utiliza+ç+âo de animais em experimenta+ç+âo aspectos +ëticos,

15

Click here to load reader

Upload: tiago-oviedo-frosi

Post on 02-Aug-2015

24 views

Category:

Documents


4 download

TRANSCRIPT

Page 1: UTILIZA+ç+âO DE ANIMAIS EM EXPERIMENTA+ç+âO ASPECTOS +ëTICOS,

UTILIZAÇÃO DE ANIMAIS EM EXPERIMENTAÇÃO: ASPECTOS ÉTICOS,

JURÍDICOS E METODOLÓGICOS

Cyntia Alencar Fin e Katya Rigatto

Departamento de Ciências Fisiológicas - FFFCMPA

Comitê de Ética em Pesquisa - FFFCMPA

A utilização de animais para fins experimentais já preocupava os filósofos

dos séculos XVII e XVIII. Voltaire (1694-1778), grande contestador de sua época,

discordava do paradigma mecanicista de René Descartes (1596-1650) que negou

a condição de seres conscientes aos animais e inaugurou a concepção dos

organismos como autômatas, como máquinas naturais. Este argumento contribuiu

para a prática da vivissecção (a operação feita em animais vivos) e a realização

de experimentos cruéis com os animais. Ao contrário de Descartes, Voltaire

acredita que os animais são seres sencientes. Immanuel Kant (1724-1804), outro

importante filósofo do século XVIII, defendia um antropocentrismo débil, onde o

homem tinha obrigações para com os animais. O filósofo inglês Jeremy Bentham

(1749-1832), por sua vez, defendia a igualdade de condições a todos os seres

sensíveis em virtude de sua capacidade de sofrimento. Após a Revolução

Intelectual, Iluminista, dos séculos XVII e XVIII vem a Revolução Industrial dos

séculos XIX e XX, que possibilitou o desenvolvimento da ciência e da técnica. No

século XIX, nomes como Claude Bernard (1813 – 1878), pai da fisiologia e Louis

Pasteur (1827 – 1895), pai da microbiologia, impulsionaram a ciência com suas

descobertas por meio da experimentação animal, validando o método científico.1

No século XX, surgiram várias correntes filosóficas em defesa da causa

animal. O filósofo australiano Peter Singer (corrente utilitarista), fundou a

filosofia das preocupações éticas atuais em relação aos animais. O filósofo norte-

americano Tom Regan (corrente deontologista) é um expoente na questão dos

direitos dos animais. Na prática ambos defendem (a) que as espécies sensíveis

têm status moral, (b) que as diferenças entre humanos e animais não são tais que

justifiquem a forma como os tratamos, (c) que esse status exige que reformulemos

nossos costumes. Os utilitaristas aceitam o diálogo com a comunidade científica,

Page 2: UTILIZA+ç+âO DE ANIMAIS EM EXPERIMENTA+ç+âO ASPECTOS +ëTICOS,

enquanto que os deontologistas são contra a ciência de animais de

experimentação. Já o filósofo Richard Ryder (corrente dorista) defende que a

dor é o único mal e o objetivo ético é reduzir a dor no outro, tenta conciliar a

ênfase no sofrimento (utilitarismo) com a ênfase na individualidade (teoria dos

direitos). Há também outras correntes como a ética dos cuidados, a ética dos

deveres (de Paul Taylor) e ética da alteridade (de Emmanuell Lévinas).2

Atualmente, as pesquisas em animais têm como propósitos a pesquisa

como meio, aquela envolvendo o uso de modelos animais para a geração de

conhecimento que seja transponível aos seres humanos, caso das pesquisas nas

fases pré-clínicas ou básicas, ou, ainda a pesquisa como fim, na qual é

estudado o animal e suas características. 3

De acordo com a Resolução Normativa nº 196 de 10 de outubro de

1996, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que regulamenta as ações da

Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e a rede de Comitês de

Ética em Pesquisa (CEPs) coordenadas pelo CONEP (sistema CEPs-CONEP),

item III que trata dos Aspectos Éticos da Pesquisa Envolvendo Seres Humanos,

sub-item III-3, letra B, a pesquisa em qualquer área do conhecimento, envolvendo

seres humanos deverá estar fundamentada na experimentação prévia realizada

em laboratórios, animais ou em outros fatos científicos. O mesmo CNS publicou,

em 20 de setembro de 2004, a Resolução RDC nº 219, determinando que as

pesquisas clínicas no Brasil com medicamentos e produtos para a saúde, com a

finalidade de futuro registro devem, também, ser submetidas à avaliação da

Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e dados pré-clínicos e de

estudos clínicos de fases anteriores ao protocolo devem ser apresentados para

dar subsídio à esta avaliação. Portanto, as pesquisas em modelos animais

fundamentam as pesquisas clínicas. Sem pesquisa pré-clinica, não há a

realização de ensaio clínico, não havendo, conseqüentemente, nem a aprovação

nem a liberação de novos medicamentos e produtos para a saúde em nosso

país.4,5

Há rigor na avaliação de protocolos de pesquisa envolvendo seres

humanos. E como deve ser feita a avaliação de projetos de pesquisas que utilizem

Page 3: UTILIZA+ç+âO DE ANIMAIS EM EXPERIMENTA+ç+âO ASPECTOS +ëTICOS,

animais não-humanos? Os membros dos CEPs ao avaliarem projetos de

pesquisa que envolvam o uso de modelos animais, devem ser tão rigorosos

quanto durante análise de projetos com seres humanos. Um projeto eticamente

adequado deve: a) ser gerador de conhecimento, esta é a sua justificativa

básica, sua finalidade; b) ser exeqüível, para avaliar este quesito tem-se que

atentar para a metodologia empregada. As avaliações metodológica e ética são

indissociáveis, já que projetos com erros metodológicos darão resultados pouco

confiáveis, sendo condenáveis do ponto de vista ético; e, c) ter relevância, sendo

a relevância o valor agregado, ou seja, os dados obtidos devem ser passíveis de

transposição aos seres humanos.3

Regulamentação das Pesquisas em Animais no Brasil

A primeira Lei que regulamentou a utilização de animais em pesquisa no

mundo foi publicada em 1876, no Reino Unido. Quase 60 anos depois, em 10 de

julho de 1934, o Chefe do Governo Provisório dos Estados Unidos do Brasil, o

Sr. Getúlio Vargas, publica o Decreto Lei nº 24.645, regulamentado

posteriormente pelo Decreto Lei nº 3.688 de 3 de outubro de 1941. Esta lei

determina que todos os animais existentes no país são tutelados pelo estado e

penaliza quem aplicar ou fizer aplicar maus tratos aos animais. No art. 3º,

apresenta 31 incisos, que conceituam o que são maus tratos aos animais. Com

relação à pesquisa científica o inciso IV determina que é considerado maus tratos

“golpear, ferir ou mutilar voluntariamente qualquer órgão ou tecido de economia,

exceto a castração, só para animais domésticos, ou operações outras praticadas

em benefício exclusivo do animal e exigidas para defesa do homem, ou no

interesse da ciência.” Ainda é importante ressaltar que: praticar ato de abuso e

crueldade; manter animais em locais anti-higiênicos, que impeçam a respiração,

movimentos e descanso ou os privem de água e luz; abandonar animal doente ou

ferido, extenuado ou mutilado, bem como deixar de ministrar a ele tudo o que

humanitariamente se-lhe possa prover; não dar morte rápida, livre de sofrimento

prolongado a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo ou não; e

Page 4: UTILIZA+ç+âO DE ANIMAIS EM EXPERIMENTA+ç+âO ASPECTOS +ëTICOS,

encerrar os animais em número tal que não lhes seja possível mover-se

livremente ou deixa-los sem água ou comida, são caracterizados atos de maus

tratos aos animais. 6

Na Inglaterra, em 1959 o zoólogo William Russell e o microbiologista Rex

Burch publicaram a obra “The Principles of Humam Experimental Tecnique”,

estabelecendo princípios orientadores ao uso de animais na pesquisa, conhecidos

como o princípio dos “3Rs”: “Reduce”, “Replace” e “Refine”. “Reduce” (redução)

determina que os pesquisadores devem utilizar o mínimo de animais em um

experimento. Para isto, deve-se adotar um bom modelo estatístico, utilizar ratos

provenientes de colônias geneticamente homogêneas mantidas em biotérios em

condições adequados e com pessoal treinado. “Refine” (refinamento) orienta para

a o emprego de métodos adequados de analgesia, sedação e eutanásia, com o

propósito de reduzir a dor e desconforto, evitando ao máximo o estresse e distress

dos animais de experimentação. “Replace” (substituição) orienta para ao uso de

métodos alternativos, sempre que possível. 3

Em 27 de janeiro de 1978 foi proclamada em assembléia da UNESCO, em

Bruxelas, a Declaração Universal do Direito dos Animais. O art. 8º determina

que “a experimentação animal, que implica um sofrimento físico, é incompatível

com os direitos do animal, quer seja um experiência médica, científica, comercial

ou qualquer outra” e, que “as técnicas substitutivas devem ser utilizadas e

desenvolvidas.” 3

Somente em 8 de maio 1979, é publicada a Lei a 6.638, que normatiza a

prática de didático-científica da vivissecção de animais. No entanto, devido à

ausência de regulamentação, esta não teve “força de lei”.6

Em 1988, o Brasil têm a sua nova Constituição Federal. No Capítulo VI,

que trata do Meio Ambiente, o art. 225, inciso VII, incumbe ao Poder Público

“proteger a fauna e flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em

risco sua função ecológica, pratiquem a extinção de espécies ou submetam

animais à crueldade.” 6

A Lei 9.605 de 12 de fevereiro de 1998, a Lei de Crimes Ambientais,

regulamentada pelo Decreto Lei nº 3.179/99, no seu art. 32 determina pena de

Page 5: UTILIZA+ç+âO DE ANIMAIS EM EXPERIMENTA+ç+âO ASPECTOS +ëTICOS,

detenção de três meses a um ano e multa, para aqueles que praticarem ato de

abuso, maus-tratos, ferirem ou mutilarem animais silvestres, domésticos ou

domesticados, nativos ou exóticos. Incorrendo nesta mesma pena quem realizar

experiência dolorosa ou crueldade em animal vivo, ainda que para fins

didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. 6

Em 1995, foi apresentado à Comissão de Defesa do Consumidor, Meio

Ambiente e Minorias, o Projeto de Lei (PL) nº 1.153-A, de autoria do Deputado

Sérgio Arouca (já falecido), que regulamenta o inciso VII, do § 1º do art. 225 da

Constituição Federal, dispondo sobre a utilização de animais em atividade de

ensino, pesquisa e experimentação e dá outras providências. 6

Em 1993, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) inicia um debate

sobre a regulamentação do uso de animais na experimentação, com a

participação de Academia Brasileira de Ciências (ABC) que cria uma comissão

para a elaboração de um projeto de lei. A comissão era formada pelas seguintes

entidades: Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC),

Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Federação de Sociedades de Biologia

Experimental (FeSBE), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),

Colégio Brasileiro de Experimentação Animal (COBEA), Sociedade Mundial

para a Proteção dos Animais (WSPA) e Sociedade Zoófila Educativa (Sozed).

Em 1997, cria-se, por meio do Poder Executivo, o PL nº 3.964, que foi apensado

ao PL nº 1.153-A/95.7 Em 25 de junho de 2003, obteve-se aprovação da

Comissão de Defesa do Consumidor (CDC) e, em 21 de dezembro de 2006,

aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). O

projeto continua tramitando na Câmara de Deputados.8

O Capítulo II, do PL nº 1.153-A/95 (apenso o PL nº 3.964/97), trata dos

Dos Cuidados Gerais com os Animais e diz o art. 4º “todo animal utilizado ou

destinado a ser utilizado num experimento deve beneficiar-se de abrigo, ambiente

adequado, um mínimo de liberdade de movimentos, alimentação, água e cuidados

necessários à sua saúde e ao seu bem-estar, na forma do regulamento.”

Ainda, com relação ao PL nº 1.153-A/95 (apenso o PL nº 3.964/97), cabe

ressaltar o Capítulo III, que trata Dos Experimentos. Segundo o art. 5º “A

Page 6: UTILIZA+ç+âO DE ANIMAIS EM EXPERIMENTA+ç+âO ASPECTOS +ëTICOS,

utilização de animais em atividades de ensino, pesquisa e experimentação

condiciona-se aos seguintes princípios:

I - tratamento de respeito ao animal, independentemente de sua utilidade para o

homem;

II - restrição a experimentos relevantes e a situações em que inexistam,

comprovadamente, técnicas que dispensem a utilização de animais e possam

obter resultados satisfatórios para os fins pretendidos;

III - adequação da espécie, do número de animais utilizados e do tempo de

duração de cada experimento ao mínimo indispensável para obtenção de dados

representativos;

IV - utilização de métodos que reduzam ao mínimo os sofrimentos e as lesões

causados aos animais;

V - realização do trabalho por profissionais legalmente habilitados;

VI - adoção de normas de segurança recomendadas internacionalmente;

VII - planejamento e execução dos experimentos de forma a evitar ou, nessa

impossibilidade, minimizar a dor e o sofrimento dos animais;

VIII - assunção de que animais sentem dor de maneira similar aos seres humanos.

O art. 6º trata da utilização de métodos alternativos, ficando “proibida a

utilização de animal em qualquer experimento para o qual seja possível utilizar

outro método cientificamente adequado.” O § 2º determina que “o número de

animais utilizados e o tempo de duração de um experimento devem ser os

mínimos indispensáveis para produzir o resultado conclusivo.”

O art. 7º diz que os experimentos que possam causar dor ou angústia

devem desenvolver-se sob sedação, analgesia ou anestesia adequadas. Segundo

o § 1º aqueles experimentos cujo objetivo seja o estudo dos processos

relacionados à dor e à angústia condicionam-se a autorização específica da

Comissão de Ética no Uso de Animais (CEUA). Esta comissão deve ser instituída

pelas Instituições que desenvolvem ensino, pesquisa ou experimentação, bem

como criem ou comercializem animais com essas finalidades. O § 2º veda o uso

de bloqueadores neuromusculares ou relaxantes musculares em substituição a

substâncias sedativas, analgésicas ou anestésicas. E o § 3º diz que “se, durante o

Page 7: UTILIZA+ç+âO DE ANIMAIS EM EXPERIMENTA+ç+âO ASPECTOS +ëTICOS,

experimento, o animal apresentar sinais de dor ou sofrimento intensos a despeito

de anestesia ou analgesia, a dor deve ser imediatamente aliviada e, se isso não

for possível, o animal deve ser sacrificado por métodos humanitários.

O art. 8º determina o destino dado ao animal ao encerrar-se o experimento,

se ele deve ser mantido vivo ou sacrificado por métodos humanitários. A eutanásia

deve ser cometida quando o animal não tiver condições de recuperar a saúde

completa ou possa apresentar dor ou sofrimento intensos.

De acordo com o art. 9º “é vedada a reutilização de um animal já utilizado

num experimento que lhe tenha causado sofrimento ou dores violentas ou

permanentes, independentemente de se ter recorrido a anestesia ou analgesia.”

O art. 10 recomenda que as práticas de ensino devem, sempre que

possível, ser fotografadas, filmadas ou gravadas, de forma a permitir sua

reprodução para ilustração de práticas futuras, evitando-se a repetição

desnecessária de experimentos didáticos com animais.

O art. 11. determina que “todo experimento deve ser realizado ou

supervisionado por profissional de nível superior, graduado ou pós-graduado na

área biomédica, vinculado a instituição credenciada pelo CONCEA.” O CONCEA

vem a ser o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal, presidido

pelo Ministro de Estado do Meio Ambiente.

É importante aqui destacar o papel do COBEA na questão da Ciência de

Animais de Laboratório. Em 1991 o COBEA criou os Princípios Éticos na

Experimentação Animal, que têm orientado diversos pesquisadores preocupados

com o bem-estar animal.7 Em 2003, o COBEA, juntamente com a Association for

Assesment and Accreditation of Laboratory Animal Care (AAALAC) publicou o

“Manual sobre Cuidados e Usos de Animais de Laboratório”.9 Outra publicação

importante, apoiada pelo COBEA (divulgada últimas Reuniões Anuais da FeSBE)

partiu do Departamento de Psicobiologia, da Escola Paulista de Medicina - USP,

em 2005, os “Princípios Éticos e Práticos do Uso de Animais de

Experimentação”.10

Page 8: UTILIZA+ç+âO DE ANIMAIS EM EXPERIMENTA+ç+âO ASPECTOS +ëTICOS,

Para Ser Ético É Preciso Conhecer A Espécie Em Estudo.

Como em qualquer investigação científica, o mérito de experimentos com

animais depende da rígida adesão ao método científico. Esta adesão determinará

a reprodutibilidade e a confiabilidade dos resultados, chave para todo o bom

experimento (Claude Bernard, 1865).10

Mesmo que os padrões culturais do século XXI possam estar distantes

daqueles vivenciados por Claude Bernard, no que diz respeito ao comportamento

ético na experimentação animal, suas idéias apontam para uma preocupação

bastante precoce com a utilização de métodos que garantam resultados confiáveis

na investigação científica.

A exigência de rigor científico na pesquisa é a melhor forma de trabalhar de

forma ética, uma vez que melhora a qualidade dos resultados. Resultados com

menor variabilidade, diminuem o número de animais necessários para finalizar um

experimento, e portanto, o sofrimento animal. Baseado nesta premissa, o passo

seguinte será estabelecer de que forma pode-se implementar maior rigor científico

em determinado método de pesquisa, a fim de garantir tanto a credibilidade dos

resultados, como a desejada redução do número de animais utilizados.

Sabe-se da importância de manusear adequadamente e cuidar dos

aspectos sanitários para garantir a saúde e o bem estar dos animais, e assim

minimizar seu estresse. No entanto, na prática diária da pesquisa, muitas vezes

esquece-se que são os detalhes que determinam o sucesso ou o fracasso do

nosso trabalho. Não raro pesquisadores e professores manifestam espanto com a

variabilidade dos resultados ou até a grande diferença encontrada em comparação

ao que já está na literatura. Dessa forma, a pergunta que precisa ser respondida

é: o que se pode fazer para aderir rigidamente ao método científico, que inclui o

tratamento adequado aos animais, e assim diminuir a variabilidade dos

resultados?

A primeira atitude é aumentar o controle sobre as etapas dos

procedimentos. O pesquisador ou o professor certamente irá manusear o animal,

Page 9: UTILIZA+ç+âO DE ANIMAIS EM EXPERIMENTA+ç+âO ASPECTOS +ëTICOS,

talvez anestesiá-lo para algum procedimento cirúrgico ou ensaio de pesquisa e/ou

ensino. Em outros casos, a eutanásia poderá ser necessária. É extremamente

importante ressaltar que esses procedimentos são utilizados somente quando não

há outra forma de chegar a uma conclusão que contribua para minimizar, no

futuro, o próprio sofrimento animal e de seres humanos.

Dessa forma, a geração de resultados relevantes e confiáveis para salvar

vidas, deve basear-se em tratamento que proporcione ao animal redução do

estresse e melhoria da sua condição fisiológica. Estudos demonstram que o

simples fato da freqüência cardíaca (FC) estar aumentada, independentemente da

atividade nervosa simpática, aumenta o estresse oxidativo cardíaco e ativa

proteínas quinases mitogênicas, causando hipertrofia e fibrose do músculo

cardíaco.11 Spangenberg e colaboradores (2005) demonstraram por telemetria, um

método que mede a atividade cardiovascular de forma bastante confortável para o

animal, que o simples contato com o homem aumenta a pressão arterial e a FC de

ratas em 80 a 180 batimentos por minuto (bpm) para acima dos valores normais

de 300 a 350 bpm. Esse aumento se mantém por 30 a 90 minutos após um

procedimento de rotina, e tanto a magnitude como a duração dessas respostas

são reduzidas pela presença de mais de um animal por caixa de tamanho

compatível,12 indicando que decisões simples, como a escolha do número de

animais por caixa, podem contribuir para o bem estar almejado .

A conduta ética é uma necessidade especialmente nas avaliações que

levam em consideração todos os ângulos da discussão. Um dos aspectos que

deve ser considerado como condição si ne qua nom é a saúde animal. Segundo o

Committee on Infectious Disease of Mice and Rats, a maioria das infecções

naturais com organismos patogênicos em ratos e camundongos, são subclínicas e

portanto não detectáveis pela simples observação. Ainda segundo este Comitê,

estas infecções subclínicas induzem a aberrações nos resultados das pesquisas.13

Procedimentos sépticos previnem o aparecimento de infecções e não apenas o

aparecimento de doenças clinicamente observáveis.

Um estudo com 239 cachorros e gatos demonstrou que o tempo de duração

de uma cirurgia e o tempo que o animal permanece anestesiado é diretamente

Page 10: UTILIZA+ç+âO DE ANIMAIS EM EXPERIMENTA+ç+âO ASPECTOS +ëTICOS,

proporcional ao aparecimento de infecção no pós-operatório.14 Desta forma,

reduzir o risco de infecções em procedimentos cirúrgicos sépticos significa reduzir

o tempo de anestesia/cirurgia.

Outro aspecto ainda relacionado a procedimentos cirúrgicos, que

geralmente são os que causam maior desconforto aos animais, é a perda de peso.

Welberg e colaboradores (2006), demonstraram que a perda de peso após

anestesia com quetamina-xilasina-acepromazina é resultante de sofrimento não

relacionado com a dor,15 mostrando que a escolha do anestésico também

influencia o grau de estresse ao qual submeteremos os animais.

Outro estudo mostrou que o transporte de animais promove aumento da

FC, perda de peso, elevação da concentração plasmática de adrenalina,

noradrenalina, glicemia, cortisol, ácidos graxos livres, alteração de carboidratos e

proteínas plasmáticas, da osmolalidade e do metabolismo lipídico, além de

promover neutrofilia e linfopenia; o estudo demonstrou ainda que essas alterações

permanecem por aproximadamente 7 dias, e dependendo do genótipo do animal,

podem durar várias semanas.16

Esses achados deixam claro que, uma vez sendo o transporte e o

manuseio dos animais inevitáveis, devemos garantir a eles no mínimo ambiente

limpo e silencioso, manuseio gentil e alimentação adequada. Essa conduta

garantirá uma diminuição do estresse e de alterações, visíveis ou não, capazes de

interferir no resultado dos procedimentos. Neste sentido, a adoção de medidas

que promovam o bem estar animal passa a representar não apenas uma opção

mas, uma necessidade, tanto em sala de aula como nos laboratórios que almejem

contribuir com o avanço da ciência. Os problemas éticos verificados em alguns

países em desenvolvimento, estão relacionados à equivocada percepção de que

animais não tem sensibilidade. É preciso que todos aqueles que trabalham com

pesquisa básica observem os animais que escolheram para realizar seus estudos.

Se assim o fizerem, terão a certeza de que animais, assim como seres humanos,

reagem da mesma forma a estímulos. Aliás, é exatamente esta semelhança na

sensibilidade que possibilita a sua participação em estudos que contribuem para a

compreensão da fisiopatologia do organismo humano.

Page 11: UTILIZA+ç+âO DE ANIMAIS EM EXPERIMENTA+ç+âO ASPECTOS +ëTICOS,

Além disso, não se pode deixar influenciar por sentimentos extremos. Nem

o uso indiscriminado de seres vivos em ensino e pesquisa deve ser permitido, nem

devemos eliminar sua participação nesses estudos. É fundamental que o

conhecimento profundo sobre a fisiopatologia da espécie em estudo determine as

regras de conduta a serem adotadas no futuro, e que os cuidados técnicos/éticos

utilizados determinem a credibilidade da equipe. Ser ético no tratamento com

animais não é uma opção, mas sim uma obrigação daqueles que desejam fazer

ciência. Somente esses professores/pesquisadores devem ter a permissão para

utilizarem seres vivos em seus estudos, porque ser ético é também ser

conhecedor.

Essas informações demonstram a importância de controlarmos todas as

etapas do experimento. Quantos animais serão mantidos por caixa e a freqüência

com que as caixas-moradia serão limpas, qual a melhor ração e não simplesmente

a de menor custo, qual anestésico é o melhor para o animal e para o estudo, quais

os cuidados pré e pós-operatórios serão adotados, qual o analgésico será

preconizado para reduzir a dor, entre muitos outros cuidados que devemos ter

para atender ao protocolo experimental e às normas éticas.

O momento é de reflexão, de busca de alternativas que substituam os seres

vivos no ensino e na pesquisa. Há, inclusive no Brasil, um movimento crescente,

em defesa de uma educação humanitária, que prega o uso de alternativas à

utilização de animais no ensino biomédico e médico veterinário, sempre que

possível. A experiência direta com animais seria por meio de seu uso

responsável, ou seja, pela observação dos animais vivos, intervindo

positivamente nos doentes, e utilizando os corpos daqueles que tiveram morte

natural.18,19 Modelos e simuladores mecânicos, filmes e vídeos interativos,

simulação computadorizada e realidade virtual são alternativas disponíveis no

mercado para auxiliar professores em aulas práticas.20 Diversas universidades

brasileiras estão adotando manequins, modelos de peças anatômicas, sangue

artificial, ou, ainda modelos de ratos feitos em PVC para o treinamento de suturas

e microcirurgias durante as aulas de técnica operatória.19,21,22 Na área das

pesquisas bioquímicas e toxicológicas, por exemplo, a experimentação com

Page 12: UTILIZA+ç+âO DE ANIMAIS EM EXPERIMENTA+ç+âO ASPECTOS +ëTICOS,

cultura de células e a utilização de membranas artificiais podem ser alternativas ao

uso de animais.

Deve-se utilizar seres vivos somente nos casos em que o resultado gerado

seja fundamental para salvar muito mais vidas do que aquelas que estão sendo

finalizadas durante os estudos. Somente meios éticos podem justificar fins que

salvam vidas. Se as pesquisas forem interrompidas, milhões de pessoas

continuarão a morrer de AIDS, câncer, hipertensão, gripe, entre muitas outras

doenças que ainda não temos a cura e outras que ainda estão por vir, resultado

do ritmo frenético e o confinamento que o mundo de hoje está nos impondo.

Como reconhecimento à contribuição silenciosa de milhares de seres vivos,

o mínimo que se espera da classe científica é uma atitude ética em relação aos

animais que, mesmo desprovidos da possibilidade de manifestação ativa, tenham

sua sensibilidade respeitada durante os procedimentos a que são submetidos. Por

fim, é preciso agradecer a todos que contribuíram para o avanço do conhecimento

e com isso permitiram salvar a vida de muitos seres queridos, humanos e não

humanos.

Referências Citadas

1. Feijó, A. Utilização de Animais na Investigação e na Docência: uma reflexão necessária. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. pp 145.

2. Naconecy, C. M. Ética e Animais: um guia de argumentação filosófica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. pp 234.

3. http://www.ufrgs.br/bioetica/ 4. Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Comissão

Nacional de Ética em Pesquisa. Manual Operacional para Comitês de Ética em Pesquisa. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. pp124.

5. Nishiioka, S.A. Regulação da Pesquisa Clínica no Brasil: passado, presente e futuro. Prática Hospitalar 48:17-26, 2006.

6. Poder Executivo Federal, Presidência da República Federativa do Brasil: http://www.presidencia.gov.br/

7. Colégio Brasileiro de Experimentação Animal: http://www.cobea.org.br/ 8. Poder Legislativo Federal, Câmara Deputados: http://www2.camara.gov.br/ 9. Institute of Laboratory Animals Resourses, Commission on Life Sciences,

National Research Council. Manual sobre Cuidados e Usos de Animais de Laboratório/ tradução Guillermo Rivera. Goiânia: AAALAC e COBEA, 2003. pp162.

Page 13: UTILIZA+ç+âO DE ANIMAIS EM EXPERIMENTA+ç+âO ASPECTOS +ëTICOS,

10. Guimarães M.A. & Mázaro, R. Princípios Éticos e Práticos do Uso de Animais de Experimentação. São Paulo: UNIFESP, 2004. pp167

11. An Introduction to the Study of Experimental Medicine (English translation by H. C. Greene, 1927). New York. McMillan. pp226

12. Yamamoto E, Lai ZF, Yamashita T, Tanaka T, Kataoka K, Tokutomi Y, Ito T, Ogawa H, Kim-Mitsuyama S. Enhancement of cardiac oxidative stress by tachycardia and its critical role in cardiac hypertrophy and fibrosis. J Hypertens. 2006;24:2057-2069.

13. Spangenberg EM, Augustsson H, Dahlborn K, Essen-Gustavsson B, Cvek K. Housing-related activity in rats: effects on body weight, urinary corticosterone levels, muscle properties and performance. Lab Anim. 2005;39:45-57.

14. Companion Guide to Infectious Disease of Mice and Rats. Committee on Infectious Disease of Mice and rats, Institute of Laboratory Animal Resources, Commission on Life Science, National Research Council, 1991. 108 pages. http://wwwnap.edu/catalog/1540.html

15. Nicholson M, Beal M, Shofer F, Brown DC. Epidemiologic evaluation of postoperative wound infection in clean-contaminated wounds: A retrospective study of 239 dogs and cats. Vet Surg. 2002;31:577-581.

16. Welberg LA, Kinkead B, Thrivikraman K, Huerkamp MJ, Nemeroff CB, Plotsky PM. Ketamine-xylazine-acepromazine anesthesia and postoperative recovery in rats. J Am Assoc Lab Anim Sci. 2006;45:13-20.

17. Obernier JA, Baldwin RL. Establishing an appropriate period of acclimatization following transportation of laboratory animals. Ilar J. 2006;47:364-369.

18. Congresso Latino-Americano e Brasileiro de Educação Humanitária. Realização: Instituto Nina Rosa - Projetos por Amor à Vida. Coordenação: Rita de Cássia Garcia. Memorial da América Latina. São Paulo-SP. Dias 5 e 6 de maio de 2006.

19. I Simpósio de Bioética da FFFCMPA: o Uso de Animais no Ensino e na Pesquisa. Realização: Comitê de Ética em Pesquisa da FFFCMPA. Coordenação: Cyntia Alencar Fin. Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre, Porto Alegre - RS. Dias 13 e 14 de setembro de 2006.

20. Greif, S. Alternativas ao Uso de Animais Vivos na Educação: pela ciência responsável . São Paulo: Editora Instituto Nina Rosa, 2003

21. Interniche do Brasil: http://internichebrasil.org/ 22. Instituto do PVC: http://institutodopvc.org/

Outras Fontes de Consulta

• Feijó, A., Aula: Ensino e Pesquisa em Modelo Animal, durante o 3º Curso de Inverno de Bioética, de 16 à 18 de junho de 2003,

Page 14: UTILIZA+ç+âO DE ANIMAIS EM EXPERIMENTA+ç+âO ASPECTOS +ëTICOS,

promovido pela PUCRS e Sociedade Rio-Grandense de Bioética, na PUCRS, Porto Alegre, RS.

• Feijó, A., Aula: Ensino e Pesquisa em Modelo Animal, durante o 5º

Curso de Inverno de Bioética, de 04 à 06 de julho de 2005, promovido pela PUCRS e Sociedade Rio-Grandense de Bioética, na PUCRS, Porto Alegre, RS

• Feijó, A. Ensino e Pesquisa em Modelo Animal. IN: Clotet. J. et alii. Bioética: Uma Visão Panorâmica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. p 21-36.

• I Fórum de Discussão sobre a Utilização de Animais no Ensino e Pesquisa. Relização: Biotério Central da Reitoria - Universidade Federal de Pelotas. Coordenação: Milton Amado. Centro de Convenções, Pelotas-RS. Dia 1º de dezembro de 2006.

• Levai, T.B. Vítimas da Ciência: Limites éticos da experimentação animal. Campos do Jordão: Ed. Mantiqueira, 2001. pp 79

• Levai, L. F. Direito dos Animais. Campos do Jordão: Ed. Mantiqueira, 2004. pp159.

• Prada, I. A Alma do Animais. Campos do Jordão: Ed Mantiqueira, 1997.

• Oliveira, G.G. Ensaios Clínicos: Princípios e Prática. Brasília: Agência Nacional de Vigilância Sanitária, 2006. pp 327

Page 15: UTILIZA+ç+âO DE ANIMAIS EM EXPERIMENTA+ç+âO ASPECTOS +ëTICOS,