebeu a luz, elevou os braços e ficou nas pontas dos pés.

A tentação de sair correndo e apartá-la do precipício era imensa, embora não tanto como o

impulso de manter a distancia por puro respeito.

Nesse instante cessou a melodia do alvorada, e o único que se ouviu foi sua voz.

—Caspar von Kranichstein! —gritou.

O estrépito metálico se interrompeu de novo, mas nessa ocasião só ficou imóvel um dos

combatentes. Ambas as figuras surgiram da névoa, banhadas por um sol matutino cujos raios

eram cada vez mais quentes e intensos. Instantes antes todos seus movimentos seguiam sendo

tão rápidos que apenas me permitiam distingui-los, e, entretanto nesse momento todo transcorria

como a câmara lenta.

Aurora voltou a pronunciar o nome de Caspar, e este se dirigiu para ela, aproximando cada

vez mais ao precipício. Atraído de forma mágica pela chamada de Aurora, Caspar caminhou para

ela sem voltar à vista atrás nenhuma só vez. Embora eu não alcançasse a ver o rosto de minha

filha, acreditei sentir como brilhavam seus olhos azuis, como exerciam um poder incrível sobre

Caspar e como procuravam que este se esquecesse de Nathan. A primeira vista Caspar parecia

hipnotizado, agora Aurora era a forte, talvez porque a luz da alvorada desse forças, ou

possivelmente porque depois das horas de batalha Caspar estava exausto. Ele seguia

aproximando, mais e mais cada vez; sob o resplendor vermelho comecei a distinguir seu rosto,

tudo manchado de sangue azul. Além disso, tinha os cabelos alvoroçados, em lugar de lisos, e o

olhar perdido e cansado. Mas sua boca desenhava um sorriso, e não um sorriso sarcástico nem

cínico, a não ser devoto e feliz. Chegou ao saliente de rocha. Na mão sustentava com firmeza a

espada.

Soltei um grito: apesar do poder que Aurora exercia sobre ele, a arma era uma ameaça

mortal. Depois de me desembaraçar como pude de minha paralisia, pus a correr para a borda e,

nesse instante, vi que Nathan também acudia, e não ao ritmo moroso de Caspar, a não ser a uma

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velocidade de vertigem. Quando parecia que estava a ponto de derrubar definitivamente ao

inimigo, a força que Aurora exercia sobre Caspar se desvaneceu. Seu corpo pegou uma sacudida.

Desviou o olhar dos olhos azuis de Aurora, o sorriso se apagou de seu rosto e então este deixou de

transluzir fascinação e entrega e passou a mostrar de novo toda sua sanha e crueldade. Nathan

elevou a espada, mas antes que golpeasse com ela ao inimigo, Caspar a freou com a sua. Por um

instante, as duas folhas ficaram suspensas uma contra a outra como se fundissem em uma só, mas

imediatamente prosseguiram seu voo encarniçado sulcando o ar. A mim a luta trazia sem cuidado,

só tinha olhos para Aurora, que continuava situada nas pontas dos pés no extremo do precipício.

—Aurora! —gritei— Saia daí, vêem aqui!

Mas não consegui evitar que Aurora voltasse a gritar o nome de Caspar e que este se visse

submetido de novo ao poder de seus olhos azuis, momento que Nathan aproveitou para golpeá-lo

com a espada, provocando um espirro de sangue azul. Mas não estava morto. Com as últimas

forças, Caspar levantou a espada, apontou para Nathan e se equilibrou sobre ele para cravar.

Entretanto, em meio desse gesto, escorregou de forma inesperada para trás e a espada caiu em

direção a Aurora.

Ela foi a um lado e esquivou o afiado aço, mas esse movimento tão brusco a desequilibrou.

Durante uns instantes tentou recuperar o equilíbrio, cambaleou para um lado, logo para outro e

finalmente se precipitou ao vazio.

—Nããão!

Quem gritou? Nathan, Cara, eu... ou Caspar? Vi que ele estava caído no chão sem poder

mover. Tinha o olhar cravado no saliente agora já deserto, onde segundos antes se encontrava

Aurora. Eu não chegava a vislumbrar a expressão de seu rosto, não distinguia se mostrava horror

ou alegria.

Nathan baixou a espada. Cara o abordou e a tirou da mão.

—Deixa que o eu faça — ouvi dizer— Você se ocupe de Aurora.

Antes que Nathan, eu saí correndo montanha abaixo e divisei ao longe, ondeando no vazio, a

roupa de Aurora. Caído ao menos quinze metros antes de impactar contra o chão, e depois

continuou rodando sobre terra e pedras até ficar enganchada a um arbusto.

Capítulo 13

—Não respira! —gritei— Não sinto os batimentos de seu coração!

Os últimos metros desci escorregando, mais que correndo; tinha terra e pó debaixo das

unhas, e as mãos, os antebraços e os joelhos cortados de arranhões e manchas azuis. Mas não

sentia nada. Quando cheguei até Aurora, não a encontrei retorcida em uma posição antinatural, a

não ser de barriga para cima, como se dormisse. Seus cabelos castanhos avermelhados

disparavam em todas as direções como se fossem arames. A primeira vista não se apreciavam

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feridas, mas eu pressentia que estava muito mal. Inclinei sobre ela e vi que saía sangue de um dos

ouvidos. Do nariz brotava um líquido incolor, tinha a boca aberta e a expressão congelada. Em um

princípio me pareceu perceber sua respiração entrecortada, mas ao me aproximar mais ao rosto, o

ofego cessou. Agarrei pelo pulso e, ao não encontrar o pulso, apalpei o pescoço e o peito.

Nada. Já não havia vida nela.

Antes não me atrevi a agarrá-la para não fazer mal, mas nesse instante a sacudi com

suavidade, gritando seu nome uma e outra vez.

—Não respira! —gritei de novo— Não sinto os batimentos de seu coração!

Então ao fim apareceu Nathan a meu lado. O fato de que tivesse demorado tanto em

percorrer esse lance era um claro sintoma de sua fadiga depois da luta, embora isso não se

refletisse em seu olhar, um olhar — dirigido nesses momentos a Aurora— carregado de amor,

preocupação e medo. Também ele começou a gritar seu nome e me impediu que seguisse

sacudindo-a.

—O mais provável é que tenha sofrido um golpe na cabeça... Devemos evitar que mova.

—Mas tem que voltar a respirar... —balbuciei eu.

Separei as mãos trementes dela. Então foi ele quem inclinou sobre Aurora, pousou as duas

mãos, uma sobre outra, no lado esquerdo de seu peito e começou a pressionar. De vez em quando

interrompia a massagem, colocava os lábios nos de Aurora e insuflava ar bem pela boca, bem pelo

nariz. No final de um momento me dava conta de que a sequência era sempre a mesma. Exercia

pressão no peito quinze vezes, depois duas respirações na boca, outras quinze vezes no peito, e

duas respirações no nariz.

—Não pode fazer nada mais que isto? —gritei— Não é uma menina normal, é uma nefilim! E

os nefilim são imortais! Só podem morrer às mãos de outro nefilim, mas não por uma queda de

um despenhadeiro.

Nathan continuou com a massagem cardíaca e a respiração boca a boca.

—Acaba de fazer sete anos, ainda não terminou que desenvolver...

—Mas conseguiu enganar Josephine! E interveio em sua luta!

—Precisamente por isso — murmurou Nathan sem parar a massagem— consumou todas as

forças que tinha e já não ficam mais.

Eu queria acrescentar algo mais, mas mordi a língua porque sabia que não tinha sentido.

Não podia decidir sobre a vida de minha filha à força de esgrimir argumentos, o único que podia

fazer era ter paciência, esperança e medo.

Nathan afastou a mão do peito de Aurora e voltou para inclinar sobre seu rosto. Notei que

as lágrimas que já não podia seguir contendo embaçavam meus olhos, e não vi que pouco a pouco

Aurora começava a recuperar a cor nas bochechas. Mas ouvi que Nathan gritava aliviado:

—Respira! Já respira!

Ao enxugar as lágrimas, uns grumos de terra ficaram grudados às pestanas. Inclinei sobre

Aurora e então notei o pulsar de seu coração, leve e palpitante.

—Temos que levá-la até o vale imediatamente e chamar uma ambulância — exclamou

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Nathan— Tem o pulso muito débil. Se não a atenderem logo, o coração pode parar de novo.

���

E voltou o frio. A princípio só como um comichão sobre a pele que foi tornando cada vez mais

doloroso, como se atravessasse os ossos e cravasse em todos os membros de seu corpo. A besta

estava esgotada. Embora ainda apressasse com os dentes, já não sacudia a mandíbula. Agora o

frio a enchia por completo, mas já não sentia. Tampouco sentia amargura, raiva nem agitação.

Pediu, e não importava. Todos os sentimentos foram esgotando no transcurso da noite. E embora

tivesse ficado algum, jamais o teria mostrado a Cara.

Ela estava inclinada sobre ele, espada na mão, e recuperou forças suficientes para dar uma

estocada. Ele não podia se defender.

Quando criança estavam acostumados a lutar frequentemente. O pai os obrigava, e também

ordenava que batesse e torturasse Cara sem piedade se ela fosse perdedora. O pai detestava a

debilidade e a castigava sem compaixão... Não... Mandava que a castigassem. Mandava ele.

A maior parte das vezes ele obedecia às ordens. Embora não sempre. Em ocasiões a animava

a rebelar, mas ela, em lugar de lutar com força, limitava a roçar sutilmente com a espada.

Estaria ela rememorando tudo aquilo nesse momento?

—Faz se é que pode — animou.

Assaltavam outras lembranças e conseguiam impregnar através da gélida capa que o frio

pousou sobre seu corpo: lembranças de Serafina, que Cara nunca gostou. Serafina não conseguia

compreender como podia estar descontente uma nefilim com as habilidades de Cara. Se Serafina

fosse filha de seu pai, eles dois teriam entendido tão bem! Ele nunca teria tido que forçá-la a

combater, jamais teria tido que castigá-la por não mostrar suficiente ardor e ânsias de vitória.

Não aconteceu nada. Cara continuava olhando.

—Faz já! —insistiu ele com voz rouca.

Acaso duvidava ela como duvidou no dia anterior?

Teria podido matá-la, e se o tivesse feito, provavelmente agora não estaria nessa situação.

Mas tampouco se arrependeu ao realizar essa reflexão, simplesmente soltou uma gargalhada.

Seus papéis mudaram; ele, não ela, demonstrou ser o mais débil, o mais covarde.

—Se não tivesse deixado levar por nosso pai... —começou dizer Cara—, se tivesse rebelado

contra ele... E tempo mais tarde não tivesse submetido à vontade de Serafina... Poderia ter sido

como eu...

A ele removeu algo por dentro.

—Preferiria morrer antes de ser como você — respondeu em sussurros— Para que serve

estar do lado dos vigilantes?

—Para não ter que matar humanos.

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Série Nefilim 01

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—E a mim? A mim tem que me. Por Nathan. Por Aurora. Por Sophie...

De repente viu o rosto de Sophie frente a sim com total nitidez, depois apagou ao mesclar

com o de Serafina, mas finalmente desbancou. Sophie... Que recordava a sua mãe... A sua mãe

doce, muito doce... E muito fraca...

Ela jamais se atreveu a sair em defesa de seus filhos para protege-los da rigidez do pai.

Sophie, ao contrário— embora parecesse, nesse aspecto eram opostas— fez. Sophie entrou em

uma luta, por muito inútil que fosse, com os poderes mais escuros do mundo, e tudo por Aurora.

—Faz de uma vez!

Viu como as dúvidas dissipavam do rosto de Cara enquanto levantava a espada. Fechou os

olhos. E então já não houve mais frio, nem mais rostos do passado, só negrume, como se tivesse

submerso até o fundo de um escuro lago.

���

Esperei no corredor do hospital. No ar respirava um penetrante aroma de desinfetante;

atarefadas enfermeiras entravam e saíam dos quartos; nesse momento estavam servindo a

comida. Quando meu olhar recaiu sobre o guisado de carne com arroz e ervilhas, não pude evitar

sentir náuseas, e mais ainda quando um homem passou coxeando a meu lado com a bolsa do

cateter a transbordar.

Sentei-me em uma cadeira, agarrei os braços de alumínio e revivi de novo a viagem na

ambulância, onde os enfermeiros lutaram por salvar a vida de Aurora. Sofreu várias paradas

cardíacas, mas conseguiu superar todas. Haviam intubado, e imobilizaram a coluna e a cabeça.

Traumatismo craneoencefálico moderado com risco de hemorragia cerebral foi o que

figurava depois no diagnóstico médico.

Não me lembrava se era o mesmo médico que, depois de sofrer o episódio de convulsões,

examinou e opinou que era uma menina completamente sã.

Em qualquer caso, parecia preocupado, caminhava com nervosismo e adotou uma expressão

séria quando, depois de horas de espera, aproximou de mim.

Eu não podia me mover e me mantive agarrada aos braços da cadeira quando Nathan

equilibrou sobre ele. Nathan permaneceu a meu lado em todo momento; sua presença me dava

tranquilidade, embora nada do que disse chegou a minha cabeça.

O médico estudou Nathan com o olhar, e logo a mim. Até esse momento eu não consegui

reunir forças suficientes para ir lavar, assim tinha terra, pó, ramos, grama e sangue por toda parte.

—Como vai? —perguntou Nathan.

—Agora se encontra estável, mas tivemos que induzir um coma artificial. O objetivo é que

não voltem a produzir subidas da pressão intracraneal. A partir de agora a mediremos por meio de

uma drenagem ventricular. Administramos osmodiuréticos, sobretudo manitol. Com uma

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ecografia abdominal e torácica poderemos determinar outras possíveis lesões. Agora devemos

esperar. Não podemos descartar sequelas neurológicas, mas não nos ponhamos no pior.

Eu fiquei paralisada. O médico pensou que eu não entendia suas palavras porque inclinou

para mim e, como se falasse com um menino assustado e obstinado, disse:

—Ouviu senhora Richter? Aurora...

—Sim— murmurei— está estável... Terá que esperar... Manitol...

Das horas e dias seguintes, apenas me lembro. Em algum momento, consegui sair da

paralisia e permiti que me curassem as feridas também.

Não parecia saber, mais tarde fui consciente, que levava horas e horas sem comer nem

beber, só interessava Aurora.

Uma enfermeira com voz alta esclareceu com dureza que não me deixariam ver Aurora até

que eu tivesse recuperado as forças, e que devia tomar uma infusão para compensar a perda de

líquidos.

Quando me cravaram a agulha na dobra do braço, nem notei. Passei horas absorta no conta-

gotas que ia esvaziando com uma inquietante lentidão. Mais tarde me deram algo para comer.

Com total desinteresse, fui conseguindo que aquilo descesse por minha garganta ressecada,

embora ainda agora não sabia o que era porque não sabia nada.

—Tudo sairá bem... —disse Nathan.

Desde aí adiante essas palavras estiveram presentes em minha mente: “Tudo sairá bem.”

Foram às únicas palavras que transpassavam o silêncio, o longo silencio que reinava aos pés da

cama de Aurora, que não dizia nada, que não se movia.

Na realidade não havia silêncio. Aurora estava conectada a um monitor cardíaco que emitia

um assobio atrás de cada pulsação, e no quarto entrava pessoas permanentemente que abriam e

fechavam a porta. Mas eu não me inteirava de nada, só notava de vez em quando que Nathan

pousava a mão sobre meu ombro enquanto eu contemplava Aurora.

Fiquei adormecida, mas algo despertou de novo. Ao longe ouvi uma discussão entre Nathan

e uma das enfermeiras. Ela insistia que fosse dormir em um quarto para familiares porque não

podia passar a noite na unidade de cuidados intensivos. Entretanto, em um momento tal, a

enfermeira desistiu. Possivelmente um dos olhares ardentes que adotavam os olhos azuis de

Nathan foi o que conseguiu persuadi-la.

Passaram três dias.

Nathan manteve várias discussões acaloradas frente à porta da unidade de cuidados

intensivos, sobretudo com os agentes da polícia, que estavam empenhados em me interrogar. Não

sei se também os persuadiu com seu penetrante olhar, mas fosse como fosse obteve que

postergassem o interrogatório. Da única que não pôde ou não quis proteger foi de Nele. Um dia se

apresentou no quarto de Aurora, estava mais pálida e suja do normal, tinha o corpo coberto de

arranhões e manchas azuis, e uma expressão de profundo atordoamento pela preocupação e o

horror que causava tanto o estado de Aurora como o que ela sofreu. Levantei devagar, senti que o

sangue baixava de repente às pernas, que começaram a me formigar. Ficamos uns instantes em

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silêncio, uma frente à outra, despossuídas da naturalidade e a espontaneidade que impulsionam a

duas boas amigas a abraçar. Eu me alegrava de vê-la e também de saber que se encontrava bem

— o primeiro sentimento íntimo que fui capaz de albergar além de temer por minha filha— mas

ao mesmo tempo senti que se abria uma distância imensa entre nós, entre sua profunda

estranheza e minha incapacidade para oferecer uma explicação que pudesse paliá-la. O que sabia

Nele? O que pensaria de mim?

—Mas como pôde se colocar em algo assim? —murmurou Nele no fim, sacudindo a cabeça e

me evitando com o olhar.

Nesse instante adverti a presença de Nathan junto à porta.

—Eu contei tudo — disse, e com um sinal me deu a entender que não devia interpretar mal

suas palavras.

Ao parecer Nathan e Cara inventaram uma história que fosse acreditável para contar a Nele

e a todos outros, embora não tinha muito a ver com a verdade. Eu não disse nada: por um lado,

porque não sabia o que contaram e, por outro, porque a preocupação por Aurora me fazia sentir

ainda muito fatigada e desesperada para poder lutar por minha amizade com Nele. De todas as

formas, essa preocupação era o que nos unia. Embora Nele se mantivesse a certa distância de

mim, sim se aproximou de ver Aurora, e então seu olhar perdeu qualquer nuance de recriminação

e passou a transluzir unicamente pesar.

—Mas... Mas voltará a si? —perguntou— Poderá se recuperar de tudo depois disto?

Eu levantei as mãos com gesto de impotência.

—Esperamos que sim — apontou Nathan em sussurros.

Nele não fez conta. Ao parecer ela temia perguntar por que o deixou entrar outra vez em

minha vida.

—Quanto tempo... Quanto tempo passou no hospital? —perguntei entre hesitações.

Ela seguia sem querer me olhar nos olhos.

—Não muito... Só foram dois dias... Depois retornei a Salzburg... Mas queria saber como

estava Aurora.

—Eu... Ligo assim que saibamos algo — murmurei.

Nele assentiu, acariciou o rosto de Aurora e voltou para a porta para partir como chegou,

sem dizer nada.

—Nele! —exclamei antes que abandonasse o quarto. Ela parou sem voltar— Nele, sinto

muito!

Não sabia exatamente por que estava me desculpando, mas me doía na alma que todos os

sucessos do passado abatessem como sombras sinistras sobre nossa amizade.

—Está bem — murmurou ela, e partiu.

Nathan aproximou de mim.

—Contei que...

—Não! —Levantei as mãos com um gesto de rechaço e sacudi a cabeça, esgotada— Agora

não! Já me contará isso mais tarde!

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Não me achava em situação de escutá-lo e seguir dando voltas ao assunto de Nele. Minha

amiga se encontrava bem, e isso era o mais importante, mas assim que saiu pela porta, todo meu

mundo, meu pensamento e meu sentir voltaram a centrar única e exclusivamente em Aurora.

���

Transcorriam horas e mais horas. Eu não soltava Aurora da mão, tão diminuta junto à minha,

tão alabastrina e suave. Estreitava e procurava transmitir todas minhas forças, e suplicava por

dentro que não se rendesse.

Ao quarto dia, o médico decidiu despertá-la do coma induzido. Não sei o que deram, só sei

que no final de um momento começaram a tremer as pestanas. Até então desejei com todas

minhas forças, mas nesse instante, de repente, soube com total segurança: tudo ia sair bem, tal

como Nathan profetizou.

Quando Aurora abriu os olhos na cama do hospital, a via pequena e indefesa. Tinha o rosto

branco como o papel, uma sensação que acentuava a atadura que tinha enrolada na cabeça, sob a

que só escapavam algumas mechas de cabelo.

O médico me afastou com delicadeza a um lado e começou a agitar diante dos olhos de

Aurora um objeto que parecia uma lanterna. A primeira vista deu a impressão de que estava

satisfeito com a reação de Aurora à luz, porque assentiu e depois pronunciou várias vezes seu

nome.

—Aurora? Aurora?

Os olhos de Aurora, fixos em um primeiro momento no doutor, percorreram todo o quarto e

detiveram em mim.

—Onde estou?

Falava! Respondia seu nome! Meus olhos encheram de lágrimas.

—Aurora, querida, está no hospital...

—Mamãe...

Voltei a estreitar a mão e, pela primeira vez em dias, notei que respondia com um gesto

débil. O médico prosseguiu com a exploração e comprovou os reflexos nos braços e as pernas.

—Parece que tudo está em ordem — anunciou— De todos os modos, vamos fazer um TAC,

mas provavelmente não fique nenhum tipo de sequelas.

—Onde estou? —voltou a perguntar Aurora.

—No hospital.

—Por quê?

Troquei um olhar com Nathan, depois do qual Aurora desviou também seu olhar para ele e o

esquadrinhou com gesto de confusão.

—Quem é esse? —perguntou.

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—Recorda o que passou? —perguntei eu em lugar de responder.

A confusão de seu rosto aumentou. Expus se devia ajudá-la, se devia explicar o que

aconteceu, mas decidi guardar silêncio porque não queria voltar a despertar seus medos.

—Sim — respondeu de repente Aurora, e estreitou a mão com mais força— Sim, agora me

lembro!

—Do que lembra?

—De meu aniversário! —exclamou— Perdi meu aniversário?

Seu aniversário foi em março, e agora estávamos em julho.

Eu troquei outro olhar com Nathan.

—O que é exatamente o que recorda? —perguntei.

—À tarde... À tarde que estávamos preparando minha festa de aniversário. Você fez um

bolo, e tia Nele ia vir... O que passou? Já fiz sete anos? Ainda não abri os presentes!

Falar ainda supunha um esforço exaustivo, assim Aurora fechou os olhos.

Acariciei a mão. Tudo o que aconteceu desde seu aniversário — sua transformação, o

traslado a Hallstatt, a luta dos nefilim— parecia ter se apagado de sua memória.

���

Cara sacudiu a cabeça desconcertada.

—Nunca ouvi nada igual — repetia sem parar.

—Normal — assinalou Nathan— Não é algo que ocorra tão frequentemente.

Tínhamos nos refugiado na cafeteria do hospital para poder conversar com tranquilidade. A

essas horas da tarde estava deserta, a cozinha estava fechada e o balcão tinha as persianas

baixadas. A luz no refeitório era tênue.

—Que estranho — murmurou Cara.

Enquanto que Nathan caminhava inquieto de um lado a outro, eu estava sentada, esgotada

como poucas vezes em minha vida, mas feliz. Aurora estava bem. Já não existia o risco de que

ficassem sequelas. E o fato de que não se lembrasse de nada, nesse momento me parecia

totalmente insignificante.

Cara, entretanto, não saía de seu assombro.

—Que estranho — repetiu— Não entendo como é que mantém intactos todas as

lembranças precisamente até a tarde de seu aniversário. É casualidade... Ou é que de algum jeito

seu subconsciente deu a ordem concreta de eliminar toda a informação que guarda alguma

relação com os nefilim?

Nathan parou.

—A perda de cor pode ser transitiva — refletiu em voz alta— É possível que um dia volte a

lembrar de tudo.

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—Mas também é possível que não — repôs Cara com gesto pensativo— Ao melhor o forte

golpe que sofreu provocou algum... Algum dano que impede sua transformação em nefilim.

—Dano? —exclamou Nathan indignado— No suposto de que Aurora seguisse sendo uma

menina normal e feliz sem habilidades especiais, seriamente consideraria isso um dano?

Cara encolheu os ombros. Eu a esquadrinhei com atenção, mas não achei indício algum de

todo o sofrimento que suportou. Usava o cabelo penteado para trás e no meio uma raia perfeita

que marcava mais ainda a forma de coração de seu rosto. Usava uma saia lisa negra e na parte de

cima um colete claro que realçava o verde de seus olhos. Seu olhar transparecia o desconcerto

que produzia a perda de memória de Aurora, mas nenhum indício de tristeza pela morte de

Caspar. Acaso atormentava o fato de ter tido que matá-lo com suas próprias mãos? Ou é que

tentava reprimir qualquer pensamento que tivesse a ver com isso?

Desde o dia dos sucessos no topo da montanha não havia tornado a falar com Cara, e até

esse momento mordi a língua, mas já não pude me conter mais e objetei com cautela:

—Bom, de todas as formas o importante é que viverá.

—Sim — murmurou Cara—, viverá... Mas como? O que será? —Cara lançou um olhar

suplicante a Nathan e, dirigindo a ele, disse— Talvez devêssemos perguntar aos anciões.

—Os anciões? —perguntei confundida.

—Os nefilim do princípio dos tempos — esclareceu Nathan— Vivem sempre escondidos,

virtualmente nunca se mostram ao mundo. Eles puseram à prova Cara, do contrário jamais teria

consentido que mudasse de bando e lutasse com os guardiães.

—Talvez eles saibam o que deveríamos fazer com Aurora — sugeriu Cara.

Nathan negou com um gesto de cabeça enérgico.

—Não temos que fazer nada! O que ocorreu não incumbe aos anciões.

A memória me fraquejava, só me lembrava vagamente das palavras que empregou Nathan

ao me contar que em seu dia negou a consumar sua missão para poder dedicar ao violoncelo. Isso

desencadeou a cólera de muitos guardiões, entre os quais provavelmente figuravam os anciões.

Não quis afundar mais no assunto.

—Já quebraremos a cabeça mais adiante com esse assunto. Agora temos que nos preocupar

de acertar o que Sophie contará à polícia. Não demorarão em interrogá-la, e quando o fizerem

terá que confirmar a história que nos inventamos, a história que explica por que morreram tantos

agentes no casarão. E por que Nele...

Levantei de um salto. Era o primeiro movimento brusco que realizava em muito tempo.

—Meu Deus, Nele! —exclamei— Prometi que a chamaria assim que Aurora começasse a se

recuperar.

Cara me agarrou pela mão com atitude tranquilizadora.

—Não se preocupe, eu falei por telefone com ela.

—Mas se você não a conhece!

—Bom, depois de explicar tudo o que ocorreu...

Nesse instante me vieram à mente as palavras que Nele pronunciou junto à cama de Aurora:

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“Como pôde se colocar em algo assim?”

Naquele momento me faltavam as forças para perguntar, mas agora queria saber:

—O que é o que contou?

—O mesmo que terá que contar você à polícia.

—Sabe o de... dos nefilim?

—Não — se apressou a responder Nathan, ao tempo que Cara negava com a cabeça— Uns

homens com uma força extraordinária a arrastaram até uma montanha, onde ela foi testemunha

de uma estranha luta com espadas. Isso é tudo.

—Escuta com atenção o que Nathan e eu pensamos — disse Cara— Deve concordar com

tudo, palavra por palavra, diante da polícia, ouve Sophie?

Assenti e tentei me concentrar.

—Pois verá: Caspar era o chefe de uma seita — continuou Cara— de uma comunidade

bastante escura e perigosa que seguia uma velha tradição, que aqui, nos arredores do lago de

Hallstatt, onde o passado permanece tão vivo, parece resultar especialmente atrativa. Os

membros utilizam armas medievais, e entre elas espadas...

—E por que foram matar a tantas pessoas com elas? —interrompi.

—A respeito disso, pode em certo modo rodear a verdade. Todas as vítimas, incluídos os

agentes de polícia que morreram em sua casa, foram assassinadas porque os membros da seita

deixaram contagiar pelo desvario de que matando conseguiriam apoderar-se de suas capacidades.

Você, Sophie, esteve durante um tempo fascinada por esse culto, embora assim que descobriu por

aonde ia o assunto, distanciou imediatamente deles. O que passa é que as seitas não deixam partir

às pessoas de qualquer jeito e, quando quis ir, começaram a pressionar, sequestraram sua filha e

destroçaram sua casa. Por temor que fizessem mal a Aurora, não podia contar a verdade à polícia.

Pelo contrário, decidiu recorrer a Nathan e a mim, que somos velhos amigos, para que

ajudássemos a liberar Aurora. O chefe da seita, Caspar von Kranichstein, perdeu completamente a

cabeça e, provavelmente sob os efeitos de alguma droga, matou primeiro a todos outros membros

da seita e depois se suicidou.

—Todo isso é um autêntico disparate!

—Mas alguns dos detalhes correspondem completamente com a verdade. Todas as vítimas

morreram por feridas infligidas com espada, eu inclusive entreguei a minha à polícia como prova.

Pesa tanto que a ninguém ocorreria pensar que você ou eu podemos levantá-la e muito menos

matar a alguém com ela. Ninguém nos relacionará com os assassinatos, ao contrário! E tampouco

suspeitarão de Nathan. Segundo nossa versão, ele chegou a Hallstatt depois que sequestrassem

Aurora, e ninguém pode dar fé de que tivesse estado em sua casa antes...

—Mas quando encontrarem o cadáver de Caspar, verão que não se suicidou, mas sim...

Interrompi, não queria acabar a frase.

Cara baixou o olhar.

—Não encontrarão o cadáver — limitou a esclarecer.

Nathan voltou para ela surpreso; ao parecer ele tampouco sabia do assunto.

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Sem levantar a cabeça, Cara esclareceu com contundência:

—Fiz o que tinha que fazer, e não me arrependo. Eu sou a única responsável por que meu...

irmão nunca ficasse em mãos de um patologista.

—O que tem feito com o cadáver? —perguntou Nathan.

—Esse é um segredo que guardarei para mim — murmurou Cara.

No fim levantou a vista de novo, aguentou o olhar escrutinador de Nathan com um gesto

inexpressivo e finalmente levantou. Nathan não fez mais perguntas, e eu tampouco quis remover

o que se ocultava depois da frente ampla e tensa de Cara.

—Ficarei aqui até que dêem por fechada a investigação — anunciou Cara com aparente

indiferença— Contarei minha declaração tantas vezes como for necessário. Mas quando acabar,

não haverá nada que me retenha em Hallstatt. Minha missão aqui terá concluído. A decisão do

que fazer com Aurora corresponde a vocês.

—Mas aonde vai? —exclamei eu, consternada— Aurora gosta tanto de você, e embora

agora não reconheça, eu acredito que adoraria...

Cara realizou um gesto negativo com a mão.

—Necessito urgentemente uma mudança. E um pouco de distância. Tudo isto foi... foi muito.

Pela primeira vez um gesto de tristeza escureceu o rosto e quebrou a voz. Talvez se tratasse

de Caspar, da carga com a que tinha que viver a partir de agora. Mas em lugar de render, tragou

saliva e dirigiu para a porta.

Antes de abandonar a cafeteria, voltou pela última vez para mim.

—Sophie, antes que acontecesse tudo isto, minha visão sobre o que o futuro proporcionará

a Aurora discrepava da de Nathan. Ele desejava que Aurora pudesse levar uma vida normal,

enquanto que me parecia que a transformação era inevitável. Agora já não estou tão segura.

Talvez este acidente a converteu em uma pessoa normal. Pode ser que a semente habite em seu

interior e que em algum momento desperte, ou pode ser que não. Não sei o que acontecerá. E

tampouco sei o que significa para... vocês.

Não acrescentou nada mais, mas compreendi o que queria me dizer. No momento, a

transformação de Aurora se viu interrompida, mas não sabíamos se era para sempre ou só de

maneira transitória. De uma maneira ou de outra, as probabilidades de que levasse uma vida

normal eram maiores se não vivia perto de nenhum nefilim.

Eu me dirigi para Cara e a abracei em silêncio, e ao vê-la afastar me invadiu um tremendo

desalento. Até esse momento me senti muito feliz porque tudo saiu bem e meus seres mais

queridos estavam sãos e salvos, mas nesse instante me dava conta de que o mais difícil estava por

vir: decidir se Nathan e eu podíamos construir uma vida em comum.

���

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208

Durante os dias seguintes, Nathan propôs várias vezes que fôssemos para casa umas horas,

mas eu me negava a deixar sozinha Aurora embora só fosse um tempo. Não queria me afastar dos

pés de sua cama nem um instante, queria me certificar minuto a minuto de que cada dia se

encontrava melhor. Cada pequeno avanço se convertia em um autêntico triunfo: o primeiro dia

que pôde sentar e, mais adiante, levantar, o primeiro dia que comeu sozinha e com apetite, o

primeiro dia que aguentou acordada um bom momento sem cansar. Só quando o médico que a

tratava anunciou que não demoraria em dar à alta, acessei a petição de Nathan. Chegou o

momento de pôr a casa a ponto para a volta de Aurora.

Até então não dediquei nem um só instante para pensar no estado de destruição em que se

encontrava nossa casa, os inumeráveis fragmentos de cristal, o tronco no meio do salão, o sangue

dos mortos. Mas ao chegar esse momento comecei a me expor quanto tempo e dinheiro ia custar

para pôr ordem em meio de tanto caos. Entretanto, quando Nathan me levou para casa, já não

ficava nem rastro dos destroços. As janelas quebradas não estavam arrumadas, a não ser

tampadas de forma provisória com fitas de seda de madeira, mas, pelo resto, alguém se

encarregou de ordenar a casa a fundo e fazer desaparecer todos os restos da batalha.

Eu olhei assombrada ao meu redor, enquanto Nathan não parecia especialmente surpreso.

—É provável que Cara se ocupasse de tudo...

Cara, o espírito do bem das últimas semanas a quem nunca eu poderia agradecer o

suficiente tudo o que fez.

Enquanto isso, ela —tal como anunciou— partiu de Hallstatt. No momento de nos despedir

me invadiu uma melancolia que jamais antes havia sentido, melancolia e também certo desânimo.

Como ia arrumar isso sem ela? Como ia conseguir voltar para a normalidade? Suportar os

interrogatórios da polícia, que inclusive depois de minha detalhada declaração voltava uma e

outra vez? A recuperar o contato com Nele e lutar por nossa amizade? Até esse momento afastou

tudo isso de minha mente.

Exalei um suspiro e depois me forcei a entrar em todas os cômodos procurando, na medida

do possível, não pensar nos momentos de pânico que vivi ali nem em todas as criaturas que

morreram entre aquelas quatro paredes. Não sabia se suportaria ficar e viver nessa casa muito

tempo mais, mas durante a convalescença de Aurora seria melhor estar no campo que no andar

de Salzburg, e eu estava decidida a tirar todo o partido possível.

Depois de percorrer a casa de ponta a ponta, saí ao jardim. A terra do chão estava levantada,

a grama coberta de pedras e ramos, e a cerca arrancada em alguns lances. Sem emprestar atenção

ao caos, sentei suspirando no banco —que sobrevivi— e no final de um instante Nathan tomou

assento a meu lado. Permanecemos em silêncio um momento. Entardeceu, o céu já não era azul

intenso, mas sim de um violeta pálido, e aparecia coberto por algumas nuvens que, mais que

montanhas nevadas, pareciam fios vaporosos. Através das árvores ainda se vislumbrava o azul

esverdeado do lago, mas ao extingui-la luz apagou também o último brilho da água, tornando tão

negra como o bosque. Contemplei a espessura das árvores, que como sempre a essa hora do dia

parecia um labirinto impenetrável. Mas agora já não havia ninguém que pudesse aparecer e

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espreitar Aurora e a mim, ninguém que albergasse o desejo de me converter a mim em sua esposa

e a Aurora em sua pequena.

Tomei ar fresco e respirei fundo, senti relaxada e ao mesmo tempo se amontoaram em

minha cabeça todas as perguntas que nos últimos dias quis fazer.

—E agora? —disse a Nathan.

Não respondeu. Seus olhos azuis pareciam apagados. Eu instintivamente aproximei a ele

para sentir seu corpo forte e robusto.

—E agora? —voltei a perguntar.

—Eu sou quem sou — murmurou— Não vale a pena que me engane, e a você tampouco.

Não sou chelista, sou um nefilim. Oxalá o aceitasse muito antes! Possivelmente assim as coisas

teriam ido de outra maneira, e não teriam perdido a vida tantas pessoas.

—Nem ocorra tomar a culpa do que ocorreu! —exclamei com ímpeto— Tudo foi obra de

Caspar, não tua. E agora ele está morto e já não poderá voltar a fazer mal a ninguém. Nisso é no

que tem que pensar, e em que isso temos que agradecer isso a você. Que está vivo! Como a

Aurora.

Agarrou a mão sem dizer nada e a estreitou.

—Sim, Aurora está viva, mas o que vai passar com ela... o que vai passar conosco?

Olhei ao infinito que se abria a costas de Nathan, enquanto repassava as distintas opções

que tínhamos. Eu já levava muito tempo dando voltas, mas nunca me atrevi as pôr sobre a mesa.

—Existem quatro possibilidades. Que fique conosco, Aurora não influa e converta em uma

pessoa normal. Que fique conosco, e ela comece a transformar outra vez. Que nos deixe e ela siga

sendo uma menina normal. E que nos deixe e, mesmo assim, produza a transformação. Talvez

fosse uma transformação débil e ela só a teria de maneira muito sutil que em seu interior habita

algo que nunca alcançará a compreender nem a controlar de tudo.

Nathan exalou um suspiro.

—Eu gostaria tanto que fosse feliz.

—Sim, oxalá soubéssemos como — respondi sem poder dissimular meu desespero na voz—

Como chegará a ser feliz? Como humana? Como nefilim?

—Eu gostaria tanto poder economizar os conflitos.

—Mas acaso acha que pode? Não me disse você mesmo que aqueles cuja natureza nefilim

não chega a aflorar alguma vez são pessoas com extraordinárias faculdades e, entretanto, muitas

vezes fracassam na vida, sua natureza latente arruína a vida ou som psiquicamente instáveis?

Estreitou a mão com mais força.

—Eu te quero Sophie — murmurou— os anos que me mantive afastado de você foram

insuportáveis. Naquele momento me convenci de que tinha que realizar esse sacrifício, mas agora

me pergunto se teve sentido, se não foi um tremendo equívoco. Por um lado, prometi mesmo que

jamais voltaria a tomar a liberdade de tomar por minha conta e risco decisões que afetassem a

outros. Nesse momento parti porque acreditei que era o correto, mas jamais devia obrigar a

confrontar uns fatos já consumados nem devia ocultar quem era. Pensei que dessa maneira te

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protegia, e aconteceu o contrário. Talvez nesse momento não tivesse podido digerir toda a

verdade, mas eu deveria ter acreditado que seria capaz de decidir por si mesma, e agora confio

plenamente que é assim. Aceitarei de bom grado a decisão que tome. Seja qual seja sua decisão,

farei tudo que possa para te apoiar.

Tomou a outra mão, segurou e me arrastou para si. Olhamos. Até esse momento o único

que ocupou minha mente era o bem-estar de Aurora, mas ao me consumir no azul de seus olhos,

pensei também no futuro de minha própria vida. Como transcorreriam as coisas sem ele? Podia

suportar não estar com o homem a quem amava apesar do que sabia sobre ele e o que

aconteceu? Mas, por outra parte, o que significaria viver com ele? Assumir que sempre haveria

uma luta? E havia outra coisa que me preocupava mais ainda. Ele pertencia a uma raça de seres

imortais e eu não. Quem nos visse neste momento, pensaria que fazíamos um magnífico casal,

mas que imagem teríamos no final de vinte, trinta ou quarenta anos?

—Aconteça o que acontecer conosco, Sophie — murmurou Nathan— tem que me prometer

uma coisa. Prometa-me que voltará a tocar piano.

Eu sacudi a cabeça com um gesto de irritação. Em um momento como esse, tratava de uma

petição totalmente improcedente e inclusive ridícula, diria eu. Entretanto, a seguir o olhei nos

olhos e voltei a ouvir a música, nossa música, nossa interpretação de Rajmáninov. A sonata em sol

menor.

Vi-a nos no terraço, em um terraço de pedra, passeando pela borda do Salzach, nos beijando

ao amanhecer, e então me inclinei e o beijei agora também, no presente, e ele respondeu à

pressão de meus lábios, ao contato de minha língua.

A luz do alvorada se extinguiu, o ar era fresco, e nós seguíamos nos beijando. Quando o céu

se tingiu definitivamente de negro e os mosquitos em busca de luz e calor começara a crivar, eu

levantei sem soltar as mãos.

—Vêem — sussurrei com a voz algo rouca enquanto o arrastava comigo— vamos para

dentro.

Quando nos tombamos no sofá do salão, pareceu perceber no ar umas vibrações já

conhecidas, a mesma tensão que notei em seu apartamento quando tive a sensação de que nos

atraíamos e nos repelíamos ao mesmo tempo.

Nathan afastou seus lábios de meus, estreitou a cabeça com as mãos e me olhou fixamente.

—Está segura? —perguntou.

—Do que temos que fazer de agora em diante e como temos que viver? — respondi— Não,

claro que não. Entretanto, há uma coisa da que sim estou segura: agora mesmo não suportaria

que partisse.

Ele esboçou um sorriso.

—Não penso partir. Não penso te deixar sozinha. Esta noite, não.

Inclinou para frente e me beijou a frente, a ponta do nariz e os lóbulos das orelhas. Os

pontos onde nossos lábios se encontravam ardiam; ficava arrepiada. Fechei os olhos e então

comecei a senti-lo tudo com maior intensidade: não só suas carícias, mas também a reação que

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Série Nefilim 01

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provocavam em mim. O palpitar de meu coração não eram simples batimentos do coração no

peito, a não ser tangidos por todo meu corpo que, longe de ser desagradáveis, resultavam como

ondas de uma água suave e morna onde eu podia me inundar, me deixar levar, me lavar de todos

os medos, as angústias e as preocupações. Só contava o agora, e a lembrança da primeira noite

que passei com Nathan. Essa noite cobrou vida de novo permitindo que o então se fundisse com o

agora. A garota tímida de dezenove anos a que Nathan, sem vacilações, tocou e acariciou esse dia,

talvez já levasse dentro de si à mulher amadurecida a que ele abraçou: uma mais forte, mais

decidida e mais experimentada em confrontar os temporais da vida. E, vice-versa: nesse instante

despertou em mim a garota de então, a garota a que impressionava tudo o que ocorria a que se

entregava sem pensar a toda sorte de sentimentos e sensações fortes, a que não conhecia limites

na hora de amar.

Existia uma diferença: no passado houve em nossos movimentos muita precipitação ao nos

despojar da roupa. Esse dia, entretanto, despimos muito devagar, quase com temor. Quando

estivemos nus, detivemos um instante em lugar de nos entrelaçar e nos perder no outro sem

pensar. Era um momento muito formoso para abandonar ao encantamento e a avidez sem antes

apreciá-lo e celebrá-lo.

Com um gesto hesitante me decidi ao fim a acariciar o corpo, explorei cada centímetro, e

entreguei então o minhas a suas mãos, seus lábios e sua língua. A lentidão despertava uma paixão

maior que a precipitação cega pela que nos deixamos arrastar em seu dia. Os pensamentos se

sossegaram, as lembranças se desvaneceram. E atrás deles só ficaram a vontade de nos amar e

nos ter, de nos beijar e nos acariciar, as vontades de nos queimar, nos retorcer e nos estremecer,

de nos gelar e nos abrasar, de nos soltar e voltar a nos fundir, de aferramos o um ao outro nas

sacudidas trementes e nos recrear depois no descanso. Não havia regras, nem fronteiras, só o

desejo de seguir ali, de que durasse mais, de que nunca acabasse.

Quando por esgotamento ficamos entrelaçados na cama, ele foi o primeiro a falar.

—Amo, Sophie.

Quis sorrir, e o obtive, mas não pude conter a emoção e as lágrimas me embaçaram os

olhos.

Essa noite não dormi, e, entretanto à manhã seguinte sentia-me fresca e descansada. Não

falamos — já havíamos isso dito tudo— limitamos a desfrutar, ao menos por um fugaz instante,

dessa felicidade sossegada e sem agitações. Quando saí da ducha, Nathan preparou café — só

para mim, pois ele se contentava com água—, e assim nos sentamos na cozinha, eu com minha

taça e ele com seu copo, e nos dedicamos a nos contemplar um ao outro com amor.

Isso durou um momento, até que começou a inquietar, levantou e me disse:

—Venha, vamos ao hospital!

O médico nos disse no dia anterior que Aurora devia começar a passar tempo levantada e

que convinha tomar ar, assim podíamos sair a dar um passeio aos jardins do hospital. Ao pensar

nisso, vi a imagem clara de nós três. Aurora ainda se sentiria débil e a vendagem branca que

levava na cabeça recordaria a gravidade da ferida, mas adoraria voltar a sentir o sol na pele.

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Nathan e eu caminharíamos um a cada lado para protegê-la e guiá-la entre os canteiros de flores.

Ao nos ver, as pessoas tomaria por uma família, uma pequena família feliz.

Levantei e o segui até a rua. O ar matutino ainda era fresco e me penetrou através do cabelo

ainda molhado. Com um gesto cauteloso, voltei o olhar para o terreno de Caspar. As grandes

janelas da casa não exibiam um aspecto acolhedor e luminoso, mas sim refletiam os sebes altos e

escuros. De quem passaria a ser a casa agora?

Nathan seguiu a direção de meu olhar.

—Já não pode nos fazer nada — disse com voz sossegada.

—Sim— murmurei, embora pensasse para dentro: “Mas haverá outros... seguro que há

outros que podem nos fazer mal... filhos das serpentes que vão à por você... ou que têm interesse

em Aurora... caso que ainda habite nela uma futura nefilim... coisa que não sabemos...”

Igual a no dia anterior, as perguntas começaram a amontoar em minha mente e

escureceram meu rosto: o que devíamos fazer? Que decisão devíamos tomar? O que era o melhor

para Aurora, para mim e para ele? Seguia sem saber a resposta e sentia que a infinidade de

dúvidas me rasgava por dentro... até que voltei a ver com nitidez a imagem dos três passeando

pelo jardim do hospital. No dia seguinte devíamos tomar uma decisão, mas ainda faltava um dia

para isso. Conduzi Nathan ao carro. Esse dia era nosso.

Passaríamos com Aurora e desfrutaríamos de seus avanços, pela tarde retornaríamos para

casa, prepararíamos o jantar, sentaríamos no jardim para ver o pôr do sol e nos amaríamos toda a

noite. Nathan viveu tantos anos do século XVIII que para ele um dia e uma noite não eram

virtualmente nada. Mas também para um ser humano comum como eu esse tempo — essa ínfima

parte de toda uma vida— era de uma fugacidade quase irrisória.

“Mas para o amor — pensei— para o amor não existe o tempo, para o amor o agora é a

eternidade.” Os pensamentos escuros desvaneceram. Tomei a mão de Nathan e a estreitei.

Esse dia fomos amantes. Esse dia fomos uma família.

Epílogo

Abriu os olhos e o céu que abria sobre ele rachou. Pequenos fragmentos com os cantos

afiados e reflexos azulados caíram sobre ele. Voltou a fechar os olhos, a dor o martirizava.

Não. Passado um momento para perceber. O céu não estava despedaçando, eram seus

olhos os que o decompunham. Sua visão distorcida transmitia uma imagem fragmentada do

mundo que não encaixava. Sua respiração soava rouca, seus gemidos, ofegantes. Os fragmentos

dos olhos deviam deslizar até a garganta e arranhá-la ligeiramente primeiro, e esmigalhado por

completo depois, porque a voz — igual à vista — falhava. Mas a dor, por insuportável que fosse,

estava fazendo voltar em si, devolvendo as lembranças.

Caiu no abismo... no abismo insondável e escuro... como o fundo lamacento do lago... Ali o

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esperava a morte... um nada... Entretanto, o reino silencioso e escuro não o devorou, o inferno

bem o cuspiu. Ao apalpar, deu conta de que não estava molhado nem coberto de barro, e

tampouco ensanguentado nem rígido.

Não, não morreu.

Abriu os olhos de novo e teve a impressão de que olhava o mundo através de uma tela.

Recuperaria algum dia a visão? Conseguiria emitir com a garganta algum som que não fosse como

o lamento de um animal ferido? Reuniria algum dia força suficientes para levantar?

Cara não se atreveu a matá-lo.

Não sabia se devia interpretá-lo como uma prova de seu amor ou como uma falha, se isso a

convertia em uma estúpida covarde, em uma irmã benévola ou em uma sádica cruel. Eram muitas

as coisas que não sabia.

Sentia os membros de seu corpo, mas não podia movê-los.

Perdoaram-no, mas se sentia condenado.

Seguia com vida, mas não tinha nem ideia do que fazer com ela.

Fim

** Essa tradução foi feita apenas para a

leitura dos membros da Tiamat.

Muita gente está querendo ganhar fama e seguidores usando os livros feitos por nós. Não retirem os créditos do livro ou do arquivo.

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