safatle esquerda nao teme dizer nome
DESCRIPTION
Igualdade - Soberania popular - Democracia além do Estado de DireitoTRANSCRIPT
-
A esquerda
que no teme
dizer seu nome
Vladimir Safatle
-
2012 Trs Estrelas - selo editorial da Empresa Folha da Manh S.A.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio sem a permisso expressa c por escrito da Empresa Folha da Manh S.A., detentora do selo editorial Trs Estrelas.
e d i t o r Alcino Leite Neto
e d i t o R A - A S S iS T E N T E Rita Palmeira
c o o r d e n a o d e p r o d u o g r a f i c a Mariana Metidieri
p r o d u o g r f i c a ris Polachini
c a p a Felipe Kaizer
p r o j e t o g r f i c o d o m t o l o Mayumi Okuyama
p r e p a r a o Paulo Nascimento Verano
r e v i s o TulioKawata
Dados Internacionais de Catalogaro na Publicao (c i p )(Cmara Brasileira do Livro, s p , Brasil)
Safatle, VladimirA esquerda que no teme dizer seu nom e /Vladimir Safatle.
So Pau lo: Trs Estrelas, 2012.
vISBN 978-85-65339-04-9
1. Direita e esquerda (Poltica) 2. Filosofia poltica 1. Ttulo
12-04664 CDD-320.01
ndice para catlogo sistemtico:
1. Pensamento de esquerda: Filosofia poltica 320.01
Este livro segue as regras do Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa (1990}, em vigor desde ie de janeiro de 2009.
_ J t r s^ ESTRELAS
A l. B aro de I im eira, 4 0 1 ,6- an d ar CEP 0 12 0 2 -9 0 0 , S o Paulo, s p
Tel.: (11) 3224-2186/2187/2197
-
Sumrio
io Introduo
20 Igualdade e a equao da indiferena
38 Soberania popular ou a democracia para
alm do Estado de Direito
60 Do tempo das ideias
82 Concluso
87 Sobre o autor
-
Introduo
-
Um dos m antras preferidos dos ltim os anos diz respeito
ao p reten so esgotam en to do p en sam en to de esquerda.
Seus sacerdotes so de dois tipos. Os prim eiros gostariam
de ser vistos com o os vitoriosos de um a poca term inada de
conflito ideolgico. Eles no cansam de afirm ar que a es-
querda nunca p assou de um arrem edo de autoritarism o
mal-disfarado, demandas infantis de proteo, ingenuidade
a respeito das violncias animadas pelo mal radical e incom -
petncia gerencial.
Durante dcadas, esses intelectuais no tinham coragem
de dizer claramente o que pensavam. Mas, animados pelo fim
do socialismo real, com o consequente colapso dos partidos
com unistas no Ocidente, pelo em baralhamento sistemtico
das polticas de sociais-dem ocratas e conservadores, pela
parania securitria da prim eira dcada do sculo e por
doses reforadas de fundam entalism o cristo, eles podem
agora afirm ar todo seu conservadorism o e sua crena nas
virtudes curativas do porrete da polcia.
11
-
O segundo tipo composto de um squito heterclito de
vivas da esquerda. Com um olhar entristecido, elas afirmam
que a esquerda est sem rum o desde a queda do Muro de
Berlim e que chegou a hora de doses amargas de realismo.
No d mais para sonhar com Estado de Bem-Estar Social
e coisas do tipo, nem ter explicaes angelicais a respeito
da violncia. Falar em novas configuraes do poltico
conversa de gente que no entendeu que a democracia par-
lamentar , como costumava dizer um lder conservador, o
pior governo, mas o nico possvel. As velhas agendas de
crtica do poder, de identificao dos conflitos de classe e
das prticas disciplinares presentes em nossas instituies
poderiam muito bem ser trocadas por uma boa ao social
em o n g s ecolgicas, de preferncia aquelas financiadas por
bancos e grande corporaes.
Vrias dessas vivas, principalmente em pases euro-
peus, no temeram flertar com o pior do nacionalismo e do
culto da identidade, travestindo tudo isso de luta do Ocidente
liberal contra o Oriente islmico amedrontado pelo inelut-
vel processo de modernizao.
De fato, esse mantra do esgotamento do pensamento de
esquerda encontrou no Brasil um terreno profcuo. Desde o
governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), tnhamos
de conviver com o cinismo de intelectuais que utilizavam
Marx para justificar o carter inevitvel da globalizao e de
nossa insero dependente e subalterna. O nico resultado
12
-
concreto desse cinism o foi im por um dito choque de rea-
lidade, visando a acabar de vez com o pretenso fantasm a
do Estado getulista, com seus tentculos ineficientes. Por
m uito pouco , no se destri o que restava da capacidade
estatal de construo de polticas de interveno econmica,
capacidade cuja im portncia ficou evidente depois da crise
mundial de 2008.
Com o se isso no bastasse, a desconsiderao sobe-
rana por m ovim entos sociais e por setores organizados da
sociedade civil - parte a Federao Brasileira de Bancos
(Febraban) - foi regra nesse perodo. S a ttulo de exem -
plo, o lder do governo de Fernando Henrique Cardoso no
Congresso no temia chamar aes do Movimento dos Traba-
lhadores Rurais Sem Terra (m s t ) de terrorism o. Da m esm a
forma, a questo social era to ausente que seu presidente do
Banco Central no via problem as em ir televiso e sugerir
pura e sim plesm ente a supresso do pargrafo da Consti-
tuio Federal que obrigava o Estado a garantir a universa-
lizao do servio pblico de sade.
Com o governo Luiz Incio Lula da Silva (2003-2010), no
entanto, continuam os obrigados a conviver com o bloqueio
reiterado da reconstruo dos fundamentos gerais do cam po
do poltico, com o se a im erso na pior poltica fosse um a
fatalidade intransponvel. A despeito de sua capacidade de
colocar a questo social enfim no centro do embate poltico
e de com preender o necessrio carter indutor do Estado
13
-
brasileiro no nosso desenvolvim ento socioeconm ico, o
governo Lula ser lembrado, no plano poltico, por sua inca-
pacidade de sair dos im passes de nosso presidencialism o de
coalizo. Com o se a governabilidade justificasse a acom oda-
o final da esquerda nacional a urna sem idem ocracia im o-
bilista, de baixa participao popular direta e com eleies
em que s se ganha mobilizando, de maneira espria, a fora
financeira com seus corruptores de sempre.
Nos dois casos, esm erou-se em utilizar um palavreado
de esquerda para justificar business as usual. O que acaba por
reforar nossa im presso de que o poltico na contem pora-
neidade seria apenas a dimenso da ausncia de criatividade
e das lim itaes de nossas aspiraes de m udana.
Por isso, som os obrigados a ouvir compulsivamente que
a diviso esquerda/direita no faz mais sentido. Mesmo que
ainda encontremos posies polticas e leituras dos impasses
da vida social contempornea radicalmente antagnicas, h
um a clara estratgia de evitar dar a tais antagonism os seu
verdadeiro nom e. Ela utilizada para fornecer a im presso
de que nenhuma ruptura radical est na pauta do campo poltico
ou, para ser mais claro, de que no h mais nada a esperar
da poltica, a no ser discusses sobre a melhor maneira de
administrar o modelo socioeconm ico hegemnico nas so -
ciedades ocidentais. No se trata mais de pensar a modificao
dos padres de partilha de poder, de distribuio de riquezas e
de reconhecimento social. Trata-se de uma questo de gesto
14
-
de modelos que se reconhecem com o defeituosos, mas que
ao mesmo tempo se afirmam com o os nicos possveis.
A funo atual da esquerda , por isso, mostrar que tal
esvaziamento deliberado do cam po poltico feito para nos
resignarm os ao pior, ou seja, para nos resignarm os a um
modelo de vida social que h muito deveria ter sido ultrapas-
sado e que evidencia sinais de profundo esgotamento. Cabe
esquerda insistir na existncia de questes eminentemente
polticas que devem voltar a frequentar o debate social.
Uma maneira de iniciar a discusso identificando quais
so as posies que podem caracterizar, hoje, o pensamento
de esquerda. Importante insistir que a plasticidade da pol-
tica exige que a determinao dos problemas do presente
defina a configurao de nossa posio. Isso significa que
o pensamento poltico deve ter uma dimenso profunda-
mente estratgica. Ele se move de acordo com os proble-
mas postos pela vida social. Muitas vezes, vrias correntes
da esquerda ignoraram tal mobilidade, entrando assim em
uma espcie de petrificao do discurso que acabou por
afast-los da capacidade de pautar a opinio pblica.
Essa reflexo sobre as posies que caracterizam a
esquerda pode nos m ostrar com o a poltica , em seu fu nd a-
mento, a deciso a respeito do que ser visto como inegocivel. Ela
no simplesmente a arte da negociao e do consenso, mas
a afirm ao taxativa daquilo que no estamos dispostos a
colocar na balana. O que falta hoje esquerda mostrar o
15
-
que, segundo seu ponto de vista, inegocivel. Por exemplo,
quais processos e resultados so fundam entais para um a
verdadeira coeso social que no seja submersa por clivagens
e desigualdades.
Este livro pretende falar, pois, do inegocivel, ou seja,
disso que, norm alm ente, a prim eira coisa que a esquerda
esquece quando assu m e o go vern o e com ea a ficar fas-
cinada p o r ser recebida em casas de escroques na R iviera
Francesa, por ser convidada para vernissages de publicitrios
travestidos de artistas plsticos e por com ear a ler m ais so -
bre vinh os caros do que sobre a alienao do trabalho nas
linhas de m ontagem da Ford.
Vale a pena insistir nesse ponto, porque o principal p ro -
blema que acomete a esquerda atual sua dificuldade em ser
um a esquerda popular. Isso significa duas coisas: saber expor
problem as sociais a partir da perspectiva dos que so mais
vulnerveis a eles e, sobretudo, ser um enunciador crvel para
tais cam adas populares. No prim eiro caso, a esquerda deve
saber encarnar a urgncia daqueles que sentem mais claramente
o sofrim ento social advindo da precariedade do trabalho,
da pauperizao e das m ltiplas form as de excluso. Mas
difcil encarnar tal urgncia quando se com ea a v iver em
apartam entos de 6,5 m ilhes de reais.
N o segundo caso, a esquerda deve m ostrar que ca -
paz de governar sem produzir novas m odalidades de so fri-
m ento e insegurana social. Ela deve ser capaz de detalhar
16
-
ao extrem o suas aes e os cenrios possveis que estas en-
gendrariam. Ela deve m ostrar estar ciente das dificuldades
e da m elhor maneira de venc-las, isso sem ter que apelar
para ideias vagas como: tudo se resolve por meio de vontade
poltica . Ou seja, ela deve ser, ao m esm o tempo, capaz de
sentir o sofrimento social e capaz de ter a inteligncia tcnica
para resolv-lo no cotidiano.
A G I R P A R A N O P E N S A R
Um leitor impaciente poderia, no entanto, se perguntar por
que perder tem po com teoria e discusso sobre princpios
se as urgncias prticas da poltica parecem to prementes.
Nesse sentido, valeria a pena lembr-lo dos pargrafos in i-
ciais de Carta sobre o humanismo, em que Martin Heidegger
confrontado com um a pergunta a respeito da relao
entre pensam ento e prxis. M arx j dissera que a funo
da filosofia era transform ar o m undo, e no simplesmente
pens-lo. Heidegger faz um adendo de rara preciso: o pen-
sam ento age quando pensa.
Na verdade, esse agir prprio ao pensam ento talvez
o agir m ais difcil e decisivo. N o se trata da velha crena
de o pensam ento, no fundo, ser um subterfgio para a
ao, um a com pensao quando no som os capazes de
agir. Se p odem os d izer que o pensam ento age quando
17
-
pensa, porque ele a nica atividade que tem a fora de
modificar nossa com preenso do que , de fato, um pro-
blema, qual o verdadeiro problema que temos diante de
ns e que nos impulsiona a agir. o pensamento que nos
permite compreender como h uma srie de aes que so,
apenas, lances no interior de um jogo cujo resultado j est
decidido de antemo.
A sociedade capitalista contempornea procura dar aos
sujeitos a impresso de eles terem possibilidades infinitas,
de poderem decidir sobre tudo a todo momento. Um pouco
como as decises de consumo, cada vez mais customizadas
e particularizadas. No entanto, talvez seja correto dizer que
essa ao no um verdadeiro agir, pois incapaz de mu-
dar as possibilidades de escolha, que j foram previamente
determinadas. Ela no produz seus prprios objetos, apenas
seleciona objetos e alternativas que j foram previamente
postos na mesa. Por isso, essa ao no livre.
Quando realmente pensam os, conseguim os ir alm
dessa reduo da liberdade a um simples livre-arbtrio que
me faz escolher no interior de um quadro que me imposto
sem que eu possa produzi-lo. Por isso, o pensamento, quando
aparece, exige que toda ao no efetiva pare, a fim de que
o verdadeiro agir se manifeste. Nessas horas, entendemos
como, muitas vezes, agimos para no pensar, pois pensar de
verdade significa pensar na sua radicalidade, utilizar a fora
crtica e a fora radical do pensamento.
18
-
Quando a fora crtica do pensamento com ea a agir,
ento todas as respostas comeam a ser possveis, alterna-
tivas novas comeam a aparecer na mesa. Nesses momentos,
com o se o espectro das possibilidades aumentasse, uma
vez que, para que novas propostas apaream, necessrio
que saibamos, afinal de contas, quais so os verdadeiros pro-
blemas. E talvez devamos colocar novamente esta questo
sim ples: para um a perspectiva de esquerda, quais so os
verdadeiros problemas?
19
-
Igualdade e a equao da indiferena
-
Q uem ignora efetivam ente que os lo b o s andam em m atilha?
G I L L E S D E L E U Z E
Talvez a posio atual mais decisiva do pensamento de es-
querda seja a defesa radical do igualitarismo. Juntamente com a
defesa da soberania popular, a defesa radical do igualitarismo
fornece a pulsao fundamental do pensamento de esquerda.
Tal defesa do igualitarismo traz orientaes muito claras
a respeito de questes centrais no campo social e econmico.
Por igualitarismo devemos entender duas coisas. Primeiro,
que a luta contra a desigualdade social e econmica a prin-
cipal luta poltica. Ela submete todas as demais.
Nossas sociedades capitalistas de mercado so socieda-
des paradoxais por produzirem, ao mesmo tempo, aumento
exponencial da riqueza e pauperizao de largas camadas da
populao. Quebrar esse paradoxo tarefa da poltica.
Por outro lado, igualitarismo refere-se tambm a uma
ideia ligada s demandas de reconhecimento. Ela significa
que a esquerda deve ser indiferente s diferenas. De certa
forma, a poltica atual da esquerda s pode ser uma poltica
da indiferena.
21
-
Vejamos o primeiro ponto para depois explicarmos
melhor o segundo.
A partir do incio dos anos 1980, o impulso fornecido
pelos modelos liberais implementados por Margareth
Thatcher (1979-1990) e Ronald Reagan (1981-1989) levou a
economia a um desenvolvimento exponencial nos pases
centrais, isso enquanto ia deixando de lado as expectativas
daquilo que ainda chamvamos nos anos 1960 de sociedade
do Bem-Estar Social.
Se, por um lado, o capital conheceu durante esse pe-
rodo oportunidades mltiplas de investimento, oferecendo
taxas de lucros em geral mais elevadas que em pocas
anteriores,1 por outro, a flexibilizao do trabalho, o de-
senvolvimento tecnolgico e o declnio das polticas esta-
tais de proteo provocaram uma situao potencialmente
explosiva. Apenas para ficar em um exemplo: enquanto
0 Produto Interno Bruto (p i b ) norte-americano por habi-
tante cresceu 36% entre 1973 e 1995, o salrio-hora de no
executivos (que so a maioria dos empregados) caiu i4% .2
No ano 2000, o salrio real de no executivos nos Estados
Unidos retornou ao que era h cinquenta anos. Dados como
estes demonstram que, diante dos modelos liberais, ou seja,
sem forte interveno de polticas estatais de redistribuio,
1 Boltanski, Luc. Le nouvel esprit du capitalisme. Paris: Gallimard, 1999, p. 19.
2 Ver: Thurow, Lester. Lesfractures du capitalisme. Paris: Village Mondial,i97.
22
-
nossas sociedades tendem a entrar em situao de profunda
fratura social por desenvolverem uma tendncia radical de
concentrao de riquezas. O problema da desigualdade s
pode ser realmente minorado por meio da institucionali-
zao de polticas que encontram no Estado seu agente.
Pode-se dizer isso porque, de outra forma, elas nunca tero
a escala e a universalidade necessrias para funcionar. O
Estado a nica instituio que garante o estabelecimento
de processos gerais capazes de submeter toda a extenso
da sociedade.
Por outro lado, ele resultado de uma rede de normas
sociais cuja configurao sensvel presso da sociedade
organizada. Tal presso pde, em vrios momentos da his-
tria do sculo xx, transformar o Estado em fora capaz de
limitar interesses de concentrao de riquezas vindos dos
setores mais afluentes da sociedade. No h outra institui-
o capaz de desempenhar papel semelhante. Por isso, em
nome do combate desigualdade econmica, a esquerda
no pode abrir mo do fortalecimento da capacidade de
interveno do Estado.
As crticas contra o Estado, vindas da prpria esquerda
e animadas pelo saldo libertrio de Maio de 68, no tm res-
posta adequada para o problema da luta contra a desigualdade
econmica. Ela forte na denncia das estruturas disciplina-
res do pder estatal, mas esquece que o Estado moderno no
pode ser reduzido a um aparato disciplinar, nem mesmo, se
23
-
quisermos retomar essa temtica marxista clssica, a um
mero aparelho de interesse de classe. Os ltimos trinta anos
demonstraram claramente como dinmicas de redistribui-
o e de luta contra fraturas sociais no se realizam sem a
fora de interveno do Estado. Hegel j havia insistido com
preciso nesse ponto desde sua Filosofia do direito.
Por outro lado, arautos do pensamento conservador
procuram desqualificar a centralidade da luta contra a de-
sigualdade, afirmando que a diversidade de talentos e de
capacidades de engajamento deve ser respeitada. De fato,
nenhuma pessoa sensata poderia ser contrria meritocracia
e recompensa pelo empreendedorismo. No entanto, tais
valores apenas encobrem o pior cinismo quando no vm
associados luta contra a desigualdade de oportunidades e
condies. A diversidade de talentos , muitas vezes, a capa
que se usa para acobertar que a diversidade de riquezas um
problema que quebra a possibilidade de desenvolvimento
individual por mrito.
Um exemplo do tipo de ao que uma defesa radical do
igualitarismo pode produzir foi sugerido pelo candidato
de uma coligao francesa de partidos de esquerda elei-
o presidencial de 2012, Jean-Luc Mlenchon. Consiste na
proposio de um salrio mximo, com um teto que im-
pediria que a diferena entre o maior e o menor ganho fosse
superior a vinte vezes. Uma lei especfica tambm limitaria
o pagamento de bonificaes e stock-options.
24
-
Em uma realidade social de generalizao mundial das
situaes de desigualdade extrema, outra face daquilo que
certos socilogos chamam de brasilizao, tais propostas
tm a fora de trazer, para o debate poltico, a necessidade
de institucionalizao de polticas contra a desigualdade.
No Brasil, onde a diferena entre o maior e o menor salrio
em um grande banco chega a mais de cem vezes, discusses
dessa natureza so absolutamente necessrias. Elas permi-
tem a revalorizao de atividades desqualificadas economi-
camente e a criao da conscincia de que a desigualdade
impe uma balcanizao social com consequncias pro-
fundas. Discusses como esta s uma esquerda que no teme
dizer seu nome pode apresentar.
Note-se ainda que o argumento liberal referente des-
motivao e quebra do empreendedorismo que aes dessa
natureza trariam simplesmente falso. Entre os vinte pa-
ses com maior ndice de inovao, encontramos Islndia,
Noruega, Sucia e Dinamarca: pases cuja diferena entre
o menor e o maior salrio em empresas, muitas vezes, no
chega a ser de um para quatro. Ou seja, no h nenhuma
relao direta entre diferena salarial e iniciativa profissional.
Garantido um salrio digno, as motivaes para a iniciativa
passam por outras dimenses.
Na verdade, o argumento liberal apenas uma estratgia
para no deixar evidente um clssico processo de espoliao
de classe. No primeiro semestre de 2011, um estudo mostrou
25
-
como o 0,1% mais bem pago no Reino Unido recebia, em 1979,
1,3% dos salrios. Hoje, recebe 5% e em 2030 deve receber 14%/
Costuma-se dizer que urna das maiores astcias do
diabo nos convencer de que ele no existe. Urna das maio-
res astucias do discurso conservador nos convencer, diante
de dados dessa natureza, de que conflito de classe um de-
lirio de esquerdista centenrio. Mesmo que vejamos um
processo brutal de concentrao de renda completamente
institucionalizado e intocado por qualquer partido que esteja
no poder, mesmo que vejamos a tendncia de espoliao dos
recursos de pases industrializados por camadas mais ricas
da populao, tudo deve ser um compi dos incompetentes
contra aqueles que bravamente venceram na vida graas ape-
nas a seu entusiasmo e sua capacidade visionria. Por isso,
a esquerda deve meditar um pouco sobre esta afirmao de
Warren Buffet, um dos homens mais ricos do mundo:
verdade que h urna guerra de classes, mas a minha classe
que est fazendo a guerra e ganhando.
A D E U S D IF E R E N A
I Se a prim eira dimenso do igualitarism o diz respeito sijluta contra a desigualdade econmica, a segunda se refere
3 Ver editorial Mais desigualdade, Folha de S.Paulo, 13/6/2011, p. 2.
26
-
j estrutura das demandas de reconhecimento na vida social.
Isso pode ser explicado por meio daquilo que devemos cha-
m ar de necessidade de um a poltica da indiferena. Um a
maneira de com preender tal necessidade partir da consta-
tao do esgotamento da diferena com o valor m aior para a
ao poltica.
Durante certo tempo, embalada pelos ares libertrios de
Maio de 68, a esquerda viu na diferena o valor suprem o
de toda crtica social e ao poltica. Assim , os anos 1970 e
1980 foram palco da constituio de polticas que, em alguns
casos, visavam a construir a estrutura institucional daque-
les que exigiam o reconhecim ento da diferena no cam po
sexual, racial, de gnero etc. Um a poltica das defesas das
minorias funcionou como motor importante do alargamento
das possibilidades sociais de reconhecim ento. Essa poltica
gerou, no seu bojo, as exigncias de tolerncia multicultural
que pareciam anim ar o mundo, sobretudo a partir de 1989,
com a queda do Muro de Berlim.
Sabem os com o multiculturalismo diz respeito, in icial-
mente, a um a lgica de ao poltica baseada no reconhe-
cim ento institucionalizado da diversidade cultural prpria
s sociedades multirraciais ou s sociedades com postas por
com unidades lingusticas distintas. Isso im plica transfor-
m ar o problem a da tolerncia diversidade cultural, ou seja,
o problem a do reconhecim ento de identidades culturais,
no problema poltico fundamental. Dessa forma, abriram-se
27
-
as portas para certa secundarizao de questes m arxistas
tradicionais vinculadas centralidade de processos de re-
distribu io e de conflito de classe na determ in ao da
a o p o ltica . N o lim ite, os con flitos fun d am en ta is no
in terior do un iverso social foram com preendidos com o
conflitos culturais.
Por um lado, tal dinmica teve sua im portncia por dar
m aior visibilidade a alguns dos setores mais vulnerveis da
sociedade (com o negros, m ulheres e hom ossexuais). No
entanto, a partir de certo m om ento, com eou a funcionar >
de m aneira contrria quilo que prom etia, pois podem os
atualmente dizer que essa transformao de conflitos sociais
em conflitos culturais foi talvez um dos motores maiores de
um a equao usada exausto pela direita mundial, em es-
pecial na Europa. Ela consiste em aproveitar-se do fato de as
classes pobres europeias serem compostas majoritariamente
p o r im igrantes rabes e africanos e, assim , patrocinarem
um a poltica brutal de estigm atizao e excluso poltica
travestida de choque de civilizaes.
Desse m odo, posso estigm atizar pobres aproveitando-
-me do fato de eles serem culturalm ente diferentes, criando
com isso situaes de profunda precarizao do trabalho,
de contnua insegurana de trabalhadores, que so esp o -
liados de todo e qualquer direito por serem im igrantes. Um
clssico conflito de classe e espoliao transformou-se em choque
civilizatrio.
28
-
Ou seja, h uma linha reta que vai da tolerncia multi-
cultural perpetuao racista da excluso daqueles para
quem nossos valores nunca deram prova de incluso moder-
nizadora. Afinal, trata-se de dizer que o nico lugar onde a
diferena pode florescer em liberdade em nosso Ocidente
defendido por mega-aparatos securitrios contra terroristas.
Talvez o saldo final do multiculturalismo seja: aqueles que no
se adaptam a nosso campo de diferenas no so diferentes, mas
simplesmente irrepresentveis, objetos de perptua excluso.
Este um ponto importante por nos mostrar como a
organizao discursiva do campo social das diferenas sempre soli-
dria excluso de elementos que no podero ser representados por
esse campo. Elementos presentes na vida social, mas que no
sero mais ouvidos, elementos cujas palavras sero definidas
por ns como desprovidas de racionalidade e de possibili-
dade de reconhecimento. A nica maneira de evitar isso no
organizar o campo social a partir da equao das diferenas.
A equao das diferenas, to presente nas dinmicas
multiculturais, parte da seguinte questo: at onde podemos
suportar uma diferena? Esta , no entanto, uma pssima
questo. Parte-se do pressuposto de que vejo o outro primei-
ramente a partir da sua diferena minha identidade. Como
se minha identidade j estivesse definida e simplesmente se
comparasse identidade do outro. Nada mais falso.
Por isso, a boa questo talvez seja: em que condies
a diversidade pode aparecer como a modulao de uma
29
-
mesma universalidade em processo tenso de efetivao? Na ver-
dade, a diversidade no foco de desestruturao social
apenas quando ela aparece como uma oportunidade para
que a universalidade deixe de ser meramente abstrata. Por
universalidade abstrata entendamos a universalidade da-
queles que falam minha lngua e conjugam meus valores da
maneira que acho que eles devem ser interpretados.
Um belo exemplo do que pode acontecer no interior
dessa lgica foi dado por Tony Blair, atual consultor do JP
Morgan e fiel escudeiro de George W. Bush. Lembrerrto-
-nos de sua declarao a respeito do dever de integrao
que cai sobre os ombros de todo muulmano que resolveu
emigrar para a Gr-Bretanha, discusso sobre a integrao
motivada pela eterna querela a respeito do porte de vus
em lugares pblicos: Nossa tolerncia, disse Blair, parte
do que faz, da Gr-Bretanha, Gr-Bretanha. Conforme-
-se a isso ou no venha para c. Ns no queremos os
hate-mongers independentemente de sua raa, religio ou
credo.4 Conforme-se a isto ou no venha para c , de
fato e como todos podem perceber, um exemplo muito
ilustrativo de tolerncia.
Por outro lado, bem provvel que essa estratgia de
esvaziamento de conflitos sociais por meio da cultura seja
responsvel tambm pela inacreditvel onda de nacionalismo
4 The Guardian, 9/12/2006.
30
-
requentado que invade a Europa. Desde a criao do Minis-
trio da Imigrao, da Integrao, da Identidade Nacional e
do Desenvolvimento Solidrio pelo marido de Carla Bruni
at o recente apoio europeu declarao da independncia
do Kosovo e o recrudescimento do separatismo na Blgica,
vemos o mesmo tipo de regresso poltica, que consiste em
identificar Estado, nao e povo.
A esse respeito, lembremos que uma das maiores inven-
es polticas da modernidade foi o imperativo de que nem
a nao como construo imaginria, nem o Estado como
aparato jurdico-institucional podem estar relacionados ao
povo como identidade, pois isso significa colonizar a pol-
tica com uma lgica que bloqueia o que h de determinao
universal em todo e qualquer sujeito. Nao e Estado devem
ser assim absolutamente indiferentes s diferenas, no sen-
tido de aceit-las todas e esvaziar a afirmao da diferena
de qualquer contedo poltico.
O espao do poltico no deve ser marcado pela afir-
mao da diferena, mas pela indiferena absoluta em
relao a qualquer exigncia identitria. No limite, isso
nos leva a criticar a existncia de um a nao e um Estado
francs, kosovar, judeu, flamengo, ingls, brasileiro etc.
Condio maior para discutir a possibilidade de constru-
o de Estados ps-dentitrios, que no precisem repetir
compulsivamente identidades ilusrias construdas pelos
interesses polticos do dia.
31
-
Para termos uma ideia de quo explosivo pode ser esse
dispositivo, recordem os as consequncias possveis da
chegada de mais um ator de peso nesse cenrio de conflito
cultural: Joseph Ratzinger e sua igreja. Desde suas primeiras
declaraes racistas contra a violncia inerente ao Isl, o jogo
estava claro. Descontada a ironia em ouvir o papa, que beati-
ficou padres que apoiaram o regim e fascista e assassino de
Franco, criticar a violncia religiosa, no havia dvidas de
que a operao consistia em insistir na posio central do
cristianismo catlico para a configurao da ideia espiritual
do Ocidente. Com isso, abriam-se as portas para o pior de
todos os amlgamas: a constituio de um a fortaleza iden-
titria patrocinada pela tradio judaico-crist.
Para tanto, Ratzinger no teme sequer cometer o impro-
prio de citar Adorno e Horkheimer em suas bulas, como
se a crtica frankfurtiana aos processos de interverso na
modernidade levasse diretamente s suas pregaes por abs-
tinncia sexual fora do casamento, pela excomunho dos que
abortam, dos que defendem famlias homossexuais e outras
prolas do biopoder e da culpabilizao. A nica coisa que
se pode dizer a esse respeito que, se Ratzinger se interessa
pela Escola de Frankfurt, talvez ele pudesse com ear lendo
Tabus sexuais e direito hoje, de Adorno, ou, quem sabe, Eros
e civilizao, de Marcuse. Construir aliados por meio de falsos
amlgamas um a antiga estratgia para fazer proposies
intolerveis parecerem aceitveis.
32
-
Contra aqueles que no veem relao alguma entre
fortalecimento dos comunitarismos, retorno da ala mais
reacionria do catolicismo e poltica multicultural das di-
ferenas, valeria a pena fazer aqui algumas consideraes.
N o podem os perder de vista que se trata, no fundo, de
im por uma escolha forada. Ou um m odo de experin-
cia social da diferena que se realiza na multiplicao de
maneiras de ser coerente com os imperativos da moderni-
dade capitalista. Ou a procura pela reconstituio social de
vnculos identitrios substanciais patrocinada pela polcia
e pelas estruturas disciplinares de sempre (igreja, nao,
famlia etc.).
Diante dessa situao, devemos lembrar que a verda-
deira mola do poder no a imposio de uma norma de
conduta, mas a organizao das possibilidades de escolha.
Trata-se de operar uma reduo da escolha que transforma
o movimento no circuito limitado de um pndulo que vai
necessariamente de um polo a outro. E, como todo pn-
dulo, o mover-se apenas uma forma de conservar o mesmo
centro. Ir de um polo a outro apenas uma maneira mais
complicada de no andar. Nossas formas hegemnicas de
vida podem muito bem conviver ao mesmo tempo com a
geografia mental da liberalizao e da restrio.
33
-
A EQ U A O DA I N D I F E R E N A
Tal contexto deixa clara a urgncia da esquerda em colocar
novamente suas lutas sob a bandeira da igualdade radical e
da universalidade, abandonando qualquer tipo de veleidade
com unitarista ou de entificao da diferena.
Voltemos estratgia de deslocar o eixo do poltico para
um a dinmica de afirm ao das diferenas e das m inorias.
Esta era uma form a de universalizar direitos para grupos social-
mente m arginalizados (negros, hom ossexuais, im igrantes
etc.). Mas note-se que a questo central aqui era a constituio
de uma universalidade verdadeiramente existente na vida social, no
o reconhecimento de que a sociedade com posta de grupos
distintos m uito organizados do ponto de vista identitrio. A
poltica descentra os sujeitos de suas identidades jixas, abrindo-os
para um cam po produtivo de indeterminao.5 Isso significa
que nossas sociedades devem ser com pletam ente indiferen-
tes s diferenas, sejam elas religiosas, sexuais, de gnero,
raa ou de nacionalidades, pois o que nos faz sujeitos polti-
cos est para alm dessas diferenas. isso que significa no
organizar o cam po social a partir da equao das diferenas.
5 Sobre o conceito de experincia produtiva de indeterm inao, ver:
Safatle, Vladim ir. Grande Hotel Abismo: por uma reconstruo da teoria do
reconhecimento. So Paulo: Martins Fontes, no prelo; e Dunker, Christian.
Estrutura e constituio da clnica psicanaltica. So Paulo: Annablum e, 2011.
34
-
Note-se que a crtica sociedade multicultural aqui pro-
posta nada tem a ver com o medo de que o cosmopolitismo
e o relativismo cultural vo provocar uma eroso das bases
de nossos valores ocidentais. A crtica sociedade multicul-
tural e a sua permissividade democrtica, bem exposta por
Jacques Rancire em um pequeno livro intitulado La haine de
la dmocratie,6 apenas uma deriva conservadora.
H, no entanto, uma crtica esquerdista s sociedades
multiculturais que consiste em dizer que elas, de certa forma,
no so suficientemente multiculturais. Elas procuram,
apenas, atomizar a sociedade por meio de uma lgica es-
tanque do reconhecimento das diferenas que funciona,
basicamente, no plano cultural e ignora os planos poltico e
econmico. Uma sociedade verdadeiramente multicultural
uma sociedade radicalmente universalista e indiferente
s diferenas.
Hoje o momento de lembrar que a grande inveno
da esquerda foi o universalismo e o internacionalismo. No
temos nada o que fazer com nacionalismos e com delrios
identitris que tentam nos fazer crer, por exemplo, que os
valores ocidentais esto correndo risco toda vez que uma
jovem muulmana vai escola com um vu na cabea.
Melhor seria se perguntar por que tal jovem sente os ditos
valores ocidentais como uma farsa vazia, como palavras
6 Rancire,Jacques. Lnhaine ie ladmocratie. Paris:La Fabrique, 2005.
35
-
sem efetividade, que servem apenas para mascarar a mar-
ginalizao cada vez mais brutal de imigrantes pobres,
sem direito a voto e sem representao poltica (apenas a
ttulo de exemplo, poderia lembrar que, de 577 deputados
da Assembleia Nacional Francesa, apenas dois tm origem
rabe - isso em uma populao em que os descendentes de
rabes so cerca de 10%).
Nessas horas, a esquerda precisa se lembrar de que a
nica maneira de esvaziar o contedo poltico da afirmao
das diferenas aceit-las todas, pois as diferenas se voltam
contra o Estado quando elas do vazo ao descontentamento
de grupos sociais contra uma universalidade excludente, ou
seja, contra uma universalidade falsa.
36
-
Soberania popular ou a democracia para alm do Estado de Direito
-
O m edo do caos, em m sica com o
na psicologia social, superdim ensionado.
T H E O D O R A D O R N O
'M as o Estado dem ocrtico excede os lim ites tradicionalm ente
atribudos ao Estado de Direito. Experim enta direitos que ainda
no lhe esto incorporados, o teatro de um a contestao cujo
objeto no se reduz con servao de um pacto tacitam sfite
estabelecido, m as que se fo rm a a partir de focos que o poder
no pode dom inar inteiram ente.7
Quem diz isso no um adepto da esquerda revolu-
cionria que estaria procura do m elhor momento para
solapar as bases do Estado de Direito. Quem o diz Claude
Lefort, em inveno democrtica, um livro, ao contrrio, lar-
gamente dedicado crtica das sociedades burocrticas no
antigo Leste Europeu.
Nessas frases esto sintetizadas algumas reflexes maiores
sobre a relao intrincada entre Justia e Direito. Relao que
7 Lefort, Claude. A inveno iemocricd. So Paulo; Brasiliense, 1983, p. 46.
39
-
ultimamente tendemos a ignorar, como se tudo aquilo que acon-
tecesse margem do Estado de Direito fosse necessariamente
ilegal e profundamente animado por premissas antidemocrti-
cas. Talvez tenhamos perdido a capacidade de pensar qual o sen-
tido dessa democracia que excede os limites tradicionalmente
atribudos ao Estado de Direito - um ponto de excesso que a
esquerda soube mostrar, ao longo da histria contempornea,
como motor fundamental das dinmicas do poltico.
Talvez tenhamos perdido a capacidade de pensar a de-
mocracia como ponto de excesso em relao ao Estado de
Direito porque acreditamos que tudo o que se coloca fora
do Estado de Direito s poderia ter parte com o mais claro
totalitarismo. Quem est fora do Estado de Direito parece
se colocar em uma posio soberana, posio daqueles que
poderiam no se submeter lei, modific-la continuamente
ao bel-prazer dos casusmos e circunstncias. Vemos ape-
nas dois candidatos a ocupar tal posio: o criminoso que
viola abertamente a lei que garante a segurana do Estado
de Direito ou (e a as coisas comeam a se complicar) o le-
gislador que afirma que, em situaes de exceo - como
em caso de guerra (mas sabemos hoje como cada vez mais
complicado distinguir estado de guerra e estado de paz), de
crise (mas sabemos hoje como h sempre uma crise grave
espreita) - , certos dispositivos legais podem ser suspensos.
No entanto, possvel que exista um terceiro caso de
excesso em relao ao Estado de Direito, um excesso muito
40
-
bem posto por Jacques Derrida por meio da seguinte afirma-
o, que encontramos em Fora de lei: Quero logo reservar a
possibilidade de um a Justia, ou de um a lei, que no apenas
exceda ou contradiga o Direito, mas que talvez no tenha
relao com o Direito, ou mantenha com ele uma relao to
estranha que pode tanto exigir o Direito quanto exclu-lo.8
Pode, pois, a Justia no apenas exceder o Direito, mas m an-
ter com ele um a relao to estranha que parea se colocar
em lim a indiferena soberana? Gostaria de insistir que essa
possibilidade, longe de solapar e fragilizar a democracia, ^
o que a funda e a fortalece, um a vez que essa possibilidade
um outro nome para aquilo que normalmente chamamos
de soberania popular.
E S T A D O S I L E G A I S
Conhecem os situaes nas quais a Justia se dissocia do
Direito. Trata-se de situaes em que nos deparam os com
um Estado ilegal. Mesmo a tradio poltica liberal admite,
ao m enos desde John Locke, o direito que todo cidado tem
de se contrapor ao tirano, de lutar de todas as formas contra
aquele que usurpa o poder e im pe um estado de terror, de
censura, de suspenso das garantias de integridade social.
8 Derrida., Jacques. Fcrn de lei. So Paulo: Martins Fontes, 20 07, p. 58.
41
-
Nessas situaes, a democracia reconhece o direito v io -
lncia, j que toda ao contra um governo ilegal uma ao legal.
Vale a pena insistir nessa questo. Podemos dizer que um
dos princpios maiores que constitui a tradio de moderni-
zao poltica da qual fazemos parte afirma que o direito fun-
damental de todo cidado o direito rebelio e resistncia.
No creio ser necessrio aqui fazer a gnese da conscincia
da indissociabilidade entre defesa do Estado livre e direito
violncia contra um Estado ilegal. No que diz respeito ao Oci-
dente, bem provvel que sua conscincia nasa da Reforma
Protestante, com a noo de que os valores maiores presentes
na vida social podem ser objeto de problematizao e crtica,
o que exige a institucionalizao da liberdade.
J em Calvino encontramos uma afirmao como:
O s governantes de um povo devem envidar todo esforo a fim
de que a liberdade do povo pelo qual so responsveis no des-
vanea de m odo algum em suas m os. Mais do que isso: quando
dela descuidarem , ou a enfraquecerem , devem ser considerados
traidores da ptria.9
fato que ele evita generalizar tal considerao sob a
forma de um direito geral de resistncia. No entanto, a noo
9 Calvino, Joo. A instituio da religio crist. So Paulo: Editora Unesp, 2009, p. 882, tomo 11.
42
-
calvinista mostra claramente a possibilidade de uma crtica
do poder feita em nome de exigncias de institucionalizao
da liberdade. Essa crtica ser radicalizada por setores do
pensamento reformado, como Thomas Mnzer e alguns
reformadores puritanos ingleses. A partir deles, o direito de
resistncia aparece como fundamento da vida social.
Essa abertura do pensamento reformado ao problema
da resistncia alcanar o pensamento poltico. Ela ser radi-
calizada pela tradio revolucionria francesa (que no deixar
de ser influenciada pelos huguenotes). Assim, encontraremos o
artigo ii da Declarao Universal dos Direitos do Homem e do
Cidado, de 1789, em que se l: O objetivo de toda associao
poltica a conservao dos direitos naturais e imprescritveis
do homem. Tais direitos so: a liberdade, a segurana, a proprie-
dade e a resistncia opresso. O prembulo da Constituio
francesa de 1958 ainda reconhece seu vnculo a tais princpios.
A Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, de
1793, escrita sob influncia jacobina, apresenta, como direitos
naturais e imprescritveis, a liberdade, a igualdade, a segurana e
a propriedade. Seus trs ltimos artigos (33,34 e 35), no entanto,
tratam claramente do direito resistncia. Depois de afirmar, no
artigo 27, que todo indivduo que usurpe a soberania seja assas-
sinado imediatamente pelos homens livres", a Declarao dir:
> artigo 33: A resistncia opresso consequncia dos
outros direitos do homem.
43
-
) artigo 34: H opresso contra o corpo social quando
apenas um de seus membros oprimido. H opresso
contra cada membro quando o corpo social oprimido.
> artigo 35: Quando o governo viola os direitos do povo, a
insurreio , para o povo e para cada parte do povo, o mais
sagrado dos direitos e o mais indispensvel dos deveres.
Ainda hoje, encontramos, no artigo 20, pargrafo 4, da
Constituio alem, a enunciao clara do direito resis-
tncia (Recht zum W iderstand). Da m esm a forma, tal
enunciao est presente em vrias constituies de Estados
norte-americanos (New Hampshire, Kentucky, Tennessee,
Carolina do Norte, entre outros).10
Eis um dado interessante: a prim eira Declarao dos
Direitos Humanos colocava o direito resistncia como um
dos seus quatro fundamentos. J a Declarao feita pelas Na-
es Unidas em 1948 evita enunciar diretamente tal direito,
escolhendo uma formulao tangencial em seu prembulo.
Nele, lemos: Considerando essencial que os direitos hu-
manos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o
10 De maneira sintomtica, isso demonstra como aqueles que procuram transformar os que participaram da luta armada contra o regime militar brasileiro em terroristas colocam-se aqum de um conceito substancial de democracia. Sobre esse ponto, remeto a: Safatle, Vladimir. Do direito ao uso da violncia contra o Estado ilegal. In: Safatle, Vladimir; Teles, Edson (orgs.). 0 que resta da ditadura: a exceo brasileira. So Paulo: Boitempo, 2010.
44
-
homem no seja compelido, como ltimo recurso, rebelio
contra a tirania e a opresso.. Ou seja, algo como: para que
o direito de resistncia no seja um fato, convm respeitar
os seguintes direitos positivos. Essa enunciao tangencial
expe o mal-estar da poltica contempornea em relao
assuno clara do carter de exceo da soberania popular.
O carter de exceo fica evidente ao lembrarmos que,
se aquele que usurpa a soberania dos homens livres deve ser
punido, porque tal soberania precisa ser conservada como
atributo direto do povo em qualquer de suas formas de expres-
so. Com isso, a Revoluo Francesa abre uma das questes
fundamentais para o pensamento poltico moderno, a saber,
como dar forma institucional para o poder instituinte prprio
soberania popular, pois, porque soberano, esse poder est
na situao de exceo de se colocar ao mesmo tempo dentro
e fora do ordenamento jurdico. Ele est dentro porque, em
condies normais, a ele se submete. Ele est fora porque,
como todo poder soberano, pode suspender o ordenamento
jurdico a partir de sua vontade, ou seja, a partir da conscin-
cia da inadequao entre a vontade popular e a configurao
jurdica atual. Essa suspenso, que no implica destruio do
nomos, feita por meio de uma certa violao poltica da lei.
Antes de analisar a natureza dessa violao, lembremos
ainda que no devemos compreender a ideia fundamental
do direito resistncia apenas como o ncleo de defesa con-
tra a dissoluo dos conjuntos liberais de valores (direito
45
-
propriedade, afirmao do individualismo etc.). Essa estrat-
gia liberal equivocada. Na verdade, no interior do direito de
resistncia, encontramos a ideia fundamental de que o bloqueio
da soberania popular deve ser respondido pela demonstrao sobe-
rana da fora. Que a democracia deva, por meio dessa questo,
confrontar-se com aquilo que Giorgio Agamben chama de o
problema do significado jurdico de uma esfera de ao em si
extrajurdica, ou ainda, com a existncia de uma esfera da
ao humana que escapa totalmente ao direito,11 que ela deva
se confrontar com uma esfera extrajurdica, mas nem por isso
ilegal - eis algo claro. Devemos insistir aqui que, mesmo em
situaes nas quais no estamos diante de um Estado ilegal,
o problema da dissociao entre Justia e Direito se coloca.
U M A S O C IED A D E QUE TEM MEDO DA PO LTICA
Muitos gostam de dizer que, no interior da democracia, toda
forma de violao contra o Estado de Direito inaceitvel.
Mas e se, longe ser de um aparato monoltico, o Direito em
sociedades democrticas for uma construo heterclita,
em que leis de vrios matizes convivem, formando um con-
junto profundamente instvel e inseguro? A Constituio
de 1988, por exemplo, no teve fora para mudar vrios
11 Agamben, Giorgio. Estado de exceo. So Paulo: Boitempo, 2004, p. 24.
46
-
dispositivos legais criados pela Constituio totalitria de 1967.
Ainda somos julgados por tais dispositivos. Nesse sentido,
no seriam certas violaes do Estado de Direito condies
para que exigncias mais amplas de justia se faam sentir?
Foi pensando em situaes dessa natureza que Derrida
afirmava ser o Direito objeto possvel de uma desconstruo
que visa a expor as superestruturas que ocultam e refle-
tem, ao mesmo tempo, os interesse econmicos e polticos
das foras dominantes da sociedade.12 Quem pode dizer
em s conscincia que tais foras no agiram e agem para
criar, reformar e suspender o Direito? Quem pode dizer
em s conscincia que o embate social de foras na deter-
minao do Direito termina necessariamente da maneira
mais justa? Por isso, nenhum ordenamento jurdico pode falar em
nome do povo. Ao contrrio, o ordenamento jurdico de uma
sociedade democrtica reconhece sua prpria fragilidade,
sua incapacidade de sera exposio plena e permanente da
soberania popular.
A democracia admite, por essas razes, o carter des-
construtvel do Direito, eela o admite pelo reconhecimento
daquilo que poderamos chamar de legalidade da violao
poltica. Pacifistas que sentam na frente de bases militares
a fim de impedir que armamentos sejam deslocados (afron-
tando assim a liberdade de circulao), ecologistas que
12 DerridaJaxques.op. cit.
47
-
seguem navios cheios de lixo radioativo a fim de impedir
que ele seja despejado no mar, trabalhadores que fazem
piquetes em frente a fbricas para criar situaes que lhes
permitam negociar com mais fora exigncias de melhoria
de condies de trabalho, cidados que protegem imigrantes
sem-papis, ocupaes de prdios pblicos feitas em nome
de novas formas de atuao estatal, trabalhadores sem-terra
que invadem fazendas improdutivas, Antgona que enterra
seu irmo: em todos esses casos, o Estado de Direito que-
brado em nome de um embate em torno da justia.
No entanto, graas a aes como essas que direitos so
ampliados, que a noo de liberdade ganha novos matizes.
Sem elas, com certeza nossa situao de excluso social seria
significativamente pior. Nesses momentos, encontramos o
ponto de excesso da democracia em relao ao Direito.
Uma sociedade que tem medo de tais momentos, que no
mais capaz de compreend-los, uma sociedade que pro-
cura reduzir a poltica a um mero acordo referente s leis que
temos e aos meios que dispomos para mud-las (como se a
forma atual da estrutura poltica fosse a melhor possvel - se
se leva em conta o que o sistema poltico brasileiro, pode-
-se claramente compreender o carter absurdo da colocao).
No fundo, essa uma sociedade que tem medo da pol-
tica e que gostaria de substituir a poltica pela polcia. A viola-
o poltica nada tem a ver com a tentativa de destruio
fsica ou simblica do outro, do opositor, como vem os na
48
-
violncia estatal contra setores descontentes da populao
ou em golpes de Estado. Ela , antes, a fora da urgncia de
exigncias de justia.
claro que se faz necessrio compreender melhor o que
devemos chamar aqui de justia. No se trata de alguma
forma de princpio regulador posto. Certamente, a justia
est mais ligada experincia material do bloqueio de reco-
nhecimento e do sofrimento social em relao s imposies
produzidas pelas condies socioeconmicas e disciplinares
de nossas formas de vida. H de se perguntar qual a natu-
reza do sofrimento social em questo. No prximo capitulo,
gostaria de fornecer uma interpretao para um regime de
sofrimento social que tem forte importncia poltica. Essa
interpretao visa no a reduzir todas as dimenses do pro-
blema, mas a fornecer uma dimenso muitas vezes negligen-
ciada e incompreendida.
De toda forma, notemos com o a suspenso da lei em
nom e do sofrim ento social e do bloqueio de reconheci-
mento qualitativamente distinta da suspenso da lei feita
por prticas totalitrias. A suspenso poltica a maneira
de dizer que o Direito se enfraquece quando no mais
capaz de reconhecer suas prprias limitaes. E isso feito
a partir de outra espcie de direito (as aspas so de rigor)
cujo fundam ento, com o dizia Lefort, no tem figura,
marcado por um excesso face a toda formulao efetivada,
o que significa que sua form ulao contm a exigncia de
49
-
sua reformulao. s assumindo esse excesso que a demo-
cracia pode existir.
Esse ponto de excesso em relao ao ordenamento jur-
dico s conhece um limite: o limite de sua autodissoluo.
E uma das maneiras de a soberania popular se dissolver
por meio da estigmatizao de partes da prpria populao.
Por exemplo, a noo de plebiscito tira sua legitimidade
da ideia de que a soberania popular se manifesta como tota-
lidade. Ou seja, a totalidade da sociedade, que se organiza de
maneira igualitria, exprime sua vontade. Leis discrimina-
trias contra grupos religiosos, raciais, nacionais ou sexuais,
no entanto, quebram a noo de totalidade igualitria da vida
social, inaugurando uma lgica de massacre de minorias
pela maioria. Por isso, tais leis nunca poderiam ser objeto
de um plebiscito.
Um exemplo tragicamente interessante aqui foi dado pela
Sua, ao aprovar por plebiscito uma lei que proibia a cons-
truo de minaretes em mesquitas muulmanas. Segundo os
helvticos, esses minaretes representavam o desejo expan-
sionista e belicista do Isl. Cartazes associando-os a msseis
foram espalhados pelos Alpes. Com isso, a Sua quebrava a
ideia de que todas as religies e todos os crentes devem ter o
mesmo tipo de tratamento pelo Estado (e, se for para falar em
belicismo religioso, nenhuma religio passa no teste). Inaugu-
rava-se assim uma lgica da soberania popular que se volta
contra sua base, ou seja, contra a representao igualitria da
50
-
sociedade. Quando tal representao desaparece, a soberania
popular vira apenas uma mquina de destruio social.
Feita a ressalva, devemos insistir em que a esquerda no
pode perm itir que desaparea do horizonte de ao um a
exigncia profunda de m odernizao poltica que vise
reforma, no apenas das instituies, mas do processo deci-
srio e de partilha do poder. Ela no pode ser indiferente
queles que exigem a criatividade poltica em direo a uma
democracia real.
No deixa de ser dramtico ver membros de certa es-
querda citando Tocqueville, certos de que a democracia exige
instituies fortes: a democracia no exige um poder insti-
tudo forte e no deve depender de instituies que sempre
funcionaram mal. Do ponto de vista institucional, a dem o-
cracia tem um a plasticidade natural. Ela depende, e isso
totalmente diferente, de um poder instituinte soberano e
sempre presente. Ou seja, depende de um aprofundamento
da transferncia do poder para instncias de deciso popular
que podem e devem ser convocadas de maneira contnua.
Estam os m uito acostum ados com a ideia de que a
democracia realiza-se naturalmente com o democracia par-
lamentar. Isso, no entanto, falso. Uma esquerda que no
tem medo de dizer seu nome deve falar com clareza que sua
agenda consiste em superar a democracia parlamentar pela
pulverizao de mecanismos de poder de participao popu-
lar direta. Lembremos apenas que, com o desenvolvimento
51
-
das novas mdias, cada vez mais vivel, do ponto de vista
material, certa democracia digital que permita a imple-
mentao constante de mecanismos de consulta popular.
Contra ideias desse porte, costumam-se afirmar duas coi-
sas. A primeira a acusao clssica de assemblesmo e de
imobilismo. Uma acusao desse quilate chega a ser hilariante.
Dado, por exemplo, que o Congresso Nacional brasileiro gasta
at dez anos para votar certos projetos e implementar deci-
ses, a pergunta que fica : quem mais imobilista?
A segunda acusao, esta muito mais absurda, sem-
pre feita pelos defensores da democracia, temerosos que
uma democracia participativa seja, na verdade, uma forma
de totalitarismo plebiscitrio. At citaes ao nazismo e
ao fascismo so evocadas nesse contexto. No entanto, elas
so totalmente ridculas, ou algum imagina que Hitler fazia
plebiscito popular para decidir como funcionariam os campos
de concentrao? Em uma democracia participativa, a prpria
noo de liderana e conduo (Fhrer) contestada, j que as
instncias de deciso passam, gradativamente, para as mos de
um poder que no nem o Executivo, nem o Legislativo. Por
isso, qualquer acusao de chavismo perde o sentido quando
o assunto uma reflexo aprofundada sobre a modernizao
poltica exigida pela superao da democracia parlamentar.
O verdadeiro desafio dem ocrtico consiste, desse
modo, em institucionalizar tal poder instituinte, criando uma
dinmica plebiscitria de participao popular. Tal dinmica
52
-
desacreditada pelo pensamento conservador, pois ele pro-
cura vender a ideia inacreditvel de que o aumento da participa-
o popular seria um risco democracia - como se as formas atuais
de representao fossem tudo o que podemos esperar da vida
democrtica. Contra essa poltica que tenta nos resignar s
imperfeies da nossa democracia parlamentar, devemos
dizer que a criatividade poltica em direo realizao da
democracia apenas comeou. H muito ainda porvir.
Como dizia Derrida, eis a razo pela qual s podemos
falar em democracia por vir, e nunca em democracia como algo
que se confunde com a configurao atual do nosso Estado
de Direito. Contra os arautos do Estado democrtico de Di-
reito, que procuram nos resignar s imperfeies atuais da
democracia parlamentar, devemos afirmar os direitos de uma
democracia por vir, que s poder ser alcanada se assumirmos
a realidade da soberania popular. Estas so, pois, as duas pernas
de toda poltica de esquerda que no teme dizer seu nome:
igualitarismo e soberania popular. Garantidos esses dois valores,
o resto, como diz o Evangelho, vir por si mesmo.
P A R A I N T R O D U Z IR O N O V SSIM O D IC IO N R IO DOS
L E G A L I S T A S DA IL E G A L ID A D E
Vale a pena terminar este captulo discutindo uma situao
recente a partir da qual podemos refletir sobre os usos atuais
53
-
do Estado de Direito. Trata-se do golpe de Estado em Hon-
duras. Foram vrias as vozes crticas deciso de dar asilo
na embaixada brasileira ao presidente hondurenho deposto,
Manuel Zelaya, assim como deciso de no reconhecer nem
o governo que o sucedeu nem aquele que foi eleito depois.
Ingerncia indevida, apoio a um rascunho de ditador,
subveno tentativa de destruir o Estado democrtico
de Direito foram apenas as acusaes mais leves contra a
atuao brasileira.
Segundo tais crticas, tudo se passou da seguinte forma:
influenciado pelo caudilhismo populista de Hugo Chvez,
o presidente hondurenho decidira afrontar de maneira
deliberada a Constituio e as instituies democrticas
de seu pas, tentando fazer passar um golpe plebiscitrio
que permitiria sua reeleio. Contra tal atentado ao Estado
democrtico de Direito, o Congresso Nacional, juntamente
com as Foras Arm adas, depuseram o presidente Zelaya,
em possando o presidente do Congresso hondurenho at
novas eleies. Que esse novo governo tenha assassinado
e perseguido jornalistas e opositores, fechado rdios e ca-
nais de comunicao que apoiavam o presidente deposto,
reprimido violentamente manifestaes, nada disso muda
sua natureza democrtica, pois tudo vale para a defesa da
normalidade democrtica.
Seria interessante lembrar, no entanto, que a democracia
reconhece claramente a possibilidade de dissociao entre
54
-
Justia e ordenamento jurdico atual, ou seja, entre Direito
e Justia. Ela admite que leis atuais podem ser injustas e pas-
sveis de modificao por meio de mobilizao popular.
N o caso de Honduras, poderam os perguntar quo
democrtica um a lei constitucional que eleva condio
de clusula ptrea a impossibilidade de o povo m odificar
a maneira com o ele prprio governado. Se a vontade p o -
pular o poder instituinte de toda Constituio democr-
tica, tal lei equivale a dizer algo contraditrio com o ns,
o povo, reconhecem os que ns, o povo, no poderem os
mais decidir sobre a maneira por meio da qual ns, o povo,
seremos governados.
A questo relativa a Honduras diz muito a respeito da
maneira como certos setores da vida nacional compreendem
o que , afinal, a democracia. Digamos de modo claro: a ver-
dadeira democracia no medida pela estabilidade de suas
instituies e suas regras. Afinal, quantas vezes a Frana (s
para ficar em um exemplo) mudou as regras de seu sistema
eleitoral e de seu sistema de partilha de poder? Quantas vezes
aquele pas modificou o funcionamento da instituio presi-
dencial? Lembremos como mesmo a estvel Inglaterra de-
bate hoje modificaes profundas em seu prprio sistema.
A verdadeira dem ocracia medida, na verdade, pela
possibilidade dada ao poder instituinte popular de manifes-
tar-se e criar novas regrase instituies. No s em eleies
que tal poder se manifesta. H um a plasticidade poltica
55
-
prpria vida democrtica que s arautos do pensamento
conservador compreendem como insegurana jurdica.
O plebiscito simplesmente a essncia fundamental de toda
vida democrtica, e falar em golpe plebiscitrio uma das
maiores aberraes que se possa imaginar. O dia em que
um plebiscito equivaler a um golpe de Estado, ento nossa
noo de democracia estar completamente esvaziada. Ela
perder todo seu valor.
De toda forma, sintomtico que boa parte daqueles
que se insurgiram contra o plebiscito hondurenho no tenha
gritado golpe de Estado quando o governo de Fernando
Henrique Cardoso passou, por meio de compra de votos no
Congresso Nacional, uma emenda constitucional aprovando
a reeleio. Eles tambm fizeram questo de no lembrar
como muitos dos golpes militares na Amrica Latina foram
feitos sempre a partir da mesma acusao de que o presi-
dente estava colocando em risco a legalidade democrtica.
Foi assim no Chile de Salvador Allende, foi assim no Brasil
de Joo Goulart (quando o Congresso Nacional declarou
vazio o cargo de presidente, empossando, inicialmente, o
presidente da Cmara, Ranieri Mazzilli, que governou de
2 a 15 de abril de 1964, antes de passar o governo quele que
foi eleito pelo Congresso, o marechal Castello Branco).
No se trata aqui de usar tal problema jurdico para
apresentar uma defesa de Manuel Zelaya ou de seus patro-
cinadores, como Hugo Chvez. Talvez seja o caso de dizer
56
-
claramente que a alternativa chavista apenas urna deriva
populista e bonapartista da esquerda. De fato, o conceito
de populismo existe e no apenas um dispositivo de
desqualificao poltica, embora muitas vezes seja usado
apenas para isso. Populista um governo profundamente
personalista e centralizado cuja figura do mandatrio do
Executivo encarna o ideal de conduo e, por isso, confunde-se
com a figura do poder;13 um governo incapaz de permitir o
desenvolvimento de mecanismos de transferncia do poder
em direo democracia direta, pois, nesse caso, a demo-
cracia direta subordinada ao poder central. O populismo
esquece que o verdadeiro lder democrtico aquele que no
tem medo de expor sua prpria efemeridade, sua prpria
contingncia. O lder democrtico aquele que nos ensina
como a contingncia pode habitar o cerne do poder.
O exemplo hondurenho serve, na verdade, apenas
para glosar uma bela expresso que Theodor Adorno uma
vez cunhou para designar aqueles que se aferravam a leis
13 Por isso h algo de piada de mau gosto na afirmao de que o Brasil conheceu, entre 1945 e 1964, uma repblica populista. S mesmo uma historiografia revisionista, que yisa a desqualificar o nico momento na histria brasileira em que a participao popular foi efetiva, poderia dizer algo dessa natureza. Nesse caso, nota-se como populista no usado como descrio analtica, mas como injria. Gostaria que algum explicasse, por exemplo, em queDutra e Juscelino eram populistas e em que Joo Goulart encarnava o ideal de conduo que se confunde com a figura do poder estatal.
57
-
claramente injustas, bradando-as quando setores da vida
nacional procuravam anul-las: legalistas da ilegalidade.
A expresso, certamente, cabe para boa parte daqueles que
criticam a postura da diplomacia brasileira no caso.
Por fim, vale a pena lembrar que a noo de soberania
popular implica processo institucionalizado de transfe-
rncia de poderes em direo democracia direta. Ele no
uma simples arma utilizada pelo Executivo em situaes
de conflito de poderes. Sua melhor figura a institucio-
nalizao de decises que s poderiam, a partir de ento,
ser tomadas por meio da manifestao direta da soberania
popular. Isso significa transferncia de poder tanto do Legis-
lativo quanto do Executivo.
Um exemplo valioso so as declaraes de guerra. Na
poca da Guerra do Afeganisto, enquanto a maioria da popu-
lao era contrria iniciativa, o Parlamento espanhol apro-
vou o envio de tropas quele pas. Ou seja, naquele momento,
o Parlamento espanhol no representava o povo - o mesmo
povo que morreria devido s consequncias da deciso do
Parlamento. Em situaes como esta, a deciso deveria pas-
sar para a democracia direta.
Outro exemplo ilustrativo so as questes ligadas a
decises de oramento da Unio, contrao de dvidas em
situao de grave crise (como o caso da dvida grega), que
tambm deveriam passar para processos decisrios ligados
democracia direta. Nesse caso, podemos pensar em uma
58
-
maneira de politizar a economia graas recuperao da
noo de soberania popular. A Islndia tem algo a nos ensi-
nar sobre isso.
Um dos primeiros pases atingidos pela crise econmica
de 2008, a Islndia decidiu que o uso de dinheiro pblico
para indenizar bancos seria objeto de plebiscito. O resultado
foi o apoio macio ao calote. Mesmo sabendo dos riscos de
tal deciso, o povo islands preferiu realizar um princpio
bsico da soberania popular. Se a conta vai para a popu-
lao, ela quem deve decidir o que fazer, e no um con-
junto de tecnocratas que tero seus empregos garantidos
nos bancos, tampouco parlamentares cujas campanhas so
financiadas por esses bancos.
Como disse o presidente islands, Olafur Ragnar
Grmsson, a Islndia uma democracia, no um sistema
financeiro. Alguns poderiam contra-argumentar que
absurdo que decises de inegvel complexidade tcnica pas-
sem para a democracia direta. Bem, outros diriam apenas
que quem paga a orquestra escolhe a msica. Esta uma boa
maneira de se perguntar: afinal, no caso de nosso Parlamento
e de nosso Executivo, quem paga a orquestra?
59
-
Do tempo das ideias
-
Um homem uma coisa em que se atira
At que o ser humano emerja das runas do ser humano.
H E I N E R M L L E R
He knew that the price o f his intactness was incompleteness.
S C O T T F I T Z G E R A L D
Uma das questes mais delicadas sobre a esquerda diz res-
peito a sua maneira de lidar com o passado recente. Alain
Badiou compreendeu bem que poderia enunci-la de uma
maneira sucinta: o que significou o sculo xx? Ou seja, como
compreender as experincias de ruptura que marcaram a
especificidade do sculo que passou? Longe de um simples
problema histrico, tal questo expe a maneira como nos
vinculamos aos processos de efetivao de uma ideia que,
com certeza, ainda guarda seu contedo de verdade.
Por exemplo, um dos mantras preferidos do pensamento
conservador a denncia do sculo xx como a era da violn-
cia brutal feita em nome das promessas de redeno da vida
social. Como se houvesse uma linha necessria e inevitvel
que iria da crtica da individualidade moderna e da reificao
61
-
aos massacres de Pol Pot, linha que iria das lutas sindicais
por justia social aosguags. Trata-se de impor, com isso, uma
estratgia da resignao, que tem o propsito de nos fazer acre-
ditar que toda ao visando ruptura com formas de vida
que aparecem, em certos momentos, como naturalizadas s
poder produzir catstrofes. Trata-se ainda de uma tentativa
de desqualificar radicalmente a fora produtiva das ideias de
renovao e seu movimento trgico.
Sobre essa natureza trgica do movimento prprio s
ideias de renovao, valeria a pena se perguntar se aqueles
que desqualificam o sculo x x como era da violncia des-
medida em nome do novo estariam dispostos a responder a
uma questo fundamental, a saber: quantas vezes uma ideia
precisa fracassar para poder se realizar? A efetivao de uma
ideia nunca um processo que se realiza em linha reta. Por
exemplo, durante sculos, o republicanismo foi conside-
rado um retumbante fracasso. Ser republicano no sculo x i i i
significava defender uma ideia que havia apenas produzido
catstrofes e enfraquecimento do Estado. Hoje, dificilmente
encontraremos algum para quem o republicanismo no seja
um valor fundamental. Ou seja, o republicanismo precisou
fracassar vrias vezes para encontrar seu prprio tempo,
para forar o tempo a aproximar-se de sua realizao ideal.
Isso apenas demonstra como, graas internalizao de seus
fracassos, ao fato de ela ter aparecido cedo demais, a ideia
pde efetivamente se realizar.
62
-
No se trata aqui de ignorar os crimes e massacres que
foram feitos em nome dos ideais de esquerda no sculo xx ,
nem de relativiz-los, lembrando que, se for para contar cri-
mes e massacres, a esquerda certamente no fica na frente de
seus oponentes. As duas estratgias so equivocadas. Trata-
-se, na verdade, de dizer que a melhor maneira de evit-los
compreender o que deve ser conservado e reconstrudo
no interior de nossos ideais, aquilo que neles no se reduz
figura do crime e do massacre.
Como nos lembra Hegel, o conceito, ao tentar deter-
minar a efetividade, produz necessariamente o contrrio
de sua inteno inicial. Essa inverso, no entanto, pode
aparecer no como perda, e sim como momento tragica-
mente necessrio para o desenvolvimento da capacidade
do conceito em internalizar a contingncia, orientar-se e
assegurar sua realidade. Talvez possam os dizer o mesmo
das lutas revolucionrias que animaram o sculo x x , pois
uma das maiores caractersticas desse sculo foi a luta pela
abertura do que ainda no tem figura, luta pelo advento
daquilo que no se esgota na repetio compulsiva do ho-
mem atual e de seus modos.
No se tratava apenas de um processo conflituoso de am-
pliao e universalizao de direitos individuais ou de efeti-
vao de demandas de redistribuio de riquezas. Embora
tais aspectos sejam essenciais para compreendermos as lutas
revolucionrias do sculo xx, perderemos uma dimenso
6?
-
importante de seu impulso se no compreendermos tambm
que, at o final, o sculo foi de fato o sculo do advento de
outra humanidade, de mudana radical do que o homem.
E nesse sentido que permaneceu fiel s extraordinrias
rupturas mentais de seus primeiros anos.14
Talvez seja o caso de lembrar aqui dessa crena que per-
passa os movimentos mais relevantes no campo da poltica,
da filosofia e da esttica do sculo x x , a saber, a crena de
que algo como o homem novo estava ao alcance. H uma
espcie de estranho acordo a respeito da necessidade de um
tempo capaz de nos livrar do esgotamento da determinao
essencial do homem. Tudo se passa como se, para alm da
defesa de uma sociedade mais justa, livre e igualitria, pul-
sasse, no interior da demanda revolucionria que animou
o sculo xx , este obscuro desejo de nos livrarmos de ns mesmos,
desejo de anular nossa prpria imagem. Talvez seja o caso
de dizer: no h luta revolucionria sem esse desejo.
possvel afirmar que essas lutas podem ser encon-
tradas nas discusses prprias aos campos da esttica, da
poltica, das clnicas da subjetividade, da filosofia. Em vrios
momentos de nossa histria recente, elas mostraram grande
fora para mover a histria, engajar sujeitos na capacidade
de viver para alm do presente. No entanto, vemos hoje um
grande esforo em apagar essa histria, isso quando no
14 Badiou, Alain. O sculo. Aparecida: Ideias e Letras, 2007, p. 23.
64
-
se trata de apenas criminaliz-la, como se as tentativas do
passado em escapar das limitaes da figura atual do homem
devessem ser compreendidas, em sua integralidade, como a
simples descrio de processos que necessariamente se rea-
lizariam como catstrofe. Como se no fosse mais possvel
olhar para trs e pensar em maneiras novas de recuperar os
momentos nos quais o tempo para e as possibilidades de
metamorfose do humano so mltiplas.
Assim, somos apresentados cartilha do passado, que
cheira ao enxofre da destruio, e do futuro, que no pode
ser muito diferente daquilo que j existe. Talvez seja o caso,
ento, de dizer que tudo o que, brandos ou no, os defensores
de tal cartilha conseguiro bloquear nossa capacidade de
agi* a partir de uma humanidade por vir, acostumar-nos com
um presente no qual ningum acredita e do qual muitos j se
cansaram. Ou seja, elevar o medo a afeto central da poltica.
Para responder a tal cartilha, devemos dizer que, se no
h poltica sem o desejo de nos livrarmos de ns mesmos,
de nos livrarmos de nossas limitaes, sem o desejo de ex-
plorar o que ainda no tem figura, certo que a histria o
campo no interior do qual esse desejo aprende a se orientar
melhor. Que esse aprendizado no seja em linha reta, que
ele se equivoque e muitas vezes se perca, isso apenas uma
maneira de insistir em consequncias prprias a todo e qual-
quer aprendizado. Com o aprendizado a respeito da fora de
nossa liberdade e nossa inventividade, no seria diferente.
65
-
O INDIVDUO NO A MEDIDA DE TODAS AS COISAS
Notemos ainda um ponto. Talvez seja correto afirmar que no
podemos nos livrar do desejo de nos livrarmos de ns mesmos, pois
essa luta por um homem novo no um delrio arbitrrio
de recomear tudo do zero sem levar em conta a violncia
que o zero parece implicar. Na verdade, ela a realizao
mais bem acabada de uma inquietude e desenraizamento que
determinam, de maneira essencial, a experincia moderna
da subjetividade. A palavra novo no interior do sintagma
homem novo no significa algo como uma nova essncia,
mas o movimento interno ao sujeito moderno de no se
deixar esgotar no crculo de suas determinaes identitrias
atualmente postas.
Essa uma caracterstica maior do conceito de sujeito
desde sua definio moderna. Sartre, por exemplo, no teve
muita dificuldade em encontrar nessa impossibilidade de
esgotamento o trao fundamental do conceito de liberdade.15
15 Ver: Sartre, Jean-Paul. Situationsphilosophiques. Paris: Gallimard, 1990, pp. 71-2. Sartre insiste em que a liberdade moderna exige um momento de liberdade negativa que pode ser encontrada j em Descartes. Como ele mesmo dir, a respeito da transcendncia cartesiana: Reconhecemos neste poder de escapar, de se mover, de se retirar para trs, uma prefigurao da negatividade hegeliana. A dvida alcana todas as proposies que afirmam algo fora de nosso pensamento, ou seja, posso colocar todos os existentes em parnteses, estou em pleno exerccio de minha liberdade quando eu, mesmo vazio e nada, nadifico tudo o que existe, [traduo do autor]
66
-
Nesse sentido, nada mais tradicionalmente enraizado em
nossas formas de vida que a procura pelo homem novo.16
Nada mais tradicional que a necessidade de uma revoluo
social que seja, ao mesmo tempo, revoluo subjetiva.
O pensamento liberal teme a reflexo sobre a impossi-
bilidade de esgotar o sujeito nas determinaes identitrias
atualmente postas, porque isso quebra sua tentativa de de-
fender, custe o que custar, a primazia do indivduo. Uma das
bases da teoria liberal sobre o poltico a compreenso do
vnculo social como uma espcie de contrato entre indiv-
duos. Nesse suposto contrato, os indivduos fundariam ins-
tituies como o Estado mediante a garantia de que podero
agir, em larga medida e por meio de uma negociao astuta,
em funo de seus sistemas particulares de interesse.17 Ou
seja, sob a form a contratualista, o vnculo social aparece
como uma associao entre indivduos. Algo muito pr-
xim o da maneira como o livre mercado aparecer para o
pensamento liberal como o espao onde indivduos podem
trabalhar na defesa de seus sistemas particulares e egostas
de interesses.
16 Para uma anlise sistemtica da indeterminao prpria a uma certa tradio da reflexo moderna sobre o sujeito, tomo a liberdade de remeter aos trs primeiros captulos de: SafatLe, Vladimir. Grande Hotel Abismo: por uma reconstruo da teoria io reconhecimento, op. cit.
17 Ver, por exemplo: Lebrun, Gerard. Contrato social ou negcio de otrio?. In: A filosofia e sua histria. So Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 226.
67
-
Um dos traos fundamentais da esquerda, entretanto,
est na recusa em compreender a sociedade como uma
associao entre indivduos que entram virtualmente em
acordo a fim de realizar, da melhor maneira possvel, seus
interesses particulares. Para a esquerda, a consequncia fun-
damental dessa distoro a compreenso da liberdade
simplesmente como o nome que damos para o sistema de
defesa dos interesses particulares dos indivduos, de suas
propriedades privadas e de seus modos de expresso.
Em ltima instncia, toda extenso do conceito de liber-
dade acaba por ser pensada como modulao do direito de
propriedade. No entanto, essa noo de liberdade talvez seja
uma forma muito difundida de patologia social, pois, ao
impor uma atomizao social desagregadora, nos impede
de ver como, no interior do meu prprio interesse, pulsa
algo mais do que a mera emulao de um sistema parti-
cularista. Ela impede a compreenso de como o sujeito
sempre habitado por algo que no se deixa pensar sob a
forma do indivduo.
O pensamento conservador procura criticar tal ideia
ao tentar nos fazer acreditar que toda ditadura necessa-
riamente baseada na crtica do individualismo. Como se
nossa democracia estivesse segura l onde o individua-
lismo impera. A prova disso seria o fato de situaes de
anomia, famlias desagregadas e crise econm ica serem
pretensamente o terreno frtil para ditaduras. Um pouco
68
-
como quem diz: l onde a famlia, a prosperidade e a crena
na lei no funcionam bem, l onde os esteios do indivduo
entram em colapso, a voz sedutora dos discursos totalit-
rios est espreita.
Se realmente quisermos pensar a extenso do totalita-
rismo, ser interessante perguntar por que personalidades
autoritrias aparecem tambm em famlias muito bem ajus-
tadas e slidas, em sujeitos muito bem adaptados a nossas
sociedades e a nosso padro de prosperidade. Teramos sur-
presas interessantes se estudssemos o perfil psicolgico
daqueles que votam em governos que criam sistemas globais
de fichamento e controle de populaes, rondas contra imi-
grantes, alimentam a xenofobia e a lgica da fronteira.
Isso explica por que no foram poucos aqueles que, no
sculo xx, insistiram que o indivduo moderno , na verdade,
produzido pela internalizao de profundos processos dis-
ciplinares e repressivos. A boa questo : com o que preciso
me conformar para poder ser reconhecido como indivduo
dotado de interesses prprios? O que preciso perder e fazer
calar para que tudo o que se apresenta minha experincia
s possa ser pensado como experincia de um indivduo?
Sofre-se muitas vezes por no ser um indivduo, ou
seja, porno ter sua disposio as condies sociais neces-
srias para a afirmao de um a individualidade almejada.
No entanto, sofre-se tambm por ser apenas um indivduo.
H um sofrimento vindo da incapacidade em pensar aquilo
6 9
-
que, dentro de si mesmo, no se submete forma coerente
de uma pessoa fortemente individualizada com sua iden-
tidade compulsivamente afirmada. Esta uma das lies
mais importantes de Sigmund Freud, com sua ideia de que o
prprio processo de formao da individualidade, de cons-
tituio do Eu indissocivel de experincias patolgicas de
sofrimento.ls Nesse caso, sofre-se exatamente por ser um
indivduo. A esquerda deve ser sensvel a tal modalidade de
sofrimento social.
Infelizmente, esse sofrim ento, em vez de funcionar
como motor de desenvolvimento subjetivo, muitas vezes
se exterioriza e se transforma em medo social compulsivo
contra tudo o que parece colocar em xeque nossa iden-
tidade, as crenas do nosso povo. Ele acaba por servir
como causa de um sistema paranoico de defesa contra toda
alteridade real.
No por outra razo que onde h a insistncia em
compreender a sociedade como um mero conjunto de indi-
vduos surge sempre o outro lado da moeda: a necessidade
de expulsar, de levantar fronteiras contra tudo o que no
porta a minha imagem. O que nos explica por que socie-
dades fortemente individualistas, como aquelas que encon-
tramos nos EUA e em certos pases europeus, so sempre
18 Freud, Sigmund. O mal-estar na civilizao. So Paulo: Penguin Companhia, 2011.
70
-
assombradas pelo fantasma do corpo estranho que est
prestes a invadi-las, a destruir seus costumes e hbitos arrai-
gados. No h individualismo sem lgica social da excluso.
Por outro lado, como todos sabemos que o atomismo de
ser apenas um indivduo dificilmente suportvel, esse isola-
mento tende, muitas vezes, a ser compensado com alguma
forma de retorno a figuras de comunidades espirituais e reli-
giosas. A vida contempornea nos demonstrou que indivi-
dualismo e religiosidade, liberalismo e restries religiosas
dogmticas, longe de serem antagnicos, transformaram-
-se nos dois poios complementares e paradoxais do mesmo
movimento pendular. Muito provavelmente, teremos de
conviver com os resultados polticos dessa patologia social
bipolar. Cada vez fica mais claro como o pensamento conser-
vador se articula, em escala mundial, por meio da restrio
da pauta do debate social apelando ora para as liberdades
individuais, ora para nossos valores cristos.
P A R A ALM DE U M A D IC O T O M IA
Feita essa digresso sobre o desejo de nos livrarmos de ns
mesmos e sobre a reao liberal-conservadora pela hips-
tase da figura do indivduo, talvez possamos introduzir uma
questo clssica para a esquerda. Ela concerne maneira de
se relacionar a dois modelos de ao poltica, um que pulsa
n
-
a partir das rupturas e outro que desloca com mais vagar as
peas no tabuleiro poltico. Esses modelos se cristalizaram
nas palavras reforma e revoluo. Dar conta da expe-
rincia poltica do sculo x x , em larga medida, responder
sobre qual destino devemos dar a essa dicotomia to usada
no passado recente.
possvel que tenha chegado a hora de dizer com cla-
reza que dificilmente encontraremos uma dicotomia mais
empobrecedora e equivocada para a reflexo poltica do que
esta que separa reforma e revoluo, prtica reformista
e pensamento revolucionrio. No foram poucas as vezes,
no entanto, que essa dicotomia foi pressuposta em anlises
de situaes poltico-sociais. No se trata aqui de retomar
as nuances de discusso to rica, que perpassa a histria da
esquerda desde, ao menos, a querela de Lnin contra Kautsky.
Trata-se simplesmente de lembrar dois equvocos comple-
mentares que ainda hoje parecem nos guiar.
O primeiro consiste em elevar a revoluo condio
de modelo nico de acontecimento dotado de verdade.
O que no tiver seu potencial disruptivo e instaurador no
vale uma luta poltica, no deve mobilizar nosso engaja-
mento. Se revolues saem do horizonte histrico de uma
poca, ento esse tempo ser visto necessariamente como
um tempo morto, desprovido de acontecimentos. Ele ser
a descrio inelutvel da mortificao da existncia. O re-
sultado de tal elevao da revoluo a modelo nico de
72
-
acontecimento dotado de verdade , no entanto, a incapa-
cidade de operar distines.
Um dos sinais da inteligncia consiste na capacidade de
saber operar distines. Pensando em algo parecido, Pascal
costumava dividir os homens entre aqueles que tm esprito
de fimsse e aqueles que tm esprito de gemetra. Os primei-
ros eram capazes de se fixar e imergir nos detalhes, encontrar
distines sutis, mas corriam o risco de se perder em suas
sutilezas. J os