o estatuto da psicologia - vladimir safatle

74
Curso Integral O estatuto da psicologia 2007 (12 aulas) Curso ministrado no Instituto de Psicologia Universidade de São Paulo Prof !ladimir Safatle

Upload: modolole

Post on 05-Oct-2015

38 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

O Estatuto Da Psicologia - Vladimir Safatle

TRANSCRIPT

Epistemologia das cincias sociais

Curso Integral

O estatuto da psicologia

2007 (12 aulas)

Curso ministrado no

Instituto de Psicologia

Universidade de So Paulo

Prof. Vladimir Safatle

O estatuto da psicologiaAula 1

Uma questo de mtodo e de objeto

inevitvel que, ao propor-se como teoria geral da conduta, a psicologia faa sua alguma idia de homem. Faz-se necessrio ento permitir filosofia perguntar psicologia de onde ela retira tal idia e se no seria, no fundo, de alguma filosofia. Esta questo de mtodo enunciada por Georges Canguilhem em um texto clebre a respeito dos fundamentos epistemolgicos da psicologia servir de base para o desenvolvimento de nosso curso.

Trata-se aqui de apresentar uma certa tradio de reflexes sobre o estatuto epistmico da psicologia, da psicanlise e das cincias mdicas que se desenvolveu em solo francs principalmente entre os anos vinte e sessenta do sculo passado. Tal tradio, embora no seja, no sentido forte do termo, uma Escola (j que era composta por pensadores cujos programas de pesquisa eram bastante autnomos entre si), foi marcada por uma partilha de problemas e de dispositivos de crtica determinantes para a constituio de um modo particular de encaminhamento de questes derivadas da tentativa em fundamentar prticas clnicas. Pois no interior desta tradio encontraremos a defesa de que as prticas clnicas, principalmente aquelas prprias aos fatos psicolgicos, seriam dependentes, de maneira fundamental, de decises prvias e muitas vezes no tematizadas a respeito dos padres de racionalidade da observao, da interveno teraputica e, principalmente, da definio do objeto prprio psicologia. Neste sentido, seguindo a afirmao de Canguilhem, a reflexo epistmica sobre a psicologia seria, necessariamente, uma reflexo sobre a maneira com que uma certa antropologia filosfica guiaria, de forma insidiosa, a racionalidade da direo do tratamento. Como se a psicologia fosse, a todo momento, remetida a uma raiz metafsica a respeito da qual ela no seria capaz de se livrar. Raiz metafsica que nos colocaria diante da necessidade em responder uma pergunta maior, a saber: uma prtica clnica pode abstrair de pr, em seu horizonte de racionalidade, uma concepo de sujeito que se desdobre em uma teoria da conduta racional, base da definio do que se define como patologia mental ?

A tradio de reflexo a qual me refiro nunca deixou pois de colocar, clnica dos fatos psicolgicos, duas questes maiores: o que fundamenta seu mtodo de observao,de interveno e o que particulariza seu objeto, ou seja, em que condies podemos dizer estarmos diante de um fato psicolgico que pode ser reportado a um sujeito? Uma questo de mtodo e uma questo vinculada ao estatuto de seus objetos que converge para um problema central que guiar o desenvolvimento do nosso curso, a saber; qual o estatuto da objetividade dos fenmenos subjetivos? Seria ele dependente da objetividade prpria aos fenmenos fsicos e orgnicos? Ou ainda: h, de fato, algo como fenmenos subjetivos ou eles nada mais so do que fenmenos orgnicos descritos em um vocabulrio inflacionado do ponto de vista metafsico? Como dir Michel Foucault, na primeira frase que abre seu primeiro livro, Doena mental e psicologia: Duas questes se colocam: sob quais condies pode-se falar de doena no domnio psicolgico? Quais relaes possvel estabelecer entre os fatos da patologia mental e os da patologia orgnica?. Estas questes esto no horizonte de toda e qualquer reflexo epistmica sobre as prticas clnicas de fatos psicolgicos.

Algum que ouve questes desta natureza, poderia tentar esvazi-las afirmando que aquele que se interessa pela clnica no precisa perder seu tempo tentando resolver intrincadas questes filosficas sobre a essncia do sujeito, assim como questes epistemolgicas a respeito da objetividade de fenmenos subjetivos. Pois a clnica mediria sua correo a partir da eficcia em relao cura do sofrimento. Esta profisso de f da soberania da clnica nos lembraria: para alm de toda e qualquer questo de mtodo e de definio de objeto, a clnica est sempre diante de uma realidade inabalvel, a saber, o sofrimento do paciente. Minorar o sofrimento nossa funo e o nico critrio de orientao da clnica. Um pouco como se a eficcia teraputica em relao a uma categoria fenomnica extremamente normativa como o sofrimento fosse condio suficiente para assegurar a validade de dispositivos clnicos.

Lembremos apenas o que tal perspectiva tem de ideolgica. Pois ideolgico todo sistema de saber e de orientao da praxis que procura naturalizar seus dispositivos de justificao como se estivssemos diante de fatos que falam por si mesmo. Neste sentido, podemos perguntar: afinal, o sofrimento um fato que fala por si mesmo ou um fenmeno que levado a falar no interior de contextos scio-histricos determinados? Podemos, por exemplo, tirar as conseqncias de afirmaes como esta, de Foucault: Desde o sculo XVIII, a medicina tem tendncia a narrar sua prpria histria como se o leito dos doentes tivesse sido sempre um lugar de experincias constante e estvel, em oposio s teorias e sistemas que teriam estado em permanente mudana e mascarado, sob sua especulao, a pureza da evidncia clnica. Na verdade, tudo se passaria como se: Na aurora da Humanidade, antes de toda crena v, antes de todo sistema, a medicina residia em uma relao imediata do sofrimento com aquilo que alivia. Tal pressuposio de imediaticidade, no entanto, esquece como o que nos faz sofrer muda constantemente de configurao. Poderamos tentar dizer que a experincia da dor algo que ancora o sofrimento em um solo inquestionvel e indiferente a contextos. Mas, novamente, no seria difcil lembrar como no h nenhuma relao imediata entre a dor fsica e o desprazer de um sofrimento vivenciado como doena que leva sujeitos a se submeterem clnica. Basta lembrar aqui das palavras de um psiclogo, Nietzsche: S a grande dor, esta longa e lenta dor na qual queimamos como madeira verde nos obriga, a ns filsofos, a descer em nossas profundezas e a nos desfazer de toda confiana (...) Duvido que tal dor nos deixe melhor, mais eu sei que ela nos aprofunda

Sendo assim, se aceitarmos a inconsistncia de um discurso sobre a soberania da clnica que procure se legitimar atravs de uma pretensa imediaticidade do sofrimento, ento poderemos comear a medir a importncia de questes vinculadas ao mtodo e a definio do objeto da clnica dos fatos psicolgicos.

No interior da tradio que estudaremos, as respostas a tais questes foram distintas e nem sempre convergentes. No entanto, elas constituiro um sistema de relaes no qual respostas posteriores nunca deixaro de fazer referncia, mesmo que de maneira relativamente implcita, as respostas precedentes. a este sistema de relaes dialgicas onde a resoluo de um problema sempre, ao mesmo tempo, posio em relao a um modo precedente de enunciar tal problema, que damos o nome de tradio.

Georges Politzer, Maurice Merleau-Ponty, Georges Canguilhem, Michel Foucault, Jacques Lacan. Todos estes nomes fazem parte de uma tradio de reflexo sobre a clnica dos fatos psicolgicos que marcou, de maneira decisiva, o cenrio intelectual francs. ela que ser nosso objeto de estudos neste semestre.

Em comum, tais nomes partilham uma base terica que parte, em maior ou menos grau, da sensibilidade s questes epistmicas postas clnica pelo advento da psicanlise freudiana e da Gestalttheorie (e, em alguns casos, pelo behaviourismo). Sensibilidade que os levam a questionar todo privilgio dado noes como vida interior e introspeco, a criticar toda perspectiva atomstica na compreenso dos fatos psicolgicos e todo materialismo reducionista, isto em prol da defesa do centralidade das relaes entre organismo e meio ambiente, entre sujeito e meio social. A Gestalttheorie teria demonstrado como o fato psicolgico no era a simples percepo de dados sensoriais, mas um ato de conhecimento que implica a atualizao de estruturas globais de orientao da conduta, o que, como veremos, significa deslocar o objeto de preocupao da psicologia, da anlise atomizada das funes intencionais (como, por exemplo, ateno, memria, emoo, sentimento, volio etc.) para as estruturas que determinam o modo global de relao entre indivduo e meio. A psicanlise, por sua vez, teria sido responsvel no apenas pela desmedicalizao das prticas clnicas atravs da compreenso da fora performativa da fala e da auto-reflexo, mas principalmente pela determinao dos sintomas como modos de manifestao de demandas sociais de reconhecimento que revelam processos de formao da histria do desejo de um sujeito com suas representaes maiores de confronto com instncias de socializao. Como se a psicanlise exigisse a submisso de toda direo do tratamento a uma elaborao de processos de formao subjetiva.

Por outro lado, todos eles esto tambm engajados em um combate sem trguas contra o que aparece como uma falha epistmica aberta no corao da clnica dos fatos psicolgicos. Como dir Politzer, em um acento aceito por todos eles: Sabemos que a histria da psicologia h cinqenta anos apenas uma epopia de desiluses e que, ainda hoje, novos programas so lanados todos os dias para fixar as esperanas novamente disponveis. Canguilhem continuar com a mesma verve ao dizer: Na verdade, vrios trabalhos de psicologia do a impresso de misturar, a uma filosofia sem rigor, uma tica sem exigncia e uma medicina sem controle.

Esta falha epistmica estaria vinculada, principalmente, a uma herana dualista que ainda guiaria os desenvolvimentos da psicologia. Ou seja a definio do objeto da psicologia, assim como seu desenvolvimento, estariam ainda marcados por um certo dualismo cartesiano a respeito da relao entre mente e corpo (dualismo que, diga-se de passagem, no completamente imputvel a Descartes, como veremos em outras aulas). Isto teria feito com que o desenvolvimento da psicologia oscilasse, indefinidamente, entre um certo privilgio da liberdade da espontaneidade da conscincia a despeito da causalidade orgnica, isto atravs de um subjetivismo assentado no uso clnico de noes como instrospeco, interioridade, intuio e uma acentuao inversa vinculada pura essencialidade da causalidade orgnica, isto atravs de um materialismo reducionista para o qual todo fato psicolgico deve ser reduzido a fatos orgnicos. Diramos atualmente que tal perspectiva materialista v todo estado mental apenas como uma maneira mais confusa de nomear estados cerebrais e processos fsicos, o que, no limite, nos levaria a questionar a prpria realidade de uma noo como a de conscincia. Limite este que foi transposto por alguns nomes maiores da filosofia anglo-sax da mente, como Daniel Dennet.

Mas, para esta tradio de reflexo sobre a clnica dos fatos psicolgicos que ser nosso objeto de estudos, tratava-se de recuperar uma perspectiva monista na definio dos fenmenos vinculados subjetividade, mas sem que isto implicasse em reduo materialista. No entanto, viabilizar tal monismo no-reducionista significava problematizar a prpria concepo de sujeito pressuposto pelas prticas clnicas a fim de se livrar do peso do dualismo. Por outro lado, tratava-se tambm de determinar a especificidade das determinaes causais em operao na constituio dos fatos psicolgicos, em especial na definio do que estaria em jogo em uma doena mental.

Assim, duas vias complementares se abriam para a reflexo epistmica sobre a clnica. A primeira dizia respeito crtica das figuras do sujeito (ou dos modos de negao do sujeito) pressupostas pelos mtodos e direes do tratamento de prticas clnicas hegemnicas. Crtica que poderia chegar ao desvelamento de como, atravs da pressuposio de certas estruturas da subjetividade como horizonte da clnica, a psicologia mostrava que sua essncia era ser uma prtica disciplinar que visava, na verdade, formar subjetividades atravs da constituio de quadros de patologias Maneira de submeter a reflexo epistemolgica a uma crtica do poder, crtica que visava, principalmente, demonstrar como as exigncias de racionalidade podem ser invertidas em processos de dominao. Michel Foucault, principalmente atravs de seus trabalhos que visavam demonstrar como a razo determinava e era solidria do seu Outro (a loucura) um nome maior desta tendncia. Lembremos, por exemplo, do sentido de sua afirmao: H uma boa razo para que a psicologia nunca possa dominar a loucura; que a psicologia s foi possvel no nosso mundo uma vez dominada a loucura e j excluda do drama. Ou seja, a experincia trgica e dramtica da loucura, experincia no interior da qual a prpria partilha entre razo e loucura advm nebulosa, no objeto da psicologia porque a psicologia solidria de uma determinao da loucura atravs de processos de constituio de estruturas nosogrficas que so, na verdade, fenmenos da ordem das prticas de dominao. Como se a verdadeira mola do poder no estivesse diretamente vinculada determinao positiva de padres de conduta, mas gesto dos modos de ruptura da norma racional. Uma perspectiva que, de uma certa forma, encontramos tambm em Jacques Lacan, quando este afirma: A psicologia veculo de ideais: nela, a psique no representa mais do que o patrocnio que a faz qualificar de acadmica. O ideal servo da sociedade. Ideal que se manifesta mais atravs da determinao do patolgico do que atravs da enunciao da norma.

Tais crticas a respeito daquilo que forneceria os fundamentos de decises clnicas sobre perspectivas de orientao de dispositivos de interveno devem, no entanto, abrir espao para um conceito positivo de razo que fornecer fundamentos renovados para a clnica dos fatos psicolgicos. Veremos como cada um dos nomes que estudaremos tentou dar conta desta questo, seja negando a prpria autonomia da clnica atravs de um recurso a alguma forma de guinada tica (Foucault), seja atravs da reconstruo da clnica sobre novas bases fornecidas pela psicanlise (Lacan), por uma reavaliao da medicina (Canguilhem) ou por gneros de hermenutica (Politzer).

Estrutura do curso

A fim de viabilizar tais objetivos, o curso ser dividido em quatro mdulos. Cada mdulo, ir durar de 3 a 5 aulas e ser estruturado a partir de um texto-base a ser comentado; texto cuja leitura obrigatria. Textos suplementares sero indicados para fornecer suportes de compreenso. Os mdulos esto dispostos em ordem cronolgica, isto a fim de permitir a identificao das matrizes de constituio da tradio epistemolgica que estudaremos.

O primeiro mdulo dedicado a Georges Politzer e o texto-base ser Crtica dos fundamentos da psicologia. Como texto de apoio, sero disponibilizados Georges Politzer: sessenta anos da Crtica dos fundamentos da psicologia, de Bento Prado Jnior e dois captulos de O conceito de mente, de Gilbert Ryle, intitulados: O mito cartesiano e Psicologia.

O livro de Politzer, escrito em 1928, foi saudado como um acontecimento no que diz respeito reflexo epistemolgica sobre a psicologia e a psicanlise. Seu tom panfletrio marcou uma longa gerao de pensadores franceses, em especial Merleau-Ponty, Sartre, Lacan e Foucault. Por um lado, tratava-se da primeira reflexo sistemtica a respeito do impacto epistemolgico trazido pela psicanlise freudiana. Vindo de uma tradio marxista, Politzer desenvolvia sua leitura de Freud a partir de uma perspectiva marxista que anulava a base biologista da metapsicologia, ainda vinculada psicofsica de Fechner, Helmholtz, Brcke, Du-Bois Reymond e a relanava em um quadro de redefinio das condies de compreenso do fato psicolgico em geral. Era a objetividade do subjetivo que estava em questo.

Politizer compreendia que os movimentos psicolgicos contemporneos - no caso, a Gestalt, o behaviourismo e a psicanlise - eram ligados entre si pela tentativa de dissolver o que ele chamava de mito da dupla natureza humana; ou seja, o mito do pretenso dualismo entre mente e corpo. de Politzer a idia de que a psicologia anterior a estes trs movimentos teria sido apenas a elaborao nocional de tal mito atravs da oscilao entre duas sadas possveis.

Por um lado, o subjetivismo espiritualista que restitua alma os seus direitos graas s iluses da imediaticidade da interioridade. Por outro, o materialismo que interpretava o comportamento e o pensamento humano atravs de um paradigma reducionista ou organicismo tal como, por exemplo, a psicologia do reflexo e as diferentes formas de associacionismo. Faltava aos dois plos a perspectiva de uma cincia da primeira pessoa, cincia que descreve objetos que s teriam realidade ao serem conjugados na primeira pessoa, ou seja, cincia que estados que no tm o mesmo estatuto epistmico que estado de coisas por dependerem da assuno de um sujeito. Estado subjetivos que, por sua vez, tem seu sentido dependente da relao com os acontecimentos do meio no qual se desenrola o vivido e na sua relao com o indivduo, enquanto ele o sujeito deste vivido. Uma perspectiva distinta daquela adotada pelas cincias da terceira pessoa tal como a fsica, por exemplo.

Vemos, aqui, o materialismo histrico do vis marxista de Politzer. O sentido do fato psicolgico no se encontra no desvelamento da vida interior. Ele encontra-se no todo formado pelo drama subjetivo, pelas relaes concretas com os outros e pela relao conflitual com a sociedade. Da a definio: com efeito, um gesto que eu fao um fato psicolgico, pois ele um segmento do drama que representa minha vida. A maneira com que ele se insere neste drama dado ao psiclogo pela narrativa que eu posso fazer sobre tal gesto. Mas o gesto esclarecido pela narrativa que o fato psicolgico e no o gesto parte, nem o contedo realizado da narrativa. O gesto em si no tem valor psicolgico algum. Somente o gesto inserido no drama histrico subjetivo atravs da narrativa que o sujeito dele faz, demonstrando seu sentido, que tem valor para a psicologia. Colocaes desta natureza sero fundamentais para Foucault e Lacan desenvolverem suas teorias da doena mental.

Mas antes de analisarmos tais teorias, teremos um segundo mdulo no qual ser questo de Georges Canguilhem, O texto-base ser O normal e o patolgico, de 1943. Os textos de apoio, por sua vez, sero: O que a psicologia?, do prprio Canguilhem, La vie: lexperience et la science, de Michel Foucault e Canguilhem et les normes, de Guillaume Le Blanc

Canguilhem , sem dvida, o nome mais eminente da epistemologia das cincias mdicas e biolgicas do sculo XX e figura fundamental no desenvolvimento da epistemologia das cincias humanas. Sua influncia se fez sentir durante muito tempo, principalmente devido a um de seus alunos, Michel Foucault. Dentre suas obras, O normal e o patolgico a mais ambiciosa e sistemtica. Trata-se, principalmente, de mostrar como a partilha entre normal e patolgico solidria do que significa compreender a vida como atividade normativa. Pois o patolgico no a pura e simples ausncia de norma, mas uma nova configurao do organismo atravs da implementao de outras normas na sua relao com o meio. Canguilhem critica, desde cedo, uma perspectiva que define a doena apenas como variaes quantitativas de funes e rgo isolados em estado normal, seja para mais, seja sob a forma de dficits orgnicos. Ao contrrio, a doena um acontecimento que diz respeito ao organismo vivo encarado na sua totalidade Pois: no h um nico fenmeno que se realize no organismo doente da mesma forma como no organismo so. Quando classificamos como patolgico um sistema ou um mecanismo funcional isolado, esquecemos que aquilo que os tornam patolgicos a relao de insero na totalidade indivisvel de um comportamento individual. Canguilhem chega mesmo a afirmar que ser doente , para o homem, viver uma vida diferente.

Defender tal perspectiva equivale a determinar a sade a partir da relao ativa a um meio: s possvel definir o estado normal de um ser vivo por uma relao normativa de ajustamento a determinados meios. No entanto, esta noo de ajustamento ser radicalmente complexificada por Canguilhem, j que no se trata aqui de uma adaptao simples a meios estticos, mas de instaurar o que o filsofo chama de margem de tolerncia s infidelidades do meio. Veremos, em outras aulas, o que tal margem de tolerncia pode querer significar.

Por hora, vale insistir que tal estratgia de vincular o normal a partir de uma relao normativa de ajustamento ao meio leva Canguilhem a afirmar que no fato algum que seja normal ou patolgico em si. Eles so normal e patolgico no interior de uma relao entre organismo e meio ambiente. Colocaes desta natureza sero fundamentais para a redefinao da causalidade prpria s doenas mentais, j que se trata apenas de tirar as consequncias da complexificao do meio ambiente humano. Quando se trata de norma humana, elas so determinadas como possibilidade de um organismo agir em situao social. No homem, os estmulos patognicos jamais so recebidos como simples fatos fsicos em estado bruto, mas como sinais, dotados de significao, de tarefas ou de provas a serem realizadas. Com isto, coloca-se a exigncia de recorrer a um conceito de sujeito para a prpria definio da partilha entre normal e patolgico.

A partir da poderemos abordar duas perspectivas maiores para a reflexo sobre os fundamentos da clnica dos fatos psicolgicos. Uma, nos vm de Jacques Lacan. Ser questo aqui da leitura de Proposies sobre a causalidade psquica, texto publicado em 1950. Os textos de apoio sero: Le dveloppement mecaniciste de la psychiatrie labri du dualisme cartsien, de Henri Ey e Lacan: a formao do conceito de sujeito, de Bertrand Ogilvie.

Este texto de Lacan problematiza a noo de causalidade psquica a partir da recusa em submet-la a uma perspectiva organicista. Seu incio j em tom polmico, j que se trata de criticar a organo-dinamismo proposto pelo psiquiatra Henri Ey. Alinhando-se a um programa geral de racionalidade da clnica fortemente marcado por Politzer, Lacan chega a definir a loucura como um fenmeno que: no separvel do problema da significao para o ser em geral, ou seja, do problema da linguagem para o homem. Maneira lacaniana de definir a causalidade da doena mental a partir da relao entre organismo e meio ambiente, ou seja, entre sujeito e meio social cuja inteligibilidade se daria atravs da sua reduo linguagem. Mas, contrariamente ao que poderamos esperar, no se trata aqui de definir a doena mental como desvio de adaptao em relao ao universo simblico implicado em todo uso da linguagem. Servindo-se de uma certa dialtica das identificaes de inspirao hegeliana, trata-se de afirmar, ao contrrio, que a doena , um pouco como veremos em Canguilhem, a impossibilidade de transcender as determinaes imediatas da percepo do meio social, impossibilidade de construir uma margem de tolerncia s infidelidades do meio. A clnica dos fatos psicolgicos vira, assim, clnica que no teme em re-introduzir conceitos filosficos como transcendncia, ser do homem, liberdade/alienao; isto a fim de orientar seus dispositivos de interveno e interpretao a partir de um conceito renovado de sujeito. Como se a clnica estivesse marcada pelo projeto de reintroduzir o sujeito no interior de um discurso com aspiraes de objetividade.

Por fim, o ltimo mdulo ser dedicado leitura de Doena mental e psicologia, de Michel Foucault. Os textos de apoio sero os captulos IV, VI e VII de O nascimento da clnica.

Creio no ser novidade para ningum aqui a importncia decisiva do trabalho de Michel Foucault no encaminhamento da reflexo epistemolgica sobre o estatuto da clnica dos fatos psicolgicos. Nosso curso ir terminar mostrando como tal importncia indissocivel da maneira com que Foucault se insere no interior da tradio de reflexo que configuramos atravs dos nomes de Politzer, Canguilhem e Lacan. Para tanto, vamos analisar um livro, inicialmente escrito em 1954 mas depois totalmente reconstrudo poca de sua reedio, em 1962. momento em que Foucault j havia defendido sua tese sobre a Histria da Loucura. Este pequeno livro, Doena mental e psicologia, uma porta de entrada privilegiada para a compreenso da experincia intelectual de Michel Foucault por retomar temas articulados no interior da reflexo filosfica francesa desde os anos vinte e por j indicar os caminhos que Foucault trilhar em direo ao estabelecimento de sua estratgia maior: submeter a reflexo epistemolgica sobre as cincias humanas a uma genealogia do poder e das prticas disciplinares. Submisso que aparece no horizonte desde que Foucault admite que: o homem s se transformou em uma espcie psicolgizvel a partir do momento em que sua relao loucura permitiu uma psicologia. Como se a prpria normatizao da vida produzisse seu outro.

O estatuto da psicologia

Aula 2

Na aula passada, vimos quais eram as coordenadas gerais responsveis pelo desenvolvimento deste curso. Tratava-se, principalmente, de apresentar uma certa tradio de reflexes sobre o estatuto epistmico da psicologia, da psicanlise e das cincias mdicas que se desenvolveu em solo francs principalmente entre os anos vinte e sessenta do sculo passado. Tal tradio, embora no seja, no sentido forte do termo, uma Escola (j que era composta por pensadores cujos programas de pesquisa eram bastante autnomos entre si), foi marcada por uma partilha de problemas e de dispositivos de crtica determinantes para a constituio de um modo particular de encaminhamento de questes derivadas da tentativa em fundamentar prticas clnicas. Pois no interior desta tradio encontraremos a defesa de que as prticas clnicas, principalmente aquelas prprias aos fatos psicolgicos, seriam dependentes, de maneira fundamental, de decises prvias e muitas vezes no tematizadas a respeito dos padres de racionalidade da observao, da interveno teraputica e, principalmente, da definio do objeto prprio psicologia. Neste sentido, a reflexo epistmica sobre a psicologia seria, necessariamente, uma reflexo sobre a maneira com que uma certa antropologia filosfica guiaria, de forma insidiosa, a racionalidade da direo do tratamento. Como se a psicologia fosse, a todo momento, remetida a uma raiz metafsica a respeito da qual ela no seria capaz de se livrar. Raiz metafsica que nos colocaria diante da necessidade em responder uma pergunta maior, a saber: uma prtica clnica pode abstrair de pr, em seu horizonte de racionalidade, uma concepo de sujeito que se desdobre em uma teoria da conduta racional, base da definio do que se define como patologia mental ?

A tradio de reflexo a qual me refiro nunca deixou pois de colocar, clnica dos fatos psicolgicos, duas questes maiores: o que fundamenta seu mtodo de observao,de interveno e o que particulariza seu objeto, ou seja, em que condies podemos dizer estarmos diante de um fato psicolgico que pode ser reportado a um sujeito? Uma questo de mtodo e uma questo vinculada ao estatuto de seus objetos que converge para um problema central que guiar o desenvolvimento do nosso curso, a saber; qual o estatuto da objetividade dos fenmenos subjetivos? Seria ele dependente da objetividade prpria aos fenmenos fsicos e orgnicos?

Como vimos na aula passada, o primeiro mdulo de nosso curso, este que se inicia na aula de hoje, ser dedicado a um dos nomes fundamentais no interior deste debate: Georges Politzer com seu Crtica dos fundamentos da psicologia.

Personagem peculiar, Politzer era filsofo e terico marxista de orgem hngara, embora vivesse em Paris desde 1921, isto devido a sua participao no movimento fracassado que levou ao efmero governo socialista de Bela Kun. A partir dos anos 30, ele dar aulas de materialismo dialtico na Universidade Operria de Paris. Desde cedo interessado pela psicologia e pela psicanlise, Politzer ir, a partir dos anos 30, tomar distncia da ltima de maneira ferrenha, isto a fim de se dedicar economia poltica e difuso do marxismo. Ele morrer fuzilado pelos nazistas em 1942.

Para os que ainda no conhecem Crtica dos fundamentos da psicologia, escrito em 1928, vale a pena lembrar como ele foi rapidamente saudado como um acontecimento no que diz respeito reflexo epistemolgica sobre a psicologia e a psicanlise. Seu tom panfletrio marcou uma longa gerao de pensadores franceses, em especial Merleau-Ponty, Sartre, Lacan e Foucault. Por um lado, tratava-se de uma crtica dos fundamentos tericos da psicologia que procurava fazer tabula-rasa de sua histria. Isto ficava claro logo no prefcio: Trata-se, para ns, essencialmente, de colocar os problemas de tal maneira que a discusso, sem poder nunca retornar a este psicologia que s deve existir para o historiador, possa ser relanada a partir de uma base nova e desenvolver-se a partir de um novo plano. Com Isto, Politzer procurava criar as condies de possibilidade para o advento daquilo por ele chamado de psicologia concreta, ou seja, uma psicologia no mais dependente de conceitos e mtodos abstratos incapazes de dar conta da maneira com que o vivido adquire sentido para os sujeitos.

Por outro lado, Politzer desenvolvia da primeira reflexo sistemtica a respeito do impacto epistemolgico trazido pela psicanlise freudiana. Vindo de uma tradio marxista, Politzer desenvolvia sua leitura de Freud a partir de uma perspectiva marxista que anulava a base biologista da metapsicologia, ainda vinculada psicofsica de Fechner, Helmholtz, Brcke, Du-Bois Reymond e a relanava em um quadro de redefinio das condies de compreenso do fato psicolgico em geral. Era a objetividade do subjetivo que estava em questo. Pois, como veremos, trata-se, a partir desta operao, de fornecer: a definio do fato psicolgico na esfera do vivido, na perspectiva da primeira pessoa do singular, rigorosamente destacada dos processos causais objetivos.

Na aula de hoje, ser questo de um comentrio da Introduo Crtica dos fundamentos da psicologia. Na aula que vem, nosso objeto de estudos ser o primeiro captulo, este intitulado: As descobertas na psicanlise e a orientao em direo ao concreto.

J nas primeiras pginas de nosso texto, o tom polmico se apresenta rapidamente. Politzer pretende falar da: morte da psicologia oficial, desta psicologia que se prope estudar os processos psicolgicos, seja procurando apreend-los em si mesmos [ou seja, de maneira imediata, como um dado imediatamente disponvel introspeco da conscincia], seja atravs de seus concomitantes ou determinantes fisiolgicos [como se a fisiologia fosse naturalmente o espao causal capaz de orientar os mtodos prprios clnica], seja atravs de mtodos bricolados. Ou seja, trata-se de colocar em suspeio tudo aquilo que se apresentava como progresso na fundamentao do conhecimento dos fatos psicolgicos desde que Wundt aparecera como fundador da psicologia moderna por ter sido o responsvel pelo primeiro laboratrio do mundo dedicado psicologia experimental.

De fato, Politzer lembra como Wundt aparecia enquanto momento mais bem realizado de uma trajetria visando livrar a psicologia do penso de noes metafsicas de alma ou da possibilidade de apreenso imediata de dados da conscincia atravs da auto-observao. Da normalmente a maneira de descrever o impacto das pesquisas de Wundt como um abandono da submisso da psicologia filosofia, abandono da noo de psicologia como cincia da alma, isto a partir do uso massivo de tcnicas experimentais de mensurao de constantes fisiolgicas objetivamente identificveis. Uso massivo que pressupunha reduzir estados e eventos mentais mensurao objetiva de estmulos e respostas fisiolgicas. Desta forma, aparece uma psicologia fisiolgica que determinava o fato psicolgico fundamental como a excitao a partir de rgos externos de sentido.

Mas esta submisso da racionalidade da psicologia fisiologia era o resultado de uma longa tradio racionalista que procurava definir a psicologia como fsica do sentido externo, ou seja, como o que permite o clculo capaz de: determinar as constantes quantitativas da sensao e as relaes entre tais constantes. Devemos ler nesta perspectiva sua dependncia epistmica de Wundt psicofsica de Fechner, para quem os princpios gerais da psicofsica envolvem apenas a manipulao de relaes quantitativas, assim como de Helmholtz e Du Bois-Reymond, para quem, por sua vez, s h, no organismo, foras fsico-qumicas em atuao.

O que deve ser salientado aqui como a fsica matemtica aparece enquanto padro de racionalidade para a constituio da objetividade da psicologia. A objetividade do objeto da psicologia deveria ser pensada tal como a objetividade prpria a fenmenos que so objetos da fsica, ou seja, a partir de possibilidade de mensurao, de reduo quantitativa e de abstrao a um padro geral de clculo. Da a esperana em : fazer aparecer, nas leis dos fatos de conscincia, um determinismo analtico do mesmo tipo que este cuja mecnica e a fsica permitem esperar uma validade universal a toda cincia.

Esta perspectiva prpria psicologia fisiolgica de Wundt criticada por Politzer atravs da acusao de formalismo. Um formalismo que demonstraria como a psicologia experimental no seria outra coisa que um disfarce responsvel pela sobrevivncia da psicologia clssica, esta mesma que seria marcada pelas crenas metafsica na noo de alma.

De fato, tal afirmao de Politzer parece, a primeira vista, o mais completo contrasenso. Pois em que a psicologia experimental continuaria ainda tributria dos descaminhos prprios a uma noo pr-cientfica de psicologia? claro que uma parte da resposta se encontra na prpria definio do que Politzer entende por formalismo. Com palavras zombeteiras, Politzer lembra que: os fisiologistas se entregam de maneira terrvel magia dos nmeros e o entusiasmo pela forma quantitativa das leis no passa, neste caso, de adorao do fetiche (...) Quanto aos psiclogos, de terceira mo que eles recebem as matemticas; pois eles as recebem dos fisiologistas, que as receberam dos fsicos que, por sua vez, as receberam dos matemticos. No entanto, a zombaria no suficiente para nos explicar qual o verdadeiro vnculo entre a psicologia experimental e a psicologia clssica.

O verdadeiro argumento de Politzer comea a se organizar a partir do pargrafo sexto. A partir da, ele lembra que a histria da psicologia a partir da psicologia experimental de Wundt (ou seja, esta histria marcada principalmente pelo advento do behaviourismo, da Gestalt e da psicanlise) no era, como poderamos esperar, a consolidao de um corpo no-problemtico de conceitos e de uma partilha tacitamente aceita de mtodos. Ao contrrio, esta histria no de uma organizao, mas de uma dissoluo. Da a afirmao central do nosso captulo: O movimento psicolgico contemporneo apenas a dissoluo do mito da natureza dupla do homem.

A idia central aqui : a psicologia foi at ento tributria de uma mitologia vinculada a prpria natureza de seu objeto, ou seja, o sujeito enquanto centro funcional de condutas e emoes. Esta mitologia deve ser dissolvida para que a psicologia como cincia possa se instaurar, para que a psicologia possa acordar de seu sono dogmtico. Mas para que este despertar ocorra, faz-se necessrio o reconhecimento claro do fato de que a psicologia clssica no outra coisa que a elaborao nocional de um mito. Um mito que, segundo Politzer, seria: a ideologia central da psicologia clssica..

De fato, devemos insistir neste ponto: a crtica aqui no apenas crtica a ausncia de uma orientao verdadeiramente cientfica para a observao e clnica dos fatos psicolgicos. A crtica tambm crtica da ideologia, defesa de que, por trs desta incompreenso prpria determinao dos fundamentos da psicologia, h uma certa ideologia em operao, como se no houvesse equvoco cientfico que no fosse animado por uma orientao ideolgica.

Esta ideologia prpria ao mito da dupla natureza humana pode ser descrita da seguinte forma. Politzer acredita que a psicologia, sequer a psicologia experimental de wundt, nunca conseguiu escapar das conseqncias de um pretenso dualismo entre mente e corpo. Da a oscilao infinita entre duas sadas possveis.

Por um lado, o subjetivismo espiritualista que restitua alma os seus direitos graas s iluses da imediaticidade da interioridade. Uma psicologia baseada nos usos clnicos da introspeco, uma certa cincia do sentido interno, seria resultado resultante daquilo que poderamos chamar de ideologia da vida interior, ou seja, a implementao clnica de um conceito normativo de sujeito baseada na autonomia espontnea, na transparncia imediata de si a si e no rebaixamento do corpo enquanto plo de determinao do sentido da conduta. Da a afirmao: A ideologia da burguesia na estaria completa se no tivesse encontrado sua mstica. Aps vrias tentativas, ela foi enfim encontrada na vida interior da psicologia. Mas sua essncia apenas a abstrao, j que ela implica apenas o homem em geral, a vida em geral, e no a vida humana inserida na particularidade da histria de seu desejo.

Por outro, o materialismo objetificador que interpretava o comportamento e o pensamento humano atravs de um paradigma reducionista ou tal como, por exemplo, a psicologia do reflexo, as diferentes formas de associacionismo e a psicologia experimental. Contrariamente a noo de que a conscincia deveria ser distinta das leis causais que determinam o mundo fsico, tratava-se de insistir que a mesma objetividade prpria a descrio dos fenmenos fsicos deve ser aplicada apreenso da inteligibilidade dos fatos psicolgicos. Como veremos, trata-se, para Politzer, tambm de uma ideologia, mas de uma ideologia da auto-negao do sujeito tambm dependente de operaes de abstrao.

Este ponto pode ser melhor compreendido se lembrarmos das colocaes que Politzer apresenta a respeito do behaviorismo. Enquanto tentativa de preencher as condies do que o prprio Politzer define como uma psicologia concreta, o behaviorismo teve o mrito de renunciar noo de vida interior. Mrito de criticar a noo de vida interior como resqucio de um pensamento animista no interior da cincia. Watson percebeu que a nica atitude cientfica possvel para a psicologia consistia em fazer tabula rasa de tudo o que se apresentava como introspeco e espiritualidade. Mas, ao salvar a objetividade, o behaviorismo perdia a psicologia. No foi por outra razo que, logo aps Watson tirar as conseqncias de suas descobertas, a psicologia ps-se cata de um behaviorismo no fisiolgico. Concluso de Politzer: tudo o que o behaviorismo pode nos ensinar da ordem da mecnica animal. Continuamos presos entre o subjetivismo e o objetivismo. Continuamos presos alternativa dualista do dentro ou fora. Ou elegemos a percepo interna como o fato psicolgico ou, como fazem os behaviorista, escolhemos a percepo externa: Para suplantar a anttese clssica, dir Politzer, faz-se necessrio renunciar a ver o fato psicolgico em uma percepo qualquer e consentir em colocar, na base da cincia psicolgica, um ato de conhecimento de uma estrutura mais elevada do que a simples percepo.

O importante a renunciar a perspectiva realista ingnua que acredita ver, no fato psicolgico, um dado simples que corresponde a uma realidade perceptvel, seja ela interna ou externa. neste ponto que o psiclogo da introspeco e o behaviorista se tocam: todos os dois acreditam na premissa epistemolgica do fato naturalmente dado. Enquanto os primeiros acreditam que nada mais bem conhecido pela mente do que ela prpria e, por isto, os estados mentais esto diretamente presentes conscincia, os segundos invertem a posio terica afirmando que so os estados fsicos que naturalmente so dados conscincia e recaem no realismo metafsico. O behaviorista prefere ignorar que a percepo de um estado fsico depende do que estamos acostumados a ver. Ela inferencial e no imediata.

Aqui est a intuio fundamental de Politzer: o fato psicolgico, enquanto objeto do conhecimento, no um dado simples mas, como a compreenso do comportamento humano resulta de uma percepo apoiada pela compreenso; trata-se de um dado construdo. Da a definio: com efeito, um gesto que eu fao um fato psicolgico, pois ele um segmento do drama que representa minha vida. A maneira com que ele se insere neste drama dado ao psiclogo pela narrativa que eu posso fazer sobre tal gesto. Mas o gesto esclarecido pela narrativa que o fato psicolgico e no o gesto parte, nem o contedo realizado da narrativa. O gesto em si no tem valor psicolgico algum. Somente o gesto inserido no drama histrico subjetivo atravs da narrativa que o sujeito dele faz, demonstrando seu sentido, que tem valor para a psicologia

Este um ponto absolutamente central no interior de nossa discusso. Ele fica claro se levarmos a srio uma afirmao como: O termo vidadesigna um fato biolgico, ao mesmo tempo em que a vida propriamente humana, designa a vida dramtica do homem. Tal vida dramtica apresenta todas as caractersticas que permitem a constituio de um domnio a ser estudado cientficamente [e que o domnio da psicologia concreta]. E mesmo que a psicologia no existisse, deveramos invent-la em nome desta possibilidade.

Ou seja, a vida humana, objeto de uma psicologia concreta, no aquilo que pode ser redutvel determinao do disiolgico enquanto campo de produo do sentido da conduta. A vida humana uma vida dramtica no sentido teatral de drama, ao que procura realizar um telos , uma teleologia da ao que s pode ser revelada no interior de uma narrativa.

Com isto, Politzer no admite a reduo do sujeito a um centro funcional que opera a sntese entre a multiplicidade de fenmenos psquicos; ou seja, o um nada, a no ser o lugar convergente de uma multiplicidade de sensaes, desejos e imagens. Adotar tal posio significaria permitir isolar, de um lado, o sujeito e, de outro, os fenmenos psquicos a fim de trat-los como objetos em si, como objetos de uma cincia que adota a perspectiva da terceira pessoa. Ao contrrio, devemos recusar tal formalismo abstrato e apreender o fato psicolgico como a encarnao em ato de um sujeito, ou seja, um indivduo dotado de inteno significativa. Por isto, o fato psicolgico deve ser inserido no drama histrico subjetivo, onde o seu sentido se esclarece. A est a sada que permite garantir a objetividade do subjetivo. Por fim, vale a pena salientar como a narrativa que o sujeito d a respeito do seu comportamento no nos remete a nenhuma experincia interior. Afinal, a narrativa , antes de mais nada, inteno significativa direcionada ao outro. A significao desconhece a interioridade; assim como desconhece o inefvel de qualquer pretensa intimidade.O estatuto da psicologia

Aula 3

Na aula passada, comeamos a leitura do livro de Georges Politzer, Crtica dos fundamentos da psicologia. Vimos como o objetivo deste panfleto que influenciou de maneira decisiva o debate sobre a epistemologia da psicologia na Frana do sculo XX era fazer tabula rasa da histria das clnica dos fatos psicolgicos at ento. J nas primeiras pginas de nosso texto, o tom polmico se apresentava rapidamente. Politzer pretendia falar da: morte da psicologia oficial, desta psicologia que se prope estudar os processos psicolgicos, seja procurando apreend-los em si mesmos [ou seja, de maneira imediata, como um dado imediatamente disponvel introspeco da conscincia], seja atravs de seus concomitantes ou determinantes fisiolgicos [como se a fisiologia fosse naturalmente o espao causal capaz de orientar os mtodos prprios clnica], seja atravs de mtodos bricolados. Ou seja, tratava-se de colocar em suspeio tudo aquilo que se apresentava como progresso na fundamentao do conhecimento dos fatos psicolgicos desde que Wundt aparecera como fundador da psicologia moderna por ter sido o responsvel pelo primeiro laboratrio do mundo dedicado psicologia experimental.

De fato, vimos como Politzer lembrava que Wundt aparecia enquanto momento mais bem realizado de uma trajetria visando livrar a psicologia do penso de noes metafsicas de alma ou da possibilidade de apreenso imediata de dados da conscincia atravs da auto-observao. Da normalmente a maneira de descrever o impacto das pesquisas de Wundt como um abandono da submisso da psicologia filosofia, abandono da noo de psicologia como cincia da alma, isto a partir do uso massivo de tcnicas experimentais de mensurao de constantes fisiolgicas objetivamente identificveis. Uso massivo que pressupunha reduzir estados e eventos mentais mensurao objetiva de estmulos e respostas fisiolgicas. Desta forma, aparece uma psicologia fisiolgica que determinava o fato psicolgico fundamental como a excitao a partir de rgos externos de sentido.

Mas esta submisso da racionalidade da psicologia fisiologia era o resultado de uma longa tradio racionalista que procurava definir a psicologia como fsica do sentido externo, ou seja, como o que permite o clculo capaz de: determinar as constantes quantitativas da sensao e as relaes entre tais constantes. Devemos ler nesta perspectiva sua dependncia epistmica de Wundt psicofsica de Fechner, para quem os princpios gerais da psicofsica envolvem apenas a manipulao de relaes quantitativas, assim como de Helmholtz e Du Bois-Reymond, para quem, por sua vez, s h, no organismo, foras fsico-qumicas em atuao.

O que deve ser salientado aqui como a fsica matemtica aparece enquanto padro de racionalidade para a constituio da objetividade da psicologia. A objetividade do objeto da psicologia deveria ser pensada tal como a objetividade prpria a fenmenos que so objetos da fsica, ou seja, a partir de possibilidade de mensurao, de reduo quantitativa e de abstrao a um padro geral de clculo. Da a esperana em : fazer aparecer, nas leis dos fatos de conscincia, um determinismo analtico do mesmo tipo que este cuja mecnica e a fsica permitem esperar uma validade universal a toda cincia. Mesmo o recurso fisiologia como base de anlise para os fatos psicolgicos deveria ser compreendido como tributrio desta maneira de constituio da noo de objetividade herdada da fsica.

Em um captulo do Nascimento da Clnica, intitulado Abram alguns cadveres, Michel Foucault reconstitui a trajetria que permitiu fisiologia e anatomia patolgica aparecerem como fundamento da clnica. Tal posio da fisiologia s foi possvel a partir do momento em que o corpo foi reconfigurado, aparecendo como um espao ao mesmo tempo mais complexo e mais abstrato, onde era questo de ordem, de sucesso, de coincidncia e de isomorfismo. Transformao do corpo em um espao abstrato que era resultado da aplicao de um princpio geral de decifrao do espao corporal semelhante ao princpio geral de constituio do espao homogneo e geomtrico da fsica moderna. Tal princpio geral de inteligibilidade era fornecido, no caso da constituio do espao corporal, pela reduo do corpo a um campo de tecidos orgnicos: A partir dos tecidos, a natureza trabalha com uma extrema simplicidade de materiais. Eles so os elementos dos rgos, mas o atravessam, os aproximam e, para alm deles, constituem os vastos sistemas nos quais o corpo humano encontra a forma concreta de sua unidade. Haver tantos sistemas quanto tecidos: neles, a individualidade complexa e inesgotvel dos rgos se dissolve e, de uma vez, se simplifica.

Tal reduo do volume orgnico a um elementar que , ao mesmo tempo, um universal aparece como condio para o aparecimento de uma fisiologia que pode se submeter a um padro de objetividade fundado em dispositivos de mensurao, de reduo quantitativa e de abstrao a um padro geral de clculo. E pensando a tal processo que a perspectiva prpria psicologia fisiolgica de Wundt pode ser criticada por Politzer atravs da acusao de abstrao (que trata objetos vivos como objetos mortos, prontos a serem descritos em um discurso da terceira pessoa), ou ainda de formalismo. Um formalismo que demonstraria como a psicologia experimental no seria outra coisa que um disfarce responsvel pela sobrevivncia da psicologia clssica, esta mesma que seria marcada pelas crenas metafsica na noo de alma.

A idia central aqui : a psicologia foi at ento tributria de uma mitologia vinculada a prpria natureza de seu objeto, ou seja, ao sujeito enquanto centro funcional de condutas e emoes. Esta mitologia deveria ser dissolvida para que a psicologia como cincia pudesse ser instaurada, para que a psicologia pudesse acordar de seu sono dogmtico. Mas para que este despertar ocorra, faz-se necessrio o reconhecimento claro do fato de que a psicologia clssica no outra coisa que a elaborao nocional de um mito. Um mito que, segundo Politzer, seria: a ideologia central da psicologia clssica, o mito da dupla natureza humana.

De fato, toda a crtica de Politzer psicologia tributria desta crtica ao dualismo e a suas conseqncias. Um dualismo que instauraria um movimento bi-polar no interior da histria da psicologia, entre o subjetivismo espiritualista que compreende a introspeco como dispositivo central de acesso ao fato psicolgico e uma outra perspectiva objetivista que, contrariamente a noo de que a conscincia deveria ser distinta das leis causais que determinam o mundo fsico, insiste que a mesma objetividade prpria a descrio dos fenmenos fsicos deve ser aplicada apreenso da inteligibilidade dos fatos psicolgicos.

Esta perspectiva servir para Politzer se posicionar a respeito do behaviorismo. Enquanto tentativa de preencher as condies do que o prprio Politzer define como uma psicologia concreta, o behaviorismo teve o mrito de renunciar noo de vida interior. Mrito de criticar a noo de vida interior como resqucio de um pensamento animista no interior da cincia. Mas, segundo Politzer, o behaviorismo continuava preso uma alternativa dualista do dentro ou fora. Ou elegemos a percepo interna como o fato psicolgico ou, como fazem os behavioristas, escolhemos a percepo externa. Richard Rorty ver claramente isto ao afirmar: Os cartesianos pensavam que os nicos gneros de entidades que naturalmente se ajustavam como diretamente presente conscincia eram os estados mentais. Os behavioristas, no seu melhor momento epistemolgico, pensavam que o nico gnero de entidade diretamente presente conscincia eram os estados de objetos fsicos. Os behavioristas se orgulhavam de fugir s noes de Essncia vtrea o do Olho interno, mas permaneceram fiis epistemologia cartesiana ao conservarem a noo de um Olho da mente que apanhava algumas coisas em primeira mo (...) Os behavioristas desistiram da noo de que nada conhecido pela mente do que ela prpria, mas conservaram a noo de que algumas coisas eram diretamente conhecidas naturalmente e outras no, e o corolrio metafsico de que somente as primeiras eram realmente reais. Maneira de ignorar que o que conhecemos de modo no inferencial depende daquilo com que estamos familiarizados. esta f epistmica na noo de dado simples e imediatamente perceptvel, ou seja, de objetividade como o que resulta de alguma forma de observao direta, que Politzer chama de realismo, mito prprio ao desenvolvimento da psicologia at ento.

Da porque Politzer pode afirmar: Para suplantar a anttese clssica, faz-se necessrio renunciar a ver o fato psicolgico em uma percepo qualquer e consentir em colocar, na base da cincia psicolgica, um ato de conhecimento de uma estrutura mais elevada do que a simples percepo. Aqui est a intuio fundamental de Politzer: o fato psicolgico, enquanto objeto do conhecimento, no um dado simples mas, como a compreenso do comportamento humano resulta de uma percepo apoiada pela compreenso; trata-se de um dado construdo.Gestalt e a noo de totalidade funcional

a fim de dar conta do que deve ser este ato de conhecimento de uma estrutura mais elevada do que a simples percepo que Politzer se apia na Gestalt: O valor da Gestalttheorie grande, sobretudo do ponto de vista crtico: ela implica sa negao deste encaminhamento fundamental da psicologia clssica que consiste em romper a forma das aes humanas para tentar posteriormente reconstituir a totalidade que sentido e forma, isto a partir de elementos sem significao e amorfos. Ou seja, a Gestalt aparece como contraponto a uma certa perspectiva atomista que acredita poder analisar, de maneira isolada, funes intencionais e disposies regionais de comportamento, como se aquilo que chamamos normalmente de sujeito no fosse mais do que um feixe de representaes e de disposies constitudas a partir de estmulos, reflexos e tropismos, mais do que a somatria de funes e rgos que poderiam ser isolados sem prejuzo para sua inteligibilidade.

No entanto, a Gestalt insiste exatamente na impossibilidade de uma compreenso do fato psicolgico que negligencie a maneira com cada ato isolado do indivduo, cada percepo isolada de objeto atualiza uma estrutura global de conduta e de inteligibilidade. Wolfgang Khler, por exemplo, um dos nomes-chaves da Gestalt juntamente como Wertheimer e Kelner, chega a aplicar tal postulado anlise dos fatos orgnicos: Se os organismos se assemelhassem mais com os sistemas com os quais o fsico se ocupa, um grande nmero de seus mtodos poderiam ser empregados em nossa cincia e sem grandes mudanas. Mas, na verdade, tais semelhanas so raras. O trabalho do fsico oferece a vantagem da simplicidade dos seus sistemas (...) A modificao que intervm em um fator implica ordinariamente em modificaes correlativas em vrios outros e estes ltimos, por sua vez, modificam o primeiro. No entanto, o isolamento de relaes funcionais e a reduo de variveis em ao em um fenmeno dado so grandes artifcios que facilitam as investigaes exatas em fsica. Como esta tcnica no aplicvel psicologia, posto que se deve apreender o organismo aproximadamente da maneira como ele , toda espcie de observao que nos envia ao comportamento de nossos sujeitos como unidades complexas e ativas ser bem-vindo.

A afirmao no poderia ser mais clara. A psicologia exige um paradigma diferenciado de objetividade porque seu objeto no se presta a processos de racionalizao em operao na apreenso de fenmenos fsicos. Se Khler pode afirmar que, comparado, ao trabalho do psiclogo, o trabalho do fsico facilitado pela simplicidade de seus sistemas, fundamentalmente porque a psicologia no admite procedimentos de abstrao e de decomposio prprios fsica. Ela trabalha com sistemas que se organizam como totalidades funcionais onde, digamos, o todo no o resultado da somatria das partes, onde a funo de um rgo resultante das interaes com o conjunto do sistema, onde a perspectiva geral que orienta a conduta em relao a um meio ambiente no o resultado da somatria da ao de cada rgo, da articulao de cada funo intencional tomada separadamente. Desta forma: situao e reao se vinculam interiormente por sua participao comum a uma estrutura na qual se exprime o modo de atividade prprio de um organismo. Canguilhem compreendeu isto claramente ao afirmar: As formas vivas, sendo totalidades cujo sentido reside na tendncia a se realizar como tal no curso de confrontao com o meio, podem ser apreendidas em uma viso, no em uma diviso. Da porque Canguilhem costumava insistir no estar seguro de que um organismo, aps a ablao de um rgo, seja o mesmo organismo diminudo de um rgo.

Tal perspectiva permitir, mais a frente, uma reorientao profunda do que se compreende por doena (assim como permitir uma reorientao profunda do que se compreende por doena mental). Pois se trata de insistir na necessidade de deixar de dividir a doena em uma multiplicidade de mecanismos funcionais alterados, isto a fim de consider-la como um acontecimento que diz respeito ao organismo vivo encarado como totalidade. Pois: no h um nico fenmeno que se realize no organismo doente da mesma forma que no organismo so. No organismo, todas as funes so interdependentes, o que impede a disperso da doena em sintomas e mecanismos funcionais isolados: Quando classificamos como patolgico um sintoma ou um mecanismo funcional isolados, esquecemos que aquilo que os torna patolgicos sua relao de insero na totalidade indivisvel de um comportamento individual. Veremos, mais a frente, como um perspectiva desta natureza trar impactos na determinao do que exatamente uma patologia mental.

Mas Politzer insiste que introduzir esta dimenso da totalidade implica em introduzir uma dimenso com impactos maiores na reflexo sobre o fato psicolgico: a dimenso do sentido. O fato psicolgico sempre um fato que procura realizar uma exigncia de sentido. Pois trata-se de afirmar que cada conduta e cada reao no resultado de um automatismo funcional, mas s pode ser inteligvel se as reportarmos sua relao com uma estrutura global que orienta o organismo em sua confrontao com o meio ambiente. Ou seja, cada conduta e cada reao dotada de um sentido, de uma teleologia prpria ao e que s pode ser apreendida se transcendemos o domnio do que se oferece como dado imediato e como reao automtica.

A grande contribuio de Politzer neste contexto consiste pois em insistir que o modo de acesso a tal estrutura global de conduta, responsvel pelo sentido do fato psicolgico, atravs daquilo que ele chama de drama. Da uma afirmao-chave como: : O termo vidadesigna um fato biolgico, ao mesmo tempo em que a vida propriamente humana, designa a vida dramtica do homem. Tal vida dramtica apresenta todas as caractersticas que permitem a constituio de um domnio a ser estudado cientficamente [e que o domnio da psicologia concreta]. E mesmo que a psicologia no existisse, deveramos invent-la em nome desta possibilidade.

Politzer quer dizer, com isto, que a psicologia deve dar conta de condutas e disposies que procuram realizar exigncias de sentido e que a unidade de tais exigncias atravs de uma estrutura que se manifesta atravs da confrontao com o meio ambiente no decorrer do tempo um drama. Isto o leva a afirmar: O drama implica o homem tomado em sua totalidade e considerado como o centro de um certo nmero de acontecimentos que, exatamente por se reportarem a uma primeira pessoa, tm um sentido. Ou ainda: o fato psicolgico no o comportamento simples, mas precisamente o comportamento humano, ou seja, o comportamento enquanto ele se reporta, de um lado, aos acontecimentos dos meios nos quais se desdobra a vida humana e, de outro lado, ao indivduo enquanto ele sujeito desta vida. Em suma, o fato psicolgico o comportamento que tem um sentido humano.

Quer dizer, Politzer traz da Gestalt a noo de que o verdadeiro objeto da psicologia a totalidade da estrutura global de conduta que determina o modo de relao entre o indivduo e seu meio ambiente, totalidade que impe a cada conduta e a cada reao uma teleologia da ao, uma exigncia mais ampla que sentido que deve ser reconstituda pelo psiclogo atravs de uma noo aparentemente desprovida de objetividade cientfica, como o caso da noo de drama. Um drama que s pode ser objetificado atravs da narrativa que o sujeito dele faz. Da porque, se Politzer trs da Gestalt a noo de totalidade funcional de sentido, ele ir procurar na psicanlise a perspectiva capaz de expor quais devem ser as exigncias de uma clnica capaz de responder pela objetividade do fenmenos ligados subjetividade.

O estatuto da psicologia

Aula 4

Na aula de hoje, iremos finalizar o primeiro mdulo de nosso curso, este dedicado ao comentrio da Crtica dos fundamentos da psicologia, de Georges Politzer. No se tratou de fazer aqui o comentrio exaustivo do livro, mas de fornecer o quadro de anlise politzeriano a respeito do programa crtico de reforma da psicologia. Vimos como Politzer desenvolvia suas crticas a respeito do realismo de quem toma a percepo imediata como fato psicolgico fundamental, do carter abstrato das generalizaes da psicologia clssica e do dualismo a respeito do qual sua histria seria tributria. Um dualismo que instauraria um movimento bi-polar no interior da histria da psicologia, entre o subjetivismo espiritualista que compreende a introspeco como dispositivo central de acesso ao fato psicolgico e uma outra perspectiva objetivista que, contrariamente a noo de que a conscincia deveria ser distinta das leis causais que determinam o mundo fsico, insiste que a mesma objetividade prpria a descrio dos fenmenos fsicos deve ser aplicada apreenso da inteligibilidade dos fatos psicolgicos.

Vimos ainda como Politzer reconhecia no behaviorismo e a Gestalt duas correntes que traziam colaboraes para a constituio desta reforma do entendimento psicolgico ento pregada. Segundo Politzer, o behaviorismo teria o mrito de renunciar noo de vida interior e imediaticidade da introspeco pois a verdadeira psicologia s pode ser uma psicologia sem vida interior. Mas ele seria ainda tributrio da f epistmica na noo de dado simples e imediatamente perceptvel (a imediaticidade do sentido do comportamento externamente observvel) ou seja, de objetividade como o que resulta de alguma forma de observao direta, que Politzer chama de realismo, mito prprio ao desenvolvimento da psicologia at ento.

Da porque Politzer afirmava: Para suplantar a anttese clssica, faz-se necessrio renunciar a ver o fato psicolgico em uma percepo qualquer e consentir em colocar, na base da cincia psicolgica, um ato de conhecimento de uma estrutura mais elevada do que a simples percepo. Era a fim de dar conta do que deve ser este ato de conhecimento de uma estrutura mais elevada do que a simples percepo que Politzer se apoiava na Gestalt. Aos olhos de Politzer, a Gestalt aparecia como contraponto a uma certa perspectiva atomista que acredita poder analisar, de maneira isolada, funes intencionais e disposies regionais de comportamento, como se aquilo que chamamos normalmente de sujeito no fosse mais do que um feixe de representaes e de disposies constitudas a partir de estmulos, reflexos e tropismos, mais do que a somatria de funes e rgos que poderiam ser isolados sem prejuzo para sua inteligibilidade. Vimos, na aula passada, como Khler lembrava que a psicologia trabalha com sistemas que se organizam como totalidades funcionais onde, digamos, o todo no o resultado da somatria das partes, onde a funo de um rgo resultante das interaes com o conjunto do sistema, onde a perspectiva geral que orienta a conduta em relao a um meio ambiente no o resultado da somatria da ao de cada rgo, da articulao de cada funo intencional tomada separadamente.

Mas Politzer insiste que introduzir esta dimenso da totalidade implica em introduzir uma dimenso com impactos maiores na reflexo sobre o fato psicolgico: a dimenso do sentido. O fato psicolgico sempre um fato que procura realizar uma exigncia de sentido. Pois trata-se de afirmar que cada conduta e cada reao no resultado de um automatismo funcional, mas s pode ser inteligvel se as reportarmos sua relao com uma estrutura global que orienta o organismo em sua confrontao com o meio ambiente. Ou seja, cada conduta e cada reao dotada de um sentido, de uma teleologia prpria ao e que s pode ser apreendida se transcendemos o domnio do que se oferece como dado imediato e como reao automtica.

O recurso psicanlise

Era exatamente neste ponto que Politzer introduzia seu recurso massivo psicanlise freudiana: ao refletir sobre a psicanlise que percebemos a verdadeira psicologia, dir Politzer. Ou seja, a psicanlise direciona o mtodo de abordagem e determina o estatuto do fato psicolgico a partir das exigncias de uma psicologia concreta, psicologia que abandonou os postulados de abstrao e realismo. E ela faz isto, principalmente, atravs da descoberta do sentido concreto individual do sonho. Toda a reflexo de Politzer sobre a psicanlise baseia-se, principalmente, na Traumdeutung.

O sonho o elemento fundamental desta reorientao do estatuto do fato psicolgico porque ele coloca em cena a centralidade do problema do sentido: todo sonho aparece como uma produo psquica dotada de significao (sinnvolles), dir Freud, contrariando os julgamentos hegemnicos da psicologia da poca que relegavam o sonho ao estatuto de puro produto da atividade cerebral submetida a excitaes e estmulos somticos e sensoriais. Ao insistir que o sonho era dotado de sentido, Freud colocava em circulao a afirmao cannica: o sonho a realizao de um desejo. Desta forma, o sonho podia ser visto como um certo ato de julgamento que deveria ser, necessariamente, reportado a um Eu para quem o desejo a funo intencional central. A interpretao analtica do sonho impedia assim o primado de procedimentos de abstrao que desvinculavam o sonho e o sujeito que sonha tratando o sonho e seus contedos como algo produzido por causas impessoais: O que a psicanlise procura em todo lugar, dir Politzer, a compreenso dos fatos psicolgicos em funo do sujeito. pois legtimo ver nisto a inspirao fundamental da psicanlise.

Sendo o sonho a realizao de um desejo vinculado particularidade do sujeito que sonha ento a interpretao deve reconstituir o contexto de significao prprio a tal particularidade. Neste sentido, a grande inovao de Freud estava vinculada a uma questo de mtodo, assim como ao reconhecimento da subjetividade do sentido. A questo de mtodo dizia respeito a um princpio de interpretao que se fundava no reconhecimento da particularidade dos contextos de significao. Interpretar no era assim aplicar esquemas prvios de simbologias (embora Freud nunca tenha deixado de reconhecer a presena de um certo simbolismo nos sonhos), mas permitir uma reconstruo de contextos no interior da qual o sujeito que sonho aparecia em um papel ativo. Este o sentido de uma afirmao central de Politzer: a idia [central para a psicanlise] segundo a qual poderia haver uma dialtica puramente individual qual os atos individuais forneceriam uma significao puramente individual totalmente estranha psicologia clssica. Isto implicava na defesa de uma subjetividade do sentido que permitir Politzer afirmar: o carter mais evidente dos fatos psquicos de serem em primeira pessoa. E aqui ficamos sabendo que um fenmeno na primeira pessoa aquele cuja forma resultado de seu pertencimento ao Eu. Ou seja, um fenmeno de primeira pessoa aquele cuja forma sintetizada pelo Eu e s pode ser compreendida atravs de remisso ao Eu como centro ativo.

Mas, lembra Politzer, sempre podem dizer que a psicologia clssica j admitia que os fatos psicolgicos so manifestaes de uma conscincia individual. neste ponto que Politzer submete a crtica da cincia a uma teoria do sujeito. Pois a questo fundamental aqui saber qual o conceito de sujeito pressuposto pela psicologia. Este, seria um sujeito anterior crtica kantiana que determinava o sujeito como responsvel ativo pela constituio da sntese das faculdades do conhecimento, um sujeito mais prximo de uma leitura ento corrente do empirismo ingls: o Eu como feixe de representaes e de funes: o Eu simples causa, um puro centro funcional cujos fenmenos e funes poderiam ser analisados de maneira isolada, ou ainda, um olho, no esquema da reflexo. Cada funo tratada como um elemento impessoal e no como a encarnao da forma do Eu.

De fato, Politzer trabalha com um conceito de totalidade advindo da Gestalt, esta totalidade onde as partes no podem ser decompostas e analisadas de maneira separada, mas onde cada parte deve, ao contrrio, sempre ser reportada a uma totalidade pressuposta como condio para a revelao do sentido. Da porque Politzer pode dizer: A totalidade que os psiclogos querem admitir no homem apenas uma totalidade funcional, uma sobreposio de noes de classe. Ora, uma tal sobreposio no um ato e no supe um sujeito. A totalidade que Politzer procura, por sua vez, aquela que me permite encontrar, em cada ao humana, a implicao de um sentido que transcende as exigncias imediatas do meio no qual a ao est inserida.

Mas esta totalidade s poder ser desvelada se apreendermos o sujeito como sujeito daquilo que Politzer chama de vida dramtica: O psiclogo ter pois algo do crtico dramtico: um ato lhe aparecer sempre como um segmento do drama, ele s existe no e pelo drama. Seu mtodo no pois um mtodo de observao, mas um mtodo de interpretao. Notemos, o drama esta seqncia de atos na qual cada ato vai configurando o campo de significao dos atos posteriores, um campo de significao que normalmente ultrapassa a inteno dos sujeitos que agem.

Sendo assim, a questo que fica : como o psiclogo pode ter acesso estrutura deste drama que aparece como totalidade que orienta a conduta do sujeito na realizao de um sentido. neste ponto que Politzer afirma: a maior contribuio clnica da psicanlise encontra-se no abandono da noo de introspeco em prol da noo de narrativa. Por um lado, a narrativa implica um regime de objetividade mais prximo do comportamento do que da intuio. No entanto, ela um comportamento que deve ser interpretado, e no apenas observado. Pois a narrativa sempre animada por uma inteno significativa, inteno esta que pode no aparecer como um pensamento sob o regime do para-si da conscincia, mas que sempre se manifesta no endereamento a um outro, dimenso prpria a toda e qualquer narrativa. Por isto, Politzer no cansar de lembrar: em todo uso da linguagem, h sempre um primado da atividade teleolgica, atividade orientada em direo a fins.

A narrativa do sujeito aparece pois como o verdadeiro campo do tratamento j que ela que constitui esta totalidade da vida concreta do sujeito qual o fato psicolgico necessariamente se reporta. Notemos, a narrativa tem um poder constitutivo, e no apenas descritivo, j que ela modo de rememorao e de simbolizao reflexiva da multiplicidade de atos de um sujeito. Isto explica a predominncia que a psicanlise d palavra, isto a despeito da centralidade de procedimentos de medicalizao.

Notemos, para finaliza, que este esquema interpretativo politzeriano estar presente em vrios recursos epistemolgicos psicanlise, como estes operados por Habermas e por Ricoeur. Por exemplo, para Habermas, a psicanlise forneceria o modelo de uma cincia que recorre de maneira sistemtica auto-reflexo, j que trataria de levar o paciente a apreender, de maneira reflexiva, as conexes causais que determinaram as deformaes sintomticas nas quais o inconsciente se expressa.

Neste sentido, as formaes do inconsciente (como os sonhos) deveriam ser compreendidas como: cicatrizes de um texto alterado ao que o autor [de tais alteraes] confrontou-se como quem se confronta com um texto incompreensvel (HABERMAS, 1973, p.252). Pois tais cicatrizes seriam marcas de uma linguagem desgramaticalizada (entgrammatikalisiert). Noo astuta, j que no se trata de compreender as formaes do inconsciente como frutos de uma linguagem privada mas de uma linguagem privatizada que poderia ser retraduzida na esfera na linguagem pblica. Pois isolar certos smbolos individuais da comunicao pblica equivale a privatizar seus contedos semnticos. No entanto, subsiste uma conexo lgica entre a lngua deformada e a lngua pblica na medida que este dialeto privado suscetvel de ser traduzido exatamente nisto que consiste o trabalho de anlise de linguagem ao qual o terapeuta se dedica (HABERMAS, 1973, p.274). Da porque o progresso analtico seria um reaprendizado da gramtica, um treinamento intensivo para a retomada competente dos diversos jogos de linguagem (PRADO JR. 2000, p.17). Reaprendizado que, no fundo, simbolizao dos ncleos traumticos e formaes do inconsciente atravs dos mbiles da rememorao. Simbolizao convergente que, em ltima instncia, concebe o final de anlise como totalizao narrativa capaz de dar expresso pblica histria do desejo do sujeito atravs da rememorao. Habermas poder ento afirmar: Esta histria representada esquematicamente como um processo de formao que progride atravs dos estgios de uma objetivao de si e que tem seu fim (Telos) na conscincia de si de uma histria da vida cuja apropriao foi realizada pela auto-reflexo. (HABERMAS, 1973, p.290). Nada mais politzeriano.

A crtica metapsicologia

Mas para Politzer, a metapsicologia depeciona as exigncias da psicologia concreta. Politzer no pensa apenas no vocabulrio cientista e energtico que Freud herdara da psicofsica e que ele sempre utiliza para descrever o aparelho psquico e seu funcionamento como se fosse um processo em terceira pessoa. A prpria noo de inconsciente , segundo Politzer, uma hiptese suprflua. Abrindo um caminho que depois ser seguido por Sartre na sua crtica do inconsciente freudiano, Politzer lembrar que conscincia sinnimo de imputabilidade, de reconhecimento e de identificao. Neste sentido: toda esta dinmica de representaes que supem censura, recalcamento e resistncia se relaciona conscincia mesma que o sujeito pode ter de seus prprios comportamentos. os ditos contedos mentais inconscientes (contedos latentes de sonhos, crenas no-conscientes, acontecimentos traumticos denegados, etc.) no podiam ser realmente inconscientes. Como tais contedos mentais seriam o resultado de um processo de recalcamento, chega-se rapidamente a um certo paradoxo: para que exista recalcamento, faz-se necessrio que exista conscincia prvia do recalcamento. Como dir Sartre: "Eu devo saber muito precisamente esta verdade [a verdade dos contedos mentais inconscientes] para que eu a esconda de mim com mais cuidado". Acento colocado aqui sobre o saber. Se levarmos em conta as resistncias correntes de um analisando, veremos que elas demonstram: a) uma representao do recalcado; b) uma compreenso do alvo para onde tendem as questes do psicanalista.

Assim, Politzer afirmar que o sonho s tem um contedo: o contedo latente. Mas tal contedo, o sonho o tem imediatamente, e no posteriormente a um mascaramento. Ou seja, a significao do sonho no est em uma outra cena, mas est implicada na prpria montagem do sonho, no prprio trabalho do sonho. Politzer fala de uma montagem presente no sonho tal como ele atualmente se manifesta. Este mecanismo que determina o processo de montagem do sonho o que objeto da narrativa que o sujeito faz a respeito do que foi sonhado. Esta latncia do sonho o que ganha corpo no interior da narrativa. Esta funo da narrativa demonstra como, para Politzer, a negao do inconsciente no implica em entificao da conscincia. Implica apenas em abandono do pretenso carter privilegiado da dimenso do para-si do pensar.

O estatuto da psicologia

Aula 5

Na aula de hoje, iniciaremos o segundo mdulo do nosso curso, este dedicado discusso do pensamento de Georges Canguilhem. Tal discusso ter por guia o comentrio de seu livro central: O normal e o patolgico. Como havia sugerido, outros textos de Canguilhem sero estudados, como O que a psicologia? Textos sugeridos sobre a obra de Georges Canguilhem so: La vie: lexperience et la science, de Michel Foucault e Canguilhem et les normes, de Guillaume Le Blanc

Canguilhem , sem dvida, o nome mais eminente da epistemologia das cincias mdicas e biolgicas do sculo XX e figura fundamental no desenvolvimento da epistemologia das cincias humanas. Sua experincia intelectual deve ser compreendida no interior de uma corrente epistemolgica francesa marcada por nomes como: Gaston Bachelard, Jean Cavaills, Alexandre Koyr, entre outros. No entanto, a posio de Canguilhem peculiar e resultante de sua dupla formao: mdico e pesquisador em filosofia. Isto o permitiu construir de todas as peas um campo novo de reflexo epistemolgica, a saber, a reflexo filosfica sobre a medicina e sobre aquilo que se chama, na Frana, de cincias da vida. A constituio de tal campo de pesquisas foi desdobrada e continuada principalmente pelo mais conhecido de seus alunos, Michel Foucault. Dificilmente poderamos pensar em livros como O nascimento da clnica sem o impacto gerado por trabalhos como O normal e o patolgico. Por outro lado, a obra de Canguilhem dialoga com, devido a partilha de temticas, com uma outra tradio de reflexo epistemolgica, esta de Merleau-Ponty e Politzer marcada sobretudo pela fenomenologia e pela perspectiva da relao entre sujeito e sentido, do sujeito como plo de produo de sentido dos fatos prprios a clnica. Basta lembrar como o programa politzeriano de uma psicologia concreta ainda ressoa, de uma certa forma, nesta afirmao de Canguilhem: Espervamos da medicina justamente uma introduo a problemas humanos concretos [ou seja, a problemas cujo sentido exige a atualizao de uma perspectiva que leve em conta os modos de interao entre o homem e seu meio, assim como suas disposies teleolgicas].

Neste sentido, a experincia intelectual de Canguilhem se coloca em um ponto privilegiado no interior do qual duas grandes tradies do pensamento francs se encontram. Isto talvez explique a extenso de uma influncia bem traada por Foucault ao afirmar: Retirem Canguilhem e vocs no compreendero grande coisa sobre uma srie de discusses que ocorreram no marxismo francs, vocs no apreendero o que h de especfico em socilogos como Bourdieu, Castel, Passeron e que os marca de maneira to forte no campo da sociologia, voc perdero todo um aspecto do trabalho terico feito pelos psicanalistas e , em especial, pelos lacanianos. Mais: em todo o debate de idias que precedeu ou seguiu o movimento de 1968, fcil encontrar o lugar destes que, de perto ou de longe, foram formados por Canguilhem.

Dentre suas obras, O normal e o patolgico sem dvida a mais ambiciosa e sistemtica. Resultado de uma tese defendida em 1943 intitulada Ensaio sobre a alguns problemas relativos ao normal e ao patolgico, o livro, em sua verso final, foi acrescido de trs artigos escritos vinte anos depois e agrupados sob o ttulo de Novas reflexes referentes ao normal e ao patolgico. Mas do que fala exatamente este livro? Seu ttulo j indica claramente a configurao do objeto de estudos: trata-se de discutir o estatuto das estruturas de definio e de partilha entre fenmenos normais e fenmenos patolgicos. Questo central no apenas para a biologia e para a clnica (seja ela mdica ou psicolgica) mas, fundamentalmente, uma questo central para a filosofia. Pois, por trs das mudanas e redefinies do que est em jogo na partilha entre normal e patolgico encontramos um problema vinculado maneira com que a razo moderna determina a articulao entre vida e conceito, entre ordem e desordem, entre norma e erro. Uma grande parte do trabalho canguilhemeano de historiador das cincias est ligada a tentativa de demonstrar como as decises clnicas a respeito da distino entre normal e patolgico so, na verdade, um setor de decises mais fundamentais da razo a respeito do modo de definio daquilo que aparece como seu Outro (a patologia, a loucura etc.). Neste sentido, elas se inserem em configuraes mais amplas de racionalizao que ultrapassam o domnio restrito da clnica. Da porque Canguilhem pode afirmar: a filosofia uma reflexo para a qual qualquer matria estranha serve, ou diramos mesmo para qual s serve a matria que lhe for estranha. Pois problemas que parecem obedecer a um desenvolvimento ditado apenas pelo estado da tcnica ou pela configurao natural do dado so, ao contrrio, espaos privilegiados nos quais a razo configura, silenciosamente, os campos da experincia possvel. Tal certeza fornece o sentido de uma afirmao metodolgica central como: A histria das idias no pode ser necessariamente superposta histria das cincias. Porm, j que os cientistas, como homens, vivem sua vida num ambiente e num meio que no so exclusivamente cientficos, a histria das cincias no pode negligenciar a histria das idias.

Por outro lado, isto significa que um problema clnico nunca apenas um problema clnico, at porque, ele s e determinado enquanto problema por partilhar um padro de racionalidade, historicamente situado, cujas razes no se esgotam apenas no campo da clnica. Esta e uma das razes que leva Canguilhem a afirmar ser: um grave problema, ao mesmo tempo biolgico e filosfico, saber se ou no legtimo introduzir a Histria na Vida. Esta a razo tambm que permite a Canguilhem operar com um noo ampla de clnica que, embora privilegiando a nosografia somtica e a fisiopatologia, no deixa de abrir questes e permitir extenses em direo nosografia psquica e psicopatologia.

Tal posio de Canguilhem a respeito da natureza do problema prprio distino entre normal e patolgico nos permite lanar luz sobre a estrutura peculiar de seu livro. Divido em duas grandes partes, o livro inicia passando em revista diferentes verses de uma mesma tese ento hegemnica no sculo XIX, uma espcie de dogma cientificamente garantido, dir Canguilhem, a respeito da distino entre normal e patolgico. Augusto Comte, Claude Bernard e Ren Leriche teriam em comum uma maneira de compreender a diferena entre normal e patolgico como uma diferena quantitativa que diria respeito a funes e rgos isolados, como se os fenmenos patolgicos fossem, no organismo vivo, apenas variaes quantitativas, dficits ou excessos. Como lembra Canguilhem, semanticamente, o patolgico designado a partir do normal, no tanto como a ou dis, mas como hiper ou hipo. Assim: a doena no pensada como uma experincia vivida, engendrando transtornos e desordens, mas como uma experimentao aumentando as leis do normal. Quer dizer, a doena nada mais do que um sub-valor derivado do normal. a definio do normal como estrutura valorativa positiva que define o campo da clnica. Esta experincia clnica exige que o normal esteja assentado em um campo mensurvel acessvel observao. Tal campo privilegiado a fisiologia que aparece assim como fundamento para uma clnica que ir se orientar a partir dos postulados de uma anatomia patolgica: As tcnicas de interveno teraputica s podem ser secundrias em relao cincia fisiolgica, isto na medida em que o patolgico s tem realidade provisria por declinao do normal. O que nos deixa como uma questo maior: o que deve acontecer ao corpo para que a fisiologia possa aparecer como campo de determinao da normatividade da vida, campo de identificao daquilo que deve valer para a clnica como norma? Questo que ser retomada por Foucault, em O nascimento da clnica, ao lembrar que: o que modificado com o advento da medicina anatomo-clnica no a simples superfcie de contato entre o sujeito cognoscente e o objeto conhecido; a disposio mais geral do saber que determina as posies recprocas e o jogo mtuo deste que deve conhecer e o que h a conhecer.

A primeira parte do livro assim um exame crtico da noo que procura definir o patolgico a partir do normal, como se a experincia do normal fosse anterior determinao do patolgico. J no primeiro captulo, intitulado Introduo ao problema, Conguilhem lembra que h uma outra perspectiva de anlise das distines entre normal e patolgico que insiste na distino qualitativa, e no meramente quantitativa, entre os dois. Tal perspectiva teria, ao menos, duas verses. Uma deveria ser chamada de teoria ontolgica devido ao fato de encarar a doena como o resultado da presena do que tem realidade ontolgica distinta do corpo so. A teoria microbiana das doenas contagiosas (Pasteur) seria um caso paradigmtico aqui por fornecer, atravs do micrbio, uma representao ontolgica do mal positivamente localizada, segundo Canguilhem. J a outra deveria ser chamada de teoria dinamista ou funcional e encontra na medicina grega seu exemplo fundador. Contrariamente a uma noo de doena determinada a partir da possibilidade de localizao, a medicina grega estaria marcada por um certo dinamismo relacional que j vimos em operao ao estudar o problema da natureza do sintoma segundo um Georges Politzer profundamente marcado pela Gestalttheorie: A natureza (physis) tanto no homem como fora dele, harmonia e equilbrio. A perturbao desse equilbrio, dessa harmonia, a doena. Nesse caso, a doena no est em alguma parte no homem. Est em todo o homem e toda dele. A doena aparece assim como um acontecimento que diz respeito ao organismo vivo encarado na sua totalidade Pois: no h um nico fenmeno que se realize no organismo doente da mesma forma como no organismo so. Quando classificamos como patolgico um sistema ou um mecanismo funcional isolado, esquecemos que aquilo que os tornam patolgicos a relao de insero na totalidade indivisvel de um comportamento individual. Canguilhem chega mesmo a afirmar que ser doente , para o homem, viver uma vida diferente. Notemos ainda que tal estratgia de vincular o normal a partir de uma relao normativa de ajustamento ao meio implica em afirmar que no h fato algum que seja normal ou patolgico em si. Eles so normal e patolgico no interior de uma relao entre organismo e meio ambiente.

Assim estas duas teorias, ontolgica e dinamista, teriam em comum o fato de afirmar que: a doena difere da sade, o patolgico do normal, como uma qualidade difere de outra, quer pela presena ou ausncia de um princpio definido, quer pela reestruturao da totalidade orgnica. No h uma continuidade quantitativa entre normal e patolgico, mas discontinuidade qualitativa.

Ser uma variao desta perspectiva qualitativa e relacional prpria medicina grega que Canguilhem ir apresentar na segunda parte de seu livro. Nesta segunda parte, trata-se de uma tentativa de redefinir o problema da distino entre normal e patolgico a partir de novas bases. Pois Canguilhem no procura simplesmente reatualizar a reflexo grega sobre a medicina, mas avanar em uma reflexo a respeito da qual podemos apreender a extenso apenas se lembrarmos das reflexes politzerianas estudadas anteriormente (embora Canguilhem nunca cite Politzer).

Se quisermos compreender a doena, necessrio desumaniz-la. Na doena, o que menos importa o homem. Estas duas afirmaes so de Ren Leriche e visavam insistir como a clnica no poderia ser dependente da expresso da subjetividade do doente, sempre incerta e insegura, mascarando a certeza que apenas o contato com a fisiologia poderia revelar. De uma certa forma, Canguilhem parte delas para procurar defender o contrrio, que o patolgico s comea quando , de uma certa forma, reconhecido como tal pela conscincia marcada pela experincia da doena. Com um certo acento hegeliano, Canguilhem no teme em afirmar que: no h nada na cincia que antes no tenha aparecido na conscincia [no necessariamente na conscincia do sujeito que atualmente sofre, mas naquelas dos que outrora sofreram e que fornecem ao mdico a orientao do seu olhar].

Uma proposio desta natureza passvel de vrios mal-entendidos por parecer convidar a uma deriva subjetivista insustentvel para a definio da partilha entre normal e patolgico. Afinal, a patologia um conhecimento objetivo ou resultado do sentimento subjetivo do paciente? Na verdade, veremos que Canguilhem tem em vista,. na verdade, o fato de que: no h cincia da fisiologia humana sem tcnica de restaurao da sade, ou seja, sem a conscincia da doena por um sujeito. Uma nova afirmao resulta disto: a anterioridade da clnica, experincia da doena partilhada entre o doente e o mdico, sobre a fisiologia e a patologia. Compreender este ponto s ser possvel quando apreendermos a noo de Canguilhem a respeito do patolgico como aquilo que se define a partir de uma individualidade biolgica.

Por outro lado, fica claro que o problema do patolgico est vinculado a uma questo absolutamente central: em que situao ocorre algo como a conscincia da doena? O que significa, para um organismo, estar doente? Veremos, na segunda parte do livro, como Canguilhem retoma alguns postulados da medicina grega a fim de insistir no carter relacional da patologia, a patologia como o que se revela na relao entre o organismo e seu meio. Isto ficar claro, por exemplo, quando Canguilhem discutir a perspectiva que procura vincular o normal ao conceito de mdia aritmtica, de frequncia estatstica ou, ainda, de tipo ideal em condies experimentais determinadas; como se o normal fosse um problema de biometria. A posio de Canguilhem a este respeito estar sintetizada em afirmaes como: Se verdadeiro que o corpo humano , em certo sentido, produto da atividade social, no absurdo supor que a constncia de certos traos, revelados por uma mdia, dependa da fidelidade consciente ou inconsciente a certas normas de vida. Por conseguinte, na espcie humana, a frequncia estatstica no traduz apenas uma normatividade vital, mas tambm uma normatividade social. Maneira de afirmar que no interior da relao entre organismo e meio que poderemos definir conceitos como normal e patolgico.

Auguste Comte e o problema do patolgico

O captulo II de O normal e o patolgico dedicado a uma reflexo sobre tais problemas em Auguste Comte. Comear por Comte no era uma deciso gratuita. No Frana, foi sobretudo o positivismo de Comte que apareceu como maneira de retomar a indagao sobre a natureza dos processos de racionalizao prprios a modernidade. Indagao que no deixava de articular uma histria geral das sociedades e uma discusso a respeito da positividade das cincias. Neste sentido, este comeo indica claramente os interesses de Canguilhem. Trata-se de mostrar como o problema do patolgico um setor da reflexo a respeito dos processos de racionalizao em operao na modernidade, fato que Comte no teria dificuldade em aceitar.

Canguilhem parte lembrando como Comte seguia Pinel ao defender, sob o nome de princpio de Broussais que: todas as doenas aceitas como tal so apenas sintomas e que no poderiam existir perturbaes das funes vitais sem leses dos rgos, ou melhor, de tecidos. Maneira de assentar o estudo do patolgico na fisiologia e afirmar que a doena no seria outra coisa que efeito de variaes de intensidade na ao de estimulantes indispensveis conservao da sade. Maneira de dizer, tambm, que a observao clnica no pode ser outra coisa que a comparao entre um fenmeno padro e um fenmeno alterado e que qualquer patologia deve se basear no conhecimento prvio de um estado normal.

Aqui vemos claramente o mtodo de Canguilhem em operao. Ele lembra que uma afirmao como a de Comte exige o reconhecimento de um critrio para definir a normalidade de um fenmeno a no ser que Comte se apie em conceitos usuais de harmonia entre influncias da natureza e exigncias do organismo. No entanto, um conceito usual carregado de conotaes como o conceito de harmonia s pode ser visto como um conceito que expressa posies ideolgicas. Da porque Canguilhem pode afirmar que ele muito mais um conceito esttico e moral do que exatamente cientfico, j que guarda preceitos normativos de ordem social: O conceito de normal se transforma em conceito esttico porque exprime um equilbrio possvel entre as influncias da natureza e do organismo a respeito do qual o espectador advertido que