portugueses no universo do trabalho manauara (1880-1920) · nas festas do centenário da província...
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Portu g ueses no u n iverso do tra ba lho manauara ( 1 880-1 920)
Maria Luiza Ugarte Pinheiro U FAM
PODEMOS RASTREAR E MENSURAR a presença e influência portuguesa no Amazonas a partir de diver
sas dimensões sej a no debate acerca da arquitetura urbana; seja na introdução de hábitos e valores
que ganhavam com insistência espaço nos códigos de posturas; sej a nos álbuns anuais, na escrita dos
memorialistas, nos discursos das autoridades ou ainda nos inúmeros periódicos que veicularam na
cidade de Manaus.
Tem sido mais comum, afirmar essa presença recuando-se aos primórdios da colonização, com
a fundação do forte do Rio Negro em 1669, quando essa presença começa a ser efetivada na região
que é hoje o Amazonas. Na condição de cônsul português no Amazonas no início do século xx, Veiga
Simões, autor de um importante livro sobre a presença portuguesa na Amazônia, valoriza esse pri
meiros momentos da colonização:
Pouco a pouco a gente da Companhia e os colonizadores mais audazes interna
vam-se pelos sertões, acampavam nas grandes margens, onde os afluentes se que
bravam de encontro ao Amazonas, subiam colos sombrios e apertados, i niciavam
fazendas, que breve eram aldeias onde a catequese do padre arrastava o índio, e
o trabalho do colono da metrópole dirigia as plantações. Na invocação da pátria
distante, os colonos batizaram as terras novas com os [nome] das vilas que em
Portugal se ficaram, extáticas, desertas de braços, entregues a s i -mesmo, naquele
abandono que Sá de Miranda tanto reverbera na Carta ao Senhor de Basto. Era
primeiro Moura, Tl:>mar (1658) , logo Serpa, Olivença, Ega (1659), depois a constru
ção do forte do Rio Negro (1669), onde mais tarde se iria assentar Manáos. '
A presença lus itana em Manaus vai consolidar uma tradição que esteve presente em quase
todos os portos do Brasil e do mundo. Como é sabido, desde finais do século X I I I , Portugal tornou
-se um centro de comércio marítimo ativo, o que contribuiu para que a comunidade portuguesa se
SIMÕES, Veiga. Daquem & Da/em Mar. Manáos: Tip. Da Livraria "Palais Royal", 1916, p. 32-33.
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espalhasse pelo mundo. Em cidades como Manaus, onde havia a precedência do domínio colonial
português e onde também se formara uma forte comunidade lusitana, era de se esperar que essa pre
sença fosse bastante incisiva.
A comunidade portuguesa, já significativa no Amazonas, vai ampliar-se ainda mais com a ex
pansão da economia gumífera na região e com a consequente atração de novos migrantes. É comum
referenciar este momento como fortemente influenciado pelo capital inglês e pela cultura francesa,
porém é inequívoca a afirmação de que a maior parte dos imigrantes estrangeiros que aportavam
todos os dias em Manaus fossem de origem portuguesa.
Essa segunda migração, vem reforçar as bases da colônia portuguesa no Amazonas, muitas ve
zes seguindo os passos já trilhados por seus antecessores. De longa data os portugueses controlavam
boa parte do comércio loj ista, de padarias e de mercearias na cidade. A tomar-se como verdadeira
a afirmação do cônsul português em Manaus, "a maior parte do trabalhador dirigente, do comercio
a retalho e do grande comercio é portuguesa'', o que resultava em remessas significativas, rendendo
"anualmente a Portugal cerca de mil contos fortes':2
Os números acerca da entrada de imigrantes portugueses em Manaus na virada do século xrx para
o século xx são significativos, embora imprecisos. Em 1895, Lourenço da Fonseca, já registrava a predomi
nância portuguesa, salientando que para Manaus, de uma população de 25.000 habitantes, possivelmente
um terço dela era composta de estrangeiros, dos quais a maioria era oriunda de Portugal.3 Anos mais tarde,
o médico Hermenegildo de Campos referendava tais informações quando afirmava que "quanto à nacio
nalidade da população na capital [Manaus ] podemos calcular perto de 1o.ooo estrangeiros para so.ooo
brasileiros. A maior colônia é a dos portugueses, avaliada por competentes em 5.ooo':4
Já afirmamos em trabalhos anteriores5 que a força com que as ideias eugênicas penetraram
e ganharam corpo no seio das elites dirigentes amazonenses, vai contribuir para a existência dessa
forte presença portuguesa no Amazonas, onde as autoridades do Estado viam uma possibilidade de
"melhorar a qualidade" da população amazônica via incentivo a colonização europeia, dando prefe
rência à imigração ibérica. Era esse, o pensamento do Governador do Estado do Amazonas, Augusto
Ximeno Villeroy em 1890. Em pronunciamento oficial, partindo de uma avali ação bastante negativa
da população descrevia como deveria ser povoado o Estado do Amazonas.
2 Jbidem, p. 120 e 198 .
A nacionalidade brasileira resulta de uma mistura de raças, ainda não fundidas
i ntimamente, o que será o trabalho dos séculos, de modo que etnograficamente
não constituímos ainda - um povo; consequentemente, seria um erro aumentar
a desordem existente, importando colonos a esmo, sem critério, sem seleção;
FONSECA, L. No Amazonas. Lisboa: Cia. Geral Typografica Editora, 1895, p. 85 .
4 CAMPOS, Hermenegildo de. Climatologia Médica do Estado do Amazonas. Ma naus: ACA, 1988 , p. 101 .
PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte Pinheiro. A cidade sobre os ombros: trabalho e conflito no porto de Manaus, 1899-1925.
Manaus: Edua, 2003.
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portanto, para não alterar o caráter fundamental da nacionalidade nascente,
convém limitar a colonização aos povos ocidentais, especialmente ibéricos.
Toda tentativa, pois, de colonização asiática, seja qual for, deve ser energicamen
te combatida; de resto, ensaiada em S. Paulo, ela tem sido verdadeiro desastre.6
O governador terminava seu discurso enfatizando o caráter empreendedor dos portugueses e re
lembrando o fato de que uma vez que a colonização da região fora feita por Portugal, nesse sentido haveria
um substrato cultural que facilitaria a assimilação do colono, evitando-se traumas maiores de adaptação.
[ . . . ] esta raça preenche todas as condições para viver, crescer e progredir no
meio amazonense. Inútil expender aqui argumentos para demonstrar uma ver
dade sentida por todos, brilhantemente atestada pela nossa história e pela pu
jança da colônia portuguesa da Amazônia, principal esteio do seu comércio.'
Veiga Simões, cônsul de Portugal no Amazonas, em obra que pretendia divulgar o papel e a
importância da colônia portuguesa no Amazonas, enfatizava para a comunidade amazonense e auto
ridades os motivos que deveriam levar o Amazonas a dar preferencia à imigração portuguesa (numa
flagrante desqualificação da mão de obra do cearense) . Ressaltava a importância da participação ma
ciça desse imigrante na construção da estrada Madeira-Mamoré e lembrava ainda o investimento que
essa comunidade fazia com o dinheiro que ganhavam na cidade de Manaus
Os grandes empreendimentos do i menso vale, têm sido levados a cabo à custa
do sangue português. Olhe-se a linha Madeira-Mamoré: toda ela assente sobre
cadáveres de portugueses que tombaram aos milhares . . . Ainda agora, muitos
dos grandes comerciantes portugueses de Manaus trabalharam em seringais no
interior, lá foram buscar a rude aprendizagem para os seus negócios. É a colô
n ia portuguesa que possui mais da metade da propriedade urbana, que rende
anualmente a Portugal cerca de três mil contos fortes. Porque o português é o
único colono do norte do Brasil, que aqui emprega seus capitais e para a sua
terra remete apenas os rendimentos. [ . . . ] Onde estão as construções citadinas,
as grandes propriedades do interior, a navegação, o carinhoso interesse dos ou
tros colonos? Quem viu aí os imigrantes ingleses, italianos, alemães construírem
quarteirões inteiros em Manaus ou no Pará?"
6 VILLEHOY, A. X. "Como se deve povoar o solo amazônico". ln: MIRANDA, B. (org . ) Annaes do Congresso Comercial,
Industrial e Agrícola (22 a 27 de fevereiro de 1910) . Manaus: Palais Royal, 1911, p. 21 .
7 Ibidem, p. 25-26.
8 SIMÕES, Veiga. Op. cit. , p. 120. Agnelo Bittencourt, cm dicionário que organiza, também corrobora com parte desse
pensamento, quando fala do comerciante português J. G. Araujo: "ao contrário de outros negociantes, que empregavam
seus lucros fora do Amazonas e do Brasil, J. G. (assim também o chamavam), fazia-no onde a fortuna tinha sido ganha"
(BITTENCOURT, Agnello. Dicionário Amazonense de Biografias: vultos do passado. Rio de janeiro: Conquista, 1973, p. 87) .
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Assim, para o autor o incentivo a vinda de imigrantes portugueses - pelos laços criados desde
os primórdios da colonização e pelos investimentos que os portugueses haviam desenvolvidos aqui
na região até aquele momento - deveria ter prioridade no investimento das autoridades locais, em
detrimento de outros migrantes, como os italianos, ou mesmo de nacionais, como os cearenses, que
chegavam em número cada vez maior no porto de Manaus. Sobre os cearenses dizia o autor :
Mas o cearense que é decerto, um rude trabalhador, é mau colono. Com raríssi
mas exceções, não se adapta à Amazônia. Vê-se no interior um barracão maltra
tado, coberto de paxiuba, sujo : é de cearense. Um barracão de madeira, coberto
de telha com boas plantações em redor é em regra de português. Compreende
se. [ . . . ] Se fica para trabalhar, enquanto trabalha tudo espera do patrão. Aqui
mesmo, em Manaus, se verifica a inadaptabilidade do cearense. As habitações
mal instaladas nos bairros pobres da Cachoeirinha, dos Tócos, do Mocó, Flores,
com a sua pobreza suja, são em regra de cearenses.9
As falas dos periódicos, do cônsul português e dos memorialistas apontam para uma questão,
que é referente à percepção de uma diversidade muito grande das condições sociais e econômicas
dos imigrantes portugueses. Podemos perceber na documentação portugueses abastados dirigindo
suas empresas comerciais, portugueses a frente de instituições e órgãos de destaque na cidade, mas
também, podemos flagrá-los em em ofícios e profissões os mais diversos, e principalmente entre os
de pouca qualificação e remuneração, cabendo salientar que esses constituíam a grande maioria dessa
comunidade. Com os olhos numa dessas pontas, Genesino Braga enumera alguns portugueses des
tacados na cidade:
A firma do Comendador Alexandre Amorim - - Amorim e Irmão - - era na
Travessa da Imperatriz e tinha a venda cal de Lisboa e a champanha "Cliquot':
O Centro Comercial Amazonense, de José Teixeira de Souza, fundador da
Associação Comercial do Amazonas e da Beneficente Portuguesa, era na rua
da Boa Vista (atual Marques de Santa Cruz) . João da Silva Sarmento, na Rua
Formosa (atual rua de Teodoreto Souto, anunciava bacalhau a 240 réis a libra; e
a Padaria Luso-Brasileira, situada perto da Ponte do Espírito Santo (próximo ao
atual edifício da Alfandega) preparava saborosas bolachinhas com mel."'
Agnello Bittencourt nas páginas do seu Dicionário Amazonense de Biografias enaltece os feitos
e a figura de um dos maiores aviadores de borracha da região norte: J G Araujo. Filho de lavradores
em Póvoa do Varzim, deixa sua terra aos n anos de idade, com o consentimento de seus pais e chega
a Manaus em 1871, atraído pelas informações positivas que ouvia sobre as terras do Amazonas. Pouco
9 SIMÕES, Veiga. Op. cit. , p. uS.
10 BRAGA, Genesino. Chão e Graça de Manaus. Manaus: Fundação Cultural do Amazonas, 1975, p. 161 .
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a pouco, J. G. Araujo vai se consolidando na cidade, trazendo seus familiares e amigos para Manaus.
Com o tempo acaba construindo um verdadeiro império comercial no norte do Brasil. O memoria
lista transcreve em seu livro uma carta datada de 29 de outubro de 1950, que Bernardino Gonçalves
de Araujo escreve de Lisboa a seu primo o Comendador Agesilau de Araujo, filho de J. G. Araujo :
Com maior satisfação lhe digo que tenho em meu poder o 'O Jornal' de 5 de
Outubro de 1950, dessa cidade de Manaus, o qual presta j usta homenagem ao meu
parente n. 1, seu digno e honrado pai. Nas festas do centenário da Província do
Amazonas, desse grandioso Estado, não podia ser melhor a lembrança de tornar
conhecidos os feitos singulares do grande trabalhador português. A reportagem
de Jara disse tudo, por isso, eu não desejo, nem posso dizer mais, mas depois de ter
lido toda a descrição de Jara, eu vejo uma razão para perguntar. . . como compare
ceram os Araújos em Manaus? Porque é que eles foram para Manaus, quase deles
desconhecida cidade, naqueles recuados tempos e não para o Rio de Janeiro, onde
já havia muitos portugueses e os meios de transportes mais rápidos?"
Em Manaus os portugueses - diversificados económica e socialmente - buscaram criar
mecanismos de solidariedade que fizeram a comunidade adquirir um forte senso corporativo.
Fizeram circular na cidade mais de uma dezena de periódicos, por onde buscavam não só infor
mar, mas também uniformizar o pensamento da comunidade em torno de questões prioritaria
mente atinentes aos interesses mais específicos de seu segmento mais enriquecido. Muitas vezes
segmentavam-se a partir de sua procedência em Portugal. Pelos títulos da Imprensa portuguesa
no Amazonas, sobressaem poveiros e loriguenses. 12 Os subtítulos eram bastante esclarecedores so
bre a procedência do imigrante ou sobre os interesses que pretendia defender. Assim, o periódico
Pátria Portuguesa, publicado em 1920, intitulava-se "órgão defensor da Colonia Portuguesà'. Em
Imprensa, Política e Etnicidade: portugueses letrados na Amazônia (1885-1936) o historiador Geraldo
Sá Peixoto Pinheiro, salienta a importância do estudo desses periódicos para o entendimento do
complexo universo dessa comunidade. Diz o autor:
muito provavelmente não se compreenderia o complexo processo que eles de
sencadearam na tentativa da modelagem dos hábitos "patrícios': e na construção
das identidades nacionais, culturais e das sensibilidades/subjetividades coletivas
do próprio i migrante português no vale amazónico. Esses jornais portugueses e
os grupos de letrados portugueses que deles fizeram parte, podem, muito bem,
ll BITTENCO U RT, AgneJ Jo. Op. cil. , p. 84.
12 Inúmeros jornais portugueses foram publicados no período de 1893 a 1921, dos quais podemos citar: A Caridade (1893)
- Sociedade Beneficente Portuguesa; O Luzi/ano ( 1900) ; O Luso (1904); Loriga Literária (1905) ; O Loriguense ( 1906) ; A Voz de Loriga ( 1909) ; O Lusitano ( 1913-1920) ; O Povo de Loriga ( 1910 ) , órgão da Colonia Loriguensc em Manaus; Alma
Portuguesa (1915 ) ; O Poveiro (1915-1917) ; Pátria Portuguesa (1920), órgão defensor da Colonia Portuguesa; O Ranzinza
(1921) ; União Portuguesa ( 1918) ; República Portuguesa ( 1919) .
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uns e outros, ser pensados metaforicamente como "os artesãos dos necessários
ajustamentos", para usar uma expressão consagrada em contexto semelhante
pelo célebre historiador George Duby. ' 3
A comunidade lusitana em Manaus buscou também fortalecer os laços de solidariedade com
os habitantes da região que a acolhia, para quem lembravam o "passado comum" mostrando-se como
pertencentes não a uma nação amiga, mas irmã. Buscaram integrar-se à sociedade amazonense, in
teragindo e misturando-se a ela. Sentiam-se partícipes do processo de desenvolvimento regional e
todos os eventos da comunidade eram franqueados aos amazonenses.
Postura bem diferente da adotada pela comunidade de ingleses que criaram espaços restritos
de convivência. No Bosque dos Ingleses somente os que possuíam muito dinheiro podiam frequentar.
Detentores por concessão do governo federal e estadual, do controle da área portuária e dos princi
pais serviços urbanos (água e esgoto, iluminação, telégrafo, mercado municipal) imprimiram relações
superioridade, arrogância e prepotência, até mesmo com as principais autoridades locaiS.14
Exemplar dessa situação é a greve de 1899 dos estivadores do porto de Manaus. , onde enfrenta
vam a poderosa empresa inglesa Manáos Harbour, concessionária dos serviços do porto de Manaus.
Os periódicos locais como o Jornal do Comércio e o Diário de Manáos, unidos contra o poderio do
capital inglês na cidade, utilizando- se da greve desses trabalhadores, deixavam entrever a relação ten
sa existente entre os comerciantes portugueses e locais e as empresas inglesas. Denunciava o Diário
de Manáos em seu Editorial:
Há doze dias que se acham em "greve" os estivadores aqui domiciliados. Criaturas
pacíficas, bondosas, que suam desde a madrugada até o triste dilúculo, debaixo
dum sol ardentíssimo, sujeitos à canícula e a chuva, e portanto às doenças que
decorrem desse labutar insano, esses trabalhadores humildes, mas honrados,
apenas pedem que os recompensem devidamente.
Esses setecentos obreiros hão-se mantido, apesar da rudeza e das provocações
constantes que têem sofrido, por parte de duas casas i nglesas, que se imaginam
em terra conquistada, na mais perfeita paz, com a mais inteira calma . . . Nada os
perturba na consciência do magno direito . . . nem os insultos ouvidos.
Casas tem havido, portuguesas e brasileiras, e numerosas senão todas que con
cordaram com a justiça das reclamações e têem espendiado os grevistas por preço da razoável tabela que convencionam. Para essas, embora apenas cumpram o
dever da sensatez, enorme é a gratidão dos estivadores . . . A escravatura acabou
em 13 de maio de 1888 e nós estamos no ano das graças 1899.
13 PINHEIRO, Geraldo Sá Peixoto. Imprensa, política e etnicidade: portugueses letrados na Amazônia (lSSs-1936). Tese (dou
torado em História) - Universidade do Porto, Porto, 2012.
14 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Op. cit.
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Cremos, no entanto, que a reação dos comerciantes portugueses e brasileiros
surgirá, i mpondo a esses agiotas do suor alheio a satisfação a satisfação dos pe
didos feitos pela "greve'; que tem sido modelar no gênero.
Que os ingleses se esbofem, na sua sanha de estalar o pobre, chamando a polícia
imprudentemente, sem razões plausíveis !
Insistem, pois , os laboriosos estivadores no seu protesto manso e altivo, sem des
mando de qualquer natureza, repudiando as provocações, porque têem a apoiá
-los o comércio luso-brasileiro e a defende-los os que ainda se não deixaram
vergar ao peso dum capitalismo i nteligente e malvado. ' '
O jornal do Commércio, um dos maiores diários da cidade, propriedade de um abastado comer
ciante português, deixava entrever nas suas páginas essa animosidade presente entre os comerciantes
locais (que incluía estrangeiros e nacionais) contra os ingleses. Mas, o periódico refletia também em
grande medida os interesses da comunidade lusitana no Amazonas numa vinculação que se materializa
va mais claramente a partir de colunas especiais como "Portugal Pelo Telégrafo" e "Cartas de Portugal':
esta última assinada por João Grave, a partir de correspondências enviadas de Lisboa, onde informava as
últimas notícias da vida política e cultural lusitana. Assim, em maio de 1920, quando algumas greves de
trabalhadores agitavam Portugal, João Grave em longa coluna para uma comunidade preocupada e ávida
de notícias dos seus informava que a situação continuava "pezada, asfixiante . . . Depois da minha ultima
chronica ocorreram já no paiz acontecimentos sensacionais. Com efeito, a greve dos empregados [ . . . ]
telegrafo [ . . . ] a dos funcionários públicos intensificou-se, mantendo-se os grevistas intransigentes . . . ':'6
Percebe-se ainda a preocupação do periódico em tranquilizar a comunidade em função dos atrasos ocor
ridos com a correspondência. Assim, em outra notícia sobre o título As Greves em Portugal informava o
jornal que "Como o publico sabe, o serviço postal em Portugal, por causa das greves, está irregularíssimo.
Há milhares de malas a expedir para o Brasil, retidas a mezes em Lisboà:'7
A comunidade portuguesa consolidou também suas raízes no Amazonas a partir das inúmeras
agremiações filantrópicas que se formaram no seio da comunidade manauara, como as sociedades
repatriadoras, donde a mais importante foi a Luzitânia Repatriadora, fundada em 1908 . A Lusitânia
Repatriadora além de ajudar inúmeros portugueses empobrecidos a retornarem para sua terra natal
preocupou-se ainda com a educação dos trabalhadores portugueses que aqui viviam. Em 1909, o di
ário A Notícia, publicava uma matéria com o título Portugueses em Manaus, onde salientava o papel
desempenhado por essa instituição:
15 Diário de Notícias, 25 de novembro de 1899.
16 Jornal do Commacio, 4 de maio de 1920.
17 Jornal do Commercio, 9 de maio de 1920.
JOSÉ JOBSON D L A. ARRU DA • VERA LUC IA A. F E R LI N I • MARIA I / I LDA S . D E MATOS • FERNANDO D E. SOUSA (ORGS.)
Merece bem uma revoada de aplausos e louvores a soberba iniciativa da colônia
portuguesa em Manáos, estabelecendo uma escola nocturna para aquelles seus
patrícios adultos que laboram no desconhecimento dos mais rudes princípios.
A "Lusitania Repatriadorà: nobilíssima instituição que vem prestando altos ser
viços aos portugueses desamparados, ha feito jús a todas as palmas com essa
resoluçãoo grandiosa de facultar aos nossos irmãos de além mar todos os meios
preciosos para uma educação modesta, é verdade, mas suficiente para despertar
em cada um as funções intelectuais algemadas pela cadeia da ignorância.
De certo os portugueses em Manáos não poderiam imaginar dois meios mais
nobres e significativos de render homenagem á pátria e concorrer para o desen
volvimento social de seus irmãos, do que amparar os patrícios infelizes fazendo
volvei-os ao solo natal quando em precárias condições de saúde, e abrir escolas,
d istribuindo luz, para os que vivem a pedir instrução.'8
Foram também colaboradores na implantação de um dos mais importantes centros de saúde da
cidade, a Sociedade Beneficente Portuguesa do Amazonas, criada no ano de 1873. Segundo seus estatutos
era uma instituição com fins caritativos e tinha como meta atender além dos seus associados, que eram
na grande maioria portugueses, qualquer pessoa de outra nacionalidade.'9 A Beneficente Portuguesa
juntamente com outros hospitais, como o Santa Casa de Misericórdia procuravam atender as constantes
demandas de surtos, epidemias e doenças que assolaram a cidade nos momentos de maior contingente
populacional. Nas páginas do Jornal do Comércio eram publicadas periodicamente as atas das reuniões
dos sócios do hospital, onde faziam um balanço do recebimento de donativos e do movimento de entra
da e saída dos doentes. Com o título de Beneficente Portuguesa informava o periódico:
Em sessão de 3 do corrente, estando presente os srs Luiz Eduardo Rodrigues,
presidente Manoel Fernandes, 1° Secretário; José Antonio Gomes, procurador,
Antonio José Vieira, Antonio José Pereira da Silva Sotto Mayor, Antonio Dias
dos Santos, João Evangelista Maia, João Serra, Antonio Vaz da Costa e Joaquim
Pinto da Silva Junior, mordomos.
O presidente abriu o expediente ás 8 Y2 horas da manhã. Foram recebidos os
seguintes donativos: O sr. Antonio Dias dos Santos ofereceu dadivas no valor de
62o:ooo, durante o mez de dezembro de sua mordomia.
18 A Notícia, 4 de fevereiro de 1909.
19 Essa informação de que o hospital era aberto a todas as nacionalidades, a escrita do Barão de Santa-anna Néri corro
bora. Quando fala em sua obra da mortal idade excepcional que ocorreu em Manaus no ano de 1 897 diz o autor sobre a
Beneficente Portuguesa: "No hospital português, estiveram [ . . . ] 576 doentes em tratamento, e ocorreram apenas 39 mor
tes . . . [ . . . ] Entre esses doentes, contavam-se entretanto, indivíduos de todas as nacional idades, ainda pouco acl imatados:
portugueses, franceses, italianos, espanhóis, peruanos, venezuelanos, árabes, etc." (NERI, Barão de Santa-Anna. No Paiz
das Amazonas. São Paulo: Edusp, 1979, p. 60-61) .
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O serviço para o mez corrente é o seguinte: mordomo: Antonio Machado
Soares; drs. Jorge de Moraes e Alfredo da Matta; panificadora: a firma Correia
Santos & C.
O movimento dos doentes do dia 3 a 9 do corrente, no hospital foi o seguinte:
Existiam: 9 brasi leiros, 22 portugueses e 2 de outra nação - total: 32. Entraram: 1 brasileiro, 14 portugueses e 1 de outra nação - total: 16 . Sahiram curados: 2 brasi
leiros, 13 portugueses - total: 15 . Sahiram melhorados: 1 brasilei ro, 2 portuguezes
e 1 de outra nação - total: 4. Ficaram em tratamento: 7 brasileiros, 21 portugueses
e 1 ele outra nação - total: 30, sendo 21 pensionistas, 5 sócios e 4 de caridade."'
Além dessas agremiações, a comunidade portuguesa criou vários clubes sociais e esportivos. O
turf, esporte caro e só praticado em Manaus por imigrantes europeus e sírio-l ibaneses endinheirados,
incluía entre seus sócios e praticantes, alguns portugueses mais afortunados. O turf acontecia aos
domingos no Prado Amazonense, onde os páreos eram constantemente noticiados nos periódicos da
cidade. Os nomes dos cavalos eram indicativos da nacionalidade dos seus respectivos donos: Nero,
Guarany, D. Quixote, Aquidaban, tupy, Bismarck, Douro, Rio Pardo etc. Nesses dias de descontração
e lazer, frequenta-se a missa, a passeios de bonde e caminhadas na área portuária para ver os paque
tes e navios que chegavam trazendo cartas, jornais e revistas e muitas vezes os amigos do além mar.
Segundo João Nogueira da Mata:
Nessas ocasiões o Pavilhão e a Bolsa Universal regurgitavam de frequentadores.
[O] Pavilhão bem instalado, praticamente com três serventias: o térreo com óti
mo serviço de bar, dispondo de bebidas finas e salgadinhos da melhor qualidade.
Desde os pastéis de santa clara, os bolinhos de bacaclhau, os sanduiches de pre
sunto chegados pelos paquetes da Booth Line . . . [a] Bolsa Universal. . . escolhida
para ponto de encontro dos grandes comerciantes da praça [com] Serviço de bar
irrepreensível, com garçons estrangeiros - na maioria portugueses . . . "
Na ode modernizante que toma conta da região ao longo de todo o Ciclo da Borracha, vai ser
comum que o regional passasse a ser associado ao atraso e tradicionalismo, em oposição ao progresso
e à "civilização" desejada. Não sem motivos, Manaus, capital do Estado e então epicentro comercial do
frenesi gerado pela economia de exportação da borracha, adotava, já em fins do século xrx o apelido
que defmia o espírito de uma época: "Paris da Selva", adjetivo que ficou eternizado na memória de
seus habitantes.
20 Jornal do Cornrnércio, 9 de j aneiro de 1909 .
2 1 MATA, João Nogueira da. Antiqualhas rnanauaras. Manaus: Editora Humberto Calderaro, 1991, p. 15 .
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Porém, a "modernidade manauara" vai apresentar, em seu interior, de forma bem marcante, a
exclusão social. Ela vai se fazer por sobre os escombros do que era percebido como antigo, arcaico ou
atrasado, em geral identificados nos hábitos e nas tradições populares da cidade.
Esse fenômeno pode ser facilmente percebido a partir das modernizações que vão ser implemen
tadas no porto e nas principais ruas da cidade que provocaram não somente a expropriação dos mora
dores da área onde essas modificações ocorreram, mas também a exclusão de antigos hábitos comuns
na cidade, como os conhecidos banhos nos igarapés. Assim, o processo que dará a Manaus um aspecto
cosmopolita e moderno, vai ser o mesmo que reforçará em seu interior práticas de exclusão sobre uma
imensa parcela da população, fazendo-a sentir fortemente o peso da opressão, da miséria e da fome.
Os relatos referentes a este período de expansão econômica e demográfica (1890-1910) dão con
ta de uma cidade com sérios problemas para abrigar um contingente sempre crescente de migrantes
nacionais e um número nada desprezível de imigrantes estrangeiros, como podemos observar a partir
dos dados disponíveis acerca da população da cidade. Em 1872, havia em Manaus 29.334 habitantes ;
em 1890, esta cifra subiu para 38 .720 e dez anos depois (1900) já alcançava a marca de 52 .040. Por fim,
o censo de 1920 registrava uma população de 75 .704 habitantes, quase cinquenta mil a mais do que a
1872.22 Mesmo durante o período áureo da borracha não havia na cidade oferta de empregos suficien
te para o contingente de trabalhadores que chegavam em busca de uma vida melhor provocando na
cidade distúrbios que iam da grave questão da indigência, a gatunagem.23
Assim, a questão da indigência se transformou em um dos mais sérios problemas que as auto
ridades administrativas tiveram que enfrentar neste período. Perambulando pelas ruas, sem emprego,
sem casa, sem recursos, famintos e maltrapilhos, este foi o cotidiano de muito migrante em Manaus.
Terminavam geralmente recolhidos aos leitos da Santa Casa, de onde muitas vezes não saiam mais.
Os j ornais da cidade estampavam cotidianamente tais noticias como podemos ver pela nota da coluna
Chronica Policial de 27 de fevereiro de 1908: "Já sem fala, numa miséria tristíssima, foi apanhado pela
polícia e conduzido a Santa Casa o indigente Francisco Machado".24 Porém, os hospitais da cidade
nem sempre tinham condições de abrigar a demanda de pobres e desvalidos que aumentava coti
dianamente, e nem sempre o trabalhador tinha recursos para custear hospital, remédios, moradia e
alimentação. Já em 1864, esse é o caso do português Francisco Antônio Moreira, que teve sua vida
exposta nas páginas do jornal o Catechista, em função da indignação de Vasconcelos de Freitas, que
o acolheu enquanto estava doente, com o tratamento deselegante de outro membro da comunidade
para com Francisco Antonio, não respeitando sequer a sua morte:
22 Até 1900, os dados referem-se a censos apresentados por Alfredo da Matta que, como outros estudiosos que o sucede
ram, aponta a extrema fragi lidade desses números. Cf. MATTA, A. Geografia e topografia médica de Manaus. Manaus:
Typ. Renaud, 1916, p. 43·
23 PIN!lEIRO, Maria Luiza Ugarte Pinheiro. Op. cit.
24 jornal do Commercio, 27 de fevereiro de 1908 .
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A PEDIDO
Sr. Redactor
D F. COLO N O S A I M I GRANTES 573
Tendo apparecido em nossa casa na tarde de 5 do corrente o nosso compatriota
Francisco Antonio Moreira gravemente enfermo, nós, movidos pelos sentimentos
de benevolência, o convidamos para ser tratado em nossa companhia, visto que sen
do ele um pobre operário, não podia fazer as despesas que era de necessidade para
o seu completo restabelecimento. Acceitando ele o nosso oferecimento deixou-se
ficar; e ás 8 horas da noite pouco mais d' esse dia, deo alma ao Creador.
Seriam 10 horas da noite, quando soubemos que o sr Antonio Gomes Barbosa
no bilhar dos srs. Cunha & Comp. , não respeitando o parce sepultis - prerom
peo em injurias contra o falecido por lhe dever a grande soma de 4$500 réis ! ! !
Deixamos amanhecer, e quando o cadáver era conduzido ao seu ultimo jazigo,
fomos pagar essa, como se vê do recibo que se segue.'5
Como podemos observar as alternativas disponíveis para quem morava ou chegava a cidade
com pouco ou nenhum recurso eram bastante limitadas, variando entre engrossar o contingente su
burbano ou, permanecer na zona central, alojando-se nos inúmeros cortiços, pensões ou hotéis de 3a
categoria. Em função de tal situação eram comuns as brigas e entreveras com os donos das casas de
cômodo, os roubos de pertences das malas dos inquilinos ou ainda a apreensão da mala do hóspede
pelo senhorio quando do atraso ou não pagamento do aluguel . Podemos acompanhar cotidianamen
te situações como essas nas crônicas policiais e nas colunas reservadas as queixas dos populares nos
periódicos da cidade. Assim é que na Chronica Policial do dia 21 de abril de 1908 denunciava o jornal
que "Joaquim da Costa arvorou-se em juiz. Lá por contas sismou em prender a bagagem do inquilino
Mathias da Rocha, que por isso bramou contra o homem e vae ser atendido com todos os efes e erres
e esses". Logo abaixo, outra nota na mesma coluna dizia que
O dono do Hotel Internacional arvorou-se de juiz, tal qual o outro lá de cima.
Pelo menos foi isso que contou a primeira delegacia Germano Ribeiro de
Figueiredo, desesperado porque o hoteleiro lhe prendera a bagagem, por falta de
pagamentos de uns cobres. É preciso acrescentar que o novo j uiz ensaiou m al os
seus primeiros passos porque a policia reformou a sua sentença.'"
Essa dificuldade de equacionar a crescente demanda por moradias com uma oferta cada vez
mais limitada, fazia de Manaus uma das cidades brasileiras onde se pagava mais caro o aluguel, o que
sempre se constituiu em crítica por parte dos trabalhadores nacionais e estrangeiros que migravam
para Manaus. Em 1899, veiculando pelos jornais uma nota "ao comércio': queixavam-se os estivadores
25 O Catechista, 7 de maio de 1864.
26 jornal do Commercio, 21 de abril de 1908 .
JOSÉ JOBSON DE A. ARRUDA • V E R A LUC iA A. FFRLI N I • MARIA ! Z i l..DA S. DE MATOS • FERNANDO DE SOUSA (ORGS.)
do "aumento excessivo dos aluguéis das casas", com o agravante de não poderem confiar "na estabili
dade do preço ajustado':27
Podemos acompanhar a vivenda dos segmentos mais abastados da comunidade portuguesa em
Manaus através de um conjunto considerável de fontes como a dos nos periódicos, nas atas e docu
mentos da Associação Comercial, através da documentação das associações beneficentes, publicações
de memorialistas etc. Porém, é mais difícil acompanhar a vivência dos portugueses que, em Manaus,
pertenciam aos segmentos mais populares. Há pouca visibilidade acerca de suas organizações e socia
bil idades, o que nos leva a recorrer a fontes que os flagram, frequentemente, em atitudes consideradas
conflitivas e transgressoras por parte das autoridades locais, como nas colunas policiai s dos inúmeros
periódicos da cidade. Assim, até mesmo os momentos de lazer e descontração acabavam ganhando as
páginas das Crônicas Policiais. É assim que em 1908, publicava o Jornal do Comércio uma nota a res
peito de um "Baile de Arromba. Ontem, as 11 horas da noite, originou-se serio conflito no hotel Villa
do Conde, si to a rua Joaquim Sarmento, onde se realizava um baile a sustância. A polícia compareceu
no local, prendendo 18 convidados, todos portugueses':28
Nesses momentos podemos perceber como o linguajar do periódico se tornava deselegante,
grosseiro e extremamente preconceituoso ao veicular essas notícias, como ocorreu com o caso da
prisão do português João de Oliveira provocada por uma possível bebedeira. Dizia o j ornal:
Pileque e pau, eis o que apanhou hontem o português João de Oliveira Costa,
que num estado deplorável de bebedeira e com as fussas deitando melado encar
nado, foi dar com os ossos no quarto escuro da rua Deodoro, onde está pagando
por si e por outros companheiros de egual jaez que deram as de Villa Diogo
quando, na Avenida Silverio Nery, ouviram o trilar dos apitos.29
Ficava evidente também que o preconceito externado pelo periódico, muitas vezes, era muito
mais de classe, do que de nacionalidade, pois este mesmo linguajar era utilizado quando os populares
locais ou nacionais eram flagrados em situações que estavam em desacordo com os novos hábitos e
padrões de moralidade que se pretendia para a sociedade manauara. A Chronica Policial de 14 de maio
de 1908 escrevia a respeito de uma mulher que considerava de "conduta duvidosa" : "Nenem Paraense
é a antonomásia de uma Eva que hontem despara atirar insultos ás fussas de Pedro Alcantara da Luz.
A rapariga explicou-se na segunda delegacia".3o
Como já mencionamos, a comunidade portuguesa que se ampliou a partir do boom da borra
cha passou também a ser percebida também no interior dos novos ofícios e atividades que passaram a
compor o cenário urbano de Manaus. Assim, começaram a fazer parte do cotidiano urbano médicos,
27 jornal da Tarde, Manaus, u de novembro de 1899.
28 jornal do Commercio, 27 de j aneiro de 1908.
29 jornal do Comrnercio, 27 de fevereiro de 1908.
30 jornal do Commercio, 14 de fevereiro de 1908.
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DE COLO N O S A I M I G RANTES 5 7 5
advogados, sapateiros, padeiros, pedreiros, carregadores, cocheiros, gráficos, alfaiates, catraieiros, es
tivadores, vendedores ambulantes, caixeiros etc. Os caixeiros de Manaus, como ocorreu em outras
regiões do Brasil, eram quase todos de procedência portuguesa3' e um anúncio de emprego recolhido
em um jornal local, confirmava essa preferência: "Caixeiro - Na Mercearia Alfacinha precisa-se de
um [trabalhador] de 12 a 15 anos; prefere-se português".32
A área portuária de Manaus, importante numa cidade que se projetava como entreposto comer
cial da borracha, também abrigou uma grande concentração de portugueses. Repetia-se em Manaus
com a presença lusitana, uma tradição presente em quase todos os portos do Brasil e do mundo. Com
efeito, é sabido que desde finais do século X I I I , Portugal tornou-se um centro de comércio marítimo
ativo que fez desenvolver e consolidar profissões ligadas as atividades portuárias. Desde aquela época
a presença de marítimos (pilotos, taifeiros etc . ) e estivadores portugueses nos portos do mundo intei
ro tornou-se frequente.33
Em muitos movimentos reinvindicatórios dos trabalhadores portuários, aparecem referências
diretas à composição lusitana de parte desses quadros, como na greve de 1923, entabulada pelos es
tivadores. Em abaixo-assinado dirigido à Associação Comercial do Amazonas, assumiam expli cita
mente esse viés, ao afirmar: "Nós pretendemos implantar com todo o ardor as o8 :oo horas; horário
este, adotado e respeitado em todo o território brasileiro. Portanto, brasileiros e portugueses, em ação
conjunta, resolvem definitivamente fazer valer nesta capital o horário acima referido . . . ".34
Em outro momento, referindo-se ao êxito de uma de suas manifestações políticas, quando
haviam conseguido reunir na praça do Comércio mais de dois mil trabalhadores, o presidente da
Associação Beneficente dos Estivadores e Carroceiros do Amazonas, Manoel Rufino Correia da Silva,
enfatizava que "o dia de ontem era para os estivadores, como o 15 de novembro foi para os brasileiros
e o 5 de outubro para os portugueses':35
A presença de portugueses foi também importante no seio de outra categoria portuária: os
catraieiros . As catraias e alvarengas (pequenas embarcações) foram importantes no trabalho de es
tivação pelo menos até 1906 quando se concluiu a construção de um cais flutuante do novo porto
de Manaus (o Roadway), uma vez que até aquela data as catraias funcionavam como intermediários
entre o cais e os grandes navios que fundeavam no meio do rio, a 150 metros da margem.
À semelhança dos estivadores, os catraieiros contavam em sua composição com um número
considerável de portugueses. Em 1895 temos uma referência explícita a essa questão, trazida pela fala
de um cronista português, quando de sua chegada à Manaus:
31 POPINIGIS, Fabiani. Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, ISS0-191 1 . Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
32 Commércio do Amazonas, 14 de fevereiro de 1 899.
33 ALBUQUERQUE, Marli Brito de. Trabalho e conflito nu porto do Rio de janeiro. Dissertação (mestrado) - UJ'RJ, Rio de
janeiro, 1983, p. 66.
34 Jornal do Commercio, 8 de junho de 1923.
35 jornal do Commercio, 3 de janeiro de 1911.
JOSÉ JOtJSON DE A. ARRUDA • VH<A LUCiA .A. F ERUN I • MARIA IZ !L .DA S. D F MATOS • FERNANDO DF SOUSA (ORGS. )
Quando aí fundeou o nosso Imperatriz 1hereza a ele encostou uma dúzia de
botes, vistosamente pintados . Eram todos de catraieiros portugueses. Os nomes
estampados à popa em caracteres de fantasia, bem atestavam quanto o patriotis
mo lusitano não decresce com o auxílio em longes terras e por dilatado tempo.
Bem hajam. Recorda··nos que entre esses bateis havia um Vasco da Gama, um
Avenida da Liberdade, um Minho, um Torre de Belém e um Luiz de Camões. E os
costumes são tão portugueses que mais de uma vez se nos tem afigurado estar
mos na pátria do cantor dos Luzíadas.36
Tais evidências, no entanto, não podem sugerir somente a existência de relações harmoniosas
no interior da comunidade portuguesa ou mesmo dos portugueses com outros imigrantes (nacio
nais ou estrangeiros) . Os momentos de crise, retração da oferta de empregos ou guerras deixavam
em evidência tais situações. Em 1917, o jornal O Rio Madeira, publica uma matéria com o título Os
Portugueses e a Guerra, onde enaltece o patriotismo e a solidariedade do povo português, principal
mente daqueles portugueses que se encontram em terras distantes e faz uma campanha de angariação
de fundos para serem enviados a Portugal. Ao mesmo tempo em que agradece aqueles que contribuí
ram com a campanha, condena a conduta dos que ignoraram ou se negaram a contribuir :
Longe, muito longe da pátria, o português não esquece nunca os seus deveres
de cidadão, e não abandona um só momento o seu patrício, qualquer que seja a
sua posição social.
Agora mesmo, nesta situação premente que Portugal atravessa essa colônia, dig
na de elogios, tem dado sobejas provas de seu patriotismo. Kermeses, subscri
ções e tantos outros meios de angarias donativos têm sido por ella postos em
prática, e o resultado é sempre aplicado no auxílio das vítimas da guerra.
Ultimamente constitui-se em Manaus a Comissão Patriótica Portuguesa que,
trabalhando entusiasticamente, promoveu a distribuição de cadernetas com o
fim de angariar os donativos com que a referida pretendia auxiliar os seus com
patriotas, víctimas da terrível hecatombe.
Idéia benemérita, teve logo franco acolhimento. E só não pode dizer-se que toda
a Colonia se movimentou como um só corpo, porque infelizmente teve aquela
Comissão, uma nódoa escura na sua h istória, de constatar a rejeição de algumas
cadernetas por um insignificante número de indivíduos que não conhecem ou
esqueceram o que significa dever cívico.37
Muito provavelmente o periódico tecia críticas a posturas adotadas por portugueses como a
que observamos no periódico de orientação anarco-sindicalista A Lucta Social. Produzido em 1914
36 mNsEcA, L. Op. cit. , p. 85 .
37 O I<.io Madeira, 31 de maio de 1917.
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por trabalhadores gráficos, teve como grande articulista e produtor o português Tércio Miranda. Em
suas páginas o jornal cerrava fileiras na condenação aos nacionalismos, na condenação da guerra
que acabara de explodir na Europa, apresentando-a como um movimento autofágico e encetado pela
ganância da burguesia europeia. Criticavam o crescente militarismo, dirigindo especial atenção para
a manipulação e exploração dos trabalhadores europeus, ante uma guerra que não lhes dizia respeito.
De forma irônica, argumentavam que a guerra era provocada por meia dúzia de pessoas de
"altos poderes humanos e elevados princípios religiosos" e que, sob o impacto dessa ação, não só a
Europa estava ficando coalhada de cadáveres, mas também os campos onde antes se plantava e colhia
trigo haviam se transformado num lugar de morte, onde só passavam canhões. Denunciavam, ainda,
as vidas ceifadas unicamente para enriquecer "os acionistas de fábricas de material de guerra':38
No bojo dessas contestações, Tércio Miranda, publica carta aberta a seu irmão Abílio, que, em
Portugal, estava às voltas com o recrutamento militar. Nela, pedia a ele que não se alistasse nas fileiras
do exército português e que, caso fosse obrigado a fazê-lo, desertasse! Lembrava ao irmão que uma
coisa era ter participado no 1° Batalhão de Voluntários da República, pois este envolvimento fora para
garantir um direito conquistado pelo povo, a extinção da monarquia; porém, agora:
trata-se, não da liberdade, do prestij io do povo, mas, do prestijio dos arjentários
insatisfeitos, que longe de suavisar as dores e as máguas dos pequenos, aumen
tam ainda as suas chagas mortíferas. São estes os únicos culpados da grande
calamidade que nos envolve e são estes que em vez de irem combater, mandam
os filhos do povo. E assim eles, que tudo teem a perder, nem a vida arriscam.
Mesmo vencidos são sempre vitoriosos".'"
Os momentos de crise e retração da oferta de empregos levavam à emergência de apelos xenófobos,
como foi no caso dos estivadores. Em 1911, alguns empregadores priorizaram a contratação de estivadores
portugueses alegando serem eles mais robustos e aptos ao trabalhos que os nacionais. Nesses momentos,
os protestos ocorriam de imediato e por vezes resultavam em paralisações com denúncias e apelos ao
cumprimento dos dispositivos legais contidos nos "Estatutos dos Armazéns Alfandegados'; onde estava
estabelecido que "os brasileiros natos são os que devem ser os preferidos para o serviço':40
Limitamo-nos a dar breve registro aqui daquilo a que estamos tendo acesso no curso de nossa
pesquisa. Para além da marcante presença portuguesa na esfera econômica da região, as marcas mais
singulares dessa presença no espaço citadino manauara constituem ainda um campo aberto à inves
tigação, a clamar por uma maior atenção dos historiadores da região.
38 A Lucta Social, ll0 6 . Manaus, nov. 1914.
39 lbidern.
40 Carta da Manáos Harbour ao jornal do Commercio, Manaus, 17 de j aneiro de 1911.