o mundo como ele é fiori

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  • comunicao

    OIKOS | Rio de Janeiro | Volume 8, n. 2 2009 | ISSN 1808-0235 | www.revistaoikos.org | pgs 323-328

    O mundo como ele The world as it is

    JOS LUS FIORI | jlfi [email protected] titular de Economia Poltica Internacional da UFRJ, Brasil.

    Como meu intento escrever coisa til para os que se interessarem, pareceu-me

    mais conveniente procurar a verdade pelo efeito das coisas, do que pelo que delas

    se possa imaginar N. Maquiavel, O Prncipe, 1513

    No primeiro nmero do Jornal de Resenhas, publicado pela Discurso Editorial, da Universidade de So Paulo, em maro de 2009, o professor Luiz Carlos Bresser Pereira escreveu um artigo (O mundo menos sombrio) sobre o livro O Mito do Colapso do Poder Americano, publicado por mim e meus dois colegas do Programa em Economia Poltica Internacional da UFRJ, os economistas Carlos Medeiros e Franklin Serrano. Bresser Pereira elogia o livro que ele considera original e instigante, mas dedica quase toda sua resenha crtica do meu artigo no livro, sobre o sistema inter-estatal capitalista, no incio do sculo XXI. O professor me atribui uma viso sombria do mundo, que segundo ele, no reconhece a existncia do progresso, e est calcada sobre idias geopolticas e concepes diplomticas ultrapassadas, do sculo XIX. Nas pala-vras do professor Bresser: Fiori no compreendeu que a geopoltica do equil-bro de poderes, a prtica do imperialismo explcito deixaram de fazer sentido devido a uma srie de novos fatos histricos [...], esta abordagem das relaes internacionais no tem mais espao no mundo em que vivemos do ps-colonia-lismo, da globalizao, do sistema poltico global, e da democracia em que vive-

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    mos hoje [...] com a globalizao, todos os mercados esto abertos e inimaginvel que um pas recuse vender a outro, por exemplo, petrleo a preo de mercado..[...] Resulta ainda daqueles fatos que a guerra entre grandes pases tambm no faz mais sentido [...] No sculo XX, as guerras entre as grandes potencias no faziam sentido porque todas as fronteiras j estavam de nidas (J.R., p:7)

    A viso do professor Bresser lembra muito Francis Fukuyama, e sua velha tese sobre o m da histria e a vitria da democracia e do mercado, que foi publicada depois do m da Guerra Fria, e logo em seguida foi atropelada pelos fatos e esquecida pelos analistas internacionais. De qualquer maneira, a histria passada, e a prpria do sculo XX, parecem contradizer as expectativas do pro-fessor Bresser. Com relao sua tese do m das guerras, por exemplo, o his-toriador e socilogo norte-americano, Charles Tilly apresenta alguns dados que so contundentes: de 1480 a 1800, a cada dois ou trs anos iniciou-se em algum lugar um novo con ito internacional expressivo; de 1800 a 1944, a cada um ou dois anos; a partir da Segunda Guerra Mundial, mais ou menos, a cada quatorze meses. A era nuclear no diminuiu a tendncia dos sculos antigos a guerras mais freqentes e mais mortferas [alis], desde 1900, o mundo assistiu a 237 novas guerras, civis e internacionais... [enquanto] o sangrento sculo XIX contou 205 guerras (Charles Tilly, Coero, capital e Estados europeus, Edusp, 1996, p. 123 e 131.). Da mesma maneira, ca difcil de aceitar a tese do m do imperialismo defendida pelo professor no exato momento em que as grandes potncias velhas e novas se lanam sobre a frica, e sobre a Amrica Latina, disputando palmo a palmo o controle monoplico dos seus mercados e das fontes de energia e mat-rias primas estratgicas; e soa quase ingnua a sua idia dos mercados abertos, num mundo em que todas as grandes potncias impedem o acesso s tecnologias de ponta, no aceitam a venda de suas empresas estratgicas, e protegem de forma cada vez mais so sticada seus produtores industriais e seus mercados agrcolas. Mesmo do ponto de vista poltico, no parece que esteja assegurada no mundo a legitimidade exclusiva da democracia, de que fala Bresser, porque grande parte da populao mundial no vive em regimes democrticos, nem h indcios que queira faz-lo. Por ltimo, ao contrrio do que pensa o professor, a tese que asso-cia a geopoltica do equilbrio de poderes com as guerras, no original nem exclusiva do sculo XIX, foi concebida na Grcia e pelo menos desde o Congresso de Viena, em 1815, existe alguma forma de sistema poltico mundial, que nunca impediu a multiplicao das soberanias e das guerras nacionais. Mas nada disto muito relevante, porque sonhos e utopias no se desmontam com nmeros e

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    fatos, e o direito de sonhar um direito universal de todos os homens, e portanto, tambm do professor Bresser. O que nos distingue, no nossa taxa de otimismo, nem muito menos o nosso apreo pessoal pela paz e pela democracia. De fato, o professor Bresser e eu temos duas vises tericas absolutamente diferentes sobre o sistema mundial, e acho que o professor Bresser no compreendeu exatamente o lugar que o poder, o capital e as guerras ocupam dentro da minha viso.1 Por isto, me parece melhor expor minha prpria posio do que discutir inutilmente a utopia do professor.

    Minha pesquisa comeou h mais de 20 atrs, com o estudo da crise dos anos 70 e a restaurao liberal-conservadora da dcada de 80, e seguiu com o acompanhamento das transformaes econmicas e geopolticas das dcadas seguintes. A impossibilidade de entender esta conjuntura a partir de si mesma me levou a uma longa viagem no tempo, at as origens do sistema inter-estatal capi-talista, para conseguir entender suas tendncias de longo prazo. Comecei pelas guerras de conquista e pela revoluo comercial que ocorreram na Europa nos sculos XII e XIII, para chegar at formao dos estados e das economias na-cionais europias e o incio de sua vitoriosa expanso mundial, a partir do sculo XVI. Como sabido, na Europa, ao contrrio do que aconteceu nos imprios asi-ticos, a desintegrao do Imprio Romano e, depois, do Imprio de Carlos Magno provocou uma fragmentao do poder territorial e um desaparecimento quase completo da moeda e da economia de mercado entre os sculos IX e XI. Nos dois sculos seguintes, entretanto entre 1150 e 1350 aconteceu a grande revoluo que mudou a histria da Europa, e do mundo: foi naquele perodo que se forjou no continente europeu, uma associao indissolvel e expansiva, entre a necessi-dade da conquista, e a necessidade de produzir excedentes cada vez maiores, que se repetiu, da mesma forma, em vrias unidades territoriais soberanas e com-petitivas, que foram obrigadas a desenvolver sistemas de tributao e criar suas prprias moedas, para nanciar suas guerras de conquista. As guerras e os tribu-tos, as moedas e o comrcio, existiram sempre, em todo tempo e lugar. A grande

    1 Os resultados progressivos de nossa pesquisa sobre o sistema mundial aparecem nos artigos: Globalizao, hege-monia e imprio, in M.C.Tavares e J.L.Fiori (Org), Poder e dinheiro, uma economia politica da globalizao, Ed. Vozes, 1997; Estados, moedas e desenvolvimento, in J.L.Fiori (Org), Estados e moedas no desenvolvimento das naes, Ed. Vozes, 1999; Sistema mundial: imprio e pauperizao, in J.L.Fiori e C.Medeiros (Org), Polarizao mundial e crescimento, Ed. Vozes, 2001; Formao, expanso e limites do poder global, in J.L.Fiori (Org). O poder america-no, Ed. Vozes, 2004; e fi nalmente, no Prefcio, de J.L.Fiori, O poder global e a nova geopoltica das naes, Ed. Boitempo, 2007.

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    novidade europia foi a forma em que se combinaram, somaram e multiplicaram em conjunto, dentro de pequenos territrios altamente competitivos, e em estado de permanente preparao para a guerra. Na Europa, a preparao para a guer-ra, e as guerras propriamente ditas, se transformaram na principal atividade de todos os seus prncipes, e a necessidade de nanciamento destas guerras se transformou num multiplicador contnuo da dvida pblica e dos tributos. E, por derivao, num multiplicador do excedente e do comrcio, e tambm, do mercado de moedas e de ttulos da dvida, produzindo e alimentando dentro da Europa um circuito acumulativo absolutamente original, entre os processos de acu-mulao do poder e da riqueza.

    No h como explicar o aparecimento desta necessidade europia da acu-mulao do poder e do excedente produtivo, apenas a partir do mercado mundial ou do jogo das trocas. Mesmo que os homens tivessem uma propen-so natural para trocar como pensava Adam Smith isso no implicaria necessa-riamente que eles tambm tivessem uma propenso natural para acumular lucro, riqueza e capital. Porque no existe nenhum fator intrnseco troca e ao mercado que explique a necessidade compulsiva de produzir e acumular excedentes. Ou seja, a fora expansiva que acelerou o crescimento dos mercados e produziu as pri-meiras formas de acumulao capitalista no pode ter vindo do jogo das trocas, ou do prprio mercado, nem veio, nesse primeiro momento, do assalariamento da fora de trabalho. Veio do mundo do poder e da conquista, do impulso gerado pela acumulao do poder, mesmo no caso das grandes repblicas mercantis italianas, como Veneza e Gnova.

    Agora bem, do meu ponto de vista, o conceito de poder poltico tem mais a ver com a idia de uxo do que com a de estoque. O exerccio do po-der requer instrumentos materiais e ideolgicos, mas o essencial que o poder uma relao social assimtrica indissolvel, que s existe quando exercido; e para ser exercido, precisa se reproduzir e acumular constantemente. A con-quista, como disse Maquiavel, o ato fundador que instaura e acumula o po-der, e ningum pode conquistar nada sem ter poder, e sem ter mais poder do que o que for conquistado. Num mundo em que todos tivessem o mesmo po-der, no haveria poder. Por isso, o poder exerce uma presso competitiva so-bre si mesmo, e no existe nenhuma relao social anterior ao prprio poder. Alm disto, como a guerra o instrumento em ltima instncia da conquista e da acumulao do poder, ela se transformou num elemento co-constitutivo deste sistema de poderes territoriais que nasceu na Europa, e que depois se expandiu

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    pelo mundo. Por isso, a origem histrica do capital e do sistema capitalista euro-peu indissocivel do poder poltico e das guerras, e a teoria sobre a formao deste universo europeu tem que comear pelo poder e pelas suas guerras, pelos tributos e pelo excedente, e pela sua transformao em dinheiro e em capital, sob a batuta do poder dos soberanos. O fator endgeno ou primeiro princpio que move este universo exatamente esta fora da compulso sistmica e com-petitiva que leva acumulao sem m do poder e do capital. E do meu ponto de vista, o poder tem precedncia lgica, dentro desta relao simbitica, a despeito que a acumulao de capital tenha adquirido uma autonomia relativa cada vez mais extensa e complexa, com o passar dos sculos.

    Mais tarde, depois do longo sculo XVI e da formao na Europa dos seus primeiros estados nacionais se mantiveram estas mesmas regras e alianas funda-mentais, que haviam se estabelecido no perodo anterior. Com a diferena que, no novo sistema de competio, as unidades envolvidas eram grandes territrios e eco-nomias articulados num mesmo bloco nacional, e com as mesmas ambies expan-sivas e imperialistas. O objetivo da conquista no era mais a destruio ou ocupao territorial de outro Estado, poderia ser apenas a sua submisso econmica. Mas a conquista e a monopolizao de novas posies de poder poltico e econmico seguiu sendo a mola propulsora do novo sistema. No novo sistema inter-estatal, a produo do excedente e os capitais de cada pas passaram a ser uma condio indispensvel de seu poder internacional. E foi dentro dessas unidades territoriais expansivas que se forjou o regime de produo capitalista, que se internacionali-zou de mos dadas com estes novos imprios globais criados pela conquista destes primeiros estados europeus. E depois do sculo XVI, foram sempre estes estados expansivos e ganhadores que tambm lideraram a acumulao de capital, em escala mundial. Alm disto, a chamada moeda internacional sempre foi a moeda destes estados e destas economias nacionais mais poderosas, transformando-se num dos principais instrumentos estratgicos, na luta pelo poder global.

    A expanso competitiva dos Estados-economias nacionais europeus criou imprios coloniais e internacionalizou a economia capitalista, mas nem os imp-rios, nem o capital internacional eliminaram os Estados e as economias nacionais. Neste novo sistema inter-estatal, os Estados que se expandiam e conquistavam ou submetiam novos territrios tambm expandiam seu territrio monetrio e in-ternacionalizavam seus capitais. Mas, ao mesmo tempo, seus capitais s puderam se internacionalizar na medida em que mantiveram seu vnculo com alguma mo-eda nacional, a sua prpria ou a de um Estado nacional mais poderoso. Por isso,

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    se pode dizer que a globalizao econmica sempre existiu e nunca foi uma obra do capital em geral, nem levar jamais ao m das economias nacionais. Porque de fato, a prpria globalizao o resultado da expanso vitoriosa dos Estados-economias nacionais que conseguiram impor seu poder de comando sobre um territrio econmico supranacional cada vez mais amplo, junto com sua moeda, sua dvida pblica, seu sistema de crdito, seu capital nanceiro e suas vrias formas indiretas de tributao.

    Da mesma forma, do meu ponto de vista, qualquer forma de governo mun-dial sempre uma expresso do poder da potncia, ou das potncias que lide-ram o sistema inter-estatal capitalista. Muitos autores falam em hegemonia para referir-se funo estabilizadora desse lder dentro do ncleo central do sistema. Mas esses autores no percebem em geral que a existncia dessa liderana ou he-gemonia no interrompe o expansionismo dos demais Estados, nem muito menos, o expansionismo do prprio lder ou hegemon. Por isso, toda potncia hegemnica sempre, ao mesmo tempo, auto-destrutiva, porque o prprio hegemon acaba desres-peitando as regras e instituies que ajudou a criar para poder seguir acumulando seu prprio poder, como se pode ver no caso americano, depois do m da Guerra Fria. Donde, logicamente impossvel que algum pas hegemnico possa estabi-lizar o sistema mundial, como pensam vrios analistas internacionais. Neste uni-verso em expanso que nasceu na Europa, durante o longo sculo XIII, nunca houve nem haver paz perptua, nem sistema polticos internacionais estveis. Porque se trata de um universo que precisa da preparao para guerra e das crises para poder se ordenar e estabilizar. E atravs da histria, foram quase sempre estas guerras e estas crises que abriram os caminhos da inovao e do progresso, na histria deste sistema inventado pelos europeus.

    nesta viso do sistema mundial e no apenas em opinies e vaticnios, que se funda a minha avaliao sobre o mito do colapso americano. Ela me permite tambm sustentar a tese que defendo no meu artigo, de que est em cur-so uma grande exploso expansiva do sistema inter-estatal capitalista, e uma nova corrida imperialista entre as grandes potncias, que dever se intensi car nos prximos anos. Mas este no um mundo sombrio, apenas o mundo em que nascemos.

    Cronologia do processo editorial

    Recebimento da comunicao: 19-ago-2009 | Aceite: 21-ago-2009.