o dizer sobrevivente feminino: uma leitura das · irrepresentáveis entre o sofrimento e o horror....
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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020
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O DIZER SOBREVIVENTE FEMININO: uma leitura das obras de Ceija Stojka e Scholastique Mukasonga
1
THE FEMALE SURVIVOR SAYING: a reading of the works of Ceija Stojka and Scholastique Mukasonga
Frederico Vieira2
Ângela Cristina Salgueiro Marques3
Resumo: As experiências vividas por duas sobreviventes de genocídios, em diferentes
momentos históricos do século XX, são discutidas neste artigo a partir de suas
produções estéticas: telas de Ceija Stojka (1933-2013), artista pertencente à
minoria cigana romani, nascida na Áustria e sobrevivente dos campos de
concentração nazistas da Segunda Guerra; os textos de Scholastique Mukasonga,
escritora franco-ruandesa nascida em 1959 e que sobreviveu às perseguições e ao
genocídio tutsi perpetrado pela maioria de hutus, em Ruanda, entre as décadas de
70 e 90. A partir do pensamento de Emmanuel Levinas a respeito da ética do
sobrevivente e dos rostos do Feminino, procuramos “escutar” os clamores
manifestos (dizeres) nas obras dessas mulheres (ditos). E pelo olhar de Jacques
Rancière, buscamos refletir também sobre como as imagens por elas criadas
possibilitam um “fazer face a” situações de extrema violência, intoleráveis,
irrepresentáveis entre o sofrimento e o horror.
Palavras-Chave: Rostos do Feminino. Ética do Sobrevivente. Dizer e Dito.
Abstract: The experiences lived by two survivors of genocides, in different historical moments
of the 20th century, are discussed in this paper about their aesthetic productions:
paintings by Ceija Stojka (1933-2013), Romani activist painter, was born in Austria
and survivor of nazi concentration camps during World War II; the texts of
Scholastique Mukasonga, a Franco-Rwandan writer, was born in 1959 and who
survived the persecution and tutsi genocide perpetrated by the majority of hutus in
Rwanda, between the 70s and 90s. Based on Emmanuel Lévinas' thinking about
ethics of the survivor and the faces of the Feminine, we try to “listen” the claims
(the to say) in the works of these women (the sayings). And through the eyes of
Jacques Rancière, we reflect on how such images can enable a “to face off”
situations of extreme violence, intolerable, unrepresentable between suffering and
horror.
Keywords: Faces of Feminine. Survivor´s ethics. The To Say and The Sayings.
Introdução
Quando Primo Levi (1988) escreve, no prefácio de É isto um homem? que pessoas ou
povos pensam de forma consciente ou não, que cada estrangeiro é um inimigo, “em geral,
1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Experiência Estética do XXIX Encontro Anual da
Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020 2
Professor Doutor da Escola de Comunicação e Artes da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Professora Doutora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais
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essa convicção jaz fundo nas almas como uma infecção latente; manifesta-se apenas em
ações esporádicas e não coordenadas; não fica na origem de um sistema de pensamento” (p.
7). Não podemos passar incólumes a essas vozes sobreviventes dos campos de extermínio
nazistas que ecoam no tempo presente por meio de relatos vestigiais. Como afirma Walter
Benjamin (1940), em sua segunda tese em Sobre o conceito de história, “não existem, nas
vozes que escutamos, ecos das vozes que emudeceram?” (p. 223)
A experiência vivida por duas sobreviventes de genocídios, em diferentes momentos
históricos do século XX, são discutidas neste artigo a partir de suas produções estéticas: telas
de Ceija Stojka (Kraubath, Áustria, 1933 - Viena, Áustria, 2013), pintora, escritora, ativista,
pertencente à minoria cigana romani, da comunidade Lovara, nascida na Áustria e
sobrevivente dos campos de concentração e extermínio nazistas da Segunda Guerra; os textos
de Scholastique Mukasonga, escritora franco-ruandesa nascida em 1959 e que sobreviveu às
perseguições e ao genocídio tutsi perpetrado pela maioria de hutus, em Ruanda, entre as
décadas de 70 e 90. A partir do pensamento de Emmanuel Lévinas a respeito da ética do
sobrevivente e dos rostos do Feminino, procuramos “escutar” os clamores manifestos
(dizeres) nas obras dessas mulheres (ditos). E pelo olhar de Jacques Rancière, buscamos
refletir também sobre como imagens presentes na literatura e na pintura possibilitam um
“fazer face a” situações de extrema violência, intoreláveis, irrepresentáveis entre o sofrimento
e o horror.
A aproximação entre o nazismo da Segunda Guerra, seus campos de extermínio e o
genocídio de Ruanda poderia nos oferecer pistas de como, diante da impossibilidade de
nomear o horror, os sobreviventes podem fazê-lo de outro modo. Ao aproximar ambas as
experiências, identificamos relevantes aspectos que nos auxiliam a melhor compreender
como a condição humana, tão banalizada pelo horror, também pode sobrevir e sobreviver nas
produções estético-expressivas. Responder à demanda ética dos rostos daqueles que foram
violentamente eliminados, mas que permanecem a dizer nos testemunhos de quem relata, seja
nas telas, em que o verter das tintas da memória ganham formas; seja nos textos, em que o
escrever das penas palavreiam (entre)linhas.
Conforme Mukasonga (2017), em épocas diferentes, em contextos diferentes, mas,
infelizmente o fundamento é o mesmo: “a recusa do outro, a diabolização do ser humano.
Uma animalização para transformá-lo em algo, para exterminá-lo mais facilmente, sem
remorso (...) É aí que existem semelhanças. É realmente uma ideologia de extermínio e
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erradicação.” Em suma, os genocídios tutsi, judeu, cigano, indígena, das vidas escravizadas,
dos homossexuais, das minorias, e tantos outros, são dramas extremos e irmãos.
Perante outrem: rostos em proximidade
O primeiro rosto feminino sobrevivente que nos interpela é o de Ceija Stojka que fora
deportada aos 10 anos de idade para os campos de concentração e extermínio, sobrevivendo a
Auschwitz, Ravensbrück e Bergen-Belsen, juntamente com apenas cinco membros de uma
família de 200 membros. Ceija cresceu acostumada a amplos espaços abertos, a longas
viagens e trabalho no campo. Com a anexação da Áustria pela Alemanha em 1938, teve
início a perseguição aos ciganos: primeiro, os pais da artista foram obrigados a converter a
carroça em uma casa de madeira e tiveram que aprender a cozinhar no forno, em vez de em
fogo aberto; depois, os romani foram forçados a se registrarem como membros de outra
“raça”; em seguida seu pai é levado, assasinado e sua mãe recebe as cinzas do marido; sua
irmã é presa e deportada e, após algum tempo, os demais membros da família. Libertada em
1945, Ceija sobreviveu no pós-guerra vendendo tecidos de porta em porta, além de tapetes
nos mercados. Nos anos 80 mudou-se para Viena, dedicando-se à escrita, à pintura, ao canto
e ao ensino público. Somente a partir de 1986, a artista decide sair do silêncio e fazer imagem
do que sofreu, individual e coletivamente, o que derivou também em ações de fortalecimento
da comunidade romani e de reivindicação de políticas de reparação em seu país.
Sabe-se que as diversas etnias ciganas são historicamente discriminadas e perseguidas
desde o século XV no continente europeu. Durante a Segunda Guerra, o extermínio de povos
ciganos se intensificou nos campos de concentração nazistas, sendo o povo romani o mais
afetado. Tal genocídio, conhecido pela palavra porrajmos na língua de Ceija, ceifou entre 255
a 500 mil vidas naquele período. De algum modo, outras tragédias ocorridas na mesma
época, como o Shoah judaica, ofuscaram a lembrança social e política do porrajmos; além do
que, há outras questões de fundo que contribuem para certa invisibilização dos ciganos da
comunidade europeia: exclusão dos registros oficiais e seu passado transnacional e nômade; a
estereotipia e o preconceito presente no imaginário europeu que apontam os ciganos como
sujeitos não-confiáveis.
A escrita pessoal (diários), as produções visuais (desenhos e pinturas) e performáticas
de Ceija Stojka formam o conjunto de uma obra autodidata que traz até nós os clamores das
vítimas silenciadas cujas vozes expressam o profundo significado do porrajmos que se revela
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no rosto de Stojka. Nas palavras da autora, "peguei uma caneta porque tinha que me abrir,
gritar.4"
Já o segundo rosto feminino é o da escritora Scholastique Mukasonga, que nasceu no
sudoeste de Ruanda, em 1959, quando surgiram as primeiras estratégias de eliminação da
etnia tutsi. Em 1960, sua família foi deportada, juntamente com muitos outros tutsis, para
Nyamata, em Bugesera, região de mata do país, extremamente inóspita à época. Mukasonga
conseguiu sobreviver apesar das repetidas perseguições e massacres. Enfrentando inúmeras
dificuldades, a autora estudou no Lycée N-D de Citeaux em Kigali e depois cursou
assistência social em Butare. Em 1973, estudantes tutsis foram expulsos de escolas e
funcionários de seus postos, forçando a autora a se exilar no Burundi para escapar da morte.
Completou seus estudos naquele país e depois passou a trabalhar para o Fundo das Nações
Unidas para a Infância (Unicef). Chegou à França em 1992; dois anos depois, 37 membros de
sua família foram assassinados durante o genocídio dos tutsis.
Os livros de Mukasonga sempre abordam, de algum modo, questões correlatas a
Ruanda e ao genocídio tutsi de 19945. Mukasonga levou dez anos para ter coragem de
retornar ao país, em 2004. Depois da estadia em sua terra natal, escreveu seu primeiro livro,
uma autobiografia, Inyenzis ou Baratas, de 2006. A mulher dos pés descalços o sucedeu em
2008. Já o romance Nossa Senhora do Nilo ganhou o prêmio Ahmadou-Kourouma em
Genebra; o prêmio Oceans France Ô e o prêmio Renaudot, em 20126.
As três obras podem ser compreendidas com um ciclo testemunhal da autora. No
primeiro livro, Baratas, de caráter autobiográfico, encontram-se associadas memórias
individuais e coletivas dos tutsis, em que habitam as catástrofes advindas do genocídio de um
passado recente. As palavras de Mukasonga relatam as condições padecidas pela população
tutsi, vista pela maioria hutu como não humana; igualada ao lugar de animal a ser destruído.
Em Baratas a escritora sobrevive como se promessa, ao conservar a história familiar e dos
4 Epígrafe disponível em: https://www.ceijastojka.org/thefund. Acesso em: 23 fev. 2020.
5 Naquele ano, em apenas cem dias, cerca de 800 mil pessoas foram mortas no país por extremistas étnicos
hutus. Entre muitas estratégias de extermínio, os extremistas hutus tinham estações de rádio e jornais que
transmitiam propaganda de ódio, exortando as pessoas a eliminar as inyenzis (baratas), o que significava matar
os tutsis. 6 Entrevista concedida à organização da Festa Literária de Paraty (Flip) em 2017, realizada entre 26 e 30 de
julho daquele ano. O evento homenageou o escritor negro brasileiro Lima Barreto (1881-1922) e foi marcado
por forte presença de mulheres e negros. Scolastique Mukassonga participou de uma mesa “Em nome da mãe”,
com Noemi Jaffe. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KW9Gw5g_TV. Acesso em 15/2/20, às
21h8.
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terceiros, aqueles outros dos outros, comunidade da qual fizera parte e fora testemunha. Já no
romance A mulher de pés descalços, a escritora faz ouvir a voz da dor e da perda de sua mãe
Stefania, cuja memória feminina é reverenciada. Na palavras de Mukasonga (2017) “optei
por fazer um retrato de minha mãe para falar de todas as mães que foram confrontadas com o
extermínio de seus filhos”7. Em Nossa Senhora do Nilo, encontramos a ficção de meninas
jovens, inspiradas naquelas que compartilharam dolorosas experiências vividas pela autora no
Liceu Nossa Senhora de Citeaux.
As dimensões ficcional e autobiográfica presentes nas obras dessas duas mulheres
sobreviventes, narram memórias, vidas, afetos e dramas ligados a situações inomináveis. Nas
entrelinhas dos ditos femininos de Mukassonga e na plasticidade das telas de Stojka é
possível ouvir os clamores das vítimas cujos rostos nos escapam de imediato. Palavras e
imagens que, de algum modo, tornam possível um dizer feminino que faz face ao horror. A
nosso ver, Stojka e Mukasonga abrem intervalos contemplativos em uma forma de narrar e
organizar a história dos oprimidos que tende a empurrá-los ao esquecimento. A literatura e a
pintura reafirmam a “potência da interrupção” (Rancière, 2019, p.79) que reorganiza o tecido
do qual é feito o comum, nos aproximando daqueles estrangeiros que padeceram em
massacres, ofertando a chance de nos conectarmos e, assim, de responder aos outros que
nomeiam, no aparecer de seus rostos, a injustiça do apagamento.
A conexão com a experiência estética se desenha a partir do momento em que essas
duas mulheres aceitaram o desafio de produzir imagens a partir de vestígios, não para mostrar
outra face da guerra, mas para revelar o que a guerra fez às imagens, ao imaginário coletivo,
transformando, pela arte, a destruição em uma questão de destituição, mas, ao mesmo tempo,
em um intervalo pelo qual escapa, aparece e vibra o testemunho dos sobreviventes que, no
lusco-fusco de sua evidência, “transformam a paisagem do sensível, modificando o território
do pensável e do possível” (RANCIÈRE, 2019, p.86).
Femininos (sobre)viventes e a escuta levinasiana
Emmanuel Levinas também experimentou, como Ceija e Scholastique, a face anônima
do horror. O filósofo (2004) relata que, durante o período em que se encontrava prisioneiro
no campo nazista para judeus da Guarda Francesa, não se tinha nada além de uma “quase-
7 Idem item 5.
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humanidade”, posto que os condenados sem julgamento sofriam, entre tantas torturas, a pena
da denegação do rosto perpetrada pelos nazistas. A experiência influenciou sua obra,
sobretudo ao conferir à Ética o lugar da Filosofia primeira; um pensar outramente a
alteridade, ocupando-se da evasão de si em direção ao outro.
Um dos conceitos caros à filosofia de Levinas é o de testemunho que é, para ele,
revelado na subjetividade que sofre a perseguição e o martírio que não permitem que esconda
sua face. O testemunho ético levinasiano é uma revelação que não é conhecimento, não nos
dá nada em si. Há uma exposição do sujeito aquém da indiferença a si, aquilo que o filósofo
apresenta como a substituição a outrem. Não há a “unidade do um”, do eu; o um absolvido
está nu, despido de qualquer relação, de qualquer jogo.
Ao dizer “eis-me”, o rosto, que significa o Infinito, profere testemunho, vocaliza o
Infinito. E na substituição, o eu-comunicante de Levinas está literalmente sem situação, sem
morada, expulso de toda parte e de si mesmo, mas o “eu” segue dizendo:
“Eis-me” como testemunho do Infinito, mas como testemunho que não tematiza
aquilo sobre o qual ele dá testemunho, e cuja verdade não é a verdade da
representação, não é evidência. O testemunho – estrutura única, exceção à regra do
ser, irredutível à representação – só pode ser testemunho do Infinito. O Infinito não
aparece a quem dele dá testemunho. Pelo contrário, o que pertence à glória do
Infinito é o testemunho. É pela voz do testemunho que a glória do Infinito se
glorifica. (LEVINAS, 2011, p.161)
Ao dizer “glória do Infinito”, Levinas refere-se à identidade an-árquica do sujeito
desalojado; momento em que o eu, em sinceridade e doação faz sinal a outrem – por quem
sou responsável e diante de quem sou responsável. Como Levinas muito bem lembra de
Dostoievsky em Os Irmãos Karamazov: “Somos todos culpados de todos perante todos, e eu
mais que todos os outros”. Essa citação é evocada pelo filósofo justamente para introduzir a
ideia de testemunho que se dá como voz dirigida ao Infinito, palavra-conceito que acolhe a
multiplicidade dos rostos singulares.
Em De outro modo que ser, o tardio e sobrevivente Levinas (2011) também pensará o
Dizer e o Dito, e os discursos neles e entre eles forjados; a noção de Linguagem a partir da
proximidade sensível, destacada da sensibilidade subordinada ao entendimento e à intuição; a
questão da vulnerabilidade como uma condição an-áquica dos seres, situando-os a priori fora
da representação. Assim, além do conceito de Rosto, há esses outros dois conceitos-chave
para a compreensão dessa noção de testemunho. O Dito, pertencente à ordem do enunciado,
da tematização, do que se faz forma e que se apresenta, não diz o Dizer. Esse é, por sua vez,
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da ordem do impossível, do incomunicável, daquilo que o Dito não pode, na forma e
contexto, conter. O Dito trai o dizer, mas o Dizer não se trai no Dito, o atravessa. Um remete
ao outro, todavia o Dizer não se esgota no Dito. Assim, ao mesmo tempo em que o Dito
pertence à ontologia e ao conhecer, também significa pelo Dizer que lhe escapa, mas que nele
imprime vestígio, rastro, passagem.
Lê-se além das entrelinhas o que se diz; isso significa dizer, redizer e (des)dizer o que é
dito. O Dito é habitado por uma tensão que é capaz de subvertê-lo, interpondo ao tempo
linear e redutível uma diacronia que nasce perante outrem, uma vez que o tempo, para
Lévinas, é inaugurado no encontro com o outro. Daí advém que a escuta do Rosto prediz o
dito, concede por substituição voz ao dizer que segue entrelaçado e entrelaçando-se ao dito,
posto que a noção de testemunho está presente na subjetividade manifesta pelo que é
absolutamente outro, em suas infinitas formas de vida.
Na produção estética, ficcional (ou não) do sobrevivente, por exemplo, o que se diz vai
a abrir-se diante da impossibilidade do dizer tamanha dor; e nesses impossíveis rostos das
vítimas, que já não podem se fazer ouvir, e que tampouco se fazerem capturar, é a palavra, a
imagem, a forma expressiva que permite àquele que escreve, modela, pinta, tece, enfim,
aqueles que falam revelam-se nos rostos que vem testemunhar e sobreviver, ainda que os seus
ditos sejam reconhecidamente lacunares, um tanto precários perante o horror inominável.
Ao comentar o pensamento de Levinas, Sebbah (2018) afirma que, graças às
experiências de derrocada, hoje sabemos que a reconciliação com a vida que segue não pode
ser escamoteada; o sentido vem cedo ou tarde, vem desde além, e a verdade do ser humano
não pode escapar à lucidez de tal experiência destrutiva. Ainda de acordo com o autor, a
sobrevivência, todavia, não se refere ao oposto desse sujeito cativo, nem da vida à morte;
tampouco aquela sobrevida que se manifesta como gozo de quem, a despeito dos outros, será
o último a morrer. A ética do sobrevivente, em Levinas, não é piedosa: trata-se da morte do
outro e do padecer perante ela. O outro vai agonizar, vai morrer e eu não posso salvá-lo; mas
posso, no exercício do desinteressamento mais radical, sobreviver e dar testemunho de sua
morte por meio do gesto, no qual me exponho refém de seu sofrimento, perante sua dor. Ética
compassiva, mas impiedosa, posto que não posso “ajudar” o outro a (não) morrer, não há
como se evitar o padecimento.
Em uma passagem de seus escritos, Stojka nos mostra a (in)exata dimensão dessa
compaixão em que o rosto fraco do moribundo torna-se abrigo para a desolação do outro que
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por sua vez, diante do horror inominável decai da condição de salvador para a de refém da
dor de outrem:
Durante a libertação, há de se imaginar o horror dos soldados aliados quando
avistaram o campo. Um amontoado de cadáveres! Os soldados nos tocaram para
saber se éramos de verdade, se vivíamos! Não entrava em suas cabeças que
vivíamos ali, rodeados de cadáveres e que entre os mortos ainda havia gente viva.
Choraram e gritaram tanto! E coube-nos lhes dar consolo! Na verdade, sentimos
falta dos mortos após a libertação. Eles foram nossa proteção e eram pessoas.
Pessoas que conhecíamos. Nem estávamos sozinhos, porque ao nosso redor muitas
almas tremulavam. Sempre que vou a Bergen-Belsen é como uma festa. Os mortos
tremulam por toda parte. Eles saem, eles se movem, eu os percebo, eles cantam e o
céu se enche de pássaros. (STOJKA, 2019, p. 140)
Ao dar consolo aos soldados, a pequena sobrevivente também ressignifica seus mortos,
lhes dá vida por meio das asas e preenche com pássaros os céus da memória. A passagem nos
faz refletir sobre como é complexo compreender a hospitalidade ao estranho num contexto de
violência extrema, em que o assassinato e banalização do mal estão na ordem do dia. Eis aqui
um feminino palavreado que nos remete antes àquela força fraca messiânica sobre a qual nos
fala Benjamin (1994): “Se assim é, um encontro secreto está então marcado entre gerações
passadas e a nossa (...) nos foi dada, assim como a cada geração que nos precedeu, uma força
fraca messiânica, à qual o passado tem pretensão. ” (p.223)
O feminino também é pensado em Levinas, a partir da proximidade e da substituição na
relação hospitaleira com o outro, o que fundamentaria o que se entende como a
responsabilidade ética, a qual emerge inclusive nos contextos em que a hospitalidade está
fortemente ameaçada. Assim, a proximidade não se confunde somente com uma vizinhança
espacial, mas como responsabilidade que nos antecede, como outrem. O feminino levinasiano
ganha forma como gesto ético de sair de si, ou seja, representa a ação de um sujeito que sai
da segurança em de sua morada e inicia, no encontro com a alteridade radical, uma
expatriação de si mesmo; um tipo de expulsão que o conduz do Dito ao Dizer. Feminino não
como a mulher empírica - embora não possa absolutamente apartado-lo dela. Trata-se, em
suma, do gesto de acolhimento e de hospitalidade que atinge uma radicalidade essencial
profunda e “meta-empírica que leva em conta a diferença sexual numa ética emancipada da
ontologia” (LEVINAS, 1995, p. 60).
O pensador afirma, em Totalidade e Infinito (1980, p.140), que a “ausência empírica do
ser humano de sexo feminino em uma morada em nada altera a dimensão de feminidade que
nela permanece aberta, como o próprio acolhimento da morada”. O feminino, nessa
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perspectiva, se associa ao processo de avizinhamento e proximidade do outro, de acolhimento
de sua demanda e de construção de uma responsabilidade ética que desenha não só uma
possibilidade de relação com outrem, mas de individuação de si.
Segundo Menezes (2008), “o encontro com o feminino provoca um desfalecimento do
eu heróico e viril que busca incessantemente se impor diante do mundo e dos outros, para
desse modo se manter o mesmo” (p.32). Diz-se pois, da ruptura do isolamento do eu para, em
uma relação erótica com o outro, tornar possível a emergência da vulnerabilidade que
desestabiliza, desorganiza e abre espaços de contato hospitaleiro. É nesse movimento que um
sujeito, mulher ou não, pode ter a chance de ser fecundo, de sair de sua solidão para, no
encontro com o outro, não voltar a ser si mesmo e nem se confundir com a alteridade que o
expulsa de si.
Mas como ser fecundo, acolher, dar consolo ao inimigo? Ao nazista ou o hutu que
carrega consigo o ódio e que planeja estuprar e matar?
O gesto da escrita feminina de Mukasonga percorre essa difícil via de mão dupla em
que, as condições de cativa e de vítima sobrevivente se embrenham visceralmente ao útero
materno de Stefania, sua mãe que fora morta durante o genocídio ruandês, juntamente com
outros familiares da autora. Em A mulher dos pés descalços nos deparamos com essa
personagem que constitui no dia a dia como “contexto seguro” de florescimento da abertura
ao outro e aos outros de outrem. Um feminino violado, mas que (re)surge no contato com o
texto que o faz (re)viver; feminino cujo sofrimento pode se traduzir no cuidar, na manutenção
do fio do cotidiano, de tudo o que permite à vida manter sua trama e de encontrar um ritmo
viável, habitável. Feminino sem heroísmos, todavia como se sustentação e resistência para a
vida na vulnerabilidade humana, atento à dor e ao desastre.
Stefania expressa em si e na relação com as demais personagens as tensões que
acompanham o trabalho de permanência e continuidade do e no mundo, permitindo uma
(in)certa reparação dos traumas e dramas vividos nos lugares de desterro, em que as
alteridades se esgarçam, fraturam até se romperem no paroxismo da violência.
A esse respeito, nas últimas páginas da obra, a Mukasonga nos lembra que o estupro
também foi uma das armas utilizadas no genocídio, salientando que quase todos os
estupradores eram soropositivos e transmitiram o vírus do HIV às mulheres tutsis:
Nem toda a água de Rwakibirizi e de todas as nascentes de Ruanda teriam bastado
para “lavar” as vítimas da vergonha pelas perversidades que sofreram. Nem toda a
água seria suficiente para limpar os nomes que corriam dizendo que essas mulheres
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eram portadoras da morte e fazendo com que todos as rejeitassem. Contudo, foi
nelas, nelas próprias e nos filhos nascidos do estupro que essas mulheres
encontraram uma fonte viva de coragem e a força para sobreviver e desafiar o
projeto de seus assassinos. A Ruanda de hoje é o país das Mães-coragem
(MUKASONGA, 2017, p.153-4)
A escrita feminina e do feminino em Mukasonga parece-nos também inscrever aquém e
além do testemunho, o acolhimento em substituição das infinitas vozes das mulheres
emudecidas de seu tempo; e, mais amplamente, escrever como se dizer das alteridades que as
palavras são capazes de albergar, incluindo-se aí dor e morte. Palavrear que torna possível a
dignidade de uma outra (sobre)vida.
Scholastique relata, por exemplo, que ao voltar de um dia duro de trabalho do campo,
sua mãe pedia às filhas: “quando vocês me virem morta, cubram o meu corpo com um pano.
Ninguém deve ver o corpo de uma mãe”. O pedido de sua mãe tornou-se impossível, uma vez
que, das cinco filhas, a autora foi a única que sobreviveu, pois já vivia na França em 1994.
Refém na tarefa irrealizável de acolher e envolver o corpo de outrem – uma mulher de quem
o próprio corpo se originou – mas que agonizou à distância, que morreu e que não se pôde
salvar.
Não cobri o corpo da minha mãe com o seu pano. Não havia ninguém lá para cobri-
lo. Os assassinos puderam ficar um bom tempo diante do cadáver mutilado por
facões. As hienas e os cachorros, embriagados de sangue humano, alimentaram-se
com a carne dela. Os pobres restos de minha mãe se perderam na pestilência da vala
comum do genocídio, e talvez hoje, mas isso não saberia dizer, eles sejam, na
confusão de um ossuário, apenas osso sobre osso e crânio sobre crânio. (p. 7)
As palavras de uma escrita sobrevivente teria permitiriam como se uma reparação para
a despedida irrealizada; cumprir em certa medida, mas não na medida certa, o dever que todo
ser humano deve e pode: viver o luto de outrem. Segundo Butler (2004),
O luto não é uma situação solitária, privatizada, mas fornece um senso de
comunidade política de uma ordem complexa, traz à tona os vínculos relacionais
que possuem implicações para teorizarmos a dependência fundamental e a
responsabilidade ética.(2004, p.22).
Numa relação de extrema delicadeza e força, a mortalha da mãe Stefania é também a da
filha Scholastique, rostos em substituição. Mortalha, palavra que se encarna no corpo
presente, o qual hospeda a maternidade e que vela filialmente pelo eloquente silêncio da
vítima fatal, silêncio a ser escutado.
Assim, o (im)possível gesto de cobrir o corpo, faz fazer os ditos do luto, corpo que
escreve. E a autora sobrevivente também dá passagem, no entrelaçar dos fios dessa mortalha,
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aos dizeres tutsis de seus antepassados, dos terceiros, das vítimas do genocídio ruandês. A
obra palavreia a voz feminina e materna.
Nas palavras de Mukasonga, revela-se o corajoso Rosto sobrevivente de Stefania,
aquele que nos hospeda diante do inominável e que prossegue nessa coragem. A Stefania de
Mukasonga corporifica como linguagem o testemunho do porvir dessas mulheres ruandeses
em que o feminino faz morada, profetiza e, na condição messiânica benjaminiana, “salva” em
grande medida a vida da comunidade.
O fazer face a nas imagens: a perspectiva de Rancière
A questão da responsabilidade ética, que se constitui pelo signo do Feminino, encontra,
contudo, seu avesso na denegação do rosto – moeda corrente presente das duas experiências
de genocídio sobre as quais refletimos. Primo Levi apud Sebbah (2009) lembra que os
carrascos nazistas se referiam aos prisioneiros como “sem-rostos” (sans visage) ou que “não
eram suceptíveis de serem levados em consideração” (inenvisageables). De forma
correspondente, ao tratar do totalitarismo stalinista, Levinas dirá que a nuca, as costas são um
rosto, evocando a imagem das filas de espera formadas pelos prisioneiros políticos diante da
sede do KGB em Moscou (descritas por Vassili Grossman).
Butler (2011), em seu texto Vida Precária, também retomará esse mesmo exemplo para
definir a catacrese do rosto, apresentado no choro, nos soluços e gritos das costas humanas,
do movimento do pescoço e omoplatas que esperavam na fila. Assim “o rosto parece ser uma
forma de som, o som da linguagem evacuando seu sentido, o substrato sonoro da vocalização
que precede e limita a entrega de qualquer significado semântico.” (p. 18)
Essa visão de Levinas sobre a alteridade revelada no chamado do rosto pelo seu avesso,
ainda de acordo com o comentário de Sebbah (2009), remete àquilo que Hanna Arendt chama
de “desolação” resultante do totalitarismo como “perda da ipseidade, “perda de si mesmo” na
perda de qualquer relação autêntica com Outrem: em termos levinasianos, poderíamos falar
de ameaça de um há sem rosto” (p. 194) A noção de “desolação” é aqui atravessada pelo
tremor que a violência ética promove na negativa do rosto de outrem por aquele que detém e
maneja o poder de vida e morte sobre o outro subalternizado. Talvez o sentido mais amplo de
rosto e da responsabilidade que me concerne – a mim, que o outro evoca em sua exposição –
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possa também ser acolhido em uma outra humanidade, apesar de todo horror, da exposição da
vida nua do extermínio dos povos subjugados.
Ceija Stojka (2019, p. 100) anotou no verso (nuca) de uma de suas obras que “em
Birkenau não havia igreja. Sim, eu e todos nós sabíamos que somente os SS tinham todo o
poder sobre nós. Sim, claro, os SS também eram pessoas”. Apesar de tudo, a artista
reconhece que a violência padecida pelos ciganos fora praticada por militares tão humanos
quanto qualquer um de nós, o que nos faz de saída, eticamente responsivos, mesmo por
aquilo que não podemos ver, representar. Na catacrese dos rostos das vítimas que atravessam
o campo visível da obra de Stojka, a banalidade do mal se anuncia não como algo
monstruoso, mas decorrente de nossa demasiada humanidade. Por isso a necessidade de fazer
face à violência e responder, tornar visível aquilo que o horror tenta paradoxalmente
camuflar: os nazistas são humanos como nós. Qualquer um de nós poderia chegar a cometer
tais crimes? Estamos, de saída, implicados nessa questão.
Quando olhamos para uma tela ou um desenho de Ceija Stojka somos provocados, de
forma inescapável, a restituir outramente a dignidade a esses “sem-rostos”, a considerá-los, a
trazê-los para o visível. A partir de Stojka, de seus olhares e de suas obras, as imagens
pintadas, visíveis, constituem algo que está dentro-fora do regime da representação do
humano. Pois é na disjunção entre o que se representa visualmente e o que me fala quando
faz ressoar a pele do tímpano e da retina, que a significação do rosto que me visita transcende
o mostrado, para-além do jogo da representação.
O reconhecimento dessa dimensão do rosto em sofrimento, manifesto na imagem, ou
mais propriamente, dos vestígios de sua passagem pelas expressões de sofrimento narradas
entre formas e cores, é possível quando quem vê é implicado na/pela imagem.
Isso se aplica, inclusive, à forma como Ceija concebeu e produziu suas obras: tintas
foram guiadas não somente por pincéis, mas também diretamente com os dedos, ou por
instrumentos não convencionais, como palitos de dente. Trabalhando com “tudo o que fica
entre os dedos", Stojka também experimentou potes de vidro, cartões postais e massa de sal
em suas produções. São quadros de cores vivas, em que os traços intensos conformam a
energia que reverbera, oriunda das alteridades romani. Se alguns críticos identificam
influências do expressionismo alemão e da arte folclórica em seus trabalhos (dimensão
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representativa), interessa-nos ainda mais a dimensão testemunhal, das relações que se
(re)inventam a partir do feminino que fala nas imagens, ultrapassando “classificações” de
estilo.
Nesse sentido, Rancière traz importantes contribuições sobre o pensar a imagem
naquilo que aqui chamamos de fazer face ao clamor, às demandas éticas que o dizer faz ecoar
no campo do sensível, daquilo que se imagina, do que se torna imagem.
Massacres se transformam em alguma coisa quando se tornam uma imagem –
assumindo o lugar em que um dado visível era esperado – e, a partir desse
momento, podemos afirmar que toda a cena de visibilidade e de invisibilidade de
um massacre torna-se completamente transformada (RANCIÈRE, 2019, p.72)
De outro modo e perante às ideias de Levinas, Rancière (2007) nos diz que a imagem
pode ser percebida também como trabalho, como construção de relações e articulações novas
que inventam possibilidades outras de aparecimento e transformação das formas, das vidas e
do comum. Para Rancière (2012), tais “relações novas” derivam da reconstituição da rede
conceitual que torna um enunciado pensável e que modifica as condições de seu
aparecimento. O trabalho da imagem consiste em produzir um arranjo, um reenquadre, uma
reorganização de formas perceptivas dadas, uma recomposição da ordem que sustenta uma
dada narrativa, uma ficção.
Por conseguinte, o que interessa a Rancière (2009, p.283) não é a oposição entre real e
ficcional, mas entender como o trabalho da ficção busca um modo de enquadrar e pensar
enunciados, objetos e acontecimentos “em termos de multitemporalidade, de plots
entrelaçados”. O que ele propõe é olhar para as formas tradicionais de escritura da história –
as formas de apresentação das situações, de construção das relações entre causa e efeito ou
entre antecedente e consequente, questionando os formatos tradicionais e hierárquicos de
visibilidade e inteligibilidade.
Partindo desta definição, as imagens não se reduzem a uma realidade visual, mas a
um modo de construir um mundo, de produzir aparências antes interditadas, formas
que rejeitam a ordem dominante e que tecem um outro “em comum”: não aquele
que existe em si mesmo e por meio de si, mas um comum que se cria no movimento
a partir do qual é posto em questão (CALDERÓN, 2018, p.136).
Não se trata de, via imagens, escavar o real para que verdades apareçam, mas mover
imagens já existentes para que outras figuras se componham e decomponham com elas.
Ao afirmar a imagem como o resultado de operações, de relações e de alterações sobre o
sensível, Rancière (2019, p.35) localiza o início desse trabalho por ela realizado antes mesmo
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que exista algo de concreto a ser visto. Entendemos que há uma espécie de gestação fecunda,
de algo que cresce na imagem uterinamente, e anteriormente ao visível, construção em que
um duplo agenciamento é revelado:
De um lado, a imagem é uma maneira de ligar uma forma visível a outra, de ligá-la
a um enunciado dizível, a uma certa estruturação do tempo, um certo lugar no
espaço, a modos de percepção e de interpretação. De outro lado, tentei mostrar os
limites da operatividade da imagem, pois a imagem não é simplesmente o produto
de uma operação ou algo fabricado: é também algo que resiste justamente à vontade
daquele que produziu a imagem e que deseja que ela produza tal modo de recepção,
tal olhar, tais afetos e tal forma de interpretação (RANCIÈRE, 2019, p.36).
FIGURA 1 – Ceija Stojka. Gefangennahme und Abtransport [Detenção e Deportação], 1995. Acrílico sobre papelão, 70 x 100 cm. Museu de Viena, Viena.
FIGURA 2 - Ceija Stojka. Sem título, s. f. Acrílico sobre papel cartão, 50 x 70 cm. Coleção Hojda y Nuna Stojka, Ceija Stojka International Fund, Viena.
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FIGURA 3 – Ceija Stojka. Z 6399, 1994. Acrílico sobre papelão, 70 x 100 cm. Coleção particular, Paris.
FIGURA 4 – Hinter Stacheldraht [Atrás do arame farpado]. Óleo sobre cartão 70 x 100 cm. Wien Museum, Viena.
FIGURA 5 – Die Ravensbrückerinnen, 1944 [As mulheres de Revensbrück, 1944]. Acrílica sobre tela 60 x 59,5cm.
Coleção Particular, Paris.
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Essa dimensão performativa da imagem alcança terreno propício para emergir quando
tematizada sob a forma da cena dissensual. Assim, a imagem produz arranjos que se
articulam como “cena que captura conceitos em operação, em sua relação com os novos
objetos que buscam apropriar, velhos objetos que tentam reconsiderar e os padrões que
constróem ou transformam para este fim” (RANCIÈRE, 2013, p.11). Elas fabulam, “um
visível no campo da experiência que modifica o regime de visibilidade” (CALDERÓN, 2018,
p.148).
Enquanto cena, a imagem articularia uma forma polêmica de reenquadrar o comum,
subvertendo uma dada distribuição do sensível a partir da criação de um lugar polêmico. A
ficção presente na arte e na literatura fabulam, assim, outras maneiras de identificar os
acontecimentos e os atores e outras formas de articulá-los para construir mundos comuns e
histórias comuns em cenas dissensuais. Como Rancière explica, a cena de dissenso é a
escolha e a ordenação ficcional de uma singularidade a partir da qual se pode “fazer aparecer
o que não aparecia, ou de fazer aparecer de forma diferente o que aparecia sob um certo
modo de visibilidade e inteligibilidade.” (2018b, p.14)
Especialmente no trabalho de Stojka, habitam cenas de dissenso cujas narrativas visuais
fazem contrastar a paisagem bucólica de um prado verdejante em cores vivas, à mortífera
chegada de militares nazistas (fig. 1). Também vemos nessa imagem a detenção de uma
família que será levada aos campos de concentração em vagões de transporte de gado (fig.2).
O relato das telas está carregado de tintas, saturado pelas pinceladas que subvertem uma
pretensa alegria que uma cena colorida e cotidiana poderia dar a ver. Ao contar outramente
momentos críticos de sua trajetória, nos quais elementos simbólicos como pássaros e arames
farpados evocam o horror diante da dor vivenciada por seu povo nos campos, a artista fabula
o irrepresentável e desacomoda o olhar eventualmente distraído, permitindo que nós façamos
outras leituras improváveis do acontecido, que ela nos (re)apresenta mais de quarenta anos
depois, a partir da condição feminina e sobrevivente.
Stojka também nos mostra a típica marca inscrita sob a pele (fig.3), signo da
contabilidade do extermínio, demarcada no contraste sanguíneo entre as massas de cor preta,
branca e vermelha, assinalando o traço da não-humanidade e da condição “matável” em que
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os nazistas impuseram aos corpos esvaziados de sentido, ao mesmo tempo postos a nu e
silenciados.
Finalmente os rostos das mulheres vítimas dos campos são albergados em outras duas
telas. Na primeira (fig.4), a mãe de joelhos, com uma criança no colo, nos olha suplicante,
clamor silencioso por compaixão; a paisagem está coberta por nuvens cor de chumbo, talvez
enfumaçadas pelas chaminés chaminés dos crematórios dos campos de extermínio. A
imobilidade cinzenta está interditada por uma cerca de arame farpado que atravessa o olhar;
ao fundo a lembrança dos pássaros que, como se almas, testemunham o genocídio. Eis a
coloração e os ditos de uma maternidade cigana que diz exatamente pelas bordas da imagem,
trespassando o visível no dizer das infinitas mães e crianças mortas nos campos.
Na segunda imagem (fig.5), uma alusão à Les Demoiselles d'Avignon, de Picasso, de
1907. Considerada uma das obras responsáveis por revolucionar a história da arte, formando
a base para o cubismo e a pintura abstrata, o quadro foi incompreendida até mesmo pelos
amigos do pintor à época. Em Die Ravensbrückerinnen o incompreensível é a matéria-prima
para Ceija que dá forma a outras mulheres, que se deslocam do bordel de Picasso para os
campos de extermínio. Mas em ambas situações, os corpos apresentam linhas irregulares,
embora as arestas cubistas sejam substituídas pelas curvas e cores de Ceija que se embrenham
umas nas outras, enfeixando os volumes sobrepostos, um corpo coletivo do qual se elevam
indícios do Feminino, como mantos, saias, lenços, faces, braços contorcidos e entrelaçados.
Poderíamos dizer que as imagens ficcionais criadas pela literatura de Mukasonga e
pelas telas de Stojka reintroduzem em um dado “mundo comum”, pessoas que estão à
margem e que são sobreviventes de múltiplas perdas e violências. A escritura e a pintura não
fazem isso sob uma forma de “imposição” do ficcional sobre o real, mas ficcionalizando e
fabulando “o que estava indexado sob o registro do único real possível, apresentando a esse
real ordinário e já consensual uma desieraquização e uma possibilidade outra de aparecer”
(RANCIÈRE, 2019, p.55). Os ardis de Stefania para escapar ao “único real possível” são
fartamente revividos nos episódios narrados por Mukasonga:
Mamãe nunca estava satisfeita com seus planos de sobrevivência. Sempre ficava
pensando em como melhorar a camuflagem, em como construir outros refúgios. (...)
Todos os dias, ela dava um jeito de trapacear o destino implacável a que, por
sermos tutsis, estávamos condenados. Seus filhos continuavam vivos, estavam ali
ao seu lado. Ela tinha conseguido evitar a morte. Ela olhava para nós três, Julienne,
Jeanne, Scholastique. Naquela noite estávamos vivas. Talvez não houvesse outras
noites (MUKASONGA, 2017, p.15 e 20).
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O testemunho elaborado por essas duas mulheres sobreviventes cria um tecido sensível
novo, no qual elas tomam parte e aparecem registradas em uma história comum, exercendo o
trabalho direto no próprio gesto de contar uma história que também é delas. Ambas afirmam,
assim, sua igual capacidade de narrar e de deslocar os enunciados hegemônicos, contrariando
uma hierarquia e afirmando cenas ficcionais e polêmicas que remontam o real consensuado
construindo momentos nos quais a indecisão para julgar suplanta a certeza das verdades
controladas. A imagem como cena produz momentos de rêverie:
Momentos que explodem, dinamitam o tempo continuo, o tempo dos vencedores:
permitindo a abertura de um outro tempo, um tempo comum, nascido nas brechas
operadas no primeiro: não um tempo do sonho que faria cair no esquecimento o
tempo sofrido ou projetaria um paraíso em devir, mas um tempo que se apresenta
outramente, confere um peso diferente a tal instante, o conecta a um tal outro
articulando outros instantes (RANCIÈRE, 2018c, p.36).
O tempo da rêverie é proporcionado pelas obras de Mukasonga e Stojka quando nos
ofertam um momento de contemplação no qual se pode descobrir um modo tecido temporal
cujos ritmos não são definidos por objetivos preexistentes, mas permitem a fabulação errante,
tentativa acionada pelo como se das narrativas que se abrem à experimentação.
A cena de dissenso promove, assim, outras possibilidades de arranjos e articulações
entre temporalidades e espacialidades de modo a alterar a dinâmica do aparecer dos sujeitos e
dos acontecimentos, reorganizando o campo do visível e retirando-o de uma ordem
hierárquica. A situação presentificada pela cena revela uma construção de pensamento que
aparece como um tipo de corte instantâneo na partilha do sensível. É como se disséssemos:
em um dado contexto, eis o que é visível e, como consequência, o que é pensável.
A noção de cena comporta duas ideias: aquela de um corte e aquela de uma certa
arquitetura do que é dado. Um corte ou uma divisão primeiro: o método da cena é
um princípio de emancipação intelectual que se opõe ao princípio embrutecedor da
explicação que remete cada fato singular a um processo global do qual não podemos
jamais apanhar em sua totalidade. A cena constitui um todo por ela mesma. Depois,
a cena dá a ver uma certa estruturação do perceptível e do pensável. A questão é: o
que é dado a perceber? Que lugar possuem os indivíduos que são dados a ver nessa
arquitetura? (RANCIÈRE, 2019, p.49)
De alguma maneira, a construção da cena dissensual se apoia na montagem de um
dispositivo que “regula o estatuto dos corpos representados e o tipo de atenção que merecem”
(RANCIÈRE, 2012, p.96). Trata-se de uma aproximação marcada pela correlação de uma
subjetividade que se manifesta a partir do olhar de uma pessoa “real” – no caso aqui em
análise, do testemunho de duas mulheres sobreviventes. Trata-se também de uma vocalização
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que evidencia a fenda aberta pelo brilho do “momento qualquer”, do “desmedido momento”
na organização da narrativa histórica que apaga e silencia as vidas precárias.
Argumentamos que uma das dimensões da política das imagens estaria na
possibilidade de produzir “sequências verbais, qualificações, um teatro de denominações ou
um teatro de palavras que, ao mesmo tempo, cria uma certa cena do visível e do pensável”
(RANCIÈRE, 2019, p.83). A questão que se apresenta diante de nós agora é “qual tipo de
operação vai mudar essa distribuição do visível e do pensável? Qual operação pode mostrar
às pessoas sobre uma cena que é aquela de sua própria capacidade de viver em um
determinado mundo? (RANCIÈRE, 2019, p.50).
Acreditamos que as imagens criadas por Mukasonga e por Stojka podem oferecer a
chance de perceber os intervalos necessários a uma despossessão que nos distingue e conecta
com a alteridade radical dos rostos que conosco fabulam um comum possível, justamente
porque poroso às vulnerabilidades e experiências que, ao mesmo tempo nos individuam e nos
avizinham.
Considerações finais
Ao nos aproximarmos dos rostos femininos sobreviventes presentes nas obras de Ceija
Stojka e Scholastique Mukasonga, buscamos refletir sobre como seus textos e telas, sejam
(im)possíveis ou (im)prováveis, revelam-se como comunicação que faz das palavras e
imagens (ditos) albergue para as vozes (dizeres) das vítimas silenciadas no extermínio,
sobretudo das mulheres. Obras que se avizinham em desinteressamento de si-para-outrem
como se testemunho próximo da alteridade alcançada pelo Terceiro; comunicação do
palavrear e imagear sensíveis que inauguram o tempo da relação face a face entre os ditos que
dela derivam e que, finalmente, gestam uterinamente a exposição, a excuta do que está aquém
e além do que se mostra no visível, mas que se in(e)screve rumo ao terceiro.
Como vimos, a ética do sobrevivente, em Levinas, não é piedosa: trata-se da morte do
outro e do padecer perante ela. O outro vai agonizar, vai morrer e eu não posso salvá-lo; mas
posso, no exercício do desinteressamento mais radical, sobreviver e dar testemunho de sua
morte por meio do gesto, no qual me exponho refém de seu sofrimento, perante sua dor. Ética
compassiva, mas impiedosa, posto que não posso “ajudar” o outro a (não) morrer, não há
como se evitar o padecimento.
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Rancière (2012), por sua vez, ao desenvolver o conceito de imagem intolerável, afirma
que a elaboração do testemunho resulta de uma batalha travada com a dimensão da
impossibilidade de representação do trauma. Como traduzir um trauma em palavras, em
imagens? A partir desse olhar, um testemunho seria menos o relato dos acontecimentos
traumáticos e mais as maneiras de evidenciar as dificuldades de produzir esse relato, uma vez
que os acontecimentos resistem à apreensão e os espectadores também resistem à sua
compreensão. A necessidade das imagens apesar de tudo, para retomar o título do livro de
Didi-Huberman sobre as imagens fotográficas feitas por judeus que resistiram ao Holocausto,
é salientada por Rancière ao considerar que “quando a voz cessa, é a imagem do rosto sofrido
que passa a ser a evidência visível daquilo que os olhos da testemunha viram, a imagem
visível do horror do extermínio” (2012, p.91).
Para Rancière, o intolerável da imagem relaciona-se à montagem de um dispositivo de
visibilidade capaz de localizar e de enquadrar a vítima dentro de uma dimensão do visível e
do sensível que lhe confere esta ou aquela possibilidade de ser apreendida, esta ou aquela
legibilidade e inteligibilidade. No caso dos trabalhos das duas artistas aqui analisados, é como
se elas redefinissem a ordem do sensível habitual na qual costumam emergir os corpos
devastados pelos horrores da guerra e nos apresentassem um exercício de fabulação que
contraria o encadeamento de causas e efeitos, a previsibilidade, a relação entre o que estaria
previsto e o que de fato acontece, criando uma fábula experimental e dissensual, ou uma
rêverie desdobrada pela cena polêmica e seus arranjos destabilizantes.
Ceija e Scholastique nos revelam não apenas suas “pequenas vidas”, mas também a
delicada tarefa de construção dessa linguagem-mortalha que não só cobre femininamente,
com palavras desconhecidas, os corpos das mães amadas, mas também que assumem as cenas
de dissenso como abrigo e espera por tantos outros romanis, tustis expostos às violências do
mundo.
Scholastique, em particular, substitui Stefania numa espécie parto às avessas em que,
mais uma vez a escrita, as palavras, a permitiram tecer outramente uma mortalha para cobrir
o corpo de sua mãe. Linha a linha, o texto tece o (im)possível manto que, a seu modo,
devolve outramente um rosto ao corpo anônimo, da vida nua, matável, não passível de luto
de sua mãe. E de tantas outras e infinitas mães e filhas que também, na glória ao Infinito,
carregam nos ditos femininos que atravessam an-aquicamente a escritura.
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O trabalho de Ceija, a seu turno, atua na produção de imagens dissensuais em que a
cena exposta destaca o gesto de “jogar com a ambiguidade das semelhanças e a instabilidade
das dessemelhanças, operar uma redisposição local, um rearranjo singular das imagens
circulantes” (Rancière, 2012, p.34). Ao anotar no verso das telas, “nucas” das obras, textos
que remontam às experiências padecidas nos campos, Stojka opera uma espécie de catacrese
dos rostos ciganos vitimizados pelos nazistas, subverte os modos de aparição, as coordenadas
do representável. Suas formas de sua enunciação alteram quadros, ritmos e escalas,
proporcionando novos modos de apreender o visível e suas significações. As imagens de
Stojka perseguem o “desmedido momento”, transformam e reenquadram, mesmo que
precariamente, as fórmulas estéticas que nomeiam “os universos de experiência a partir dos
quais se definem o consenso policial ou o dissenso político.” (Rancière, 2006, p.163).
Assim, para que textos e imagens façam face à violência, que usualmente remetem
alteridades femininas à subalternidade e revitimização, são necessários lampejos e curto-
circuitos que interrompam a linearidade de uma possível história sobrevivente que também
pode ser sob narrava, no audível e no visível, pelo viés da superação das adversidades, dando
força a uma ideologia meritocrática. Em lugar de discursos de causalidade, de silenciamento
ou de apagamento das sutilezas e texturas das experiências das mulheres, é preciso encontrar
os relatos que permitem uma aproximação, um avizinhamento mais demorado entre quem
ouve e vê e a alteridade presente na imagem e na escritura. Imagens de avizinhamento
despertam no espectador novos modos de percepção da imagem, do texto, dos corpos e das
múltiplas espacialidades e temporalidades da cena a partir da qual figuram e se erguem os
rostos que nos interpelam.
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