para além da fronteira

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1 Para alem da fronteira Histórias daqueles que deixaram seu país. Ana Gabriela Maciel Marina Pelorca

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Para alem da fronteira

Histórias daqueles que deixaram seu país.

Ana Gabriela MacielMarina Pelorca

Para alem da fronteira

Histórias daqueles que deixaram seu país.

Ana Gabriela MacielMarina Pelorca

Faculdade Cásper LíberoTrabalho de Conclusão de CursoPara Além da FronteiraHistórias daqueles que deixaram seu país.Integrantes:Ana Gabriela MacielMarina PelorcaOrientação: Carlos Costa

Ilustração: Marina PelorcaDesign: Marina PelorcaRevisão: Jéssica Rezende

“Aos nossos pais e irmãs, que nos apoiaram de todas as formas; aos perfilados que nos cederam

suas histórias; e ao nosso querido professor Carlos Costa, que nos guiou até o fim”.

SumárioPrefácio................................................................9

No MuNdo......................................................15Refúgio: a evolução de um conceito.........................17muRad mamud ali Khawi................................................24

No Brasil.........................................................41a vida na capital paulista................................................43vendo com os pRópRios olhos: ongs e abRigos.......50lucia espinoza caRla pinto...........................................70camille b. m. R.....................................................................83pieRRe nzéé au ciel............................................................92ameR masaRani...................................................................103os maioRes desafios.........................................................115

Galeria de fotos....................................................117BiBlioGrafia

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PrefácioEste livro trata de um drama atual, de caráter internacional e

ainda pouco abordado no Brasil: o deslocamento forçado. Temos assistido a chegada de migrantes de diversas partes do mundo com um único motivo, a busca por proteção e segurança.

Com destaque na comunidade internacional ao longo do século passado, o deslocamento forçado veio à tona com as duas Guerras Mundiais e o enorme fluxo de deslocados causado por elas. Desde então, foram estabelecidas as primeiras instituições e instrumentos jurídicos a fim de proteger e assistir a essas pessoas.

Contudo, ao longo do século XX, as dinâmicas do deslocamento forçado e as causas do fluxo de refugiados e solicitantes de refúgio no mundo cresceram, fazendo com que as duas grandes guerras deixassem de ser as causadoras principais deste cenário.

Atualmente, os conflitos civis, motivados por disputas étnicas, nacionalistas, políticas ou religiosas e a violação aos direitos humanos e as graves crises econômicas e sociais são fatores determinantes no deslocamento compulsório de milhões de pessoas ao redor do mundo, além de gerarem milhares de mortes.

O número de refugiados aumentou e continua aumentando pro-gressivamente: desde o início da guerra civil na Síria, em março de 2011, 1 milhão de sírios fugiram para a Turquia, 800 mil para o Líbano e 750 migraram para a Jordânia (256 chegaram ao Brasil). Aproximadamente 25 milhões de curdos – a maior etnia sem pátria do mundo – vivem espalhados por países da Europa, da Ásia e nos Estados Unidos.

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Essa soma ainda aumenta a cada ataque e bombardeio na República Democrática do Congo, no Mali, na Palestina, em Burkina Faso e outros tantos lugares. São pessoas que cruzam fronteiras – de barco, avião e até mesmo de forma clandestina – “à procura de um novo início”, como nos foi dito em uma das entrevistas.

Durante essa busca, descobrem outro mundo, por vezes, com-pletamente diferente da realidade à qual estão acostumados, como é o caso do sírio Amer Masarani. Logo na chegada, estão suscetíveis a diversos tipos de dificuldades, impostas pela língua, pela inserção social, pela falta de documentos e dinheiro. Além disso, apesar do Brasil ser signatário das convenções internacionais de proteção aos refugiados e estar sendo reconhecido mundialmente pelos esforços na área, nossa política assistencialista é realizada por instituições com baixo orçamento e por meio de doações.

Abordar este tema com dados, número e leis, no entanto, pare-ceu-nos superficial e insuficiente. Mais do que estatísticas, estamos falando de pessoas que tiveram suas vidas diretamente afetadas por conflitos e perseguições. Assim, para aprofundar o assunto, busca-mos personagens dispostos a contar suas histórias a fim de criar ricos relatos de vida para ilustrar as diferentes perspectivas e realidades que envolvem a questão do deslocamento forçado.

O primeiro deles é Murad Mamud Ali Khawi, imigrante de origem curda que, após um mês viajando de país em país, chegou à Inglaterra há 14 anos e, atualmente, é cidadão britânico. Ele, que só retornou ao Curdistão uma única vez para visitar os pais, está passando uma tem-porada no Brasil e nos contou, com detalhes, sua trajetória. Ouvimos, também emocionadas, as histórias da colombiana Lucia, do congolês Pierre e da haitiana Camille.

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Uma nova demanda

A questão do refúgio, mesmo que antiga, ganhou mais destaque no cenário político e econômico do Brasil devido à grande e inesperada demanda que o país tem recebido de solicitações de refúgio nos últimos três anos. Em 2010, foram 310 pedidos. Em 2012, esse número aumen-tou para 1.806 e, em 2013, foram 1.860 só em São Paulo.

Apesar de sua atualidade, grande parte da população brasileira está pouco familiarizada com o tema. É comum o equívoco de confundir refugiado com imigrante. Diferente daqueles que migram por falta de emprego, perspectiva de vida ou outras razões, os refugiados o fazem por motivo de perseguição – étnica, religiosa, racial, de nacionalidade e posição política – e têm, por direito, a obrigação de serem reconhecidos e acolhidos, com direito a visto e à documentação.

Em função desse aumento (mais de 2.000 solicitações de 2010 a 2012), a estrutura, que era pequena, tornou-se ineficiente. “A maior dificuldade do ACNUR é orçamentária, já que 98% do orçamento vêm de doações de órgãos internacionais e voluntários e todas as ações são custeadas com doações de indivíduos e nações”, afirma Luiz Fernando Godinho, oficial de informação pública do ACNUR no Brasil.

Durante o período citado (2010-2012), a maior parte dos so-licitantes de refúgio veio da África, Ásia e América do Sul. Em 2013, o CONARE (Comitê Nacional para Refugiados) recebeu pedidos da República da Guiné (Guiné Conacri), Mali, Bangladesh e Senegal, além de Colômbia, República Democrática do Congo e Síria.

Dentre os quase 5 mil refugiados reconhecidos, 10% têm formação universitária ou formação em atividades técnicas nas áreas de comércio e serviço. A taxa de analfabetismo é de 1% e muitos falam vários idiomas.

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O caso dos migrantes haitianos: “gambiarra” legal

O Brasil é signatário da Convenção de Genebra (1951) e acolhe, portanto, aqueles perseguidos em função de sua raça, religião, grupo social, nacionalidade ou opção política. Além disso, também adota a Declaração de Cartagena, de 1984, que prevê proteção a qualquer tipo de violação aos direitos humanos.

De acordo com Larissa, o grande número de colombianos que chegam ao Brasil pode ser interpretado por meio da Declaração de 1984, pois há uma tensão provocada pelas Farc – Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. No caso dos migrantes sírios, nem todos são perseguidos individualmente, mas há um temor. “Nesse caso, devemos ler os dois incisos (Genebra e Cartagena) juntos: temor de perseguição e violação dos direitos humanos”.

A situação dos haitianos é um pouco mais complicada. Após o terremoto que assolou o país em janeiro de 2012, a estrutura básica (saneamento, esgoto, acesso a gêneros alimentícios, moradia e saúde) tornou-se praticamente inexistente. Assim, o Brasil concede visto de ajuda humanitária aos migrantes do Haiti.

Logo após o terremoto, o governo brasileiro optou pela dis-tribuição de cem vistos por mês. “Isso não resolveu o problema. Só era possível pedir o visto na Embaixada do Brasil em Porto Príncipe, mas muitos já estavam em Brasileia”.

Atualmente, os migrantes de origem haitiana recebem um tra- tamento diferente: assim que chegam ao país, recebem um protoco-lo e são encaminhados ao CNIg – Conselho Nacional de Imigração, órgão vinculado ao Ministério do Trabalho cujo objetivo é orientar e

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coordenar as atividades de imigração. “Há uma resolução que prevê que os casos sejam analisados baseados em questões humanitárias por não se tratar de refúgio. Por isso, chamamos de medida humanitária alternativa, uma gambiarra legal”.

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No muNdo

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refúgio: a evolução de um coNceito

O deslocamento forçado não é um produto exclusivo da nossa época. Desde os mais remotos tempos, homens e mulheres foram, por diversas vezes, obrigados a deixar seus lares às pressas pelos mais variados motivos. Conflitos entre grupos cultural, religiosa ou etnica-mente diversos, desastres naturais ou, ainda, a própria impossibilidade de subsistência. Além disso, levaram muitas vezes à fuga em massa guerras, perseguições e expulsões. Ao fugir, esses indivíduos buscam, portanto, estar distante de tais ameaças, usufruir da proteção que perderam em seu local de origem. Neste sentido, o termo “refúgio” origina-se do latim refugium, significando um “lugar seguro onde alguém se refugia; asilo para quem foge ou se sente perseguido”. Para ilustrar a antiguidade do tema, na própria Bíblia é possível observar passagens que retratam estes deslocamentos forçados. Os irmãos de José, por exemplo, foram para o Egito devido a uma onda de fome e mortalidade devastadora, e o próprio José tomou sua esposa e filho durante a noite e partiu para o Egito fugindo da perseguição do rei Herodes, que os procurava para matar o menino Jesus.

O drama dos deslocamentos forçados continua a existir e aumenta em todo o mundo. Embora todas as épocas tenham confli-tos armados que causam o deslocamento de populações, nunca antes se atingiu um nível crítico como no século atual. Muitos vivem uma experiência dolorosa há anos ou até há gerações, sem nunca terem conhecido outra forma de vida, como acontece no caso dos campos de palestinos. O de Jabalia, localizado na região da Faixa de Gaza, por

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exemplo, seria algo temporário, um local construído provisoriamente por organizações internacionais para providenciar o básico necessário à sobrevivência. No entanto, abriga mais de cem mil pessoas desde o fim da guerra árabe-israelense, em 1948.

As primeiras iniciativas internacionais de apoio a esses indivíduos se deram num contexto bastante limitado. Havia interesse e preocu-pação pelos sofrimentos das pessoas designadamente perseguidas, mas em menor proporção. Quando se passou a lidar com um grande contingente é que foi avaliada a necessidade de rever os acordos inter-nacionais e os direitos concedidos aos refugiados.

Em agosto de 1921, os esforços internacionais para dar assistên-cia a essa população tornaram-se oficiais. Naquele ano, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha apelou à Liga das Nações que prestasse auxílio aos mais de um milhão de refugiados eslavos deslocados pela guerra civil da Rússia. A Liga, então, manifestou-se designando para “Alto Comissário em nome da Liga das Nações para tratar dos problemas dos refugiados russos na Europa” o norueguês Fridtjof Nansen. Cientista, explorador polar, aventureiro e político, Nansen ficou famo-so por organizar uma expedição que atravessou toda a calota glacial da Groelândia. Sua atuação no cenário internacional começou ao ser nomeado como primeiro embaixador norueguês em Londres e, depois, presidente da União Norueguesa na Liga das Nações.

Tempos depois, as responsabilidades de Nansen como Alto Comissário sobre os refugiados russos se estenderam também para os gregos, búlgaros, armênios e outros grupos específicos. Empreendeu a enorme tarefa de definir o estatuto jurídico dos refugiados russos e se responsabilizou por questões como o emprego dos recém-chegados nos países de acolhimento ou o seu repatriamento.

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Organizou, ainda, uma conferência internacional para criar salvo-condutos para os refugiados, popularmente chamados de “passaportes Nansen”. E, quando as negociações com a União Soviética a respeito do repatriamento de refugiados russos falharam, Nansen adotou medidas que previam um estatuto jurídico seguro para os refu-giados nos países de acolhimento. Estes primeiros instrumentos jurídicos serviram de base para a criação de importantes leis posteriores, como as Convenções de 1933 e de 1951, relativas aos refugiados.

Em março de 1931, contudo, foi extinto o Alto Comissariado para Refugiados Russos, previsto para ser uma organização temporária, com prazo máximo estipulado em dez anos. Para sua sucessão, foi criado o Escritório Internacional Nansen para Refugiados, também estabelecido por decisão da Liga das Nações. Alguns fatores imprevistos, porém, acabaram interferindo negativamente na atuação do Escritório Nansen, entre eles a crise na Bolsa de Valores de 1929 e a ascensão de Adolf Hitler na Alemanha. A questão dos refugiados alemães teve origem no início de 1933, quando a política nazista de Hitler, caracterizada pelo antissemitismo e por perseguições de caráter político e religioso, de- sencadeou uma fuga em massa da Alemanha.

Constatou-se, assim, que os instrumentos até então existentes não garantiam a plena proteção dos refugiados em situações de crise, criando a necessidade de elaborar um instrumento internacional que abrangesse diferentes nações em distintos cenários e contextos. Para tanto, em maio de 1933, os presidentes do Conselho da Liga, junto com o Escritório Nansen, reuniram-se para pensar em um acordo que tratasse de maneira global da assistência aos refugiados. Em agosto do mesmo ano, apresentaram a Convenção Relativa ao Estatuto Interna-cional dos Refugiados. A Convenção de Genebra de 1933, como ficou

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conhecida, abrange a situação jurídica, as condições de trabalho, bem-estar e assistência. Inovou ao apresentar o princípio de non-refoulement, que prevê aos Estados aderidos o acolhimento dos refugiados e a não expulsão.

Outros órgãos foram criados até o término da Segunda Guer-ra Mundial. O Alto Comissariado para Refugiados (judeus e outros) Provenientes da Alemanha, por exemplo, cuidava apenas dos interesses relativos ao contingente desse nicho. Todas essas organizações se extin-guiram em 1938, incluindo o Escritório Nansen. Foram substituídas pelo Alto Comissariado da Liga das Nações para os Refugiados, que iniciou suas atividades em janeiro de 1939. Esse novo órgão era responsável apenas pela proteção política e jurídica dos refugiados, ficando a cargo de outras organi-zações humanitárias e não governamentais o serviço de assistências práticas.

As ações limitadas e fragmentadas destes órgãos, contudo, mostraram-se precárias e insuficientes, tornando necessária a reorgani-zação do sistema de proteção aos refugiados. Duas reformas foram apresentadas para solucionar o problema: a criação da Administração das Nações Unidas para Assistência e Socorro (UNRRA), com a função de promover assistência imediata às pessoas enquanto durasse a guerra, e a preparação da Carta Constitutiva da Organização Internacional dos Refugiados, com a intenção de regulamentar de maneira definitiva os direitos dos perseguidos por guerra.

O Alto Comissariado da Liga seguiu com suas atividades, ainda que mais escassas, até o término oficial da Liga das Nações, em dezem-bro de 1946. Depois de extinto, foi o Comitê Intergovernamental para Refugiados quem assumiu as atribuições até o ano seguinte, quando se estabeleceu a Organização Internacional dos Refugiados (OIR) pela recém criada Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1947.

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Antes da criação da OIR, o caráter temporário das organizações para assistência aos refugiados demonstra a percepção deste tema como um problema “à parte” que se relacionava com os conflitos mundiais e, portanto, seria solucionado com a cessação das crises. Entretanto, a recorrência e o agravamento dos fluxos de refugiados, principalmente após o término das duas grandes guerras, demonstraram que o problema era regra e não exceção.

A instauração da OIR trouxe uma nova visão para o problema. Em função das limitações apresentadas e para se adequar às necessi-dades existentes, alguns documentos que tratam do tema tiveram que se adaptar à realidade das pessoas que buscavam proteção e ampliar o conceito do termo “refugiado”. Assim, a definição apresentada em sua carta constitutiva partia de uma perspectiva individual, abandonando a abordagem coletivista pregada até então, na qual a condição de refugiado era determinada apenas pelo seu pertencimento a um grupo étnico ou religioso.

A Organização Internacional dos Refugiados foi extinta e substituída em 1950 pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) – até hoje, o órgão internacional majoritário no assunto e que oferece subsídio para a atuação de instituições menores em vários países. Quando convocado, em 1951, para redigir uma Convenção regulatória do status legal dos refugiados, adotou critérios mais flexíveis a fim de universalizar e aproximar os Direitos Internacionais dos Direitos Humanos.

A pesquisadora na área de Direito Internacional Liliana Jubilut, autora do livro O Direito Internacional dos Refugiados, explica que “a inovação mais relevante trazida pelos documentos mais recentes [...] vem a ser a caracterização da grave e generalizada violação de direitos

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humanos como motivo de reconhecimento do status de refugiado”.Dessa forma, a definição apresentada na Convenção de Gene-

bra de 1951, mantida em vigor até a atualidade, considera refugiada qualquer pessoa que, “temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele”.

Este documento, contudo, contemplava apenas os indivíduos envolvidos nos acontecimentos ocorridos antes de 1 de Janeiro de 1951. As garantias asseguradas estavam, portanto, ligadas aos eventos da 2ª Guerra Mundial. Mas, no final dos anos 50 e durante a década de 60, novos grupos de deslocados surgiram, provenientes especialmente da África. Careciam de uma proteção que não lhes podia ser concedida dentro das limitações estabelecidas até então.

Para alargar a aplicação do termo “refugiado” àqueles envolvidos em conflitos posteriores, em 1967, foi ratificado o Protocolo Relativo ao Estatu-to dos Refugiados. Este instrumento levou os países a aplicarem as provisões da Convenção de 1951 para todos os indivíduos enquadrados na definição da carta sem limite de datas e de espaço geográfico. “A partir dessa ampli-ação, a violação de quaisquer direitos humanos, e não somente dos direitos consagrados como civis e políticos, [...] pode ensejar a proteção de alguém na condição de refugiado, assegurando-se, de tal modo, o efetivo gozo dos direitos humanos pelos indivíduos”, ressalta a pesquisadora Liliana Jubilut. Até 2011, 148 países se tornaram signatários da Convenção e do Protocolo.

murad mamudali Khawi

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Logo que entrou pela porta principal do Quality Inn – um dos muitos hotéis de rede localizados nas imediações do grande aeroporto de Heathrow, em Londres, o terceiro mais movimentado do mundo – era notável a sua polidez e a forte presença da tradição em seus costumes e maneiras. Ao se apresentar a uma pessoa nova, Murad Mamud Ali Khawi estende cautelosamente a mão em um aperto forte, mas, ao mesmo tempo, respeitoso e sutil.

Ao falar, este imigrante de origem curda, de 39 anos, revela um inglês fluente, marcado pelo sotaque, acentuado ainda pela animosidade que emprega às letras “p” e “r”, típico de falantes originários dos países de língua árabe, ou melhor, do idioma curdo. O timbre de sua voz é alto e grave, diria potente, e desvenda muito de sua personalidade: tranqui-lidade, perseverança e obstinação.

De estatura mediana, tem pouco mais de 1,70 m de altura. O rosto, marcado por quem cresceu em uma zona montanhosa, no intenso frio das regiões de altitude, apresenta traços definidos, bem delineados. A tez é branca, com um tom amarelado. O marcante par de sobrancelhas negras faz o papel de moldura para os pequenos olhos, levemente puxados no canto externo, que, além de amendoados, revelam um humilde e simpático olhar.

Logo abaixo do nariz proeminente, lábios bem desenhados e finos e uma pinta do lado direito da boca. Pela forma como se veste, pode-se per-ceber que o imigrante já é adepto do “estilo ocidental”: usa uma calça jeans, um par de tênis descolado e uma camiseta cinza da marca Armani Exchange,

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uma das grifes de maior expressão do capitalismo moderno.Morando há treze anos na Inglaterra, Murad, o mais velho de cinco

irmãos, nasceu em um campo de refugiados na cidade de Sarawgarem, no Irã, em julho de 1974. Seus pais são oriundos da vila de Sarsean, no Curdistão, região com cerca de quinhentos mil metros quadrados referida como lar dos curdos. Essa região montanhosa entre o norte do Iraque e o sul da Turquia ocupa ainda partes do Irã, Síria, Armênia e Azerbaijão. Os curdos – etnia nativa dessas áreas montanhosas – sempre habitaram a área que corresponde ao Curdistão, mas, como a inde-pendência da região nunca foi reconhecida, cerca de vinte e sete milhões de curdos vivem espalhados por essas nações. São, em sua maioria, muçulmanos sunitas e sua língua oficial é o curdo.

Em 1920, foi assinado, na França, o Tratado de Sèvres, que delimita-va as fronteiras do Curdistão e prometia a tão esperada autonomia. Em 1923, um novo acordo foi assinado na Suíça pelos países participantes da Primeira Guerra Mundial (1914 - 1918) e da Guerra da Independência da Turquia (1919 - 1922). O documento não só dividia o Curdistão entre Turquia, Iraque e Síria como também desobrigava o governo turco a garantir a autonomia curda. Em 1925, após repressão a uma revolta curda, a Liga das Nações decidiu que o mandato britânico na região se estendesse por mais vinte e cinco anos.

Apesar de nativos de uma região denominada Curdistão, muitos de seu povo, assim como o próprio Murad, tiveram que sair de sua terra prometida em busca de paz na terra da Rainha. São milhares de curdos vivendo no Reino Unido e cerca de vinte e cinco milhões espalhados por países como Georgia, Síria, Líbano, Estados Unidos e alguns países europeus. Eles, um dos grupos autóctones mais antigos da região, são perseguidos há milhares de anos e considerados a maior etnia sem pátria do mundo.

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Grávida de seis meses, Asty Ali deixou sua vila natal com o marido. Juntos, atravessaram aproximadamente cento e cinquenta quilômetros pelas montanhas até a fronteira com o Irã, onde o país estava abrigando os curdos que cruzassem a fronteira. Saddam Hussein, que assumiu o poder em 1979, deu início a uma campanha anticurda. Seria o início de um genocídio conhecido como Anfal: de 1986 até 1989, o ditador come-teu todo tipo de violência e repressão ao povo curdo que habitava as áreas rurais do norte do Iraque. Foram ataques com armas químicas e destruição de povoados, deportações em massa, pelotões de fuzila-mento, expulsão e prisões compulsórias por acusações de atividades oposicionistas ao governo.

Após deixar a esposa no campo de refugiados, Mahmood Ali, um “peshmerga” – soldado do exército curdo –, voltou ao Curdistão para lutar nas montanhas ao lado de outros combatentes. Em um dos com-bates, teve a perna ferida por estilhaços de bomba e acabou ficando manco, pois perdeu parte do tendão.

Três meses após fugir da perseguição de Saddam Hussein ao seu povo, Asty Ali teve o seu primeiro filho; perdera duas filhas recém-nascidas anos antes. Com medo de não ter mais filhos, visitou a terra onde está enterrado Murad Rasul, tradicional profeta de seu povo. De acordo com a tradição curda, toda mulher que não consegue gerar uma criança com vida deve ir até lá e misturar um punhado da terra do local com água e ingerir a mistura. Em agradecimento, deu ao seu primogênito o nome do profeta.

Era verão e fazia muito calor naquela noite de julho de 1974. Após o parto, cansada, Asty Ali dormiu em cima do recém-nascido e, quando acordou, encontrou o bebê roxo, quase morto. Um ano depois de seu nascimento, Murad se mudou com a família para a terra de seus

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pais. Na época, Saddam Hussein controlava o Curdistão e permitiu o retorno dos curdos que se rendessem a ele.

Quando regressaram, Mahmood Ali deixou o exército para se dedicar ao ramo agrícola, atividade que desempenhou até o ano de 1989: plantava melancia, trigo, grão de bico, tomate e quiabo. Foi lá que Murad viveu parte de sua infância. “Eu gostava de caçar e pescar com meu pai. Caçávamos coelho, carneiro da montanha e vários tipos de pássaro nos finais de semana, quando não tinha aula”.

Os curdos são um povo pastoril e agrário, gostam do campo, do cultivo de gêneros alimentícios e da criação de animais, como os cordeiros. Um de seus pratos prediletos é peixe à moda curda: envolto em um papel, o peixe é enterrado e assado debaixo da terra. Além disso, gosta do que chama de “army food” (comida de soldado): lentilha com cebola e sal. “Deixa o corpo quente e forte”, brinca.

Ele revela que, mesmo durante a semana, quando tinha aula, vivia fugindo da escola para procurar o pai. “Lá, só tinha aula até quinta-feira”. Sua primeira namorada foi uma professora. Mais velha, ela tinha vinte e poucos anos. Na escola, aprendeu sobre a tradição curda e os símbolos da luta de seu povo. O general Mustafá Barzini, “um bravo soldado”, nas suas próprias palavras, seu grande ídolo, esteve à frente de rebeliões curdas e chegou a fundar uma República em 1945. “Ele é muito respeitado até hoje”, completa.

Mas grande parte do que sabe não aprendeu em uma sala de aula, como qualquer outra criança que estuda história, geografia e ciências. As regras e histórias do mundo, do seu mundo, aprendeu desde pequeno, nas muitas dificuldades que enfrentou na vida.

Desde jovem, Murad se acostumou com o barulho de bombardeios e ataques. Durante a guerra entre Irã e Iraque, conflito militar que per-durou entre 1980 e 1988, conta que havia bombardeio todas as manhãs.

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“Quando criança, eu tinha muito medo dos ataques, o barulho me as-sustava. Com o passar do tempo, quando fui crescendo, fui perdendo o medo, afinal era algo tão comum. Chegou um ponto em que eu não corria mais para o abrigo no quintal. Algumas vezes eu estava jantando, tinha início o bombardeio e eu pensava que logo ia acabar”.

A casa de sua família, assim como muitas outras da vila de Saraw-garem, possuía um abrigo no quintal para o caso de ataque – era uma espécie de quarto abaixo do nível da terra, no qual membros da família e vizinhos se protegiam dos bombardeios. Além disso, em função dos ataques químicos com gás sarin, metal que ataca o sistema nervoso, e gás mostarda, que causa feridas quando em contato com a pele, todas as janelas da casa eram isoladas com um plástico. Outra técnica utilizada pelos curdos é envolver uma toalha molhada na cabeça, já que o gás fica suspenso no ar. “Em um desses ataques, me lembro de uma vizinha que morreu com o filho nos braços. Muitas pessoas ficaram feridas”.

Na cidade de Halabja, no sudoeste do Curdistão, em 1988, aproximadamente cinco mil pessoas morreram em função de um ataque químico em massa, lembra ele. O episódio, conhecido como “O Massacre de Halabja”, “Bloody Friday” ou “Sexta-feira Sangrenta”, acon-teceu nos últimos dias da guerra Irã-Iraque, quando as forças iraquianas usaram armas químicas contra a população curda.

Em 1986, Saddam Hussein matou mais de 182 mil curdos: os soldados iraquianos abriam grandes valas, jogavam pessoas com vida e as enterravam. Tal atrocidade, conhecida como “dinossauro”, vitimava crianças, adultos e velhos, indistintamente. “Era possível ouvir as pessoas gritando, chorando até a morte”.

Três anos depois, algumas vilas curdas foram destruídas por Saddam, inclusive Sarawgarem, onde Murad vivia com a família. A população dessas

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vilas foi enviada para diversas áreas. Sua família se mudou para uma região deserta denominada Ajyawa. Lá, não havia árvores, a terra era im-produtiva. Para viver, Mahmood Ali construiu uma casa no local e abriu um negócio: vendia cigarro, doces e Coca-Cola. Durante o período que viveu lá, não havia escola. “A primeira foi criada em 1991”, conta.

Após alguns anos vivendo na vila de Ajyawa e três meses no Irã, retornou com sua família para a vila de Sarawgarem, no Curdistão. Durante o período, Estados Unidos e Inglaterra criaram as linhas 34 e 36 na província curda e proibiram Saddam de violar as terras delimitadas por elas. Caso o ditador não respeitasse, os dois países atacariam o Iraque.

No ano de 1997, cansado de viver em um contexto de guerra e conflitos constantes, decidiu que fugiria do Curdistão. Era chegada a hora de prestar serviço militar : como muitos outros homens de sua cidade, teria que servir ao exército, assim como seu pai e avô fizeram, e lutar pela independência total de seu povo. “Não queria entrar no exérci-to. Isso nunca foi uma opção para mim”.

Murad conta que, na época, outros de sua etnia fugiam para a Ingla- terra, que, em troca do petróleo oferecido pela junta que governava as terras curdas – com suas próprias taxas, leis e idiomas oficiais, o curdo e o ára-be –, oferecia uma política de refúgio considerável para os imigrantes curdos.

Cansado da guerra e da perseguição de Saddam, em novembro de 1997, fez a sua primeira tentativa de fuga: pagou mil dólares a um guia, uma espécie de “coiote”, e caminhou até a Turquia com um grupo de pessoas. “O rio estava congelado. O gelo chegava até os joelhos. Eu leva-va apenas uma mochila com três ou quatro peças de roupa e chocolates. Quando chegamos na fronteira do Curdistão com a Turquia, os soldados turcos nos mandaram voltar”.

O imigrante explica que isso sempre acontece. Os soldados turcos

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têm a ordem de mandar de volta os curdos que tentam atravessar a fronteira. Na Turquia, os curdos são chamados de “povo da montanha” e sofrem preconceito. Até 1900, a língua e os costumes curdos eram proibidos no país. “Lá, os curdos são maltratados, apanham da polícia no mercado”, revela.

Mas não desistiu. Em 1999, quando conseguiu juntar mais uma vez a quantia necessária, fez a segunda tentativa. Dessa vez, com um grupo de onze pessoas, chegou até a Turquia, numa zona rural, onde ficaram por cerca de um mês escondidos em uma caverna, esperando um caminhão que os levaria até a Grécia. “Eu estava no segundo grupo escolhido. No primeiro, havia uma mulher e duas crianças. Enquanto isso, roubávamos tomate e galinhas das fazendas da região e íamos es-condido até o mercado. Se a polícia nos pegasse, seria o fim”.

Finalmente, após mais de vinte dias de espera em um lugar hostil e perigoso, chegaram à Grécia, “onde os curdos são bem tratados” e recebem ajuda. De lá, foram para Veneza, no nordeste da Itália, e para a capital francesa. Depois de quase um mês tentando chegar à terra da Rainha, embarcou clandestinamente, em Paris, em um caminhão-baú com destino à Inglaterra, onde esperava realizar seus sonhos e viver distante da perseguição e da guerra.

“Estava com mais dois curdos. Nos escondemos atrás de colchões. Ficamos na mesma posição [sentados] por muito tempo”, conta. “A travessia durou cerca de dois dias, pelo que eu me lembro. Quando me levantei, sentia muita dor nas costas, nas pernas”.

Já na Inglaterra, quando se aproximaram de um posto policial, desceram e pediram refúgio. Os curdos que chegam à Inglaterra precisam pedir proteção; assim, recebem alguns tipos de benefícios, como curso de inglês, mesada semanal de 64 libras e estadia.

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Do posto policial, Murad foi encaminhado para a Imigração, fez uma entrevista e exame médico – tudo com o auxílio de um intérprete curdo. Depois disso, rumou para a cidade de Redcar, no norte do país, onde ficou em um hotel subsidiado pelo governo inglês por seis meses. “Chegando em Redcar, me levaram ao mercado para comprar mantimen-tos e itens de higiene pessoal. Tudo pago em troca do petróleo”, explica.

Lá, onde viveu por seis meses, fez curso de inglês para conse-guir um emprego. Durante o período, ia semanalmente ao Job Center (agência de emprego) fazer entrevistas e “mexer com a papelada do refúgio”. Após sete meses, conseguiu o primeiro emprego: trabalhava de garçom em uma pizzaria.

Assim, Murad deu início a uma nova vida. Conheceu outros cur-dos que viviam na Inglaterra, com os quais fez amizade, e se mudou para a cidade de Manchester, onde comprava e reformava carros para revender. “Cheguei a montar o meu próprio negócio. Tive uma pizzaria”.

Após dez anos, recebeu o UK Resident Permission, documento que lhe concedeu o direito de morar e trabalhar na Inglaterra e de deixar o país. Antes de completar esse tempo, o imigrante não poderia deixar o Reino Unido, senão perderia todos os benefícios. Assim, passou treze anos sem visitar a família.

“E a saudade do Curdistão e dos familiares?”“Não tenho saudade do Curdistão. Senti muita saudade de minha

mãe, mas ela não quis deixar os seus familiares e a sua terra. Além disso, meus pais têm posses lá. Temos duas fazendas arrendadas para a plantação de melancia”.

Retornou ao seu local de origem em 2012, onde passou três meses. Além dos dois irmãos que vivem na Inglaterra – Kara, de 23 anos, e Rhala, de 27 – e do mais velho, Razgar, que continuou no Curdistão,

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Murad tem uma irmã mais nova. Ele conta que, quando deixou a casa de seus pais, Tyala tinha apenas 6 anos. Agora, com 19, está prestes a entrar na Universidade.

Ele conta que, quando retornou à sua terra, viu Tyala dançando em sua festa de boas-vindas e não a reconheceu. “Só a via em fotos e pela câmera do computador. De longe, avistei aquela moça dançando, com os cabelos longos, na altura da cintura, e não reconheci que era minha própria irmã”, revela em meio a risadas.

O imigrante, que se adaptou perfeitamente às vestimentas oci-dentais, conta que, quando se mudou, surpreendeu-se com os costumes dos ingleses, principalmente das inglesas. “Elas usam roupas muito curtas e se oferecem para os homens. São muito diferentes das mulheres de lá”.

As curdas usam longos vestidos bordados e gostam de motivos florais e estampas coloridas. Por baixo do vestido, costumam trajar uma espécie de macacão feito com um tecido de brilho em tons de verde, vermelho ou rosa. Em dias de festa, na hora da dança, as mãos ganham lenços com pingentes e a cintura é adornada com saias repletas deles. E joias, muitas joias.

Murad explica que, pela tradição curda, quando uma mulher se casa, a família do noivo deve presenteá-la com ouro: anéis, pulseiras, brincos e colares. A quantidade é negociada entre as famílias. As mul-heres casadas costumam usar uma pulseira de tornozelo (tornozeleira) de ouro com pingentes. “Assim, os homens sabem quando elas estão indo para o quarto, para a cozinha. Gostamos do barulho que o adereço faz quando as mulheres andam”.

Ao contar sobre os hábitos e costumes de seu povo, com orgulho, não esconde seu espanto com o casamento como instituição na Inglaterra. “O índice de divórcio é muito alto, cerca de 70%, é muito diferente de

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meu país. Tenho a impressão de que no Reino Unido as pessoas casam por casar e logo se separam”.

“Mas você já se acostumou com os hábitos ocidentais, certo?”“Sim, inclusive gosto de ir a clubes para dançar e beber cerveja com

meus amigos, mas não deixei de acreditar em minha cultura, minhas origens”.

Ele, que usa jeans e camisetas de marcas como Armani Exchange e Tommy Hilfiger, revela que ainda mantém os costumes que tinha no Curdistão. Obviamente, aposentou o típico traje curdo: uma espécie de macacão feito de seda com um acentuado decote em V no peito, usado com uma faixa do mesmo tecido amarrada na cintura. Mas ainda “come, lê e pensa em curdo”, brinca.

Os curdos seguem o Alcorão e, assim como os árabes, não comem carne de porco. As refeições são feitas no chão, em um belíssi-mo tapete persa: sobre ele, é servido o naan, um pão bem fininho, carne de cordeiro com iogurte e arroz com uvas-passas, a hapra, um charuto de folha de uva, sopa de quiabo com tomate e berinjela recheada. Ao final de cada refeição, bebem chá puro e, após cada gole, mordem um torrão de açúcar, uma espécie de melaço, preparado com ervas.

Murad assiste, na internet, novela e programas de comédia curdos e se relaciona, principalmente, com outros imigrantes da mesma nacio-nalidade que acabaram formando uma espécie de comunidade curda na Inglaterra. Em Manchester, convive com um grupo grande de con-terrâneos.

Depois de dez anos residindo no país, pediu a cidadania. Passou um ano estudando, frequentou um curso no qual aprendeu todas as datas, acontecimentos e festividades do Reino Unido. “Aprendi sobre o Dia de São Patrício, sobre a vida das rainhas Vitória e Elizabeth, voto uni-

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versal, como funciona o Congresso Inglês, Dia do Firework. Estudei muito”. Após uma tentativa frustrada, pagou, pela segunda vez, 500 libras

para fazer a prova e foi aprovado em 2012. “Foi o dia mais feliz da minha vida. Agora, sou britânico, tenho passaporte e documentos. Sou como qualquer outro cidadão”, festeja.

Ainda assim, sonha com o dia em que o Curdistão será uma nação totalmente independente. “Estamos nos modernizando, abrindo as portas para o Ocidente, seremos a próxima Dubai, mas não me imagino morando lá novamente. Aqui [Inglaterra] é a minha casa”.

Desde setembro, Murad passa uma temporada no Brasil, onde deve ficar até novembro para dar andamento aos trâmites legais de sua união com uma brasileira. Depois disso, o casal deve retornar à Inglaterra.

“E seus pais aprovaram seu casamento com uma brasileira?”“No início, eles preferiam uma curda, mas fui convencendo aos

poucos e ela conquistou meus irmãos. Eu disse que estava feliz e eles consentiram”.

Aqui, ficou impressionado com o povo brasileiro e a mistura de raças, sabores e pessoas. Adorou “garapa” (suco de cana de açúcar), purê de mandioquinha e costela.

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E no dia 19 de outubro, Murad se casou com Vanessa Marques. A simples cerimônia religiosa aconteceu na Igreja Matriz de Três Lagoas, no estado de Mato Grosso do Sul (terra natal da noiva), e reuniu familiares de Vanessa e amigos mais próximos, cerca de 50 pessoas.

Era uma manhã ensolarada e quente. Os termômetros marcavam

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34 graus – além de não ventar, as temperaturas são altas na maior parte do estado. Prevista para começar às 11h, a noiva se atrasou vinte minu-tos e, em seguida, os padrinhos e o noivo (que entrou com a sogra) rumaram em direção ao altar ao som da versão instrumental da música “Skyfall”, da cantora inglesa Adele.

O vestido de noiva não era dos mais tradicionais: na altura da canela, um volumoso modelo “longuete” sem alças foi o escolhido para a ocasião. Os fartos seios estavam cobertos por uma capa de renda branca com mangas e bordados de pequenas pedras brancas em for-mato de flor. Com os cabelos presos em um coque e uma tiara de brilhos e uma sandália de salto nas cores preto e branco, Vanessa entrou na Igreja de braço dado com o pai, Ilton, às 11h25, ao som da marcha nupcial.

A cerimônia foi breve, não durou mais que trinta minutos. Murad conseguiu pronunciar perfeitamente os votos em português. Padre José os dizia vagarosamente, palavra por palavra, e o curdo, dedicado, os repetia. Antes de colocar o anel no dedo da noiva, mirou-a nos olhos e beijou a joia. Na saída, foram celebrados com uma longa chuva de arroz.

Os noivos organizaram uma recepção para os convidados na casa de uma das tias de Vanessa. No gramado, foi montada uma tenda que protegeu familiares e amigos do sol durante o almoço. Foi servido medalhão de frango recheado, filé ao molho madeira e um tipo de massa ao molho de queijo. A vastíssima mesa de doces encantou a todos: foram encomendados mais de 3 mil docinhos variados (briga-deiro, bem-casado, camafeu, surpresa de maracujá, abacaxi e chocolate, além dos tradicionais doces parafinados, típicos de casamento).

Com atmosfera intimista e descontraída, os convidados se pro-puseram a dançar em uma pista de dança improvisada no jardim. O noivo os conquistou ao dançar músicas árabes ao estilo curdo: enquanto

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balançava um lenço com a mão direita, mexia os ombros e ia de um lado para o outro levantando as pernas alternadamente.

Durante a festa, Murad pouco se separou do iPad. De forma cuidadosa, sem piscar, mostrou, em tempo real, todos os detalhes da festa para sua família. Pelo Skype, comunicaram-se o dia inteiro. Seus irmãos e pais se revezavam na melhor posição em frente à câmera. Suspiravam, cada vez mais surpresos com os costumes, mas, mesmo assim, “alegres e satisfeitos”, garantiu ele.

Os recém-casados retornarão à Inglaterra, onde também preten-dem oficializar a união. A certidão de casamento já foi encaminhada à Embaixada inglesa no Brasil e resta agora o aval do governo britânico e o documento que permite a permanência de Vanessa na terra da Rainha.

O casal, que se conheceu pela internet há seis anos. Não espera-vam um desfecho como esse para sua história. Murad só se convenceu após consultar uma cartomante. “Ela me disse que eu precisaria cruzar um grande oceano para encontrar o amor verdadeiro e ser feliz. Já cruzei água e terra para chegar até aqui. Não voltarei ao Curdistão”, respondeu ele.

Depois de algum tempo, me dei conta de que ela falava de Vanessa. “Assim que consegui o passaporte britânico, não hesitei em vir para o Brasil. Para chegar até aqui, cruzei o Oceano Atlântico. A profecia se realizou”.

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No braSil

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a vida Na caPital PauliSta

A chegada dos imigrantes em São Paulo é sempre marcada por dificuldades e burocracias de diferentes naturezas. O primeiro passo se dá na Polícia Federal, lugar no qual o indivíduo se informa sobre documentações e o processo de legalização. Em seguida, ele é instruído a procurar a Cáritas, organização mundial da Igreja Católica que atua em mais de 200 países oferecendo suporte a refugiados e migrantes em geral.

Localizada na Sé, região central da capital paulista, a Cáritas São Paulo ocupa o sétimo andar de um prédio antigo, o número 87 da Rua Wenceslau Brás. O espaço do piso térreo abriga a recepção, comandada por um senhor de cerca de 60 anos, e um elevador, daqueles à moda antiga, típicos de construções da histórica São Paulo.

O recepcionista, sem que anunciasse nossa chegada, avisa-nos para subir. O ascensorista pergunta gentilmente aonde vamos, a grade do antiquíssimo elevador se fecha e subimos lentamente até o sétimo andar. A porta se abre com um forte solavanco – característico de eleva-dores de época – e nos deparamos com um grande e escuro sofá, no qual quatro ou cinco refugiados e solicitantes aguardam atendimento, além de um balcão de informações.

Ao lado do balcão, há um corredor que dá acesso às salas da instituição. Tudo é sóbrio: as paredes e os espaços são brancos; as janelas e portas, azuis. Os escassos itens de decoração se limitam a folders e banners de ações como campanhas de alimentação, abastecimento de água e outras ações realizadas pela Cáritas: doação, voluntariado e

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conscientização da sociedade civil. O que mais se destaca na grande sala de reunião, também utilizada como depósito, é um largo cartaz com a foto de uma jovem de rosto envolto em um véu cor de rosa: trata-se de um institucional do ACNUR com os dizeres “Protegendo Refugiados no Brasil e no Mundo”. Além da cor, o olhar da moça prende a atenção de quem o vê, talvez por ser a única parte de seu rosto à mostra na imagem.

Somos recebidas por uma das poucas funcionárias da entidade, que nos encaminha à sala de reunião. Sentamo-nos para aguardar Larissa Leite, Relações Exteriores e Assessora de Imprensa da Cáritas. Havíamos agendado um horário com ela há muito tempo, mas as de-mandas e atividades do Dia Mundial do Refugiado, comemorado em 20 de junho, adiaram nosso encontro.

Transcorridos poucos minutos, Larissa se apresenta e nos convida para sua sala. Com os cabelos escuros presos em um rabo de cavalo e aparência cansada, apesar do semblante alegre, ela sorri e iniciamos uma conversa informal. A jovem explica que é advogada e que assumiu as atribuições da Cáritas em maio – além de cuidar da organização no âmbito jurídico, é responsável pelo relacionamento com a imprensa, a comunicação interna e o atendimento aos refugiados e solicitantes de refúgio que chegam diariamente a São Paulo.

Pacientemente, durante uma hora, falou sobre o processo e a documentação para obtenção do refúgio no Brasil, as atividades desem-penhadas e a origem da Cáritas.

Dividida em paróquias e arquidioceses – São Paulo, Rio de Janeiro e Manaus –, a Cáritas é a organização social da Igreja Católica. Surgiu em 1977 no contexto da Comissão de Justiça e Paz para amparar as famílias dos desaparecidos e perseguidos políticos da ditadura miliar. Em 1989, com a chegada do ACNUR (Agência da ONU para Refugiados)

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no Brasil, a Cáritas foi convidada a atuar em parceria com a entidade e tornou-se um “parceiro implementador”, esclarece Larissa.

Atualmente, tem convênio com o CONARE (Comitê Nacional para Refugiados), órgão que atua sob o âmbito do Ministério da Justiça, e distribui a verba da ONU para o Brasil. O montante é utilizado para financiar os programas de assistência, como atendimento psicológico, advogados e auxílio financeiro para famílias em situação de extrema vulnerabilidade.

Em São Paulo, devido à grande demanda, há somente alguns casos de migrantes que recebem um valor em dinheiro. “Em casos como mães ou mulheres grávidas que chegam sem nenhum recurso, provi-denciamos uma bolsa auxílio com parte da verba destinada às ações”, explica. Já a Arquidiocese do Rio de Janeiro concede aos refugiados uma quantia de R$ 300 mensais. O IMDH (Instituto Migrações e Direitos Humanos), entidade social estabelecida em Brasília, também oferece apoio financeiro aos refugiados e solicitantes de refúgio do Distrito Federal.

O auxílio em dinheiro é destinado a situações emergenciais, já que, no Brasil, é concedido a eles o direito de trabalhar. Larissa revela que o objetivo da Cáritas é investir em soluções como o PARR (Programa de Apoio à Recolocação dos Refugiados), iniciativa da EMDOC, consultoria jurídica em imigração e expatriação, em parceria com o ACNUR e o Ministério do Trabalho.

Laurie Reis, advogada responsável pelo PARR, explica que o objetivo do projeto, além de auxiliar os refugiados em sua inserção no mercado de trabalho, é conscientizar as empresas privadas sobre os benefícios de empregar essa população. “Isso enriquece culturalmente uma empresa, até mesmo pela questão da língua, e faz com que ela tenha uma imagem positiva perante as outras”.

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A Cáritas trabalha, também, com assistentes sociais e com a ajuda do CAT, rede de postos da Prefeitura de São Paulo que direciona pes-soas ao mercado de trabalho. “Os órgãos de São Paulo parecem ter se conscientizado sobre seu papel na integração dessas pessoas”.

Além de iniciativas em prol da inserção no mercado de trabalho, algumas instituições e universidades, como a Anhembi Morumbi, ofere-cem curso de português e atividades recreativas. As unidades Itaquera e Belenzinho do SESC São Paulo, por exemplo, têm o programa “Trilhas da Cidadania”, que emprega professores para o ensino da língua portuguesa.

O SESC também permite que os refugiados e solicitantes fre-quentem suas dependências. “Isso é muito importante, pois as famílias podem interagir e o uso da biblioteca é de extrema importância para os que estão aprendendo nosso idioma. Tivemos o caso de um refu-giado do leste europeu que aprendeu português sozinho. Ele estudava na biblioteca todos os dias”, acrescenta Larissa. Lá, eles também podem almoçar a um custo de R$ 3,50 por refeição.

O reconhecimento da condição de refugiado

Assim que chega ao Brasil, logo no aeroporto, na fronteira ou em qualquer agência da Polícia Federal, o migrante pode se declarar como refugiado. O agente da Polícia deve obter uma declaração descrevendo uma história ou narrativa de fuga e isso formaliza o processo de solici-tação de refúgio.

A partir disso, o solicitante recebe o protocolo de permanência provisória, o que pode demorar muito tempo, pois a Polícia Fede- ral pede autorização para o CONARE, em Brasília, que, por sua vez, encaminha o documento. Está em discussão, no Ministério da Justiça, uma

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liberação para que a Polícia tenha autonomia para realizar a emissão no ato. “O Governo reconhece uma condição existente, o nome oficial é ‘carta de solicitação do reconhecimento da condição de refugiado’”, ressalta Larissa Leite.

O documento deve ser renovado a cada seis meses e permite ao solicitante circular livremente pelo território brasileiro sem precisar de passaporte ou de visto. Além disso, também autoriza a emissão da carteira de trabalho. Essa política foi escolhida pelo Brasil para que o migrante possa aguardar o julgamento de seu caso de forma mais con-fortável. “Com o protocolo de permanência provisória, já é possível abrir conta em banco e cuidar de outras burocracias enquanto o pro-cesso segue. E a pessoa pode circular livremente, diferentemente de outros países, onde os refugiados ficam encarcerados em albergues até que seja emitido o visto. Mas é bom deixar claro que isso não garante subsistência, trabalho e nem integração”.

Com o aumento rápido das solicitações – de 310 para 1.860 so-mente na capital paulista, em três anos –, a estrutura, que já era pequena, tornou-se insuficiente. A maioria não consegue renovar sua autorização de permanência provisória, já que o CONARE julga caso por caso, o que exige mais tempo. “O tempo de espera para atendimento na Polícia Federal em São Paulo e no Rio de Janeiro é estimado em seis meses. Temos feito mutirões para dar conta da demanda. Em agosto, ao invés de quatro pessoas, foram atendidas vinte e cinco por dia. Ficar indocu-mentado torna um refugiado ainda mais vulnerável”.

Antes de emitir um parecer, a Justiça Brasileira realiza um grupo de estudos prévios e analisa cada caso. Os solicitantes de refúgio pas-sam por entrevistas com os advogados do CONARE, representantes do Ministério da Justiça e da sociedade civil e oficiais do ACNUR.

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Larissa explica que a solicitação pode ser deferida (aprovada) – neste caso, o próximo passo é elaborar o registro de permanência – ou indeferida (negada). Quando o pedido é rejeitado, a Cáritas entra com recurso no Ministério da Justiça ou encaminha para a Defensoria Pública. “Os defensores públicos têm sido uma excelente saída para aumentar os atendimentos. Eles começaram a nos ajudar desde o início de 2013 em São Paulo”.

Mesmo que o pedido seja negado, a pessoa não deixa o Brasil. “Adotamos o princípio básico de non-refoulement, previsto pela Con-venção de 1951, que prevê o não retorno do refugiado ao local de perseguição até que sejam cessadas suas causas. Se esse migrante chegou aqui, é o Brasil que precisa protegê-lo. Muitas vezes, o refugiado passou por estresse e trauma e não é uma pessoa colaborativa. É difícil fazer perguntas que façam sentido para ele, é algo cultural. Ele não tem mo-tivos para confiar em alguém – aliás, só tem razões para desconfiar”.

Larissa conta o caso de uma migrante que participou de entrevistas sob efeito de remédios. “Há pessoas que passam por tratamento médico e psiquiátrico. Temos parceria com o Hospital das Clínicas e com o Laboratório de Psiquiatria da Universidade de São Paulo em alguns projetos. Nesse caso, a jovem saiu de um atendimento e concedeu uma entrevista. É claro que sua narrativa não fazia sentido. Ela estava dopada. Estamos reivindicando que ela faça as entrevistas novamente”.

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veNdo com oS PróPrioS olhoS: oNgS e abrigoS

Cerca de quinze novas pessoas chegam à sede da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo diariamente. Caso a caso, os funcionários da organização analisam e estudam para definir a melhor maneira de ajudar essas pessoas. Aqueles que se encontram em pior estado, sem família, conhecidos, dinheiro ou moradia, são encaminhados ao único centro de acolhimento disponível na cidade, localizado a algumas quadras de distância, próximo à Estação Liberdade do metrô.

A rua Almirante Maurity fica em uma parte afastada do bairro da Liberdade. Em suas mediações, as construções foram alvo de vandalis-mos; as esquinas, tomadas por lixo; as calçadas, por moradores de rua. Caminhar até ali poderia provocar, em algumas pessoas, sensação de perigo e medo. A casa de número 70 nada se parece com uma residência familiar, mas com algum tipo de pensionato, colégio antigo, podendo ser confundida inclusive com antigas instalações de alguma fábrica. Não há, na fachada, qualquer inscrição ou indício anunciando que ali se encontra a Casa do Migrante, que aquele é um lugar de abrigo, de atendimento e acolhimento de pessoas.

Homogeneamente coberta por uma tinta em tom palha, não há campainha ou interfone. A porta de entrada, que passa despercebida, camuflada com a mesma cor da parede, não possui maçaneta, parece mais saída dos fundos. Para avisar a chegada, o visitante precisa bater com a dobra dos dedos na superfície metálica da porta e esperar por uma resposta. Do lado de dentro, então, alguém puxa uma grossa e reforçada tranca, espécie de alavanca manual. Nada de chaves ou fechadura, apenas a tranca.

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A primeira impressão ao entrar na casa é completamente diferente do imaginado pelo lado de fora. Em grandes letras de forma, a inscrição finalmente aparece alta e clara: “Seja bem vindo a Casa do Migrante”. À direita, um pequeno balcão desempenha a função de recepção. Acima dele, o mural pregado à parede traz um adesivo que diz: “Dê mais que esmola, dê futuro”. Logo atrás, é possível ver uma sala mobiliada com computador, televisão, cadeiras de espera, uma estante, um crucifixo na parede e a imagem de Nossa Senhora junto a uma bíblia apoiada em um grande suporte de livros.

O primeiro cômodo, no entanto, é um corredor que dá acesso a todo o restante da casa. Se o visitante não é um refugiado ou migrante, antes de entrar, precisa ser liberado pela assistente social e coordena-dora do local, que está sempre muito ocupada conversando e tentando resolver dúvidas e dificuldades daqueles que ali residem. Três quadros com imagens de pessoas em processo de migração – enfileiradas, carre-gando sacolas de roupas e outros pertences nas mãos – estão dispostos na parede esquerda deste primeiro ambiente. A do lado direito divide espaço com um retrato do padre João Batista Scalabrini, um banco no estilo praça, a porta de acesso à sala do computador e outra para um cômodo parecido com um depósito: sem luz, fechado e pequeno. No canto, quina de encontro das paredes, a figura de Jesus Cristo aparece novamente, em tamanho considerável, trabalhada no gesso.

O entra e sai é constante. Durante um intervalo de trinta minu-tos, quatro refugiados e um funcionário batem na porta de metal com a dobra de seus dedos, forçando o homem que estava no papel de recepcionista a sair do seu lugar e abrir a dura tranca. Dentre esses quatro, um era novo, recém-chegado ao Brasil, vindo da República Democráti-ca do Congo. Não falava português, arranhava pouco do inglês, mas

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entendeu que deveria sentar e esperar a assistente social para atendê-lo. A cada morador que voltava, a estagiária do local perguntava: “Você fala francês? Pode me ajudar numa tradução?”. Um deles aceitou e foi falar com o tal homem, cerca de 50 anos, negro, congolês, que aguardava pacientemente pela assistente. Os dois refugiados conversaram por um tempo, então o já morador respondeu à estagiária: “Ele não falar francês, língua do Congo”, e seguiu adiante.

O corredor inicial vai em direção a um bonito e arejado jardim de inverno situado no centro da construção. Espaçoso, cercado por pórti-cos (arcos sustentados por colunas) e bancos, era ocupado por alguns dos residentes que liam jornal – os mais velhos – ou escutavam música dividindo fones de ouvido, no caso dos mais jovens. Ao redor do jardim ficam todos os outros aposentos. Uma sala de jogos para as crianças conta com uma mesa de sinuca, outra de pebolim e um crucifixo pen-durado na parede. A sala de TV é equipada com dezenas de cadeiras de plástico brancas, na qual uma menininha boliviana assistia a Sessão da Tarde em um aparelho de, no máximo, 50” (cinquenta polegadas), instalado no alto de um armário e ligado durante todo o dia. Mais uma vez, há a imagem de Jesus Cristo na cruz em uma das paredes.

Um cômodo é reservado para guardar os pertences dos migrantes. Cada um ganha uma divisão com chave de um dos três grandes armários de metal, normalmente usados por alunos em escolas de ensino médio.

Passando para o outro lado do jardim, à direita, a porta que diz “Rouparia” contém montes de roupas doados para as paróquias e, depois, encaminhados para a casa. A estagiária revela que muitos dos que chegam possuem somente a roupa do corpo em estado lamentável, por isso a necessidade desse espaço.

Sobre pisos acinzentados fica o refeitório, no qual mesas brancas

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de plástico estão posicionadas uma atrás da outra de tal forma que se transformam em três únicas e compridas peças, fazendo com que os moradores também se posicionem um ao lado do outro, participando juntos das refeições. Ali ao lado está a cozinha. Limpa e bem equipa-da com eletrodomésticos e outros utensílios de alumínio que brilham recém-areados, a cozinha é dirigida por duas gordas mulheres entre 30 e 40 anos que usam vestidos longos e soltos, sem aventais, apenas uma rede nos cabelos como uniforme. Elas dispõem de mais duas voluntárias quando necessário. Preparam três refeições diárias. O café da manhã é servido às 9h; em seguida, os moradores são instruídos a deixar a casa. Somente em casos pontuais os residentes são liberados a permanecer, entre eles mulheres grávidas ou com crianças pequenas que ainda não podem frequentar escola, pessoas doentes ou muito idosas. Para estes, é servido também o almoço. Os outros deixam a casa até as 16h, horário em que o regresso é permitido. À noite, às 20h, retornam todos ao refeitório para o jantar.

Apesar da política de acolhimento, esta é uma medida necessária para manter a ordem da casa. Sempre lotada em sua capacidade máxima de 110 pessoas, a maioria de seus funcionários são voluntários e, portanto, poucos. Não há um número suficiente capaz de vigiar e entreter, caso permanecessem todos em período integral. Outro fator é que, dessa forma, os migrantes são obrigados a circular, procurar em-prego, interagir, aprender a língua local, construir um cotidiano neste novo país que escolheram.

Quando saem, deixam na recepção a chave de seus quartos e armários que o recepcionista guarda como em um hotel, em um suporte pregado à parede parecido com uma caixa de energia. Os quartos ficam no andar de cima, separados por alas: masculina e

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feminina. Os dois gêneros jamais se misturam nos aposentos. Visitar as instalações não é permitido aos visitantes. Todo o andar de cima, aliás, tem entrada vetada a quem não mora neste centro de acolhimento. Contudo, é no piso térreo que se localiza a maioria dos ambientes da casa. A construção em si assemelha-se muito a um colégio de freiras, bem arejada, com teto alto, pintada uniformemente com a mesma cor palha, sem infiltrações, trechos descascados, manchas ou descuidos em sua estrutura. A manutenção da casa é feita pelos próprios moradores. Em um esquema de revezamento, eles lavam louça, cozinha, banheiros, varrem o chão, os dormitórios. Apenas as roupas ficam ao encargo de cada um.

Ao final do primeiro e principal corredor, do lado direito, uma porta leva até um espaço chamado de “Solarium”. Uma agradável área aberta, com extensões de grama, árvores, flores e bancos. Verdadeiro jardim. É ali também que permanece o tanque e o varal para que cada um dos residentes lave e seque suas vestimentas. O espaço faz divisa com o fundo do pátio de uma igreja, o que permite uma ampla visão da rua e seu entorno, sem prédios ou outros edifícios que pudessem bloquear a paisagem. Um casal de origem iraniana estava conversando e apreciando o pôr do sol, enquanto outros até deitavam sobre a grama e ficavam ali, admirando o céu. Mal se levantavam, a estagiária os chamava para cumprimentar. Às 22h, a casa fecha. A esta altura, os visitantes já saíram e os moradores todos já entraram.

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A Casa do Migrante, porém, não é a única a oferecer ajuda. Algumas instituições de iniciativa privada também atuam no auxilio à

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integração dos refugiados e imigrantes na busca por emprego e ensino do idioma. Na capital paulista, o Adus - Instituto de Reintegração do Refugiado - foi criado há quatro anos e já orientou cerca de 400 pessoas. São realizados encontros trimestrais com os voluntários para definir o plano de ação. Em um deles, realizado no dia 30 de março, enfermeiras e psicólogas também compareceram.

Era sábado de manhã. Chegando ao endereço combinado, uma simples residência, cerca de vinte pessoas se reuniam em frente ao local. A casa estava fechada, mas elas aguardavam, pacientemente, o início da reunião, marcada para as 9 horas. Eram, além dos próprios voluntários, alunos de Jornalismo e Relações Internacionais. Após um tempo de espera, aproximaram-se quatro carros que estacionaram na pacata Rua Rodésia, 398, na Vila Madalena, em São Paulo. De cada automóvel, desembarcaram cinco pessoas: dois voluntários e três imigrantes recém-chegados ao Brasil. Tal dedução era possível porque antes do encontro, durante a troca de e-mails, ficou combinado que os voluntários que possuem carro encontrariam os refugiados na estação de metrô Sé, linha vermelha, a mais movimentada da capital paulista, e os levariam até a sede do ADUS - Instituto de Reintegração do Refugiado.

São pessoas negras, em sua maioria, e de aparência cansada. Miram os presentes com um olhar desconfiado e, ao mesmo tempo, triste. Estão quietos, introvertidos, não conversam entre si. Por suposição, devem ter poucas palavras e muitas ideias, diria incertezas, na cabeça. Vestem roupas usadas, doadas pelos próprios voluntários ou pela Casa do Migrante, seu novo lar desde a chegada ao Brasil. Alguns, homens feitos, de 25 a 40 anos, guardam seus pertences, papéis ou documentos em mau estado, em mochilas infantis, coloridas e de personagens como o Mickey, o famoso ratinho do Walt Disney World. Ao se depararem

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com os presentes, murmuram um “bom dia”, com sotaque diferente.O Instituto abre as portas e todos entram. Uma das paredes,

pintadas de branco, possui um mapa e o símbolo do ADUS: várias es-trelas sobrepostas nas cores laranja, amarelo e roxo. Na sala, cadeiras de lata bem próximas umas das outras, dispostas em um pequeno espaço, abrigam os participantes, que são convidados a se acomodar depois de depositar roupas, mantimentos e itens de higiene pessoal para doação no canto direito da sala. Logo ao lado se encontra a cozinha, na qual os voluntários montam uma mesa de café da manhã com itens que eles mesmos trouxeram: pão, rosca, tortas, pão de queijo, leite, caixas de suco industrializado e bolos enfeitam o balcão americano que serve de mesa improvisada.

Dentre os 30 ou 40 solicitantes de refúgio ali presentes, somente quatro não são negros. Três são colombianos e Claudio, o mais simpático e falante de todos, é equatoriano. Os outros vieram de países como Haiti, República Democrática do Congo, Nigéria, Cabo Verde, Costa do Marfim e Angola. Eles são de diferentes nacionalidades, mas possuem algo em comum: chegaram ao Brasil há, no máximo, duas semanas e trilharam uma longa caminhada para iniciar uma nova vida. Todos homens, não há sequer uma mulher imigrante presente no encontro.

A reunião tem início com as boas-vindas do diretor executivo Marcelo Haydu, que agradece a presença e o interesse dos partici-pantes. Ele explica por que criou o ADUS e quais ações a organização realiza: por meio dos seus programas, busca auxiliar os refugiados no processo de integração no Brasil e inserção no mercado de trabalho, ensino de português, acompanhamento médico e orientação quanto ao processo de regularização e documentação junto à Polícia Federal.

Com o modesto orçamento de setecentos reais mensais, a

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organização é mantida com as doações que recebe e cerca de cinquenta voluntários se revezam para atender as demandas dos refugiados e solicitantes de refúgio, no total, 400 indivíduos. São aproximadamente 900 vivendo só na capital paulista.

Marcelo conta que a motivação para o trabalho de auxílio aos refugiados veio de um exemplo pessoal. O avô de Marcelo, o sérvio Stejyphan Haydu, veio para o Brasil na década de 40, fugindo dos con-flitos da extinta Iugoslávia. “Ele se escondeu no porão de um navio que tinha o Brasil como destino e enfrentou dificuldades aqui. Cresci ouvindo o meu pai contar as histórias do pai dele. Imagine o que é chegar em um país onde você não fala a língua e começar tudo do zero”, conta.

As pessoas que se prontificam a ajudar o ADUS passam por um curso de formação sobre refúgio, ministrado por professores ou profissionais especialistas no tema. Depois disso, são divididas em grupos de acordo com o idioma que dominam – inglês, espanhol ou francês – e passam a integrar a equipe do “Programa Visita Amiga”. Cada dupla ou trio de voluntários fica responsável por visitar uma família ou indivíduo com o objetivo de identificar suas necessidades e como está sendo o processo de adaptação, ou seja, a vida no país.

Além disso, com o auxílio de profissionais voluntários, são ministra-dos cursos e oficinas de qualificação profissional. O denominado “Pro-grama de Trabalho e Renda” reúne profissionais da área de Recursos Humanos que auxiliam os imigrantes na elaboração de currículos em português e compreende, também, a realização de oficinas em parceria com empresas que oferecem vagas de emprego a refugiados.

Dentre as atividades realizadas pelo ADUS, há também o “Programa Facilitador Social”, que recruta voluntários para acompanhar os solicitantes de refúgio na Polícia Federal e nas consultas médicas,

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atividades que demandam o domínio do idioma português. A parceria mais recente do ADUS foi feita com o SESC Itaquera, oferecendo ativi-dades voltadas às áreas de lazer, recreação, esporte e cultura.

Durante o encontro, realizado periodicamente, um refugiado haitiano faz o papel de intérprete para os falantes do idioma francês. Eles são oriundos de nações do continente africano, como República Democrática do Congo, Burkina Faso, Guiné, Costa do Marfim, Mali, Ruanda, Senegal, Togo, Burundi e Camarões, além da República do Haiti, país de origem do próprio intérprete, localizado no mar do Caribe.

Barí, que está no Brasil há quatro anos, domina o português, idioma que fala devagar e pausadamente. Após cada frase proferida pelo diretor executivo e pelo tesoureiro Victor Mellão, ele repete pau-sadamente em francês para seus colegas de idioma. Sua voz é forte e grave. O imigrante, um negro forte de estatura mediana e dono de uma careca que reluz ao sol da manhã, é calmo, educado e tem uma postura séria. “Barí é nosso amigo e, assim como muitos outros, veio para o Brasil em busca de melhores condições de vida”, explica Marcelo.

Paralelamente ao encontro, enquanto alguns tiram suas dúvidas, duas enfermeiras da Cruz Vermelha de São Paulo atendem os refugiados em um balcão de madeira que vira uma espécie de consultório médi-co. Um por um, eles se sentam numa cadeira e, com o auxílio de um voluntário falante de sua língua, aferem a pressão, respondem perguntas sobre o seu histórico familiar e antecedentes médicos e, por fim, realizam exame de vista e recebem uma picadinha no dedo para coletar sangue.

O primeiro deles, o haitiano Ramil Malivert, usava um boné ver-melho e uma camiseta branca desgastada, desproporcional ao seu tamanho. Os sinais e as marcas deixadas pelo tempo nas mãos de uma pessoa revelam muito sobre a sua trajetória: as mãos de Ravil eram secas, com

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aparência áspera. Os olhos, amarelados e úmidos, miravam o horizonte numa imensidão de vazio.

O singelo e humilde homem não enxerga bem com o olho esquerdo e se queixa de “mal à l’aise”. “Significa que ele não está se sentindo bem, está com mal-estar”, explica uma das voluntárias à enfermeira Flávia Barcellos, que, apesar de não dominar a língua francesa, fala muito bem o espanhol.

Ramil decidiu vir para o Brasil após o terremoto que assolou o Haiti. Em Porto Príncipe, trabalhava na construção civil, atividade que pretende retomar aqui. “Em meu país, gostava, principalmente, da fase do acabamento. Sei muito bem trabalhar com gesso”, conta ele.

O atendimento médico, viabilizado em parceria com a Cruz Ver-melha, é necessário para que os recém-chegados tenham acesso ao SUS (Sistema Único de Saúde) por meio da emissão de um cartão. Para isso, as enfermeiras colhem os seguintes dados: idade, nome, país de origem e informações médicas como pressão, diabetes, triglicérides, doenças cardiovasculares e outras como malária.

O segundo a ser examinado é o simpático equatoriano Claudio Solano, de 34 anos. Baixo, de cabelos lisos e dono de grandes olhos castanhos, apesar de magro e pálido, está bem de saúde. O único sinto-ma do qual reclama é a solidão e a saudade da família. “A situação que vivemos aqui é angustiante”, revela.

“Vocês têm lugar garantido no céu”, diz ele às enfermeiras e à voluntária, uma estudante de jornalismo. Ele revela que fugiu do Equador porque era perseguido pelas FARC – Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, facção que possui um braço de atuação no país de Claudio – e que pretende trazer a esposa e a filha de 3 anos para o Brasil assim que tiver condições.

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Nem todos são falantes e demonstram gratidão como o equa-toriano. Os imigrantes que vieram de países africanos são mais quietos, quase não falam ou esboçam reação, é preciso perguntar mais de uma vez e incitá-los a falar. Praticamente todos chegaram ao Brasil em situação precária: em função da viagem longa e cansativa, sentem dores no cor-po, sensação de frio e calor, febre e mal-estar físico, sintomas frequente-mente relatados às enfermeiras. “Isso é reflexo do estresse enfrentado e da situação angustiante”, argumenta Christiane Cássia, uma delas.

Após passarem pelas enfermeiras, eles têm a opção de conversar com duas psicólogas, que improvisaram um centro de atendimento no quintal da casa, perfeitamente limpa e bem cuidada, usada como sede do Instituto de Reintegração do Refugiado. No jardim, de terra e chão batido, com três árvores recentemente podadas e um depósito no fundo, as psicólogas, voluntárias da FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas), reúnem-se com os refugiados em mesas de plástico.

Um dos primeiros a ser atendido é Matthews, um congolês de 33 anos, introspectivo, de poucas palavras e emburrado. “Precisarei de um dentista em breve”, diz ele. “Podemos agendar uma consulta para você na próxima semana”, responde uma das voluntárias. Após insistir muito, ela conseguiu tirar a informação de que o pai de Matthews, por fazer parte do partido de oposição ao governo vigente, foi assassinado e que seu irmão está desaparecido. Ele, por sua vez, foi espancado e teve alguns dos dentes molares quebrados.

“Eu posso te ajudar contando a sua história”, diz a voluntária. “Você não pode me ajudar, ninguém pode. É muito maior do que você imagina. A questão é política”, esbraveja ele, em resposta.

Matthews acredita que, para o seu caso, não há sequer uma ponta de esperança. Desacreditado do futuro, revela que queria ter ido para

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qualquer país da Europa, não para o Brasil. “Na Itália ou na França, mas a entrada nesses países está mais difícil”, diz ele. “Não sei onde está meu irmão, mas tenho falado com minha mãe por e-mail. Quero trazê-la para cá”.

Durante o encontro, demandas e inquietudes dos refugiados ainda foram ouvidas. As principais dificuldades debatidas foram sobre o prazo para regularização da documentação e as dificuldades do processo. A incompatibilidade entre o tempo de emissão da documentação e os prazos das casas de acolhimento também foram criticados, sobretudo porque, muitas vezes, ao saírem do acolhimento, ainda não conseguiram se inserir no mercado de trabalho e ter renda própria.

Em uma primeira fase, o idioma é o principal obstáculo enfrentado pela ONG. Enquanto os migrantes não aprendem português, nem sempre os voluntários conseguem ajudá-los na inserção à sociedade brasileira. Não conseguem ir sozinhos a consultas médicas, acompanhar o processo de documentação na polícia federal ou procurar emprego. Como solução, o Adus entrou em contato com a escola de idiomas Skill e firmou uma parceria para oferecer gratuitamente um curso básico de português para estrangeiros. Três professores se voluntariaram para revezar com as aulas que aconteceram aos finais de semana por mais de um mês. Todo o material foi doado pela Skill, que forneceu, ainda, certificados personalizados para a realização de uma cerimônia.

Voluntários, professores e alunos se encontraram mais uma vez na Rua Rodésia, 398. Um banquete foi montado com os alimentos tra-zidos por cada um. Todos os migrantes comeram e beberam e, então, sentaram-se à espera da entrega dos certificados.

Uma felicidade pairava no ar. Uma energia contagiante em que todos possuíam algo a comemorar. Uma vitória, uma conquista. Talvez sem importância para outras pessoas, mas que, para aqueles presentes,

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significava muito. Foram dezenas de horas dedicadas exclusivamente ao ensinamento do nosso idioma. Os professores voluntários precisaram ter paciência, repetir várias vezes a mesma coisa até que finalmente to-dos tivessem aprendido. E alguns foram indisciplinados, conversavam ou não prestavam atenção, embora soubessem que necessitavam daquele conhecimento para seguir a vida.

Após semanas de estudo, concluíram com êxito o módulo básico. Alguns melhores que outros, mas todos agora sabiam como se comu-nicar no novo idioma. E tamanho sacrifício exigia uma comemoração.

Frente às dezenas de cadeiras de lata na sala principal, Marcelo estava de pé ao lado dos professores, como em uma verdadeira formatura. Tomava um certificado por vez na mão e lia o nome do formando em voz alta. O aluno mencionado se levantava para ir buscar o papel. Dava um abraço em cada um e posava para foto, enquanto os colegas o aplaudiam calorosamente. O som dos assobios, das risadas e das pala-vras de parabenização preenchia o ambiente. Em uma turma composta majoritariamente por homens, eram comuns piadas e brincadeiras.

Quando o aluno chamado era haitiano, por exemplo, ouviam-se imitações de espirros por todo o recinto, mas com o tradicional “atchim” substituído pela palavra “Haiti”. E, na vez dos congoleses, a agitação era tão grande que, em determinados momentos, começavam em uníssono uma animada canção em sua língua materna. Com suas vozes graves entoavam: “Ele é filho do Congo! Ele é vitorioso!”. Encerravam com gargalhadas e batendo palmas. Mas bastava outro colega levantar e se dirigir à frente para a turma começar tudo de novo.

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Aos que ingressam, há sempre vários desafios a serem enfren-tados para recuperarem suas vidas. As mulheres, contudo, são um alvo mais vulnerável nesse processo. Vítimas maiores de preconceito e discriminação, sofrem com a ausência de documentação necessária e as consequentes ofertas de trabalho indigno. Algumas vezes na companhia dos filhos, sentem-se inseguras e sozinhas, carentes de um apoio exclu-sivo para elas, que, além de cuidarem das crianças, precisam trabalhar.

Na zona leste de São Paulo, em uma região pacata e provinciana do tradicional bairro da Penha, uma travessa da Avenida Governador Carvalho Pinto, a Rua Doutor Eneas de Barros, esconde um espaço de caridade e dedicação voltado a essas estrangeiras. O número 147 da rua é o novo endereço do Centro de Acolhida Nossa Senhora Aparecida, conhecido como “Casa das Mulheres”.

Antes localizada em um casarão antigo na Liberdade, desde junho, a entidade social foi transferida para as antigas dependências de um hotel. Mantida pela Congregação das Irmãs Palotinas, organização atuante na áreas educacional, social e pastoral, oferece abrigo para refugiadas e seus filhos e estrangeiras egressas do sistema penitenciário. Com ca-pacidade para 60 pessoas, atualmente acolhe apenas 18 em função da mudança; dentre elas, apenas uma criança.

A recepção do local ainda possui características do ramo hoteleiro: logo na entrada, uma recepção com atendente e um balcão de madeira envernizado. O espaço conta, também, com duas poltronas de estampa floral dispostas ao lado de um sofá que acomoda duas pessoas. Acima da parede, do lado direito, um quadro com a inscrição “Apelo ao Povo”, do Padre São Vicente Palotti, que viveu em Roma até 1850 e fundou a Congre-gação das Irmãs Palotinas. Do lado esquerdo, um belo vaso de flores natu-rais sobre uma estante de madeira e um espelho com moldura dourada.

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Marisa Andrade, diretora do Centro de Acolhida, foi quem nos recebeu para a visita em uma sexta-feira. Magra, de baixa estatura e cabelos encaracolados cortados ao estilo “joãozinho”, vestia uma saia na altura dos joelhos e uma camisa branca, o que a tornava ainda mais séria. Pacientemente, explicou o funcionamento da casa. Durante a con-versa, uma das moradoras – negra, esguia e de cabelos longos, vestindo um curto short jeans e uma camiseta branca – passava pano no chão e um agradável cheiro de lavanda pairou no ar.

“Bom dia”, dissemos. A moça nos respondeu com um discreto e tímido cumprimento murmurado com sotaque.

Enquanto a migrante limpava o ambiente, duas moradoras – uma de origem holandesa e outra húngara, ambas presas no Brasil por tráfico de droga – cruzaram o salão descalças, com os sapatos nas mãos, para não sujar o local.

“Como é o convívio entre as moradoras?”, aproveitamos a cena para perguntar. “Elas se respeitam e não há distinção entre refugiadas e egressas. Elas convivem numa boa. Mesmo porque trabalhamos com pessoas, não com estigmas e estereótipos. Além do mais, nossas regras inibem comportamentos agressivos e isso nem é do perfil delas. Não há tolerância para discussão e brigas. Se isso acontecer, a pessoa é desligada do projeto”.

É visível que o local prima pela perfeição na limpeza. O chão brilha, não há sequer um fio de cabelo ou objeto que não esteja em perfeito estado. Marisa explica que há funcionárias contratadas para trabalhar na limpeza e na cozinha, mas todas as moradoras são responsáveis pelo próprio quarto e, três vezes por semana, precisam auxiliar nas tarefas domésticas: limpeza das áreas externas e preparo do alimento.

Em um cantinho escondido, logo atrás do sofá, há um telefone e

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um quadro de anotações. Lá, consta um papel escrito à mão com os nomes das moradoras escaladas para auxiliar nas atividades da Casa durante aquela semana. Pelo que vimos, Dina será a responsável pela cozinha às segundas, quartas e sextas; e Marty, uma simpática congolesa, assumirá as áreas comuns às terças, quintas e sábados durante o mesmo período.

Em relação ao projeto, Marisa explica que é uma realidade dife- rente, pois as mulheres, principalmente as com filhos, têm necessidades específicas. “Nosso trabalho é específico para as mulheres. Para elas, a situação é ainda mais difícil. A assistência oferecida é menor. Não há muitos abrigos em São Paulo e os que temos operam com lotação máxima, sem qualquer tipo de conforto”.

Além disso, a diretora explica que, quanto maior a especificidade (mulher, negra, com filho, não domina o português), mais os serviços se tornam reduzidos. Atualmente, há apenas uma criança na Casa. “Geral-mente, as mulheres têm que fugir com os menores e os filhos mais velhos ficam com algum parente ou não conseguem deixar o país. 90% das mulheres que chegam ao Brasil com os filhos estão desacompanhadas, sem o marido ou companheiro”.

Paulinho, de 3 anos, nasceu no Congo e chegou ao Brasil com a mãe, Sandrine, e com a tia, Urcilis. “Geralmente, colocamos a família em um cômodo e distribuímos três moradoras por quarto, sem dis-tinção entre estrangeiras egressas e refugiadas. A mudança para o hotel nos trouxe mais conforto, pois agora todos os quartos têm banheiro próprio”.

Enquanto estávamos na Casa, o pequeno garoto, alegre e brincalhão, apareceu na sala, na qual brincava subindo nos móveis. Sua mãe – negra alta e com porte físico de matrona italiana – resmungou algo em um

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dialeto congolês, pedindo para o menino parar com a brincadeira. O garoto logo se aquietou.

Aparentemente vaidosa – perfumada, maquiada e usando um longo vestido roxo e os cabelos penteados na altura dos ombros –, Sandrine saiu à procura de emprego. Marisa explicou que, apesar de estar estudando, a migrante não tem domínio do português. “Isso é comum aqui. Geralmente as congolesas (em maior número no projeto) falam o francês ou o dialeto de sua província. As que estão aqui há mais tempo fazem a mediação”.

Uma das regras da casa é respeitar os horários. As moradoras que trabalham deixam a casa entre 05h30 e 07h. Há também as que chegam nesse mesmo período, já que estudam à noite ou trabalham em restaurantes ou fábricas.

“As moradoras têm sua vida pessoal? Elas namoram?”“A moradora tem total liberdade na vida pessoal, desde que

chegue aqui até às 21h. Temos que seguir as regras com seriedade, só abrimos exceção com justificativa. Se não estava trabalhando ou estu-dando, não entra depois do horário estipulado. Somente em caso de estudo ou trabalho comprovado. Precisam trazer a declaração”.

Marisa nos apresentou os cômodos da instituição. Após a porta da recepção, um extenso corredor leva até os quartos, numerados como em um hotel. As portas de madeira levam o número e o logotipo do Centro de Acolhida, três estrelas azuis e os dizeres “Associação Palotina: a Caridade de Cristo nos impulsiona”. Chegamos ao refeitório. O grande salão com paredes e azulejos brancos comporta três mesas no estilo balcão e área de cozinha ao fundo, com três geladeiras e dois fogões. Assim que adentramos o local, uma mulher com cerca de 30 anos, vazios olhos azuis e cabelos loiros escondidos por uma touca branca,

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beija e abraça Marisa com entusiasmo. A diretora, sem jeito, a apresenta. Agnes é da África do Sul e saiu da prisão há quatro anos, quando foi presa por tráfico de entorpecentes.

“Olá, muito prazer”, diz, bem humorada e com um forte aperto de mão. Ela é quem toma conta da cozinha naquele dia, auxiliando a cozinheira a preparar o prato do dia: comida brasileira. Arroz, feijão e carne serão servidos às 12h30. Algumas vezes por semana, as mora-doras preparam os pratos típicos de seus países. As congolesas, por exemplo, gostam do “fou-fou”, espécie de polenta cujos ingredientes são farinha de mandioca, água e carne.

“Não é algo muito nutritivo, mas elas adoram. No Congo, eles comem com a mão, o que não é muito higiênico”.

Além dos traumas causados pela viagem, muitas chegam com in-flamações, patologias de pele e doenças do útero. “A falta de higiene pessoal como o simples ato de não lavar as mãos antes das refeições contribui para isso e alguns países do continente africano não têm sistema de saneamento básico adequado”.

Para os tratamentos médicos e psicológicos, o Centro de Acolhi-da conta com o apoio de voluntários e doações. O projeto também oferece cursos profissionalizantes e atividades como oficinas de pintura e costura – até novembro, estavam suspensos devido à mudança. Para isso, a Casa dispõe de uma sala de costura e pintura na parte externa.

“Há uma carência no mercado e é uma forma que encontramos de inseri-las. Nosso objetivo é motivá-las ainda mais para que elas con-tinuem se capacitando”. E ainda auxilia as moradoras na elaboração de currículos e indica locais para cursos e treinamentos.

O tempo de permanência no projeto é de um ano e, durante esse período, elas precisam se profissionalizar para conseguir renda própria.

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Grande parte das ex-moradoras mora na região de Artur Alvim, também na Penha.

“Você as vê com frequência?”“O tempo delas é escasso e a maioria só tem o domingo livre, dia

em que vão para a Igreja (a questão da religião é muito forte na vida das africanas, principalmente). De vez em quando elas aparecem para jantar e se reunir com as amigas, mas é algo esporádico”.

“Sente saudade delas?”Com um sorriso tímido e relutante, balançou a cabeça como

quem consente. No final da entrevista, mais maleável, levou-nos para conhecer um dos quartos. A diretora explica que todos têm o mesmo padrão: paredes e azulejos brancos e três beliches de madeira, além de uma cômoda. O quarto que visitamos não estava sendo utilizado (para manter a privacidade das moradoras, não pudemos visitar seus aposentos).

Enquanto estávamos no quarto, de forma discreta, Marisa sugeriu que encerrássemos a visita. Duas assistentes sociais a aguardavam no mesmo local onde iniciamos a entrevista.

lucia eSPiNozacarla PiNto

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Sentada com as costas curvadas e os olhos sérios, a imigrante Lucia Espinoza Carla Pinto, boliviana que beira os 30 anos, ajeita-se na cadeira e respira fundo antes de começar a falar. Veste uma blusa sim-ples de malha cinza com manga três quartos em decote V e uma calça jeans larga, com a barra levemente arrastando no chão. Afaga, ainda, os cabelos do pequeno filho Diego. Com os negros fios lisos cortados em formato de cuia, o menino de uns 6 anos senta ao lado da mãe com um sorriso tímido e inocente e grandes olhos negros brilhantes. Balançando a cabeça, tenta se livrar dos carinhos maternais. Os dois rostos, apesar de semelhantes em fisionomia, possuem um nítido contraste quanto ao semblante: um, repleto de ingenuidade e pureza; o outro, marcado pelo cansaço e sofrimento.

Ao contar sua história, a descendente de índios, pele morena, cabelos negros e lisos, presos num longo rabo de cavalo, carrega na voz o forte sotaque proveniente da língua de sua terra, o castelhano. O vocabulário misto, apelidado por muitos de “portunhol”, atrapalha a comunicação, mas sua fala é rápida, em tom firme.

Nascida em La Paz, capital da Bolívia, Lucia e seus cinco irmãos foram criados somente pela mãe em condições muito humildes. Seu deslocamento para o Brasil, diferentemente dos refugiados que são perseguidos ou migram por motivos de guerra, foi devido à dificuldade financeira que enfrentava em seu país. Com um histórico de migração comum dentro do círculo familiar, os bolivianos normalmente possuem algum parente ou membro da comunidade que reside no exterior. Como defende a autora e socióloga Elisa Saldías: “Muitos acreditam no paradigma que, ao viajarem, estão fazendo um bem, trabalham e obtêm recursos financeiros próprios, podendo ser inseridos em me- lhores condições na sociedade ao retornarem. Para muitos bolivianos, é

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melhor migrar do que viver na Bolívia, pois eles conseguem aumentar a renda, melhorar a educação dos filhos e investir na saúde”.

Com Lucia não foi diferente. “Meu problema começou quando quis ajudar”, lamenta a boliviana. Num ato de solidariedade, foi fiadora de uma antiga amiga que queria alugar uma casa. Depois de alguns meses, porém, procuraram-na para informar que a casa estava vazia e o aluguel, atrasado havia meses. Ela, como fiadora, seria obrigada a pagar. Surpresa e assustada, procurou a amiga atrás de alguma explicação, mas nunca a encontrou. A dívida tirava seu sono durante a noite e alimentava o desejo de ir embora.

Para seu marido, Miguel, o momento também não era dos me- lhores. Desde 2003, a Bolívia sofre com conflitos entre o governo e a oposição em relação à produção de gás natural nacional. Com a eleição do atual presidente, Evo Morales, em 2006, a esperança era de que fosse instaurada novamente a paz e a estabilidade política. Entretanto, logo após assumir a presidência, uma das primeiras medidas de Morales foi iniciar o processo de nacionalização dos hidrocarbonetos no país. Tal medida gerou imensas insatisfações entre mineiros e empresas privadas, criando um novo ciclo de violência e crise política.

A situação ainda provocou o fechamento de diversas coopera-tivas no setor de minérios, deixando centenas de desempregados sem rumo. Miguel foi um deles. Alto, pele bem morena, sua postura e seus músculos revelam a vida inteira de trabalho braçal. Desde pequeno acompanhando o pai no trabalho, a decisão de seguir pela mesma profissão foi natural. E, quando iniciaram os processos de nacionalização, o minerador ficou ao lado dos operários, participando das greves e manifestações, mesmo contra a vontade da esposa. Lucia insistia para que ele tomasse cuidado, não se envolvesse nas brigas e, principalmente,

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não perdesse o emprego. Seu salário custeava a maior parte dos gastos com o filho, a sogra, os dois cunhados, e pagava o aluguel da casa. A demissão provocou um grande desespero na família.

Na tentativa de suprir a renda do marido, Lucia arrumou emprego em uma carpintaria, mas a inflação e a alta dos preços, que assolavam o país na época, não permitiam comprar nem comida suficiente. O aluguel da casa acumulou tantas parcelas que o proprietário ameaçou tomar a propriedade. “Eu vim para o Brasil com a ilusão de trabalhar”, relembra com os olhos desiludidos. “Falavam que São Paulo era muito melhor, que tinha muitas coisas, muito dinheiro para poder levar para a Bolívia”. Seus dois irmãos permaneceram com a mãe – o caçula, de apenas 12 anos, e o do meio, que estava “mal da cabeça”, na própria definição da imigrante.

Na companhia do marido e do filho, Lucia chegou ao Brasil em fevereiro de 2011. “Eu queria um poquito de futuro aqui para poder voltar para a Bolívia”, diz em tom humilde e sincero. “Conseguir uma casa, um lugar para ficar com meus filhos, meus irmãos e minha mãe. Toda minha família”. E, emocionada, ressalva: “Eu nem tenho muita família. É só minha mãe e meus irmãos”.

As dificuldades começaram logo que entraram em território bra-sileiro: “Eu cheguei em 23 de fevereiro aqui, com muitos problemas”. A princípio, Lucia, o esposo e o filho se estabeleceram na fronteira entre Brasil e Bolívia, na cidade de Puerto Quijarro. Um lugar muito pobre e pequeno, Lucia sentiu ali um clima deserto, com poucas pessoas e carros circulando. As ruas, não asfaltadas em sua maioria, deixam um aspecto de lamaçal por toda a cidade e muitos criminosos transitam pela região, piorando a abordagem realizada pela polícia.

Não carregavam dinheiro e não conseguiam cruzar a fronteira

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por falta de documentos. Como não falavam português, era difícil en-tender o que precisavam fazer ou para onde deveriam ir. Estavam perdidos, sem saber se deveriam subornar alguém ou esperar que liberassem sua entrada. Ficaram nesse impasse por três dias até conseguirem atravessar. “Eu não achei que a gente fosse conseguir, mas deu certo”, rememora com um olhar de quem ainda parece surpresa. O acesso, porém, teve um alto preço e se tornou mais uma entre as dívidas que precisariam pagar.

O primeiro emprego do casal foi na área da construção civil. Conheceram uma mulher logo nos primeiros dias na capital paulista que lhes ofereceu o trabalho. Para morar, encontraram uma pensão simples no centro da cidade, na qual deixavam o filho ainda pequeno aos cuidados da senhora responsável pelo local. Permaneceram neste emprego por sete meses, período em que não conseguiram juntar nem o dinheiro necessário para pagar o custo da travessia. “Ela falou que pagava mui bien. Eu trabalhei em obras com meu marido no começo. Trabalhávamos à uma da manhã, duas da manhã... Trabalhava muito, muito! E, quando chegava o dia do pagamento, ela falava ‘não, Lucia, você ganhou somente 400 reais porque não fazia bem o serviço’”.

Os aspectos que trouxeram o casal de bolivianos para o Brasil foram econômicos, mas não somente. Além das necessidades básicas, como a alimentação, existe uma perspectiva de futuro em termos de patrimônio. Eles esperam que possa existir uma estabilidade econômica depois de um tempo. Por isso, estão decididos a trabalhar dezoito ou dezesseis horas nas condições mais adversas, como se sujeitou Lucia.

Miguel, no entanto, não suportava mais tamanha exploração e buscou outros bolivianos em situação semelhante que pudessem lhe ajudar. Eles disseram que podiam arrumar um emprego melhor para

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o casal, que conheciam pessoas influentes, que pagavam bem. Mais se-guros por estarem entre pessoas da mesma nacionalidade, que falavam a mesma língua e tinham os mesmos costumes, Lucia e seu marido sentiram-se confiantes outra vez. Acreditaram que poderiam morar melhor e ter mais dinheiro: “ ‘Porque aqui não dá certo’, dizia meu espo-so, ‘devemos 1.700 reais, se não pagarmos, nos tiram daqui’”.

Entre os bolivianos que conheceram, uma mulher lhes prometeu emprego e um lugar para viver em sua casa. “Eu pensei que dessa vez fosse dar certo”, desabafa, antecipando mais uma frustração. O em-prego era para trabalhar em uma oficina de costura, na qual Miguel passou por uma exploração ainda maior. Em condições realmente pre-cárias, fazia uma jornada de quinze horas por dia e ganhava em torno de R$ 1,50 por peça de roupa costurada. O local era pequeno e abafado, sem janelas ou corrente de ar. As instalações elétricas eram improvisa-das, com fios expostos e frequentes curtos-circuitos. A estrutura do lugar também parecia condenada, com rachaduras e infiltrações por toda parte. Miguel sofria com crises de tosse e constante falta de ar.

Já Lucia trabalhava de faxineira para a senhora dona da casa, em troca de moradia e para ficar ao lado do filho. Nos finais de semana, para ajudar o marido, ganhava um dinheiro extra lavando as roupas dos vizinhos e moradores da região. “Eu dizia ‘por favor, eu não tenho muito dinheiro, vocês podem me dar as suas roupas e eu vou lavar’”, relembra. “E eu lavava todo sábado, do meio dia até tarde, só lavava as roupas, até a noite”. No fim do dia, recebia algo em torno de quinze reais, quantia com a qual comprava frutas e outras “cositas mas”.

Passado um tempo, no entanto, a dona da casa começou a reclamar e repreender o excessivo consumo de água gasto na lavagem das roupas, dando início a uma série de discussões. O pequeno Diego também se

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tornou alvo de críticas, pois brigava diariamente com a outra criança da casa, provocando choros, gritarias e agressões. “Eu trabalhei muito ali, mas não deu certo porque tinha o outro menino da mesma idade” – e aponta para o filho, que continua sentado ao lado, dessa vez agarrado e escondido no braço da mãe. “Eles se batiam, os dois! Acontece que Duenio (pai do outro garotinho) pegou meu filho e arrastou ele para fora”, gesticula ilustrando a cena com as mãos, “tudo problema”. Foi o ápice para o marido de Lucia. Quando Miguel retornou à casa e soube do ocorrido, esbravejou e gritou “Você não é nada para bater em meu filho! Não tem o direito de bater nele!”, repete a boliviana imitando os gestos do esposo. “Vou embora agora porque não quero trabalhar com uma pessoa que bate no meu filho. Eu não vou deixar que ninguém mexa em meu filho”.

A família de imigrantes, então, deixou a casa. Sem rumo, buscavam um novo lugar para morar e melhores condições de trabalho. Estava a caminho, porém, uma surpresa que desequilibraria ainda mais a vida do casal: a gravidez de Lucia. No começo, a boliviana diz ter acreditado que isso não implicaria em grandes dificuldades, que conseguiria um emprego e superaria a fase ruim pela qual estavam passando. “ ‘Não importa, vai ser somente um bebê’, eu disse, ‘nós vamos conseguir tra-balhar, vai dar certo’”. Emocionada, seus olhos são tomados por lágri-mas e a voz, pelo tremor de um choro contido. “Todo o dinheiro que juntávamos, mesmo se reuníamos 100 dólares, trocávamos por dólares e mandávamos para a Bolívia. Mas não pagamos a dívida, nem a da Bolívia nem...”. Faz uma pausa para respirar e acrescenta: “Mas agora eu tenho Deus, aqui no Brasil”.

Aos seis meses de gravidez, Lucia já não podia mais trabalhar. “Me doía tudo, toda minha barriga, costelas, doía muito”, e acaricia o

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próprio ventre. O choro, antes reprimido, agora se rompe e sua voz se mistura cada vez mais com as lágrimas e a respiração descompassada. Neste período da gestação, seu esposo chorava muito e a questionava: “Por que você não se cuidou? Por que você se deixou engravidar?”. A boliviana, culpada e envergonhada, sem o apoio da família, relembra o desespero quando soube que não era apenas um, mas dois bebês que estavam a caminho.

Sem emprego e dinheiro, o casal batia de porta em porta em busca de trabalho e moradia. “Andávamos de um lado ao outro lado, de um lado ao outro lado, e não achávamos nada”. Logo que viam Lucia, perguntavam sobre a gravidez. “Me viam com a barriga grande e diziam ‘ah, você vai ter um filho?’, e eu dizia ‘não, são gêmeos, são dois’, e então me mandavam embora”. A lembrança da rejeição aflora como uma ferida recente ainda não cicatrizada. “Todos, todos me fechavam a porta. Não tinha onde ficar, não tinha onde morar”.

A fome e a incerteza seguiam a família como uma sombra da qual tornara-se impossível se livrar. O pequeno Diego, incapaz de com-preender a situação, chorava e implorava por comida e leite. Angustiada, Lucia dizia apenas “não tenho plata, hijo, não tenho nada”. Quando a criança insistia, a impotência tomava conta da imigrante, que gritava: “Cala-te, não tenho dinheiro, entende? Não tenho!”. Nas poucas vezes em que conseguiu contatar a mãe na Bolívia, desabafava sobre os pro- blemas que vinham enfrentando. As dores que sentia no corpo, que não comia há dias, e que mal era capaz de caminhar.

Após sete meses de gestação, Lucia finalmente encontrou um lugar para ficar. Não revelou ao dono do local que eram gêmeos e, discretamente, começou a comprar um modesto enxoval: “Somente uns cortitos, umas polaritas, não mais. Um brinquedo... Era um brinque-

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do de cinco reais”, revela humildemente. E, quando os bebês nasceram, outras complicações vieram junto.

Prematuros, os recém-nascidos permaneceram internados por uma semana no hospital, assim como a própria Lucia, que continuava com fortes dores na região do abdome. Miguel, enquanto isso, tentava explicar a situação para o dono da casa na qual moravam. Argumentou que a mulher não podia mais trabalhar e implorou para que os deixasse permanecer ali. “Eu vou trabalhar muito forte e você não vai mandar embora minha esposa, por favor”, diz Lucia, repetindo as palavras do marido. “Eu vou pagar tudo, você não vai precisar se preocupar com nada. Me deixa trabalhar sozinho. Minha esposa só vai ficar no quarto, não vai sair para nada”. As lágrimas voltam a se formar nos olhos da imigrante. As súplicas de nada serviram. O dono respondeu apenas: “Ah, se você não viesse com essa grávida para nós, eu aceitava você. Mas está com mais dois filhos, prefiro que vá buscar outro lugar para ficar”.

Sem rumo, a família vagava pelas ruas outra vez. Foi no hospital, no qual acompanhavam a saúde dos gêmeos, que uma enfermeira acon- selhou que procurassem a ajuda de um pastor evangélico. Encontraram o homem e lhe contaram sua história, a recente gravidez, a rejeição, a fome – e imploraram por ajuda. O pastor, infelizmente, disse que não poderia fazer nada, pois já contava com uma longa lista de pessoas à espera de abrigo. Contudo, havia uma amiga, uma “irmã muito boa”, que certamente os ajudaria.

Após uma semana acomodada no aposento concedido por essa mulher, foi pedido à Lucia que trocasse de quarto. Outra pessoa preci- saria dele, uma pessoa ainda mais necessitada. Mas havia outro cômodo para ela ficar com seus filhos, não precisava se preocupar. “Não, Lucia, eu tenho outro quarto para você e seus filhos, fica tranquila, não vai ter

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problema”, disseram-lhe, mas o quarto oferecido não passava de uma despensa. “Ela me deu um chiqueiro! O quartinho mais pequeno. Não tinha luz, não tinha nada ali. Ficava tudo no escuro. Eu não podia nem ver a cara do meu filho”, desata aos prantos. “Não tinha janela, nada! Tudo isto eu tive que passar, essa humilhação por estar grávida. Me humilha-ram da pior forma. Me pisotearam do jeito mais baixo”.

Desiludido, Miguel voltou até a procurar emprego em oficinas de costuras. Pediu ajuda dos outros bolivianos, mas nada conseguiu. Ninguém queria abrigá-los, dar-lhes comida ou emprego.

Em outra casa, encontraram um quarto com tamanho suficiente para todos. Arejado e iluminado, era o melhor que podiam conseguir. Os outros cômodos, porém, estavam proibidos para a família. Não podiam tomar banho ou usar a cozinha e Lucia era hostilizada pelos outros moradores por ter os bebês. Culpavam-na por serem pequenos e nascerem prematuros. “Mas eu não tinha nada para dar aos meus filhos... A água era da pia! Eu misturava com o leite para dar a eles”, relata entre soluços e lágrimas. “Por isso que hoje eu tenho muita dor com essas pessoas”, fecha o punho e esfrega sobre o peito, “não quero nunca mais saber deles”.

A fala da imigrante cessa em uma pausa. Para recuperar a calma, abaixa a cabeça e respira profundamente algumas vezes, até se recom-por. Levanta o rosto e permanece em silêncio ainda por alguns instan-tes. Quando volta a falar, parece ter acordado de um pesadelo. Dá-se conta de que tudo ficou no passado, os sofrimentos não lhe afligem mais. “Eu estou muito melhor. Conheci muitas pessoas boas, mas nenhuma boliviana. Conheci brasileiros muito bons”, acentua. Refere-se às Irmãs Scalabrianas.

Congregação católica de origem italiana, foi fundada pelo Beato

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João Batista Scalabrini na cidade de Piacenza em 1895. Sua missão é prestar serviço evangélico e missionário aos migrantes, especialmente aos mais pobres e necessitados. “É Cristo mesmo quem nos chama a compartilhar a dor e a esperança do homem migrante, a descer com Ele nas situações mais duras e injustas, marcadas pela fragmentação e pela dispersão. Caminhando pelas estradas do êxodo com os migrantes de cada etnia, cultura e religião, inspiramo-nos na espiritualidade do Bem-aventurado J. B. Scalabrini, no seu carisma de totalidade, através do qual ele via no drama da emigração um caminho de unificação da família humana em Cristo”.

Expandiu-se primeiro para o Brasil e Europa em meados de 1930; para a América do Norte, na década seguinte; nos últimos anos, chegou à América Latina, Ásia e África. Atualmente, marca presença em mais de 20 países com cerca de 800 irmãs e 150 comunidades. Atenta aos de-safios da mobilidade, a Congregação acolhe a proposta de colocar-se a serviço dos que estão envolvidos com o fenômeno das migrações, mo-tivadas pelas palavras do Evangelho: “Eu era estrangeiro e me acolhestes” (MT, 25,35). Sua Sede Geral ainda se encontra na Itália, em Roma.

As Scalabrianas deram todo o apoio que Lucia precisava. “Pri-meiro foi a psicóloga, que me arrumou um berço, carrinho de bebê, fraldas...”. Também a incluíram no “Mãe Paulistana”, programa de saúde municipal de São Paulo que assiste a mulher durante a gestação até o primeiro ano de vida do bebê. Depois a levaram para Mairiporã. Deram suporte para construir seu lar e restabelecer sua vida. “Se não fossem elas, eu não sabia onde estava agora. Elas me ajudaram a achar uma casa para alugar e pagaram por um tempo o aluguel. Me deram o que comer, me arrumaram muitas coisas que eu nem tinha pensado”. Com brilho nos olhos, Lucia abre um sorriso tímido e sincero. Demonstra grande

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alívio ao poder dizer “Agora eu moro num lugar que, graças a Deus, parece a minha casa. Parece um sonho! Tenho minha geladeira, meu fogão e muitas coisas que elas me deram”.

No Brasil e no mundo, a Congregação das Irmãs Scalabrianas está inserida através de trabalhos nas áreas social, cultural e pastoral, nos setores escolar, médico-hospitalar, artístico etc. Suas atividades servem de “ponte entre as várias culturas, ‘sal e fermento’ nas situações mais co-muns da vida, estão a serviço do anúncio e da formação cristã dos mi-grantes, dos jovens, dos amigos, para uma abertura à comunhão universal”.

Em Mairiporã, Lucia cuida dos filhos e da casa enquanto Miguel segue trabalhando em obras e construções como pedreiro. Seu salário é suficiente para manter a casa e bancar a alimentação da família. Os gêmeos, nascidos no Brasil, possuem documentação e estão legalmente no país. O restante da família permanece como clandestino.

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camille b. m. r.

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Uma silhueta que se destaca entre os demais. Magro e esbelto, o corpo com a pele no tom negro reluzente chama atenção na calça justa de malha com estampas étnicas coloridas. A regata preta está sobre-posta por uma jaqueta jeans e o pescoço longo fica à mostra por causa dos curtos cabelos crespos penteados em um volumoso black power. A aparência de Camille B. M. R. já demonstra seu comportamento cheio de atitude. Haitiana de vinte e poucos anos, chegou ao Brasil há dez meses e demonstra relutância para falar. Quieta e reservada, não interage mui-to com outras pessoas, prefere permanecer em silêncio, entretida com os próprios pensamentos.

Foi em 12 de janeiro de 2010, numa ensolarada terça-feira, que a vida de Camille mudou drasticamente. Seu pai e o único irmão acorda-ram, tomaram café e abriram a pequena loja de roupas e calçados que possuíam no centro de Porto Príncipe, capital do Haiti. Como na maioria dos dias, Camille permaneceu em casa com a mãe para ajudar nas tarefas domésticas e cuidar do pequeno filho de 2 anos. A gravidez não planejada interrompeu os estudos e os sonhos da jovem haitiana, que, abandonada pelo namorado, precisou lidar sozinha com a situação. Sem formação, passou a ajudar a mãe com as pequenas encomendas de costura, “um vestido que precisava ser ajustado, uma calça que faltava a barra, algum rasgo para remendar... Eram coisas simples”.

A manhã havia transcorrido normalmente. Almoçaram arroz e carne de porco e varreram toda a extensão da humilde casa de chão cimentado. Camille acabara de trocar a fralda do filho quando sentiu os primeiros tremores. Procurou pela mãe e, então, correram para a rua.

O terremoto de magnitude 7.0 na escala Richter teve início no fim da tarde, por volta das 17h. O Comitê Internacional da Cruz Ver-melha estima que cerca de 3 milhões de pessoas foram afetadas por

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este sismo. Apenas três dias depois, o ministro do Interior do Haiti, Paul Antoine Bien-Aimé, já havia calculado que o desastre teria resultado na morte de mais de 200 mil e desabrigado 1,5 milhão de pessoas.

A casa de Camille veio ao chão, assim como as demais ao redor. Os destroços levantaram tamanha poeira e fumaça que respirar era quase impossível. Preocupada com o filho, a jovem cobria o rosto do bebê com um pano e o escondia entre seus braços para evitar que inalasse aquele ar poluído. E, pouco a pouco, o desespero foi tomando conta das pessoas. “Elas corriam de um lado para o outro, choravam, se abraçavam, gritavam... Virou um caos. Tentavam de alguma forma resga-tar os objetos que ainda estavam na casa, queriam evitar o desabamento, mas não havia o que fazer.”

Quando os tremores pararam e, finalmente, a poeira baixou, é que foi possível enxergar a intensidade do estrago. Estava tudo destruído. De uma hora para a outra, a cidade virava um amontoado de ruínas. “Demoramos a perceber o que realmente estava acontecendo, que não eram apenas casas desmoronando. Pessoas estavam morrendo. Muitas pessoas estavam morrendo”, relembra a haitiana. “Meu pai e meu irmão também acabaram assim. Debaixo dos escombros da loja, ficaram soterrados e morreram”, revela sem rodeios, de forma rápida e direta.

Depois de um primeiro momento de crise, ela e a mãe buscaram alternativas para voltar a se estabelecer. Foram atrás de parentes para pedir abrigo e moradia. A casa não possuía o espaço necessário para todos, mas serviu. Na verdade, nem era bem uma casa, mas “um barraco, uma construção improvisada que meus tios conseguiram manter com o apoio da estrutura de alguns escombros”.

Meses se passaram e nada melhorou para o povo haitiano. Ajudas

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humanitárias foram enviadas, suprimentos e alguns soldados em missão de paz. O Brasil, inclusive, teve participação ativa nessas ações. O Coronel Silva Filho, integrante do Centro de Comunicação Social do Exército, esteve no Haiti duas vezes. Fazia parte do Batalhão Brasileiro, presente na ilha desde o ano de 2004, atuando frente à Minustah, Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti. Criada pelo Conselho de Segurança da ONU, sua principal função era restaurar a ordem no país após um período de insurgência e deposição do presidente Jean- Bertrand Aristide. Tinham como objetivo pacificar e desarmar grupos guerrilheiros e rebeldes, promover eleições livres e informatizadas, for-mar o desenvolvimento institucional e econômico da ilha.

Silva conta que a situação no país foi agravada com o terremoto. Depois da tragédia, as tropas brasileiras aumentaram suas operações a fim de manter um ambiente seguro e estável em meio à escassez de água e alimento. As condições sanitárias eram precárias e havia fre-quentes assaltos e fuga massiva de presos.

Após seis anos da missão em parceria com a Minustah, as ativi-dades designadas ao pelotão, referentes ao patrulhamento ininterrupto de bairros e distribuição de 10 toneladas de alimento, beneficiaram cerca de 480 mil pessoas, segundo o próprio coronel. Silva frisa, ainda, a aproximação com a população haitiana e a reformulação da atuação brasileira para trabalhar em grupos de ajuda humanitária após o terre-moto. Para o militar, no que se refere à segurança, a situação do país encontra-se, hoje, normalizada, porém admite que a destruição deixada pelo terremoto permanece a mesma. Nada de significativo foi feito.

Nem mesmo a capital Porto Príncipe foi reconstruída. Camille relembra que a cidade parecia largada, sem previsão de retornar ao que fora antes. “Nós já éramos pobres. Vivíamos em condições simples, sem

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luxo algum. Depois do terremoto, isso só piorou. A violência aumentou, as manifestações, ataques, saques e tiroteios. Parecia que havíamos vivi-do uma guerra”. Faltava água, comida e saneamento básico. O esgoto corria pelas ruas da capital, levando lixo e excrementos até casas e plan-tações. “Você via porcos e bodes vivendo no meio do lixo por todos os lados. O cheiro da cidade era insuportável. Tudo fedia a esgoto. Tudo”.

Ocorreram incêndios e mais desabamentos. O calor intenso não ajudava. “O ar estava muito seco e o calor realmente incomodava, pois não tínhamos muita água disponível. Era comum as pessoas desma-iarem”. Constantemente também apareciam corpos no meio da rua, mortos por causa das manifestações, tiroteios ou conflitos com a polícia. E, por vezes, demoravam semanas para serem retirados. Adultos e cri-anças andavam e agiam naturalmente, como se os mortos em putre-fação já fossem parte da paisagem. Não havia perspectiva de mudança ou progresso. E, quanto mais o tempo passava, menos Camille se con-formava com tudo aquilo.

Muitas pessoas migraram para a vizinha República Dominicana. Uma migração em massa que deixou o país em estado de alerta. De-pois de um ano, os haitianos já não eram mais bem-vindos. Eram mal tratados e praticamente expulsos pelos dominicanos. Eles negavam tra-balho, hospedagem e comida, forçando o retorno ao Haiti. Camille ainda tentou outras nações antes de vir para o Brasil. Pediu visto para os Estados Unidos e para o Canadá. Ambos negados.

Rumores a respeito de uma rota clandestina para o Brasil começaram a se espalhar pela ilha. Camille ficou sabendo e pensou: “por que não? Estão todos indo”. Na companhia de mais cinco mulheres, a jovem embarcou em um navio, cruzou o Mar do Caribe até chegar ao Panamá. De lá, seguiu para o Equador; em seguida, Peru, Bolívia e,

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finalmente, Brasil. O custo total da travessia ultrapassou o valor de 2 mil dólares. Entre as fronteiras, também é comum o roubo de malas e documentos e abuso por parte da polícia que exige o pagamento de propina. Camille deu sorte, mas muitas de suas companheiras tiveram seus pertences furtados e o pouco dinheiro que carregavam tomado pelos policiais.

A entrada em território brasileiro geralmente é feita pelo mu-nicípio de Brasileia. Localizado no sul do estado do Acre, faz divisa com a Bolívia e possui pouco mais de 20 mil habitantes. Uma cidade pacata e sem estrutura, Brasileia está vivendo uma verdadeira crise desde 2010, quando os primeiros haitianos começaram a chegar. Hoje, a Prefeitura estima que sejam cerca de 40 novos imigrantes todos os dias, ultrapas-sando o número de 800 haitianos residentes na região. Para tanto, foi necessário criar uma espécie de “campo de refugiados” que abrigasse tamanho contingente.

A instalação foi improvisada em um galpão, com capacidade para apenas 200 pessoas, em condições insalubres de higiene. Os imigrantes compartilham o uso de apenas 10 latrinas e 8 chuveiros. Não há dis-tribuição de sabão nem creme dental e o esgoto corre a céu aberto. Sob um teto de zinco, lonas plásticas negras servem de cortina em temperaturas que chegam aos 40 graus. Superlotado, as três refeições diárias são distribuídas em marmitas de papel alumínio. Brigas nas filas são frequentes. Há um único ponto de distribuição de água potável, um filtro industrial com três torneiras. O local já abriga quatro vezes mais pessoas do que deveria e grande parte da população sofre com problemas de diarreia. Outra dificuldade no campo é a falta de comu-nicação gerada pelo idioma. Os haitianos, em sua maioria, falam apenas creole. Colonizados pela França, desenvolveram este idioma com 90%

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do vocabulário baseado no francês. Mas não há ninguém para servir de tradutor. As instruções para entregar documentos, por exemplo, são feitas no grito, aumentando a incerteza e a ansiedade dos haitianos que se aglomeram diante do pequeno trailer da Polícia Militar.

Camille esperava passar pouco tempo naquelas condições. Apenas o necessário para legalizar a documentação e retirar o visto humanitário. Embora cheguem ao Brasil solicitando refúgio, os haitianos não se enquadram nos termos de refugiado, pois estes pressupõem que a pessoa seja vítima de perseguição em seu país. Assim, no início de 2012, o Comitê Nacional para Refugiados (Conare), responsável pelo estudo dos casos e liberação dos vistos, junto ao Conselho Nacional de Imigração (CNIg), desenvolveu um instrumento jurídico que permitisse um visto por razões humanitárias.

A Resolução Normativa 97/12, criada com esse intuito, previu: “Ao nacional do Haiti poderá ser concedido o visto permanente pre-visto no art. 16 da Lei no 6.815, de 19 de agosto de 1980, por razões humanitárias, condicionado ao prazo de 5 (cinco) anos, nos termos do art. 18 da mesma Lei, circunstância que constará da Cédula de Iden-tidade do Estrangeiro. [...] Consideram-se razões humanitárias, para efeito desta Resolução Normativa, aquelas resultantes do agravamento das condições de vida da população haitiana em decorrência do terre-moto ocorrido naquele país em 12 de janeiro de 2010. [...] Poderão ser concedidos até 1.200 (mil e duzentos) vistos por ano, corresponden-do a uma média de 100 (cem) concessões por mês, sem prejuízo das demais modalidades de vistos previstas nas disposições legais do País”.

Desde então, cerca de 1,5 mil vistos humanitários foram autoriza-dos, de um total de mais de 4 mil imigrantes haitianos que ingressaram no Brasil desde 2010. Entretanto, em abril deste ano, o CNIg determinou

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o fim dos 1.200 vistos anuais. Apenas aqueles que já estivessem em território brasileiro teriam direito à legalização. Esta política incerta gerou o questionamento de organizações não governamentais como o Conectas Direitos Humanos, que desde 2006 atua junto à ONU. Com cartas, reportagens e denúncias, a organização pressiona fortemente as autoridades brasileiras para que adotem providências quanto aos hai-tianos que continuam chegando todos os dias pelas fronteiras do Acre e do Amazonas.

No Brasil desde janeiro, Camille foi contemplada com o visto humanitário de cinco anos. E, com o resto do dinheiro que trouxe, com-prou a passagem de ônibus para a capital paulista. “Eu já tinha apren-dido um pouco do português, isso ajudou para eu vir para São Paulo”. Acolhida pela Casa do Migrante, na qual reside atualmente, a jovem negra de aparência irreverente, unhas vermelhas e batom roxo, está se estabelecendo aos poucos. Conseguiu um trabalho como auxiliar de limpeza e pretende enviar dinheiro para a família no Haiti em breve. “Agora é só trabalhar. Trabalhar pra juntar meu dinheiro e trazer minha mãe e meu filho para o Brasil”.

Pierre Nzéé au ciel

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“Não, não escolhi vir para o Brasil”. Essa frase foi uma das primei-ras coisas que ouvi de Pierre Nzéé Au Ciel. Quando nos encontramos pela primeira vez, em outubro de 2012, ele era um recém chegado ao país. Estava em São Paulo há duas semanas e foi acolhido pela Casa do Migrante, instituição parceira da Cáritas que oferece moradia aos refu-giados e imigrantes que chegam diariamente à capital paulista.

Pierre é um dos muitos congoleses que chegaram ao Brasil nos últimos anos – até junho de 2013, o país recebeu 1.860 solicitações de refúgio e praticamente 500 foram de migrantes do Congo. Quando nos encontramos pela segunda vez, em julho deste ano, participávamos de mais um encontro do ADUS – Instituto de Reintegração do Refugiado.

Antes de se sentar em uma cadeira branca de plástico, o congolês puxou a calça de cor marfim para cima, bem na altura dos joelhos, e de forma desajeitada, acomodou-se e tirou a boina. Com os dois braços apoiados sobre as pernas, contou suas primeiras impressões sobre o Brasil.

Pierre nasceu no Katanga, uma das onze províncias da República Democrática do Congo, também conhecida por Zaire ou Congo- Kinshasa. Patriota, diz que tem orgulho de sua terra natal e lamenta não poder continuar a vida lá.

De estatura mediana – pouco mais de 1,70 m de altura –, sua pele é negra e reluz como qualquer objeto envernizado. A voz, grave e rouca, desperta a atenção das pessoas que dividem o espaço com ele. Tem porte firme de guerreiro e aparente vigor físico. Veste uma camisa vermelha mal abotoada com as mangas dobradas na altura do ante-braço. O nariz e os lábios são amplos e os olhos, amarelados.

Enquanto conversávamos, poucas vezes brincou ou sorriu. Quando o fez, duas ou três vezes, revelou um tímido sorriso no canto esquerdo

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da boca e largos dentes brancos. Não possui sequer um fio de cabelo.Apesar de discreto, Pierre é categórico ao falar sobre as condições

oferecidas aos refugiados no Brasil. “Não são boas. Não há abrigo para todos e muito menos emprego. Desde que cheguei, continuo na Casa do Migrante. Não tenho dinheiro para sair de lá. Como vou recomeçar minha vida sem trabalhar?”.

Além disso, há as dificuldades impostas pela língua. Pierre, assim como muitos outros – cerca de trinta, entre haitianos e congoleses – participaram de um programa de assistência do ADUS (Instituto de Reintegração do Refugiado) em parceria com a Wizard (escola de idiomas) e fizeram um curso de português por dois meses, concluído em agosto.

Apesar disso, o migrante não tem fluência em nosso idioma. Por vezes, não entende as perguntas e pede para falarmos em francês (o Congo é o maior país francófono do mundo). Além da língua de seus colonizadores, os belgas, os habitantes falam os dialetos típicos de suas províncias.

Outra dificuldade consiste na integração social. Pierre elogia a cul-tura e a receptividade “do nosso povo [os brasileiros]”, em suas próprias palavras, mas é enfático ao afirmar que os brasileiros conhecem pouco sobre as causas do refúgio. “Muitas pessoas ajudam, fazem doações e nos auxiliam na Polícia Federal, mas grande parte da sociedade desconhece o assunto e, mesmo sem saber quem somos e por que estamos aqui, tem preconceito”.

Nos últimos anos vivendo no Congo, mudou-se para a capital a fim de estudar Direito na Universidade de Kinshasa (Unikin). Durante o período, atuou como voluntário da Monuc – Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo. Criada em 1999 pelo Conselho

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de Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas), a entidade investe quase um bilhão de dólares todo ano no Congo, mas não con-segue pôr fim aos conflitos armados no país.

Por fazer parte da oposição ao governo vigente e ter apoiado Etienne Tshisekedi nas eleições de 2011, quando Joseph Kabila foi reeleito, sofreu ameaças, como muitos outros militantes, e deixou o país. Não gosta de falar sobre isso, mas o conflito deixou marcas em seu corpo – o refugiado tem cicatrizes de cortes de facão nos braços. Uma vez, para ajudar os companheiros, envolveu-se em uma briga. Aqui, está em busca de outra perspectiva de vida.

“Não consigo viver em um lugar instável. Lá estava sempre com medo. Como viver em um país no qual não se pode ter opinião e segurança?”.

Ao contrário de outros congoleses, que chegam ao país em barcos, de forma clandestina, inclusive com documentos falsos, Pierre embarcou para o Brasil de avião. De Kinshasa, capital do Congo, viajou a Johan-nesburgo, na África do Sul, e de lá rumou para São Paulo. O trajeto lhe custou três mil dólares.

Aflito, ele fala sobre sua família. Preocupa-se, pois suas irmãs, Mirelle e Sandrine, além de sobrinhos e primos, permanecem no Congo. “Nos falamos toda semana pela internet. Quero trazê-las para cá”.

Agora, espera obter o status de refugiado e ainda está em bus-ca de emprego. Revela que tem procurado vagas em restaurantes, na construção civil, mas sabe que não domina o português e isso atrapalha.

Católico praticante, gosta de frequentar a Igreja de São Judas Tadeu, no bairro Jabaquara. O Cristianismo é a religião predominante na República Democrática do Congo: quase 95% da população é católi-ca.“Laissez l’amour de Dieu vous guérir des blessures du passé”, diz ele.

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Religioso, acredita, com fé, que devemos deixar que “o amor de Deus cure as feridas do passado”.

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Além da riqueza vastíssima em recursos minerais (primeiro lugar na lista mundial), o Congo tem a segunda maior floresta tropical do mundo e uma exuberante beleza natural – fauna e flora. No entanto, a população de quase 80 milhões de pessoas vive em situação de ex-trema pobreza e violação dos direitos humanos.

A invasão de Ruanda e Uganda para ter acesso às terras e minérios deu origem a um conflito armado que vitimou seis milhões de pessoas (metade dos mortos são crianças com menos de cinco anos). Desde então, foram cometidos graves crimes contra a humanidade: genocí-dio e violência contra mulheres e crianças. “Identidades nacionais mi-noritárias são ignoradas e não podemos confiar nos grupos militantes nem no exército. Não sabemos em quem confiar”, explica Pierre.

“O Congo é o pior lugar para ser mulher, é onde mais aconte-cem estupros”, afirma Nita Evele, diretora da ONG Ação Global pelo Congo, instituição formada por ativistas e estudantes de todo o mundo. O objetivo da organização é auxiliar os congoleses a conscientizar a comunidade internacional sobre os graves crimes cometidos no país.

Nita revela que as moradoras das vilas próximas às minas são vio-lentadas na frente dos maridos, filhos e vizinhos. Muitas não sobrevivem ao trauma e outras são sequestradas pelos grupos armados e, durante meses, ficam à mercê dos combatentes nos acampamentos.

De acordo com ele, o estupro é uma estratégia de guerra – e uma das que mais funcionam, pois desestrutura as famílias e destrói a comunidade.

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A Ação Global pelo Congo e outras organizações, como o Friends of Congo (Amigos do Congo), condenam a negligência da po- pulação mundial e da mídia, que não divulga o que está acontecendo no continente africano. “É o mesmo número de mortos no Holocausto: seis milhões. A comunidade internacional disse que não deixaria que isso acontecesse novamente e está acontecendo”, declarou Claver Pashi, diretor do Fórum RD Congo, associação que reúne intelectuais congoleses.

Maurice Carney, diretor e cofundador da Friends of Congo, no documentário Le Conflit au Congo: La Vérité Dévoilée (A Verdade Revelada), propõe uma reflexão: “Se você defende os direitos humanos e as crianças, deve se preocupar com o que está acontecendo no Congo. Os que se interessam pelos direitos das mulheres e têm celu-lares e carros e andam de avião, devem se informar mais sobre a situ-ação do Congo. E mais: como uma pessoa humana, no mínimo, você deve se indagar o que está acontecendo e o que leva a isso.”

História marcada por exploração

“Os limites e fronteiras do Congo não foram criados pelos próprios congoleses. Se hoje eles são porosos, a culpa não é nossa” – frase de Maurice Carney, ativista congolês. As fronteiras nacionais da África foram delimitadas na Conferência de Berlim, em 1885, quando as potências coloniais decidiram a forma de ocupação do continente afri-cano. Ficou decidido que a área pertencente à República Democrática do Congo ficaria sob a soberania do Rei Leopoldo II, da Bélgica.

O monarca fez da região sua propriedade privada: durante 23

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anos, explorou, com mão de obra escrava, as reservas de ouro e dia-mantes, acumulando uma fortuna pessoal de um bilhão de dólares em moeda de hoje. Além disso, beneficiou-se de marfim e das reservas de magnésio, estanho, cobalto e cobre.

A partir de 1908, o Congo tornou-se um estado colonial. Final-mente, quando declarou sua independência, em 1960, o líder Patrice Lumumba foi assassinado e um ditador entrou em cena por três dé-cadas. Mobutu Sese Seko assumiu o poder e estabeleceu um governo corrupto, de partido único e aliado dos interesses capitalistas na África. Esse período ficou marcado pelo autoritarismo e pela centralização do poder nas mãos do ditador.

Segundo o historiador Adam Hochschild, Mobutu explorou seu país mais do que o próprio Rei Leopoldo, já que ficou no poder por mais tempo e encontrou uma economia mais desenvolvida. Entre 1965 e 1997, Mobutu teria acumulado uma fortuna de cinco bilhões de dólares.

Este governante era apoiado por Estados Unidos e França, mas, com o fim da Guerra Fria e da ameaça do comunismo, perdeu esse apoio. Também, sua má reputação no domínio dos Direitos Humanos ficou conhecida mundialmente e nenhuma grande potência queria sua imagem atrelada à do ditador. “Os Estados Unidos têm motivação econômica e política. Eles deram apoio à ditadura para ter acesso aos recursos minerais. Isso foi cômodo para eles”, disse Pierre.

Além disso, a guerra civil e o genocídio em Ruanda também afe-taram o Congo: estima-se que dois milhões de civis, tentando fugir dos rebeldes tutsis sob o governo de Paul Kagame, seguiram rumo à fron-teira entre os dois países. Kagame, presidente de origem tutsi, apoiado pelo presidente de Uganda, seu aliado Yoweri Museveni, apoiou grupos genocidas e deu início a um massacre dos refugiados hutus – homens,

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mulheres, crianças, idosos e pessoas doentes.Howard French, jornalista do The New York Times, não descarta que

seu país tivesse motivação política e econômica para apoiar o confli-to. “Washington garantiu seus interesses na região sem nenhum solda-do americano abatido, apenas os ruandenses e ugandenses. Além do comodismo da invasão, Reino Unido e Estados Unidos forneceram ar-mas para o exército de Ruanda. Tudo para proteger seus interesses no continente africano”.

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Atualmente, o Congo é governado por Joseph Kabila, um dos mais jovens líderes da África. Com 30 anos, assumiu o governo em 2001, após a morte de seu pai, Laurent Desiré Kabila, sucessor de Mobutu.

Laurent Desiré Kabila tomou o poder em 1997 e foi assassinado em 2001. Durante seu governo, rompeu com Ruanda e isso deu ori-gem à insatisfação popular e às revoltas contra seu regime. Apoiados pelos líderes ugandês e ruandês, milícias ocuparam áreas do território congolês.

Joseph Kabila negociou a paz com os grupos rebeldes, aprovou uma nova Constituição e prometeu eleição presidencial em 2006, a pri-meira em quarenta anos. Foi eleito presidente. Em 2011, sua reeleição para um segundo mandato gerou revolta e violentos levantes em Kin-shasa e Mbuji-Mayi, já que o candidato da oposição, Etienne Tshisekedi, teria levado a maioria dos votos de acordo com a contagem oficial. A eleição foi considerada de baixa credibilidade e ilegítima. “Estados Uni-dos e Reino Unido sempre apoiaram os ditadores em vez de apoiar o povo”, defende Pierre.

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De acordo com ele, há um enorme desejo por democracia e pela reconstrução do país. Questionado sobre qual seria a prioridade para isso, o imigrante destaca o cessar da intervenção destrutiva de Ruanda e Uganda em sua terra natal.

“E como isso deve ser feito?”, pergunto.“Pressão internacional. Obama [Barack Obama, presidente esta-

dunidense] parece entender isso. Ele chamou a atenção dos políticos africanos e quer apoiar instituições fortes e transformadoras na África”, comenta Pierre. E acrescenta: “A solução total não virá dos próprios con-goleses. Não temos meios para isso. Precisamos que seja criado um espaço para que nós mesmos possamos enfrentar e resolver nossos problemas”.

“Todo mundo quer um pedaço do Congo”. Essa frase é de Mbepongo Bilamba, ativista e escritor congolês. Dedy Bilamba, como é conhecido, explica que muitas nações disputam a riqueza natural do Congo, um dos países mais ricos em recursos naturais do mundo.

A República Democrática do Congo é rica em minérios utiliza-dos para abastecer e enriquecer as indústrias ocidentais – eletrônica, automobilística, aeroespacial, assim como o mercado de joias. Sozinha, produz mais de um bilhão de dólares em ouro a cada ano. E Mbuji-Mayi, conhecida como “a cidade dos diamantes”, capital da província do Kasai Oriental (chamada Bakwaga até 1966), é um dos maiores centros comerciais de diamantes do mundo.

Minerais como cobalto, cobre, estanho, tântalo e tungstênio existem em grande quantidade, particularmente no leste do país. São funda-mentais para a fabricação de telefones celulares, aeronaves e aparelhos televisores. A partir deles, são produzidos milhares de dólares desses metais e minerais. “Por eles, as pessoas são tratadas como mosquito. Sabe quando você mata um mosquito?”.

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“Uma grande riqueza sem governo é um convite à violên-cia, à bagunça generalizada”, disse o escritor norte-americano Adam Hochschild ao se referir à situação no Congo. E foi exatamente isso que tomou conta do país.

Segundo ele, trata-se do maior território do mundo com instituições que não funcionam: não há liberdade de imprensa, a diversidade política é oprimida e a população está à mercê de um exército mal treinado e indisciplinado que rouba e assassina indiscriminadamente.

Além disso, o Congo é disputado por países vizinhos e grupos armados que querem enriquecer à custa de seus minérios. Milícias di- ferentes, apoiadas por Ruanda e Uganda, enfrentam-se pela posse das vastas jazidas de diamante e ouro; e Estados Unidos, França, Inglaterra e Alemanha exercem pesada influência na região.

Tais grupos oposicionistas matam e ocupam terras, pilhando e expulsando as comunidades locais que vivem nas áreas das minas. A situação se agrava ainda mais com a negligência da comunidade interna-cional e da mídia. “Eles matam indistintamente, só para conseguir acesso aos recursos naturais. Pessoas vivem nessas áreas, onde havia vilas. Não é precisar matar pessoas e crianças para que outras tenham televisão, carros e celulares. Podem pegar tudo, mas deixem os moradores locais em paz”.

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Na chegada ao local combinado, uma praça na qual tem início a Rua Mendes Junior, no Brás, não avistamos o entrevistado. Dez minutos depois, resolvemos ligar. “Aguarda um minuto, estou chegando”, diz o comerciante sírio, com sotaque típico de pessoas de origem árabe (a letra “p” soa como “b” e o “r” é pronunciado de forma enfática).

Em seguida, sai de sua loja, cruza a rua e vem ao nosso encontro. “Já tinha visto vocês pela janela, mas não tinha certeza se seriam as es-tudantes com quem falei ao telefone”.

Amer Masarani, sírio naturalizado brasileiro, leva-nos a uma casa na mesma rua. Subimos as escadas até o segundo andar, no qual vivem três rapazes sírios em um pequeno apartamento alugado por Amer. Lá, deparamo-nos com dois deles, ambos solicitantes de refúgio.

O primeiro a chegar ao Brasil foi Labib, há pouco mais de dois anos. Alto – mais de 1,70 m –, vestia uma camisa xadrez azul, uma calça jeans clara e chinelos pretos. Jovem, com menos de 30 anos, passou o tempo todo com o cenho franzido e tem pesados e grandes olhos castan-hos. Sua fluência no idioma português é surpreendente – por vezes, usa expressões típicas dos moradores de São Paulo como “meu” e “de boa”.

Najib, o segundo rapaz, é bem alto, tem mais de 1,80 m, cabelo curto e cavanhaque. É tímido e não fala sequer uma palavra em nosso idioma – Amer fazia a tradução árabe-português durante a entrevista. Reservado e de poucas palavras, apesar de inquieto, tentava de qualquer forma esconder as mãos e parecia desconfortável durante o tempo em que estivemos lá.

Assim que chegamos, os dois se levantaram do sofá e nos cum-primentaram com um aperto de mão. “Os meninos até fizeram faxina quando souberam que vocês viriam”, brinca Amer. Labib sorri, envergonha-do, e iniciamos a conversa.

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O comerciante e os dois rapazes se acomodam no sofá e nós, em duas poltronas bem em frente a eles. Os sofás e as poltronas são separados por uma mesa de centro, na qual apoiamos o gravador. Além de um televisor de 60 polegadas, não há mais objetos na sala.

Trajando uma camisa branca e calça jeans, o migrante de pouco mais de 40 anos é forte, tem uma barriga proeminente e a barba cres-cida e aparada rente ao rosto. A careca é lustrosa e o expressivo olhar, marcado por um par de sobrancelhas arqueadas e peludas, caracterizaria facilmente um vilão de cinema.

Amer e os quatro rapazes são de Homs, a terceira maior cidade da Síria. Com 1,7 milhão de habitantes, é a mais afetada pela guerra civil disputada entre os rebeldes oposicionistas e as tropas do ditador Bashar al-Assad. Desde 2011, quando o conflito teve início, há uma matança diária – são vitimadas quase 150 pessoas por dia – e um cerco à cidade de Homs, epicentro da guerra civil, foi criado há mais de quin-hentos dias. “O povo está sendo massacrado com ataques com armas químicas, caças, aviões, mas agora as pessoas estão morrendo de fome, não pela guerra. Com o cerco, não entram mantimentos”, afirma Amer.

Labib revela que o pai continua lá, foi capturado e ficou em poder das tropas do governo por vinte e cinco dias. “Meu pai é dentista, não tem por que ser preso”. A mãe e a irmã estão morando no Egito com a avó materna. De lá, o jovem tomou um avião até o Brasil em busca de oportunidade de trabalho.

Para ele, a vida aqui “é de boa” e o povo brasileiro é receptivo. “Tenho muita amizade com os brasileiros aqui no Brás. Todos me respei-tam”. Há um ano trabalha como ambulante vendendo peças de roupa em feiras durante a madrugada.

“Como aprendeu português?”

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“Na marra. No meu quarto, uso as paredes para escrever.”“Podemos ver?”“Está muito bagunçado”, diz, corado.“Então tire uma foto com o nosso celular”, pedimos. O imigrante

consente, vai até o quarto e nos mostra, em uma imagem embaçada, rabiscos no idioma árabe traçados com caneta azul na parede branca.

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Os sírios formam uma comunidade estabelecida no Brasil, que se ajuda, inclusive, financeiramente. Não há assistência financeira por parte do governo e a obtenção do visto é difícil. “A única ajuda que tivemos foi legalizar as pessoas aqui”.

Foi divulgado em todo o país que, no dia 20 de setembro, o Brasil teria aberto o visto aos sírios. Amer afirma que a informação é falsa. “Quando um sírio solicita a entrada no Brasil, há somente opções de visto de turista ou Business. Não há opção de ajuda humanitária ou refugiado. Para que o governo autorize, é necessário comprovar residência, trabalho ou estudo e ter carta de brasileiro como convite. Além disso, eles exigem, no mínimo, 10 mil dólares na conta bancária”.

Com um grupo de sírios que vivem aqui, o comerciante fundou uma página na rede social Facebook para auxiliar os recém-chegados. Através da Coordenação da Revolução Síria no Brasil, conheceu os jovens que agora ajuda. “Se não fosse pela colônia (síria), as pessoas morreriam de fome. Só o sangue ajuda”.

Para alertar a população e a imprensa brasileira, a página é atualizada diariamente com fotos, vídeos e informações sobre a tensão na Síria. As notícias são traduzidas do árabe para o português. Como

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desdobramentos práticos, os organizadores financiam, com seus própri-os recursos, aluguel e tratamento médico. Atualmente, 25 pessoas são assistidas. “Criamos a página logo que começaram os ataques. Quería-mos tirar nossos familiares de lá”.

Como a Embaixada do Brasil na Síria foi transferida para Beirute, no Líbano, os sírios vão até lá pedir o visto. Foi o que aconteceu com a família de Amer. A mãe está aqui, mas a irmã e o sobrinho se muda-ram para os Estados Unidos. Seu irmão reside na Arábia Saudita. “Eles não se adaptaram e quiseram partir. A adaptação já não é fácil. Temos outra cultura e falamos outra língua. Os que acabam de chegar têm que trabalhar em profissões nas quais não há comunicação, na linha de produção, como estoquista ou lavador de carro”.

Apesar disso, no Brás, por exemplo, a comunidade é grande, há mesquitas e escolas árabes. “O convívio social e integração acontecem”.

“E as pessoas que ficaram? Você tem notícias?”“De vez em quando falo com amigos e parentes mais distantes e

peço notícias de outros. Quando alguém consegue uma linha telefônica, me liga ou manda mensagem para que eu entre em contato. Em muitos lugares não há cobertura de celular. Quero trazer mais gente para cá, mas as portas estão fechadas pelo governo brasileiro. Não há assistência, moradia, cesta básica, escola, nada. A única coisa que o Itamaraty faz é regularizar a situação dos que estão aqui.”

Há dezesseis anos, Amer deixou a Síria em busca de perspectiva de vida e de um futuro melhor no Brasil. Formado em Engenharia Solar, serviu o exército por dois anos e meio (o serviço militar é obrigatório) e depois decidiu que queria construir uma carreira, ter uma família, um carro e uma casa.

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Revela, sem rodeios, que até os 26 anos nunca havia namorado. “Não tinha coragem. O que eu ia oferecer? Saí de lá em função da péssima condição econômica. Eu não prosperava financeiramente. Só os companheiros do presidente conseguem abrir negócio. O imposto é altíssimo. Meu sonho era ter uma calça jeans”, revela, pronunciando a letra “j” com som de “g”.

Comerciante com gosto, queixa-se do comércio em seu país. “As lojas abrem às 10h e durante duas horas estão fechadas para o almoço. Aqui, o país é aberto, com crescente nível de trabalho. As pessoas correm cedo para trabalhar. Vim para visitar, fiquei e montei meu negócio. Tive a oportunidade e ‘colei’”.

Casado há oito anos com a brasileira Lídia, Amer tem dois filhos, uma menina de 2 anos e um menino de 5.

Fazenda al-Assad

A família Assad controla a Síria há mais de quarenta anos. Hafez al-Assad tomou o poder com um golpe militar em 1971. Após a morte de seu irmão mais velho em um acidente de carro, Bashar al-Assad herdou o país em 2000, aos 36 anos.

Com uma imagem jovial e moderna, o presidente conquistou o apoio de parte da população. Apesar do caráter autoritário, o regime de Assad é defendido, pois a Síria é governada como uma nação laica, base-ada no arabismo nacionalista, e não religioso, diferentemente dos países vizinhos. Assim, desfruta de algumas liberdades – os homossexuais não são perseguidos e as mulheres podem adotar o estilo das ocidentais: cabelos soltos, roupas curtas.

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Apesar das diferenças no modelo de governo adotado, a Síria enfrenta questões semelhantes às enfrentadas por Iraque e Líbano: a divisão religiosa. Dos 22 milhões de sírios, 74% são sunitas, 12% são alauítas (minoria islâmica xiita à qual pertence Assad) e 10% são cristãos.

O grupo de opositores do regime é composto por uma maioria sunita de 90%, com membros conservadores e religiosos. Apesar disso, forma um grupo completamente disforme: a Coalizão Nacional Síria da Oposição e das Forças Revolucionárias é formada por milhares de grupos armados, com facções inimigas entre si. Os grupos ligados à Irmandade Muçulmana são apoiados pelo Qatar. Parte do Golfo Pérsico e Arábia Saudita apoiam as facções salafistas (grupo ultraconservador) e há também os jihadistas da Frente Nusrah, braço da Al-Qaeda na Síria.

Com a ascensão da guerra civil, a divisão entre os diferentes gru-pos se agravou. “Os sírios se orgulham e gostam das liberdades que têm e temem a formação de um Estado religioso”, explica David Lesch, historiador da Universidade Trinity, no Texas.

“O que a oposição fará com a Síria?”“Não podemos afirmar nada enquanto eles não assumirem. Eles

estão lutando contra uma ditadura que tem durado 42 anos. Para Bashar [como o presidente é chamado por Amer], a Síria é dele. Ele não vai largar fácil. É a ‘fazenda al-Assad’: nós somos seu gado, amanhã ele mata aquele boi, no outro dia convida os amigos para comer um carneiro, na próxima semana comem aquela vaca, desculpe a expressão”.

“Mas os grupos revolucionários são divergentes, disformes, não têm proposta...”

“Não há guerra sectária. O povo sírio luta contra a ditadura, con-tra um inimigo comum, que é o Bashar. Eles [os grupos da Oposição] não querem tomar o poder para fazer outra ditadura, senão não teria

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o apoio do povo. Os soldados da oposição se escondem nas casas dos civis. Quero derrubar esse governo de cabo a rabo”, afirma.

Durante o ápice, o clímax da entrevista, outro rapaz, o terceiro morador da casa, entra pela porta. Kamal tem 22 anos e chegou ao Brasil em abril de 2012, após viajar da Síria para o Líbano, de lá para o Catar e, finalmente, para São Paulo. Educado e discreto, estende-nos a mão para cumprimentar. Baixo e magro, Kamal tem a pele branca e os cabelos negros e levemente crescidos. Sorridente, passaria por brasileiro facilmente.

O jovem revela que não consegue se conformar com a situação vivida em seu país. “A Síria não é ‘país de ontem’, tem sete mil anos de história. Damasco é a capital mais antiga do mundo, por lá passaram as rotas do comércio, foi por onde Jesus passou. O povo é simples, mas, como aqui no Brasil, o governo é safado”.

Problema é ditador matando seu povoNa vasta lista de atrocidades provocadas pelo conflito, além dos

mais de 100 mil mortos e milhões de refugiados, está o uso de armas químicas contra a população. Em um episódio que mobilizou a comuni-dade internacional, 1.429 pessoas, entre elas 426 crianças, foram mortas por um gás tóxico em um subúrbio da capital Damasco. As imagens de pessoas agonizando e corpos estendidos no chão circularam pelo mun-do. No entanto, a autoria do massacre ainda é nebulosa. Inspetores da ONU investigaram o caso, mas não culparam ninguém.

“Quando o povo começou a ter rifle e espingarda na mão, o governo começou a usar tanques, aviões, mísseis, armas químicas, bom-bas. Eles chamam os revolucionários de terroristas. Temos quatro mil casos de estupro. A história é sempre a mesma: terroristas, Al Qaeda, separatistas... Onde já se viu dizer que quer capturar terroristas com

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bomba, caça e canhão. E é com apoio do Irã e da Rússia que ele está esmagando o povo”.

Após o ataque, a OTAN, aliança ocidental, afirmou que não deixaria o uso de armas químicas sem resposta, mesmo sem o aval do Conselho de Segurança da ONU – Rússia e China se opõem à intervenção militar. O Parlamento Britânico vetou a intervenção. Obama tem o apoio da França, mas continuou em cima do muro.

“Os Estados Unidos estão de brincadeira, parece que estão dan-do mais tempo para o Bashar agir e sufocar a revolução. China e Rússia vendem armas para abastecer a guerra. Eles ganham dinheiro com vidas humanas. São contratos assinados com sangue sírio. Nosso problema não é arma química, nosso problema é o ditador matando civis”.

Um silêncio toma conta da sala por alguns instantes. Labib, o mais sério do grupo, troca algumas palavras em árabe com os companheiros e revela, em português, que sente muita mágoa e dor ao ver seu povo e amigos de infância morrendo. “Não entendo. Eles [Estados Unidos, Inglaterra e França] ajudaram o Iraque, o Kuwait, a Líbia. Com a Síria, a coisa é totalmente diferente”.

“Quero muito ajudar, daqui eu faço muito pouco, mas não posso. Estou ameaçado. Se eu colocar os pés na Síria, já era. Meu nome está no aeroporto. Recebi esse recado do meu cunhado. O governo sírio me mandou calar a boca”, diz Amer, em desabafo. O comerciante concedeu inúmeras entrevistas a sites, rádios e emissoras de São Paulo e, por isso, estaria jurado de morte em seu país.

Quase no final do encontro, perguntamos a Amer, de forma dis-creta, se Najib gostaria de dizer algo, afinal, todos falaram um pouco. So-mente ele passou o tempo todo quieto, sem compreender uma palavra do que conversávamos. Sua mudez e sua inquietação nos incomodavam.

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O comerciante faz a tradução e, de repente, segura as mãos do rapaz e nos mostra seus dedos. “Este aqui foi torturado. Ficou em poder do governo por quinze dias. Perdeu seis unhas, três de cada mão”. O rapaz, constrangido, puxa rapidamente as mãos e demonstra descon-forto com a atitude de Amer.

O celular de Kamal toca, interrompendo a cena, e os outros des-viam a atenção. Apreensivos, estavam à espera de alguma notícia. O rapaz se retira da sala. Um amigo que continua na Síria tentava contato. “Celular e internet são os únicos recursos que temos para divulgar o que está acontecendo e denunciar. Twitter e Facebook são as facas nas costas do Bashar”.

No final da entrevista, propomos uma reflexão. “Qual o futuro que vocês desejam para a Síria?”. Após trocarem algumas palavras em árabe, o porta-voz do grupo, Amer, diz: “Nosso desejo é que o ditador caia. Assim que isso acontecer, eu pego um avião e volto para reconstruir meu país, pedra por pedra”.

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Atualmente, há quase dois milhões de refugiados sírios. Fugindo, cruzam o deserto a pé para chegar aos países vizinhos. São cerca de 800 mil vivendo no Líbano, um milhão na Turquia e 750 mil na Jordânia. Desse número, a Suíça acolheu 6 mil e a Alemanha, 5 mil. O Brasil recebeu 256. “Ligamos para o Itamaraty e eles dizem que estão ocupa-dos com segurança nacional. As portas estão fechadas para os sírios”.

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O Brasil tem ganhado notoriedade no cenário internacional e o ACNUR destaca nossa sociedade civil como proativa e engajada. O terceiro setor também tem se organizado para oferecer uma solução à crescente demanda de refugiados que chegam ao país.

O Ministério do Trabalho, por meio do CONARE, atua com o apoio de oficinas e comitês locais para conscientizar e informar a popu-lação sobre as causas do refúgio. A iniciativa tem sido realizada em São Paulo, Rio de Janeiro e cidades do interior do Paraná e do Rio Grande do Sul com o apoio das Secretarias de Habitação e Saúde.

De acordo com Luiz Fernando Godinho, oficial de informação pública do ACNUR no Brasil, “nossa Constituição garante direitos civis, o processo de documentação funciona bem e o acesso aos serviços públicos acontece”.

Além da chegada dos refugiados, há políticas de reassentamento de palestinos e colombianos em Guarulhos e no Rio Grande do Sul. Godinho explica que os colombianos são levados para o interior do sul do país em função dos grupos militares (FARC) que atuam próximo à fronteira entre Brasil e Colômbia. Lá, sentem-se mais protegidos e seguros.

Atualmente, discute-se a ampliação do conceito de refugiado. “Mas e os que já estão aqui?”, reflete Larissa.

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Uma das maiores dificuldades está logo na chegada: o alberga-mento. Grande parte dos recém-chegados não têm recursos finan-ceiros para alugar um quarto ou residência e precisam ser encaminhados para o sistema público – albergues da Prefeitura – ou instituições do terceiro setor.

Em São Paulo, a Cáritas atua em parceria com a Casa do Migrante e o Centro de Acolhida Nossa Senhora Aparecida, a “Casa das Mulheres”, que abriga refugiadas e seus filhos e estrangeiras egressas do sistema penitenciário.

A demanda cresceu tanto que não há espaço para todos. Muitas vezes, os refugiados conseguem vaga somente para pernoite no sistema público e precisam passar o dia fora do local. Os albergues ficam lota-dos, principalmente durante o inverno, pois também acolhem moradores de rua.

Larissa explica que o caso dos sírios é uma exceção. “Há uma comunidade estabelecida no Brasil que oferece moradia e apoio finan-ceiro. Eles pagam aluguel e médico, mas já pediram ajuda para a Cáritas. Estão ficando sem fôlego”.

Além do albergamento, o maior desafio tem sido a chegada de menores desacompanhados. Até agosto de 2012, treze adolescentes do Congo, entre meninos e meninas, vieram para o Brasil clandestinamente em navios. “Eles são ainda mais vulneráveis”. O procedimento, em São Paulo, é encaminhá-los ao Juizado de Menores, que por sua vez, os direciona para casas de acolhida para crianças e adolescentes.

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Encontro de refugiados na sede da Adus

Murad Mamud Ali Khawi e Ana Gabriela

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O refugiado curdo recebendo seu certificado de cidadão inglês

Em trajes típicos do Curdistão

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P a r a a l é m d a f r o n t e i r a

Entrada da Casa do Migrante

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Vista dos pórticos dispostos no centro da Casa Entrada e recepçao

Para além da Fronteira

Detalhe dos arcos no pátio

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P a r a a l é m d a f r o n t e i r a

Centro de Acolhida, a Casa das Mulheres

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Detalhe da recepção do Centro de Acolhida

Pierre Nzéé Au Ciel e Ana Gabriela

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Abordar o deslocamento forçado com dados, número e leis, no entanto, nos pareceu superficial e insuficiente. Mais do que estatísticas, estamos falando de pessoas que tiveram suas vidas diretamente afetadas por conflitos e perseguições. Assim, para aprofundar o assunto, buscamos personagens dispostos a contar suas histórias a fim de ilustrar as diferentes perspectivas e realidades que envolvem a questão do deslocamento forçado.

O primeiro deles é Murad, imigrante de origem curda, que após um mês viajando de país em país, chegou na Inglaterra há 14 anos e atualmente é cidadão britânico. Ele, que só retornou ao Curdistão uma única vez para visi-tar os pais, está passando uma temporada no Brasil e nos contou, com detalhes, sua trajetória. Ouvimos, também emocionadas, as histórias da colombiana Lucia, do congolês Pierre, da haitiana Camille e o sírio Amer.