vilaÇa, marcantonio.mostra itinerante.2009

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    pintura inquietanteO ateli de Eduardo Berliner fica na rua Real Grandeza, no centro de Botafogo, no Rio de Janeiro. Est instaladono piso superior de um prdio de dois andares, ocupado embaixo por lojas de roupas e outros pequenos comr-cios de bairro. Uma escada estreita conduz ao apartamento bastante claro, de janelas amplas, p-direito alto ecmodos confortveis.

    Na primeira sala, menor, vejo as ltimas telas que Berliner realizou, penduradas nas paredes. um espaoque permite apreciar e comparar sua produo recente. Para o artista, tambm um local em que as obrasaguardam a sua "maturao", antes de irem para a galeria ou para uma exposio. Percebo ali alguns objetos -um xaxim recortado, uma tesoura grande de jardineiro, uma estranha planta longilnea. Numa cmoda, gavetasrepletas de trabalhos em papel. Perto do sof, uma pilha volumosa de cadernos de desenhos. Outras pinturasmais antigas esto dispostas na parede de um corredor que leva cozinha.

    Passo sala principal e maior, onde o artista realiza as pinturas. Nas paredes, esto afixadas as telas aindaem produo, em geral grandes, de mais de 2 x 2 metros. Ao lado delas, tambm pregadas nas paredes, algumasfotografias e desenhos, que servem de referncia aos quadros. Aqui no h poltronas ou cadeiras, apenas as mesasde trabalho. Pergunto a Berliner por que a rnesa com as tintas e palhetas est to distante dos quadros. Ele me explicaque, seguindo uma lio de Charles Watson, que foi seu professor, mantm a palheta longe da tela, a fim de no se"enfurnar" no trabalho e, assim, a cada vez, tomar distncia do que est produzindo, "limpando a retina".

    A ltima sala, no fundo do apartamento, o escritrio do artista. um pequeno compartimento, ocupadopor uma mesa com um computador e uma estante cheia de livros e DVDs - filmes de Bergman, Tarkovski eGodard. o local onde Berliner faz suas leituras, escreve e desenha. Observo as estantes. H numerosos livros deartistas que ele aprecia: Luc Tuymans, Brice Marden, Marlene Dumas, David Hockney, Eric Fischl, Richard Deacon,Luiz Zerbini, Paul McCarthy ... Percebo na mesa algumas leituras de Berliner: A condio humano, de HannahArendt, e Ruo de mo nico, de Walter Benjamin.

    Foi neste espao, o ateli, que se estabeleceu principalmente o meu dilogo com Berliner. Ao longo de pou-co mais de um ano, fiz seis visitas ao local, onde permaneci por muitas horas, a fim de acompanhar o processo deconcepo de parte das telas que ele apresentou na exposio do Prmio CNI SESI Marcantonio Vilaa 2009/10.

    Mas, se insisto no ateli, por outro motivo que o de simplesmente descrever esse local, afinal, previsvel, deconvivncia com um artista. Sendo um apartamento que Berliner adaptou para o seu uso, o ateli preservava algunsaspectos de um ambiente domstico, como a antessala com o sof, a cozinha com a mquina de caf e o escritriocom a estante e o computador. Ele tambm me recebia ali como em sua casa, com as gentilezas de um bom anfitrio.A cada visita, entretanto, havia algo de perturbador que impedia minha familiarizao com o ateli.

    Como na segunda visita, em que cheguei ao apartamento e encontrei estendida no piso uma espciede instalao, em que o xaxim (que antes me parecera apenas o resto de um vaso de plantas) transformara-sena cabea de um lobo, cujo corpo era formado por duas hastes de madeira e a tesoura de jardineiro. Passei asuspeitar que pouca coisa que estava ali, por mais comum que fosse o objeto, atendia demanda de um usoprtico e habitual: as plantas e os vasos no eram para enfeitar a casa, a cadeira no serviria de assento, um rolode carpete no visava redecorao do local. Sem falar que Berliner tambm passou a acumular no apartamentoos objetos mais estapafrdios, como um imobilizado r de pernas quebradas; um manequim do dorso humano,usado em treinamento ambulatorial; tesouras cirrgicas; mscaras de ces penduradas numa luminria retr; umacadeira de rodas ete.

    Ao contrrio do que eu esperava, o ateli no era apenas um ambiente adaptado para o ofcio da pintura ecentrado na construo da tela, mas servia como um espao de arquivamento e manipulao de instrumentos varia-dos e estranhos, uma oficina de produo de objetos e "cenrios", um laboratrio de metamorfoses das coisas.

    Para mim, o convvio com Berliner implicou uma srie de deslocamentos. Primeiramente, o deslocamentogeogrfico, com as viagens sucessivas ao Rio, que transformavam cada visita num processo de recapitulao dosprocessos de criao por que passara o artista, a fim de preencher as lacunas que a distncia fsica e temporalcriara. Tambm deslocamento no plano profissional, porque, sendo eu um jornalista e editor, acostumado velocidade e volatilidade dos processos da imprensa, pela primeira vez deveria acompanhar "na longa durao" otrabalho de um artista plstico, buscando compreender o seu caminho, e no apenas reportar um mero episdio

    de sua experincia. Por fim, deslocamento intelectual, pois tendo me dedicado, em meu trabalho jornalstico,

  • sobretudo s formas, s narrativas e aos procedimentos da literatura e do cinema, agora deveria enfrentar umregime esttico bastante diverso, o das artes plsticas, e ao lado de um artista que tem realizado um caminhobastante atpico no contexto da produo brasileira.

    Logo em nosso primeiro encontro, Berliner me disse: "Meu trabalho se identifica com o seu, porque eutambm edito. Eu tambm sou um editor". Quando ouvi essas palavras, julguei a princpio que elas eram apenasum jeito gentil de ele estabelecer uma base de convivialidade comigo ou talvez uma maneira que encontrara deme tranquilizar, ansioso que eu estava por pisar em terreno desconhecido. S mais tarde, seguindo o seu processo decriao e execuo das obras, pude compreender o que queria expressar, quando se referia sua prpria pinturacomo um ato de "edio" - sobre isso falarei mais adiante.

    preciso dizer, desde j, que este artigo nasce da reescrita e, afinal, da edio de um dirio que mantive du-rante o tempo de convivncia com o artista, redigido numa linguagem que me prxima, a da reportagem, e sema pretenso de criar um dispositivo crtico - uma interpretao - do trabalho complexo de Berliner. Se este textocontribuir para que o leitor se aproxime com interesse das obras do artista, ele j ter cumprido seu objetivo.

    a pintura sem nostalgiaEduardo Berliner nasceu no Rio de Janeiro, em 1978. Formou-se em comunicao visual pela PUe, com especiali-zao em desenho industrial. Nessa rea, dedicou-se ao desenho de fontes tipogrficas. Chegou a criar trs fontes:a Muggia, a Frmica e a Pollen - esta ltima desenvolvida em seu mestrado em tipografia na Universidade deReading, na Gr-Bretanha, em 2003. "Antes, minha escala era o micro, agora, nas telas, o macro e o rnrro", conta.

    Tambm poderia ser classificada como "mirro" a escala de seus desenhos, feitos a lpis, caneta, aquarela,pastel e mesmo leo, que preenchem os cadernos em pilhados numa das salas do ateli.

    Berliner comeou a desenhar na infncia. "Tudo que fiz na minha vida foi norteado pelo desenho", conta. Eleraramente sai de casa sem um caderno de desenho, que, para ele, como um dirio visual que carrega por todaparte. Com um trao excepcional, registra neles tudo que atrai sua ateno: objetos, animais, plantas, paisagens esituaes urbanas, cenas de filmes e de programas de TV. Nos cadernos, faz ainda pequenas colagens, com recortesde revistas e jornais, e anota trechos de livros que est lendo. Em um dos cadernos, leio esta frase de Slavoj Zizek:"Com certeza a imagem est no meu olho, mas eu, eu tambm estou na imagem" (do livroA viso em paralaxe).

    No h simplesmente esboos de trabalhos nos cadernos, como se eles tivessem sido preenchidos apenascom exerccios ou rascunhos de obras que viro a ser feitas em outro suporte - a pintura. Berliner me mostra umconjunto de desenhos baseados em atlas geogrficos, com imagens de vulces e de traados geolgicos descre-vendo as entranhas da Terra. Em outro pequeno caderno, ele concentrou vrios retratos de ces. Uma srie demicroaquarelas reproduzem um dente de alho. So trabalhos minuciosos e rigorosos, quase obsessivos. "Sodesenhos de observao pura, eles exigem um grande silncio da minha parte", diz o artista.

    Em 1998, Berliner fez seu primeiro curso de arte e desenho com o professor Charles Watson, artistaescocs que vive e d aulas no Brasil desde o final dos anos 1970. Passou mais tarde a frequentar um grupo deestudos no ateli de Watson, em que os participantes discutiam os seus projetos em andamento. Berliner aindaestava concentrado na criao de objetos e desenhos. "At aquele momento, eu no considerava a possibilidadede utilizar esse suporte, a pintura, talvez pelo peso da tradio", conta. Mas foi durante os trabalhos desse grupoque fez sua primeira tela a leo. Os receios em relao pintura comearam a se dissipar, e Berliner foi pouco apouco concentrando nela sua atividade artstica. Outros cursos com Watson ocorreram em 1999 e 2003. Hoje, oartista d aulas no ateli do professor.

    Watson foi um dos nomes mais citados por Berliner durante a nossa convivncia, o que indica a admiraoe o respeito que tem pelo professor. Mas o artista jamais se referia a Watson como algum que o ensinou a pintar."Ele me despertou para a complexidade dos processos de criao, o que foi ainda mais importante para mim",disse certa vez. "Ningum nunca me ensinou nenhuma tcnica de pintura. No entanto, tive a sorte de convivercom outros dois artistas, meus amigos, Lucia Laguna e Cadu [Carlos Eduardo Felix da Costa], que desde o inciodos meus trabalhos como artista e pintor fizeram crticas importantes para a minha formao." A sua primeira ex-posio individual ocorreu em 2005, na Galeria Laura Marsiaj, no Rio, com trs desenhos a leo e em grafite sobrepapel, dois outros desenhos (com mercrio cromo sobre algodo e outro com pasta de dente sobre travesseiro)e objetos, entre eles um coelho de algodo, vestido com uma camisa de fora.

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  • Berliner no tem qualquer sentimento fetichista ou nostlgico com relao pintura. Para ele, trata-se deum modo de expresso sem privilgios, instalado no mesmo nvel das demais atividades artsticas. "Esse nivela-mento estimulou o surgimento de uma multiplicidade de maneiras de abordar a pintura. Ela passou a ser contami-nada por outras formas de expresso e outras reas do conhecimento. Por isso no estranho em nossa poca vertrabalhos de pintura figurativa ou abstrata ou afetada por prticas instalativas, escultricas ou performticas."

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    a reelaborao dos objetosAlm do caderno de desenhos, Berliner est sempre munido de uma cmera Canon G9, quando sai de casa. Elefotografa incessantemente, mas, ao contrrio do que ocorre com o desenho, no h nas suas fotos nenhumainteno esttica. como se elas fossem apenas documentos, referncias primrias, que lhe serviro de base paraum trabalho posterior em tela.

    Ele no fotografa s situaes e paisagens, mas tambm imagens de filmes - como uma cena deFor Ever Mozart, de Godard, que ser a referncia do quadro Pntano (2010), com suas figuras retratadasquase maneira de silhuetas, em sinistro contraste de preto e azul. Acumula ainda um conjunto de fotosextradas de revistas e enviadas por parentes, que mostram as pessoas em poses corriqueiras e domsticas,mas nas quais a sua observao diagnostica algo de muito inquietante - sentimento que Freud definiu assim:

    " aquela espcie de coisa assustadora que remonta ao que h muito conhecido, ao bastante familiar"(O inquietante, Companhia das Letras, p. 331). Por exemplo, uma cena trivial em que uma mulher, sentadaem uma poltrona, de repente ergue um cachorro, a ponto de tapar seu prprio rosto com a cabea doanimal. Essa imagem, fotografada por Berliner em sua prpria casa, resultou numa tela muito perturbadora,Mulher e cachorro (2009) - uma das obras de Berliner adquiridas pela Saatchi (ele o primeiro brasileiroa ter seus trabalhos no acervo da galeria londrina).

    Imagens de animais comparecem com frequncia na pintura de Berliner, ora em situaes aparentementetriviais, como em Cobertor (2009), em que um gato preto vigia o sono de uma garota; ora em situaes quaseonricas, como em Serrote (2009), em que uma mulher serra o casco de uma tartaruga gigante.

    Alm dos desenhos e das fotos, h ainda o desenvolvimento de objetos, parte relevante no processo decriao do artista. No incio de sua carreira, alm do desenho, o trabalho com objetos ocupou bastante a atenode Berliner. Como parte de seu trabalho de concluso da faculdade de comunicao visual, em 2000, ele criouuma instalao na qual utilizava vinte coelhos de brinquedo, cuja pelcia ele retirou, e tambm as caixas de emba-lagem do produto, que foram redesenhadas pelo artista. Atualmente, os objetos so colecionados, remontados ouconstrudos no intuito de serem reproduzidos nas pinturas. Assim, Berliner prefere criar ele mesmo um simulacrode focinho de picano (tipo de pssaro), utilizando variados materiais (plstico, madeira ete.) do que reproduzi-Iadiretamente na tela a partir de um livro de zoologia.

    A procura por um determinado objeto, ou a sua construo, por vezes, implica a aquisio de um sabersobre o prprio artefato - suas caractersticas, variedades, materiais e formas. Descubro, por exemplo, na mesado ateli, um livro que ensina a construir mscaras. Ou seja, uma boa parte das coisas que se v nos quadrosno estritamente imaginria ou reproduzida de segunda mo, a partir de outra imagem. Ela passa antes pelareelaborao material feita pelo artista.

    Mesmo os objetos mais enigmticos das telas tm um fundamento concreto, como o escorregador deparque infantil encimado pela escultura de uma cabea de criana, como se fosse uma esfinge de madeira (emImvel, 2009). A cabea infantil , na origem, o pequeno detalhe decorativo de uma cadeira, que o artista copiouem desenho. O escorregador foi fotografado por ele num parque. Os quartos de carne dependurados saramde um aougue vizinho ao ateli. E duas das crianas foram extradas do livro sobre a confeco de mscaras.Essesdetalhes relevam, na pintura de Berliner, o seu aspecto intrnseco de montagem, ou edio, ou mesmo decolagem dos elementos heterogneos, captados por meio de diferentes mdias (desenho, fotografia ou vdeo)ou produzidos concretamente pelo artista antes de se tornarem figurao pictrica. "Mesmo partindo de umaimagem mental, procuro algo no mundo que ajude a visualiz-Ia. Nessa tentativa de criar um modelo no mundopara algo que imaginei, manipulo objetos, fao desenhos, crio colagens e tiro fotos. Para mim, pintar comeamuito antes de tocar a superfcie da tela. O prprio processo de materializao das imagens mentais j faz parteda narrativa do quadro, expressando meu dilogo com a matria", explica.

  • a construo de enterroTentemos acompanhar como se passou esta edio e montagem de elementos numa tela em particular, Enterro(2009, 250 x 250 centmetros), que mostra um homem vestido com uma mscara de lobo, segurando uma psobre um monte de areia, enquanto um menino o observa e outro agarra a sua perna, do lado direito da tela.

    A produo deste quadro levou ao menos cinco meses. De incio, para Berliner, havia a imagem mental deum lobo, um arqutipo das histrias infantis, que ele decidiu materializar no quadro na forma de uma mscara.O artista tentou confeccion-Ia em outros materiais, at decidir-se finalmente pelo xaxim, vegetal que serviu tam-bm para formar o focinho e as orelhas. Berliner acrescentou ao objeto uma ferramenta de soldagem, como se olobo portasse um aparelho mecnico na boca. Usou a prpria embalagem para fazer os olhos amarelos e pretos,e fez os dentes sobressaltados com a haste dessas pequenas placas de plstico que so usadas para sinalizar onome de plantas em um canteiro.

    Havia tambm alguns objetos, que o artista colecionara em seu ateli, como peas de uma engrenagem queele precisaria desenvolver, de um problema que ele teria que elucidar: o imobilizador para pernas quebradas (quefora utilizado por sua me), outra mscara utilizada por crianas (que ele virou do avesso, revelando seu fundobranco) e uma planta verde de textura firme e forma longitudinal. A convivncia com esses objetos, longe de criaruma familiaridade do artista com eles, ampliava a inquietao de Berliner sobre o destino a dar a essas coisas, que,desprovidas de sua utilidade prtica, preservavam, porm, para o artista, uma intensidade simblica enigmtica.

    A viso de um monte de areia numa construo, com uma p estendida, num terreno vizinho ao ateli,deu-lhe a "chave": ele iria pintar um enterro. Antes de fazer a tela, Berliner montou, ento, concretamente, uma"cena", em que um operrio da obra (mas poderia ser o prprio artista), vestido com a mscara do lobo, segurariaa p sobre o monte de areia, em cima do qual estaria depositada a mscara virada do avesso. Ao lado do monte,seria colocado o imobilizador de pernas, com a planta longilnea enfiada dentro dele.

    Prestes a fotografar a cena, ocorreu um imprevisto. Um menino invadiu o quadro (fotogrfico) pelo ladodireito, a fim de olhar o homem-lobo. A mo que aparece no mesmo canto direito a da bab da criana."Se o acaso intervm no que estou fazendo, eu no tento evit-Io; mas, se eu o notei, ele j no mais acaso", dizo artista, que manteve, portanto, o menino na foto que serviu de base para a criao da tela. A criana agarradaaos ps do homem foi includa mais tarde, a partir de uma foto de famlia com uma situao parecida. O artistaacrescentou posteriormente uma pequena figura feminina cavando sobre o buraco negro do tmulo, baseada emimagem que tambm viu no filme For Ever MOlort.

    Percebemos que, entre os "dilogos" criados pelo artista com os diferentes materiais, sobressaiu-se o es-tabelecido com a matria vegetal. Ele envolveu a moldagem do xaxim e a criao de um dispositivo para a plantalongilnea, mas incluiu ainda, no plano das figuraes, um conjunto de microvasos no canto direito da tela - apartir de uma outra foto feita pelo artista - e essa misteriosa florescncia de galhos no rosto do menino que estagarrado ao p do homem-lobo (como Joo-P-de-Feijo, me diz Berliner). O observador notar ainda, no quediz respeito matria pictrica propriamente dita, que os tons verdes dominam boa parte do quadro, como sehouvesse uma "impregnao" do elemento vegetal em toda a parte inferior da tela.

    Esta trabalhosa montagem tambm uma meticulosa "fabulao", em que o concreto encontra o imagi-nrio, o fantstico rene-se ao banal e o acaso se mescla com aquilo que foi muito planejado. Mas o que esta telaest 'fabulando'? "Os quadros no tm um s assunto. Eles renem vrias coisas que esto me afetando", dizBerliner, deixando o jornalista merc de suas prprias cogitaes.

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    realistas e surrealistasCreio que uma interpretao dos temas do artista mereceria um artigo parte, dedicado sobretudo a isso, quepudesse analisar longa mente e com pertinncia as suas figuraes inquietantes, suas fabulaes e suas obsesses,como os animais, em particular os ces (e o lobo faz parte da famlia dos candeos), os vegetais (as plantas deco-rativas com sua forma impositiva, mas tambm os descampados onipresentes), as crianas (como protagonistasprivilegiados), as mscaras (e o consequente ocultamento dos rostos humanos), mas ainda os hibridismos (entrehomem e criana, homem e bicho, homem e vegetal, bicho e vegetal etc.), o universo infantil (contos de fadas,brinquedos e projees fantasmticas) e a cenarizao dos ambientes (inclusive ao reapropriar e transfiguraroutros "cenrios" cotidianos: eqtradas de prdios, antessalas de escritrios, maquetes de imobilirias etc.).

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    Gostaria aqui apenas de destacar, em Enterro, a reminiscncia de duas grandes obras da pintura realistado sculo 19. Uma delas Um enterro em Ornans (1849), de Gustave Courbet, a outra, O ngelus (1857-59), deMillet. Chama-me ateno, por exemplo, que no quadro de Courbet, dominado pela cor preta das vestimentasausteras, esteja disposto, perto do tmulo, um homem do qual vemos ressaltada a polaina da perna direita, emforte branco contrastante, sendo que a perna esquerda est praticamente oculta. A imagem desta perna, como seela tivesse sido amputada, ecoa no Enterro de Berliner, na figura do imobilizador de pernas, coberto igualmentede tinta branca. No me parece tambm simples fruto do acaso que o menino agachado no quadro de Berlineresteja disposto quase na mesma posio que o co do quadro de Courbet. E que a cesta da tela de Millet (quena voragem interpretativa que cerca esse quadro j foi vista como o cesto morturio de um beb) reverbere notrabalho de Berliner nas duas mscaras e no corpo de boneca dispostos sobre o monte de areia.

    Analogias assim podem ser feitas em abundncia e tendem a se tornar uma espcie de mania. No o meu objetivo. A minha inteno aqui somente ressaltar o interesse e a estima que Berliner nutre pelospintores realistas do Oitocentos, tais como Courbet e Manet, que ele estuda com aplicao, mas ainda Millete Daumier. Foi essa descoberta uma das coisas que mais me surpreenderam nos primeiros contatos que tivecom o artista, cuja pintura eu imaginava dialogar sobretudo com contemporneos, como Paula Rego e PeterDoig, para citar os nomes mais evidentes, ou algumas figuras do sculo 20, como James Ensor e Chan Soutine.Tambm me espantou que ele no se interessasse pelos surrealistas.

    Seu trabalho, contudo, no est assim to distante do surrealismo - cuja reavaliao mereceria ser feitapela crtica atual, a fim de resgatar esse movimento da banalizao a que foi relegado, a ponto de se tornarum tabu entre os prprios artistas. E um crtico munido de arsenal psicanaltico poderia, apesar de essa tarefater tambm cado em desuso, empreender uma leitura bastante profcua dos contedos inconscientes latentesnos quadros de Berliner.

    A mim, compete aqui apenas encerrar esta reportagem abordando um ltimo aspecto do trabalho doartista: a sua preocupao de que a pintura oferea uma outra "temporal idade", tanto do ponto de vista da criao,quanto da observao, em tudo diversa da velocidade com que os meios de comunicao, hegemnicos, proli-feram suas imagens, e estas so consumidas. "A pintura requer uma temporal idade diferente do ritmo efmerodas imagens difundidas atravs das mdias. O processo da pintura pede um outro tempo, tanto daquele que pinta,quanto daquele que observa o trabalho", diz o artista.

    Berliner atribui pintura o papel de reestabelecer um olhar forte, no distrado, sobre o mundo, as coisas eo prprio trabalho da arte. Em outros tempos, tal reivindicao deveria ser tratada no mbito da pedagogia. Hojetalvez diga respeito esfera do poltico.

    Alcino Leite NetoJornalista e editor da Publifolha. Foi editor dos cadernos "Mais!", "Ilustrada", "Especiais", "Domingo","Moda" e correspondente da Folha de S.Paulo em Paris. formado em jornalismo pela PUC-MG e mestreem comunicao e semitica pela PUC-SP, com tese sobre o diretor italiano Roberto Rossellini. tambm editor da revista eletrnica Trpico.

  • Eduardo BerlinerRio de Janeiro, RJ, 1978Vive e trabalha no Rio de Janeiro

    FormaoDynamic Encounters, discusso a partir de vdeos de arte, professor Charles Watson (1998)Procedncia e Propriedade, curso de desenho, prol. Charles Watson (1999)Graduao em desenho industrial/comunicao visual, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (2000)Grupo de estudo ministrado pelo prof. Charles Watson (2000-2002)Meslrado em tipografia, University of Reading, Gr-Bretanha (2003)Palestras sobre Joseph Beuys e Anselm Kiefer, profa. Anna Bella Geiger (2004)Histria da Arte Moderna, prof. Pedro Frana, Parque Lage, Rio de Janeiro (2009)

    Exposies individuais2010 Casa Tringulo, So Paulo2008 Galeria Durex, Rio de Janeiro2005 Galeria Laura Marsiaj, Rio de Janeiro

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    Exposies coletivas2010/2011Mostra itinerante da 3' edio do Prmio CNI SESIMarcantonio Vilaa para as Artes Plsticas2009/2010 no

    Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; Museu de Arte Contempornea - MAC Ibirapuera, So Paulo; Galeriade Arte Juvenal Antunes, Rio Branco; Museu de Arte Moderna da Bahia, Salvador; Centro Integrado de Cultura/Museu de Arte de Santa Catarina, Florianpolis; e Centro Cultural da Universidade Federal de Gois, Goinia

    2010 Se a Pintura Morreu, o MAM um Cul, Museu de Arte Moderna do Rio de JaneiroNovas Aquisies da Coleo Gilberto Chateaubriand, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro

    2009 Investigaes Pictricas, curadoria de Daniela Labra, Museu de Arte Conternpornea, Niteri, RJThe Portrait Show, Galeria Durex, Rio de Janeiro

    2008 15Salo da Bahia, Museu de Arte Moderna da Bahia, SalvadorEstranha Coletiva, Galeria Durex, Rio de Janeiro

    2007 Novas Aquisies da Coleo Gilberto Chateaubriand, Museu de Arte Moderna, Rio de JaneiroCloro Forte Jamaica, Espao Repercussivo, Rio de Janeiro

    2006 Artista convidado para o projeto "rnuseurnuseu" de Mabe Bethnico, 27' Bienal de So Paulo2005 30 Salo de Arte de Ribeiro Preto, SP2004 Posio 2004, Parque Lage, Rio de Janeiro

    DOBRA, Centre d'Art Contemporaine de Ia Ferme du Buisson, Paris, Frana2001 Rio Trajetrias, Funarte, Rio de Janeiro

    Prmios2009 Prmio CNI SESIMarcantonio Vi laa para as Artes Plsticas 3' edio 2009/2010

  • Obras ex ostas na mostra itinerante da 3"edico do Prmio

    ttulo I title Enterro I Burialdata I date 2009tcnica I technique leo sobre tela I oilon canvasdimenses I dimensions 230 x 250 em

    ttulo I titleAcostamento IHard shoulderdata I dote 2009tcnica I technique leo sobre tela I oil on canvasdimenses I dimensions 320 x 240 em

    ttulo I title Picanodata I date 2009tcnica I technique leo sobre tela I oilon canvasdimenses I dimensions 200 x 150 em

    ttulo I title Imvel IMotionlessdata I dote 2009tcnica I technique leo sobre tela I oilon canvasdimenses I dimensions 200 x 220 em

    ttulo I title Homenzinho I Little mandata I dote 201Otcnica I technique leo sobre tela I oilon canvasdimenses I dimensions 80 x 61 em

    ttulo I titleOvelha I Sheepdata I dote 2010tcnica I technique base de cadeira com rodzios, isopor, mscara,estopa e tecido I chair with casters, Styrofoam, mask; tow, and fabricdimenses I dimensions 80 x 60 x 60 em

    ttulo I title Torre I Towerdata I dote 2009tcnica I technique leo sobre tela I oilon canvasdimenses I dimensions 197 x 197 em

    ttulo I title Banco I Seatdata I dote 2009tcnica I technique leo sobre tela I oilon canvasdimenses I dimensions 217 x 170 em

    ttulo I title Gara IHerondata I dote 2009tcnica I technique leo sobre tela I oil on canvasdimenses I dimensions 215 x 170 em

    ttulo I title Poa I Slopdata I dote 2009tcnica I technique leo sobre tela I oilon canvasdimenses I dimensions 100 x 120 em

    ttulo I title Piloto I Pilotdata I dote 201Otcnica I technique leo sobre tela I oilon canvasdimenses I dimensions 197 x 230 em

    ttulo I title Cadernos de anotaes I Notebooksdata I dote 2009