o aforamento de terras públicas em são francisco do sul · paolo grossi afirma que o historiador...
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O aforamento de terras pblicas em So Francisco do Sul
ELEIDE ABRIL GORDON FINDLAY*
A prtica do aforamento em terras em pblicas
Para se dimensionar como a prtica do estabelecimento de contrato de enfiteuse, ou
aforamento, pelas autoridades governamentais das terras pblicas incultas contribuiu para a
ocupao territorial de So Francisco do Sul, imperativo que se proceda a uma anlise do
significado de tal ordenamento jurdico na construo da propriedade na localidade.
A importncia do dialogo entre a histria e o direito para a o estudo da ocupao territorial,
tem sido destacada pela historiografia nacional e internacional, diante da necessidade de se
compreender que a realidade social impe ao ordenamento jurdico nuances e especificidades
que no podem ser desprezadas pelo pesquisador.
A cautela com o disposto nos marcos jurdico fundamental, na medida em que no se deve
descuidar do alerta de Rosa Congost, de que a realidade social se sobrepe ao ordenamento
jurdico, j que ao longo da histria o discurso sobre a propriedade e a justia tem servido
para justificar a ordem existente, e que se trata sempre de uma ordem cuja existncia no
interessa a todos de modo igual. (CONGOST, 2007:19).
Paolo Grossi afirma que o historiador do direito deve se libertar da concepo individualista
de propriedade, e perceb-la como categoria histrica influenciada pelos diversos e diferentes
contextos histricos. Para o autor, a propriedade e o direito so expresses de mentalidades, e,
portanto,
Para entender a construo da propriedade moderna necessrio revisitar, no mnimo, a
teologia voluntarista dos sculos XIV e XV, estudar o pensamento da Segunda Escolstica
espanhola, analisar o individualismo possessivo dos sculos XVII e XVIII, para se chegar
ento s cartas constitucionais do sculo XVIII e dos cdigos do sculo XIX. necessrio,
portanto, compreender que propriedade antes de tudo mentalidade. (GROSSI apud Srgio
Said Staut Jr,.)
E nas palavras de Antnio Manoel Hespanha,
A Histria do direito realiza esta misso sublinhando que o direito existe sempre em sociedade
e que, seja qual for o modelo usado para descrever as suas relaes com os contextos sociais
(simblicos, econmicos, etc.), as solues jurdicas so sempre contingentes em relao a um
dado envolvimento (ou ambiente). So, neste sentido, sempre locais. (HESPANHA, 1999: 21).
2
Professora e Pesquisadora da Universidade da Regio de Joinville- Univille- Mestre em Educao-FGV/RJ. Financiamento FAP/Univille
Para compreender a aplicao do instituto da enfiteuse, ou aforamento, no contexto social
convm ressaltar a conceituao de enfiteuse, ou aforamento, que permear o entendimento
do processo de aforamento de terras pblicas, conforme Costa,
A enfiteuse, tambm denominada aforamento ou emprazamento, o negcio jurdico pelo qual
o proprietrio (senhorio) transfere ao adquirente (enfiteuta), em carter perptuo, o domnio
til, a posse direta, o uso, o gozo e o direito de disposio sobre bem imvel, mediante o
pagamento de renda anual (foro). (COSTA, 2012:09),
O instituto da enfiteuse, ou aforamento, abrangia somente terras incultas, impondo dessa
maneira aquele que passava a ter o domnio til a obrigao do cultivo da terra ou a
edificao.
Quanto amplitude do direito de enfiteuse tem-se:
No quadro dos direitos reais sobre coisa alheia, a enfiteuse que mais se aproxima do direito
de propriedade. Enquanto nas servides, no uso e no usufruto o titular de direito real sobre
coisa alheia apenas pode, conforme o caso e em latitude maior ou menor, usar e gozar do bem
agravado, sem ter a faculdade de dele dispor, na enfiteuse o enfiteuta, alm de usar e gozar,
tambm dispe da coisa. Por outro lado, em vez de tratar de um direito temporrio ou vitalcio,
como o uso, a habitao ou o usufruto, a enfiteuse , como a propriedade, um direito perptuo.
(WALD, 2009 apud FERNANDES, Web )
Em relao a sua natureza jurdica se constitui em direito real alienvel e transmissvel a
herdeiros sobre bem imvel. No ordenamento jurdico brasileiro coexiste a enfiteuse civil e
a administrativa. Sendo a enfiteuse civil a constituda sobre bens particulares e pblicos (do
domnio municipal) e a administrativa a relativa sobre imveis pblicos dominiais, mas
comumente sobre bens imveis da Unio, como os terrenos de marinha.
Como salienta Eric Baracho Dore Fernandes (Web, 2008), ao analisar as origens histricas da
enfiteuse, no se pode desprezar o fato de que tal instituto legal possui dentre suas
objetivaes caractersticas econmicas, posto que, visa promover a explorao e a produo
da terra inculta.
Para alm de sua caracterstica econmica, o aforamento foi muito utilizado no Brasil, desde o
perodo colonial, como instrumento de povoamento, na medida em que as autoridades locais,
costumeiramente concediam aforamento aos solicitantes de datas de terras do patrimnio
3
pblico, visando ao mesmo tempo promover a ocupao territorial, estimular a produo local
e aumentar as rendas governamentais com a cobrana do foro.
Nesse sentido, dimensionar a aplicao do instituto do aforamento na histria da construo
da propriedade de uma localidade, ou cidade, implica em se revisitar o ordenamento jurdico
que moldou a administrao local desde o perodo colonial. Para tanto primordial se
adentrar na discusso a respeito da regulao da terra pela Coroa Portuguesa. Nesse sentido
destaca-se a identificao dos detentores de poder de concesso e distribuio de terras, bem
como os atos rgios que regulamentaram o acesso terra no perodo da colonizao.
A partir da anlise do ordenamento jurdico no processo de organizao e administrao
territorial do imprio portugus do Atlntico, convm retomar o papel das Capitanias na
conformao do povoamento do Brasil. Como alerta Jos Vicente Serro, (2016) a criao de
capitanias foi a forma utilizada pela Cora portuguesa para fazer frente ao povoamento,
colonizao e administrao dos espaos ultramarinos. Em suas palavras,
Nesse sentido, a concesso do senhorio de extensos territrios ultramarinos a particulares, com
reserva de soberania rgia o que, no direito portugus, correspondia doao de bens da
coroa parecia ser a frmula perfeita. E nisso, em ltima anlise, consistiam as capitanias
donatariais. Note-se que, no essencial, no se tratava da doao de terras mas sim do governo
de territrios..(SERRO, Web,2016)
O autor ressalta o papel dos donatrios na criao de vilas em terras brasileiras, Entre as suas
atribuies contava-se, por exemplo, a fundao de vilas ou a distribuio de terras aos
colonos (geralmente em sesmaria), o que bem atesta o papel que tiveram na territorializao
do domnio portugus. (SERRO, WEB, 2016).
A criao de vilas em terras brasileiras, para alm do povoamento e administrao local,
derivou da aglomerao territorial em decorrncia do desenvolvimento da agricultura. De
acordo com Alencar Santana Braga, em estudo sobre o poder poltico do municpio no Brasil
colnia em que discorre sobre as caractersticas do municpio portugus e do brasileiro, e que
apesar de ambos submetidos aos ditames das Ordenaes Manuelinas, diferem as razes para
a sua criao. Destaca o autor,
[...] ao contrrio do municpio portugus, oriundo da unio do povo a fim de se defender da
nobreza feudal, e ainda do antigo municpio romano, cuja origem se deu devido ao respeito que
fizeram jus os vencidos frente ao Imprio Romano, o primeiro concelho brasileiro nasceu por
vontade da coroa, vida por iniciar um processo de colonizao. (BRAGA, 2008: 183).
4
A nomenclatura de vila, cidade ou municpio tem sido objeto de discusso e discordncias
entre estudiosos da temtica. Para fazer trazer luz questo Margareth da Silva Pereira em
interessante estudo sobre a construo histrica dos sentidos das palavras, discorre sobre o
vocbulo municpio e informa que at o sculo XIX no era de uso geral no Brasil, e
reconhecido apenas como uma expresso latina arcaica de emprego extremamente restrito e
erudito. (PEREIRA, 2008, p01).
A consulta ao Vocabulrio Portugus e Latino de Rafael Bluteau (1720) possibilita uma maior
compreenso do sentido dos vocbulos utilizados em Portugal e no Brasil durante o perodo
colonial.
Municpio, ou cidade municipal: No tempo dos Antigos Romanos chamavam-se
Municpios as cidades, que: logravam as izenoes dos Cidados Romanos. E
imitao delas, tambm se chamava Municpios as Cidades de Castella, Portugal e
que logravam os ditos privilgios. (Livro 5, p639).
Vila (Villa), como povoao aberta, ou cercada, que nem chega a Cidade, nem to
pequena, como Aldeia. Tem juiz, e Senado da Cmara e seu pelourinho.
(Livro 8,p.489).
Cidade: Multido de casas, distribudas em ruas, e praas, cercadas de muros, e
habitadas de homens, que vivem em sociedade e subordinao. (Volume 2, p 309)
Termo de Vila ou Cidade: o distrito ou, espao de terra, aonde chega a jurisdio
dos Juzes Ordinrios, ou de Fora, ou outras Justias. (Volume 08, p.128)
Concelho: Na Provncia de Beira, nome que se d aquelas terras, que so termo de
uma Villa, e as ditas terras se chamam de Concelho dela, quer dizer da Cmara.
(Volume 2, p 432)
Cmara, Cmera: As casas em que o Presidente e os vereadores, se juntam para tratar
dos negcios concernentes ao bem pblico de sua cidade. (Volume 2, p.68)
Muitos estudiosos aceitam as acepes indicadas por Bluteau para os vocbulos Vila e
Cidade, no entanto, a justificativa para tal compreenso distingue-se daquela atribuda pelo
padre e vocabularista. Para Aroldo de Azevedo em seu ensaio de geografia humana elaborado,
Vilas e Cidades do Brasil Colonial, ao final do sculo XVI existiam no Brasil pelo menos
14 vilas e somente 3 cidades que nunca foram vilas nem povoado. Esse nmero to pequeno
5
de cidades, de acordo com o autor, se justifica pelo fato de que os Donatrios tinham o dever
de criar Vilas, com relao criao das Cidades os Donatrios no tinham essa prerrogativa.
J para Mauricio Abreu (1997) as manifestaes materiais do controle territorial por parte da
metrpole portuguesa em terras da colnia resultaram no arraial (ou povoado), na vila e na
cidade. E explica que
Dentre esses, apenas o arraial teve origem espontnea, resultando do agrupamento de famlias
em algumas residncias chamadas fogos que apresentavam certa contiguidade e unidade
formal. Os demais surgiram sempre da ao direta ou indireta do Estado. As vilas resultaram
da deciso de donatrios e governadores, que tinham poder para cri-las, ou de ordem real para
que se elevasse a essa categoria algum arraial. A criao de cidades, entretanto, foi sempre um
atributo exclusivo da Coroa. Os donatrios no tinham o direito de fund-las porque as
cidades, perpetuando em si o antigo Municpio romano, de natureza independente, s
assentavam em terras prprias alodiais (ABREU, 1997: 213).
Maria Fernanda Bicalho ao discorrer sobre o verbete Cmara, no e-Dicionrio da Terra e do
Territrio no Imprio Portugus, informa que Ao ser fundada a vila ou a cidade, a coroa
doava res publica uma, duas ou mais lguas em quadra que constituiriam o seu termo, sob a
jurisdio da municipalidade (BICALHO, WEB, 2015) Na mesma publicao possvel
identificar Termo como o territrio de um concelho, sujeito jurisdio da respectiva cidade
ou vila, mas fora dos seus limites urbanos estritos. E ainda [...] Os seus limites eram
geralmente definidos na carta de foral ou noutro documento de criao do concelho ou da
vila. Ao mesmo tempo salienta que o conceito foi transposto para terras ultramarinas entre
elas o Brasil e, por este motivo encontra-se com frequncia na documentao do perodo
colonial as expresses termo de Vila Rica, da cidade de Marina seu termo (BORGES,
2014).
As terras destinadas s vilas e cidades, quando de sua criao, ficavam sob a responsabilidade
da Cmara e somente ela tinha o poder de conceder terrenos urbanos, assim considerados os
espaos pelo imprio portugus. A Cmara
[...] aforava, mediante o pagamento de foros anuais, um ou mais lotes aos moradores, tanto
para moradia, quanto para diferentes tipos de negcios, criao ou cultivo. O aforamento dos
chos era o principal rendimento das cmaras, que usufruam tambm do arrendamento de
contratos, da imposio de multas, da cobrana de propinas para a participao em festas rgias
e religiosas. Rossios ou baldios eram terrenos destinados ao uso e serventia comum do povo,
pastagem do gado, corte de madeiras e lenhas e outras utilidades tidas como pblicas. O termo,
ou seja, a extenso dos chos sob a jurisdio da cmara, era delimitado a partir de um centro
geomtrico situado idealmente, embora nem sempre concretamente, sob o pelourinho, no
corao da vila. (BICALHO, 2015)
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Em relao ao arcabouo legal as vilas, cidades, ou municpios no Brasil nasceram sob a
gide das Ordenaes Manuelinas (1521) e mais tarde sob o ordenamento jurdico contido
nas Ordenaes Filipinas (1603). As Ordenaes Manuelinas estipulava em seu livro1 ttulo
XLVI, os vereadores das cidades, e vilas, e cousas que a seus ofcios pertencem,
Tanto que os vereadores comearem servir seus Ofcios ham de saber, e veer, e requerer todos
os bens do Concelho, assi propriedades, herdades,casas, e foros, se ham aproveitados como
devem, e os que acharem mal aproveitados, falo-ham aproveitar e correger.(ORDENAES
MANUELINAS).
Conforme o estabelecido pelo direito portugus as Cmaras brasileiras tinham funes
judicirias e administrativas at o advento da Lei de 1 de outubro de 1828 que deu nova
forma as Cmaras Municipais, marca suas atribuies, e o processo para a sua eleio, e dos
Juzes de Paz. A modificao mais significativa encontra-se em seu Art. 24 que estabelece
que As Cmaras so corporaes meramente administrativas, e no exercero jurisdio
alguma contenciosa, logo, deixa de exercer a funo judiciria. Mas as atribuies relativas
ao patrimnio pblico e rendas da localidade estabelecidas pelas Ordenaes foram mantidas
Com a elaborao do Cdigo Civil de 1916, (web) tem-se o primeiro ato legal a disciplinar a
pratica da enfiteuse, posto que no Ttulo III dos direitos reais sobre coisas alheia, dentre eles
destaca-se a enfiteuse, e no capitulo II dispe nos artigos 678 a 691 os modos de constituio
e extino, as obrigaes e deveres do enfiteuta e do senhorio.
O ordenamento jurdico referente enfiteuse civil e administrativa tem desde 2002 um novo
marco jurdico com a aprovao do atual Cdigo Civil brasileiro. A Lei N 10.406 de 10 de
janeiro de 2002, que instituiu o Cdigo Civil, em suas Disposies transitrias estabelece:
Art. 2.038. Fica proibida a constituio de enfiteuses e subenfiteuses, subordinando-se as
existentes, at sua extino, s disposies do Cdigo Civil anterior, Lei no 3.071, de 1o de
janeiro de 1916, e leis posteriores. As terras pblicas continuam sob a gide do Cdigo Civil
de 1916.
Em relao ao ordenamento municipal a constituio de enfiteuse est regulada pela Lei N
1520, de 05 de junho de 2013, que dispe sobre a enfiteuse e seus desdobramentos legais em
imveis inseridos no quadro foreiro do Municpio de so Francisco do sul, e em seus 27
artigos disciplina a concesso de reas dentro do quadro foreiro da municipalidade.
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A Lei 1520 em seu Art.1 estabelece que as reas de terra inseridas dentro das coordenadas
georreferencias pertencentes ao imvel de matrcula n 7.066 do Cartrio do 1 Ofcio de
Registro de Imveis da Comarca de So Francisco do Sul so, para todos os efeitos legais,
reas foreiras.
Em relao ao foro indica no Art.5. que Foro (penso) a contribuio anual e fixa que o
foreiro ou enfiteuta paga ao senhorio direto, em carter perptuo, para o exerccio de seus
direitos sobre o domnio til do imvel, ressaltando no 1 O valor do foro anual ser igual
ao valor relativo ao IPTU do imvel, contudo, para a aferio, ser considerada apenas a rea
do imvel sem qualquer construo ou cultivo, 2 O foro ser anualmente corrigido
monetariamente com base nos ndices oficiais de inflao.
Como estipulado na legislao nacional o contrato de enfiteuse perptuo (Art.8), e
transmitido por herana, sendo vedada a diviso em glebas sem o consentimento do senhorio
(Art.9)
Em relao ao pagamento do foro a Lei prev ainda a possibilidade de iseno de seu
pagamento desde que o foreiro se encaixe nas exigncias estabelecidas:
Art.24. Ficam isentas do pagamento de foros, taxas de ocupao e laudmios, referentes aos
imveis de propriedade do Municpio, as pessoas consideradas carentes ou de baixa renda
cuja situao econmica no lhes permita pagar esses encargos sem prejuzo do sustento
prprio ou de sua famlia.
1 A situao de carncia ou baixa renda ser comprovada a cada 4 (quatro) anos, na forma
disciplinada pelo rgo competente, devendo ser suspensa a iseno sempre que verificada a
alterao da situao econmica do ocupante ou foreiro.
2 Considera-se carente ou de baixa renda para fins da iseno disposta neste artigo o
responsvel por imvel cuja renda familiar mensal for igual ou inferior ao valor
correspondente a 3,5 (trs salrios mnimos e meio) salrios mnimos.
A prtica da concesso de datas de terras do patrimnio pblico pela Cmara Municipal foi
to intensa, desde o perodo Imperial, que mesmo diante da proibio pelo Cdigo Civil de
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2002 de estabelecimentos de enfiteuse, em 2013 foi necessrio uma nova regulamentao que
disciplinasse a situao do imvel do denominado quadro foreiro do Municpio.
O quadro foreiro de So Francisco do Sul
Os estudos referentes ao processo de formao da propriedade da terra em So Francisco do
Sul a partir da ocupao territorial iniciada no sculo XVI indicam que o acesso terra se
concretizou atravs da concesso de sesmarias, posse e distribuio de terras publicas1.
A distribuio de terras pblicas se efetivou como poltica de povoamento empreendida
pelas autoridades provinciais de Santa Catarina, aps a proibio em 1822 de doao de terras
devolutas pelo sistema sesmarial.
Em So Francisco do Sul as autoridades municipais, escudadas no ordenamento portugus e,
na tradio rgia da doao de gleba de terra quando da fundao de vila, ou cidade, para
compor o termo da localidade, autorizava o aforamento dos terrenos do rossio, ou baldios,
para moradia, e para diferentes tipos de negcios, criao ou cultivo.
Os arquivos pbicos da municipalidade se constituram em fontes primordiais para se
entender a dinmica do instituto da enfiteuse na constituio da poltica de terras de So
Francisco do Sul.
Para se dimensionar como a prtica do estabelecimento de contrato de enfiteuse, ou
aforamento, pelas autoridades governamentais das terras pblicas incultas contribuiu para a
ocupao territorial da localidade, um importante documento que descreve o processo de
levantamento e medio dos terrenos efetuada em 1907, que deu origem ao que se configurou
como o quadro foreiro de So Francisco do Sul, se constitui em evidncia da poltica de terras
adotada pelas autoridades municipais.
1 Em publicaes indicadas nas referencias encontram-se as minhas anlises sobre o processo de ocupao territorial de So Francisco do Sul.
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Figura 1 Restaurao da medio de 1722
O quadro foreiro de So Francisco do Sul situa-se na parte insular do municpio. No sculo
XVIII, nessa parte da localidade se instalou a administrao da Vila de Nossa Senhora da
Graa do Rio So Francisco, sua denominao inicial. As sesmarias concedidas, durante o
perodo colonial, localizavam-se no continente do territrio da localidade. No entanto, os
terrenos concedidos por aforamento no se restringiram ocupao urbana, posto que, as
datas de terras cedidas em sua maioria tinham a dimenso das sesmarias do territrio
continental. Tal ressalva se impe na medida em que a visualizao do atual mapa de
distribuio e denominao pode propiciar uma compreenso enganosa da destinao inicial
dos terrenos que compem o quadro foreiro atual, que inclui parte dos bairros de Laranjeiras,
Rocio Grande, Morro Grande, gua Branca, So Jose de Acarai, Centro e Rocio Pequeno.
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Figura 2 Quadro foreiro atual. (2017)
De acordo com o ordenamento jurdico portugus vigente poca da elevao da
Freguesia de Nossa Senhora da Graa do Rio So Francisco a condio de Vila, a
responsabilidade pelo patrimnio pblico era da Cmara, nesse sentido as Atas das
sesses se constituram em fontes que possibilitaram o registro da existncia de pedidos
de datas de terras do patrimnio daquela instituio. A partir do levantamento realizado
junto a essa fonte documental foi possvel perceber a importncia desempenhada pela
Cmara Municipal na construo da histria social da municipalidade. Infelizmente, como
os livros de Atas das Sesses da primeira metade do sculo XIX no se encontravam no
acervo da instituio, foi possvel somente o acesso aos pedidos de terras registrados nas
Atas referentes segunda metade do sculo XIX.
De acordo com o levantamento realizado nas Atas da Cmara o encaminhamento de
pedido de terras pertencentes ao patrimnio pblico se transformou em um instrumento de
acesso terra utilizado com regularidade pelos moradores da localidade. A lamentar que
nem sempre acompanhava o pedido a dimenso do terreno requerido. Porm, naqueles
11
em que consta o tamanho solicitado pelo morador possvel inferir que alguns se
destinavam prioritariamente a moradia, na medida em que o terreno recebido media cerca
de quatro braas, caso da petio de Hermelino Jorge de Linhares, de acordo com a Ata da
6 Sesso Ordinria de 1 de Agosto de 1868. Em contrapartida, na mesma sesso,
Francisco Jos de Souza pedia uma data de terras devolutas de 100 braas de frente com
70 de fundos pertencentes ao patrimnio da Cmara, e esclarecia que as ditas terras se
situavam nos fundos de terras aforadas por ele. O pedido foi deferido E na mesma sesso,
outra petio do mesmo Souza requeria 09 braas de terras devolutas que se encontravam,
tambm dentro dos marcos de outras terras de que era foreiro. Nesse sentido pode-se
observar como a cesso de terras pblicas possibilitou a concentrao de terras por parte
de alguns foreiros.
Em relao dimenso das datas de terras solicitadas, e sua similitude com as das
sesmarias concedidas no mesmo perodo na vila de So Francisco do Sul, a petio de
Joaquim Jose da Rosa, Bernadino Jose da Rosa, Joao Jose Vieira e Venncio Francisco da
Rosa em que pediam 2.500 braas de terras de frente com 500 braas de fundos, na
localidade Bananal ao sul do rio Itapoc demostra que algumas das terras cedidas eram
maiores dos que a maioria das sesmarias doadas na regio2.
Os aforamentos das terras pblicas desde o seu inicio se constituram em fonte de
rendimento para as Cmaras de Vereadores. Nesse sentido convm revisitar as
caractersticas da enfiteuse: um negcio jurdico pelo qual o proprietrio (senhorio)
transfere ao adquirente (enfiteuta), em carter perptuo, o domnio til, a posse direta, o
uso, o gozo e o direito de disposio sobre bem imvel, mediante o pagamento de renda
anual (foro).
A Prefeitura Municipal recebe os pagamentos dos foros e os registra em livros prprios. A
coleta de dados nesses livros, lamentavelmente no inclui aqueles relativos ao sculo XIX,
pois desconhecida sua localizao. Por esse motivo foram colhidas informaes de 1907
at 1925, onde possvel ter acesso as seguintes informaes: nome, nmero de braas,
local da concesso, data em que foi passado o titulo, procedncia da posse, foros anuais,
2 Ver FINDLAY, Eleide A G. Consideraes acerca da distribuio de terras na regio da Baa da Babitonga. Fronteiras.
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data do pagamento dos foros e observaes. As anotaes constantes no item observaes
indicam as transferncias de titularidade por herana, j que os contratos de enfiteuse tm
a caracterstica da perpetuidade, ou do domnio til por venda. O livro n 1 de registro de
foros tem assinalado como o primeiro registro o Foreiro: Herdeiro do finado Igncio Jose
de Sousa, terreno com 180 braas, no Rocio Pequeno, com pagamento de foro desde
18903. Essa informao refora a tese de que as terras cedidas em aforamento pela
Cmara Municipal destinavam-se a produo em terras incultas.
A exigncia da lavratura de escriturao pblica no registro de imveis, tornou os
documentos cartoriais constantes do arquivo do 1 Ofcio de Registro de Imveis Gilberto
Alves de Carvalho, da 1 Circunscrio da Comarca da So Francisco do Sul, em
importante fonte para a identificao e quantificao dos que tiveram acesso terra por
intermdio dessa modalidade disponibilizada populao da localidade.
No Registro de Imveis o livro n2 de Registro Geral encontra-se a matricula n 7.066,
com data de 14 de fevereiro de 1978, e que identifica como imvel um terreno do
patrimnio municipal de forma de trapzio retngulo, abrangendo uma rea de
18.068.325m e um permetro de 17.036,00 metros lineares, no qual so descritas as
caractersticas do terreno a partir de levantamento feito em 19 de maro de 1907 e seu
memorial de medio transcrito textualmente no documento, e conforme a planta
restaurada da medio de 1722.
A referida matrcula foi realizada em cumprimento a determinao da Corregedoria Geral
da Justia, em concluso ao parecer do Ministrio Pblico em decorrncia de um processo
de consulta feita pelo Cartrio com o objetivo de regularizar os registros dos documentos
relativos ao quadro foreiro, j que, muitas vezes havia duplicidade de concesso de
titulao de terrenos, ausncia de registro dentre outras dificuldades enfrentadas pelo
responsvel do estabelecimento.
Na certido de matricula n7. 066 existem o registro de 385 concesses de aforamento e
em cada registro tem-se o nome do foreiro, a rea da concesso e a localidade do terreno,
3 A dimenso das sesmarias doadas na regio do ncleo de So Francisco do Sul variava de 70 braas de frente a 1500 braas.
13
assim como o nmero de matrcula original da concesso. A essas informaes foram
adicionadas as constantes nas certides de matrculas, na quais consta a naturalidade,
estado civil, profisso, e a residncia do foreiro.
A existncia de um quadro foreiro georeferenciado que disciplinou e regularizou a doao
das terras pblicas pertencentes ao patrimnio da Municipalidade indica que os moradores
excludos das formas mais costumeiras de acesso terra, como por exemplo a concesso
de sesmarias, utilizadas pelos povoadores, vislumbraram na enfiteuse, ou aforamento, a
possibilidade de obteno de um terreno para a produo de sua sobrevivncia e de
acesso a propriedade de terra.
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