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Saindo da Rota Uma discussão sobre a pureza na religiosidade afro-brasileira Rogério Cappelli Dissertação de Mestrado apresentada para defesa ao departamento de Pós- Graduação em História da Universidade Federal Fluminense Orientador: Marcos Alvito Rio de Janeiro

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  • Saindo da

    Rota

    Uma discusso sobre a pureza na religiosidade afro-brasileira

    Rogrio Cappelli

    Dissertao de Mestrado apresentada

    para defesa ao departamento de Ps-

    Graduao em Histria da

    Universidade Federal Fluminense

    Orientador: Marcos Alvito

    Rio de Janeiro

  • 2

    2007

    Sumrio Introduo 3 Captulo I Inventando a pureza e a impureza 08 1.1 - O Il Ax Iy Nass Ok Terreiro da Casa Branca: o bero da

    tradio nag 13

    1.2 - Reao banto: o campo se divide 30

    Captulo II Saindo da rota 37 2.1 - Quem tem dvida vai frica 39

    2.2 - O que est em disputa 52

    Captulo III A Pureza da impureza 65 3.1 - A Trinca de L 66

    3.2 - Eram os deuses intelectuais? 71

    3.3 - Cada macaco no seu galho 80

    3.4 - Umbanda ao vivo 85

    3.5 - Progresso + conhecimento = evoluo 95

    3.6 - Terreiro de biblioteca 106

    Concluso Vou caminhar que o mundo gira 4.1 Jogando a tarrafa 117

    4.2 Pescando com a linha na mo 121

    Bibliografia 126

  • 3

    Introduo

    Vrias seriam as possibilidades de insero diante de uma anlise do campo

    religioso afro-brasileiro. Primeiro me instigou saber os motivos que levavam os fiis

    desta forma de religiosidade a mudarem de crena, o chamado trnsito religioso.

    Debruado na bibliografia sobre o assunto, percebi que muito j havia sido dito, com

    poucas discordncias sobre os seus motivos, o que de certa forma me fez pensar em

    outro caminho. E foi somente no final de um dos curso oferecidos pelo programa de

    ps-graduao da universidade que tive a intuio de que isto no era o que queria fazer,

    ainda que a soluo para este impasse no estivesse clara para mim. A nica certeza que

    tinha era a anlise da umbanda, de sua dinmica religiosa, da imagem construda sobre

    seus rituais e de sua heterogeneidade to proclamada aos quatro cantos.

    E foi exatamente nestas pesquisas, nas leituras sobre a questo religiosa africana,

    principalmente sobre umbanda e candombl, que comeou a surgir e se tornar clara para

    mim uma espcie de delimitao de determinados espaos prprios e caractersticos de

    cada umas desta religies. No era difcil encontrar a mesma base de argumentao na

    explicao sobre o universo religioso do candombl, de suas tradies africanas

    resgatadas e mantenedoras da legtima pureza africana. Candombl era sinnimo de

    frica e seu representante legal em terras brasileiras morava na Bahia. Era um consenso

    intocado, no discutido, que tomava como pressuposto uma continuidade africana em

    terras brasileiras em uma espcie de tele-transporte incorruptvel, no bom sentido do

    termo.

    Outro aspecto tambm me saltava aos olhos. Foram estas leituras que me mostraram

    o nome do que deveria ser considerado puro e homogneo, logo mais respeitvel porque

    fiel s razes: vinha da Nigria e respondia pelo nome de nag, grupo tnico africano

    responsvel pelos cultos aos orixs e que se estabeleceu em maior nmero na Bahia a

    partir do sculo XIX. Mas como a pureza necessita irremediavelmente da existncia da

    impureza para que ela possa ser compreendida, para que ela possa estabelecer seus

    limites de atuao que iro permitir a formao de sua coeso grupal, o que deveria ser

    impuro, misturado, no tardou a aparecer. Respondiam pelo nome de bantos, negros

  • 4

    provenientes principalmente da regio de Congo e Angola e que foram, no sudeste, e

    principalmente no Rio de Janeiro, responsveis por uma grande influncia na

    constituio da religio umbandista. Seriam negros de baixa capacidade intelectual,

    pouca habilidade para a guerra, obedientes aos senhores e incapazes de manter suas

    tradies religiosas africanas vivas, tendo em vista sua aceitao dos mais variados

    elementos externos sua prpria cultura.

    Bem, as coisas estavam clareando: candombl era sinnimo de nag e umbanda era

    sinnimo de banto. Os nags eram mais evoludos porque mantinham suas tradies

    religiosas mais africanizadas enquanto que os bantos no estavam muito preocupados

    com esta questo, assimilando vrios elementos das culturas com que entravam em

    contato. Tendo em vista estes aspectos, e no esquecendo que meu tema principal era a

    umbanda, enchi meus pulmes e bradei: vou defender os bantos, mostrar toda a sua

    riqueza cultural, sua forma singular de perceber a religiosidade e provar, reunindo todos

    os argumentos possveis e imaginrios, que eles no devem nada aos nags! Estava

    disposto a recolocar seu nome na histria e a vingar todo o menosprezo sofrido atravs

    dos livros que, alis, eram todos sobre candombl. Como escrever sobre algo se seus

    principais protagonistas no so dignos de apreciao e reconhecimento? Era primeiro

    preciso reabilit-los para, depois, tornar sua apreciao legtima, ainda que os julgadores

    fossem, na sua maioria, defensores do que eu pretendia colocar em questo.

    Quando rumei para este caminho cheio de disposio e vontade, me deparei com

    vrios trabalhos que j trilhavam o mesmo rumo. As sensaes de desespero e de

    tranqilidade se confundiam: a primeira porque nada do que eu estava pensando era

    novidade e a segunda porque, ainda que no fosse novidade, existiam uma srie de

    intelectuais, entre historiadores e antroplogos, que pensavam da mesma forma que eu e

    achavam tambm que os bantos mereciam uma melhor colocao na anlise da

    religiosidade afro-brasileira. E foi a partir desta leituras realizadas que pude, enfim,

    atentar para a questo principal de que eu deveria tratar. O que pude perceber era que, a

    mesma lgica utilizada pelos intelectuais nagocntricos para se fazer a defesa da

    superioridade dos nags tinha sido transportada, mesmo que obviamente com outros

    objetivos, pelos defensores dos negros de origem banto. Ambos buscavam na frica os

    elementos principais que seriam capazes de demonstrar a legitimidade e a pureza de

    cada um dos grupos aqui no Brasil.

    Foi preciso ento me libertar do compromisso anteriormente assumido com os

  • 5

    bantos para que meu objeto se tornasse claro. Utilizar na minha defesa deste grupo os

    mesmos argumentos que eu tinha a inteno de desqualificar foi uma contradio

    insupervel, ao mesmo tempo que extremamente valiosa para que eu pudesse avaliar

    friamente o caminho que deveria ser traado.

    E foi a partir deste momento que tive definido o que de fato faria. Analisaria o que

    estava por trs do poder de nomear o que deveria ser puro ou no, uma avaliao dos

    lucros simblicos e no somente simblicos - que esta delimitao poderia gerar para

    aqueles que a definissem e defendessem em virtude de seus objetivos ideolgicos e

    acadmicos. O que estava em jogo no eram as caractersticas em si, tanto de bantos ou

    de nags, mas sim a legalidade emprestada a ambos pelo meio intelectual e pela

    sociedade, que tornavam possvel seu emprego como aspecto diferenciador dentro da

    esfera religiosa afro-brasileira na medida em que sua legitimidade passa a ser julgada de

    acordo com sua representatividade e aceitao acadmica. Estar respaldada pela

    universidade seus mitos, suas concepes de mundo e seus orixs- uma retaguarda

    de respeito para um mercado religioso cada vez mais disputado. Enfim, estudaria os

    usos desta pureza na umbanda e no candombl, procurando apontar sua variaes de

    acordo com cada conjuntura especfica, de acordo com as relaes de fora de cada

    grupo envolvido e, conseqentemente, nesta lgica, a defesa de sua constante

    reordenao ritual e religiosa como sua principal caracterstica. Desaparece a oposio

    banto-nag e surge a anlise de suas estratgias para alcanar tanto suas necessidades

    particulares quanto sua maior insero social.

    O mtodo utilizado para que esta hiptese pudesse ser demonstrada foi a

    comparao entre os rituais que acontecem na umbanda e no candombl. Analisando-os

    tentarei demonstrar que existe uma grande diferena entre aquilo que se fala sobre eles e

    aquilo que realmente acontece dentro dos terreiros. Pelo lado da umbanda realizei uma

    srie de entrevistas com seus dirigentes espirituais, pais e mes de santo responsveis

    por estabelecer o que deve ser realizado dentro do espao religioso. Pelo lado do

    candombl fiz uma anlise dos principais terreiros, eleitos academicamente como os

    mantenedores da tradio, e de seus principais porta-vozes, incluindo a tambm um

    grande nmero de intelectuais e seus respectivos livros.

    exatamente este aspecto que d origem ao primeiro captulo, denominado

    Inventando a pureza e a impureza. Nele procuro fazer um levantamento bibliogrfico

    dos autores que foram pioneiros na abordagem desta questo e que serviram de

  • 6

    referncia para os que depois se ocuparam do tema. Aponto como foi sendo criado

    historicamente o conceito de pureza dentro da religiosidade afro-brasileira e de que

    maneira ele foi sendo apropriado pelos prprios membros do candombl, na medida em

    que esta apropriao passa a render frutos. Neste captulo tambm demonstro de que

    maneira se procedeu a reao banto, em virtude de um movimento de questionamento

    sobre o fato da sua quase nula participao na concepo do mundo religioso afro-

    brasileiro.

    No segundo captulo, Saindo da rota, fao uma anlise dos procedimentos

    utilizados, tanto por defensores dos bantos quantos por defensores dos nags, para que

    seus grupos ganhem a legitimidade africana de que necessitam para serem levados em

    considerao. Analiso como o retorno frica passa a ser fundamental para que seus

    pressupostos sejam aceitos fazendo com que a variao esteja presente somente nos

    diferentes lugares que foram visitados: Congo e Angola pelo lado banto ou a Nigria

    pelo lado nag. Aqui problematizo at que ponto este retorno s origens serve de

    delimitao para a maneira com esta religiosidade africana se desenvolveu em terras

    brasileiras. Fao tambm neste captulo uma anlise mais especfica do candombl,

    procurando ressaltar o que de fato est em disputa no momento em que se delimita o

    que deve ser considerado candombl ou no.

    No terceiro e ltimo captulo, A pureza da impureza, abordo de maneira mais

    significativa a umbanda procurando demonstrar, atravs das entrevistas realizadas com

    seus dirigentes espirituais, a maneira como surge e se desenvolve sua dinmica

    religiosa. Fao isto sempre procurando demonstrar a similaridade com o que acontece

    dentro do candombl, caminhando no sentido de apontar uma lgica comum de

    apreciao, sem deixar de levar em conta suas diferenas especficas. Procuro tambm

    realizar uma abordagem sobre as mudanas implementadas dentro dos terreiros em

    virtude da valorizao do conhecimento escrito, em detrimento da experincia de vida e

    da tradio oral tipicamente africanas. Tento trazer tona as estratgias utilizadas pelos

    responsveis pelos terreiros para que possam garantir sua legitimidade e seu poder

    diante destas novas circunstncias que se colocam como desafios a serem vencidos e

    entender de que maneira esta nova relao transforma, no s sua dinmica pessoal mas,

    tambm, a religiosidade da qual faz parte integrante.

  • 7

    O uso constante e indiscriminado de algum instrumento termina por embotar-lhe o gume; impe-se, de tempos em tempos, verificar seu poder de corte e, se necessrio, renovar-lhe o fio

    Jos Guilherme Cantor Magnani

  • 8

    Captulo I

    Inventando a Pureza e a Impureza

    Rogrio Cappelli

    Admitindo-se que a desordem estraga o padro, ela

    tambm fornece os materiais do padro. A ordem implica restrio; de todos os materiais possveis, uma limitada seleo foi feita e de todas as possveis relaes foi usado um conjunto limitado. Assim, a desordem por implicao ilimitada, nenhum padro realizado nela, mas indefinido seu potencial para padronizao. Da porque, embora procuremos criar ordem ns simplesmente no condenamos a desordem. Reconhecemos que ela nociva para os modelos existentes, como tambm que tem potencialidade. Simboliza tanto perigo quanto poder

    Mary Douglas

    Esta citao feita por Douglas em seu livro Pureza e Perigo1 nos mostra, ou pelo

    menos aponta, alguns mecanismos que nos permitem entender o processo de construo

    dos elementos puros e impuros de determinada sociedade. Todo sistema que passa a ser

    estabelecido de forma ordenada, necessariamente deixou de fora da sua constituio

    certos elementos que, naquele instante especfico de formao, no tinham os

    significados requeridos para sua insero. Isso no significa sua excluso eterna. Em um

    outro momento, em uma nova organizao social da mesma sociedade que estabelea

    novas estruturas de poder, nada impede que alguns elementos antes declaradamente

    impuros ganhem novos significados e dessa maneira passem a integrar o novo sistema

    vigente. Esta questo se esclarece mais para ns quando tomamos por conta o conhecido

    conflito de geraes, onde quase sempre estranhamos os hbitos e as noes morais de

    nossos avs e at mesmo, em algumas circunstncias, de nossos prprios pais.

    exatamente nesta flutuao de significados inerente s modificaes do contexto

    histrico que residem os elementos capazes de gerar purezas e impurezas. E o que

    pretendo avaliar aqui justamente esta congruncia, abordando a bibliografia clssica

    sobre o candombl e a construo da idia de pureza nos cultos religiosos de origem

    1 DOUGLAS, Mary (1966). Pureza e Perigo. So Paulo: Perspectiva.

  • 9

    africana. Sua escolha enquanto campo de observao est ligada ao fato de que este

    culto em especfico foi o palco escolhido de maior expresso de um certo padro

    religioso evoludo, por apresentar em sua estrutura, de acordo com seus estudiosos,

    mecanismos de delimitao mais claros, onde se faziam sentir mais presentes os

    diversos aspectos que deveriam ser peculiares ao modelo institudo, condio

    fundamental para sua consolidao enquanto grupo. Pretendo analisar os usos feitos em

    nome da to perseguida pureza africana, ou melhor, nag, em oposio mistura

    designada aos negros de origem banto, procurando demonstrar de que forma se constri

    este debate no campo de estudo religioso afro-brasileiro.

    fundamental para que se compreenda esta estrutura levarmos em considerao que

    este um campo repleto de disputas, sejam elas no meio religioso ou acadmico, e que,

    assim como em qualquer disputa realizada, cada grupo formula sua estratgia prpria

    com o intuito de alcanar seus objetivos particulares. Dessa forma, partimos do

    pressuposto que o universo puro da mais pura cincia um campo social como

    outro qualquer, com suas relaes de fora e monoplios, suas lutas e suas estratgias,

    seus interesses e seus lucros, mas onde todas estas invariantes revestem formas

    especficas.2

    Pretendo demonstrar atravs da forma especfica do campo religioso afro-brasileiro

    de que maneira e com que objetivo formulada esta oposio banto-nag, tendo em

    vista o lugar ocupado por cada um de seus participantes neste espao. E o candombl

    capital por se constituir enquanto um empreendimento de diversos agentes religiosos,

    resultando na formao de um corpo de sacerdotes e intelectuais - responsveis por

    sua sistematizao, calcados na tradio africana. Sendo assim, sobre a oposio citada,

    devemos levar em considerao o seguinte contexto:

    Enquanto resultado da monopolizao da gesto dos bens de salvao por um corpo de

    especialistas religiosos, socialmente reconhecidos como detentores exclusivos da

    competncia especfica necessria produo ou reproduo de um corpus

    deliberadamente organizado de conhecimentos secretos (e portanto raros), a constituio de

    um campo religioso acompanha a desapropriao objetiva daqueles que so excludos e

    que se transformam por essa razo em leigos (ou profanos, no duplo sentido do termo)

    destitudos do capital religioso (enquanto trabalho simblico acumulado) e reconhecendo

    2 BOURDIEU, Pierre (1983). O Campo Cientfico. In: ORTIZ, Renato. Pierre Bourdieu - Sociologia.

    So Paulo: tica.

  • 10

    a legitimidade desta desapropriao pelo simples fato de que a desconhecem enquanto

    tal.3

    Para que esta anlise seja feita de maneira razovel, temos que levar em

    considerao alguns pr-requisitos necessrios que funcionam como um elo

    fundamental que serve de alicerce para a argumentao no sentido de apontar os

    motivos que fazem o que puro ser reconhecido como tal. Tudo que puro tradicional

    e tudo o que tradicional se legitima e se impe por sua antiguidade, ou pelo menos

    pela construo dessa noo. Esta uma dinmica que atinge praticamente todas as

    formas de organizaes existentes dentro da sociedade, pois em muitas esferas

    econmicas ou polticas por exemplo, o poder fica nas mos daqueles que detm uma

    maior experincia tempo de engajamento - em seu campo de atuao, ou at pessoas

    que, mesmo sendo muito novas para serem detentores de tal ttulo, representam a

    continuidade do pensamento daquele que ser sempre visto e consagrado como

    tradicional e detentor de certo status.

    O poder da tradio e da antiguidade no reside tanto na criao em si mas,

    principalmente, na pretensa manuteno do que existe e na delimitao do que pode vir

    a ser criado, uma vez que o acesso aos meios legtimos de produo, em qualquer

    sentido, depende quase sempre de seu aval. Segundo Norbert Elias, isso se torna

    possvel atravs da existncia de uma satisfatria coeso grupal, aliada a uma

    antiguidade compartilhada que gera e fortalece os mecanismos necessrios para o

    estabelecimento do que deve ser feito ou seguido, do que deve ser puro.4 Mesmo no

    estando esta relao diretamente ligada idia de pureza, ela demonstra que os mais

    antigos exercem um determinado predomnio na esfera simblica de determinao do

    que vai ser entendido como certo ou errado, legtimo ou ilegtimo, e em nosso caso

    particular, puro ou impuro.

    No campo religioso este processo aparece de maneira mais clara e exemplar, uma

    vez que na grande maioria das religies existe a necessidade fundamental de se

    estabelecer dentro de sua doutrina, o que dela faz parte ou no. Mantendo a mesma

    lgica na construo dessa distino puro-impuro, a linguagem religiosa renomeia esta

    oposio em sagrado e profano. Segundo Durkheim:

    3 BOURDIEU, Pierre (1999). Gnese e estrutura do campo religioso. In: A Economia das Trocas

    Simblicas (Org: Srgio Miceli.) So Paulo: Perspectiva. 4 ELIAS, Norbert (2000). Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

  • 11

    Mas o caracterstico do fenmeno religioso que ele supe sempre uma

    diviso bipartida do universo conhecido e conhecvel em dois gneros que

    compreendem tudo que existe, mas que se excluem radicalmente. As coisas

    sagradas so aquelas que as proibies protegem e isolam; as coisas profanas,

    aquelas a que se aplicam essas proibies e que devem permanecer distncia

    das primeiras. As crenas religiosas so representaes que exprimem a

    natureza das coisas sagradas e as relaes que elas mantm, seja entre si, seja

    com as coisas profanas.5

    Dessa o profano, da mesma maneira que o impuro, se torna uma ameaa ao sagrado

    e ao puro uma vez que pode proporcionar ao crente ou ao cidado uma outra forma de

    viver e de se comportar, deslegitimando o poder exercido por quem desta ordem ou

    deste poder sagrado se beneficia e impe sua autoridade. Ou seja, antes mesmo de

    realizar uma classificao do que no puro ou sagrado, necessrio que se encontre

    um respaldo, terico ou objetivo, que proporcione a determinado sujeito ou grupo uma

    atuao na posio de julgador destes quesitos. E caso ambos no pertenam ao grupo

    estabelecido, que pelo menos sejam seus representantes autorizados.

    No candombl baiano todas estas premissas colocadas so notadas, j que ele faz

    parte da sociedade e responde s suas transformaes enquanto grupo social. A questo

    referente antiguidade das pessoas que fazem parte dessa religio um dos principais

    elementos caracterizadores do que vai ser aceito e visto como puro ou no, podendo at

    por muitas vezes ser argumento de objeo para se assumir determinado lugar em sua

    estrutura6. Uma vez que essas pessoas mais antigas provavelmente tiveram a

    possibilidade e oportunidade de ter acesso a um conhecimento que hoje j no se

    dispe, alm de serem reconhecidas publicamente pela sua dedicao e experincia

    adquirida, so elas normalmente que servem de referncia e legitimidade para o que se

    faz dentro da esfera religiosa. A transmisso oral do conhecimento por contato pessoal

    cara a cara fortalece esta senioridade uma vez que estas so pessoas que ouviram,

    viram e experimentaram mais, so guardis da tradio do terreiro. Estar a mais tempo

    na religio significa um maior contato e reverncia em relao aos deuses de seu

    5 DURKHEIM, mile (2000). As Formas Elementares da Vida Religiosa. So Paulo: Martins Fontes, p. 24 6 muito difcil que em uma disputa pela sucesso em um terreiro de candombl no leve em

    considerao este quesito, seja para se promover ou para mostrar porque uma determinada pessoa no

    pode assumir. Este assunto ser tratado com mais detalhe no captulo II

  • 12

    panteo, significa uma dedicao que merece em troca o respeito pelos anos passados

    em adorao divindade e aos segredos guardados.

    importante ressaltar neste aspecto que o conceito de antiguidade aqui nada tem a

    ver com a idade que a pessoa tem a partir de seu nascimento, da data que consta em sua

    carteira de identidade e onde se comemora seu aniversrio. A data de nascimento aqui

    levada em considerao outra, completamente diferente. Seu nascimento o

    nascimento dentro da religio, como iniciado, a partir do ritual de iniciao feito de

    acordo com as cerimnias especficas de cada casa. O tempo que se conta nessa relao

    e que vale como atributo de respeito e conhecimento religioso aquele que foi vivido

    impreterivelmente dentro da crena que se escolheu. Portanto, algum de 30 anos pode,

    na idade religiosa, ser muito mais velho que uma outra pessoa de 50 anos ou mais que

    tenha acabado de se iniciar. Em suma:

    o princpio da senioridade importante para reforar o princpio do

    parentesco nos casos em que apenas a fora das relaes consangneas no

    suficiente para garantir a lealdade, cooperao, ajuda mtua e tolerncia. Se, de

    modo geral, o parentesco assegura estas quatro coisas, a senioridade garante a

    obedincia autoridade, que refora o conceito de liderana. Portanto,

    parentesco e senioridade asseguram o respeito aos costumes, autoridade e

    tradio, sobre os quais se estabelecem as relaes interpessoais entre os

    iorubs7

    Sendo assim, da mesma maneira que os requisitos de antiguidade foram - e so -

    utilizados pelos praticantes do candombl como smbolos de pureza, sero tambm

    levados em considerao pelos intelectuais que decidiram estudar seu funcionamento.

    At porque negar esta idia seria de certa maneira ignorar a estrutura de formao do

    grupo religioso escolhido. Diante deste entendimento, duas perguntas principais

    precisavam ser respondidas neste momento, pois de suas respostas sairiam os

    argumentos e o embasamento terico para que pudesse se estabelecer um ponto de

    partida: eleger o terreiro mais antigo de candombl do Brasil e, preenchido este pr-

    requisito obrigatrio para algo tradicional, buscar suas origens e semelhanas em terras

    africanas com vistas ao preparo do grito de eureca!

    7 FADIPE, N apud LIMA, Vivaldo da Costa (1977). A famlia-de-santo dos candombls jeje-nags da Bahia:

    um estudo de relaes intra-grupais. Salvador. Ps-Graduao em Cincias Humanas da UFBA

  • 13

    O Il Ax Iy Nass Ok - Terreiro da Casa Branca: o bero da

    tradio nag e africana

    Inicialmente chamado de candombl da Barroquinha8, hoje tambm conhecido como

    Candombl do Engenho Velho, esse considerado por todos, sejam membros do

    candombl ou integrantes do meio intelectual, como o terreiro mais antigo da Bahia.

    Mesmo sem uma preciso correta e inquestionvel, a data de 1830 aceita como marco

    fundador, representante da primeira manifestao religiosa negra organizada que tem

    como principal influncia na sua organizao ritual o culto aos orixs de origem nag,

    representados aqui por negros oriundos principalmente da Costa do Benin e da Nigria.

    Mais tarde, devido grande represso policial que se abatia contra os terreiros baianos,

    mudou-se para onde se localiza nos dias atuais, no bairro Vasco da Gama, em Salvador.

    Tamanha a sua importncia e respaldo enquanto mantenedor da tradio religiosa

    africana e to grande a sua legitimidade que, no dia 14 de Agosto de 1986, se tornou o

    primeiro terreiro de candombl da Bahia a ser tombado pelo Instituto do Patrimnio

    Histrico Nacional e Artstico (IPHAN), abrangendo no s a sua parte fsica como

    tambm seus principais objetos sagrados9.

    Sua narrativa de fundao est diretamente ligada frica. Conta a histria oral que

    este terreiro foi fundado por trs negras africanas que se chamavam Adet ou Iya Det,

    Iya Kal e Iya Nass10. Sendo o primeiro a funcionar regularmente na Bahia, nele est

    arraigado a tradio, aquilo que mais perto pode se chegar do que se fazia na frica,

    representado aqui pela regio de predominncia nag, em particular a Nigria, e o

    reconhecimento da fidelidade aos rituais que l se praticavam. exatamente deste

    terreiro que vo surgir, um logo depois e outro um pouco mais tarde, outros dois

    famosos terreiros estudados pelos principais intelectuais dedicados ao assunto

    antroplogos, etngrafos e socilogos que avaliando suas composies formularam

    teoricamente a idia do que era tido e visto como puro: so eles o terreiros do Gantois e,

    posteriormente, o Il Ax Op Afonj. A noo de pureza dos cultos afro-brasileiros 8 Isto porqu o lugar onde funcionou a primeira vez se localizava atrs da Igreja da Barroquinha, no

    antigo centro histrico de Salvador 9 Livro Arqueolgico, Etnogrfico e Paisagstico Inscrio:093 Data:14-8-1986 Livro Histrico,

    Inscrio:504 Data:14-8-1986, N Processo:1067-T-82. Outros terreiros importantes tombados: Gantois,

    Bate-Folha, Ax Op Afonj e o Il Maroi Lji. 10 Iy significa me.

  • 14

    facilmente reconhecvel na anlise da literatura antropolgica do inicio do sculo XX,

    nas obras de Nina Rodrigues, Artur Ramos, Edison Carneiro, Ruth Landes e Roger

    Bastide at a dcada de setenta do sculo passado.

    Fundado em 1849, o Gantois foi fruto de uma dissidncia, a primeira, acontecida no

    terreiro da casa Branca tendo em vista a sucesso de me Marcelina, sua dirigente at

    ento. Aps sua morte, entram na disputa pelo poder de chefiar a prestigiosa casa duas

    de suas filhas espirituais, Maria Jlia Conceio e Maria Jlia Figueiredo, sendo esta

    ltima a substituta legal de Marcelina pelas regras de sucesso estabelecidas por seus

    membros. Derrotada na sua tentativa de assumir o comando, Maria Jlia da Conceio

    se afasta do lugar e decide arrendar um terreno no Rio Vermelho, onde futuramente

    viria a fundar com as outras pessoas que a seguiram neste afastamento o terreiro do

    Gantois, que se chamava assim devido ao nome da famlia belga do proprietrio, dona

    das terras compradas e muito envolvida com o trfico de escravos.

    Aps Maria Jlia Figueiredo, Ursulina (me Sussu) ficou frente do terreiro da Casa

    Branca e com a sua morte ocorreu uma nova disputa pela sucesso, que da mesma

    maneira causaria tambm uma dissidncia entre seus membros. A protagonista desta vez

    era Eugnia Ana dos Santos, mais conhecida como Aninha que, mesmo no

    pretendendo assumir o controle do terreiro, articulava para que seu irmo de santo de

    Recife e nesse momento na Bahia, Ti Joaquim, fosse o substituto de Sussu. Por fim,

    como a substituta legal no pde assumir, seu lugar acabou sendo ocupado por tia

    Massi, Maximiana Maria da Conceio, fazendo com que Aninha e novamente aqueles

    que acompanharam sua dissidncia, inconformados com a derrota, fundassem em 1910

    o Il Ax Op Afonj.11 Sendo assim, aps este ltimo ato, estava constituda a

    santssima trindade do candombl baiano. Devido a sua origem comum, todos assumem

    seu papel comprovadamente tradicional, uma vez que so terreiros que tm como

    primazia e maior influncia as caractersticas africanas resguardadas por seus

    sacerdotes, ou melhor, suas sacerdotisas uma vez que as mulheres so grande maioria

    11 Seu prestgio vai se firmar sobretudo nos anos de 1960 e 70, quando artistas e intelectuais a ele ligados

    por laos religiosos ou afetivos traro para a cultura popular muitos elementos da religio dos orixs. Cf.

    PRANDI, Reginaldo (1999). Referncias Sociais das Religies Afro-Brasileiras: Sincretismo,

    Branqueamento e Africanizao In: Bacelar (org.) Faces da Tradio Afro-Brasileira Religiosidade,

    Sincretismo, Anti-sincretismo, Reafricanizao, Prticas teraputicas, Etnobotnica e Comida. Rio de

    Janeiro : Pallas

  • 15

    no comando espiritual do candombl12. Este lado religioso, portanto, j est constitudo

    e legitimado, independentemente dos intelectuais que depois vieram a estud-los e que

    no foram poucos.

    Esta questo de suma importncia porque revela um aspecto muitas vezes ignorado

    e colocado fora de discusso nos estudos ulteriores. Antes mesmo que estes intelectuais

    pudessem determinar e escolher quais seriam os terreiros analisados em seus estudos

    sobre o candombl e a tradio africana no Brasil eles, ao chegar na Bahia, j encontram

    de certa maneira esta legitimidade da tradio constituda no s entre as pessoas

    envolvidas com a religio, negros africanos em sua maioria, mas tambm na sociedade

    em geral, pois a tradio existe e se constri mesmo que nenhuma palavra ainda tenha

    sido dita sobre ela por algum ligado academia. Se no fosse isso verdade, se no

    existisse esta organizao minimamente estruturada e compartilhada pelos mais

    diferentes indivduos da sociedade baiana, a escolha do terreiro a ser analisado no seria

    feita da maneira que foi, direta, em reconhecimento aos valores que dele se tinha, visto

    que o estudioso pretendia com sua abordagem no criar uma tradio, mas trazer tona

    uma que j existia e saltava aos olhos de seus observadores.

    Partir do pressuposto, no meu entender equivocado, de que a tradio e a pureza s

    passaram a existir dentro do candombl baiano a partir do momento em que ela se

    tornou objeto de estudo intelectual um grande erro. Cabe aqui salientar que este um

    processo inerente constituio dos grupos, analisados ou no, e que mesmo antes de

    entrarem na lista de inteligibilidade j possuam suas prprias regras e limites

    estabelecidos, em carter local e autnomo ou mesmo com uma amplitude maior de

    influncia. Partir desta lgica imaginar que antes do estudo de caso ou mesmo se ele

    no existisse, nada do que temos hoje se apresentaria. Seria negar a capacidade destes

    grupos se organizarem de maneira prpria, independente de qualquer avaliao externa

    e sujeita a desvios ideolgicos.

    Ao que tudo indica, os que pesquisaram as religies negras, com vrios objetivos

    distintos, escolheram a Bahia por motivos bvios, uma vez que ainda no final do sculo

    XIX mais da metade da sua populao era constituda de negros e l ento seriam

    maiores as possibilidades de ainda estarem presentes e vivos muitos dos elementos

    originais da sociedade africana. Digo vrios motivos porque neste contexto, ainda sem

    uma preocupao demasiada com a religiosidade negra, que surge o pioneiro destes 12 Cf LANDES, Ruth (2002). A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.

  • 16

    estudos em terras brasileiras. Raymundo Nina Rodrigues foi o precursor na

    problemtica negra que se colocava como questo para o desenvolvimento da sociedade

    nacional, e dele uma das primeiras teses que colocam a raa negra como objeto de

    estudo particular.

    Seguindo uma tese evolucionista, em voga como modelo intelectual europeu no final

    do sculo XIX, que colocava as raas em diferentes estgios de evoluo de acordo com

    sua procedncia e sua cultura, entendida aqui num sentido amplo, que envolve a cultura

    material, ou seja, as tcnicas de fabricao de objetos por exemplo, o mdico-legista

    afirmava a inferioridade de raa do negro africano, colocando como uma de suas

    principais caractersticas certa incapacidade fsica que no permitia aos de sua raa

    trabalhar com conceitos mais amplos como os da necessrias abstraes do monotesmo

    catlico vigente. O mestre maranhense procurava, ao mesmo tempo, demonstrar que

    esta convivncia com este tipo social em atraso patolgico poderia de alguma forma

    representar um perigo para o conjunto da nao em geral, includas tambm as classes

    ditas superiores que corriam o mesmo risco que as classes subalternas de se tornarem

    negras.13

    Outra preocupao primordial de Rodrigues era desvendar os motivos e as condies

    dessa inferioridade e, estabelecida esta diferenciao entre estgios evolutivos,

    comprovada nos moldes cientficos da poca, constituir fruns diferenciados de

    avaliao para este grupo, uma vez que seus atos brbaros cometidos no seriam fruto

    de sua mentalidade ruim, mas sim conseqncia de seu atraso intelectual e cultural.

    Defendia assim um tratamento diferente para este grupo principalmente nas questes

    judiciais, apreciaes distintas para grupos distintos pois no poderiam ser julgados

    pelas leis civilizadas em que agora se encontravam. Os terreiros no deveriam estar sob

    os olhos da represso policial, mas sim do controle mdico, j que Nina Rodrigues

    considerava a possesso dos negros um problema de psiquiatria e que deveria ser

    tratado como histeria.

    Mesmo reconhecendo esta inferioridade racial e cultural dos negros procedentes de

    terras africanas, Nina Rodrigues fazia uma distino entre os prprio negros onde

    afirmava a existncia de grupos mais evoludos ao lado de outros que, ainda que de

    13 RODRIGUES, Raymundo Nina (1935) O Animismo fetichista dos negros na Bahia. Rio de Janeiro:

    Civilizao Brasileira, p. 185-186. Apud CAPONE, Stefania (2004). A busca da frica no candombl. Rio

    de Janeiro : Pallas, p. 221

  • 17

    mesma procedncia continental, eram vistos como menos avanados. Essa separao

    criada por ele acaba por eleger, digamos assim, o melhor dos piores o que no deixa

    de ser uma distino importante j que para ser feita e afirmada partiu de idias e

    constataes objetivas e correntes na realidade do contexto baiano observado no final do

    sculo XIX e incio do XX.

    Esta distino proposta pelo autor em questo leva em considerao principalmente

    dois grupos de escravos africanos que se encontravam na Bahia: os nags oriundos da

    frica Ocidental, Nigria principalmente, e que chegaram em maior nmero no perodo

    final da escravido, e os bantos, originrios da regio denominada frica Central

    Ocidental, principalmente Congo e Angola, que aqui j estavam14. Para que fosse

    possvel estabelecer e afirmar concretamente a presena destes dois grupos, Nina

    Rodrigues se baseou principalmente em estudos como o do coronel Ellis e do

    missionrio Bowen, at ento os nicos disponveis naquela poca sobre as culturas

    iorub (nag). Tendo em mos estes escritos e os que ele mesmo empreendeu na Bahia,

    pde ento realizar uma comparao que o permitia chegar a concluses que

    estabeleciam a provenincia de determinadas prticas de algumas regies especficas da

    frica.15

    aqui que pela primeira vez aparece uma distino que leve em considerao

    aspectos culturais de ambos os grupos, ainda que fossem considerados,

    independentemente de sua classificao, como inferiores em relao ao branco. Em obra

    publicada sobre os africanos no Brasil, no incio do sculo XX, Nina Rodrigues aponta

    de maneira clara uma supremacia iorub, no caso os nags da Bahia, que era

    considerada por ele uma verdadeira aristocracia entre os negros trazidos para o Brasil.

    Mesmo que em estudos posteriores esta separao tenha sido utilizada para caracterizar

    desde os primrdios a supremacia e a pureza do grupo nag sobre o banto, alguns

    autores entendem que seria muito improvvel que este tenha sido o objetivo de Nina

    Rodrigues. Segundo Serra:

    Nina achava os nags superiores aos bantos, mas bvio que tambm os

    estimava congenitamente limitados a um baixo estgio evolutivo. Isso no chega

    14 Cf. VERGER, Pierre (1987). Fluxo e refluxo do trfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de

    Todos os Santos dos sculos XVII a XIX. So Paulo, Corrupio. 15 RAMOS, Arthur (1950) Os estudos negros e a escola de Nina Rodrigues In: Antologia do negro

    brasileiro. Rio de janeiro: Agir.

  • 18

    a ser, por certo uma glorificao (...) de qualquer modo no se percebe em sua

    obra qualquer nostalgia de uma pureza africana. No que tange ao candombl, ele

    punha as esperanas de evoluo em uma perpectiva de assimilao depuradora

    deste culto pelo cristianismo: o contrrio de um retorno africanista16

    Para este autor, no se percebe inicialmente em sua teoria qualquer meno ou

    propsito de se estabelecer o que seria o mais tradicional no quesito negros africanos,

    ou mesmo estipular o que deveria ser visto com religio ou como feitiaria. Para ele,

    qualquer que fosse a influncia que os negros atrasados exercessem sobre a constituio

    do povo brasileiro ela seria ruim, uma triste contribuio degenerao do homem

    civilizado e de suas organizaes. Ainda que encantado com a efervescncia cultural e

    religiosa que se desenhava na Bahia ou mesmo tendo delimitado sua viso atravs da

    escolha de um terreiro que pretendia comprovar sua tradio, pureza e originalidade em

    relao a frica, no parece ser seu intuito construir o cabedal intelectual que seria a

    base e origem do conceito de supremacia nag.

    Uma outra avaliao tem Beatriz Dantas que afirma, pelo contrrio, que teria sido

    exatamente Nina Rodrigues um dos primeiros a estabelecer a diferenciao que vai dar

    origem instituio intelectual que define academicamente o que passar a fazer parte

    do culto tido como puro ou no, tendo como base o modelo nag. Mostrando que o

    cdigo penal da poca tinha uma diferenciao de atuao em relao religies

    estabelecidas e prticas mgicas, vistas como feitiaria, curandeirismo e, portanto,

    passveis de punio, ela procura demonstrar que Nina Rodrigues empenhou-se em

    afirmar que o culto existente nos candombls de origem nag era de fato uma religio

    organizada e no magia - passvel ento de liberdade de culto assegurada pelo mesmo

    cdigo que ento ainda o reprimia. Este ato acabaria por recortar um modelo

    especialmente entre os vrios existentes dentro da religiosidade negra da Bahia,

    instaurando neste momento estudos que privilegiariam o modelo nag e o

    transformariam em padro para os demais cultos. Com relao a este fato, Dantas

    comenta: Mas este gesto instaurador , ao mesmo tempo, um gesto inaugural e de

    degredo, pois, se o jeje-nag a verdadeira religio, pressupe que os outros no

    o so. Desse modo, religio e magia, categorias de anlise de uso consagradas na

    Antropologia, sero trabalhadas e retomadas cientificamente nos anos 30 pelos

    16 SERRA, Ordep (1995). guas do Rei. Petrpolis: Vozes/ Koinonia.

  • 19

    seguidores de Nina Rodrigues, na tentativa de recortar, sobre as prticas de

    religiosidade popular, a verdadeira e pura religio dos nags e as prticas

    degenerada da feitiaria e magia dos demais componentes das camadas

    populares17

    Waldemar Valente, que faz no seu estudo uma anlise terica do sincretismo

    existente na sociedade brasileira, primeiro em termos metodolgicos e depois em

    termos religiosos, tambm se posiciona sobre o tema e procura deixar claro algumas

    consideraes sobre a obra pioneira de Nina Rodrigues. Da mesma maneira que Dantas,

    Valente faz uma crtica ao referido autor no sentido deste no ter levado em

    considerao a tradio banto afirmando, na poca, que j se tinha o conhecimento

    principalmente pelos sinais indiretos da sua influncia as sobrevivncias culturais

    que o nmero de bantos entrados na Bahia foi considervel. Ainda segundo Valente:

    Nina Rodrigues no s desconheceu o restante da populao negra existente

    no Brasil, como at mesmo parece no ter levado na devida conta a influncia

    cultural banto na Bahia. Embora percebesse a presena de traos culturais sul-

    africanos, o que lhe interessava era o negro sudans. Para ele s o sudans

    pesava na balana social e religiosa da Bahia. 18

    Mas o autor ao que parece est falando do tempo em que Nina havia feito suas

    pesquisas. Mais tarde, ou melhor, alguns pargrafos depois, ele passa a referendar tal

    crtica feita por ele prprio e mesmo afirmando que o contingente banto foi to grande

    quanto o sudans, afirma:

    O que no se pode negar que os negros sudaneses tinham um

    aparelhamento cultural superior aos bantos. Neste particular, isto , no que se

    refere importncia cultural dos sudaneses, as opinies de Nina Rodrigues tem

    sido perfeitamente confirmadas. Importncia cultural que se refletiu de forma

    particular na fora de difuso religiosa (...) a sua preeminncia revelou-se

    exuberantemente no aspecto religioso19

    17 DANTAS, Beatriz Ges (1988). Vov Nag e Papai Branco. Usos e abusos da frica no Brasil. Rio de

    Janeiro: Graal. 18 VALENTE, Waldemar (1977) Sincretismo religiosos afro-brasileiro. So Paulo: Companhia Editora

    Nacional. 19 Idem, p. 8

  • 20

    Em seu livro Os Africanos no Brasil, Nina declarava ter inutilmente procurado entre

    os negros da Bahia alguma forma de tradio resguardada de terras africanas, de idias

    religiosas pertencentes aos bantos, afirmando que s encontrara na Bahia uns trs

    Congos e alguns Angolas20. Difcil compreender uma afirmao como esta, que quase

    parte do pressuposto de que no existia nenhuma organizao religiosa negra antes da

    chegada dos nags. At mesmo Joo Reis, declaradamente defensor da hegemonia nag,

    faz uma ressalva neste aspecto. Ele revela a presena na cidade de Salvador, no incio

    do sculo XIX, de outros terreiros de diferentes tradies religiosas, descoberta feita em

    decorrncia da anlise de processo sobre perseguies religiosas neste perodo.21 Aqui

    necessrio deixar claro este aspecto pois ele no visto de forma unnime entre os

    estudiosos, e muitos no enxergam neste momento a produo de uma classificao

    pureza-impureza em relao origem africana nag.22 Na concepo destes a

    diferenciao existente entre nags e bantos residiria fundamentalmente na maior

    capacidade cultural e intelectual dos primeiros, sem nenhuma relao direta com

    qualquer forma ou disputa de hegemonia no campo religioso.

    Analisando ainda as diversas manifestaes culturais e religiosas que rodeavam seu

    campo de viso, Rodrigues tambm pensou em alguns modelos onde elas pudessem

    encontrar significados e ser classificadas de acordo com seus encontros. Mesmo sendo

    conhecido j em sua poca, o autor no utiliza o conceito de sincretismo, preferindo

    expresses como: fuso de crenas, justaposio de exterioridades e idias, associao,

    adaptao, equivalncia de divindades e, principal e significativamente, a iluso da

    catequese.23 Este ltimo conceito criado procurava dar conta das proximidades

    existentes entres os deuses negros e os santos catlicos, que para ele decorria

    principalmente da equivalncia entre as divindades dos dois grupos.

    20 RODRIGUES, Raymundo Nina (1988). Os Africanos no Brasil. So Paulo: Editora Nacional. P. 174 O

    Original de 1906 21 Cf. REIS, Joo Jos (1989). Nas malhas do poder escravista: a invaso do candombl do Accu In:

    REIS, Joo Jos & SILVA, Eduardo (org.). Negociao e conflito: a resistncia negra no Brasil

    escravista. So Paulo: Companhia das Letras, p. 32-61 22 Pretendo retomar este debate de maneira mais ampla no captulo II, procurando aqui somente colocar as

    vises existentes sobre o problema e entendendo a sua lgica adotada. 23 FERRETI, Srgio F. (2001) Notas sobre o sincretismo religioso no Brasil - modelos, limitaes,

    possibilidades In: Tempo: Revista do Departamento de Histria da UFF, Vol. 6, No. 11, p. 13-26

  • 21

    O intuito era realizar uma avaliao mais detalhada das formas de interao entre as

    culturas aqui presentes e o necessrio estudo de suas origens para que pudesse ser

    estabelecida uma linha de contato que permitisse entender a lgica adotada pelos

    africanos no Brasil. J para analisar a religio africana na sua prtica ritual, ele escolhe

    o terreiro do Gantois no qual realiza suas pesquisas com a ajuda preciosa de seu

    informante de nome Martiniano Eliseu do Bonfim, seu principal contato e colaborador

    remunerado, que propiciava ao mestre o entendimento daquilo que surgia em seus

    estudos como o tradicional africano.

    importante lembrar que novamente a escolha no se deu ao acaso. Nascido na

    Bahia em 1859, Martiniano era filho de escravos alforriados, tendo sido enviado por seu

    pai para estudar a lngua iorub em Lagos, capital da Nigria. Aps este perodo de

    viagem ele retorna para Salvador e se torna um respeitado lder religioso que sempre

    manteve, por tal condio, contato e uma estreita ligao com destacados intelectuais

    baianos. Era reconhecido por todos como detentor de um grande conhecimento das

    tradies africanas e era consultado por grande parte dos intelectuais dedicados ao tema,

    entre eles Donald Pierson no perodo entre 1935 e 1937, da Universidade de Chicago;

    Ruth Landes, antroploga americana da Universidade de Columbia em 1938 e Franklin

    Frazier, em 1940.24 Alguns autores apontam justamente o fato de que, por ser

    Martiniano de origem nag, teria ele de certa maneira ignorado os elementos existentes

    das outras tradies africanas que coabitavam o espao baiano, minimizando qualquer

    outra contribuio cultural de origem africana que no fosse de sua origem iorub.

    Segundo Landes:

    O ingresso no territrio dos negros se d por meio de uma visita formal a um

    mago e vidente, Martiniano do Bonfim, considerado uma verdadeira

    instituio na Bahia. Os cientistas procuravam-no s vezes para obter

    informaes e o seu nome se notabilizou entre eles graas ao maior cientista

    social do Brasil, o Dr. Nina Rodrigues. Ruth Landes percebe em Martiniano

    uma certa idealizao das caractersticas fenotpicas da raa negra e das

    tradies oriundas da frica. Martiniano era um nostlgico de um mundo negro

    idealizado: era um negro puro-sangue e se orgulhava ferozmente disso;

    condenava a mistura com o sangue branco e a camuflagem dos traos negros,

    como espichar cabelos. Denunciava a indiferena pelas lnguas ancestrais das

    24 LIMA, Vivaldo da Costa. O candombl da Bahia na dcada de 1930 In: Estudos avanados, Dez.

    2004, vol.18, no.52, p.201-221

  • 22

    tribos iorub, ew e afins; censurava com paixo a ignorncia dos padres

    morais e das tradies africanas.25

    Este fato teria dado incio ao processo de construo de uma pureza nag, at ento

    existente somente no pensamento de algumas figuras representativas do candombl,

    como me Menininha do Gantois que era extremamente ligada a Martiniano e

    concordava em vrios pontos com as posies religiosas adotadas por ele. Os

    candombls que almejavam o ideal de pureza de suas origens africanas, no caso a nag,

    tinham como principal alvo de suas crticas os terreiros que implementavam em seus

    rituais o culto aos caboclos, visto como de origem banto e como elemento que aparecia

    para deturpar a verdadeira tradio nag. Segundo Martiniano, por exemplo, a

    possesso pelos orixs nos candombls iorubs deveria ter um carter feminino,

    conforme acontecia nos trs principais terreiros j citados. Qualquer terreiro que

    permitisse a possesso da divindade em homens e prestasse culto aos caboclos estaria

    assim entrando para o grupo dos sem tradio, logo, impuro.26

    preciso tambm lembrar que no final do sculo XIX acaba-se de descobrir a

    organizao social e religiosa dos iorubs, assim como sua grande complexidade ritual.

    Sendo assim, no de se estranhar o encantamento que teve Nina Rodrigues ao

    encontrar, por volta de 1890 um moo jovem, negro, que tendo residido em lagos

    ensinava para ele a ortografia correta das palavras iorubs e sabia detalhadamente

    diversas prticas religiosas desta regio. Podemos imaginar a contradio vivida por ele

    ao depender de algum de uma raa vista e analisada por ele prprio como inferior para

    que suas pesquisas pudessem ter andamento...

    somente na dcada de 1930 que os estudos de Nina Rodrigues vo ser novamente

    apreciados, sendo reeditados por Arthur Ramos. Suas principais obras, O negro

    Brasileiro (1934), O Folclore negro no Brasil (1936), As culturas negras no Novo

    Mundo (1938) e Aculturao negra no Brasil (1942) foram pensadas em uma poca

    marcada pela busca da brasilidade, do que viria a ser a verdadeira representao

    25 Encontro anual da ANPOCS Outubro de 2000. GP 1 Memria Social e Biografias. Coordenao:

    Regina Novaes e Dulce Pandolfi. Ttulo da apresentao: Subjetividade, Alteridade e Memria Social em

    Ruth Landes. Autora: Regina Abreu (UNIRIO) 26 interessante notar que a mesma diferenciao feita por Martiniano seguida por Nina Rodrigues e

    posteriormente por seus discpulos. Aqui fica clara a existncia deste princpio antes de ser analisado

    pelos intelectuais, como afirmei anteriormente.

  • 23

    nacional do povo brasileiro. No que esta fosse a preocupao central de todos os

    autores que eram seus contemporneos. Como sabido, a busca de uma forma que

    pudesse ser representante desta identidade brasileira e do ser brasileiro foi uma

    constante em diversos autores da gerao de 30, entre eles Gilberto Freyre, Caio Prado

    Junior e Sergio Buarque de Holanda27. Estas referncias ficam mais claras quando nos

    remetemos s discusses em voga nesse perodo onde, como nos mostra Rebeca

    Gontijo:

    Diante do impasse produzido pela interpretao do Brasil como pas das

    diferenas e a apropriao de teorias deterministas, que condenavam o pas ao

    fracasso, justamente devido ao predomnio da diversidade, a soluo

    construda a partir dos debates entre intelectuais, cientistas e polticos parecia

    estar nas proposies que afirmavam a progressiva eliminao das diferenas

    observveis. As diferenas raciais deveriam ser eliminadas pelo progressivo

    embranquecimento da populao devido mestiagem com o elemento branco

    que, acreditava-se, tendia a predominar sobre qualquer outro. Da o mito do

    embranquecimento racial28

    Tem-se que entender a preocupao quanto brasilidade em sua poca. Na rea

    de estudos sobre relaes raciais e tnicas, a dcada de 1930 marca um perodo de

    transio entre duas formas de interpretao do Brasil. A primeira, derivada das teorias

    do racismo cientfico do sculo XIX, utilizava o conceito de raa - em seu sentido

    biolgico - para analisar e, por vezes, propor solues para o problema das relaes

    raciais no pas, como, por exemplo, Oliveira Vianna29 ; a segunda, derivada de uma

    vertente antropolgica (cultural) e sociolgica recente, tendia a pensar a cultura como

    elemento central para a compreenso das relaes tnicas em uma sociedade

    pluritnica da qual Ramos ser um dos percussores.

    dentro deste debate que Ramos procura em seu texto de 1934, O negro brasileiro,

    estabelecer uma nova forma de abordagem, diferente da empregada por Nina, adotando 27 Em 1933 Caio Prado Jnior escreve Evoluo poltica do Brasil: colnia e imprio; Em 1933 Freyre

    escreve Casa Grande e Senzala e em 1936 Srgio Buarque de Holanda escreve Razes do Brasil. 28 GONTIJO, Rebeca. Identidade nacional e ensino de Histria: a diversidade como patrimnio

    sociocultural In: ABREU, Martha & SOIHET, Raquel (org 2003) Ensino de Histria: conceitos,

    temticas e metodologia. Rio de Janeiro: Ed Casa da palavra. 29 Em 1920 saram a pblico duas obras suas que buscavam explicar o pas a partir de teorias racistas:

    Populaes Meridionais do Brasil e Evoluo do Povo Brasileiro.

  • 24

    uma viso culturalista que via nas aes dos negros no um problema de raa, mas sim

    reflexos de sua cultura que com o tempo e os efeitos da aculturao, abandonariam de

    forma natural tais prticas negativas entrando em contato com uma forma religiosa

    mais evoluda, o catolicismo.30 Arthur Ramos entende que, apesar da sua inegvel

    contribuio cultural ao Brasil o negro, por falta desta aculturao completa, continua

    sendo um indivduo em estgio inferior de desenvolvimento mental e cultural. Um

    estgio que seria determinado pela inferioridade de seu grupo cultural. Pois, para o

    autor, o Homem vale por sua pertena a determinada cultura, sociedade ou civilizao, e

    no pelo simples fato de ser Homem. Sobre esta idia:

    Aculturao compreende aqueles fenmenos que resultam quando os grupos

    de indivduos de diferentes culturas chegam a um contacto, continuo e de

    primeira mo, com mudanas conseqentes nos padres originrios de cultura

    de um ou de ambos os grupos31

    Mas ainda que adotando este conceito culturalista, muitas vezes o autor aborda

    temas relacionados religiosidade negra eivado dos preconceitos racistas utilizados

    poca de seu mestre. Da mesma maneira que era encontrada em Rodrigues, Ramos

    tambm faz uma distino no sentido de estabelecer uma diferenciao existente entre

    os prprios negros de origem africana, caracterizando atravs de aparncias e hbitos os

    negros de origem banto e nag. Os primeiros, os Angolas eram mais fracos,

    fisicamente, do que os sudaneses. Loquazes, indolentes, eram muito festivos, os

    segundos, eram altos, corpulentos, valentes, trabalhadores e os mais inteligentes de

    todos.32

    tambm nesta obra que ele realiza de maneira pioneira uma primeira comparao

    que leva em considerao aspectos locais de diferentes regies do pas, principalmente

    em relao s prticas religiosas que se desenvolviam no Rio de Janeiro e na Bahia,

    onde vai procurar encontrar na sua tica cultural os aspectos que foram fundamentais

    30 RAMOS, Arthur (1940) O negro brasileiro. So Paulo: Companhia Editora Nacional. P. 215 31 R. Redfield, R. Linton & M. J. Herkovits, A memorandum for the study of acculturation, American

    Anthropoly, vol. XXXVIII, pags. 149-152. Apud RAMOS, Arthur (1942). A Aculturao Negra no

    Brasil. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, p. 34 32 RAMOS, Arthur (1971). O negro na civilizao brasileira. Rio de Janeiro: Casa do estudante do

    Brasil. Original de 1939. Apud DANTAS, Beatriz Ges (1988). Vov Nag e Papai Branco. Usos e

    abusos da frica no Brasil. Rio de Janeiro: Graal. p. 157.

  • 25

    para que as organizaes religiosas negras neste territrios se desenvolvessem da

    maneira como existiam. Surge ento uma primeira distino de hierarquia cultural de

    origem africana, responsvel por estabelecer e delinear as diversas formas de atuaes e

    interaes sociais que seriam empregadas de maneira mais objetiva na religio. Sua

    estrutura, sua organizao, seus rituais e suas maneiras de lidar com as novas

    informaes de uma sociedade em transformao seriam aqui explicadas por sua

    procedncia cultural africana, algumas mais evoludas capazes de manter suas tradies

    (nag) e outras, em funo de sua parca mitologia, propensas s mais diversas

    assimilaes (banto). O primeiro grupo remetido s terras iorubs, enquanto que o

    segundo faria parte da regio Congo-Angola; o candombl tradicional baiano e a

    macumba carioca.

    Esta macumba carioca apreciada por Ramos surgiria no seu entender como fruto do

    encontro de diferentes grupos sociais que estariam buscando neste momento, um

    perodo de formao da identidade nacional que tinha o Rio de Janeiro como referncia,

    alguma forma de integrao social. Prope ento, para este esquema religioso analisado,

    um sincretismo que se formaria entre os cultos africanos, amerndios, catlicos e

    espritas 33. exatamente dentro deste diagnstico da macumba que Ramos vai colher e

    se referir ao termo Umbanda O chefe da macumba ou umbanda chamado tambm

    de pai de terreiro34, mas ainda sem perceber ou estabelecer uma diviso clara que a

    reconhecesse como uma religio, fato que s ser avaliado mais tarde por pesquisadores

    posteriores, principalmente Roger Bastide.35.

    Afirma o autor que os candombls baianos conseguiam guardar uma tradio que

    era legitimamente sudanesa, enquanto a macumba carioca representaria os sinais tpicos

    da organizao religiosa banta, heterognea e com um alto grau de diluio no contato

    com a civilizao que se desenvolvia no litoral.36 importante lembrar que da mesma

    maneira que seu antecessor, faz suas pesquisas de campo no terreiro do Gantois, j

    apontado como um dos principais mantenedores da pureza africana. Foi l tambm que 33 RAMOS, Arthur (1940) O negro brasileiro. So Paulo: Companhia Editora Nacional. P. 168 34 Idem, p.96 35 nada mais emocionante, para um Socilogo, do que ver sob seus prprios olhos nascer uma nova

    religio. (...) aqui que se v toda a superioridade do ponto de vista sociolgico sobre o ponto de

    vista culturalista Cf BASTIDE, Roger (1971). As Religies Africanas no Brasil, 2 vols., So Paulo:

    Pioneira/EDUSP. Especialmente o captulo VI intitulado O nascimento de uma religio.

    36 Idem.

  • 26

    em suas andanas com o escritor Jorge Amado foi iniciado no culto para o orix Ogum,

    o que lhe deu o apelido de Ogum do Gantois.

    Ou seja, o candombl baiano representa para Ramos a pureza, ou melhor, uma maior

    manuteno de seus traos culturais africanos de origem, enquanto que a macumba

    carioca, por ser mais flexvel e heterognea, abria espaos e incorporava elementos de

    outras tradies, o que de maneira inexorvel acaba por torn-la impura. Neste sentido,

    este culto heterogneo vai buscar sua referncia naquilo que existia de puramente

    africano:

    No Brasil, o Quimbanda ou Embanda perdeu muito do seu prestgio e no

    conseguiu se impor como o babala Yorub. Tem apenas a funo de chefe de

    macumba, secundado por um auxiliar ou aclito, o cambone, cambono ou

    cambondo. Por influncia dos cultos geg-nags, o Embanda tambm chamado

    pai-de-santo e os iniciados, filhos e filhas-de-santo (...) o ritual das macumbas de

    influncia banto de uma grande simplicidade, em paralelo com os dos

    candombls de origem gge-nag37

    Com esta afirmao Ramos acaba reafirmando a supremacia cultural de determinado

    grupo cultural africano, no s por sua maior tradio, mas tambm por, em razo desta

    sua caracterstica, servir de referncia para os demais grupos religiosos africanos. Esta

    referncia s poderia ser constituda e referendada na medida em que os prprios

    praticantes de outra composio religiosa e ainda por cima longe da Bahia - se

    apiam na sua estrutura, apontada como altamente organizada, uma vez que neste seu

    exemplo estaria sendo demonstrada de maneira clara e inequvoca uma supremacia real

    desta concepo religiosa. A pureza do culto nag seria ento uma de suas principais

    qualidades que possibilitavam a sua insero no meio afro-religioso em expanso neste

    momento.

    neste mesmo contexto cultural dos anos 30 que surge dison Carneiro, um dos

    primeiros a trabalhar e a ter como objetivo principal o estudo das religies afro-

    brasileiras, sejam elas de influncia nag ou banto. dele a primeira obra que surge, em

    1936, especificamente falando sobre os candombls da Bahia, intitulada Religies

    Negras. Esta obra aparece como resultado de suas pesquisas realizadas no terreiro do

    37 RAMOS, Arthur. linha de Umbanda In: CARNEIRO, Edison (1950). Antologia do negro Brasileiro.

    Rio de janeiro: Agir. P. 371

  • 27

    Engenho Velho, da mesma maneira que em 1948, com Candombls da Bahia, onde at

    mesmo uma planta da casa mostrada como a forma tradicional. Falando sobre a

    primeira obra o autor define seu eixo espacial de anlise:

    Limitei as minhas observaes Bahia, no ao Estado, mas Cidade da

    Bahia, e s acidentalmente no me refiro a outros pontos do interior. E

    centralizei as minhas pesquisas quanto ao fetichismo jeje-nag, no mais do que

    centenrio candombl do Engenho Velho e, quanto aos candombls de caboclo,

    um pouco por toda a parte.

    tambm nesta obra que Carneiro vai retomar uma srie de idias construdas

    anteriormente por Nina Rodrigues e atualizadas por Arthur Ramos, estabelecendo da

    mesma forma que estes autores uma diferena hierrquica entre os negros de origem

    banto e os de origem nag. Enquanto a pureza passava a ser uma representao quase

    que intrnseca da tradio nag, os bantos apareciam nessa comparao sempre em

    oposio ao puro e ao tradicional:

    Os negros sudaneses eram, em relao aos negros bantos, muito mais

    adiantados em cultura, sendo ainda superiores, neste particular, ao selvagem

    nativo. Estudando a histria dos negros no Brasil, Nina Rodrigues afirmava que,

    dentre estes, seno a numrica, pelo menos a preeminncia intelectual e social

    coube sem contestao aos negros sudaneses, o que as pesquisas ulteriores

    vieram confirmar. Dentro estes negros sudaneses, sobressaram os nags

    (iorubs) da Costa dos escravos.38

    Neste sentido, enquanto a tradio era afirmada como pertencente ao ritual nag,

    tudo o que de certa maneira no se enquadrasse nesta forma de organizao superior era

    visto como impuro, logo pertencente aos domnios dos impuros que tinham sua

    representao nos chamados candombls de Caboclo39, lugar em que as regras no se

    faziam presentes e normalmente o abrigo dos ignorantes da verdadeira origem religiosa

    africana, os charlates. Segundo o autor:

    38 CARNEIRO, dison (1936) Religies negras. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira. 39 Foi a mtica pobrssima dos negros bantos que, funcionando-se com a mtica igualmente pobre do

    selvagem amerndio, produziu os chamados candombls de caboclo na Bahia. Idem p. 62

  • 28

    Os candombls de caboclo degradam-se cada vez mais, adaptando-se ao

    ritual esprita, produzindo as atuais sesses de caboclo, bastante conhecidas na

    Bahia. Falta-lhes a complexidade dos candombls de nag ou de africano, isto ,

    jeje-nag. A extrema simplicidade do ritual possibilita o mais largo

    charlatanismo.40

    Em 1937 a preocupao com os bantos afirmada por ele anteriormente ganha corpo

    e publicao. Em Negros bantos notas de uma etnografia religiosa, escrita com a

    colaborao de artigos apreciados no II Congresso afro-brasileiro que acontecera no

    mesmo ano41e que tinha Carneiro como um dos principais organizadores, ele procura

    demonstrar a sua verdadeira inteno com estes escritos e diz que o resultado deste livro

    tinha como principal objetivo procurar conseguir um lugar ao sol para o negro banto da

    Bahia.42 tambm no final da introduo que o autor nos fala que, mesmo se correndo

    o risco da generalizao, esses negros do sul (bantos) detm o monoplio do folclore

    negro na Bahia.43

    E a partir do primeiro captulo, em que aborda as sobrevivncias religiosas

    existentes na Bahia, comeam a surgir as suas segundas interpretaes, tendo em vista

    que so praticamente as mesmas de Negros bantos, interpretaes do processo de

    organizao religiosa tpica deste grupos: pode-se dizer que, na Bahia, os negros

    bantos esqueceram seus prprio orixs. Este fato, fcil de ser notado mesmo primeira

    vista, explica-se, naturalmente, pela pequena consistncia de suas concepes mticas

    (grifo meu).44 Este naturalmente leva em considerao tudo aquilo que j foi produzido

    e apresentado sobre esta origem africana e tem como principal base para a afirmao o

    reconhecimento, por grande parte da academia e dos crentes tambm, das informaes

    prestadas por Nina Rodrigues e Arthur Ramos.

    Tendo em vista esta diferenciao acusada entre tradio organizada e pura, e

    nenhuma tradio, desorganizada, impura, o nico motivo que fazia os candombls de

    caboclo sobreviverem era o sincretismo que realizavam com o ritual Nag, que passava

    40 Ibidem P. 70 41 Carneiro organiza o segundo congresso afro-brasileiro da Bahia, que tem como principal intuito criar

    uma maior relao de proximidade entre os chefes de culto das tradies religiosas africanas e os

    intelectuais que as tinham como objeto de estudo. 42 CARNEIRO, dison (1937) Negros Bantos. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira. P. 122 43 Idem, p. 129 44 Ibidem. p 134

  • 29

    assim a purific-los, emprestando-lhes em determinado momento o respaldo e a

    legitimidade que emanavam dos antigos terreiros e de suas tradies verdadeiramente

    africanas: muito provvel ser, portanto, a afirmao de que estes candombls s se

    mantenham custa, sombra dos candombls jeje-nags, aproveitando a sua mtica, o

    seu ritual fetichista.45

    Em Candombls da Bahia, j em 1948, o tom permanece o mesmo. Mas nesta

    obra que Carneiro vai procurar estabelecer um tipo ideal, um modelo de culto que

    irradiou da Bahia com focos menores em Pernambuco e no Maranho. O candombl

    da Bahia, sem dvida o de maior esplendor de todo o Brasil, que ainda agora serve de

    espelho a todos os outros cultos...46 nesse processo de fascinao que o autor se

    encontra em relao ao culto que escolheu para estudar que se desenvolvem suas idias.

    O modelo por ele apresentado reside em um ponto principal, sendo os outros

    decorrentes deste primeiro, mas fundamentais para se observar a origem africana,

    principal sustentao da idia de pureza. a prpria divindade que se apossa do crente,

    e no espritos de mortos ou ancestrais de outras tradies, como na pajelana ou no

    espiritismo. Fora deste modelo, ou ainda, adotando rituais ou prticas que no sigam

    esta lgica, no se estrutura ento um culto religioso puramente africano.47 Em relao a

    esta maior fora nag em relao aos outros:

    Em contraste com esta fora interior que emana naturalmente das mes

    nags e jjes, os pais de Angola, do Congo ou caboclos so quase todos

    improvisados, feitos por si mesmos, aprendendo uma cantiga aqui outra ali,

    como dizem os chefes nags e jjes. Vrios destes pais jamais sofreram o

    processo de feitura do santo. So pais sem treino, espontneos, distantes da

    orgnica tradio africana os clandestinos do desprezo nag.48

    dentro deste conjunto de idias expostas sobre o que deve ser considerado

    puramente africano, relacionado diretamente ao que de original se tm em relao

    frica, que vai se estabelecer o debate fundamental travado sobre a religiosidade negra

    africana em terras brasileiras. O afro-brasileiro passa ento a ser visto mais como afro 45 Ibidem, p. 136 46 CARNEIRO, dison (1977). Os Candombls da Bahia. Rio de janeiro: Civilizao Brasileira, p. 21 47 Idem, p.25 48 Ibidem, p. 106. Feitos ou feitura no santo relativo ao processo de iniciao, aqui julgado em relao

    mais a quem realizou este processo do que prpria pessoa iniciada.

  • 30

    do que brasileiro na medida em que suas estruturas e rituais religiosos passam a

    representar diretamente uma relao com o que se fazia identicamente no continente

    africano. Ainda que existam outros autores importantes em relao ao tema, como

    Roger Bastide, que troca a anlise culturalista anterior pela sociolgica, mas continua

    com a mesma distino banto-nag49, so estas as bases de argumentao utilizadas no

    embate de posies que vai se processar. Cada autor vai, dentro de sua teoria, buscar

    nestas definies tidas como referncias os pressupostos adotados para exemplificar, de

    acordo com seu objetivo, a supremacia ou a denncia - deste modelo nag baiano

    construdo.

    Reao banto: o campo se divide

    Este tipo especfico de debate no se d de maneira aleatria ou ao acaso. por

    volta dos anos 60 que o candombl passa a se expandir em direo a outros territrios

    nacionais de maneira mais ampla, fazendo com que muitos umbandistas se

    transferissem para o seu culto tendo em vista o retorno e a busca de uma verdadeira

    raiz que fosse original, considerada mais forte, misteriosa e poderosa. So anos

    marcados pelo movimento de contracultura europeu, de contestao dos valores

    ocidentais arraigados ao que existe de concreto e material na vida, buscando-se no lado

    espiritual outras possibilidades de entendimento da sociedade. Ganham fora neste

    momento a recuperao do extico, do diferente e do original, valorizando-se em alto

    grau a cultura do outro, a sociedade saindo em busca das suas razes. Era preciso voltar

    Bahia. Segundo Prandi: Ao mesmo tempo, no mbito destes movimentos de classe mdia que

    buscavam aquilo que poderia ser tomado como as razes originais das cultura

    brasileira, muitos intelectuais, poetas, estudantes, escritores e artistas de

    renome foram bater porta das velhas casas de candombl da Bahia. Ir a

    Salvador para ter o destino lido nos bzios pelas mes-de-santo tornou-se o

    must para muitos, uma necessidade que preenchia o vazio aberto por um estilo

    de vida moderno e secularizado, to enfaticamente constitudo com as

    mudanas sociais que demarcavam o jeito de viver nas cidades industrializadas

    do Sudeste, estilo de vida j quem sabe? eivado de tantas desiluses (...) A

    intelectualidade brasileira de maior legitimidade nos anos 60 participou

    49 BASTIDE, Roger (1971). As religies africanas no Brasil. So Paulo, EDUSP/Pioneira.

  • 31

    ativamente de um projeto cultural de recuperao das origens, que remetia

    muito diretamente Bahia (grifo meu)50

    Seguindo ainda com o mesmo autor:

    Comeava o que chamei de processo de africanizao do candombl, em que

    o retorno deliberado tradio significa o reaprendizado da lngua, dos ritos e

    mitos que forma deturpados e perdidos na adversidade da dispora; voltar

    frica no para ser um africano nem para ser negro, mas para recuperar um

    patrimnio cuja presena no Brasil agora motivo de orgulho, sabedoria e

    reconhecimento pblico, e assim ser o detentor de uma cultura que j ao

    mesmo tempo negra e brasileira, porque o Brasil j se reconhece no orix.51

    dentro deste processo de africanizao proposto e adotado que vo ganhar fora os

    debates que se faziam necessrios para que se oferecessem as respostas s perguntas

    daqueles que partiam na direo das razes mas sem saber ao certo como encontr-las,

    ou mesmo quais os critrios utilizados para estabelec-las. Aqui ocorre o casamento do

    interesse social nestas origens africanas com a produo intelectual voltada ao debate do

    negro e do resgate de sua tradio religiosa africana. Quanto mais fosse comprovada a

    existncia de determinada prtica ritual no continente negro, mais chances daquele

    ritual ser aceito e visto como algo a ser seguido e posto em prtica. Este tambm

    ento um processo de intelectualizao deste contingente, que passa a encontrar nas

    publicaes sobre estes assuntos um conhecimento at ento privado dos membros

    diretos dos candombls, principalmente suas famosas mes Ialorixs.

    Neste momento ressurgem com grande fora as idias clssicas do exclusivismo

    nag e de sua pureza, pois um momento de disputa e estabelecimento do que vai

    passar a ser visto como legtimo, em oposio ao sincretismo nefasto e obrigatrio de

    outrora em virtude da explorao sofrida pelo negro. Esta uma produo que passa a

    ser lida por diversos sacerdotes e adeptos do candombl, principalmente ao longo dos

    anos 80, ao mesmo tempo em que tambm passam a divulgar seus prprios trabalhos e

    obras de interpretao da histria e das crenas do candombl. Segundo Teixeira:

    50 PRANDI, Reginaldo (1999). Referncias Sociais das Religies Afro-Brasileiras: Sincretismo,

    Branqueamento e Africanizao In: Bacelar (org.) Faces da Tradio Afro-Brasileira Religiosidade,

    Sincretismo, Anti-sincretismo, Reafricanizao, Prticas teraputicas, Etnobotnica e Comida. Rio de

    Janeiro : Pallas 51 Idem p. 105

  • 32

    Ter sido fundada por ou contar em seus quadros com iniciados baianos

    considerado pelas comunidades garantia de maior tradio, de maior

    proximidade com o pensamento religioso africano, sobretudo se ligaes com as

    grandes comunidades Casa Branca do Engenho Velho, Gantois, Ax Op

    Afonj e Alaketu -, consideradas mais tradicionais, puderem ser comprovadas ou

    referendadas pelo povo-de-santo.52

    Mas em oposio implantao desta supremacia, surge um movimento no sentido

    contrrio, de contestao destes valores e de certa maneira uma denncia do que

    estavam deixando de fora na formao do que deveria ser visto como africano, ou

    melhor, afro-brasileiro. Vrios autores, entre historiadores e antroplogos, passam a

    abordar o tema religioso africano voltados especificamente para a contribuio dos

    ento descartados e impuros povos de origem banto, procurando resgatar suas

    contribuies formao da sociedade e da cultura brasileira. Nei Lopes, Robert Slenes,

    Stefania Capone, Marina de Mello e Souza e Beatriz Gis Dantas, entre outros,

    propem uma revitalizao do universo banto, buscando no estudo de sua linguagem e

    de sua organizao cultural elementos que demonstrem que sua importncia to

    valiosa tanto quanto a nag.

    Dantas e Capone vo buscar as formas de construo deste conceito de hegemonia

    nag, apontando como um de seus formadores a aliana entre os intelectuais e os

    membros do candombl, ambos interessados nesta construo de pureza que remetesse

    ao candombl nag, principalmente o baiano. Procuram demonstrar as diversas relaes

    pessoais existentes entre os dois grupos, com os mais variados interesses ideolgicos

    que estariam por trs desta construo, sendo que os antroplogos envolvidos nestes

    estudos que afirmam uma pureza africana seriam os principais responsveis pela

    legitimao desses rituais, uma vez que referendam estas mudanas de acordo e em

    relao ao que africano. Tais diferenas marcadas entre o que puro ou no fariam

    com que o candombl nag tradicional de origem africana - pudesse sair na frente

    pelos clientes na disputa existente no mercado religioso brasileiro, uma vez que

    52 TEIXEIRA, Maria Lina Leo (1999). Candombl e a [re] inveno das tradies. In: Carlos Caroso e Jeferson IN: Bacelar (org.) Faces da Tradio Afro-Brasileira Religiosidade, Sincretismo, Anti-

    sincretismo, Reafricanizao, Prticas teraputicas, Etnobotnica e Comida. Rio de Janeiro : Pallas.

  • 33

    cada vez maior o nmero de terreiros que se inauguram em moldes mais fluidos e

    melhor adaptados s exigncias da sociedade moderna.53

    Slenes vai procurar no estudo da lngua banto suas representaes e usos em terras

    brasileiras, procurando demonstrar sua organizao e at em certos pontos sua

    hegemonia na forma de comunicao e construo de significados. Sua principal tese

    reside no fato de que os escravos originrios desta regio, de muitas lnguas,

    conseguiam um entendimento mtuo pela existncia do que ele denomina o proto-

    banto, uma espcie de significado que a raiz da palavra guarda e que de certa maneira

    era compartilhado pelos escravos em geral.54 Nei Lopes procura ampliar a abrangncia

    do contexto e faz uma insero nesta frica Banto, ao mesmo tempo em que coloca que

    supostamente esta degenerao atribuda aos desta procedncia acaba por servir de

    maneira geral a todos os negros brasileiros. Seu objetivo o preenchimento destas

    lacunas e a correo destas distores, para que o negro banto tenha sua capacidade

    reconhecida, assim como qualquer outro de origem africana.55

    J Marina de Mello e Souza procura estabelecer esta influncia predominante banto

    atravs dos estudos que realiza sobre a festa de coroao do rei congo, que ocorreram

    justamente nos lugares onde os negros desta procedncia estiveram em maior nmero.

    A autora demonstra uma srie de semelhanas sociais, polticas e econmicas, assim

    como diversos fatores relacionados organizao espiritual da regio do Congo.

    Procura desta maneira conseguir mapear uma srie de relaes que, ainda que re-

    significadas, tinham uma origem concretamente africana.56

    Ou seja, passa a ser delimitado um campo de estudos que busca justamente nesta

    origem banto os mesmos aspectos que foram usados para se construir o modelo nag,

    ainda que aqui no se encontre em nenhum momento a ligao destas obras com alguma

    instncia religiosa especfica. Mas uma passagem parece demonstrar de maneira

    esclarecedora em que nvel esta discusso se estabelece e quais so os pressupostos

    53 Cf. DANTAS, Beatriz Ges (1988). Vov Nag e Papai Branco. Usos e abusos da frica no Brasil. Rio

    de Janeiro: Graal. e CAPONE, Stefania (2004). A busca da frica no candombl. Rio de Janeiro : Pallas.

    54 SLENES, Robert (1991-92). Malungo, ngoma vem: frica coberta e descoberta no Brasil, Revista da

    USP, n. 12 55 LOPES, Nei (1988). Bantos, Mals e Identidade Negra. Rio de Janeiro: Forense Universitria. 56 SOUZA, Marina de Mello e (2002). Reis Negros no Brasil escravista. Histria da Festa de Coroao

    de Rei Congo. Belo Horizonte: Ed.UFMG.

  • 34

    adotados por quem escolhe seu lado na discusso. Em uma entrevista concedida

    professora Marina de Mello e Souza, Alberto da Costa e Silva, que podemos dizer, foi

    um frequentador dos dois lados desta disputa, nos d um panorama esclarecedor sobre o

    desenrolar deste embate:

    E, ao estudar a frica Atlntica, at por influncia de Nina Rodrigues (e

    tambm de Arthur Ramos), eu sofri tambm de um pecado que marca um bom

    nmero de historiadores brasileiros: o de nos dedicarmos muito mais frica

    Ocidental do que a Angola, aos Congos e ao Gabo, chamada frica Central

    Ocidental , que foram muito mais importantes na formao do povo brasileiro.

    Mas essa uma inclinao que eu tenho procurado corrigir, na tentativa de

    libertar-me dessa espcie de nagolatria ou iorubacentrismo que atraiu todo o

    Brasil, e que se caracteriza por procurar ver tudo o que diz respeito herana

    africana de uma tica que privilegia no s a frica Ocidental, mas,

    especificamente, os nags ou iorubs. Isso se deve em grande parte influncia

    dos estudos de Nina Rodrigues, de Artur Ramos, de Edison Carneiro e, no plano

    da opinio pblica em geral, enorme audincia de escritores e artistas baianos,

    como Jorge Amado, Caryb e Dorival Caymmi, para ficar em apenas trs

    nomes.57

    aqui que passamos para o debate principal, que se divide em duas frentes

    importantes e ao mesmo tempo conflitantes. A primeira frente o debate realizado

    entre os defensores e os questionadores desta to proclamada pureza nag ou iorub. A

    caracterstica principal desse debate , por um lado, a defesa de um modelo cultural

    homogneo, por parte dos nagocntricos, legitimamente africano, ligado s razes

    perdidas e recuperadas por seus fiis membros. Por outro, o afinco com que seus

    questionadores afirmam e procuram demonstrar a construo e a inveno desse ideal e

    dessas prticas, que procuram fazer de sua ligao com a frica um elemento de

    diferenciao e maior poder dentro do campo religioso.

    A outra frente um pouco mais especfica, mas tambm esbarra em questes que

    remetem ao primeiro grupo. O que aqui se torna o foco da discusso a defesa feita em

    relao aos negros de origem banto, defesa dos ataques sua falta de organizao,

    57 http://www.historiadoreletronico.com.br/artigo.php?seccod=cade&idartigo=17. Entrevista realizada em

    08/09/2003.

  • 35

    cultura e desenvolvimento que os teria tornado incapazes de estabelecer uma

    homogeneidade que possa ser estudada. Alm disso, essa falta de coeso teria feito com

    que este grupo perdesse sua identidade africana, ficando muito mais propenso a fazer

    uma srie de assimilaes e sincretismos com a religiosidade nacional, seja ela catlica

    ou indgena. Aqui o principal ponto no a desconstruo do modelo nag, como no

    primeiro grupo, mas sim a construo de um modelo banto que teve e tem tanta

    importncia no desenvolvimento religioso e social em terras brasileiras quanto seu

    congnere africano.

    O que temos, portanto, a necessidade da constituio de um modelo de referncia,

    servindo muito mais legitimao de determinado grupo ou segmento na disputa pelo

    poder, seja ele em qual esfera for, do que propriamente algo que possa ser usado como

    um dado emprico, como no caso da pureza nag. Alm do mais, este modelo no

    especfico dessa origem africana ou daqueles que a julgam como tal, pois em qualquer

    outra esfera afro-religiosa ela existe e se mostra presente, seja na umbanda, no

    candombl ou entre tantas outras. Basta perceber que a construo de uma idia de

    tradio banto segue os mesmo pressupostos utilizados pelos que defendiam sua

    inferioridade. Ou seja, a grande discusso na verdade passa pela construo do

    significado de pureza, de como se constitui algo puro e quais so as condies

    necessrias para sua homologao.

    Mostro isto porque acredito que a idia de tradio no deve ser utilizada como valor

    especificamente religioso, tendo em vista as enormes e constantes mudanas de seu

    significado no s em funo de determinada conjuntura social, mas tambm em

    relao s demandas de interesse prprio do campo cientfico. Pretendo, neste sentido,

    apontar as falhas e problemas da concepo de uma pureza no campo religioso afro-

    brasileiro, demonstrando as contradies que fazem da oposio puro-impuro somente

    um reflexo de toda e qualquer disputa em um determinado campo. Meu intuito

    demonstrar a forma que tornar possvel esta hiptese, tendo como base uma dinmica

    religiosa essencialmente pura na sua impureza, pois:

    Os historiadores, para chegarem a compreender as particularidades da frica

    pr-colonial, precisam compreender estes processos complexos; muitos

  • 36

    estudiosos africanos e africanistas europeus ainda sentem dificuldade em

    libertar-se do falso modelo de tradio colonial africana codificada.58

    Captulo II

    Saindo da Rota

    A origem da palavra frica no clara, no dia-

    a-dia seu uso foi raro e tardio (...) mesmo aps a generalizao da expresso, uma coisa parece certa: os africanos no se consideravam como tal, no existindo homogeneidade cultural, poltica ou social, nem muito

    58 RANGER, Terence (1997). A inveno da Tradio na frica Colonial. In: HOBSBAWM, Eric &

    RANGER, Terence. A Inveno das Tradies. So Paulo: Paz e Terra.

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    menos uma identidade em comum, ao contrrio do que sugere a referida designao.

    Mary Del Priori e Renato Pinto Venncio59

    Se levarmos em considerao esta idia apontada pelos autores, temos um

    grande problema vista para ser solucionado. Como estabelecer relaes de

    continuidade cultural em terras brasileiras dos escravos que vieram da frica se nem

    mesmo l este processo existia de forma determinante em sua estrutura? Como

    afirmar uma uniformidade africana, bem delimitada e estruturada, pouco

    condicionada e habituada a mudanas constantes se as evidncias mostram que os

    escravos no eram nacionalistas culturais militantes que procuravam preservar

    toda a sua herana e, sim, demonstraram uma grande flexibilidade em adaptar e

    mudar sua cultura?60

    Aqui importan