o livro de mirdad

240

Upload: luis-eduardo

Post on 19-Oct-2015

91 views

Category:

Documents


3 download

TRANSCRIPT

  • O LIVRO DE MIRDAD

    Um Farol e um Refgio

    Mikhail Naimy

    ndice

    A Histria do Livro

    O abade prisioneiro A escarpa rochosa O guardio do livro

    O LIVRO DE MIRDAD

    Mirdad se revela e fala de vus e selos. Acerca da Palavra Criadora. O eu a fonte e o centro de todas as coisas. A Trindade Sagrada e o Perfeito Equilbrio. O homem um deus enfaixado. Cadinho e peneiras. A Palavra de Deus e a do homem. Acerca de mestres e servo. Os Companheiros do sua opinio a respeito de Mirdad Micayon e Naronda mantm uma palestra noturna com Mirdad e este os avisa do dilvio que est para vir, rogando-lhes que estejam prontos.

  • Os Sete buscam Mirdad no Ninho da guia. Ele os adverte de nada fazerem no escuro caminho para uma vida sem sofrimento. Os Companheiros querem saber se Mirdad o Clandestino. Acerca do julgamento e o dia do juzo. Amor a lei de Deus. Mirdad adivinha uma inimizade entre dois Companheiros, pede a harpa e canta o hino da nova Arca. Acerca do Silncio Criador. O falar , na melhor das hipteses, uma mentira honesta. Da orao. Colquio entre dois arcanjos e entre dois arqui-demnios na ocasio, independente do tempo, em que nasceu o homem. Shamadam faz um esforo para expulsar Mirdad da Arca. O Mestre fala acerca de insultar e ser insultado, e de encarar o mundo com a Sagrada Compreenso. Acerca de credores. Que o dinheiro? Rustidion perdoado de sua dvida para com a Arca. Shamadam recorre ao suborno na sua luta contra Mirdad. Mirdad adivinha a morte do pai de Himbal e as circunstncias em que se dera. O Mestre fala da morte. O Tempo o maior embusteiro. A roda do Tempo, o seu aro e o seu eixo. Lgica e F. Negao do eu e afirmao do eu. Como fazer parar a roda do Tempo. Chorando e rindo. Para onde iremos depois de morrermos. Do arrependimento. A Sagrada Vontade Total.

  • Porque as coisas ocorrem de certa forma e quando isso se d. Mirdad alivia Zamora do seu segredo e fala do homem e da mulher, do casamento e do celibato daquele que se libertou. Mirdad cura Sim-Sim e fala acerca da velhice. No correto matar para comer? Dia da Videira e a preparao para ele. Mirdad desaparece na sua vspera. Mirdad fala aos peregrinos acerca do Dia da Videira e liberta a Arca de um peso morto. A Verdade deve ser pregada a todos, ou somente a uns poucos escolhidos? Mirdad revela o segredo do seu desaparecimento na vspera do Dia da Videira e fala da falsa autoridade. Prncipe de Bethar aparece com Shamadam no Ninho da guia. O colquio entre o prncipe e Mirdad acerca de guerra e paz. Mirdad aprisionado por Shamadam. Shamadam em vo tenta reconquistar os Companheiros. Mirdad retorna miraculosamente e d a todos os Companheiros, exceto a Shamadam, o beijo da F. Mestre revela o sonho de Micayon A Grande Nostalgia Acerca do pecado e da retirada dos aventais de folha de figueira. Acerca da noite a cantora incomparvel. Acercas do Ovum materno. Centelhas no caminho que conduz a Deus. Dia da Arca e os seus rituais. A mensagem do prncipe de Bethar a respeito da lmpada viva.

  • Mestre avisa multido sobre o dilvio de fogo e sangue, ensina o caminho de salvao e lana a sua arca.

    A Histria do Livro O Abade Prisioneiro

    No mais alto cume das Montanhas Alvas, conhecido como o Pico do Altar, jazem as vastas e sombrias runas de mosteiro, outrora famoso, com o nome de A ARCA. A tradio o ligava a uma antiguidade, to venervel quanto do Dilvio. Vrias lendas se teceram a respeito da Arca; porm, a que mais se espalhava na boca dos montanheses, entre os quais tive oportunidade de passar um vero, sombra do Pico do Altar, a seguinte: Muitos anos aps o grande Dilvio, No, sua famlia e seus afins, arribaram s Montanhas Alvas, onde encontraram vales frteis, rios caudalosos e um clima extraordinariamente ameno. E ali resolveram fixar-se. Tendo No percebido que seus dias se aproximavam do fim, chamou para junto de si seu filho Sem, que era, como ele, um sonhador e tinha vises, e lhe falou: Repara, filho meu, quo rica foi a colheita de anos de teu pai. Agora o ltimo molho est pronto para a segadeira. Tu e teus irmos e teus filhos e os filhos de teus filhos repovoareis a Terra desolada, e a tua semente ser como a areia do mar, segundo a promessa que Deus me fez. No entanto, assalta-me um receio nestes dias bruxuleantes que me restam. o de que os homens, com o tempo, se esqueam do Dilvio e da luxria e maldade que o provocaram; de que tambm se esqueam da Arca e da F que a susteve em triunfo, durante cento e cinqenta dias sobre a fria dos abismos vingadores e de que nem sem

  • lembrem da Nova Vida que surgiu dessa F da qual eles so o fruto. Para que eles no esqueam, eu te peo, filho meu, que levantes um altar sobre o mais alto pico destas montanhas, o qual, da por diante, ser chamado o Pico do Altar. E rogo-te que construas, volta desse altar, uma casa que em todos os pormenores corresponda Arca e que, sendo embora de menores dimenses, ser chamada Arca. Sobre esse altar eu me proponho a fazer minha ltima oferenda. E o fogo que eu ali acender, peo-te que o conserves constantemente aceso. Quando casa, dela fars um santurio, onde viver uma pequena comunidade de pessoas escolhidas, cujo nmero nunca ser nem mais, nem menos que nove. Sero conhecidas como os Companheiros da Arca. Quando uma delas falecer, Deus imediatamente prover outra que a substitua. Estas pessoas jamais deixaro o santurio, onde vivero uma vida de claustro pelo resto de seus dias, praticando toda a austeridade da Arca-Me e conservando aceso o fogo da f, pedindo ao Altssimo que as guie, bem como aos seus companheiros. As suas necessidades materiais sero providas pela caridade dos que tiverem f. Sem, que estivera bebendo, slaba por slaba, as palavras de seu pai, o interrompeu para saber o motivo do nmero nove, nem mais nem menos. E o patriarca, castigado pela idade provecta, explicou: Porque foi esse o nmero dos que viveram na Arca. Mas Sem no conseguia contar mais do que oito: seu pai e sua me, ele prprio e sua esposa, seus dois irmos e as respectivas esposas. E conseqentemente, ficou perplexo diante das palavras de seu pai. No, percebendo a perplexidade de seu filho, explicou ainda:

  • Guarda silncio, que te vou revelar um grande segredo, meu filho. A nona pessoa era um clandestino, que somente eu vi e conheci. Era meu constante companheiro e meu homem do leme. Nada mais me perguntes sobre ele, mas no deixes de lhe guardar um lugar no teu Santurio. Esta a minha vontade, Sem, meu filho. Providencia para que seja executada. E assim foi que Sem fez o que seu pai lhe havia ordenado. Quando No se foi juntar aos seus antepassados, seus filhos lhe enterraram o corpo debaixo do altar, na Arca, que por muitos e muitos anos continuou a ser, de fato e em esprito, o verdadeiro santurio idealizado pelo venervel conquistador do Dilvio. Com o passar dos sculos, porm, a Arca principiou, pouco a pouco, a receber dos fiis, donativos muito alm do que realmente necessitava. De tal fato resultou que se foi tornando, de ano para ano, mais rica em terras, prata, ouro e pedras preciosas. Um dia, h algumas geraes, tendo falecido um dos Nove, apresentou-se um estranho aos portes do mosteiro, solicitando sua admisso na comunidade. De acordo com as antigas tradies da Arca, tradies essas que jamais tinham sido violadas, o estranho deveria ser imediatamente admitido, j que havia sido o primeiro a solicitar essa admisso, aps o falecimento de um dos companheiros. Mas o Superior da comunidade, que era o nome que se dava ao abade, era nessa ocasio um homem prepotente, de mentalidade mundana e de corao duro. No se agradou da aparncia do estranho que estava nu, faminto e coberto de chagas; disse-lhe que era indigno de ser admitido na comunidade. O estranho insistiu em ser admitido, e esta insistncia de tal modo enfureceu o Superior que ele exigiu que o

  • estranho se retirasse imediatamente. O homem, porm, era perseverante e recusava-se ir embora. E, afinal, venceu a resistncia do Superior, que o admitiu como servo. Muito tempo esteve o Superior espera de que a Providncia lhe enviasse um companheiro para substituir o que havia falecido. Foi em vo. Ningum apareceu. E assim, pela primeira vez na sua histria, a Arca alojava oito companheiros e um servo. Passaram-se sete anos e o mosteiro se tornou to rico que j ningum podia calcular a quanto montava sua imensa riqueza. Possua todas as terras e vilas por muitas milhas ao seu redor. O superior estava muito contente, e passara a ter uma boa disposio para com o estranho, acreditando que esta havia trazido sorte para a Arca. Ao iniciar-se o oitavo ano, porm, a situao comeou a modificar-se lentamente. A antiga e pacfica irmandade principiou a fermentar. O esperto Superior logo percebeu que a causa daquilo era o estranho e resolveu expuls-lo. Era tarde! Muito tarde! Os monges, sob a sua direo, j no se conformavam com regra ou razo alguma. Em dois anos doaram todas as propriedades do mosteiro, pessoais ou gerais. Os inmeros arrendatrios de terras passaram a ser proprietrios. No terceiro ano todos os monges abandonaram o mosteiro. E, o que mais terrvel, o estranho amaldioou o Superior, dizendo que ele ficaria preso quele local e se tornaria mudo. Essa a lenda. No faltaram testemunhas que afirmassem t-lo visto vrias vezes, quer de noite, quer de dia, a vagar pelas terras do mosteiro abandonado, deserto e reduzido a runas. No entanto, ningum jamais conseguira arrancar uma nica palavra de seus lbios. Mais ainda, de cada vez

  • que percebia a presena de qualquer homem ou mulher, desaparecia, ningum sabe onde. Confesso que esta lenda tirou-me o sossego. A viso de um monge solitrio ou talvez a sua sombra vagando durante muitos anos na sede de um velho santurio, no alto de um pico desolado como o do Altar, era por demais obsecante para que eu pudesse abandon-lo. Encantava-me os olhos; dominava-me o pensamento; fazia-me ferver o sangue; queimava-me a carne e os osso. Finalmente, decidi: Subirei a montanha.

  • A Escarpa Rochosa

    De frente para o oceano e elevando-se a centenas de metros acima do nvel do mar, pedregoso e quase a prumo, o Pico do Altar mostrava-se distncia, inacessvel, um verdadeiro desafio a quem audaciosamente o tentasse escalar. No entanto, duas veredas razoavelmente seguras me foram mostradas, ambas tortuosas e contornando os precipcios uma ao sul e outra ao norte. Resolvi desdenh-las ambas. Entre elas, descendo diretamente do cume e chegando bem prximo base da montanha, pude vislumbrar uma ladeira estreita e lisa que me parecia a estrada real para o pico. Atraiu-me com uma fora estranha e decidi fazer dela o meu caminho. Quando revelei a minha deciso a um dos montanheses ele fitou-me com um par de olhos flamejantes e, juntando as mos, exclamou, aterrorizado: Pela Escarpa Rochosa?! No seja tolo em vender por to pouco a sua vida. Muitos j antes o tentaram, porm nenhum deles jamais voltou para contar o que houve. A Escarpa Rochosa?! No! Jamais! E assim dizendo, insistiu em guiar-me pela montanha acima. Eu, porm, delicadamente dispensei o seu auxlio. No posso explicar porque o seu terror causou em mim em efeito contrrio ao que seria de esperar. Ao invs de me deter, estimulou-me a prosseguir, tornando ainda mais firme a minha deciso de iniciar a escalada. Certa manh, exatamente no momento em que a escurido comeava a dissolver-se na luz, sacudi de meus olhos os sonhos da noite e empunhando meu bordo e sete pes, parti para a Escarpa Rochosa. O suave alento da noite que expirava, o pulso rpido do dia que nascia, uma nsia de enfrentar o mistrio do monge prisioneiro e a nsia, ainda

  • maior, de libertar-me de mim mesmo, ainda que fosse por um s momento, pareciam por asas nos meus ps e dar vivacidade a meu sangue. Principiei a jornada com um hino no corao e firme propsito em minhalma. Quando, porm, depois de uma longa e alegre caminhada, cheguei extremidade inferior da Escarpa e tentei a escalada com os olhos, o hino morreu-me na garganta. Aquilo que, visto de longe, me havia parecido uma estrada reta, suave e estendida como uma fita, apresentava-se agora, larga, quase a prumo, altssima e inconquistvel. At onde minha vista alcanava, para cima e para os lados, eu s via blocos de cristal de rocha de vrios tamanhos, eriados de pontas aguadas e arestas afiados como navalhas. Nem o mais leve sinal de vida. Toda a paisagem ao redor era de tal modo sombria que s podia inspirar pavor. De baixo, nem ao menos se vislumbrava o topo da montanha. No me deixei, porm, dissuadir. Sentindo, ainda, flamejar no meu rosto o olhar do homem que me havia advertido contra a escarpa, reforcei minha deciso e principiei a escalada. Logo, porm, compreendi que somente com os ps no poderia chegar muito longe, pois o cristal de rocha escorregava debaixo deles produzindo um rudo terrvel como o de um milho de gargantas que estivessem sendo estranguladas. Para avanar eu precisava enterrar as mos e os joelhos, tanto quanto os dedos dos ps, naquelas rochas mveis. Como desejei ter a agilidade de uma cabra! E eu avanava para cima, engatinhando em zig-zag, sem descanso. Receava que casse a noite antes que pudesse atingir meu alvo. Nem me passava pela idia desistir. O dia tinha sido bem empregado, quando, subitamente, senti fome. At aquele momento nada havia comido ou

  • bebido. Os pes que eu havia atado em um leno cintura eram uma preciosidade cujo valor eu bem podia avaliar naquele instante. Desamarrei-os e estava para quebrar o primeiro bocado, quando senti soar nos meus ouvidos o som de uma sineta e algo que me parecia o lamento de uma flauta. Nada me pareceria mais assustador no seio daquela desolao rochosa. Subitamente vi surgir, sobre uma rocha minha direita, uma grande cabra negra com um cincerro ao pescoo. Antes que pudesse tomar flego, vi-me cercado por cabras que me envolviam, pisando nas rochas e produzindo, assim, um rudo muito mais horrvel do que os meus prprios ps faziam. Como se tivessem sido convidadas, as cabras atiraram-se aos meus pes e os teriam arrancado de minhas mos se no tivessem ouvido a voz do pastor que, no sei como, nem quando, surgiu a meu lado. Era um jovem de agradvel aparncia alto, forte e cheio de alegria. S tinha, por vestimenta, uma pele que lhe cingia os rins, e a flauta, na sua mo direita, era sua nica arma. Esta minha cabra-guia, disse ele suavemente e a sorrir muito mimada. Dou-lhe po, sempre que o tenho. Faz, porm, muitas e muitas luas que no passa por aqui nenhuma criatura que traga po consigo. A seguir, dirigiu-se cabra: Vs como a Fortuna tudo prov, minha guia fiel? Nunca descreias da Fortuna. E logo, abaixando-se, apanhou um po. Julgando que ele estivesse com fome, disse-lhe amvel e sinceramente: Podemos partilhar esta frugal refeio. H po suficiente para ns ambos... e para a cabra-guia. Fiquei, porm, quase paralisado de assombro a v-lo atirar s cabras o primeiro po, o segundo e o terceiro... todos, at o stimo, tirando, de cada um, um bocado para si. O choque que recebi foi de tal ordem que a ira comeou a

  • ferver-me no corao. No entanto, compreendendo a minha incapacidade, consegui aquietar um pouco a clera e, com expresso de espanto, voltei-me para o pastor de cabras dizendo, como quem ao mesmo tempo suplica e censura: Agora que acabaste de dar s tuas cabras o po de um homem faminto, no lhe vais dar um pouco de leite? O leite de minhas cabras veneno para os tolos e no quero que nenhuma delas seja culpada da morte de algum, nem mesmo de um tolo. Mas por que sou tolo? Porque trazes sete pes para uma viagem que dura sete vidas. Deveria ento ter trazido sete mil? Nem um s. O que me aconselhas, ento, encetar essa longa viagem inteiramente sem provises? O caminho que no oferece provises ao viandante no merece a confiana deste. Desejarias ento que eu comesse pedras e bebesse o meu suor? A tua prpria carne te bastar como po, e o teu prprio sangue te bastar como gua. esta a soluo. Levas muito longe o teu escrnio. No posso, porm, retribu-lo. Aquele que come do meu po, torna-se meu irmo, ainda que me deixe faminto. O dia est fugindo por trs da montanha e preciso recomear a minha marcha. Queres informar-me se ainda estou muito longe de cume? Ests muito perto do Esquecimento.

    E assim dizendo, colocou a flauta nos lbios e saiu marchando ao som de agrestes notas que pareciam um lamento dos mundos inferiores. A cabra-guia o seguiu e,

  • aps esta, todas as outras. Durante muito tempo ainda pude ouvir o rudo das rochas pisadas e o balir das cabras, de mistura com os lamentos da flauta. Tendo esquecido a fome, principiei a recuperar parte de minha energia e minha determinao que o cabreiro havia destrudo. Se a noite me alcanasse naquela vereda pedregosa, precisaria encontrar um local onde pudesse repousar os ossos cansados, sem correr o risco de rolar pelo despenhadeiro abaixo. Recomecei a engatinhar. Olhando para baixo, mal podia acreditar que j tivesse subido tanto. O incio da vereda escarpada j no mais estava vista. E olhando para cima, parecia-me que dentro em pouco alcanaria o cume. Ao cair da noite atingi um grupo de rochas que formavam como que uma gruta. Conquanto a gruta ficasse no topo de um abismo, em cujo fundo se podiam ver sombras negras e pavorosas, resolvi dela fazer minha pousada para a noite. Minhas sandlias estavam esfarrapadas e tintas de sangue. Quando tentei tir-las, descobri que minha pele a elas se havia colado. As palmas de minhas mos estavam cobertas de casca, arrancados de uma rvore morta. A maior parte das minhas roupas tinha sido arrancada pelas pedras agudas. Sentia a cabea andar roda, de tanto sono. A mente me parecia estar vazia de qualquer pensamento ou idia. Quanto tempo estive adormecido um momento, uma hora ou uma eternidade no sei. Mas despertei sentindo que me puxavam, com fora, pela manga. Sentando-me, assustado e ainda tonto de sono, vi uma jovem de p, diante de mim, com uma lanterna mortia na mo. Estava completamente nua e era delicadamente bela de corpo e de rosto. Quem me puxava pela manga do casaco era uma

  • velha to feia quanto era bela a moa. Senti um calafrio que me fez tremer da cabea aos ps.

    Vs como a boa Fortuna tudo prov, minha filha? dizia a velha ao mesmo tempo em que me despia a metade do casaco Nunca duvides da Fortuna.

    Eu sentia a lngua como que paralisada e no fazia o menor esforo para falar e menos ainda para resistir. Era em vo que apelava para a minha vontade. Esta parecia ter-me abandonado. Sentia-me completamente incapaz de reagir, nas mos da velha, conquanto pudesse atir-la, bem como a filha, para fora da gruta, se assim o quisesse. No podia, porm, nem mesmo querer e no tinha capacidade de as expulsar. No contente em me haver despido o casaco, a mulher passou a despir-me as outras peas de roupa at deixar-me inteiramente nu. medida que me despia, entregava as peas de roupa jovem, que as ia vestindo. A sombra de meu corpo nu se projetou na parede da gruta, juntamente com as sombras das mulheres esfarrapadas, o que me punha amedrontado e aborrecido. Olhava para aquilo sem compreender e nada dizia, quando mais precisava falar, j que a voz era a nica arma que possua naquela situao desagradvel. Finalmente minha lngua soltou-se e eu disse: Se tendes perdido o pudor, velha, eu no o perdi. Estou envergonhado de minha nudez, mesmo diante de uma velha bruxa como vs. Mais envergonhado, porm, me sinto diante da inocncia desta moa. Assim como ela usa a tua vergonha, usa tu, a sua inocncia.

  • Que necessidade tem uma jovem das roupas esfarrapadas de um homem cansado e que se acha perdido numa noite como esta, em lugar como este, nas montanhas? Talvez para aliviar-te de tua carga. Talvez para aquecer-se. Os dentes da pobre menina esto batendo de frio. Mas quando o frio fizer os meus dentes baterem, como poderei afugent-lo? No tendes piedade em vosso corao?

    Quanto menos possures, menos sers possudo; Quanto mais possures, mais sers possudo. Quando mais possudo, mais sers taxado; Quando menos possudo, menos sers taxado. Vamos embora, minha filha.

    Ao tomar ela a mo da jovem, e quando j se iam retirar, vieram-me mente um milheiro de perguntas que eu desejaria fazer. S uma, porm, chegou-me ponta da lngua:

    Antes de vos retirardes, velha, podereis ter a bondade de me dizer se ainda estou muito distante do cume? Tu ests beira do Abismo Negro.

    A luz mortia da lanterna lanou novamente, para mim, aquelas sombras estranhas, quando as duas se retiraram da gruta, desaparecendo na noite negra como fuligem. Uma onda de frio, que no sei de onde vinha, atingiu-me. Ondas mais negras e mais frias seguiram-se. As prprias paredes da gruta pareciam estar suando gelo. Meus dentes se puseram a bater, e com isso surgiram os pensamentos mais confusos: as cabras pastando nas rochas, o pastor zombeteiro, esta velha e esta jovem; eu nu, machucado,

  • ferido, com fome, frio, confuso, naquela gruta, orla de um tal abismo. Estaria eu perto do meu alvo? Conseguiria atingi-lo? Esta noite teria fim? Mal eu havia recolhido, ouvi o ladrar de um co, vi outra luz pertssimo, dentro mesmo da gruta. Vs, como a boa Fortuna prov, minha querida? Nunca duvides da Fortuna. A voz era de um velho, muito idoso, barbado, curvado e com os joelhos trmulos. Falava com uma mulher to velha quanto ele, sem dentes, descabelada e tambm curvada e com os joelhos trmulos. Aparentemente, sem tomar conhecimento da minha presena, ele continuou com a mesma voz que parecia lutar para lhe sair da garganta: Uma luxuosa cmara nupcial para o nosso amor e um esplndido cajado para substituir o que perdeste. E assim dizendo, apanhou o meu cajado e o deu velha, que se curvou sobre ele, acariciando-o com suas mos encarquilhadas. Depois, como quem s ento dava pela minha presena, mas sempre falando com a sua companheira: O estranho vai partir imediatamente, querida, e ns poderemos sonhar nossos sonhos sozinhos. Estas palavras caram sobre mim como uma ordem qual eu me sentia incapaz de desobedecer, especialmente quando o co se aproximou rosnando, ameaadoramente, como que para me fazer cumprir a ordem de seu dono. A cena encheu-me de horror. Eu assistia como se estivesse sob o efeito de um encantamento... e foi nesse estado que caminhei at sada da gruta, fazendo esforos desesperados para falar, para defender-me, para assegurar meus direitos.

  • Levastes o meu cajado. Sereis to cruis que me expulsareis desta gruta que deveria ser meu lar por esta noite?

    Felizes os que no tm cajado, pois no tropeam. Felizes os que no tm lar, Pois esto em casa. S os que tropeam como ns Precisam andar com cajados. S os que esto presos a um lar como ns Precisam ter um lar.

    Assim cantavam eles, em dueto, enquanto preparavam o leito, nivelando o cascalho com suas longas unhas, sem prestarem ateno em mim. Fizeram-me gritar, no auge de desespero:

    Olhai para as minhas mos. Olhai para os meus ps. Sou um viandante perdido nesta encosta. Tracei com meu prprio sangue o meu caminho at aqui. J no posso ver uma nica polegada mais desta pavorosa montanha que parece ser to familiar para vs. No tendes receio de pagar por isto? Dai-me ao menos a vossa lanterna, se no quereis permitir que eu compartilhe esta gruta convosco, por esta noite.

    O amor no ser desnudado. A luz no ser repartida. Amai e vede. Iluminai e sede. Quando a noite cai, e o dia se vai,

  • e a terra est morta, quem ao viandante ajudar? Quem isso jamais ousar?

    Exasperado a mais no poder, resolvi recorrer splica, embora sentisse intimamente que era intil, pois uma estranha fora continuava como que a empurrar-me para fora: Bom velho, boa velha, embora eu esteja entorpecido pelo frio e tonto pelo cansao, no serei um cisco nos vossos olhos. Tambm eu j provei o amor. Deixar-vos-ei meu cajado e minha humilde pousada, que escolhestes para vossa cmara nupcial. S um pequeno favor vos peo em troca: j que me negais a luz de vossa lanterna, no tereis a bondade de me guiar para fora desta gruta e me ensinar o caminho para o alto? Perdi o senso de direo. No sei quanto j subi nem quanto ainda terei que subir. Sem dar ateno s minhas splicas, eles cantavam:

    O verdadeiramente alto sempre est em baixo. O verdadeiramente rpido vai sempre devagar. O altamente sensvel entorpecido. O altamente eloqente mudo. A enchente e a vazante so uma s mar. Quem no tem guia tem o melhor guia. O muito grande sempre o menor. E tudo tem quem d tudo que seu.

    Como ltimo recurso pedi-lhes que me dissessem para que lado devia voltar-me ao sair da gruta, pois a morte poderia estar minha espera no primeiro passo que eu desse e eu ainda no queria morrer. Sem flego, esperei pela

  • resposta, que veio em outra extravagante cano, que me deixou mais perplexo e exasperado do que nunca.

    A borda do penhasco dura e escarpada. O seio do vcuo macio e profundo. O leo e o verme, o cedro e o vime, O coelho e o caramujo, a lagartixa e a codorniz, A guia e a toupeira, todos no mesmo buraco. Um gancho. Uma isca. S a morte compensa. Como em cima, assim em baixo. Morrer para viver ou viver para morrer.

    A luz da lanterna se apagou, no momento em que deixei a gruta, engatinhando com as mos e os joelhos, com o co atrs de mim como para certificar-se de que eu realmente sara. A escurido era tamanha, que me parecia sentir o seu peso sobre as minhas plpebras. Eu no me poderia deter um s instante mais. O co me fez compreender isto, perfeitamente. Um passo hesitante. Outro passo hesitante. Um terceiro passo hesitante e senti que a montanha havia desaparecido debaixo de meus ps. Senti-me colhido pelas ondas revoltas de um mar de trevas que me roubavam o alente e me lanavam para baixo... para baixo... para baixo. A ltima viso que me passou pela mente enquanto eu girava no vcuo do Abismo Negro foi a do satnico casal de noivos. As ltimas palavras que murmurei, quando o alento se me gelou nas ventas, foram as que eles haviam pronunciado: Morrer para viver ou viver para morrer.

  • O Guardio do Livro

    Levanta-te, feliz estrangeiro. Atingiste o teu alvo.

    Ressecado de sede e contorcendo-me, debaixo dos raios de um sol escaldante, descerrei levemente os olhos e dei acordo de mim, deitado no cho, com o vulto negro de um homem curvado sobre mim e que, com delicadeza, me umedecia os lbios com gua e, cuidadosamente, lavava os meus ferimentos. Era cheio de corpo, de feies rudes, com a barba e as sobrancelhas hirsutas, de olhar profundo e aguado, de idade muito difcil de se determinar. Contudo, seu toque era suave e reconfortante. Foi com seu auxlio que pude sentar-me e perguntar com voz to sumida, que mal soava aos meus prprios ouvidos.

    Onde estou? No Pico do Altar. E a gruta? Atrs de ti. E o Abismo Negro? Na tua frente.

    Era imenso o meu assombro, quando olhei e vi atrs de mim a gruta e na minha frente o negro abismo como uma imensa boca escancarada. Eu me encontrava bem beira do precipcio, e ento pedi ao homem que me levasse para dentro da gruta, o que ele me fez com a maior boa vontade.

    Quem me tirou do Abismo?

  • Aquele que te guiou at o alto, deve ter-te tirado do Abismo. Quem ele? O mesmo ele que atou a minha lngua e me manteve prisioneiro neste Pico, durante cento e cinqenta anos. Vs sois, ento, o abade prisioneiro? Sim, sou. Mas vs falais; ele mudo! Tu desataste a minha lngua. Ele evita a companhia dos homens; vs, ao que parece, no tendes medo de mim. Evito todos os homens, menos tu. Jamais, at hoje, viste o meu rosto. Por que evitais todos os homens, menos eu? Durante cento e cinqenta anos estive tua espera. Durante cento e cinqenta anos, sem falhar um s dia, em todas as estaes do ano e com todo e qualquer tempo, meus olhos pecadores procuraram por entre os rochedos da Escarpa, um homem que houvesse subido a montanha, aqui chegando como tu chegaste, sem cajado, nu e sem provises. Muitos foram os que tentaram por outros caminhos, porm no vinham sem cajado, nus e sem provises. Durante todo o dia de ontem, estive a observar a tua caminhada. noite deixei que dormisses na gruta, mas ao alvorecer aqui vim e te encontrei desacordado e sem alento. Mas tinha certeza de que voltarias vida. A est! Mais vivo do que eu. Tu morreste para viver. Eu estou vivendo para morrer. Glria seja dada ao seu nome! Tudo se passou conforme as suas promessas. Tudo foi como deveria ser. No tenho a menor dvida de que s o escolhido.

    Quem?

  • O bem aventurado em cujas mos devo entregar o livro sagrado para que o publique e o entregue ao mundo. Que livro? O seu livro O Livro de Mirdad. Mirdad? Quem Mirdad? Ser possvel que no tenhais ouvido falar em Mirdad? Que coisa estranha! Eu estava absolutamente certo de que nesta poca j o seu nome houvesse sido propagado por toda a terra, tal como interpenetra o solo debaixo dos meus ps e o cu por cima de mim. Este solo sagrado, estrangeiro, seus ps o pisaram. Sagrado este ar que nos envolve; seus pulmes o respiraram. Sagrado este cu que nos cobre; seus olhos o perscrutaram.

    E assim dizendo, o monge curvou-se reverentemente, beijou trs vezes o solo e calou-se. Depois de uma pausa eu disse:

    Acicatais o meu desejo de saber mais a respeito desse homem, que chamais de Mirdad. Volta para mim o teu ouvido e eu te contarei tudo o que me permitido contar. Meu nome Shamadam. Eu era o Superior da Arca no dia em que faleceu um dos companheiros. Mas havia a sua alma partido e eis que me vieram avisar de que um estranho se achava ao porto pedindo para falar-me. Bem sabia eu que ele havia sido enviado pela Providncia, para tomar o lugar do companheiro falecido, e devia ter-me regozijado, pelo fato de Deus ainda estar cuidando da Arca, tal como havia feito desde a poca de nosso pai Sem.

    Nesta altura eu o interrompi para perguntar se era verdade o que havia contado o povo da falda da montanha,

  • de que a Arca fora construda pelo primeiro filho de No. Sua resposta foi imediata e enftica:

    Sim. exatamente conforme te disseram.

    E continuou a histria interrompida:

    Pois bem. Eu deveria ter-me regozijado. No entanto, por motivos inteiramente fora de meu entendimento, estabeleceu-se uma revolta em meu corao. Antes mesmo de ter posto os olhos sobre o estranho, j todo o meu ser lutava contra ele. E resolvi recus-lo, embora no meu ntimo estivesse certo de que, o fazendo, quebrava as inviolveis tradies do mosteiro e, concomitantemente, rejeitava Aquele que o havia enviado.

    Quando abri o porto e o vi um jovem de no mais de vinte e cinco anos senti no peito milhares de punhais com os quais desejava feri-lo. Nu, aparentemente faminto e sem o menor meio de proteo, nem ao menos um cajado, parecia inteiramente indefeso. Havia porm, no seu resto, uma luz que lhe dava um aspecto mais invulnervel do que um cavalheiro em sua armadura e o fazia parecer muito mais idoso do que realmente era. Todo o meu ser, desde o mais ntimo de meu corao, bradava contra ele. Todas as gotas de meu sangue desejavam esmag-lo. No me peas explicaes. Talvez o seu olhar penetrante me houvesse desnudado a alma e eu estivesse aterrorizado de ver minha alma nua, diante de um homem. Talvez a sua pureza revelasse a minha imundcie e me doesse ver dilacerados os vus que at ento eu vinha tecendo para ocult-la. Talvez houvesse uma velha

  • contenda entre a sua estrela e a minha. Quem sabe? Quem poder saber? S ele poder dizer.

    No tom mais rspido e impiedoso, eu lhe disse que no poderia ser admitido na comunidade e ordenei-lhe que se retirasse imediatamente. Ele porm, no se moveu do lugar e, calmamente, aconselhou-me a refletir. Seu conselho pareceu-me um insulto e cuspi no seu rosto. Ainda assim ele no se retirou e, limpando vagarosamente a saliva do rosto, mais uma vez aconselhou-me a reconsiderar minha deciso. Enquanto ele limpava a saliva de seu rosto eu tinha a impresso de que era o meu que estava emporcalhado com ela. Sentia-me derrotado, e no ntimo de meu ser, admitia que a luta era desigual, sendo ele o mais forte. Como sempre sucede quando o orgulho derrotado, o meu se recusou a ceder e lutou at ver-se cado e pisado no p da terra. Eu estava quase cedendo ao pedido do homem. Mas primeiro queria v-lo humilhado. Ele, porm, de modo algum se humilhava. Subitamente, ele pediu alimento e roupas, e com isso reviveram as minhas esperanas. Com a fome e o frio, combatendo a meu favor, julguei que a batalha estivesse vencida por mim. Cruelmente, declarei-lhe que o mosteiro vivia de caridade e por isso no podia fazer caridade. E assim dizendo, eu mentia desavergonhadamente, pois o mosteiro era extraordinariamente rico para negar alimento e roupas aos necessitados. O que eu desejava era que ele suplicasse. Mas isso ele no fazia. Pedia como quem tinha direito quilo que solicitava. Havia uma aparncia de comando no seu pedido. A luta durou bastante tempo, porm a situao no mudou. Desde o incio at o fim, ele comandou a batalha.

  • Para esconder a minha derrota, finalmente propus que ele entrasse na Arca, porm como servo somente como servo. Para mim, isso era um consolo, pois, pensava eu, seria para ele uma humilhao. No meu orgulho eu no me dava conta de que era eu o mendigo, e no ele. Para confirmar a minha humilhao, ele aceitou a proposta sem ao menos murmurar. No me passava pela idia que, aceitando-o como servo mesmo como um servo eu estava excluindo-me. At o ltimo dia aferrei-me iluso de que era eu, e no ele, o mestre da Arca. Ah, Mirdad! Mirdad, que fizeste a Shamadam! Shamadam, que fizeste a ti mesmo!

    Duas grandes lgrimas vieram molhar suas longas barbas. Senti-me comovido e disse: Peo-vos que no faleis mais desse homem cuja memria sai de vossos lbios com lgrimas.

    No te perturbes, abenoado mensageiro. o orgulho do Superior de outrora, que ainda destila estas lgrimas de fel. a autoridade da letra que est rangendo os dentes contra a autoridade do esprito. Deixa o orgulho chorar. Ele chora a sua morte. Deixa a autoridade ranger os dentes; pela ltima vez que o faz. Ah! Se os meus olhos no estivessem to vendados pela neblina deste mundo, quando pela primeira vez encarei o seu rosto celestial! Ah! Se meus ouvidos no estivessem to entupidos com a sabedoria deste mundo, quando foram desafiados pela sua sabedoria divina! Ah! Se a minha lngua no estivesse to recoberta das amargas douras da carne, quando lutava com a sua lngua revestida de esprito! Tenho j colhido muito e mais ainda terei a colher do joio da minha iluso.

  • Durante sete anos, ele foi um humilde servo entre ns dcil, ativo, incapaz de ofender, inobstrutivo, pronto a executar o menor pedido de qualquer dos companheiros. Movia-se suavemente, como se estivesse deslizando no ar. Nem uma s palavra lhe saa dos lbios. Pensvamos que tivesse feito um voto de silncio. Alguns de ns estvamos, a princpio, inclinados a aborrec-lo. Ele recebia os golpes, com uma calma extra-terrena, e dentro em pouco, nos havia forado a lhe respeitar o silncio. Diferentemente do que se dava com os outros sete Companheiros, os quais se sentiam deliciados com a sua calma, que tinha sobre eles o efeito contagioso de um calmante, eu a sentia opressiva e enervante. Muito esforo fiz para perturb-la, sempre porm em vo. O nome sob o qual se nos apresentou foi MIRDAD. S por esse nome ele atendia. Era tudo quanto sabamos dele. No entanto, sua presena era profundamente sentida por ns, to profundamente, que raras vezes falvamos, mesmo de coisas essenciais, a no ser depois dele se retirar para sua cela. Foram anos de abundncia, os primeiros sete anos de Mirdad. As posses do mosteiro foram aumentadas muito alm de sete vezes. Meu corao se suavizou a seu favor e consultei seriamente a comunidade se o admitiramos como Companheiro, j que a Providncia no nos enviava outro. Justamente nessa ocasio sucedeu o que nenhum de ns poderia prever, e menos ainda este pobre Shamadam. Mirdad descerrou os lbios e a tempestade foi libertada. Deu liberdade quilo que durante tanto tempo o seu silncio havia ocultado e aquilo rompeu em torrentes to irresistveis que todos os Companheiros foram colhidos na sua rpida correnteza todos, menos este pobre

  • Shamadam que lutou contra ele at o fim. Tentei inverter a situao, afirmando a minha autoridade como Superior, mas os Companheiros no reconheciam outra autoridade que no fosse a de Mirdad. Mirdad era o Mestre; Shamadam no passava de um clandestino. Recorri at astcia. A alguns Companheiros tentei subornar com largas somas em ouro e prata; a outros com grandes lotes de terra frtil. J estava quase vencendo, quando Mirdad percebeu a minha intriga e a desfez sem o menos esforo; bastaram, para isso, umas poucas palavras. Estranha e complicada era a doutrina que ele sustentava. Est, toda ela, no Livro. Disso no me permitido falar. Mas a sua eloqncia fazia a neve parecer piche e o piche parecer neve; to ntida e poderosa era a sua palavra. A essa arma que poderia eu opor? Nada, seno o selo do mosteiro, que se achava em meu poder. Mesmo esse j de nada me servia pois os Companheiros, entusiasmados por suas exortaes inflamadas, foravam-me a apor o selo do mosteiro a todos os documentos que julgavam que eu deveria legalizar. Pouco a pouco, eles doaram todas as terras do mosteiro que a este haviam sido doadas pelos fiis durante muitos e muitos anos. Depois Mirdad comeou a envi-los para fora do mosteiro em misses, carregados de presentes para os pobres e necessitados das vilas que cercam este monte. No ltimo Dia da Arca, que era uma das duas comemoraes anuais do mosteiro sendo a outra o Dia da Videira Mirdad encerrou as suas loucuras ordenando a seus companheiros que arrecadassem tudo que pertencia ao mosteiro e distribussem ao povo que se havia reunido l fora. Tudo isso eu vi com os meus olhos pecadores e est registrado em meu corao que quase rebentou de dio a

  • Mirdad. Se o dio, somente, pudesse matar aquele que eu abrigava em meu corao teria assassinado um milheiro de Mirdades. Mas o seu amor era mais forte do que o meu dio. Mais uma vez a luta era desigual. Mais uma vez o meu orgulho no cederia enquanto no se visse derrubado e pisoteado no p da terra. Ele me esmagava sem me atacar. Eu o atacava e com isso esmagava-me a mim mesmo. Quantas vezes tentou, com a sua amorosa pacincia, remover a trave que me impedia de ver! Quantas vezes eu procurei outras, mais fortes e mais opacas, para p-las diante de meus prprios olhos! Quanto mais amor ele demonstrava por mim, mais eu lhe retribua com um dio cada vez mais forte. ramos dois soldados no campo de batalha Mirdad e eu. Mas ele, sozinho, era uma legio. Eu lutava desacompanhado. Tivesse eu o apoio dos outros Companheiros e ao fim seria o vencedor. E lhe teria devorado o corao. Meus Companheiros, porm, lutavam com ele, contra mim. Traidores! Mirdade, Mirdad, tu te vingaste!

    Mais lgrimas, desta vez acompanhadas de soluos e uma longa pausa, aps a qual o Superior de novo curvou-se trs vezes beijou o solo, dizendo:

    Mirdad, meu conquistador, meu senhor, minha esperana, meu castigo e minha recompensa, perdoa a amargura de Shamadam. A cabea de uma cobra conserva o seu veneno mesmo depois de separada do corpo. Mas, felizmente, j no pode morder. Shamadam j no tem presas agudas, nem veneno. Sustenta-o como o teu amor, at o dia em que possa o mel destilar de sua boca, tal como destilava da tua. Foi isto que tu lhe prometeste. Hoje o

  • libertaste de sua primeira priso. No o deixes penar por muito tempo na segunda.

    Como se tivesse lido na minha mente a pergunta de quais eram as prises a que se referia, o Superior a suspirar explicou, numa voz to melodiosa e mudada porm, que se poderia jurar ser de outra pessoa:

    Nesse dia, ele nos chamou a todos para dentro desta gruta onde freqentemente dava lies aos Sete. O sol estava a se pr. O vento de leste havia trazido uma neblina cerrada que enchia as gargantas de pedra da montanha e, como se fosse uma coberta mstica se espalhava por toda a terra desde aqui at o mar. Elevava-se at a metade desta montanha que parecia, assim, haver-se transformado em uma praia. No lado do ocidente havia nuvens negras ameaadoras, que obscureciam totalmente o sol. O Mestre, comovido, porm, dominando sua emoo, abraou cada um dos Sete por sua vez, dizendo, ao abraar o ltimo:

    Muitos anos vivestes vs nestas alturas. Hoje tereis que descer ao abismo. Se no subirdes, descendo, e no chegardes ao vale pelo pice, as alturas vos poro tontos, e a profundidade vos poro cegos.

    Depois, voltando-se para mim, olhou-me terna e longamente, nos olhos, e disse-me: Quanto a ti, Shamadam, tua hora ainda no chegada. Ters que esperar minha volta a este pico. E enquanto me esperas sers o guardio do meu Livro, o qual est encerrado num cofre de ferro, debaixo do altar. Cuida que ningum lhe ponha as mos. Nem mesmo as tuas mos devem nele tocar. Ao devido tempo enviarei o

  • meu mensageiro para que o leve, publique e oferea ao mundo. Eis os sinais pelos quais o reconhecers: subir a este cume pela Escarpa Rochosa. Iniciar sua viagem completamente vestido, levando consigo um basto e sete pes; mas o encontrars em frente desta gruta sem cajado, sem provises, nu, desmaiado e sem alento. At que ele chegue, tua lngua e teus lbios sero selados e evitars a companhia das pessoas. S quando o vires sers libertado da priso do silncio. Depois de lhe haveres entregue o Livro sers transformado em pedra, pedra essa que estar guardando a entrada desta gruta at que eu volte. Dessa priso s eu te poderei libertar. Se julgares curta, mais curta ela se tornar. Cr e tem pacincia. Dito o qu, tambm a mim abraou.

    E depois, voltando-se para os Sete, fez um sinal com a mo e disse: Companheiros, segui-me.

    Marchou adiante deles, pela Escarpa, com sua nobre cabea erguida, seu olhar penetrando a distncia, seus santos ps mal tocando o solo. Quando chegaram orla da neblina, o sol surgiu na extremidade inferior da nuvem negra que se sobrepunha ao mar, formando uma passagem abobadada no cu, iluminada por uma luz por demais maravilhosa para ser descrita em palavras humanas, excessivamente refulgente para olhos humanos. E pareceu-me que o Mestre e os seus Sete haviam sido desligados da montanha e que caminhavam pela neblina, pela estrada abobadada, para dentro do sol. E como me doa ser deixado s oh! to s!

  • Como algum que estivesse exausto dos pesados trabalhos de um longo dia, Shamadam subitamente relaxou os msculos e silenciou, deixando cair a cabea e fechando os olhos. O peito arfava descompassadamente. Enquanto eu meditava, procurando palavras consoladoras, ele levantou a cabea e disse:

    Tu s o favorito da Fortuna. Perdoa a um homem infeliz. Falei muito talvez demais. Nem poderia ser de outro modo. Poderia algum, cuja lngua tivesse estado presa durante cento e cinqenta anos, romper o seu silncio, simplesmente com um sim ou um no? Pode um Shamadam ser um Mirdad?

    Permitis que eu vos faa uma pergunta, irmo Shamadam?

    Quanta bondade tua em me chamares de irmo. Ningum me deu esse tratamento desde que morreu meu nico irmo, faz isso muitos e muitos anos. Qual a pergunta?

    Uma vez que Mirdad to grande mestre, de se admirar que at hoje o mundo no tenha ouvido falar nele e nos seus sete companheiros. Como pode ser assim?

    Talvez esteja esperando chegar o seu tempo. Talvez ensine sob outro nome. De uma cousa estou certo: Mirdad mudar o mundo, assim como mudou a Arca.

    Ele deve ter falecido h muito tempo.!

    Mirdad no. Ele mais poderoso do que a morte.

  • Quereis dizer que ele destruir o mundo, assim como destruiu a Arca?

    No, mil vezes no! Ele libertar o mundo, assim como libertou a nossa Arca. E ento acender a luz eterna que os homens como eu tm ocultado sob muitos alqueires de iluses e agora se queixam das trevas em que se encontram. Ele reconstruir nos homens aquilo que os prprios homens destruram. O Livro em breve estar em tuas mos. Lendo-o, tu vers a luz. No me posso demorar mais. Espera aqui at que eu volte, no deves vir comigo.

    Levantou-se e se foi, deixando-me bastante perplexo e impaciente. Tambm eu me levantei, porm no fui alm da orla do abismo. As magnficas linhas e cores da cena que se desenrolava diante dos meus olhos de tal modo me invadiram a alma que por um momento me senti dissolvido e aspergido em imperceptveis gotculas sobre tudo aquilo e dentro daquilo tudo: sobre o mar, l distante, calmo e cercado de uma leve nvoa cor de prola; sobre as colinas, estas curvadas, aquelas eretas, todas porm erguendo-se em rpida sucesso, desde a praia em direo ao topo dos ridos penhascos; sobre as pacficas aldeias situadas nas colinas emolduradas pelo verde da terra; sobre os vales verdejantes, ao sop das colinas, apagando a sua sede no corao lquido que descia das montanhas e salpicado de homens que cultivavam a terra e animais que pastavam; dentro das gargantas e ravinas dos montes, cicatrizes vivas da luta destes montes com o Tempo; na brisa suave, no azul do cu e na terra acinzentada l em baixo. Somente quando olhar descansou de sua viagem

  • pousando sobre a Escarpa, voltei a lembrar-me do monge e da envergonhada narrativa a seu respeito e de Mirdad e o Livro. E fiquei maravilhado a pensar na poderosa mo invisvel que me havia posto em busca de uma cousa para me dirigir outra. E a abenoei em meu corao. Dentro em pouco o monge voltava e, entregando-me um pequeno pacote envolvido em tecido de linho amarelecido pelo tempo, disse:

    Minha misso , doravante, a tua misso.S-lhe fiel. Chegou a segunda etapa de minha histria. As portas de minha priso comeam a abrir-se para receber-me. Logo se fecharo sobre mim. Quanto tempo permanecero fechadas, s Mirdad poder dizer. Logo Shamadam ser esquecido por todas as memrias. Como doloroso, oh! como doloroso ser esquecido! Mas por que digo isso? Nada jamais se apaga da memria de Mirdad. Aquele que vive na memria de Mirdad, vive para sempre.

    Seguiu-se uma longa pausa depois da qual o Superior levantou a cabea e, fitando-me com olhos lacrimejantes, continuou num sussurro que mal se podia ouvir:

    Dentro em pouco descers para o mundo. Ests, porm, nu e o mundo detesta a nudez. At a sua prpria alma ele envolve em trapos. J no necessito mais de minhas roupas. Entrarei na gruta e as despirei a fim de que possas, com elas cobrir a tua nudez, muito embora as roupas de Shamadam no se ajustem seno a Shamadam. Espero que sejam um estorvo para ti.

    No fiz comentrio algum quela proposta, aceitando-a em alegre silncio. Enquanto o Superior

  • entrava na gruta para despir-se, desembrulhei o Livro e principiei desajeitadamente a folhear suas pginas de pergaminho, amarelecidas pelo tempo. Logo me senti preso pela primeira pgina, que me esforcei por ler. E continuei a ler e a ler, cada vez mais absorto. Subconscientemente eu esperava que o Superior me avisasse de que acabara de se despir e me chamasse para vestir-me. Mas os minutos se passaram e ele no me chamou. Levantando meus olhos das pginas do Livro, olhei para a gruta e no meio dela vi as roupas do Superior amontoadas. Mas o prprio Superior eu no via. Chamei-o diversas vezes, cada vez em voz mais alta. No houve resposta. Fiquei muito assustado e confuso. Na gruta no havia outra sada seno aquela na frente da qual eu estava. Por ali o Superior no sara, disso eu no tinha a menor dvida. Seria ele um fantasma? Mas se eu sentira a sua carne e os seus ossos com minha prpria carne e ossos! Alm disso, ali estavam o Livro, nas minhas mos e as suas roupas, dentro da gruta. Talvez ele estivesse debaixo delas. Entrei e apanhei-as uma por uma, pensando em como era ridcula essa idia. Muito maior pilha de roupas do que aquela seria incapaz de ocultar o seu corpo. Teria ele, de algum modo, conseguido sair da gruta e cado no Abismo Negro? To logo essa idia brilhou no meu crebro sa apressadamente da gruta e mal tinha dado alguns passos me vi frente a frente com uma grande rocha posta exatamente beira do abismo. Aquela pedra havia pouco tempo no estava ali. Tinha a aparncia de um animal acocorado, mas a cabea se parecia muito com a de um homem de feies rudes, com o queixo forte e levantado,

  • as mandbulas fortemente cerradas e os olhos, semicerrados, fitando o vcuo, na direo do Norte.

  • O L I V R O

    Este o Livro de Mirdad um farol e um refgio para aqueles que anseiam pela Libertao conforme foi registrado por Naronda, o mais jovem e o menor de seus Companheiros. Quem no tiver tal anseio, afaste-se dele!

  • CAPTULO 1

    Mirdad se revela e fala de vus e selos

    Naronda: E ao anoitecer daquele dia, eis que estavam os Oito reunidos volta da mesa da ceia e Mirdad se achava afastado, de p, aguardando ordens. Era uma das antigas regras, entre os Companheiros, que fosse evitado, sempre que possvel, o uso da palavra Eu, no seu falar. Estava o Companheiro Shamadam a jactar-se de suas realizaes como Superior. Citou vrios dados para mostrar o quanto contribua para a riqueza e o prestgio da Arca. E assim fazendo, usou em demasia, da palavra proibida. Delicadamente o Companheiro Micayon o repreendeu. E logo se levantou entre eles uma acalorada discusso quanto s finalidades da regra e sobre quem a instaurara, se o pai No ou o Primeiro Companheiro, ou seja, Sem. E o calor gerou as censuras e as censuras levaram a uma confuso tal, que muito se dizia e nada se podia entender. Tentando transformar aquela confuso em ridculo, Shamadam, dirigindo-se a Mirdad, disse-lhe:

    Shamadam: Eis que aqui temos algum que maior do que o patriarca. Mirdad, mostra-nos o que devemos fazer para sair deste labirinto de palavras.

    Os olhares todos se voltaram para Mirdad. E foi grande o nosso assombro e nosso jbilo quando, pela

  • primeira vez, aps sete anos, ele descerrou os seus lbios e nos falou, dizendo:

    MIRDAD: Companheiros da Arca! O desejo de Shamadam, conquanto expresso por ironia, inconscientemente prenuncia a solene deciso de Mirdad, pois desde o dia em que entrou nesta Arca, Mirdad havia escolhido esta data e este local exatamente nesta circunstncia para romper os seus selos e remover os seus vus, revelando-se diante de vs e do mundo. Com sete selos tinha Mirdad selado os seus lbios. Com sete vus havia Mirdad velado o seu rosto, para que pudesse ensinar-vos e ao mundo, quando estivsseis maduros para aprender, como deveis remover os selos dos vossos lbios e os vus de vossos olhos, revelando-vos assim inteiramente na glria que vossa. Velados esto os vossos olhos com grande nmero de vus. Cada coisa sobre a qual lanais o vosso olhar um vu. Selados esto os vossos lbios com grande nmero de selos. Cada palavra que pronunciais um selo. As coisas, sejam quais forem as suas formas e espcies, so somente vus e ataduras com que a Vida est atada e velada. Como podero os vossos olhos, que so em si mesmos um vu e uma atadura, vos levar a algo que no seja s ataduras e vus? E as palavras no so elas coisas seladas por letras e slabas? Como podero os vossos lbios, que so em si mesmo selos, balbuciar algo que no seja selos? Os olhos podem velar, porm no podem penetrar os vus. Os lbios podem selar, porm no podem quebrar os selos.

  • No lhes peais nada mais do que eles podem dar. Essa a parte que lhes toca na atividade do corpo e eles bem a desempenham. Velando e selando, em alta voz vos chamam para que busqueis o que est por trs dos vus e por baixo dos selos. Para penetrardes alm dos vus, necessitais de olhos outros que no aqueles dotados de plpebras, pestanas e sobrancelhas. Para quebrardes os selos, necessitais de outros lbios que no aqueles de carne, que tendes por baixo do nariz. Vede em primeiro lugar corretamente os vossos prprios olhos, se quiserdes ver corretamente as outras coisas. No com os olhos, mas atravs Deles, deveis olhar para que possais ver aquilo que alm deles est. Falai primeiro, corretamente, os lbios e a lngua, se quiserdes falar corretamente as outras palavras. No com os lbios e a lngua, mas atravs deles deveis falar, para falardes todas as palavras que alm deles esto. Se no virdes e no falardes corretamente, nada mais vereis seno a vs mesmos e nada mais pronunciareis seno a vs mesmos. Porque em todas as coisas e alm de todas as coisas, e em todas as palavras e alm de todas as palavras, estais vs os que olham e os que falam. Se, pois, vosso mundo um enigma indecifrvel, porque vs mesmos sois enigmas indecifrveis. E se o vosso falar uma deplorvel confuso, porque vs sois essa deplorvel confuso. Deixai as coisas como elas so e no vos esforceis para modific-las. Porque elas parecem ser o que parecem, devido a vs parecerdes ser o que pareceis. Elas no vem nem falam, se vs no lhes emprestardes vista e voz. Se elas vos falam asperamente, atentai para vossas lnguas. Se

  • vos parecem feias, procurai a fealdade em primeiro e ltimo lugar nos vossos prprios olhos. No deveis pedir s coisas que se dispam dos seus vus. Tirai vs prprios os vossos vus, e elas perdero os seus. No peais s coisas que quebrem os seus selos. Removei os vossos prprios selos, e todas as coisas perdero os seus. A chave para remover os vus de si mesmo e quebrar os prprios selos uma palavra que deveis trazer, eternamente, presa em vossos lbios. a menor e a maior de todas as palavras. chamada de A PALAVRA CRIADORA.

    Naronda: O Mestre calou-se; e um profundo silncio, no qual vibrava intensa expectativa, desceu sobre todos. Finalmente Micayon falou com apaixonada impacincia:

    Micayon: Nossos ouvidos esto ansiosos pela PALAVRA. Nossos coraes anseiam pela chave. Rogamos-vos, Mirdad, que a profirais.

  • CAPTULO 2

    acerca da palavra criadora; o eu a fonte e o centro de todas as coisas

    MIRDAD: Quando disserdes eu, acrescentai imediatamente em vossos coraes, Deus seja o meu refgio contra a malignidade do eu e meu guia para a bem-aventurana do eu, pois nessa palavra, to pequena embora, est encerrada a alma de todas as outras palavras. Descerrai-a e imediatamente vossa boca ser perfumada e vossa lngua se cobrir de mel; de vossas palavras ressumaro as delcias da Vida. Deixai-a fechada, e repugnante ser o vosso hlito e amarga a vossa lngua; cad uma de vossas palavras destilar o pus da Morte. Eu, monges, a Palavra Criadora. E a no ser que vos apodereis da fora mgica; e a menos que sejais donos do poder dos mestres, gemereis quando devereis cantar; estareis em guerra, quando devereis estar em paz; estareis encerrados no crcere das trevas, quando devereis estar pairando numa atmosfera de luz. Vosso eu nada mais do que a vossa conscincia de Ser, silenciosa e incorprea, que se faz sonora e corprea. o inaudvel que se torna audvel; o invisvel que se torna visvel; a viso que vos permite ver o que se no v; a audio que vos permite ouvir o que se no ouve. Ainda tendes presos os vossos olhos e os vossos ouvidos. E se no virdes com os vossos olhos e no ouvirdes com os vossos ouvidos, nada vereis e nada ouvireis. Basta que penseis eu, e um mar de pensamentos se agitar dentro de vossas cabeas. Esse mar uma criao de vosso eu, que , ao mesmo tempo, o pensador e o

  • pensamento. Se tendes pensamentos que apunhalam, que mordem ou despedaam, ficai certos de que somente o eu-em-vs lhes deu o punhal, os dentes ou as garras. Mirdad deseja que saibais; aquele que pode dar pode tambm retirar. Basta sentirdes eu para abrirdes uma fonte de sentimentos em vossos coraes. Essa fonte uma criao de vosso eu, o qual , ao mesmo tempo, aquilo que sente e aquilo que sentido. Se existem urzes espinhosas em vossos coraes, foi unicamente o eu-em-vs que l as plantou. Mirdad quer que saibais que quem pode facilmente plantar, tambm pode, facilmente, arrancar. Pelo mero pronunciar eu, trazeis vida uma multido de palavras, cada qual smbolo de uma coisa; cada coisa, smbolo de um mundo; cada mundo, parte de um universo. Esse universo criao de vosso eu, o qual , ao mesmo tempo, o criador e a criatura. Se houver alguns duendes em vosso universo, podeis estar certos de que o vosso eu foi quem os criou. Mirdad quer que saibais que quem cria tambm pode destruir. Tal como o criador, assim a criatura. Poder algum criar algo superior a si mesmo? Ou criar algo inferior a si prprio? S a si mesmo nem mais, nem menos o criador cria. O eu uma fonte da qual tudo flui e qual tudo reflui. Tal qual a fonte, assim a correnteza. O eu uma varinha mgica. No pode, porm, a varinha fazer surgir coisa alguma que no esteja no mgico. Tal como o mgico, assim aquilo que a sua varinha produz.

  • Conforme for a vossa Conscincia, assim ser o vosso eu. Conforme for o vosso eu, assim ser o vosso mundo. Se o vosso eu for claro e tiver um significado definido, vosso mundo ser claro e ter um significado definido; ento vossas palavras jamais sero confusas e as vossas obras jamais sero ninhos de dor. Se o vosso eu for obscuro e incerto, vosso mundo ser obscuro e incerto; e vossas palavras sero emaranhadas e confusas e as vossas obras sero ninho de dor. Se o vosso eu for constante e paciente, vosso mundo ser constante e paciente; sereis mais poderosos do que o Tempo e mais espaosos do que o Espao. Se o vosso eu for passageiro e inconstante, vosso mundo ser passageiro e inconstante; e vs sereis uma baforada de fumaa que o sol em pouco ir desfazer. Se o vosso eu for uno, vosso mundo ser uno; e vs tereis a paz eterna com todas as hostes celestiais e os habitantes da Terra. Se o vosso eu for mltiplo, vosso mundo ser mltiplo; e estareis em perptua guerra convosco mesmo e com todas as criaturas dos domnios imensurveis de Deus. O eu o centro de vossa vida, de onde irradiam as coisas que constituem a totalidade de vosso mundo e para o qual elas convergem. Se ele for firme, o vosso mundo ser firme; e no haver foras em cima ou em baixo que vos possam desviar para a direita ou para a esquerda. Se for instvel, vosso mundo ser instvel; e sereis uma folha indefesa colhida pelo terrvel redemoinho do vento. Alerta! Eis que o vosso mundo firme, no h dvida, somente, porm, na instabilidade. E o vosso mundo certo, unicamente na incerteza. E constante o vosso mundo, mas to s na inconstncia. E o vosso mundo uno, mas somente na multiplicidade.

  • O vosso um mundo em que os beros se tornam sepulcros e os sepulcros se tornam beros; em que os dias devoram as noites e as noites vomitam dias; de paz declarando guerra e de guerra implorando paz; em que os sorrisos flutuam sobre as lgrimas e as lgrimas brilham nos sorrisos. O vosso um mundo em constante trabalho de parto, em que a parteira a Morte. O vosso mundo um mundo de crivos e peneiras, no qual no h dois crivos ou duas peneiras iguais. E estais sempre sofrendo a tentar passar pelo crivo o que por ele no passa e a lutar peneirando o que se no pode peneirar. O vosso um mundo dividido contra si mesmo porque o vosso eu assim dividido. O vosso um mundo de barreiras e de cercas porque o vosso eu uma dessas barreiras e cercas. Ele pe uma cerca para que aquilo que lhe estranho no entre e estabelece outra para aquilo que lhe afim no saia. No entanto, o que est para fora da cerca, se pe a passar para o lado de dentro e o que est dentro se pe a passar para o lado de fora, pois, sendo ambos prole da mesma me e tambm o vosso eu no podem ser separados. E vs, em vez de vos regozijardes com a sua feliz unio, tornais a cingir-vos para o infrutfero trabalho de separar o inseparvel. Em vez de estabelecerdes a diviso de vosso eu, despedaais a vossa vida na v tentativa de fazer uma cunha com a qual possais separar aquilo que pensais ser o vosso eu, daquilo que julgais no ser o vosso eu. Eis porque as palavras dos homens so embebidas de veneno. Eis porque so os seus dias brios de tristeza. Eis porque so as suas noites to atormentadas pela dor.

  • Mirdad, monges, estabelecer a diviso em vosso eu para que possais viver em paz convosco mesmos, com todos os homens e com todo o universo. Mirdad extrair o veneno de vosso eu, para que possais provar as douras da Compreenso. Mirdad vos ensinar a pesardes o vosso eu, para que conheais a alegria do Perfeito Equilbrio.

    Naronda: De novo o Mestre fez uma pausa e mais uma vez profundo silncio caiu sobre todos. Mais uma vez Micayon quebrou o silncio, dizendo:

    Micayon: Torturantes so as tuas palavras, Mirdad. Abrem vrias portas, porm nos deixam no limiar. Leva-nos adiante; faze-nos entrar.

  • CAPTULO 3

    a triunidade sagrada e o perfeito equilbrio

    Mirdad: Conquanto cada um de vs esteja centralizado em vosso eu, estais, todos vs, concentrados em um EU no EU nico de Deus. O EU de Deus, monges, a nica e eterna palavra de Deus. Nela est Deus a Suprema Conscincia-Manifestada. Sem ela, Ele seria um silncio absoluto. Por ela o Criador autocriado. Por ela, Aquele-que-No-tem-Forma tomou uma multiplicidade de formas atravs das quais as criaturas voltam novamente a no ter forma. Para sentir-SE, para pensar-SE, para falar-SE, Deus no precisa mais do que pronunciar EU. Conseqentemente, EU a sua nica palavra. Por isso essa A PALAVRA. Quando Deus diz EU, nada fica por dizer. Mundos vistos e mundos no vistos; coisas nascidas e que esto para nascer; o tempo que est passando e o tempo que ainda no passou; tudo, sem excetuar um s gro de areia,est pronunciado e includo nessa Palavra. Por ela foram criadas todas as coisas. Por ela so todas as coisas mantidas. A no ser que signifique algo, uma palavra no passa de um eco no vazio. A no ser que seu significado seja eternamente o mesmo, no ser mais do que cncer na garganta e borbulhas na lngua.

  • A Palavra de Deus no um eco no vazio, nem um cncer na garganta e borbulhas na lngua, a no ser para aqueles que no possuem a Compreenso; pois a Compreenso o Esprito Santo que vivifica a Palavra e a liga Conscincia; a viga mestra do Eterno equilbrio da balana, cujas duas conchas so a Conscincia Original e A Palavra. A Conscincia Original A Palavra o Esprito de Compreenso; eis, monges, a Triunidade do Ser, os Trs que so Um, o Um que Trs; co-igual, co-extenso, co-eterno; auto-equilibrado, auto-esclarecido, auto-realizado; que jamais aumenta ou diminui; sempre em paz; sempre o mesmo. Esse , monges, o Perfeito Equilbrio. O homem lhe d o nome de Deus, mas extraordinariamente prodigioso, para que se lhe d um nome. No obstante, sagrado o seu nome e santa a lngua que o conserva sagrado. Pois bem, que o Homem seno a prole deste Deus? Pode ser ele diferente de Deus? No est o carvalho encerrado na bolota? No est Deus envolto no Homem? Tambm o Homem , pois, uma triunidade sagrada; uma conscincia, uma palavra e uma compreenso. Tambm o Homem um criador como o seu Deus. O seu eu a sua criatura. Por que no ele o equilibrado como o seu Deus? Se quereis saber a resposta deste enigma, ouvi o que Mirdad vos vai revelar.

  • CAPTULO 4

    O homem um deus enfaixado

    O homem um deus enfaixado. O Tempo uma faixa. O Espao uma faixa. A carne uma faixa e do mesmo modo so faixas todos os sentidos e as coisas por eles percebidos. A me sabe que as faixas no so a criana. A criana, porm, no sabe. O homem ainda muito consciente de suas faixas, que mudam de dia para dia e de idade para idade. Em vista disso, sua conscincia est constantemente fluindo; e a palavra pela qual sua conscincia se expressa, nunca clara e com significado definido; e a sua compreenso nebulosa; e a sua vida est em desequilbrio. a confuso trs vezes confusa. E eis que o Homem brada por socorro. Seus gritos de angstia reverberam pelos eons. O ar est pejado dos seus gemidos. O mar est salgado com as suas lgrimas. A terra est sulcada pelas suas sepulturas. Os cus esto ensurdecidos pelas suas preces. E tudo porque ele ainda no sabe o significado do seu EU, que para ele a faixa e a criana que nela est enfaixada. Ao dizer eu, o Homem racha a Palavra em duas partes: suas faixas uma delas e a divina centelha imortal a outra. Dividir realmente o Homem aquilo que Indivisvel? Deus o probe. Nenhum poder, nem mesmo o de Deus, poder dividir o indivisvel. a imaturidade do Homem que o faz imaginar a diviso. E o Homem, o recm-nascido, cinge-se para a batalha e se pe

  • em guerra contra o Ser-Total, julgando-o inimigo de seu ser. Nesta guerra dspar, o Homem rasga suas carnes em tiras e derrama o seu sangue em torrentes, enquanto Deus, Pai-Me, amorosamente observa, pois Ele sabe que o Homem est somente rasgando os seus pesados vus e derramando o amargo fel que o faz cego e no o deixa ver sua unidade com o Uno. esse o destino do Homem lutar, sangrar, desfalecer e afinal despertar e estabelecer a diviso no eu, com sua prpria carne, selando-a com o seu prprio sangue. Eis, monges, que fostes avisados e mui sabiamente avisados para serdes prudentes no uso do eu, pois, enquanto com isso vos referirdes s faixas e no exclusivamente criana; enquanto for para vs mais peneira do que um cadinho, at ento estareis peneirando a vossa vaidade, para colherdes a Morte com a sua ninhada de dores e agonias.

  • CAPTULO 5

    Cadinho e peneiras. A palavra de Deus e a do homem.

    A Palavra de Deus um cadinho. O que ela cria, derrete e funde em todo, nada aceitando com valioso, nada rejeitando como sem valor. Possuindo o Esprito de Compreenso, sabe muito bem que ela e a sua criao constituem um todo; que rejeitar uma rejeitar tudo; que rejeitar o todo rejeitar-se a si mesmo. Conseqentemente, ela tem para sempre o mesmo objetivo e o mesmo sentido. Entrementes, como uma peneira a palavra do Homem. O que ela cria, prende e expulsa. Est sempre tornando isto como amigo e expulsando aquilo como inimigo. Mas, freqentemente, o amigo de ontem torna-se o inimigo de hoje; o inimigo de hoje, o amigo de amanh. E assim se desencadeia a cruel intil guerra do Homem contra si mesmo. Tudo porque falta ao Homem o Esprito Santo, o nico que pode faz-lo compreender que ele e a sua criatura so uma e a mesma coisa; que expulsar o adversrio expulsar o amigo, pois ambas as palavras adversrio e amigo so criaes de sua palavra de seu eu. Aquilo de que no gostais e atirais fora como sendo mau, certamente apanhado por algum ou algo como sendo bom. Pode acaso ser, ao mesmo tempo, duas coisas que se excluam? Ela no nem uma coisa nem outra, foi o vosso eu que a fez m; outro eu a fez boa.

  • No vos disse que aquele que pode criar pode tambm destruir? Tal como criastes um inimigo, podeis destru-lo e tornar a cri-lo como amigo. Para isso, o vosso eu precisa de um cadinho. Para isso necessitais ter o Esprito de Compreenso. Por isso vos digo que se orais par algo, orai em primeiro e ltimo lugar, pedindo Compreenso. Nunca sejais peneiradores, meus companheiros, pois a Palavra de Deus Vida e a Vida o cadinho no qual tudo se faz uno e indivisvel; tudo fica em perfeito equilbrio e tudo digno de seu autor a Triunidade Santa. Quanto mais digno deve ser de ti! Nunca sejais peneiradores, meus companheiros, e tereis uma to imensa estatura, to onipenetrante e to oniabrangedara que no haver peneiras que vos possam conter. Nunca sejais peneiradores, meus companheiros; procurai em primeiro lugar o conhecimento dA Palavra para que possais conhecer a vossa prpria palavra. E quando souberdes a vossa palavra laareis ao fogo todas as vossas peneiras pois a vossa palavra e a de Deus so a mesma, somente que a vossa ainda est sob os vus. Mirdad vos pede que jogueis fora os vus. A Palavra de Deus o Tempo e o Espao, no medidos. Houve acaso algum tempo em que no estivsseis com Deus? E h algum lugar em que no estejais em Deus? Por que acorrentais ento a eternidade com horas e com estaes? E por que encerrais o Espao em polegadas e milhas? A Palavra de Deus Vida no nascida e, portanto, imortal.

  • Por que a vossa, ento, obstruda com o nascimento e a morte? No estais vs vivendo unicamente a vida de Deus? E pode o Imortal ser a causa da Morte? A Palavra de Deus inclui o Todo. Nela no h cercas nem barreiras. Por que est a vossa obstruda com cercas e barreiras? Digo-vos que vossa prpria carne e vossos prprios ossos no so somente vossos. Inumerveis so as mos que com as vossas mergulham nos eternos depsitos da terra e do cu, de onde vm e para onde voltam os vossos ossos e a vossa carne. Nem a luz de vossos olhos somente vossa. Ela bem a luz de todos os que convosco compartilham o sol. Que poderiam os vossos olhos contemplar nos meus, se no fosse a luz dos meus? a minha luz que me v, em vossos olhos. a vossa luz que vos v, em meus olhos. Fosse eu uma perfeita treva e os vossos olhos, contemplando-me, s veriam uma perfeita treva. Nem o vosso alento, em vosso peito, somente vosso. Todos aqueles que respiram ou j respiram ou j respiraram o ar, esto respirando o vosso alento. No o alento de Ado que ainda enche os vossos pulmes? No o corao de Ado que ainda pulsa em vossos coraes? Nem so os vossos pensamentos somente vossos. O mar dos pensamentos os reclama como a ele pertencentes, e assim tambm o fazem os seres pensantes que convosco compartilham esse mar. Nem so os vossos sonhos somente vossos. Todo o universo est sonhando os vossos sonhos. Nem so as vossas casas somente vossas. Elas so tambm a habitao do vosso hspede, da mosca, do rato e do gato, bem como de todas as criaturas que compartilham a casa convosco.

  • Cuidado pois com as cercas, Quando cercais, pondes a Decepo para dentro delas e a Verdade para fora. E quando vos voltais, para vos verdes, para dentro da cerca, encontrais-vos, face a face com a Morte, que a Decepo com outro nome. Inseparvel de Deus, monges, o Homem. Inseparvel, pois, dos semelhantes e das criaturas, provenientes da Palavra. A Palavra o oceano, vs sois as nuvens. E a nuvem, no nuvem pelo que do oceano contm? E, na verdade, seria tola a nuvem que desperdiasse a sua vida para se firmar no espao, tentando manter eternamente a sua forma e a sua identidade. Que resultado colheria dessa tolice, seno esperanas desfeitas e uma vaidade amarga? A no ser que se perca, no se poder achar. A no ser que morra e desaparea como nuvem, no poder encontrar o oceano, que tem em si, e que o seu nico ser. O Homem uma nuvem que contm Deus em si. A no ser que se esvazie a si mesmo, no poder encontrar-se. E que alegria a de esvaziar-se! A no ser que vos percais para sempre na Palavra, no podereis compreender a palavra que est em vs o vosso eu. Ah! A alegria de perder-se! Mais uma vez vos digo, orai pedindo Compreenso. Quando a Sagrada Compreenso penetrar em vossos coraes, nada haver na imensidade de Deus que no vibre, para vs, uma alegre resposta, todas as vezes que pronunciardes EU. E ento a prpria Morte por em vossas mos a arma com a qual vencereis a Morte. E ento a Vida colocar nos vossos coraes a chave do seu corao sem limites, a chave doirada do Amor.

  • Shamadam: Nunca sonhei que tanta sabedoria pudesse ser espremida de um pano de pratos e de uma vassoura (aludindo imposio de Mirdad como servo).

    MIRDAD: Tudo fonte de sabedoria para o sbio. Para aquele que no sbio a prpria sabedoria loucura.

    Shamadam: Tens uma lngua hbil, sem dvida. de se admirar que a tenhas freado por tanto tempo; se bem que as tuas palavras so muito duras de se ouvir.

    MIRDAD: Minhas palavras so macias, Shamadam. o teu ouvido que duro. Infelizes daqueles que, ouvindo, no ouvem e, vendo, no vem.

    Shamadam: Eu ouo e vejo muito bem. No ouvirei, no entanto, essa loucura de que Shamadam o mesmo que Mirdad; de que o mestre e o servo so iguais.

  • CAPTULO 6

    Acerca de mestre e servo. os companheiros do sua opinio a respeito de Mirdad

    MIRDAD: Mirdad no o nico servo de Shamadam. Podes tu, Shamadam, contar os teus servos? Haver uma guia ou um falco; haver um cedro ou um carvalho; haver uma montanha ou uma estrela; haver um oceano ou um lago; haver um anjo ou um rei que no sirva a Shamadam? No est o mundo todo a servio de Shamadam? Nem Mirdad o nico mestre de Shamadam. Podes tu, Shamadam, contar os teus mestres? Haver um besouro ou uma pulga; uma coruja ou um pardal; haver um cardo ou um renovo; haver uma gota de orvalho ou uma lagoa; haver um mendigo ou um gatuno que no sejam servidos por Shamadam? No est Shamadam a servio do mundo todo? Ao fazer o seu trabalho o mundo faz tambm o teu. E ao fazeres o teu fazes tambm o do mundo. A cabea mestra do ventre. E no menos mestre da cabea o ventre. Nada pode servir sem que seja servido, servindo, e nada pode ser servido, sem que sirva o servente. Em verdade te digo, Shamadam, como a todos vs: o servo o mestre do mestre; o mestre o servo do servo. Que o servo no abaixe a sua cerviz. E que no a levante o

  • mestre. Seja abatido o orgulho mortal do mestre. Seja arrancada a vergonhosa vergonha do servo. Lembrai-vos de que a Palavra uma s. E vs, como slabas da Palavra, na realidade sois somente um. Nenhuma slaba mais nobre do que outra, nem mais essencial do que outra. As muitas slabas no so mais que uma s slaba mesmo A Palavra. E vos tornareis esse monosslabo se conhecerdes o xtase desse impronuncivel Amor-Prprio que o amor por todos e por tudo. No te falo agora como um mestre a seu servo, nem como um servo a seu mestre, Shamadam, mas como de irmo a irmo. Por que ests, assim, conturbado pelas minhas palavras? Renega-me, se assim o queres. Eu no te renegarei. No te disse j, h pouco, que a carne que me cobre os ossos a mesma que cobre os teus? Jamais te apunhalaria, para que no viesse eu a sangrar. Embainha, pois, a tua lngua, se no queres derramar o teu sangue. Descerra o teu corao para mim se o queres ter fechado a todo sofrimento. Melhor no ter lngua do que ter uma cujas palavras so armadilhas e cardos. E as palavras sero sempre chagas e armadilhas, at que a lngua seja purificada pela Sagrada Compreenso. Peo-vos que examineis os vossos coraes, monges. Peo-vos que derrubeis todas as barreiras que houver dentro de vs. Peo-vos que atireis fora todas as faixas com que o vosso eu est ainda enfaixado, a fim de que o possais ver uno com A Palavra de Deus, eternamente em paz consigo mesma e com todos os mundos que dela emanam. Assim ensinava a No.

  • Assim eu agora vos ensino.

    Naronda: E assim dizendo, retirou-se Mirdad para a sua cela, deixando-nos imensamente confusos. Depois de guardarem por algum tempo um silncio quase esmagador, comearam os companheiros a debandar, dizendo cada qual, ao retirar-se, a sua opinio sobre Mirdad.

    Shamadam: Um mendigo a sonhar com a coroa real.

    Micayon: Ele Clandestino. No disse ele: Assim ensinava eu a No?

    Abimar: Um carretel de linha embaraada.

    Micaster: Uma estrela de outro firmamento.

    Bennoon: A sua mente poderosa, mas se perde em contradies.

    Zamora: Uma harpa maravilhosa, afinada numa clave que desconhecemos.

    Himbal: Uma palavra errante, em busca de um ouvido amigo.

  • CAPTULO 7

    Micayon e Naronda mantm uma palestra noturna com Mirdad e este os avisa do dilvio que est por vir rogando-lhes que estejam prontos.

    Naronda: Cerca da segunda hora do terceiro quarto, senti que se abria a porta de minha cela e ouvi Micayon a sussurrar para mim:

    Ests acordado, Naronda? O sono no visitou minha cela esta noite, Micayon. Nem nas minhas plpebras fez o seu ninho. E ele, achas que ele dorme? Falas do Mestre? J o chamas de mestre? Permita o Fado que o seja. No poderei achar descanso enquanto no me certificar de sua identidade. Vamos procur-lo imediatamente.

    E andando nas pontas dos ps, samos de minha cela e entramos na do Mestre. Uma rstia de luar prateado, entrando por uma fresta no alto da parede, iluminava o seu humilde leito, estendido no solo. Evidentemente, no fora ocupado naquela noite. Aquele a quem procurvamos, no se encontrava ali onde o buscramos. Confusos, envergonhados e desapontados, estvamos para volver sobre os nossos passos, quando, subitamente sua voz amena nos chegou aos ouvidos, antes que nossos olhos pudessem lobrigar sua graciosa figura porta.

  • MIRDAD: No vos conturbeis. Sentai-vos em paz. No cume das montanhas a noite rapidamente se dissolve em alvorada. A hora propcia para a dissoluo.

    Micayon (perplexo e balbuciante): Perdoai-nos se somos importunos. No dormimos a noite toda.

    MIRDAD: O sono um auto-esquecimento muito breve. Melhor afogar a personalidade desperto, do que tomar alguns goles de esquecimento, em dedais de sono. Que buscveis de Mirdad?

    Micayon: Vnhamos para saber quem sois.

    MIRDAD: Entre os homens sou um deus. Quando estou em Deus sou um homem. Compreendeste, Micayon?

    Micayon: Dizeis uma blasfmia.

    MIRDAD: Contra o Deus de Micayon...talvez. Contra o Deus de Mirdad, jamais.

    Micayon: Haver tantos deuses, como h homens, para que faleis de um para Micayon e outro para Mirdad?

    MIRDAD: Deus no muitos, Deus nico. So, porm, muitas e diversas as sombras dos homens. Enquanto os homens projetarem sombras na terra, o deus de cada homem no ser maior do que a sua sombra. S o que no tem sombra est na luz. S o que no tem sombra conhece o Deus nico. Porque Deus Luz, e s a Luz pode conhecer a Luz.

  • Micayon: No nos faleis em enigmas. Ainda mui fraca a nossa compreenso.

    MIRDAD: Tudo enigma para o homem que segue uma sombra, pois esse tal caminha em luz emprestada e tropea na sua prpria sombra. Quando vos tornardes flamejantes de Compreenso, j no mais projetareis sombra. No entanto, em breve vir a hora em que Mirdad apanhar as vossas sombras e as queimar no sol. Ento aquilo que para vs agora um enigma, se iluminar em vs como uma verdade fulgurante, demasiado evidente para que necessite de explicao.

    Micayon: No nos direis quem sois? Se soubermos o vosso nome o vosso verdadeiro nome vossa ptria e vossos antepassados, talvez possamos melhor compreender-vos.

    MIRDAD: Oh, Micayon! como forar uma guia a entrar no ovo em que foi chocada, o tentar acorrentar Mirdad com as vossas cadeias e vend-la com os vossos vus. Qual o nome que se pode dar a um homem que j no est mais na casca? Que ptria pode conter um homem no qual o universo este nele contido? A que antepassados se pode referir um homem, cujo nico ancestral Deus? Para bem me conheceres, Micayon, preciso que antes conheas bem a Micayon.

    Micayon: Talvez sejais um mito vestido com a aparncia de um homem.

  • MIRDAD: Sim, algum dia diro que Mirdad era nada mais que um mito. Mas dentro em pouco sabereis quo real este mito muito mais real do que qualquer realidade dos homens. O mundo agora no toma conhecimento de Mirdad. Mirdad est constantemente atento ao mundo. Em breve o mundo tomar conhecimento de Mirdad.

    Micayon: Sois, por acaso, o Clandestino?

    MIRDAD: Sou clandestino em toda arca enfrenta o dilvio da iluso. Tomo nas minhas mos o leme todas as vezes que o capito pede o meu auxlio. Vossos coraes, embora no o saibais, chamaram h muito tempo por mim, em alta voz. Eis-me aqui! Mirdad aqui est para guiar-vos em segurana, para que vs, por vossa vez, possais guiar o mundo para fora do maior dilvio de que jamais se teve notcia.

    Micayon: Outro dilvio?

    MIRDAD: No destruir a Terra, mas para trazer o Cu Terra. No para destruir o Homem, mas para descobrir Deus no Homem.

    Micayon: O arco-ris surgiu em nosso cu h poucos dias. Como falais de outro dilvio?

    MIRDAD: Mais devastador do que o dilvio de No ser o dilvio que j est assolando a Terra. Uma terra coberta de gua uma terra prenhe de promessas de Primavera. No porm, uma terra que est sendo cozida na febre de seu prprio sangue.

  • Micayon: Devemos ento esperar pelo fim? Foi-nos dito que a vinda do Clandestino seria o sinal do fim.

    MIRDAD: No temais pela Terra. Ela muito jovem e os seus seios transbordam. Mais geraes do que podereis contar ainda sero por ela amamentadas. Nem estejais ansiosos pelo Homem, o senhor da Terra, pois ele indestrutvel. Sim, inextinguvel o Homem. Inexaurvel o Homem. Entrar para a forja um homem e de l sair um, deus. Mantende-vos firmes. Aprestai-vos. Mantende sob controle vossos olhos, vossos ouvidos e vossas lnguas, de modo que vossos coraes possam experimentar a fome santa que, uma vez aplacada, vos deixar saciados por toda a eternidade. E precisais estar saciados para dardes de comer aos famintos. Precisais estar fortes e firmes para amparardes os que vacilam e esto fracos. Precisais estar preparados para a tempestade, para poderdes abrigar todos os peregrinos acossados pela tempestade. Precisais estar sempre luminosos para poderdes guiar aqueles que caminhas nas trevas. Os fracos so uma carga pesada para os fracos. Mas para os fortes so um agradvel encargo. Procurai os fracos; a sua fraqueza a vossa fora. Os famintos so somente fome para os famintos. Mas para os saciados eles so uma bem-vinda descarga. Procurai os famintos; a vossa saciedade a necessidade deles. Os cegos so uma pedra de tropeo para os cegos. So porm, marcos milirios para os enxergam. Procurai os cegos; as suas trevas so a vossa luz.

  • Naronda: Neste ponto soou a trombeta chamando para a orao da manh.

    MIRDAD: Zamora faz soar mais um dia a sua trombeta, mais um milagre para vs bocejardes entre o deitar e o levantar; para encherdes os vossos estmagos e os esvaziardes, para lascardes as vossas lnguas com palavras vs, para fazerdes muitas coisas que seria melhor no fossem feitas e no fazerdes muitas coisas que precisam ser feitas.

    Micayon: No devemos ir orao, pois?

    MIRDAD: Ide! Orai conforme vos tem sido ensinado a orar. Orai de qualquer forma por qualquer coisa. Ide! Fazei tudo que vos tem sido ordenado fazer, at ficardes auto-ensinados e autodirigidos, at haverdes aprendido a fazer de cada palavra uma orao e de cada ao uma oblata. Ide em paz. Mirdad tem que providenciar para que a vossa refeio matinal seja abundante e doce.

    CAPTULO 8

    Os Sete buscam Mirdad no ninho da guia. Ele os adverte de nada fazerem no escuro.

    Naronda: Nesse dia Micayon e eu no comparecemos s devoes matinais. Shamadam notou a nossa ausncia, e tendo sabido de nossa visita noturna ao Mestre, ficou grandemente aborrecido. No demonstrou, porm, o seu aborrecimento, guardando a demonstrao para outra oportunidade.

  • Os demais companheiros ficaram muito intrigados com o nosso comportamento e logo quiseram saber qual a sua razo. Alguns pensaram que havia sido o Mestre que nos aconselhara a no orar. Outros fizeram curiosas conjecturas sobre a sua identidade, dizendo que ele nos havia chamado noite para dar-se a conhecer somente a ns. Ningum acreditava que ele fosse o Clandestino. Todos, porm, queriam v-lo e inquiri-lo sobre muitas coisas. Tinha o Mestre, por costume, depois de terminar os seus servios na Arca, passar as horas na gruta que ficava em frente ao Abismo Negro, gruta essa que nos era conhecida pelo nome de Ninho da guia. L o fomos procurar, todos ns, menos Shamadam, na tarde desse dia, e o encontramos em profunda meditao. Seu rosto estava iluminado, e mais ainda resplandeceu quando, ao levantar os olhos, nos viu.

    MIRDAD: Quo rapidamente encontrastes o vosso ninho! Mirdad se regozija em vs.

    Abimar: A Arca o nosso ninho. Como dizeis que esta gruta o nosso ninho?

    MIRDAD: A Arca j foi um Ninho.

    Abimar: E agora o que ?

    MIRDAD: A toca de uma toupeira, infelizmente.

    Abimar: Oito toupeiras felizes, e com Mirdad so nove!

  • MIRDAD: Como fcil zombar e como difcil compreender. No entanto, a zombaria sempre zomba do zombador. Por que fazer trabalhar a lngua em vo?

    Abimar: Sois vs que zombais de ns ao nos chamar de toupeiras. Desde quando merecemos esse apelido? No temos conservado aceso o fogo de No? Esta Arca, que foi antigamente um abrigo para um punhado de mendigos, no foi transformada por ns em um local mais rico do que o mais rico palcio? No lhe ampliamos as fronteiras at se haver tornado um poderoso reino? Se somos toupeiras, seremos ento toupeiras-mestras.

    MIRDAD: Est aceso o fogo de No, mas somente no altar. De que vale isso, a no ser que sejais vs mesmos, o altar e os vossos coraes, o leo e a lenha? A Arca est agora sobrecarregada de ouro e prata e por isso range e joga fortemente, pronta para ir a pique. Antigamente a Arca-Me estava sobrecarregada de Vida e no levava peso morto; por isso as profundidades eram impotentes contra ela. Cuidado com o peso morto, meus companheiros. Tudo peso morto para o homem que tem firme f na sua divindade. Ele se mantm no mundo, porm no lhe carrega o peso, pois o Homem preso por tudo aquilo que agarra. Deixai de agarrar as coisas e elas no vos prendero em suas garras. No ponhais preo s coisas, pois a menor delas tem um valor inestimvel. Vs pondes preo a um po. Por que no dar um preo ao Sol, ao Ar, Terra, ao Mar, ao suor e engenhosidade do Homem, sem os quais so haveria po? No ponhais preo a coisa alguma, se no quiserdes marcar um preo para as vossas vidas.

  • A vida do Homem no mais cara do que aquilo que lhe mais caro. Tende cuidado em no considerardes vossa vida, cujo preo incalculvel, to barata quanto o ouro. Ampliastes em lguas as fronteiras da Arca. Mesmo que as tivsseis levado at os confins da Terra ainda estareis encerrados e limitados. Mirdad gostaria de vos ver cingidos e cobertos com o infinito. O mar no mais do que uma gota; e, no entanto, no cinge e no cobre a terra? Quo mais infinito mar o Homem! No sejais infantis a ponto de o medirdes da cabea aos ps e pensardes que haveis encontrado os seus limites. Podeis ser mestres-toupeiras, conforme disse Abimar; mas somente como as toupeiras que trabalham nas trevas. Quanto mais trabalhado o seu labirinto, mais longe do sol est a sua face. Conheo os vossos labirintos, Abimar. Vs sois um punhado, como disseste, supostamente desligados de todas as tentaes do mundo e consagrados a Deus. No entanto, sinuosas e escuras so as veredas que vos ligam ao mundo. No escuto as vossas paixes sibilarem e se agitarem? No vejo as vossas invejas rastejarem e se contorcerem sobre o prprio altar de vosso Deus? Podeis ser um punhado, mas, oh! quantas legies h nesse punhado! Fsseis vs, realmente, as toupeiras-mestras que dissestes ser, e de h muito tereis feito um tnel, no s atravs da terra, mas tambm atravs do sol e de todas as outras esferas que giram no firmamento. Deixai que as toupeiras cavem suas escuras veredas com o focinho e as patas. Vs no precisais mover uma pestana para encontrardes a vossa estrada real. Sentai-vos neste ninho e deixai que a imaginao trabalhe. Ela o vosso divino guia para os maravilhosos tesouros do ser que o vosso reino. Segui o vosso guia com coraes fortes e

  • impvidos. Suas pegadas, estejam elas na mais distante estrela, vos serviro de sinal e certeza de que j l fostes plantados, pois no podeis imaginar coisa alguma que no seja parte de vs. Uma rvore no se pode espalhar alm de suas razes. O Homem, porm, pode espalhar-se at o infinito pois tem nela as suas razes. No determineis limites para vs. Espalhai-vos at no haver regies em que no estejais. Espalhai-vos at que o mundo todo esteja onde quer que estejais. Espalhai-vos at encontrardes Deus onde quer que vos encontreis. Espalhai-vos! Espalhai-vos! Nada faais nas trevas supondo que as trevas so um manto impenetrvel. Se no vos envergonhais de ser homens cegados pelas trevas, envergonhais-vos, ao menos, de ser como o morcego e o vaga-lume. No h trevas, meus companheiros. H graus de luz que satisfazem s necessidades de todas as criaturas do mundo. Vosso dia claro crepsculo para a fnix. Vossa noite fechada dia claro para a r. Se as trevas podem ser descobertas, como podero elas servir de coberta ao que quer que seja? No procureis encobrir coisa alguma. Se nada revelar os vossos segredos eles sero revelados pela cobertura. No mostra a tampa o que est na panela? Maldita seja a panela, cheia de serpentes e vermes, quando a tampa removida. Em verdade vos digo, nenhum alento sai de vossos pulmes que no espalhe aos quatro ventos o ltimo alento de vossos peitos. Nenhum olhar deixa os olhos que no leve consigo todo o olho sua cobia e o seu medo, seus sorrisos e suas lgrimas. Nenhum sonho jamais entrou por porta alguma, que no batesse primeiro a todas as outras

  • portas. Tende pois cuidado em como olhais. Tende cuidado quanto aos sonhos que deixais entrar ou sair por vossa porta. Se quiserdes, porm, ser livres de cuidados e sofrimentos, Mirdad vos mostrar o caminho.

    CAPTULO 9

    O caminho para uma vida sem sofrimento. Os companheiros querem saber se Mirdad o clandestino.

    Miscaster: Mostra-nos o caminho.

    MIRDAD: Este o caminho que leva libertao das preocupaes e do sofrimento: Pensai como se todos os vossos pensamentos tivessem que ser gravados a fogo no cu, para que todos e tudo os vissem. E, verdadeiramente, assim . Falai como se o mundo todo fosse um nico ouvido, atento a escutar o que dizeis. E, verdadeiramente, assim . Agi como se todos os vossos atos reagissem sobre vossas cabeas. E, verdadeiramente, assim . Desejai como se vs fsseis o desejo. E, verdadeiramente, assim . Vivei como se o vosso Deus, Ele Prprio, tivesse necessidade